olhares na noite - rl.art.br · olhares na noite 2 título original: olhares na noite pergaminho...
TRANSCRIPT
Olhares na Noite
2
Título Original: Olhares na Noite Pergaminho Editora Online – editora de e-books. Blog Letrados em Sangue. letradosemsangue.blogspot.com Revisão Paulo Cilas e Rafael Jordan Editoração Paulo Cilas Capa Paulo Cilas 1. Contos Terror. I. Cilas, Paulo e Jordan, Rafael – organizadores, 2010-. II. Título. Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei n° 5.988.
Olhares na Noite
4
PAULO CILAS & RAFAEL JORDAN Organizadores
Olhares na Noite Contos de Terror e de Suspense
Pergaminho Editora Online
Olhares na Noite
5
Na cidade tem quase sempre alguém o observando, mesmo quando se pensa que está sozinho. E quando se pensa que se está
totalmente sozinho, como num beco escuro, no meio da noite, quando todo mundo que é honesto e sóbrio já está na cama, e você sente aquele
arrepio no meio das costas que lhe diz que alguém o observa, e você suspira aliviado, não se iluda: tem sempre alguém ali. Tem aquele que
caminha, que é você, e aquele que caminha atrás. Só porque você não o vê, não quer dizer que ele não esteja ali.
Charlie Fletcher
Impia tortorum longos hic turba furores Sanguinis innocui, non satiata, aluit.1
Edgar Allan Poe
1 Aqui, a multidão ímpia dos carrascos, insaciada, alimentou sua sede violenta de sangue inocente.
Olhares na Noite
6
SUMÁRIO
010 PREFÁCIO Marilia Costa 012 PRÓLOGO Paulo Cilas e Rafael Jordan 013 CONTOS 014 HUNTED P. Cilas & R. Jordan 016 CONDENADOS À MORTE Diego Alves 019 MENINO DAS TREVAS Marcelo dos Santos 023 ESPELHO, ESPELHO MEU... Georgette Silen 026 CASO ARQUIVADO Isabella Oliveira 030 A CASA DO FINAL DA RUA Alexandre da Costa
Olhares na Noite
7
032 REGA-SE COM SANGUE Paulo Cilas 035 SANGUE NA TELA Lariel Frota 042 LÁGRIMAS DE CROCODILO Luis Filipe de Almeida 046 DILÚCULO Eriwelton Soares 050 ABSINTO: PECADOS DE UMA FADA Thiago Félix 053 A VOZ NO POÇO Rafael Jordan 057 AMOR E CASTIGO Edweine Loureiro da Silva 058 A PENSÃO MALDITA Fátima de Menezes Dantas 063 INFERNO Rafael de Andrade 065 JOÃO E MARIA Narjara de Oliveira 071 PROTETORES DA NOITE Marcos Gallo 075 APUNHALADA PELAS COSTAS Geraldo Trombin
Olhares na Noite
8
077 IVY Rafael Farias Cabral 082 CORAÇÃO ROUBADO Marília Fernandes 086 GRITOS NA ESCURIDÃO Angelo Tiago 089 HIGHWAY TO HELL Tailine Hijaz 092 ANTÚRIO: SONHO OU PESADELO? Poliane Andrade 095 CÉU ROSADO EM CAMPOS DE TRIGO Rômulo César 098 A PORTA AZUL Maycon Batestin 105 A VOZ Igor Silva 110 A AMEAÇA Simone Pendersen 111 SOB OS ARES E OLHARES DA NOITE Geraldo Trombin 114 O CONTADOR DE ESTRELAS Sihan Felix
Olhares na Noite
9
120 O BOSQUE DO TERROR Fátima de Menezes Dantas 126 ACLUOFOBIA Alexandre Copelli 130 O 13º DETENTO Daniel Luis de Souza 134 CAÇA Narjara de Oliveira 137 A HISTÓRIA DA GAROTA NO POÇO DE SANGUE Thris Way 142 FUGITIVA Soraia Barbosa 147 EPÍLOGO Paulo Cilas e Rafael Jordan 148 AUTORES
Olhares na Noite
10
PREFÁCIO MARILIA COSTA*
O medo é uma reação humana e não humana a uma situação que pode
representar perigo. É uma reação saudável, já que está ligada à proteção. Um medo,
novo ou não, surge sempre que se encara um momento de perigo.
É um estado de alerta constante e todo o corpo responde ao estímulo dessa
emoção. Ela é tão básica para nós quanto a alegria, a tristeza, a raiva.
O coração bate mais forte, palpitando contra as costelas; começa-se a suar; os
cabelos e pelos do corpo eriçam-se, os músculos tremem, a respiração acelera. A boca
seca e as pupilas dilatam.
O medo trava, diminui, assusta, resguarda. É lutar ou fugir.
É tão complexo quanto todas as outras emoções do seres vivos. E pode ser
sentido por alguns. Quem nunca viu falar de alguém que tinha cheiro de medo, que
alguns animais podem sentir?
Um gato encontra mais facilmente um rato que “cheira” a medo. Um cachorro
sente que alguém está com medo e ataca exatamente aquela pessoa. Do outro lado,
animais que são presas normalmente orientam os da mesma espécie por meio do odor
de medo que deixam nos locais onde passam.
Ora, se o medo é tão complexo e tão estressante, por que gostamos de senti-lo?
Sim, de senti-lo. Gostamos de montanhas-russas, trens-fantasmas, filmes de terror,
livros e contos de terror e de fantástico. Nesses casos, quem procura o medo é a pessoa
que vai acabar sentindo o mesmo medo depois.
Por que procuramos isso? Por que o medo é uma emoção poderosa e forte.
Gostamos dela. Alguns viram reféns, outros viram viciados em medo na sua forma
chamada de adrenalina.
Sempre tive uma relação estranha com livros de terror, que me encantaram desde
tempos da infância, mas, ao mesmo tempo, me assustavam a ponto de ter pesadelos com
vários monstros terríveis, que enchiam minha cabeça de horrores e sustos.
Olhares na Noite
11
Quem nunca assistiu a um filme de zumbis na infância? Quem nunca viu algum
Sexta-feira 13 ou A hora do Pesadelo atire a primeira pedra.
Mas nada como um bom conto de terror para assustar mais e mais as pessoas.
Um conto, apesar de ser escrito por outro, é propriedade de quem o lê. O monstro, o
cenário, os aterrorizados serão construídos pelo leitor. E, nesse jogo, o conto fica muito
mais cheio de medo, pois é o medo individual, de cada um de nós.
Frank Herbert, um grande escritor norte-americano de ficção científica, disse
que o medo é assassino, é destruidor. O medo é tudo isso, mas também constroi. Quem
já leu H.P. Lovecraft, Edgar Allan Poe, Clive Baker, Stephen King, entre outros grandes
mestres do horror, sabe que o medo faz muito mais do que isso. Ele nos transporta para
uma dimensão de diversão e susto ao mesmo tempo.
Este e-book é um desses livros: assustador e, por isso mesmo, divertido.
Concebido como concurso de escritores, foi organizado por um escritor de horror, mas,
antes de escritor, por um leitor de contos aterrorizantes. Reunião de contos diversos,
este livro é diversão para quem aprecia o gênero. Quem sabe deste e-book não sairão
histórias e escritores que divertirão gerações. Afinal, H.P. Lovecraft é reconhecido hoje
como mestre. Edgar Allan Poe é reverenciado como grande escritor da Língua Inglesa e
da Literatura Norte-Americana. Stephen King, que no começo da carreira chegou a
jogar manuscritos no lixo por não acreditar em seu trabalho, é considerado um dos
maiores escritores de horror hoje vivos.
Convido você, leitor, a sentir o coração acelerar, a boca secar, o corpo tremer, as
pupilas dilatarem. Vale ler apenas durante a manhã, esconder o livro, esquecer a leitura
na hora de dormir. Vale tudo para penetrar surdamente no reino dos horrores.
* Marilia é professora de Língua Portuguesa e Língua Inglesa. Aluna do Programa de Pós-Graduação de Lingüística e Língua Portuguesa da Unesp – Doutorado.
Olhares na Noite
12
PRÓLOGO
Extingue-se o torpor sanguíneo, que se torna em espuma negra. As cordas vocais
já não lhe dão a voz para gritar.
Os olhos tornam-se mais escuros que a noite ao seu redor. Não há como
enxergar nada. Há somente olhares noturnos que nada vêem.
O sufocar enforca-lhe a vida. Nada era conivente com seu andar trôpego.
Arrependimento e confissão de culpa.
O que restava era o temor, da morte e da vida. Amigo ou inimigo? Temor a si
mesmo.
Rubor líquido escorre pelo instrumento torturante.
Insatisfação. Única saída...
Olhares na Noite
14
Hunted P. CILAS & R. JORDAN
As nuvens estavam se abrindo e
através da fenda escura um vulto descia rapidamente:
pareceu pequenino inicialmente,
mas, à medida que foi se aproximando,
a cada segundo sua forma foi se tornando
maior e mais imponente.
Philip Pullman
Jamais pensou que uma estrada pudesse ser tão longa. Millena não conseguia
pensar em uma maneira eficaz de fugir daquilo. A morte já não era vista como uma
coisa ruim. Não tinha mais opções. Os olhos vermelhos rapidamente aproximavam-se
do vidro traseiro do carro.
A escuridão silenciosa da noite dava-lhe calafrios. Não haveria uma cidade à
frente? Millena olhou de relance para o retrovisor e fitou aqueles olhos que já a
perseguiam há uma hora. Por que não simplesmente desistir? Não haveria saída, estava
sendo caçada. Sem nem se importar com os próprios pensamentos, pisou no acelerador.
“Esse caçador terá que trabalhar duro para conseguir sua presa”.
Aproximou-se de um bosque, a estrada pavimentada havia acabado. Árvores
medonhas por todos os lados; seus galhos entrelaçados lhes davam um aspecto sombrio.
Não via mais aqueles olhos. “Acho que consegui me livrar”.
TEC
O rádio do carro ligou-se sozinho. A música mais se parecia com um presságio
de morte.
BUM
Alguma coisa chocou-se contra o teto do automóvel. “I know I wanna run away,
run away...” A letra da música era onipresente dentro do carro; ela enunciava
exatamente o que ocorria na mente de Millena. Ela precisava correr, e o mais rápido
possível. O que quer que possuísse aqueles vermelhos olhos, estava agora em cima do
veículo.
Olhares na Noite
15
Abriu a porta desenfreadamente e saltou do carro. Com o movimento brusco,
acabou tropeçando. Levantou-se e viu que o nariz sangrava, e muito. Levou a mão ao
rosto. Não poderia conter o sangramento, o tempo não lhe permitiria.
Olhou para trás, mas não havia nada sobre o carro. Ouviu um barulho entre as
árvores. Sabia que deveria correr, mas não conseguia. Com passos tortos entrou na
mata. As pernas já não obedeciam aos comandos da mente.
Enquanto cambaleava pela floresta, Millena ouvia o balançar de folhas e galhos
ao seu redor. Aquilo que a caçava com certeza não era humano, o jeito de mover-se da
criatura era extremamente ligeiro.
Millena não podia mais aguentar o próprio peso. Sem prestar atenção ao
caminho, caiu em um buraco. O estalo na perna mostrou que ela havia se quebrado. A
dor era imensa, não poderia mais fugir. E a criatura apareceu entre as árvores. Os olhos
famintos pertenciam a um ser que nem era humano, nem animal. Foi naqueles dentes
que Millena viu o seu fim.
Tendo sua pele branca e escamosa banhada pela Lua, a criatura quadrúpede deu
um magnífico salto. A última coisa que Millena viu, foi aquela sombra projetada em sua
frente. O monstro caiu então sobre a mulher, e deu-lhe uma violenta mordida. Quase
toda a cabeça foi arrancada, acabando com o breve lapso que foi aquela vida.
Olhares na Noite
16
Condenados à morte DIEGO ALVES
Era uma noite clara de lua cheia e Alber estava sentado em uma poltrona roxa de
encosto grande e acolchoado. As luzes da casa estavam todas apagadas, exceto pelo
pequeno abajur no criado mudo, ao lado da poltrona.
Seu semblante era triste, mas não havia lágrimas em seus olhos.
Suas mãos estavam cobertas por sangue, igual a suas roupas. Ele olhava
fixamente para o chão. No chão uma faca manchada de vermelho, e ao lado da faca um
cadáver de mulher.
- O que fez Alber? – disse uma voz em sua cabeça.
- Não tive a intenção, ela era tão bonita...
Alber levantou-se e ficou de frente para o corpo e o empurrou com o pé:
- Ela não se mexe, por que ela não se mexe?
- Por sua causa Alber, por sua causa... – disse-lhe a voz da sua cabeça.
Ele então se ajoelhou ao lado do corpo, pegou a faca e a olhou, então fez um
corte em um de seus braços e começou a gritar:
- Olha Madaleine, olha, também sangro, e meu sangue é igual ao seu!
Foi quando lhe disse a voz em sua cabeça:
- Madaleine, não é ela que está ai...
- Claro que é ela, olha os cabelos loiros, olha o vestido de noiva do nosso
casamento de hoje!
O corpo era de uma mulher de cabelos morenos, estava vestida de calça jeans e
camiseta branca. E no crachá ensanguentado que estava em seu peito estava escrito:
Helena Maria Silva - Agente de Pesquisas. CENTRO DE ESTATÍSTICAS E
PESQUISA.
- Agora Madaleine e eu ficaremos juntos. Disseram que ela tinha me
abandonado, mas ela voltou para mim; voltou para mim.
Então a casa em que estava foi cercada pela polícia. Até cinco quarteirões à
distância podia-se ouvir o som das sirenes dos seis carros que cercavam a casa.
- Ouça o barulho dos sinos da igreja, o barulho! Vieram para o nosso casamento
Madaleine, vieram todos!
Olhares na Noite
17
- Não Alber, não são seus convidados, é hora de você pagar pelo que fez. –
novamente lhe disse a voz em sua cabeça.
A polícia invadiu a casa, e os dois primeiros policiais que entraram. Ficaram
chocados com o que viram: aproximadamente cinquenta corpos deixados em fileiras de
dez, espalhados pelo chão. A maioria em estado avançado de decomposição e, na frente
deles, Alber com o cadáver de Helena nos braços.
Na hora em que era levado pela viatura, ele gritava:
- Devolvam-me Madaleine, devolvam-me!
Na delegacia os delegados conversavam:
- Veja, eram todos aqueles que haviam sumido nos últimos meses. Como alguém
pode fazer algo assim? Amontoar corpos na sala de casa.
- Aqui a ficha dele – disse o outro delegado.
- Deixe-me ver. Alber Mello Nogueira, cirurgião cardíaco conceituado, pediu
demissão após ser abandonado por sua noiva no dia do seu casamento, isso há um ano.
Foi encontrado um mês depois numa ponte, tentando se matar. Começou um tratamento
psiquiátrico, mas depois de dois meses foi considerado curado.
Na cela em frente aos delegados estava Alber, que não parava de dizer:
- Estão todos aqui, estão todos aqui. Me ajudem. Querem me matar, querem me
matar...
Os delegados viam aquilo e comentavam: “coitado”, mas não viam o que Alber
podia ver.
Na cela, junto a Alber, ele via todas as que havia matado. Diziam que ele ia se
arrepender eternamente do que fez.
O tribunal o considerou mentalmente incapacitado. Prisão perpétua no
manicômio municipal.
Tudo isso aconteceu há um ano, e até hoje Alber fica pedindo ajuda em sua cela
acolchoada. Ele fica numa ala isolada dos outros, pois seus gritos de terror são tão
agonizantes, que os outros internos piram ainda mais ao ouvi-los.
***
Olhares na Noite
18
- Por que me contou a história dele Danilo? Você sabe que o turno da noite é
meu.
- Calma novato, ele é só mais um louco dos muitos que temos aqui. Agora vai lá,
e cuidado com os fantasmas!
Esses eram Danilo e Israel, funcionários do manicômio municipal “João Teixeira
Nascimento” onde há um ano estava internado Alber, ex-cirurgião, acusado de ter
cometido cinquenta e um assassinatos em um momento de loucura.
Israel andava por aquele corredor silencioso. Era o turno da noite. Estava lá para
pagar sua faculdade de biologia; queria explorar o mundo e descobrir novas espécies de
plantas e animais.
Que cara mais perturbador esse Alber, vou levar a comida dele e sair logo da
cela, odeio esse lugar – pensava Israel empurrando o carrinho com o jantar dos
internos.
Chegando em frente à cela de Alber, olhou pelo acrílico da porta, e lá estava ele,
no canto gritando:
- Vão me matar, vão me matar!
- Cala a boca seu maluco – falou Israel virando-se para pegar o prato.
E quando retornou o olhar ao acrílico, levou um susto, pois encostado lá estava
Alber olhando para ele.
- Que susto! Parou de gritar foi?
- Vão te matar, vão te matar... – disse Alber para Israel soltando uma risada.
O quê? - foi o que pensou Israel antes de virar e se deparar com um cadáver em
decomposição à sua frente.
- A Hora da Morte começa agora! – disse o cadáver.
E o grito de Israel se dispersou na noite, juntamente com os gritos de todo o
manicômio.
Olhares na Noite
19
Menino das trevas MARCELO DOS SANTOS
Fazia frio naquela tarde, o crepúsculo se aproximava aos poucos, e aquele tempo
acinzentado não tinha nada para dizer a não ser que a noite seria mais uma daquelas que
o inverno trazia consigo. As poucas folhagens que alimentavam as copas das árvores
dançavam uma canção gótica que arrastava momentos sombrios em suas coreografias.
Lá fora não havia quase ninguém, nem sequer os cachorros, que volta e meia coavam
simplesmente por verem algum esquilo.
A cidade mais próxima ficava a quase dez quilômetros e àquela hora, apenas o
temor de uma noite era quem fazia estremecer os arredores daqueles campos. À frente
da casa um balanço solitário jazia em meio ao som do vento, apenas deslumbrando
aquele clima gélido do interior, esperando que alguma alma viesse completá-lo.
As poucas árvores enfeitavam os campos e lá no horizonte se via o nevoeiro se
aproximando mais uma vez. Agora o frio ia aumentando e tudo que existia do chão ao
céu, jazia pintado de preto e branco, como se fossem cinzas. Aquele clima e toda aquela
paisagem transmitiam tristeza e dor, medo, e até mesmo saudade. Saudade de alguém
que nem mesmo Eduard se atreveu a desvendar de quem era.
Ele morava sozinho e assim que saiu da varanda, fechou a janela da frente e
mergulhou nas entranhas de sua casa. Foi até a cozinha e bebericou algum pouco de
café que ainda restara na garrafa térmica. Estava na pia, de frente para a janela que jazia
fechada, mas com as cortinas abertas. Olhou para o lado, e quando voltou a olhar pra
fora, lá pra traz onde o terreno era circundado com cercas brancas de madeira, avistou
uma criança de cócoras, de costas para a casa. Deixou a xícara na pia e atreveu-se a ir
até lá. A curiosidade e interrogação lhe perturbavam e por um segundo pensou que
talvez estivesse louco. Mas logo dissipou tal pensamento de seu crânio.
Abriu a porta e saiu na varanda. Parou e observou aquela criança, que agora lhe
pareceu ser um menino. Ele tremia levemente de frio e enquanto a noite ainda não caia,
apenas uma lâmpada pendia do teto da varanda, abençoando-o e dando-lhe total
procedência quanto ao se feito. Começou a caminhar.
— O que você faz ai menino?
Eduard não obteve resposta, mas continuou andando.
Olhares na Noite
20
Seus passos esmagavam as folhas que o outono deixara descansando ali e a cada
passada, seu coração se enchia apreensão.
— Hei menino, perguntei o que você faz ai?
Ainda sem resposta ele estancou a poucos centímetros do garoto. Ficou em pé as
suas costas, apenas observando o seu tremelicar. Olhou para traz e notou que a porta
batia com vento. Voltou a fitar as costas do menino.
— Qual o seu nome? Diz pra mim quem é você e o que faz ai... a gente pode
entrar e...
— Não quero entrar! — falou o menino em seco.
— Mas talvez a gente possa...
Interrompeu o garoto com uma voz nervosa.
— Não vou sair daqui já disse!
Por um minuto Eduard pensou que aquele menino estivesse delirando, ou que
talvez tivesse usando alguma coisa ilícita.
— Quem é você? Vamos, deixe-me lhe ajudar.
Eduard esticou a mão, a fim de tocar em seu ombro e poder virá-lo, mas o
menino escapuliu de seus dedos com um safanão. Ele não sabia o que fazer e nem de
que forma procederia.
— Quantos anos você tem?
— Sou mais velho do que você imagina.
— Como assim? — Eduard sorriu.
— Eu não tenho idade e nunca terei — disso o menino.
Uma fisgada se fez no coração daquele homem. Por um instante Eduard sentiu-
se amedrontado e esperou para ver o que aconteceria, mas nada de mais se fez. Alguns
instantes haviam se passado, até que Eduard achou por bem checar quem realmente era
aquele menino. Hesitou ao esticar novamente a mão, mas de novo o fez segundos
depois.
— Tire a mão de mim seu idiota — disse ele em fúria.
— Mas eu quero apenas...
— Cale a boca! — repeliu.
Quem sabe o menino estivesse brincando, quem sabe estivesse possuído. Mas ao
tocar novamente em seu ombro, Eduard percebeu que aquilo não era uma brincadeira.
Logo que tirou a mão do ombro do menino pela terceira vez, Eduard sentiu seu
coração arder em fisgadas nervosas ao ver que aquele menino não era uma simples
Olhares na Noite
21
figura humana, mas talvez uma criação de outras esferas, de outro mundo que nem ele
mesmo conhecia. O pobre menino não tinha olhos, e as aberturas que existiam em seus
lugares jaziam mergulhadas em escuridão. Sua boca estava banhada de sangue e
escorria pelo seu queixo e pescoço como se recém tivesse acabado de degustar alguma
coisa muito interessante. Os dentes eram afiados. Todos. Como se fossem navalhas. Ele
não tinhas orelhas e as sobrancelhas eram arqueadas na parte externa para cima, como
se formassem os famosos chifres de satanás. Aparentava ter nove anos de idade e tinha
uma cara demoníaca.
— Quem é você? O que quer aqui, afinal?
Ele foi indo pra traz, tropicando nas folhas e nos próprios pés. A porta ainda
estava longe e Eduard sequer teve o pensamento de correr. O menino vinha caminhando
em sua direção. Usava preto e além da boca, queixo e pescoço, as mãos também
alimentavam sangue em todos os dedos. Ele rugia com fúria e estava decidido a querer
aquele homem.
— Eu quero você... — disse erguendo a voz e soltando um grande ruído.
— Saia daqui! Saia de perto de mim seu demônio... Saia daqui!
Mas não adiantava ele dizer isso e nem implorar por suplica.
O menino foi chegando cada vez mais perto de Eduard e antes que ele pudesse
correr ou pensar em fazer alguma coisa, sentiu uma mão agarrar seu pescoço. O menino,
com uma força talvez tirada das trevas, levantou Eduard, deixando-o no ar e em seguida
jogou-o no chão. Pisou em cima de sua garganta e mostrou as mãos a ele, fazendo surgir
garras afiadas dos seus dedos. Feito isso, ele começou a rasgar a face do pobre homem.
— Nãooooo! Pára! — gritava ele, expelindo sangue por cada novo buraco feito
em seu corpo.
Depois disso, e ainda causando dor e medo àquele homem, o menino, com a
própria mão, extraiu o coração de Eduard, com ele ainda vivo. Jogou a mão sobre o seu
corpo, e com a própria força, arrancou-o, comendo um pedaço logo em seguida. A face
do terror estava completa. Mas ainda tinha mais.
O menino, talvez insatisfeito com o que havia promovido, agachou-se
novamente e acocorou-se junto a cabeça de Eduard. Primeiro ele arrancou as orelhas e
depois, com dois dedos enfiados nas narinas, arrancou-as de um só golpe. Mas ele
queria mais, ele queria sangue. Então foi ai que ele começou a comer a cabeça de
Eduard. Primeiro abriu seu crânio com as mãos e depois começou a degustar dos miolos
do rapaz. Sentiu-se finalmente satisfeito, e ainda sorriu para si mesmo. Comia cada
Olhares na Noite
22
pedaço daquela cabeça com entusiasmo e fome. Era uma cena horrível de se ver, uma
cena macabra.
Logo a noite chegou e junto com ela veio o frio. Eduard já não mais existia e
além de sua cabeça, alguns outros órgãos, como rins, estômago e as tripas haviam sido
deglutidos pelo menino. No meio do quintal estava deitado o que sobrara de Eduard, ou
seja, quase nada.
Assim que comeu, o menino limpou-se e saiu. Pulou a cerca que circundava o
pátio daquela casa e aos poucos foi se afastando da propriedade onde havia comido o
seu jantar. Dentro da floresta, o menino ainda tinha que pensar no seu café da manha e
no almoço do outro dia.
Olhares na Noite
23
Espelho, espelho meu... GEORGETTE SILEN
- Tente melhorar a maquiagem. – dizia o diretor de cena.
- Não dá! Se pusermos mais base ela vai parecer uma boneca de cera, sem
expressão! – o maquiador retrucava.
- E quanto à luz? Não pode dar um jeito?
- Ela está velha! – o iluminador dizia – Já era! Não vai colar! O tempo dela
acabou, precisamos de alguém mais jovem para o papel.
As frases passaram pelos ouvidos de Lúcia Rangel, mas em nada mudaram a
expressão dura no espelho. Crua e nua, sem meios termos.
- Vamos deixar para amanhã. – o diretor encerrava a discussão do outro lado da
fina parede – Falarei com os patrocinadores...
A verdade revelada pelo reflexo coincidia com todas as vozes. Velha! Obsoleta!
Uma diva decadente em meio às concorrentes. Tolas e fúteis, mas jovens e lindas!
Apagou o cigarro pela metade e deixou o camarim, sem apagar as luzes. No carro abriu
o porta-luvas. O cartão saltou-lhe aos olhos como uma chama ardente.
- Lúcia... Não posso fazer mais nada! – o médico falava em sua memória – Você
já fez intervenções demais, seu rosto não é o mesmo. Aceite isso!
Como aceitar? Ela não podia. Mesmo que todos os cirurgiões plásticos tivessem
recusado atendê-la, era impossível admitir isso. Seu rosto era sua vida! Um ícone para
milhões! Ela sabia o poder da força de sua imagem, o apelo que exercia. Tinha de haver
uma forma de deter o tempo! Parar o relógio. Ou girá-lo a seu favor.
O cartão brilhava contra as luzes do painel, entre os dedos de sua mão.
- Se deseja mesmo tentar qualquer coisa, – e furtivamente a mão da lembrança
estendeu o cartão – procure-a. Mas eu nunca lhe dei isso. – o médico afirmava – Nunca
tivemos essa conversa.
O portão da casa simples, fora da cidade, lembrava-lhe uma cela. E o interior
reforçava a sensação de prisão. Centenas de frascos coloridos a observavam com olhos
cegos. Enquanto um par de íris negras sustentavam as suas, do outro lado da mesa.
Olhares na Noite
24
- Apenas um gole, de cada vez. – a mulher baixa e morena dizia – Nunca mais
do que isso. Sempre a cada sete dias. – estendeu o vidro dourado para Lúcia e esta
passou-lhe o cheque pomposo.
No carro ela bebeu o líquido amargo. O fogo queimou a partir do peito. Entre
terra e céu, Lúcia ardeu no inferno pela eternidade de um instante. Mas o rosto que a
fitou no espelho retrovisor recompensou todos os sacrifícios.
O rosto que agora recebia elogios e flashes na mesma proporção: intensos!
- Lúcia Rangel exibe toda sua fabulosa beleza e talento essa noite, em nosso
programa...
- Capa do mês da revista mais importante no mundo artístico, Lúcia Rangel...
- A diva está de volta! Uma estrela que brilha eterna...
- Lúcia Rangel, renovada... Lúcia Rangel, bela como nunca...
- Lúcia Rangel...
- Lúcia Rangel...
O cativeiro transforma homens em animais. A prisão prolongada deteriora a
mente, corrói o espírito. Enfraquece as convicções e escrúpulos. E o algoz nunca se
apercebe disso antes de ser tarde demais. Não vê os prenúncios do motim!
- Você está no auge. – a mulher baixa e morena falava em meio aos frascos
cegos – Isso tem seu preço. E o meu é esse! – Lúcia viu as cifras subirem na proporção
em que a beleza retornava a seu corpo. Vertiginosa!
E entendeu-se vítima indefesa de um eterno verdugo. Voraz e insaciável. Apenas
uma dose a cada sete dias! A maneira perfeita de prendê-la, sufocá-la, arrancar tudo
dela. Cada vez mais alto o preço a pagar! E Lúcia começava a duvidar da “prescrição”
recomendada. Queria mais. Beleza e liberdade!
A mão de Lúcia fechou-se no cabo madrepérola da Beretta 92FS, fabricada por
encomenda. E os frascos dourados desapareceram das prateleiras na mesma velocidade
em que o sangue da mulher vertia ao chão, os pingos grossos escorrendo pela parede
como garras. Lúcia abandonou a prisão, para nunca mais voltar!
O programa ao vivo entraria no ar em quinze minutos. Milhões de
telespectadores! Lúcia ainda sentia o calor intenso do fogo, suava e arfava um pouco.
Mas sabia que logo passaria. Talvez, ela pensava, a dose maior tivesse efeitos diferentes.
Olhares na Noite
25
Essa foi a primeira vez, logo estaria acostumada. E quem sabe nem precisasse mais?
Continuaria bela e linda por mais tempo. O rosto rescendendo vida e juventude.
As luzes do estúdio a faziam suar, enquanto o maquiador borrifava o pó
translúcido. O produtor acenava histérico.
- No três... Dois... Um... No ar!
- Boa noite – o sorriso plastificado do apresentador fitava a câmera um – Ao
vivo esta noite, para satisfação de nossos telespectadores, estamos com a presença da
diva Lúcia Rangel, que vai nos falar sobre seu novo contrato multimilionário, e do filme
que tem arrastado legiões de fãs as salas de cinema... Uma salva de palmas para Lúcia
Rangel! – a diva entrou, toda sorrisos encantados, e sentou-se – Boa noite Lúcia.
Ela tentou falar, mas a voz esqueceu o som. Queria mover a cabeça para a
câmera, mas o corpo não obedecia aos comandos do cérebro. A mão que forçava o
movimento tremeu, quando a levou ao rosto, e os olhos viram cada uma das fissuras,
manchas e rugas que se amontoavam no lugar da pele amanteigada. Um close rápido da
câmera quatro revelou aos seus olhos a própria imagem! Os cabelos que caíam em tufos
como bolas de pelos felinos, a pele que escorria como gel de um pote, para depois se
encolher como folhas de papel absorventes umedecidas, os sulcos que criavam curvas
côncavas no rosto. Linhas que se sucediam como marcas arranhadas nas paredes dos
músculos. Um rosto que envelhecia cem anos em poucos segundos!
- Meu Deus! – o apresentador levantou-se enojado.
E Lúcia também se levantou, mas as pernas velhas a traíram. A gravidade a
arrastou para o tapete do estúdio e ela sentiu o próprio esmagar de ossos dentro de um
saco de pele flácida. Um fio de saliva escorreu dos lábios partidos e a luz dos spots a
cegaram por completo.
Vozes se elevaram, ela percebeu. Mas apenas uma martelava em sua mente,
antes do apagão total.
“- Apenas um gole de cada vez... Nunca mais do que isso... E só a cada sete
dias...”
Olhares na Noite
26
Caso arquivado ISABELLA OLIVEIRA
Farias para batalhão: Senhor, achamos um corpo: uma mulher com sinais de
dilaceramento pelo corpo e rosto, membros quebrados e pescoço rasgado . Ela parece
ter sido atacada por um animal.
Câmbio e desligo.
Maldito celular.
- Alô? Tenente, acho que agora eu posso te ouvir, encontraram o corpo? Ok,
estou a caminho.
Instantes depois eu descobriria que minha gêmea foi a 8° mulher a ser atacada e
morta, e eu tinha um ponto a mais do que ser a irmã da vitima. Cabia a mim investigar o
caso do maníaco que há dois meses resolveu assolar a cidade.
Das sete vítimas anteriores, não se tinha pistas de quem eram as mulheres, o que
faziam, não tinham famílias e ninguém reclamou por elas. Todas foram encontradas na
mesma situação de Helena: desfiguradas, dilaceradas, sem indício algum de violência
sexual, e com seus possíveis nomes tatuados sobre a pele.
Annie, Bianca, Camile, Diana, Ellen, Fabi, Gabriela e agora Helena, ilustravam
lápides de um caso que me consumia por inteira. O maníaco do abecedário – como os
meninos do departamento passaram a chamá-lo – seria descoberto, nem que eu tivesse
que dar minha vida por isso.
(***)
No velório havia poucas pessoas. Helena conseguia ser mais tímida do que eu.
Quase não tinha amigos e sua família se resumia a mim e aos doentes que ela cuidava.
Alguém chegou. A partir desse momento perdi todo meu foco; não podia, não
deveria, mas a imagem daquele homem me perturbava. Seus olhos principalmente,
claros, de uma tonalidade cinza, que correspondiam perfeitamente com o cabelo
extremamente grosso e preto, e com a pele lisa e branca. Sua imagem brigava por
espaço com os gritos da noite na sala fúnebre.
Olhares na Noite
27
- Oi
Como ele chegou tão rápido a mim? Eu deveria estar realmente afundada nos
meus pensamentos.
-Lamento muito por Helena.
-Eu também. Mas nós vamos encontrar o animal que fez isso.
-Tenho certeza que sim. Sua irmã nunca me disse que tinha uma gêmea. Prazer,
Lúcio.
E seus dedos brancos e gelados tocaram minha mão.
-Iara.
-Iara? Lindo nome.
Eu sorri sem graça, e uma ponta de lucidez se anunciava na minha mente.
Qualquer informação poderia ser útil, precisava questioná-lo, precisava questionar
qualquer um. Voltava, agora clara em minha cabeça, a ideia que realmente importava: o
caso.
-Você falou com minha irmã nas últimas semanas Lúcio? Estamos recordando
os passos de Helena, tentando achar qualquer coisa.
-Infelizmente não posso ajudá-la. Já faz algum tempo que não a via. Meses
talvez.
Horas depois fui terminar em casa o maldito dia. O relógio marcava 02h00min, e
eu fui pra minha cama.
Deitei. Revirei. Levantei.
Não conseguiria dormir hoje, fui à cozinha, peguei um copo de água.
Retornando olhei pela janela, a caixa do correio indicava que algo havia chegado, o que
era de se esperar, visto que há muito não a abria.
Cartas, contas e um pacote; não tinha remetente, nem nome do destinatário nele.
Abri, era um livro: Drácula de Bram Stoker. Com certeza se enganaram de casa, mas
não me importava, eu havia encontrado companhia pra madrugada.
Nada melhor que um vampiro malvado, com os dentes a mostra pra tirar o tédio.
Eu sorri.
(***)
Amanheceu e as investigações deveriam prosseguir. O fato de a vítima ser minha
irmã ajudou menos que todos imaginavam. Deveria haver mais de cinco semanas que
Olhares na Noite
28
não via Helena, apesar de sermos as últimas sobreviventes da nossa família, e nos
amarmos muito, nossas personalidades nos afastavam.
Seu celular chegara até mim. Registros de chamadas, caixa de entrada,
mensagens enviadas... E lá estava meu número. Meu celular resolveu filtrar por sua
conta mensagens e ligações, então não recebi nada de Helena. Uma semana antes de
desaparecer ela havia mandado a seguinte mensagem:
“Ia eu to com saudades de vc! Tenho uma nova pra te contar... Tava voltando
do plantão e vi um cara, ele era lindooo! Sabe aqueles caras antigos, de páginas de
poemas da renascença? Caramba, ficamos conversando a noite toda. Quando vc
receber a mensagem, me liga pra eu te contar o resto... :) Bjo Lena”.
Não podia me conter, lágrimas caiam na minha face. Já havia sido demais por
um dia.
Hora de ir.
Já estava no portão de casa e algum cachorro latiu, quando me virei, ele estava
encostado em uma árvore, os olhos cinzas gelados. Congelei, ele sorriu. Lúcio.
De súbito um arrepio subiu-me à espinha, aquele sorriso continha algo que me
fez tremer. Não conseguia me livrar do poço cinza que se aproximava de mim.
Renascença... Ele era o cara da mensagem, mas Lucio havia me dito que não via
Helena há meses.
- Oi
- Por que você mentiu?
Ele sorriu e o medo foi mais forte em mim. De novo o arrepio me fazia congelar
a espinha. Eu sabia que deveria correr, mas ainda estava presa no poço cinza.
- Você conheceu Helena uma semana antes dela sumir.
- Policial, isso é um interrogatório?
Não podia responder. Não podia me mover. O rosto perfeito parecia
incrivelmente sádico, debochado. Reunindo forças não sei de onde , gritei , mandei que
ele saísse da minha frente. Ele foi embora e a hipnose acabou. Portas trancadas, hora de
pensar. Hipnose? Com quem eu estava lidando?
Corri pra meu quarto, o livro havia sumido. Lembrei-me de um acampamento
onde eu e Helena contávamos histórias de terror uma pra outra. A preferida da Lena era
a lenda dos vampiros.
“Seres incrivelmente belos, brancos, não saem à luz do sol, com poderes de
persuasão, imortais, sem sentimentos...”
Olhares na Noite
29
As nove vítimas encontravam-se com o pescoço rasgado... Não podia ser
possível!
O relógio estava marcando 02h00min eu precisava correr, precisava de ajuda.
- IARA!
Lá estava Lúcio sobre minha cama, ele sorria, mas seu sorriso não era humano.
- Não!
Lúcio correu em minha direção e quando me dei conta, ele estava em cima de
mim, os dentes à mostra. Eu havia resolvido o caso, e eu iria morrer.
- Ia... Nada melhor que um vampiro malvado, com os dentes a mostra pra tirar o
tédio! Qual a letra que vem depois do H?
-NÃAAAAAAO.
Olhares na Noite
30
A casa do final da rua ALEXANDRE DA COSTA
Um tictictic suave, incansável, me desperta três horas antes do sol retomar sua
rotina. A escuridão seria total, não fosse a única lâmpada do poste da rua, que ilumina
as paredes do quarto. Quando acordo assim, num raio, rápido, sem aviso de preguiça,
perco o ar, permaneço afogado por segundos eternos, demoro a perceber a realidade
quando sou arrancado assim do outro mundo. Ouço a repetitiva sinfonia. Me sento no
canto da cama. O tictictic parece mais alto. Algo está errado, sei disso. Fôlego de volta,
coração acelerado. A última casa da rua. A última a ser visitada.
Tictictic aumenta, se movimenta, anda, não está mais acima de mim, separado
por um telhado. Agora, está ali na cozinha, passa correndo pela sala, volta ao teto de
meu quarto. Ele brinca, eles brincam. Aterrorizam os mais fracos. Não sou forte.
Parecem saber que me acordaram. Intuem que estou levantando da cama e que me
encaminho até a sala. Ali, não há luz alguma de poste algum. Só escuridão. Afasto a
cortina que dá ao corredor. Escuridão. E o tictictic se excita, toma nova forma, parece
uma risada, uma gargalhada. Algo acontecerá, com certeza. Olho pela janela, não há
iluminação. Tudo escuro, como aqui dentro de mim, como sempre foi. Mesmo assim,
suas sombras caminham por esse breu. Céu sem estrelas, sem lua, sem nada, mas as
sombras vagueiam. São imensas. São imensos. Tictictic.
Meu coração volta ao ritmo. Não há de fato o que fazer. Telefone sem linha. Luz
cortada, sem internet. Não há polícia, ninguém para ajudar. Gritar socorro para quem?
Por isso, o medo de antes se esvai. O que ia acontecer de qualquer jeito, aconteceria em
segundos, se desse sorte, minutos, é isso. Fugir como?
Cedo ou tarde, eles viriam. Não seria diferente comigo. Estão acima de mim.
Mexem em algo, batem em algo, agora sim é uma risada. Duas. Três. Eles se divertem.
Não entendo o que dizem. Pulam para o chão. Três estão no corredor. Um passa pela
janela iluminada do quarto. Um ainda permanece no telhado. Ele faz força, arrebenta
uma telha, faz um buraco, aumenta o buraco. Eles cercam a casa. Forçam a porta da
cozinha. Riem. Riem, acho. Estou no canto do banheiro, no chão, sentado. Espero,
apenas espero. Eles estão por todo lugar. Encolho-me no canto do banheiro.
Olhares na Noite
31
Nada os deterá. Tictictic hahahahahaha tictictic hahahahaha. Um estrondo. A
porta da cozinha arrebentada.
Eles estão na casa.
O buraco do teto do quarto.
Eles estão na casa.
Eles entraram.
Estão na casa.
Sentem meu cheiro.
Passos acelerados rumo ao banheiro.
Satisfeitos.
Hora do jantar.
Olhares na Noite
32
Rega-se com sangue PAULO CILAS
Levou uma punhalada no coração e morreu.
(***)
Três dias antes...
A história que será narrada é sobre alguns fatos do fim da vida de Clarice. Mas
não espere um final feliz, eu já disse que ela morrerá no final.
(***)
Clarice era uma mulher à procura da felicidade. Era apaixonada por um homem,
e não era correspondida. Mas a vida amorosa dessa personagem não interessa, já que
esse não é um texto melancólico.
Era mais um daqueles dias comuns que a moça passaria sozinha em casa. Seu
único amigo era um corvo de estimação, que pegara de adoção por pena do velho
animal. Mas naquele dia, nem a ave queria ficar perto dela. Nem o vento aproximava-se
da casa, predizendo o que aconteceria umas noites depois.
Voltava da cozinha com seu costumeiro copo d’água, e o corvo que há muito
não voava, lançou-se contra seu rosto e tentou arrancar-lhe um olho. Puxou o bicho e
quebrou-lhe o pescoço.
(***)
Dois dias antes...
Decidiu viajar. A dor de ter que matar seu melhor amigo não havia passado.
Precisava ir para um lugar desconhecido. Aquela cidade com quinhentos e vinte e três
habitantes serviria de escape.
Todos se conheciam naquele lugar. Em poucos minutos, todos vieram conhecer
a forasteira. Eu queria parar a história por aqui e dizer que ela viveu feliz para sempre
Olhares na Noite
33
naquele lugar, mas infelizmente tenho o compromisso de contar a história real da vida
de Clarice.
(***)
Um dia antes...
Já tinha feito amizade com a dona da pensão onde estava hospedada. A mulher
dizia que ‘deus’ não estava muito contente com eles, porque o tempo estava ruim, o que
atrapalhava as plantações, a colheita, e diminuía o número de clientes.
Todos naquela cidade miúda estavam contentes em ter Clarice como visitante.
Ela parecia dar uma nova esperança àquelas pessoas. Mas o que ela não sabia era o
verdadeiro motivo daquela felicidade alheia.
(***)
Dia atual...
A dona da pensão estava atônita. Ela disse que teriam uma noite de lua cheia e,
por isso, teriam uma festa na cidade. Clarice também ficou muito empolgada com a
grande noite, uma mulher da cidade emprestou-lhe um vestido que caiu muito bem nela.
A noite chegou e todos foram para o centro da cidade. Havia lá, uma estátua
muito estranha, feita com galhos de árvore entrelaçados. Aquilo mais se parecia com
uma pessoa deformada.
Clarice dançava quando foi pega e amarrada a um tronco ao lado daquela estátua
horrível. O desespero tomou conta de seu corpo. A dona da pensão estava em sua frente,
ostentava um largo sorriso.
- Eu disse que ‘deus’ não estava muito contente conosco – começou aquela
senhora tão hospitaleira – mas eu não disse que o descontentamento foi causado por
falta de sacrifícios a ele. Mas agora que você chegou, nós enfim temos uma oferenda.
- Não, por favor!
A luz da lua refletiu naquela criatura misteriosa feita de galhos, e de repente ela
ganhou vida. Clarice não queria servir de sacrifício a um deus pagão, e com sorte,
conseguiu desatar o nó e fugir. Novamente eu queria interromper a história e dizer que
Clarice conseguiu fugir e que viveu feliz para sempre, mas devo dizer a verdade.
Olhares na Noite
34
A moça tentou correr para todos os lados, mas a cada canto havia um morador
da cidade com um pedaço de madeira em mãos. O Ceifador já esperava pela alma de
Clarice.
Correu por um canto que parecia mais vulnerável.
Levou uma punhalada no coração e morreu.
Foi o próprio deus pagão que lhe atingiu com um punhal de prata. A criatura
entrou na floresta arrastando sua oferenda.
A colheita seguinte foi a melhor que aquela cidade já teve.
Olhares na Noite
35
Sangue na tela LARIEL FROTA
- Estou achando seu pai calado ultimamente!
- Ele é assim mesmo querida, de tempos em tempos mergulha em uma nova tese
e se afasta de tudo. Não foi à toa que chegou ao posto de diretor de pesquisas da
universidade.
- Mas você não acha que esse ritmo de trabalho na idade dele é exagerado?
- Perigoso seria parar com as pesquisas. Isso sim seria o fim pra ele.
- Bom, o pai é seu, você deve saber do que está falando. Eu continuo achando
que algo não está bem.
- Você percebeu algum sintoma de dor, mal estar?
- Não meu bem, são uns olhares esquisitos, umas mudanças de fisionomia.
- Mudanças de fisionomias inexplicáveis?
- É querido. Outro dia percebi ele mexendo no painel de controle do micro-
ondas. Foi muito rápido e estranho, estava com um semblante esquisito, um sorriso
enigmático, parecia que estava brigando com alguém invisível.
- Vai ver fazia cálculos, ligando o micro pensando em outra coisa. Não se
esqueça que ele é considerado um gênio na área da informatização de ambientes.
- Tá bom, não vou ficar repetindo a história. O pai é seu, mais uma coisinha,
não tinha nada dentro do micro-ondas.
***
- Papai, tudo bem, posso interromper seus estudos?
- Não estou estudando filho, apenas tentando pensar, simplesmente pensar.
- Não entendi.
- É simples, ando cansado, vez ou outra tenho tido lapsos de memória, uns
brancos inexplicáveis, como se alguém sugasse pedaços do meu cérebro. É uma
sensação horrorosa, depois tudo volta ao normal.
- O senhor está precisando de duas coisas urgentes, um médico e uns dias de
férias.
Olhares na Noite
36
- Não sou nenhum demente garoto. Já fui ao médico, um amigo meu famoso na
área da geriatria. Fiz uma bateria de exames e testes neurológicos. Está tudo bem com
a minha saúde. Ele afirmou que estou melhor que a grande maioria das pessoas da
minha idade.
- Então só faltam os dias de férias.
- Isso também está resolvido, quando o Luiz Augusto entrar em férias, vamos
fazer um cruzeiro, eu prometi a ele de presente de fim de ano.
- Ah, interessante, quer dizer então que os dois já combinaram e eu não estou
nem sabendo.
- Você não disse que preciso de férias? Juntei o útil ao agradável. Passamos as
festas de fim de ano em alto mar. O Guto está animadíssimo, tenho certeza que voltarei
com a bateria recarregada.
***
- E daí, animada com a viagem? Já preparou tudo?
- Já, faltava só umas sungas novas pro Guto, resolvi ontem. Minha
preocupação ainda é seu pai, você viu o desenho que ele colocou no descanso de tela
do computador?
- Não, o que é?
- No lugar das fotos do Luiz Augusto, um desenho horroroso: uma tela com um
jato de sangue que parece escorrer pra fora, formando uma poça, com um punhal
enorme no meio.
- Deve ser brincadeira, ou então uma idéia secreta na qual ele vem trabalhando,
a imagem deve ser apenas uma metáfora.
***
- Vô, não to entendendo, por que não posso levar nenhum jogo eletrônico?
- A gente vai ter muito com o que se divertir. É bom você aprender a se livrar de
toda a geringonça virtual.
- Ué, não foi o senhor que liderou o projeto da casa informatizada, ganhou até
prêmio por isso.
- É verdade Guto, mas ando pensando no poder imenso dessas teclas malditas.
Olhares na Noite
37
***
- Querida, acho que tem razão. Vi o descanso de tela, é assustador. Pior, sem
querer bisbilhotar, li umas anotações que estavam sobre a mesa. Estranhei, pois ele
nunca fez anotações manuais.
- Só agora você resolveu acreditar em mim, o que vamos fazer?
- Já falei com o médico sobre a mudança de comportamento, ele disse que pode
ser stress, uns dias de descanso farão muito bem. Na volta vamos procurar um
psiquiatra.
- O que dizem as anotações?
- Meu pai nunca foi dado a manuscritos, foi sempre alvo de brincadeira ele
colocar tudo em arquivos no computador, até as listas de compras domésticas da
mamãe.
- Exatamente, tudo em planilhas bem elaboradas, por isso chama atenção, tanto
a forma como o conteúdo do que escreveu.
- Estou ficando curiosa, o que dizem os manuscritos?
- Olha, sem que percebesse tirei uma xerox pra mostrar pro médico, leia pra
ver que coisa enigmática:
“Cheguei às conclusões: o punhal custou caro, pois a pedra vermelha
incrustada é semipreciosa. Não consegui encontrar a toalha preta, tive que mandar
fazer, foi um sufoco manter esse segredo, as pessoas me olhavam de um modo estranho,
acho que há mais deles entre nós. Não posso falar a ninguém das minhas descobertas,
quando voltar da viagem, converso com meu filho.”
***
- Puxa vovô, que legal a viagem, nunca pensei que fosse me divertir tanto. Olha
vô, aquela ilha lá longe com o farol aceso. Nossa, deve ser da hora morar naquele
lugar.
- Sim meu querido, viver livre de toda a parafernália que inventamos pra
facilitar nossas vidas e que acabaram tornando-a insuportável.
- É, viver livre do trânsito, do medo de ladrão, da escola, dos trabalhos de
inglês, poder tomar banho de mar pelado... Que foi? Tá rindo de que vô?
Olhares na Noite
38
- Nada não querido, gosto do seu jeito de falar, é bom que pensa assim. Olha
Luiz Augusto, quantas estrelas, que céu maravilhoso.
- Parecem um milhão de olhinhos olhando pra gente. Vô, será que durante o
dia, as estrelas dormem?
- Acho que não e o que você acha?
- Sei lá, elas parecem as luzinhas dos aparelhos que ficam acesas mesmo
quando estão desligados. Quando era pequeno eu tinha um medão danado dessas
luzinhas, sabia?
- É mesmo querido, mas medo de que?
- Ah vô, eu tinha pesadelos que aquelas luzes verdes eram olhos dos aparelhos
espionando meu sono, olha que bobeira, tinha pavor dos “olhos da noite”.
***
- Veja meu bem, o papai precisava mesmo de férias. Há quanto tempo não o via
assim tão feliz.
- É verdade, não sei onde ele e nosso menino encontram tanto assunto, ficam
horas papeando. Preste atenção, dá pra ouvir daqui as gargalhadas do papai. Nossa,
fazia tanto tempo que não o via assim, que chego a ficar emocionado.
- Ainda bem amor. Você já decidiu se vai contar pra ele do acidente lá em casa?
- De jeito nenhum. Primeiro, já aconteceu, não há nada que ele possa fazer.
Depois, o seguro vai cobrir os prejuízos. Infelizmente dois bombeiros se feriram. Um
deles tentando retirar das chamas um companheiro que tentava justamente apagar o
incêndio no escritório do papai.
- Teve alguma notícia do estado dos dois?
- Parece que o que estava dentro do escritório sofreu ferimentos leves, enquanto
o outro sofreu queimaduras importantes no rosto, se escapar vai ficar cego e com
sequelas gravíssimas.
- Melhor não contar nada mesmo, e afinal, por sorte o computador do seu pai
escapou ileso do incêndio!
***
Olhares na Noite
39
- Que foi Luiz Augusto, você parece triste. Está enjoado, sentindo alguma
coisa?
- Não pai, eu tô bem, só estou um pouco chateado, pra dizer a verdade
assustado também...
- Por que filho? Ontem eu e seu pai ficamos observando você e o vovô no convés
do navio, numa conversa tão animada e feliz, que dava gosto ver, mesmo à distância.
- Tá mãe, eu percebi que vocês estavam lá olhando pra gente. Então, foi
justamente no final daquela conversa que aconteceu uma coisa muito ruim.
- Quer nos explicar, por favor.
- Você promete que não vai ficar bravo comigo papai, nem você mamãe?
- Nossa, o que você fez de tão grave? Pode falar, seremos compreensivos, foi
alguma mau criação com seu avô?
- Não sei. A gente tava num papo animado sobre ilhas com farol piscando e
estrelas no céu, quando de repente ele ficou sério, me olhou de um jeito estranho,
chegou até a me chacoalhar e gritou comigo, e não sei o motivo. Nunca o vi tão bravo,
não quero mais ficar sozinho com ele mãe.
- Calma meu bem, seu avô anda cansado por causa do trabalho, as pessoas
quando envelhecem vão tendo manias.
- É pai, mas eu pensei que o vovô estivesse livre dessas caduquices dos velhos
normais.
- Conte-nos em que parte da conversa ele ficou bravo.
- Deixa eu tentar lembrar. Ah, a gente falava das estrelas e das luzes verdinhas
dos aparelhos que ficam sempre acesas... Nessa hora você e o papai saíram, e eu me
lembrei do joguinho que tem luzes verdes que piscam, tirei ele do bolso para mostrar, o
vovô ficou furioso, arrancou da minha mão, gritou, me chacoalhou com força e jogou
meu brinquedo no mar.
***
- Coisa mais pavorosa. Nunca imaginei ver uma cena tão horrível, pensei que já
tivesse visto de tudo.
- É meu caro, nosso trabalho não tem nada bonito de se ver, agora esse caso,
além da violência é todo misterioso.
Olhares na Noite
40
- É, como um sujeito inteligentíssimo, admirado pelos companheiros de
trabalho, reconhecido internacionalmente, em viagem de férias com a família, faz uma
barbaridade dessas?
- Você já conversou com quem estavam por perto, garçons, copeiras, monitores,
alguém testemunhou algo diferente?
- Até agora todos estão perplexos. O velho era querido por todos pela
cordialidade e simpatia. Houve um fato estranho, ele ficou furioso quando um garçom
colocou sobre sua mesa uma comanda eletrônica para o controle das despesas do
lanche.
- Coisa mais maluca, isso seria motivo pra violência?
- Vai saber o que se passa na cabeça das pessoas. Não tem explicação. Olha que
pena ver esse menino nessa poça de sangue, parece que a mãe tentou defendê-lo, está
com as mãos e braços bastante machucados.
- É, o pai também tem ferimentos de defesa, e o garçom coitado, quase teve a
cabeça decapitada pelo punhal.
- Coisa maluca esse monte de gente morta em cima desse pano preto, o velho
com o pescoço cortado ainda com o punhal na mão, coisa mais apavorante.
***
Dentro de uma garrafa de vidro navegando sobre as ondas, um manuscrito
anônimo, parece brincar sobre a espuma branca das ondas. Será que serão um dia
encontradas? E se isso acontecer, alguém será capaz de entender seu significado?
1. Tentar corrigir erros o mais rápido possível, não falar sobre as perseguições
(registrar a partir de agora tudo manualmente).
2. Afastar todos da família do perigo. Atenção, eles estão próximos, observando
e controlando todos os passos. As crianças são mais vulneráveis à ação destruidora.
Começar limitando jogos eletrônicos, o uso de computadores portáteis, celulares, etc.
Substituir por outras formas de lazer e entretenimento.
3. Cuidado com aparelhos telefônicos de última geração. Estão dotados de um
sistema que capta energia neuronal, desviando-a para centros receptores controlados
por eles.
Olhares na Noite
41
4. Cuidado com pessoas dependentes da informatização, já estão a serviço deles,
desconfie das crianças inteligentes, habilidosas e com uma capacidade acima da média
no uso de computadores, provavelmente já fazem parte do grupo de captação.
5. Existem três formas de enfrentamento:
a) a primeira é sutil, desligando alguns aparelhos elétricos com tecla digital.
Se conseguir fazer isso, o ambiente ainda não está invadido. Eu não consegui desligar o
micro-ondas. Como é um modelo de última geração, está dotado de células retroativas
de potência máxima, portanto minha casa está monitorada, vou tirar minha família
daqui, não permitirei que façam nada de ruim com meu neto.
b) a segunda abordagem é drástica, deve ser utilizada caso a invasão seja
evidente. Dores de cabeça, enjôo, tonturas e insônia são sinais de alerta. Nesses casos,
se afastar imediatamente da fonte de captação de recursos neuronais. Quando isso
ocorre, já existem humanos a serviço dos captadores. É necessário destruir a fonte
principal, desligue os computadores num raio de cinquenta metros quadrados. Fique
atento, poderá ter dificuldades, a rede é poderosíssima, onde há uma única luz stand by,
eles estão presentes. Talvez precise de uma maneira drástica, estou pensando num
incêndio avassalador, durante uma viagem que faremos no fim do ano.
c) é a forma mais difícil de enfrentamento. São atos radicais, dependendo do
grau de invasão, não há outra forma. Essa foi a descoberta mais recente. Caso já tenha
acontecido a primeira conexão com os campos cerebrais, a única forma de livramento
dos demais será através do sangue. Estou encontrando dificuldades pra terminar as
análises a respeito. Como não posso usar o computador, minhas pesquisas estão
limitadas, sei que estou no caminho certo. Posso usar uma caneta, um bloco de
anotações, ou ir a um sebo e encontrar a literatura que deseje pesquisar.
Já providenciei a arma branca (um punhal com uma pedra vermelha incrustada)
e a toalha negra onde derramarei o sangue dos dominados, para livrar os demais da
captação, não gostaria de ter que dar o terceiro passo.
Olhares na Noite
42
Lágrimas de crocodilo LUIS FILIPE DE ALMEIDA
“Escrevo esta carta para desabafar, contar sobre algo que aconteceu há muito
tempo. Era um grande segredo, mas ultimamente tem sido impossível de guardar.
Escrevo aqui para que o peso em meu coração desapareça um pouco, para que eu possa
continuar vivendo.
Há um ano, no Halloween, eu e minha mulher íamos a uma festa dada por meu
amigo, que ia se mudar para outra cidade. Era nossa última chance de vê-lo, e também
de salvarmos nosso casamento.
Nós estávamos brigando muito naquela época. Quem tem uma pessoa junto de si
sabe que, depois de muito tempo, começam as brigas por coisas ínfimas e, talvez, nem
sabemos o porquê de estarmos brigando.
Naquele dia, o motivo era o carro, que havia enguiçado a alguns quilômetros da
dita festa de dia das bruxas:
- Que droga Marcos, você não serve nem para mandar consertar o carro? - falou
ela, toda irritada.
- Desculpe se eu fiquei muito ocupado trabalhando para conseguir pagar a
prestação da nossa casa. – eu disse nervoso e louco de vontade de fumar.
- Agora você está jogando na minha cara que eu perdi meu emprego? Você não
tem um pingo de compaixão?
- Quem começou foi você - falei eu, saindo do carro.
Fui até a frente do automóvel e abri o capô. Uma fumaça estonteante saiu de
dentro do carro, com certeza havia algo de muito errado com ele.
- Quer ajuda meu jovem? - perguntou um homem velho, vestido com um
impecável terno negro.
- Quer ajuda? – ele repetiu.
- Claro.
- Espere um pouco, acho que tenho um guincho em meu carro.
Ele, como que por mágica, desapareceu atrás da fumaça, enquanto minha mulher
saía do carro, furiosa:
- O que você está fazendo? Nós temos que chegar à festa! - falou ela, irritada.
Olhares na Noite
43
- Um senhor se ofereceu para ajudar e eu aceitei, afinal, não temos como chegar
lá com um carro todo quebrado!
- Quebrado por sua causa, que não presta nem para arrumar esta droga de carro!
- Com licença minha jovem? - era o homem do terno negro, mas desta vez
acompanhado de uma criança, vestida de anjo.
- Vocês por acaso também estão indo para a comemoração de despedida do
nosso excepcional amigo Roberto?
- Sim, e o que você tem a ver com isso? - minha mulher, Bia, estava toda
irritada, mas mal ela sabia que havia acabado de insultar a pessoa errada.
A face bondosa do homem se transformou em uma expressão assustadora e
demoníaca. Seus belos olhos azuis se transformaram em vermelhos faiscantes:
- Devia tratar melhor os mais velhos, jovem dama, mesmo que seus impulsos
nojentos digam para você fazer exatamente o contrário do que os outros dizem.
Naquela hora, lembro que ela ficou visivelmente assustada, tinha até começado a
tremer. Confesso que fiquei com pena, mas nossa situação estava ruim demais para eu
ficar ao lado dela:
- Não vai me ajudar Marcos? Não vai me defender daquele homem?
- Por que, se ele está certo? - falei friamente.
Nossa discussão foi interrompida pela fala da criança, que perguntava a seu pai:
- Papai, não vamos nos atrasar?
A expressão do velho senhor voltou a ser bondosa, como que por mágica.
- Claro, claro, eu havia me esquecido.
Ele se virou para Bia e falou bondosamente:
- Por favor, você poderia levar meu filho para comemoração enquanto eu e seu
marido levamos o carro para consertar? Pode ter certeza de que depois eu o deixo lá.
Virando o corpo, ela olhou para mim. Estava com o um olhar suplicante, como
se soubesse o que ia acontecer. Eu beijei o seu lindo rosto, como um último gesto de
carinho, e disse:
- Vá, que depois eu te encontro.
Meio contrariada, ela pegou o garoto pela mão e o levou até o carro do homem,
que lhe deu a chave. Era uma linda Mercedes preta, um carro de luxo.
- Vamos, minha casa é perto, eu tenho outro carro.
Depois de alguns minutos, ele trouxe outro carro, não tão bonito quanto o
primeiro, mas mesmo assim fenomenal.
Olhares na Noite
44
Ele pegou o reboque e prendeu a meu carro:
- Acho que não vai dar muito certo, meu carro é muito pesado.
- Não se preocupe com os detalhes.
Então entrou no carro e deu a partida. Como se fosse mágica, meu carro
começou a se mover, junto com o dele.
- Vamos, entre, você não pode chegar muito tarde à festa!
Eu entrei no carro e ele começou a dirigir, parecia que o motor de seu carro nem
estava fazendo força para mover o meu, que estava enguiçado.
Confesso que, no início, achei mesmo que ele estava levando meu carro para
uma borracharia ou um posto qualquer, mas comecei a desconfiar quando a cidade foi
se afastando e o campo começou a surgir.
De repente, a porta do meu lado se abriu, e o cinto se soltou. Com uma voz tão
poderosa, que mesmo sussurrando, fazia você não só sentir um frio na espinha, mas a
fazia congelar, ele começou a falar. Seus olhos ficaram vermelhos novamente, e eu
finalmente entendi que não deveria ter aceitado sua proposta.
- É aqui que você desce.
Eu fui arremessado por uma força invisível para fora do carro, direto para o
acostamento. Bati a cabeça, as costas, esfolei os braços e as pernas. Fiquei desacordado
por algumas horas.
Ao meu lado, fumaça saia do chão, e palavras haviam sido queimadas no
concreto: “Você me deve um favor”
Não me lembro de quanto tempo caminhei, minha mente estava vazia e meu
corpo exausto. Posso ter andado muitos quilômetros, ou apenas alguns metros; não
sabia dizer, pois até hoje não sei o quanto aquele ser mexeu com a minha cabeça.
Sei que quando cheguei à casa de meu amigo Roberto, policiais a cercavam e
algumas ambulâncias estavam paradas.
Havia sido um banho de sangue, e pelo visto só havia um sobrevivente, um
garoto loiro, de olhos azuis, com uma fantasia de anjo, suja de sangue. Ele chorava
copiosamente para os policiais, que se comoveram. Mas eu sabia a verdade: lágrimas de
crocodilo.
O tempo passou, eu me casei novamente, como uma mulher que amo, fui
promovido no emprego, me mudei de cidade, mas nunca me esqueci daquele dia.
Como eu disse, escrevo para desabafar, contar algo que aconteceu há muito
tempo, para que eu possa continuar, pois alguém precisa saber que tudo o que vou fazer
Olhares na Noite
45
a partir de agora, não é culpa inteiramente minha, pois, semana passada, recebi uma
carta, sem remetente e com apenas algumas linhas:
“Há muito tempo eu te ajudei, e agora você me deve um favor. Fique preparado,
pois eu vou cobrar”.
Olhares na Noite
46
Dilúculo ERIWELTON SOARES
Era fim de tarde na cidade de Rio dos Montes. Por mais que o calor do dia que
passara ainda esmagasse os corpos dos moradores, os fins de tardes sempre foram
recheados de melancolia, até mesmo para o jovem Yuri, que não gostava de se dar a
esse tipo de sensação.
Todos na cidade se davam ao luxo de assistir a tarde virar noite, e quando as
sombras se assentavam na cidade, as luzes iam surgindo lentamente no interior das
casas.
Yuri costumava acompanhar o ritual, olhava sempre o céu rubro enquanto
compartilhava seu ócio com o tempo. Mesmo aos plenos vinte e um anos, o garoto
sofria de uma imensa fadiga. Tal fadiga fez com que Yuri acabasse dormindo em sua
velha cadeira de praia sob o céu vermelho.
Ele acordou não muito tempo depois, mas após seu monótono descanso, o Sol já
havia fugido das vistas, a lua daquela noite mal iluminava os olhos, e as estrelas
pareciam tão cansadas quanto o próprio Yuri. O que despertou sua atenção foi o fato de
não haver sequer a luz dos postes e das casas. Tudo parecia escuro e fraco, exceto o
vento, este era forte e voraz, devorava o ar, e assoprava desesperado as copas das
árvores; assoviando com força, e carregando o frio contra o corpo do jovem.
Yuri voltou seus olhos recém-acordados para sua casa, mas não viu um único
bico de luz. Sua irmã Wanessa não pareceu se dar ao trabalho de acender velas. Ele
sentiu uma raiva imensa dela nesse momento, afinal, seus pais foram assassinados no
escuro poucos anos atrás.
O garoto se levantou da cadeira, e mesmo com o peso que o medo do escuro
causava nas suas costas, dirigiu-se à porta de casa, procurando por sua irmã, e por velas.
Procurou pelos primeiros cômodos pelos quais passou, e sem nenhum sucesso.
Sentou-se no chão do quarto onde se encontrava quase desfalecido, e encharcado em
suor. Sentiu uma brisa entrando pela janela, e um pouco de claridade, que pareceu matá-
lo ainda mais, destacando o escuro ao redor de uma fresta. Ele não via mais nada, e
enfrentava a marca mais perversa do escuro, o fato de não ter controle sobre nada.
Olhares na Noite
47
Desesperado na penumbra de sua casa, pode ver pela luz fraca na janela, um
forte mormaço, próximo de um ser indistinguível, que se aproximou da janela e quase
que se remodelando, transpassou por esta sem problemas. A figura imóvel em frente a
Yuri, que estava imobilizado de medo, chegava a ter a feição de um anjo.
Nesse momento, uma luz que chegava a cegar, acertou os olhos de Yuri, que ao
procurar sua fonte, reconheceu Wanessa com uma lanterna, assustada e indagando:
- Yuri! O que você faz aí?
O jovem não conseguia falar devido ao medo que sentia, não podia sequer
alertar sua irmã. Agonia e desespero se misturavam à sensação de suas unhas cortando
as próprias mãos. Seu maxilar apertando em dor, como se estivesse sendo deslocado de
modo abrupto.
De repente o ser avançou contra Wanessa de uma forma bestial. Ele perdera
totalmente sua forma ao atacá-la. Mas não era só ele que ficou irreconhecível, quanto
mais ele desferia socos, mordidas, e lhe arrancava tiras de pele, mais o corpo dela ficava
deformado, se assemelhando a um cadáver fresco, encharcando o chão e o ar com
sangue quente e novo.
Após dilacerar o corpo de Wanessa, a criatura se levantou e saiu andando para a
rua de modo frio, demonstrando um forte sadismo. Yuri levantou-se e foi correndo até o
corpo da irmã, que jazia morta, ainda embebida no calor que seu sangue lutava para
manter.
Num ato impensado, ou mesmo imprudente, o garoto se levantou e foi atrás do
monstro que fizera aquilo com sua irmã. O tal “anjo” mais se assemelhava ao demônio
na mente de Yuri.
O vento agourento que trazia o frio, agora parecia respirar morte ao redor de seu
pescoço, além de carregar vozes distantes e carregadas de agonia.
Andando implacável no escuro, ele avistou a criatura, mas dessa vez o ser
parecia mais bestial, com os olhos frios, e os dentes prontos para estraçalhar qualquer
forma de vida.
Olhando os olhos do demônio, pela primeira vez na vida Yuri sentiu medo de
morrer. Talvez merecesse ver sua vida, mas tudo o que viu foram frustrações. E o ser
que estava à sua frente parecia compartilhar a visão de suas memórias patéticas.
Entre todas as imagens, a mais forte foi a de Monique, uma antiga paixão não
correspondida do rapaz. Ao notar o sorriso jocoso do demônio, Yuri pode perceber suas
Olhares na Noite
48
intenções, e se colocou a correr até a casa da garota, numa tentativa desesperada de
salvá-la.
Yuri parou frente à casa da jovem, e não teve dúvidas quanto a entrar. Passou
pela porta e empunhou a primeira faca que viu. Procurou pela sala, cozinha, e a
encontrou perto da porta da varanda, sentada, lendo com a ajuda de uma vela pouco
gasta. Aproximou-se dela, e abaixou-se ao seu lado, já podendo ouvir os passos do
monstro, e sua sombra se projetando na porta. O coração do jovem batia alto e rápido.
Seus ossos congelaram, ele acreditava ser seu último momento.
A garota não teve reação nem fala, enquanto Yuri tinha medo do fim da
situação. O jovem observou sua expressão assustada, abraçou-lhe e aproveitou para dar-
lhe um beijo, aproveitando cada segundo do momento, que só foi quebrado pelo som
forte do riso daquele maldito ser. Quando abriu os olhos, Yuri pode ver o ser indo
embora da sala, segurando um punhal sangrado, enquanto Monique tinha sangue na
blusa e na boca, além de um corte um palmo abaixo do seio esquerdo. Ela continuou
sem reação, enquanto desfalecia lentamente.
Vendo a cena da garota morrendo, ele fugiu da casa, e correu por muito tempo,
perdido no escuro. Sentindo a presença do monstro cada vez mais perto e mais forte.
Tentou se livrar demônio, passando por boa parte da pequena cidade, até que avistou
uma casa com luz. Ela pertencia a um ex-policial, que fora afastado do cargo por
problemas mentais. Embora ninguém comentasse, ele havia matado um homem que
nunca havia feito nada de ruim na cidade.
Yuri precisava se esconder da criatura, e por isso encostou-se à porta da casa,
onde viu um machado. Mas ele sabia que seria inútil enfrentar a criatura sozinho.
Desesperado, com um único chute, arrebentou a porta e avistou uma arma apontada para
ele.
- Não! Você não me matou antes e não vai me matar agora seu maldito! - gritava
o policial.
- Você não pode me matar! Eu... Eu... Eu não matei ninguém!
Um tiro para o alto precedeu as seguintes palavras do ex-militar
- Pode usar qualquer um, demônio! Não vai me pegar, o próximo tiro será na sua
cabeça.
Frustrado, Yuri saiu da casa, cheio de ódio. Sabendo que teria que enfrentar
aquele ser, sacou o machado que havia avistado mais cedo. Nutriu-se do ódio de saber
que aquele demônio havia matado as pessoas a quem ele era mais apegado na cidade.
Olhares na Noite
49
Em tal momento, ele passou a crer que aquele ser também havia matado seus pais anos
atrás.
Em meio ao estranho silêncio que cercava a cidade, Yuri conseguiu ouvir três
tiros quebrando a calma, logo após, ouviu um barulho de vidro quebrando. Ao voltar
para a casa para ver o que havia ocorrido, encontrou uma imagem apavorante.
A mão do ex-militar estava solta no chão, sua arma mais longe ainda, ambas
banhadas em sangue fresco do pulso do homem, que por sua vez estava ajoelhado no
chão. Um machado sujo de sangue estava na mão de uma copia do próprio Yuri. O
demônio tinha sua forma, ou ele mesmo seria o demônio.
Com o choque da cena, Yuri soltou seu machado ainda limpo no chão, e viu que
o demônio repetiu o ato, ambos se encaravam novamente. Yuri não mantinha mais
pensamentos em sua mente, senão juras de morte, enquanto o demônio soltava suas
provocações.
Num movimento rápido, ambos tentaram empunhar suas armas, Yuri sacou a
arma do policial, e o demônio sacou novamente o machado. A arma mirou a cabeça do
demônio, enquanto esse bateu com toda a força o machado na própria perna, mantendo-
se em pé, porém, causando uma dor insuportável em Yuri, derrubando-o.
- Nós somos um, seu tolo, jamais vai me matar! - gritava o demônio.
Sem mais nenhuma reação, Yuri pegou a arma, e percebeu que tinha em mãos a
chave, e o maior fardo do mundo na consciência. Não tinha mais uma única razão para
viver. Sabia que findar sua própria existência seria o melhor a fazer. Colocou a arma em
sua boca, e pensou numa única fração de segundo como seria aquilo. Então puxou o
gatilho e sentiu a morte passando por seu corpo. Cada pedaço foi desfalecendo,
enquanto o corpo do demônio caia morto no chão.
Seus olhos puderam ver a cena triunfante. Puderam ver as lembranças dos
assassinatos, porém, a visão mais sufocante, mais triste e desesperadora, foi a de notar a
escuridão da morte que se aproximava. Sentiu sua alma puxada pela sombra. E no meio
de todos os temores que tinha no escuro, fez daquelas trevas um recanto de satisfação
por ter vencido a si próprio.
A batalha lhe custou à vida, e seu maior medo foi seu único troféu, e sua última
memória.
Olhares na Noite
50
Absinto: pecados de uma fada THIAGO FÉLIX
Natasha não deveria ter saído àquela hora, já era muito tarde para uma mulher
andar desacompanhada. Era tarde demais. A Paulicéia desvairada não era um lugar para
se brincar, ainda mais assim, tão bêbada numa noite chuvosa de abril.
A fada verde impregnava seu juízo perfeito. A mulher sempre fora uma boa
advogada, mas agora, com seu primeiro caso perdido, estava ali, destruída e entregue,
como uma ninfa bêbada, prostituída ao sabor do mais doce Absinto.
Sua maquiagem negra borrava-se inteiramente, ante a impassível água celeste,
manchando o rubro vestido decotado.
Ela estava destruída, como a maquiagem que há poucas horas lhe enfeitava os
olhos. Seu primeiro caso perdido fora um caso de amor, seu próprio amor.
Talvez a advogada não tivesse saído naquela noite para beber. Talvez se ela
soubesse, não teria pedido mais uma dose de Absinto, mas agora era tarde, tarde demais
para esperar qualquer coisa da fria noite. O pecado já a estava observando e ele a
desejava.
Passando pelo beco, dobrando a esquina, finalmente sua morada. Lá ela estaria a
salvo dos próprios pensamentos, lá ela estaria a salvo de si mesma e poderia dormir e
esquecer suas lembranças. Mas havia uma coisa da qual nem seu lar poderia a proteger:
o pecado desconhece barreiras e não pede convite.
Ela entrou e jogou suas roupas molhadas sobre o sofá encarnado. Afagou seus
longos, lisos e negros cabelos, simulando a mão de seu amado sobre eles. Partiu
lentamente para cama à espera de que essa noite passasse logo, mas a noite jamais
acabaria...
Por fim, a pecadora adormeceu.
Era um completo esgar de desespero. O corredor continuava e continuava...
Não parecia ter fim, mas possuía um e, lá estaria seu amado de braços dados com ela.
Correr e correr, era a única forma de chegar depressa, mas seu amado se foi.
Ele dissera: “Não quero mais te ver. Acabou Natasha, você é... ocupada demais para
mim, entende?” Não, ela não entendia, e queria chegar logo ao final daquele corredor
para poder dizer isso a ele.
Olhares na Noite
51
Ela o amava, mas estava cansada de correr. Queria o ouvir gritar seu nome e
dizer que a ama...
– Natashaaaaa...
De um susto a advogada acordou de seu sonho.
Havia sido apenas um pesadelo, não havia corredor algum. A cabeça doía e sua
mente, por fim, convencera-a de que tudo não passava de uma ilusão. Afinal, ela estava
segura em seu quarto, não estava?
Olhou ao redor, realmente não havia corredor algum.
Era realmente seu quarto. Ali estavam seus móveis, sua cama, seu quadro, seu
espelho, sua porta com um homem parado nela, era seu guarda-roupa... Um homem
parado na porta!
Olhou novamente. Era apenas um engano, não havia ninguém lá.
– Natashaaaaa...
Era sério? Ela ouvira mesmo alguém falar seu nome? Não! Provavelmente ainda
estava sonhando. Ela havia lido em algum lugar que às vezes, quando despertamos
subitamente de um pesadelo, sua cabeça ainda não teve tempo de despertar totalmente e
pode experimentar sensações ainda do sonho. Era isso, era isso que estava acontecendo!
Natasha levantou-se cobrindo o corpo com o edredom. Precisava encontrar o
interruptor. Queria acender a luz, mas a chuva lá fora a incomodava. Sua cabeça não
conseguia raciocinar direito com tantos trovões.
Tateou a parede, mas quando finalmente conseguiu encontrar o interruptor
constatou que não havia luz.
- Merda de casa! – queixou-se.
- Não fale assim do seu lar, minha garotinha – uma potente voz falava atrás dela,
será ainda um sonho?!
Não, não era. Ao voltar-se para sua cama, o viu. Lá estava o vulto negro
novamente. O homem deitado em sua cama.
- Buu!
TRUUUUUMMM. Luz! Um relâmpago forte e o retorno da energia elétrica
deram-se em sincronia.
Não havia mais vulto algum lá. Ele havia sumido.
- Ufa! Era só um sonho.
- Não, eu não sou um sonho Natasha, a não ser que você queira que eu o seja...
Olhares na Noite
52
- Quem... Quem... Quem é você?
- Eu sou o mal – disse o ser gélido que cheio de volúpia a envolvia com seu
corpo masculino.
- O que você quer?
- Ora minha criança, eu sou sua consciência. Vim para dizer a você para
continuar o que você quer fazer. Sei que deseja. Sei que busca a morte. Sei que está
ferida. Vá, encontre-se com Deus e faça suas perguntas...
A mão cadavérica do Pecado estava estendida como uma mão de mãe que leva a
criança a lugares seguros, mas era um embuste, um pequeno engano do mal: se fingir de
inocente.
- Você se diz o mal e ainda acha que eu vou com você?!
- Por que não? O bem que você tanto queria a traiu...
- É, você tem razão, mas...
- Mas você ainda tem esperança de que ele volte para você. Ele não vai voltar. E
ele te fez de tola na frente de tanta gente. Você vai deixar isso acontecer?
Não! Não iria. Segurou a mão do Mal e flutuou com ele pela cidade. A chuva
caindo em seu rosto como lágrimas. Seu ego ferido sangrando em seu coração e em sua
alma perdida. Voou de mãos dadas com o Pecado para o alto.
Era só mais um dos prédios altos de São Paulo. Era só mais um edifício frio de
concreto erigido pelas mãos de homens pobres, projetado pela cabeça de pessoas de
classe média e provavelmente articulado do sonho de mais um magnata de meia idade.
A chuva caia. O Mal a soltara de seus braços e apenas observava o ruflar das
asas de um humano.
Natasha abriu suas asas e como um anjo, as pendera para voar. Sem perceber,
estava partindo para ares diferentes, para um mundo que ainda não conhecia. Ela partiu
para sua jornada eterna.
E rindo-se em extasia, o maior de todos os pecados assistia o voo, ou a queda. A
garota o havia dado ouvidos, mas quem não daria? Todos o escutam. Todos ouvem a
voz do Orgulho.
Olhares na Noite
53
A voz no poço RAFAEL JORDAN
Era noite, e muito fria. Dois vultos esfarrapados arrastavam-se pelo chão gelado
daquela planície descampada. Com os pulsos acorrentados e muita fome, nenhum dos
dois enxergava para onde se dirigiam, somente seguiam o homem que à sua frente
caminhava.
- Cavem! – disse ele autoritariamente apontando para uma região da relva
exatamente igual à de todo o caminho que percorreram até então.
- O que quer que achemos? – falou o prisioneiro que tinha uma grande cicatriz
no rosto, com uma voz rouca.
- Água, seu idiota! Vocês vão cavar um poço.
- Mas pode levar meses, talvez mais de um ano para que consigamos água! –
falou o outro prisioneiro de voz áspera.
- Não se preocupem. O rei deseja que construamos um castelo nessa região e,
portanto, vocês terão todo o tempo necessário. Ah, não se esqueçam: se vocês tentarem
fugir, a punição será a morte. Garanto que não chegarão muito longe com esses grilhões
pesados, e no estado em que se encontram então... Mas só para garantir, vou acorrentá-
los um ao outro.
E dizendo isso, o misterioso homem tirou uma pesada chave do bolso e soltou as
algemas dos prisioneiros. Até passou pela cabeça dos dois resistir e atacá-lo naquele
instante, porém ambos tinham certeza de que fracassariam na fuga, uma vez que não
comiam há dias.
Terminando de atar as mãos e os pés dos prisioneiros juntos, o homem falou
novamente:
- Para tornar as coisas um pouco mais interessante para vocês, dou-lhes a minha
palavra de que quando encontrarem água, vocês estarão livres.
Dessa forma o homem foi embora, e retornou em seguida com duas pás. Sem
trocar sequer uma palavra um com o outro, os prisioneiros começaram a cavar. No
início eles tiveram certa dificuldade em trabalhar em conjunto, o que resultou em alguns
tombos, mas com o tempo, começaram a ser capazes de realizar a árdua tarefa.
Olhares na Noite
54
Depois de alguns meses não havia muito progresso, e a s coisas pareciam piorar.
O solo antes macio e lamacento começava a ficar pedregoso, e requeria muita força para
ser arrancado. Força essa que não era obtida nas 4 horas de sono que lhes era permitido
ter, e nem na alimentação que não passava dos restos de carne e sopa, que sobravam do
acampamento dos soldados, no dia anterior.
Entretanto havia algo que o tempo melhorava, e isso era a relação entre os dois
presos. A partir de poucas palavras, eles começaram a contar sobre suas vidas antes da
invasão de seu país, sobre suas respectivas vilas, esposas e filhos... Ambos sentiam
muita falta da vida que lhes fora arrancada, e ansiavam por liberdade.
Então tudo mudou quando o prisioneiro de cicatrizes no rosto, apesar de fatigado
e inebriado pelo sono, ouviu dois soldados conversando acima de sua cabeça, enquanto
fingia dormir, deitado na terra pedregosa:
- É verdade que o capitão prometeu liberdade aqueles dois quando eles
encontrarem água?
- Sim. Mas acho que ele não cumprirá a promessa, pelo menos não
inteiramente... Ouvi da boca dele que as invasões não vão muito bem, e que cada
prisioneiro que temos é muito importante. Ele talvez conceda liberdade a um deles
apenas.
Escutando aterrorizadamente as últimas palavras, o prisioneiro permaneceu
silenciosamente deitado no poço, que agora tinha uns 15 metros de profundidade. Ele
podia sentir que os dois homens o observavam, mas quando ele se virou para olhar
despistadamente, só viu as estrelas brilhando naquele limpo céu de primavera. Ele não
dormiu naquela noite.
Mais meses se passaram e agora ambos, o poço e o castelo, começavam a tomar
forma. Agora que era necessário subir à superfície com frequência e pegar pedras para
revestir o poço, os grilhões foram removidos e os prisioneiros não dividiam algemas.
Entretanto, não lhes era possível fugir, pois guardas se encontravam dispostos nas torres
já prontas do castelo.
O preso com as cicatrizes no rosto estava cavando, enquanto seu companheiro
subia e descia a escada feita de cordas carregando pedras, quando ele ouviu a estranha
voz pela primeira vez.
Ela parecia vir de dentro de uma das paredes do poço, tanto que o prisioneiro
encostou sua orelha em sua superfície. Reverberando em sua mente a voz dizia:
Olhares na Noite
55
- Mate-o! Ande logo, antes que consiga encontrar água. Tu não queres vê-lo
livre enquanto definhas preso para sempre, quer? Pois mate-o!
Assustado, o prisioneiro recuou e tampou os ouvidos. Apesar de seus esforços, a
voz continuava a persegui-lo, e assim o fez dia e noite.
Por que ele era o único capaz de ouvi-la? Seria ela a voz de sua consciência?
Como poderia ser se à presença do outro preso ela parecia se atenuar? Além disso, por
que ela cessou quando foi a vez dele de subir à superfície buscar pedras?
Dessa forma, a ressoante voz passou a inundar seu ser durante dias, semanas,
meses. Se no início ela não era parte dele, posteriormente passou a ser. Ele começou a
pensar no que a voz lhe dizia, passou a responder a voz, a ser a voz.
Seus instintos haviam sido segurados ao máximo, até aquele fatídico dia de
Setembro. Enquanto o prisioneiro sem cicatrizes cavava de forma habitual o chão, o seu
companheiro encaixava um pedaço de pedra na parede. Elas já estavam praticamente
cobertas, restando somente a parte mais profunda do poço. Foi então que a pá desceu
rapidamente em direção à terra, e uma pequena poça de água se formou na região em
que ela fora recém escavada.
Tudo que ocorreu em seguida foi muito rápido. Ao olhar para baixo e ver a poça
d’água, o homem com as cicatrizes pensou que tudo deveria ser feito naquele momento,
ou nunca. Com um rápido movimento dos braços, ele posicionou as correntes que
atavam suas mãos em frente ao pescoço do colega, e as pressionou contra sua garganta.
Instintivamente a vítima levou as mãos até aquilo que comprimia sua traquéia, mas foi
inútil. Logo ele começou a ficar roxo, e então se estatelou com a cabeça na lama do
poço, morto.
Sem nem esperar mais um segundo o assassino encheu os pulmões de ar e
gritou:
- Água! Água! Encontrei água!
Então, depois de alguns minutos, o capitão apareceu como um ponto minúsculo
sobre o poço e chutou a escada feita de cordas. Ao cair sobre o assassino ele falou:
- Desculpe amigo, mas você terá de ficar aí. Estamos sem comida e precisamos
abandonar o castelo, pois estamos perdendo a guerra.
A ira do assassino foi enorme, porém só fora visível durante poucos minutos. O
capitão selara o poço com uma grande pedra redonda. Dias depois, quando foi aberto, só
encontraram o corpo do prisioneiro que fora assassinado dentro dele.
Olhares na Noite
56
O poço agora tinha cicatrizes. Ai de quem, por ventura, bebeu ou beberá de sua
água.
Olhares na Noite
57
Amor e castigo
EDWEINE LOUREIRO DA SILVA
A Lafcadio Hearn (1850-1904).
No ano de 1605, durante o Governo de Tokugawa Ieyasu (Período dos
Shogunatos), vivem em uma vila próxima a Tóquio - na época, conhecida como Edo - o
samurai Rokuemon Hasekura e sua esposa, Riku, de estonteante beleza.
Certo dia, em uma batalha com os soldados do daimyou (Lorde feudal) inimigo,
Hasekura é empurrado de um penhasco. O guerreiro não morre, mas ficará tetraplégico
para toda a vida.
Riku, vendo-se sozinha e sem recursos para cuidar do marido e da casa, decide-
se pelo único caminho de sustento possível para a mulher de sua época: a prostituição.
Agora, sob as ordens de uma velha cafetina de nome O-Yoné, a esposa de
Hasekura entrega-se a desconhecidos em troca de bens, favores e remédios, movida
unicamente pela esperança de que um dia o marido encontrará a cura.
Mas esse dia não chega e a dupla vida de Riku vem à tona. E, certa manhã, na
área central da vila, um corpo é atirado ao chão. Quando os curiosos se aproximam,
veem o rosto da bela Riku agora disforme, os braços e as pernas mutiladas.
Não seria cremada com o marido, naquele mesmo dia. Não. Seus restos ainda
permaneceriam algum tempo à beira de uma estrada, servindo de exemplo a todo aquele
que ousasse amar.
Olhares na Noite
58
A pensão maldita FÁTIMA DE MENEZES DANTAS
Eles eram os únicos hóspedes da pensão. Marido, mulher e dois sobrinhos.
Foram para lá passar um fim de semana diferente, afinal nunca tiveram a oportunidade
de conhecer, de perto, uma casa do final do século XVIII. A construção fora
parcialmente reformada há alguns anos, mas conservava, em sua essência, traços
marcantes do período da edificação. Era uma casa grande e suntuosa. A atual
proprietária, dona Emília, uma senhora de rosto bondoso e olhos azuis, recebeu a
família no vestíbulo.
- É muito feia – disse Eric, fazendo uso de toda a franqueza que lhe permitiam
seus sete anos de idade. – Não vamos ficar mesmo aqui, não é?
- A casa é linda. Você é que é ignorante demais para notar - implicou Tina.
- Parem de brigar! – repreendeu tia Giovanna. – O que a dona Emília vai pensar?
- Que são uns amores – disse dona Emília. – Benvindos! Espero que nossas
acomodações sejam de seu... gosto – completou com um sorriso misterioso.
- Certamente o serão – respondeu tio Frederick.
Então, todos foram para seus quartos. Eric, batendo os pés com demasiada força
no assoalho.
- Não gosto desta casa – ele repetia sem parar.
Tina trancou-se no quarto dela para telefonar para os amigos.
- Não tem sinal – ela resmungou, jogando o celular na cama. – Ótimo. Trancada
numa pensão obsoleta, localizada a quilômetros da casa mais próxima.
Ela pensou em tentar o telefone da sala de estar, mas dona Emília havia dito algo
sobre o aparelho não estar funcionando.
No aposento do casal, o marido avisou a Giovanna que iria até o carro trazer o
restante das malas.
- Enquanto isso, irei experimentar essa banheira de que tanto ouvi falar – ela
disse, caminhando em direção ao banheiro com seus objetos de higiene pessoal.
Alguns minutos depois, tio Frederick retornou ao quarto. Estranho, Giovanna
ainda estava no banho. Mas ele não ouvia um ruído sequer vindo do banheiro...
Olhares na Noite
59
Bateu de leve na porta e chamou por ela. Não houve resposta. Bateu novamente.
Nada. Então, com o coração disparando, abriu a porta num rompante.
O pavor o dominou. Lá estava Giovanna, na banheira; só que completamente
imóvel. Desviando um pouco os olhos, ele viu o fio do rádio dela, ainda conectado à
tomada. Olhou para a água e viu o rádio imerso nela. Ele não conseguia acreditar. Ela
estava morta. Fora eletrocutada.
Correu de volta ao quarto. As lágrimas marejavam seus olhos. Depressa,
começou a devolver os pertences da mulher à mala. No momento em que saía para
aconselhar os sobrinhos a fazer o mesmo, alguém bateu à porta. Dona Emília.
Informada do acontecido, ela disse:
- Sinto muito, realmente. Mas vocês não podem ir agora! E o corpo de sua
esposa? Dê-me um dia e organizarei um enterro decente, com uma pequena missa na
igreja da cidade.
Ele não queria mais ficar ali. De repente a antiga pensão lhe parecia hostil. Tudo
o que desejava era tirar todos dali o mais rápido possível.
Contudo, acabou concordando com dona Emília.
Frederick passou a tarde trancado na suíte do casal. À noite, na hora do jantar,
ainda não contara aos sobrinhos o que acontecera. Não sabia o porquê, mas decidira
fazer isso depois que Eric e Tina terminassem a refeição.
- Onde está tia Giovanna? - perguntou Tina. Ela não tocara no jantar. – Não a vi
à tarde.
- Tina... Eric... – começou o tio. – Há algo que precisam saber...
Entretanto, eles não souberam o que Frederick almejava lhes contar.
Subitamente, o pesado lustre de cristal negro e pontas afiadas despencou do teto,
acertando o homem na cabeça. Frederick caiu morto na hora.
Eric e Tina gritaram e correram para seus quartos. Enquanto subia a escada,
lutando para expulsar da mente a imagem dos respingos de sangue na toalha branca -
tudo que visualizara antes de virar o rosto – Tina teve um vislumbre de uma jovem de
cabelos louros, que aparentava ser apenas alguns anos mais velha do que ela. A loura
saía da sala, embora Tina não a tivesse visto entrar.
Quando entrou no cômodo, Tina tremia incessantemente. Estava histérica. E foi
então que dona Emília entrou. A mulher contou a Tina o que se passara com tia
Giovanna, e alegou lamentar pelo ocorrido. Todavia, pediu que ela e o irmão
permanecessem na pensão até o amanhecer.
Olhares na Noite
60
- Foram acidentes terríveis – a velha dizia. – Mas vocês dois não devem sair
daqui à noite.
- Eu não acho que tenham sido acidentes – Tina respondeu. Ela contou à dona
Emília sobre a jovem que vira na sala de jantar.
- Ah, deve estar referindo-se à Kátia. Ela é minha filha, perdoe-me por não a
apresentar a vocês. Kátia é doente e fica perturbada com estranhos... Contudo, não creio
que seja ela por trás disso.
- E quem mais seria?
- Existe uma lenda sobre esta casa. Uma lenda boba, na verdade – contou a
senhora aos sussurros. – Ela diz que, logo quando a pensão foi aberta, uma família se
hospedou aqui. Todos naquela família eram muito desastrados, propensos a acidentes...
E a filha mais velha, diziam, mantinha contato com forças sobrenaturais. A questão é
que, pouco a pouco, todos – marido, mulher, filho e filha – morreram. A filha foi
atropelada ao tentar fugir da casa. Ainda a encontraram viva. Ela viveu tempo suficiente
para proferir uma espécie de maldição sobre a casa que tanto odiava. Disse que a pensão
despertara fantasmas de seu passado, então fantasmas ela despertaria sobre esta casa.
Tina fitou a mulher, incrédula. Nunca acreditara em lendas.
- Certo – ela falou com certa ironia. – Então a senhora acha que fantasmas
mataram meus tios?
- Sim. Fantasmas, espíritos perversos. Os acidentes são esquisitos, de fato. Não
parecem seguir uma espécie de padrão, como num filme de terror?
Marido, mulher, filho e filha. Ao todo, quatro. Assim como ela e sua família. A
menina balançou a cabeça afirmativamente. Havia mesmo um padrão. Em seguida,
pediu à mulher que se retirasse. Tina estava confusa e precisava refletir.
Ao amanhecer, Tina foi acordada por uma voz baixa e áspera:
- Deviam ter ido embora ontem à noite – falou Kátia.
- Por quê?
- Porque ele teria uma chance.
Ele? A quem ela se referia? De repente, uma imagem veio à mente de Tina. Seu
irmão. A garota saiu em disparada até o quarto ao lado. Era mesmo de se estranhar que
ele passasse a noite quieto após tudo o que acontecera. Um frio percorreu sua coluna. O
medo lançava as garras cruéis sobre ela.
No momento em que abriu a porta, no entanto, ela relaxou. Ele ainda dormia. A
irmã se aproximou.
Olhares na Noite
61
- Eric, precisamos ir - ela chamou. – Eric, acorda!
Mas ele não acordava. Ela chamava e balançava o irmão, porém ele não
despertava.
Então ela virou o menino e notou. O lençol branco do irmão estava envolto no
pescoço dele, formando um nó apertado. Quando ela desfez o nó e sentiu a pulsação,
seu próprio coração quase parou. Não havia pulsação. Eric estava morto. Ela tentou
gritar, entretanto nenhum som saiu de sua garganta.
Olhou para trás. Kátia a fitava.
- Você fez isso! Por que você fez isso?! – foi tudo o que Tina conseguiu dizer.
- Eles prometeram me deixar em paz... – ela disse com olhos arregalados.
Parecia uma louca, pensou Tina. – Prometeram não fazer nada comigo caso eu os
ajudasse... E eles queriam se vingar.
No instante seguinte, Tina teve certeza de que não tinha mais nada a fazer, a não
ser fugir dali bem depressa. Ela correu para fora, quase derrubando Kátia ao passar.
- Não pode escapar! – Kátia gritou. – Você precisa morrer! A maldição não
pode ser quebrada!
Tina passou pelo quarto do tio e pegou as chaves do carro. Ainda não tinha idade
para dirigir, mas seu pai a ensinara a fazê-lo em uma viagem à praia. Praia, por que eles
não tinham ido simplesmente à praia? Ela até sugerira isso. Mas não, tia Giovanna
almejava inovar, visitar uma pensão antiga, abarrotada de lendas e histórias sobre
espíritos do século XVIII.
Só que os espíritos não eram uma lenda. Eles estavam atrás dela. E a jovem, a tal
de Kátia, também. Tina desceu as escadas rapidamente. No vestíbulo, encontrou dona
Emília.
- Aonde vai?
- A qualquer lugar distante daqui – a menina gritou.
Ao passar, Tina viu os olhos da mulher. Eles não eram mais azuis, calmos e
receptivos. Eram vermelhos, tomados por um ódio insano.
- Não, você não vai! – bradou dona Emília. Sua voz estava diferente. Era grossa
e furiosa. Não combinava com a simpática velha que a recebera tão alegremente.
Por instinto, Tina olhou para trás. Seus reflexos a levaram a se abaixar agilmente
quando viu um objeto voando em sua direção. Ele colidiu com a parede, poucos
centímetros acima da menina, rasgando o papel rosa florido que cobria todas as paredes
daquela casa. Era uma faca de cozinha.
Olhares na Noite
62
Dona Emília também? Ela precisava sair dali urgentemente. Todos estavam
contra ela naquela maldita pensão. Cruzou a soleira e dirigiu-se ao estacionamento.
Olhou ao redor. A velha não a seguira.
Contudo, alguém a observava de uma das palmeiras do jardim sem que a
adolescente percebesse.
Finalmente, ela viu o carro. Um filete de esperança começou a brotar em seu
coração, mas logo foi sufocado pelo horror. Ela girou a chave, porém o motor não ligou.
Tentou novamente. O carro não respondeu. O medo crescia, sufocante, à medida que
avaliava a situação e constatava: certificaram-se de que ela não escaparia.
Mas eles estavam enganados. Ela correria. Correria até achar ajuda. É, faria isso
mesmo. Para tanto, empurrou a porta, contudo esta não abriu. A alguns metros, avistou
um carro preto vindo a seu encontro. Seus olhos se estreitaram para enxergar quem
dirigia. Kátia.
Tina empurrava a porta insistentemente, tentava abaixar o vidro, mas o carro
também estava contra ela. Por fim, arrancou o aparelho de DVD do teto do carro e o
atirou no vidro, quebrando este último.
Ela conseguiu se esgueirar para fora, caindo no chão. Entretanto, antes que
conseguisse se levantar, o carro preto a atropelou.
Vou me vingar, ela dizia a si mesma enquanto sentia sua vida se esvair
rapidamente. Vou me vingar de todos!
Olhares na Noite
63
Inferno RAFAEL DE ANDRADE
Tenho uma péssima notícia: o inferno existe. E o pior é que ele não é como
imaginam os grande sábios da terra, como os religiosos pregam ou como as artes dizem
imitar. Eu mesmo já estive morto por algum tempo e posso afirmar que o inferno é bem
pior do que dizem. Não existem demônios, sátiros, gemidos alheios, fogo, ou enxofre.
Este lugar foi desenhado por uma mente doentia, um ser traído que tinha como dom ser
o maior entre todos. A maior virtude gerará a maior vingança quando corrompido, é
uma lei básica. Por milhares de anos ele pôde observar a humanidade e compreender
seu, nosso maior medo.
Estava com um copo na mão, sentado em minha cadeira preferida. Girava no
escuro com a arma na mão. Coloquei dentro da boca e atirei. Quando abri os olhos
estava dentro de uma caixa e sentia que estava em movimento. Esta foi aberta por dois
homens cujos olhos, orelhas, bocas e as pontas dos dedos foram arrancadas de seus
corpos, e exalavam um cheiro pútrido enquanto uma secreção amarelada escorria por
essas cicatrizes. Não acreditei no que vi. Nunca acreditei no inferno, no paraíso, em
nada além do que podia ver. Me conduziram por um vale escuro e quente, sim ele
existe, e não havia senhor para me salvar, de solo arenoso, e o único som que se podia
ouvir era o de correntes se movendo. Andamos até uma torre, e lá dentro subimos
escadas até chegarmos ao topo.
Me lembrei de todas as dores que sofri enquanto vivo e não achei justo que
continuasse a sofrer mesmo depois de morto. Se soubesse do meu destino, teria
roubado, enganado e bebido mais, a punição será a mesma para todos. E que lei inútil
rege esse tribunal? Correntes desceram do céu e começaram a me enrolar, me
suspendendo como uma marionete. Mãos se colocaram sobre meu rosto, não senti dor
quando arrancaram meus olhos. Não senti dor quando cortaram minhas orelhas, língua e
dedos. Senti profunda angustia ao saber que vagaria sem sentidos pela eternidade. Ao
menos, sofreriam milhares comigo e juntos, poderíamos não sofrer tanto. Não. Me
deixaram no escuro, amarrado, deitado no chão, com uma gota d’água pingando para
sempre em minha face. Sozinho, sem dor física, só a angustia do isolamento, do tédio e
a certeza de que seria para todo sempre.
Olhares na Noite
64
Só me restou ranger os dentes. O único barulho, e algumas vezes, eu poderia
imaginar que era outrem falando comigo. Quando voltei, os paramédicos tentavam me
reanimar. A bala havia atravessado meu crânio sem me matar. Não quero voltar ao
inferno, de forma alguma. Mas sou um suicida e este pecado ninguém irá perdoar.
Só me restou ranger os dentes, e sabe, de vez em quando parece que tem outra
pessoa falando comigo.
Olhares na Noite
65
João e Maria NARJARA DE OLIVEIRA
- Vocês pagarão caro pelo que estão prestes a fazer, entenderam? – a velha
senhora gritava.
- Vamos acabar logo com isso – respondeu o homem de feição severa ao pegar o
pedaço de tronco em chamas.
A expressão de ódio era notável nos olhos da Sra. Anabela.
Amarrada em um pilar de madeira escura, ela observa aquele homem colocando
fogo na palha espalhada ao seu redor.
-Aahhh – Seus gritos eram ouvidos por toda a população do vilarejo.
O fogo consumia seu corpo lentamente. O cheiro de carne queimada se fazia
presente.
As pessoas a chamavam de bruxa.
Estavam excitadas pelo espetáculo macabro.
Foram longos minutos até tudo terminar.
Entre eles, haviam duas crianças abraçadas à mãe.
Elas presenciaram o espetáculo de horror. Foi por elas que tudo isso aconteceu.
***
Dois dias antes.
- João, Maria, preciso que peguem alguns galhos secos pra acender o fogão.
Vão, mas não demorem! – pediu a mãe.
- Pode deixar mamãe. Vamos voltar logo – respondeu Joãozinho.
E assim foram os dois à procura de galhos entre uma brincadeira ou outra.
Maria viu a floresta. Sabia que não podiam ir longe, mas ela teve a ideia de
explorar o lugar.
- Vamos Joãozinho, vai ser divertido. Vamos voltar antes de a mamãe dar por
nossa falta – insistiu Maria.
E assim foram adentrando a floresta.
Olhares na Noite
66
Maria teve a ideia de marcar o caminho com migalhas de pão. Assim não
correria o risco de se perderem.
Enquanto recolhiam alguns galhos, aproveitavam para brincar com os pequenos
animais.
Logo perceberam que estava para escurecer.
Maria tratou de procurar os pedacinhos de pão, mas não encontrou nenhuma
migalha.
Os pássaros do ninho ao seu lado haviam comido tudo.
Estavam ambos perdidos no meio daquela floresta, onde a mãe já havia avisando
tanto para não se aventurarem.
Tentaram se recordar do caminho de volta, mas em vão.
- Estamos perdidos e famintos – choramingou Joãozinho.
O sol se foi para dar lugar à lua, e à escuridão.
Enquanto Maria se assustava com pequenos ruídos, Joãozinho teve a ideia de
subir em uma árvore para avistar algum lugar onde pudessem passar a noite.
- Ali! Estou vendo uma luz vinda daquele lado – gritou Joãozinho em um tom
esperançoso. – Vamos, Maria.
Foram correndo, Joãozinho ia à frente e Maria, visivelmente cansada,
acompanhava seu irmão.
Alguns minutos depois, chegaram próximo à casa.
Notaram que havia uma pessoa na entrada.
A mulher idosa de longos cabelos brancos encarava seus novos visitantes.
As crianças assustadas ficaram ali, olhando receosas para Anabela.
Em seu vilarejo, muito se comentava de uma velha que morava sozinha no meio
da floresta. Ninguém se atrevia a visitá-la tanto pelo local quanto sua fama, mas nada
que pudesse ser provado.
Enfim o silencio foi quebrado:
- O que duas crianças estão fazendo a essa hora perambulando no meio da
floresta? – questionou Anabela.
Joãozinho permanecia mudo. Sentia-se acuado diante da velha senhora.
Maria, mesmo insegura, decidiu respondê-la:
- No... Nos perdemos. Estávamos recolhendo alguns galhos quando escureceu.
Não conseguimos achar o caminho de volta.
Olhares na Noite
67
Anabela ficou mais alguns segundos olhando para as crianças. Estava decidindo
o que fazer, até ouvir o ronco do estômago de Joãozinho.
Só não estava mais escuro devido à luz da lua. E fazia frio. Decidiu acolher
aqueles dois e depois pensaria o que fazer no dia seguinte.
- Venham. Não quero ver vocês criando raízes no meu quintal.
João e Maria, mesmo receosos, decidiram confiar em Anabela. Em sua atual
situação, não havia o porquê de negar o acolhimento daquela senhora.
A casa era simples, mas muito aconchegante.
Assim que entraram puderam sentir o calor da brasa queimando no velho fogão à
lenha.
Recordaram-se da mãe, que provavelmente estaria preocupada com o sumiço
dos dois, mas logo suas atenções se voltaram para a mesa, havia algo que nunca tinham
visto antes. Uma pequena escultura que enchia seus olhos e arrancava sons de seus
estômagos.
O telhado possuía uma cobertura densa de chocolate, janelas enfeitadas com
balas coloridas e as paredes feitas de biscoitos e gelatina.
Anabela, vendo a fascinação dos dois irmãos, resolveu quebrar o silencio:
- Como podem ver, esse é meu trabalho. Faço doces caseiros para vender no
vilarejo. Não fiquem ai parados, comam – disse esboçando um leve sorriso.
João ficou meio receoso, estava faminto, mas não sabia se podia comer algo tão
bonito.
Maria por outro lado não ficou acanhada. Aproximou-se da mesa e observou
aquela pequena casinha. Seus olhos brilhavam, esticou seus dedos em direção da janela
de biscoitos, antes de tocar, olhou para a velha Anabela, como se esperasse sua
aprovação.
Anabela fez um leve gesto com as mãos e isso bastou para que Maria tirasse um
pedaço da janela, para enfim se deliciar.
João, vendo sua irmã, foi ao seu lado e tirou uma lasquinha do telhado.
- Vamos, não fiquem só pegando alguns pedaços, podem se fartar.
E assim fizeram, comeram o quanto agüentaram, deixando apenas alguns farelos
e rastros de chocolate na mesa. Não se lembravam da última vez que se fartaram assim.
Sua família era modesta, doces eram raros. Só ganhavam um caramelo em dias
especiais, como no aniversário.
Olhares na Noite
68
No final da refeição regada a doce, Anabela ajeitou duas camas improvisadas ao
lado do velho fogão à lenha.
- Está tarde, amanhã cedo vamos procurar pela mãe de vocês. Ela deve estar
muito preocupada com o sumiço de duas crianças levadas que não a obedecem. Se
deitem e durmam, eu irei acordá-los antes do galo cantar.
Maria e João não questionaram, sabiam que Anabela tinha razão. Sua mãe devia
estar mesmo preocupada, e quando se encontrassem, com certeza receberiam o devido
castigo.
Não pensaram muito sobre isso, estavam cansados, e depois de comer tanto, tudo
o que queriam era dormir.
Assim que o dia começou a clarear, a velha Anabela acordou os dois irmãos:
- Vamos, levantem-se. Vão lá fora e joguem uma água no rosto para
despertarem, depois voltem e comam alguma coisa. Temos de sair logo para encontrar a
mãe de vocês.
Assim que os primeiros raios solares apareceram, saíram da humilde casa de
Anabela, em direção ao vilarejo mais próximo.
A senhora ia à frente, e as crianças logo atrás. Desde aquela noite, depois de
comerem os doces, não trocaram nem uma palavra com Anabela. Estavam receosos de
encontrar sua mãe.
Saíram da floresta e, depois de alguns minutos de caminhada, avistaram algumas
pessoas.
A velha, contando com as descrições que os irmãos fizeram de sua mãe,
perguntava se conheciam uma mulher que estava preocupada com o sumiço de seus
filhos. Não demorou para que um conhecido lhes indicasse o caminho certo.
Os irmãos sabiam que estavam cada vez mais perto de encontrar sua mãe. Ao
mesmo tempo em que estavam felizes, também estavam preocupados com sua reação.
Chegando ao poço próximo de sua casa, a mãe das crianças viu uma estranha na
companhia de seus filhos. Ela saiu em disparada para abraçá-los. Aos prantos, os
agarrou e agradeceu a Deus por ver seus filhos salvos.
- Onde vocês estavam? Eu disse para vocês não se afastarem. Por que fizeram
isso? – ela perguntou aos filhos.
Os filhos nada respondiam, estavam de olhos abaixados, como se pressentissem
que algo ruim fosse acontecer se dissessem a verdade.
Olhares na Noite
69
Anabela estava para tomar a palavra e explicar tudo, quando Maria decidiu falar
alguma coisa.
- Foi ela. Ela nos levou para dentro da floresta, prometendo que se fossemos
com ela, nos daria todos os doces que pudéssemos comer. Mas ela nos enganou,
chegamos lá, havia um imenso caldeirão.
Anabela ouvia tudo aquilo com espanto. Ela não conseguia acreditar em como
uma menina como aquela podia estar mentido daquela maneira.
João estava quieto, mas depois afirmou o relato de sua irmã, acrescentando mais
mentiras:
- Maria disse a verdade, mamãe. Essa velha nos enganou e disse que se
viéssemos buscar a senhora, ela iria deixar a gente livre. Mas sabíamos que estávamos
sendo enganados, ela é uma bruxa.
Tudo aquilo chamou a atenção dos moradores. Anabela estava abismada. Não
fazia ideia de que tinha abrigado e alimentado duas crianças tão cruéis.
- Não... Isso não é verdade. Eu acolhi sim esses dois, eu não podia deixar eles no
meio da floresta, no frio – Anabela tentava explicar, mas era tarde. Todos a olhavam
com desprezo.
Como pôde uma velha enganar duas crianças e sua mãe, a fim de realizar algum
feitiço contra eles? – assim pensavam aquelas pessoas, junto com a mãe de João e
Maria.
- Bruxa! – gritou a mãe dos dois.
- Bruxa! - gritaram os demais moradores.
Anabela estava acuada. Não tinha para onde fugir. Um homem se aproximou e a
empurrou contra o chão frio de pedra, que causou um leve corte em sua cabeça.
Suas mãos foram amarradas, ela foi levada e trancafiada no porão de um dos
moradores.
Naquela noite foi decidido o seu destino. Seria queimada sob a acusação de
bruxaria, e por ter se aproveitado da ingenuidade daquelas crianças.
Naquele dia, enquanto ouviam os protestos de Anabela, e depois de
presenciarem aquela cena horrível, ouvindo seus gritos e lamentos, João e Maria
recordaram-se do momento em que foram lavar seus rostos e tramaram toda aquela
história absurda para não serem castigados.
Não havia arrependimento em seus olhos, mas algo mais medonho. Encaravam
aquilo como se fosse uma inocente mentirinha, e sorriram depois que terminou aquele
Olhares na Noite
70
show de horror. Ninguém iria descobrir, a única pessoa que sabia a verdade havia virado
cinzas.
Para João e Maria, tudo não passou de uma brincadeira. Uma brincadeira real e
cruel.
Olhares na Noite
71
Protetores da noite MARCOS GALLO
Um brilho perpassou meus olhos.
Gazeta Mercantil, 29 de março de 2010
Um corpo foi encontrado esquartejado na noite de ontem no centro da cidade. A
vítima foi encontrada por diversos indivíduos, cada um achou uma parte do corpo. A
polícia local suspeita de um maníaco que havia escapado de um centro psiquiátrico. O
delegado de polícia Sr. Onofre diz, “As investigações levam a entender que a mulher foi
morta por vingança, já que no seu bolso foi encontrado um bilhete escrito ‘Você me
pagou,’ seguido de um desenho de uma Lua.” O IML fará seu relatório amanhã e,
enquanto isso, a imprensa continuará a fazer suas especulações.
Foi estranho. Após o brilho, eu caí num sono pesado e me esqueci de todos os
meus problemas. Mas será que estava alucinando? Tenho certeza de que vi o brilho, e,
naquele dia, eu não tinha tomado nenhum de meus remédios psicoterápicos. Não sei
como caí naquele sono, só sei que acordei com o choro de minha vizinha. Vesti-me e
desci de meu apartamento para comprar o jornal. Diversas pessoas se aglomeravam na
banca. O jornal já estava esgotado e todos esperavam chegar mais. Muitos ficaram
murmurando até o caminhão da gráfica chegar. Uma das pessoas da multidão começou
a gritar em desespero. Ganhei coragem e perguntei a alguém o havia acontecido.
- Você não ficou sabendo?
- Sobre o quê?
- Sobre o assassinato daquela mulher aqui no centro.
- Como assim, atiraram nela?
- Não, alguém a esquartejou.
- Como assim?
- Espalharam os restos mortais pelas ruas
- Nossa!
O caminhão chegou, a multidão estava ansiosa. Demorei alguns minutos para
adquirir meu exemplar. Subi novamente até o meu apartamento, e minha vizinha ainda
Olhares na Noite
72
chorava. Entrei e li a manchete. Fiquei chocado, mas a fome era mais forte e fui comer
alguma coisa.
Andei até a cozinha e tudo escureceu. Abri a janela e já era noite.
Um brilho perpassou meus olhos.
Gazeta Mercantil, 30 de março de 2010
TERROR NA CIDADE
Ontem, mais uma vítima dos crimes horrendos foi encontrada no centro da
cidade. Sua cabeça estava junto a uma escultura de uma Lua. Leia mais na página 4...
Acordei com uma dor de cabeça. A minha vizinha continuava chorando. Segui a
mesma rotina do dia anterior, mas desta vez a banca estava mais cheia. Subi, li a
manchete e me abismei.
Porém a minha mente começava a relembrar o que tinha ocorrido, como o dia
transformou-se de repente em noite, e como eu caí num sono profundo pela segunda
vez. Algo estava acontecendo comigo. Talvez fosse alguma comida estragada, porém eu
sentia que alguém estava na minha cozinha naquele dia.
Fui tomar um chá, dessa vez prestei atenção em qualquer movimento. Vi uma
sombra na sala e olhei rapidamente para trás, ouvi um latido, mas não reconheci nada; a
sombra tinha desaparecido. Abri o meu armário para pegar o chá. Ouvi uma risada e me
virei para onde o som parecia ter vindo, vi um vulto que parecia uma barata verde. A
risada vinha novamente. Pensei que estava tendo alucinações e então tomei o meu tarja
preta. Mas as risadas continuavam. Peguei uma faca na gaveta e comecei a atacar
qualquer brisa que passava pela casa. Vi algo brilhar no canto da parede,
instintivamente esfaqueei a parede e ouvi um grito estridente. Cheguei mais perto da
parede e imediatamente algo começou a se revelar. Eu tinha esfaqueado aquela espécie
de barata esverdeada; ela devia estar se camuflando e eu a feri quando vi o brilho.
Estava adormecida, então retirei a faca e a coloquei em cima da minha mesa de centro.
Virei os meus olhos para o relógio e ao voltá-los para a mesa, a barata começava a se
transformar em um humanoide. Ouvia ruídos vindos do animal. Até que o homenzinho
criou asas.
- Eu te escolhi para ser um ventríloquo.
Eu vi uma vara de condão e um brilho que saía dela, e que perpassava meus
olhos.
Olhares na Noite
73
- Porém agora você vai ficar consciente. E eu vou te acompanhar.
Não conseguia me controlar. Podia pensar, mas não sabia aonde ia ou o que
minhas mãos iriam fazer.
As minhas pernas andaram até um beco e ficaram paralisadas.
- Você vai ficar aqui para fisgar a minha vítima.
Não entendia ainda o que ele iria fazer. Até que vi um homem de gravata
andando na rua. Não havia mais ninguém passando por lá. As minhas mãos o fisgaram.
O éter o deixou inconsciente e fui obrigado a levá-lo para um lugar abandonado. As
minhas mãos abriram a porta de uma casa e vi um açougue abandonado. O homem
adormecia. As minhas mãos rapidamente o ataram em uma mesa.
-Olá senhor, você quer um pedaço de carne? – a minha boca repetia as palavras
que o humanóide dizia.
Aparentemente o homem não via aquele ser maligno que me controlava.
- Não, por favor, não faça nada comigo. Eu te dou todo o meu dinheiro, mas não
me mate, por favor.
- Vamos só nos divertir.
Os meus braços esticavam para pegar um facão. Felizmente o homem se soltou e
tentou escapar. Porém a ira da criatura perversa me fez perseguir o pobre homem. Ele
correu até a saída do açougue. Porém ele entrou pela porta errada. Ele tinha se
aprisionado no frigorífico. Fui obrigado a persegui-lo. Minha garganta dava uma risada
maligna e eu corria atrás do homem. Ele já tinha perdido as esperanças, então os meus
braços o levantaram e o penduraram num gancho, onde se penduram porcos. A faca e as
minhas mãos começavam a trabalhar, e eu não conseguia chorar, nem ajudar o pobre
rapaz.
- Agora eu vou fazer um desenho de uma lua no seu rosto.
O homem gemeu dolorosamente.
- Sabe, eu sou uma fada macho da Lua. Eu protejo a luz da noite.
- Volte para o hospício - ele arrastou as palavras.
- Hospício? Eu voltarei para a minha morada, mas após finalizar o meu projeto.
Na Lua não há muita comida. Eu vim me abastecer. Tentei matar duas pessoas, mas elas
não tinham um gosto bom. Você parece ser mais bem temperado. E ouvi dizer que a
carne fica mais saborosa moída.
Eu estava em pleno desespero. Os meus ombros carregavam o homem e o
levavam até o moedor de carne. Eu tentava o meu melhor, até que consegui controlar as
Olhares na Noite
74
minhas pernas. O protetor da luz da noite me batia com sua vara de condão, tentando me
controlar novamente. Eu corria para a saída. Todas as portas estavam trancadas e meus
ombros fraquejavam. Deitei-me ao chão, ouvi uma risada. Peguei uma faca que havia
perto de mim no chão. Tentei ferir aquela criatura, mas ela parecia invencível. A fada
macho tomou a faca de minha mão e a fincou em meu coração. Comecei a dormir, em
um pesadelo eterno em que era moído diversas e diversas vezes.
Olhares na Noite
75
Apunhalada pelas costas GERALDO TROMBIN
Depois da apunhalada pelas costas que levou dos seus, até então, amigos,
Hernandes prometeu a si mesmo se vingar. Isso não vai ficar assim! Vão se arrepender
até a morte. E ele não estava brincando.
Traçou um plano um tanto quanto mirabolante, maquiavélico: a primeira
FestHorror - uma festa à fantasia tipicamente horripilante, numa chácara bem distante
de tudo e de todos, convidando especialmente os quatro amigos da onça: Hidelbrando,
Mariana, André e Mari. Achando a ideia extraordinária, prontamente confirmaram
presença naquela noite fatídica de sexta-feira 13.
Aquele que era para ser o dia festivo, o dia “D”, acordou extremamente
merencório, sob as trevas, envolto por raios e trovões rasgando e faiscando os céus,
ventanias e tempestades gelando e arrepiando a pele. O clima perfeito para a trágica
FestHorror, esclipsado por um gigantesco manto negro que encobria, de ponta a ponta,
toda a cidade.
Apesar de tudo – árvores partidas ao meio, casas destelhadas, famílias
desabrigadas, enchentes, veículos arrastados pelas águas, fios de energia elétrica
arrastando como cobra pelas calçadas e ruas – a empolgação era tão grande que todos
estavam mais preocupados é com a fantasia que iam vestir do que com o tempo que
fazia lá fora. Que trash!
Chegado o grande momento, nenhum dos amigos de Hernandes imaginava o que
estava para acontecer. De carro, seguiram para a chácara já entornando o caldo durante
o percurso e, lá chegando, amaram “de paixão” o que viram: um casarão completamente
em ruínas, abandonado, às traças, empoeirado, cheio de teias de aranha, ideal para
aquele que seria um memorável e horripilante acontecimento. Mal sabiam que
Hernandes havia preparado, literalmente, a cama de cada um deles, já que haviam
combinado dormir no local para que, no dia seguinte, curtissem, passeassem à vontade e
conhecessem a região. Se é que realmente haveria o dia seguinte...
O som pegando pesado, comandado pelo próprio Hernandes; bebida vai, bebida
vem e eles nem aí com o fato de que não tinha mais ninguém naquela festa além dos
Olhares na Noite
76
cinco: Hernandes, Hidelbrando, Mariana, André e Mari. Talvez estivessem pensando
que foi por causa do temporal.
Passaram duas, três da manhã e a birinaite ainda continuava rolando solta.
Rolando também estavam os dois casais amigos de Hernandes pelos cantos escuros da
casa. A libido exaltada, os beijos gosmentos e exagerados, os corpos em brasa se
entrelaçando, os dois jovens penetrando pelas teias adentro das aranhas das suas
amadas. Cada movimento era meticulosamente observado pelo sóbrio e rancoroso e
ardiloso Hernandes, que pensava com seus botões: – Vocês me pagam. Me aguardem.
De repente, o vai-e-vem das biritas cessou simultaneamente ao som. Batendo
palmas tresloucadamente, Hernandes grita:
- Galera, galera, é melhor a gente ir dormir. Amanhã, digo, hoje o dia promete.
Vamos lá para os nossos quartos.
Eufórico e inebriado e tropeçando nos próprios pés, Hidelbrando grita:
- Uhhhhúúúú!!! - E completa: o último que cair na cama faz o café da manhã;
puxando rapidamente Mariana pelo braço. Para não ficar atrás, André faz o mesmo com
Mari. E lá se foram eles – correndo e cambaleando e sorrindo e falando asneiras – para
aquele que seria o sono eterno, o sono de morte, pois Hernandes, vingativamente,
trocara as tradicionais camas confortáveis e macias pelas tenebrosas de faquir, onde
seus mais de quatro mil pregos longos e pontiagudos, cobertos por um fino lençol
branco, cuidaram de cada um deles, perfurando o coração de Hidelbrando, o pulmão de
Mariana, o estômago de André, os olhos de Mari.
E o sábado despertou tétrico, lacrimejando sangue, velado por Hernandes que,
rodeado de coroas de flores e homenagens, disfarçou muito bem a sua alegre angústia
pela perda dos grandes e queridos e bons amigos. Entre aspas, uma verdadeira e
deliciosa dor de prazer pelo que fez.
Olhares na Noite
77
Ivy RAFAEL FARIAS CABRAL
A tempestade havia cessado, porém uma chuva fina caía sem parar sobre o gorro
de sua blusa. Já passava das duas da madrugada, e a essa altura já havia se arrependido
de ter vindo. Não gostava de sair à noite, mas seus impulsos adolescentes a fizeram
ceder ao convite para desbravar a noite, e partir rumo ao desconhecido.
Havia sido um show de Rock. Muitas pessoas aglomeradas e propensas a
conflitos. E a prevenção contra eventuais confusões foi a chave do maior problema.
Ivy queria apenas chegar logo em casa. Estava em um grupo com mais quatro
pessoas. Estava de cabeça baixa. Agarrada a sua amiga, mal podia ver o caminho que
seguia. Andavam rápido em meio a um beco estreito.
Houve um esbarrão.
- Foi mal! – Ivy se desculpou com a voz rouca e se virou imediatamente com a
intenção de continuar a seguir seu caminho.
- Não foi mal. Foi péssimo! – disse um rapaz com cabelo loiro e a camisa
molhada aberta. Tinha um comparsa de cada lado.
- Ela tá com agente! – interveio Santiago, amigo do grupo de Ivy.
- Agora a coisa vai ficar ruim para você então! – provocou o rapaz em quem Ivy
tinha esbarrado. E mais encrenqueiros de seu grupo surgiram às suas costas. Somavam
sete agora, e fechavam o cerco em torno de Santiago, Ivy e seu grupo.
- Calma gente! Não aconteceu nada – Mike, o outro amigo de Ivy, tentou
acalmá-los.
- Mas vai acontecer! – completou o encrenqueiro que sacou um punhal, e
avançou sobre Santiago. Tentou apunhalá-lo no peito, mas Santiago se esquivou,
protegendo-se com os braços, que acabaram feridos.
- Pare com isso! – Ivy gritou, mas houve outra investida contra Santiago. E mais
uma. Seu corpo já estava caído no chão e não apresentava sinais de resistência. Tinha os
braços esfacelados e um corte profundo no pescoço. Seu agressor estava sobre ele,
empunhando o punhal manchado de sangue, na posição iminente de desferir um último
golpe em seu peito.
Leve isso para se proteger.
Olhares na Noite
78
Num lapso, as palavras de seu irmão vieram à sua mente, e num segundo, sem
mesmo pensar em meio ao pânico e ódio, Ivy sacou a faca com lamina retrátil que seu
irmão havia lhe dito para levar, e desferiu três golpes nas costas do agressor de
Santiago. Com certeza iria continuar, mas uma dor terrível irrompeu repentinamente em
seu abdômen. Olhou para a causa e viu um punhal cravado na lateral de seu corpo.
- Há, há... – ouviu-se um sorriso fraco e uma queda.
Ivy mirou na direção da voz.
- Nos encontramos no inferno – disse ele com a cabeça semi-virada e um sorriso
doentio na face.
- Apesar das apunhaladas que tinha levado, o assassino de Santiago ainda teve
tempo de ferir Ivy antes de cair morto.
A visão de Ivy se escureceu. No último instante pôde ouvir gritos aterrorizados,
e ao fundo uma sirene de polícia, em meio à dor insuportável e quente que lhe
consumia. Logo a dor parou e o silencio absoluto invadiu sua alma. Sentiu uma paz
intensa. Não estava feliz nem triste, apenas sentia-se caminhando num solo macio. Não
sabia o destino, mas isso não importava. Sua mente estava limpa e tudo que havia
ocorrido não passava de um fragmento de lembrança que estava se desfazendo em sua
mente.
DOR!
Inesperadamente Ivy sentiu uma nova forma de dor, e todas as lembranças
terríveis que antecederam sua morte ressurgiram nítidas e perturbadoras em sua mente.
Era uma fusão de dor física e mental, e parecia que nunca teria fim. Era o tipo de
sofrimento do qual não era possível escapar. Não tinha a possibilidade de desmaiar ou
morrer.
Sentia que sua alma estava queimando e não tinha voz para gritar. Cada segundo
se estendia infinitamente e pareciam durar séculos. Possivelmente se passaram anos,
décadas, talvez milênios. Porém uma dor diferente surgiu. Ivy sentiu um choque
atravessando seu coração.
Seus pensamentos caóticos se fixaram no borrão de imagens que se deslocava
rapidamente diante de sua retina. Sua dor eterna cessou totalmente e sobrou apenas o
choque intermitente em seu peito. A velocidade das imagens diminuía pouco a pouco,
mas a nitidez era pouca. Veio a escuridão seguida de um clarão. Sua visão embaçada se
recuperou e viu uma garota caída no chão molhado, cercada de três homens de branco.
O corpo dela saltou e o coração de Ivy disparou. O coração de Ivy bateu. Seus olhos se
Olhares na Noite
79
abriram e percebeu que a garota caída no chão que acabara de ver era ela mesma. Olhou
para as mãos do paramédico e viu o desfibrilador que a havia devolvido a vida e
principalmente lhe livrado a alma do tormento eterno.
A dor em seu abdômen era muito mais leve que a que sentira a pouco, mas havia
mais dois focos doloridos: seu pulso direito e um ponto em suas costas, logo abaixo da
nuca. Seu corpo mortal não suportou e Ivy desmaiou.
Quando recuperou a consciência estava no quarto de um hospital. Levantou-se
imediatamente e conteve um grito. A dor no tronco tinha se intensificando com o
movimento brusco, mas outra dor que lhe chamou a atenção, seu pulso e uma região
abaixo de sua nuca estavam queimando. Girou o braço e mirou imediatamente o pulso
direito e viu uma queimadura que formava um símbolo elíptico familiar. Tentou ligar a
luminária ao lado, mas a mesma não funcionou. Na mesa lateral também havia uma vela
e uma caixa de fósforos. Ivy acendeu a vela e correu desabaladamente até o banheiro e,
de costas para o espelho, contemplou o símbolo desenhado a fogo abaixo de sua nuca.
Seu coração disparou e uma lágrima involuntária rolou por sua face. Era outro símbolo
familiar, mas não sabia o significado. Teve certeza de que havia se esquecido de algo
em sua estadia no “outro lado”.
Voltou para a cama novamente, com a intenção de apagar para tentar escapar da
realidade que estava vivendo, mas não teve sucesso e seus olhos se mantiveram abertos
madruga adentro. As sombras produzidas pela chama instável da vela lentamente se
contorciam mais e mais, descrevendo trajetórias caóticas cada vez mais disformes de
suas matrizes.
Ivy não se atentou a isso até que uma forma humana quase invisível se lançou
sobre ela para sufocá-la. Conforme o ar deixava de alimentar seus pulmões e a morte se
tornava mais próxima, a figura se tornava mais visível. Logo Ivy pode reconhecer a
identidade de seu iminente assassino. E a voz dele também se fez audível.
- Vou ter que te matar de novo! – disse ele com os dedos envoltos no pescoço de
dela.
Era o assassino de Santiago, o rapaz que Ivy havia golpeado e a tinha
apunhalado.
- Seu desgraçado! – Ivy gritou e reuniu sua ultimas forças para pegar a luminária
que estava ao lado de sua cama, e golpear seu agressor. Porém o golpe foi inútil e a
luminária atravessou o corpo dele.
Olhares na Noite
80
- Você me matou bem da outra vez! – vociferou colericamente ele. – Estou bem
morto e logo você também estará!
O coração de Ivy estava batendo bem fraco no visor do monitor cardíaco. Sentiu
que dessa vez seria uma viagem sem volta. Num último ato de desespero, golpeou as
pernas de apoio do espírito, rolou por cima dele junto com o lençol, e por fim lançou a
vela acesa nele.
Ivy caiu ao lado da cama que logo estava tomada pelas labaredas. Tentava voltar
a respirar quando um braço flamejante tentou puxá-la para o inferno. Correu para o mais
longe que pôde da cama, e viu a chama com formas humanas do assassino se erguer
com dificuldades.
- Agora tenho pouco tempo... – disse ele. – Mas você não pode escapar!
Ivy olhou na direção da porta do quarto, e o pânico tomou conta de sua alma. A
porta estava inacessível devido ao avanço do incêndio. O fantasma flamejante estava
caminhando de braços abertos em sua direção e não havia para onde fugir. Ivy não tinha
saída. Estava encostada na janela de seu quarto, cercada pelas chamas e com um espírito
com sede de vingança a menos de dois metros de distância. A essa altura já sentia o
calor da morte e a fagulha da tormenta eterna. Ivy fechou os olhos com força.
É o fim...
O monstro em chamas deu sua investida final contra Ivy, mas algo surgiu e
atravessou o corpo dela, chocando com o assassino, fazendo-o cair para trás.
O espectro se levantou rapidamente e olhou para Ivy.
- Vamos! Saia daqui! – disse ele.
Ivy titubeou um segundo, mas logo o reconheceu.
- Santiago?! É você?
- Já te disse! – disse ele com a voz firme. – Saia daqui ou seu sofrimento será
pior do que antes!
- É impossível! – Ivy disse com a voz desesperada rasgando a garganta. – A
porta está broqueada pelo fogo!
- Use a janela! – sugeriu Santiago.
Ivy se virou e viu a rua iluminada pelo menos 30 metros abaixo. Seu coração
disparou e antes de poder dizer algo, ouviu um grito terrível. Virou-se rapidamente e viu
que Santiago estava envolto em chamas. Com um olhar mais cuidadoso, era possível
identificar que o espírito assassino o havia agarrado.
- Santiago! – gritou ela se aproximando.
Olhares na Noite
81
- Eu estou bem! Ele não tem muito tempo mais. Fuja rápido! – disse Santiago
com dificuldade.
- É muito alto!
- Tente ir pelo parapeito até o quarto ao lado, se bem que agora você pode
flutu... – antes de poder terminar, Santiago foi puxado para trás e as labaredas o
consumiram.
- Meu Deus! – Gritou Ivy com a voz trêmula de pavor.
As labaredas se aproximavam pavorosamente e Ivy podia pressentir que a
qualquer momento algo a puxaria para o meio daquelas chamas infernais.
Virou-se rapidamente e, sem pensar, desferiu um golpe desajeitado com o
cotovelo na janela. Seu braço atravessou a vidraça e contraiu um corte profundo. Ivy
segurou um grito de dor e terminou de quebrar o vidro.
Olhou apavorada para o estreito parapeito, mas não hesitou e estava fora do
quarto quando as chamas o tomaram e saltaram vorazes pela janela. Ivy caminhou
alguns metros encostava, mas se deparou com uma viga intransponível. Não podia
continuar nem voltar ao quarto. Permaneceu encostada na parede externa do hospital
por alguns minutos, até que a fumaça e o cansaço a entorpeceram.
Uma leve brisa foi suficiente para lhe tirar o equilíbrio.
É o fim?
Olhares na Noite
82
Coração roubado MARÍLIA FERNANDES
Ela estava com os olhos vendados por uma faixa preta. Entrara no carro de
Victor, seu namorado, após ele ter dito que tinha uma surpresa para ela. Evelin não fazia
ideia do que poderia ser. Estavam namorando havia poucas semanas, logo depois de ele
ter se mudado para a cidade dela. Desde então, os dois adolescentes se apaixonaram
perdidamente, embora ela ainda comedisse as suas emoções. Mas Victor não media
esforços para conquistar de vez o coração da garota, agindo sempre de forma amável e
gentil para com ela.
O carro parou. Victor abriu a porta para Evelin e a guiou até o local planejado.
Desamarrou a faixa, com cuidado para não puxar nenhum fio dos cabelos loiros de sua
amada, e se deleitou com o olhar extasiado dela para a cena bem à frente. Victor
escolhera bem. Estavam no meio da floresta, que no outono ficava parcialmente nua
para ceder suas folhas secas e amareladas ao chão, formando um tapete dourado para
combinar com os raios solares do início da tarde. Um pequeno riacho de superfície
espelhada corria bem ao lado de onde uma toalha de piquenique estava estendida.
- Nossa, eu não sei nem o que dizer! É um lugar tão lindo, Victor! - Ela esboçou
um sorriso tímido, mas sincero.
- Diga que me ama, que me dá seu coração... – ele disse, mantendo profundo
contato visual, enquanto tinha a mão de Evelin entre as suas.
Ela se perdia naqueles olhos verdes, que às vezes eram escondidos parcialmente
pelos cabelos negros e rebeldes. Com cuidado, foi se aproximando de Victor. Passou as
mãos pelo tórax dele e pousou-as na nuca. Sorrindo, disse a ele o que nunca havia dito
antes:
- Eu te amo.
Satisfeito, ele envolveu-a em seus braços e expressou toda a sua paixão em um
beijo demorado. Ele a tinha agora. Talvez não exatamente o que queria dela, além do
seu amor, mas o que conquistara bastava por enquanto; e seria útil ter a sua confiança.
Sentaram sobre a toalha, abraçados, mirando a floresta deserta. Estavam a
poucos metros da trilha, apesar de Evelin nunca ter estado ali, e aquela informação de
Olhares na Noite
83
pouco lhe valia em território desconhecido. Porém, sentia-se segura. Estava nos braços
de Victor e ela o amava, confiando nele plenamente.
Com o passar do tempo, após terem comido alguns doces que ele havia trazido,
notaram que já estava na hora de voltarem. Sob a pouca luz proporcionada pelo
crepúsculo, as árvores desfolhadas se tornavam ameaçadoras, bem como o pequeno
riacho que estava agora sem brilho pela falta de luz e adquirira uma superfície
completamente negra.
- Victor, eu quero ir pra casa. Agora – a voz dela estava um pouco embargada e
tinha uma nota superficial de pânico.
Ela se levantou bruscamente, olhando ao redor, procurando pela trilha que estava
absurdamente invisível por causa do súbito escuro. Victor também se levantou e
segurou os dois braços dela, dizendo com firmeza:
- Calma Eve. Eu estou com você, certo? Vamos sair juntos daqui, e bem rápido.
Ele tentava acalmá-la, embora não tivesse tanta certeza sobre as próprias
palavras. Seus planos ainda não haviam terminado.
A noite caíra, contudo não constataram isso pelo bonito céu estrelado, mas sim
pela total escuridão da floresta, essa amenizada apenas quando a lua saía por trás das
nuvens negras e espessas.
Ainda estavam parados, decidindo qual direção deveriam tomar. Evelin sentia-se
aborrecida por ter vindo vendada até ali. Enquanto ela olhava para os lados, Victor
empurrou a toalha para dentro de um buraco, - feito pelas raízes superficiais e retorcidas
de uma árvore velha - escondendo-a naquele local. Evelin se virou na mesma hora em
que ele estava agachado e já ia perguntar o que Victor estava fazendo, mas um farfalhar
por entre os arbustos da outra margem do riacho chamou a sua atenção.
- Querido, vamos sair daqui! Rápido, por favor...
- Deve ter sido apenas um animal, não tenha medo. Venha, por aqui.
Saíram daquela clareira para adentrar a densa vegetação de árvores escuras e de
aspecto tenebroso sob a luz da lua. Enquanto caminhavam, as folhas secas
proporcionavam os únicos ruídos naquele ambiente absurdamente silencioso e quieto,
além da respiração ofegante de Evelin. Victor estava calmo, mas em seu desespero em
voltar para casa, ela não havia notado isso. Caminhava à frente dele, segurando a sua
mão. Ele se divertia internamente com o falho senso direcional dela. Estavam se
distanciando da trilha, mas isso não era problema para ele.
Olhares na Noite
84
Agora, Evelin deixava escapar algumas lágrimas. Já imaginava a mãe dando
queixa do desaparecimento de sua filha de 16 anos à polícia. Porém Victor, ah, sua vida
era fácil demais. Morava sozinho e, como era maior de idade, não devia satisfação a
ninguém. Devia ser por isso que ele não parecia tão assustado, não estava causando
preocupações. Mas que surpresa idiota, pensava ela. Que tipo de pessoa planejava uma
tarde romântica com a sua namorada que termina com os dois perdidos no meio do
mato? Uma pessoa louca, ela concluiu, enquanto desviava do galho de uma árvore.
Alguém com más intenções, surgiu em sua mente.
Então ela parou, com os olhos arregalados e tomada pelo pânico. Victor também
havia parado. Ela se virou lentamente, ainda analisando os fatos. Ele a encarava,
esperando que ela falasse primeiro, observando suas ações e esboçando um sorriso
tranquilo.
- Não estamos perdidos – ela disse por fim, fitando o chão. Suas mãos estavam
trêmulas.
- Não, não estamos – ele disse calmamente o que Evelin não queria ouvir. - Você
está.
Recuando, horrorizada, ela implorou que ele não a machucasse. Aparentemente,
Victor não portava arma alguma. Então, Evelin decidiu que ele deveria ser o que iria
supostamente machucá-la. Como se estivesse lendo os pensamentos dela, Victor disse:
- Não se preocupe, meu bem. Não é isso o que eu quero - sua voz procurava
tranquilizá-la.
- Por que me trouxe até aqui? O que você quer de mim?
Os olhos dela estavam úmidos, tornando a visão embaçada. Ainda recuava,
ofegante, enquanto ele lentamente se aproximava.
- Só quero o seu coração, Evelin. O seu coração.
Ela parou e então caminhou na direção dele, socando o tórax de Victor
incessantemente, enquanto dizia:
- Quer dizer então, seu idiota, que você me traz até aqui por causa disso? Você
tem noção do susto que me deu? Eu estava pensando o pior de você!
Ela desabou nos braços dele, chorando.
- E estava certa.
Dito isso, Evelin se afastou dele rapidamente, chocada. Porém, terminou
tropeçando enquanto Victor corria atrás dela. Caída e desprovida de um meio de se
defender, gritou enquanto ele a prendia, segurando os pulsos finos dela.
Olhares na Noite
85
- O meu coração nunca pertencerá a você! Eu não o amo mais, não depois de
tudo isso! Tire as suas mãos de cima de mim! – ela dizia, juntando todo o ódio que
conseguira reunir.
Tirando um punhal que estava escondido em sua bota, Victor pressionou a ponta
levemente contra o peito de Evelin, que arquejava.
- Você não entende, querida. Ele vai ser meu de todo jeito. É por isso que
estamos aqui.
- Não, eu não te amo mais! Não vou dá-lo a você!
Ela não entendia o que ele queria dizer, sendo tão insistente. Só queria ir para
casa, mas não via como escapar. De repente, uma dor lancinante a consumiu, não
cessando após os seus gritos de agonia.
- Me dá o seu coração.
Evelin nem tentou negar, sua visão ficou turva e ela ficou desacordada, pois
sangrava muito. Victor havia cravado o punhal em seu peito.
Mas aquele ferimento era só o começo. Com destreza, ele retirou o coração dela
de dentro da caixa torácica. Depois, olhou a última expressão de sua amada. Os olhos de
Evelin estavam vidrados, fixando o nada. Jazendo sob a luz da lua, com os cabelos
loiros esparramados pelo chão, ela fora mais uma vítima de Victor. Ele exibia,
triunfante, o coração dela, este banhado por sangue fresco.
- Veja só, querida – ele disse sorrindo. – Você relutou tanto que eu tive que
insistir.
Victor se levantou e lançou um último olhar à Evelin, segurando o coração dela
em suas mãos ensanguentadas. Depois deu as costas para o corpo de Evelin e saiu de
encontro à escuridão.
Olhares na Noite
86
Gritos na escuridão ANGELO TIAGO
Lenina olhava diariamente pela janela numa busca incessante de sair daquele
lugar. Ao fitar o seu olhar melancólico no belo horizonte que desenhava a sua frente, o
seu pensamento fluía em busca de uma maneira rápida e eficiente de fugir. Afinal de
contas, já havia se passado mais de cinquenta anos presa naquele monastério, uma vida
inteira, desde a sua infância, se dedicado a algo que não mais a atraía. Nesse atual
estágio já se encontrava muito fatigada por obedecer por tantos anos às regras da sua
ordem religiosa. Sua história havia se transformado numa rotina repleta de tédio, falta
de prazer, sabor e encanto pela vida. Sentia que a sua vida estava chegando ao fim, e
para ela seria injusto não descobrir as coisas lindas e ocultas que havia no mundo afora.
Numa manhã, estando no segundo andar, e olhando para fora daqueles muros
através de uma grande janela empoeirada, eis que num segundo enxergou aquela que
seria uma possível solução. Porque não havia pensado nisso? Há tempos não durmo
procurando uma forma de escapar desse lugar! – pensou intimamente. Lenina observou
que naquele instante, um velho homem chamado Maricato estava se retirando do
monastério empurrando uma carroça com dois caixões. Ele trabalhava continuamente há
décadas como carpinteiro e, além de fabricar os caixões aonde eram colocadas as
pessoas que morriam, também era o responsável por enterrá-las longe do monastério,
pois o solo daquele local era considerado santo demais para receber mortos.
Devido à sua avançada idade e sem aquele vigor característico da juventude, ele
fazia uma força brutal para empurrar o pequeno carro que percorria vagarosamente um
terreno extremamente pedregoso. Com os solavancos que eram praticamente
inevitáveis, um dos caixões ficou entreaberto expondo o que parecia um braço de uma
pessoa, sendo colocado rapidamente pelo ancião ao perceber o inconveniente. Ah! De
fato são corpos que ele está levando! Ao certo alguém dentro do monastério veio a
falecer, concluiu Lenina.
Ela ficou observando e acompanhando de longe toda a trajetória de Maricato,
que nesse momento estava com o auxílio de uma pá cavando duas covas rasas para
sepultar logo em seguida os corpos. Com muita dificuldade ele conseguiu, após longos
Olhares na Noite
87
minutos, trazer os caixões para dentro das covas e cobrir com uma fina camada de terra,
pois a sua força já não permitia realizar os sepultamentos como outrora.
Lenina estava ansiosa para falar com Maricato e ao cair da noite dirigiu-se
sorrateiramente à sala dele, encontrando um ambiente escuro, gélido, com dezenas de
caixões pendurados e um cheiro estranho, vindo do apodrecimento de corpos que
estavam aguardando há dias para serem enterrados. Após conversar por alguns minutos
e expor o seu plano, ela já não aguentando mais aquele cheiro acre, deixou a sala rumo
ao seu aposento, já sentindo o aroma da liberdade e o prazer de tão logo poder exercer
livremente a sua vontade.
O plano consistia numa fuga através do auxílio do velho homem. Numa certa
noite ela iria até a sala dele e entraria num caixão, ficando lá até o amanhecer, horário
em que Maricato levá-la-ia para ser sepultada. No mesmo dia, mas no início da noite,
ele sairia do monastério com uma desculpa de recolher os animais que estavam
pastando e iria até a cova onde estava Lenina, desenterrando-a.
Passado algumas semanas, chegou o grande dia. Convicta do sucesso que seria o
seu plano, seguiu à risca o acordo. Queria conversar mais uma vez com o velho para
repassar os detalhes, mas não o encontrou. Por estar com medo de alguém descobrir a
sua aproximação com ele, também não o procurou entre os funcionários do monastério.
Sentiu medo para descer até aquele porão escuro e escolher um caixão para se esconder,
mas assim o fez. O cheiro de podre naquele local era horrível e logo ela procurou um
caixão, numa tentativa de escapar daquele ar extremamente pesado e nauseabundo,
agradecendo a si mesma por ter encontrado um vazio. Mas o seu alívio durou pouco,
pois transcorridos alguns minutos, ela escutou passos e vozes vindos da entrada do
porão, e seguindo em sua direção. A tampa do caixão foi aberta e naquela escuridão
total jogaram mais um corpo dentro dele e, se não bastasse tal inconveniente, ainda o
pregaram com diversos pregos. Era uma sensação horrível, o corpo gelado e um pouco
enrijecido estava bem encostado ao seu, num abraço que ela gostaria de nunca ter
experimentado. Lenina sentiu o suor frio que lhe cobria o rosto e encharcava a sua
camiseta. Procurou controlar os nervos. Pelo menos alguém sabia que ela estava ali e
tão logo seria libertada daquele infortúnio. O ar imundo do local estava cada vez mais
pesado, e ela começou a amaldiçoar a demora de ser levada dali.
Lenina respirou profundamente. Tossiu um pouco e lembrou-se de que deveria
manter a calma, não gritar, não respirar muito. Aquelas palavras martelavam em sua
mente. Manter a calma... Não entrar em pânico... Ainda assim, conseguiu cochilar.
Olhares na Noite
88
Quando acordou, não tinha noção de quanto tempo se passara. Estava num local
abafado e mergulhado numa escuridão total. Lembrou-se do pequeno isqueiro que
trouxera no bolso para “quebrar” a escuridão já esperada e aguardar a chegada do velho.
Mal conseguia mover as pernas. Deslizou os dedos para o lado tentando levar a
mão ao bolso, mas o corpo que estava junto ao seu a impedia. Sentiu os braços contidos
por ele que nesse momento já estava duro. De ambos os lados, estava cercada em um
cubículo ínfimo. Com muita dificuldade, conseguiu espremer-se e apanhou o isqueiro.
Ao acendê-lo ficou arrepiada e aterrorizada... O corpo que estava no caixão era o de
Maricato! Agora, quem iria desenterrá-la? Provavelmente, enterraram-na em algum
terreno baldio, ou outra área abandonada bem longe do monastério. Como seria
encontrada?
Sua mente vagava perdida, indo de pavor a pavor, numa velocidade cada vez
maior. Seus olhos faziam uma varredura enlouquecida em toda a área alcançada pela
pequena luz da chama do isqueiro. Procurava uma fresta, uma falha na madeira, algo
que pudesse possibilitar-lhe uma fuga. Um grande desespero tomou conta do seu corpo
e começou a sentir-se sufocada, como se o ar do ambiente restrito em que se encontrava
estivesse sendo consumindo por sua respiração angustiada, sem que alguma lufada de
vento viesse renová-lo.
Em pânico, tentou levantar a tampa do caixão. Teve a sensação de movê-la um
milímetro, porém sentiu que os pregos fixados no esquife a impediam de abri-lo.
Começou a bater na tampa com todas as suas forças, mas nada. Tudo estava bem
fechado e não havia condição alguma de conseguir dar fim àquela prisão. Os seus dedos
estavam banhados de sangue e doíam insuportavelmente. Sentia as unhas soltando-se
deles pela luta e pela força que fazia contra a madeira nua. Chorava em desespero.
Numa última esperança, começou a gritar com todo o resto de forças que ainda tinha...
Sentiu que a morte estava bem próxima.
Olhares na Noite
89
Highway to Hell TAILINE HIJAZ
Não era prostituta por obrigação, mas sim por gosto. Adorava aquilo! Vivendo
no limite, a cada noite uma surpresa diferente! Excitante!
Era ali, nas trevas da cidade de Criciúma – seu verdadeiro lar – que se realizava.
Esquecia da vidinha medíocre e monótona que levava como professora de um grupo
escolar no subúrbio e transformava-se na “Fênix”. Pode-se dizer que esse era o seu
“nome de guerra”.
Chovia. A cidade até parecia estar sendo lavada de seus pecados. Até parecia. A
chuva caía pelos telhados distantes como se fossem lágrimas vindas do céu. Mas não.
Não eram lágrimas. Deus não perderia tempo chorando por ninguém. “Muito menos por
mim”
A noite estava escura e sem estrelas. Uma típica noite criciumense. Casa do
Rock apinhada de gente com os hormônios gritantes; Festa das Etnias acontecendo,
como em todo mês de setembro; meretrizes na labuta da vida, pelas esquinas e becos
sinistros; tiozinhos e figurões também pelas esquinas e becos sinistros. Mera
coincidência!
Fênix também estava lá, no seu ponto de sempre, embaixo da marquise de uma
loja de eletrodomésticos que ficava na esquina da Centenário.
Parou um carro. Corolla vermelho.
O motorista, jovem e risonho, com as bochechas rosadas, abriu o vidro
automático e olhou para ela, analisando-a. Parecia gostar do que via.
- Entra, princesa! Vem dar uma volta comigo, gata!
Ela entrou sorrindo, deixando escapar um tom irônico não percebido pelo rapaz.
“Garotinho ingênuo”
Isso já estava se tornando apenas mais uma rotina pra ela. Sempre a mesma
coisa. Odiava rotina!
Tocava no CD Player do carro sua música favorita: “Highway To Hell”, da
banda de rock australiana AC/DC.
-Vamos pra onde, gatinha?
- Não me chame assim – sussurrou Fênix.
Olhares na Noite
90
- Uau! Adorei! Sabe, amo garotas ariscas, que se fazem de difíceis.
Ela sabia disso, sim. Definitivamente, os homens eram todos iguais. “Idiotas.
Completos e perfeitos idiotas”
- Me chame de Fênix. Esse é meu nome – sibilou no ouvido do rapaz.
- Nossa! Isso está ficando bom! Quer beber? – disse oferecendo um frasco de um
uísque nacional ordinário.
Ela engoliu todo o conteúdo de uma vez só, como se estivesse sem beber
qualquer coisa há dias.
-Vai com calma, garota! Digo... Fêênix – riu-se o tolo motorista, admirando a
beleza angelical e sinistra da garota.
A música a seduzia, a inspirava. Despertava os seus mais perigosos e tentadores
instintos.
“Seria agora mesmo”
- PARE!
- O que foi? Tá maluca?! – disse o rapaz parando o carro bruscamente.
- Me dá um beijo! – ordenou a garota, puxando a cabeça do imbecil.
Enquanto se beijavam ardentemente, ela pegou na bolsa sua adaga preferida –
uma chinesa, muito rara, só para ocasiões especiais – e rasgou a garganta do novo otário
do dia. O sangue esguichava como suco de tomate. Ela achava engraçado.
A pobre e inocente vítima jazia sentada no banco, com a cabeça meio caída, os
olhos esbugalhados pelo susto, refletindo terror e medo, e a boca aberta, jorrando
sangue.
Fênix saiu do carro. Ainda tocava a sua música. Olhou ao redor. O lugar era um
beco deserto. Sujo e escuro.
“Perfeito”
Tirou um pequeno recipiente da bolsa. Gasolina. Espalhou delicadamente sobre
o corpo inerte do infeliz. Pegou a caixa de fósforos e ateou fogo no mesmo, soprando
um beijo com a palma da mão.
“Fênix faz mais uma vítima. Durma em paz, rapazinho”
Entrou na penumbra tranquilamente. Já curara sua insônia. Poderia voltar para
casa. Sabia que pela manhã a Fênix não existiria mais, retornando a ser a doce e
recatada professorinha Rachel. Uma flor de menina, incapaz de ferir um inseto!
“Oh, sim!”
Olhares na Noite
91
Foi andando a pé, entre os muros pixados e os olhares fulminantes dos ratos
cantarolando, distraída “(...) Don’t stop me! I'm on the highway to hell! I'm on the
highway to hell! (...)”.
Olhares na Noite
92
Antúrio: sonho ou pesadelo? POLIANE ANDRADE
Chovia naquela noite de sábado de 1968 quando chegamos a Antúrio. O frio era
terrível, a cidade vazia, poucas luzes acesas e nós cinco ali, somente com um endereço
em busca de nossa nova moradia. Folhas pelo chão apresentavam a estação.
Cidadezinha que recebera tal nome em virtude da plantação ali existente.
Sou engenheiro agrônomo e me mudei com minha esposa Ana, meus filhos,
Mary e Léo e meu parceiro, também engenheiro, Pedro, meu amigo do tempo da
faculdade. Estávamos ali, atraídos pela alta quantia em dinheiro oferecida por um rico
fazendeiro, proprietário da plantação da flor de Antúrio.
Após o almoço, eu e Pedro fomos falar com o senhor Licurgo, o fazendeiro que
estava nos esperando. Conversamos um pouco sobre assuntos banais e, por fim, falou da
plantação. Disse que herdara de seu pai há muitos anos, e se nós conseguíssemos
amenizar o problema das flores que não estavam vistosas, receberíamos uma quantia de
cem mil reais.
Iniciamos as pesquisas na área plantada, mas não encontrávamos nada. O povo
contava que todos os engenheiros que trabalhavam na plantação, mais dias, menos dias,
apareciam mortos ali com suas famílias, sem nenhuma explicação. Não dei ouvidos e os
dias se passaram.
Não querendo acreditar, passei a ver vultos em casa, coisas que caíam do nada,
passos pelo chão, o arrastar de correntes. Pensei estar ficando louco, mas eu não podia ir
embora e perder meus cinquenta mil reais. O fato intrigante era que Pedro, Ana e as
crianças também estavam vendo aquilo. Ficaríamos ali só até descobrir o problema da
plantação, depois voltaríamos para Belo Horizonte. Confesso que tinha medo, mas o
sonho e o dinheiro falavam mais alto.
Certa vez, estávamos dormindo e de repente os meninos chegaram correndo, me
arrepio só de lembrar! Uma luz cintilante os perseguia em redemoinhos, fazia círculos
atrás deles. Uma coisa impressionante e assustadora. Ela se rebatia nas paredes, soltava
gemidos horripilantes. Amontoamo-nos no canto da cama e aquilo pulava, retorcia tipo
que nos expulsando dali. Junto com ela tinham sombras desconhecidas. Pareciam
Olhares na Noite
93
pessoas agonizantes. Algo muito diferente de tudo o que até naquele dia havia ouvido
alguém contar.
Após quebrar o quarto todo, aquela terrível luz se foi pela porta e tomou rumo
ignorado pelos corredores da assombrosa casa. Levou consigo todas aquelas sombras
estranhas que adotavam formato de velhos, adultos, jovens, crianças e até mesmo de
bebês, que flutuavam em meio a tanta dor. O que mais me assustou foi quando as almas
se viraram e em suas costas existia um oco cheio de velas acesas que às preenchiam,
semelhantes às mais ardentes profundezas do inferno. Saía uma fumaça com péssimo
odor de enxofre. Fiquei pasmo. Algo muito tenebroso e nostálgico.
Ficamos ali parados até o amanhecer. Pedi para não comentarem com ninguém.
Contei para Pedro o que havia se passado, e então fomos falar com o senhor Licurgo
sobre abandonarmos o trabalho, mas ele dobrou nossa proposta para 200 mil reais. Não
pudemos resistir. Aceitamos, mas sabíamos que não podíamos suportar. Relevamos, e
todas as noites aquilo sempre aparecia e cada vez com mais brutalidade. Até que um dia
aquela coisa deixou um escrito nas costas de Léo: “Vocês serão os próximos”.
Isso foi o basta. Minha família corria perigo. Foi então que, junto com Pedro, fui
falar com um velho padre, Arlindo, e descobrimos que o pai do senhor Licurgo fizera
um pacto com o intuito de enriquecer, e uma poderosa maldição foi lançada ali. A
plantação seria a maior do país e ele o maior produtor, exportando para o mundo todo,
mas para que isso acontecesse, para que seus antúrios fossem os mais bonitos e
diferentes dos outros, pessoas teriam que pagar por isso, ou seja, a alma de quem
soubesse cuidar de antúrio teria que ficar naquele lugar protegendo a plantação. E
somente as descendências do senhor Licurgo poderiam acabar com isso, e com o fim da
maldição, a pobreza reinaria sobre aquela família.
Fomos correndo até a fazenda falar com o fazendeiro, mas ele não nos deu
ouvidos. O padre várias vezes já tentara falar com ele, mas nada adiantava, até que, com
muito custo, ele cedeu e nos confirmou a história. Disse que não poderia deixar de
cumprir o pedido de seu pai em leito de morte, que pediu para ele passar aquilo para
suas gerações, e que ninguém poderia saber o mistério. E naquele momento, em meio às
paredes daquele arcaico casarão da fazenda, estavam quatro pessoas que sabiam
daquilo. Eu, o padre Arlindo, Pedro e o senhor Licurgo.
O fazendeiro então disse que as pessoas que soubessem da maldição, exceto ele
e o padre, teriam que guardar segredo, caso contrário, não teriam escapatória. Onde quer
Olhares na Noite
94
que eles estivessem, seriam perseguidos. O padre estava protegido, pois morava na
igreja e andava sempre com acessórios que o protegiam.
Fui para casa assustado, com o dinheiro dado por senhor Licurgo, peguei minha
família e voltamos para BH. Eu sabia que o dinheiro era um sonho, mas minha família
significava mais para mim. Mesmo se o senhor Licurgo não tivesse me dado a quantia
naquele dia, eu iria embora.
Há quarenta anos, trabalho em minha própria fazenda que comprei com os cem
mil reais. No início era um sítio e hoje, após tempos de trabalho, se tornou uma grande
fazenda. Alguns anos depois fiquei sabendo que Pedro morrera juntamente com mais
cinco amigos em Juiz de Fora, após consumir muita bebida e contar sobre Antúrio a
eles, mesmo com o aviso de senhor Licurgo.
Hoje, com 67 anos, nunca mais voltei a Antúrio. Notícias de lá muito raramente
fico sabendo, e mesmo assim, só por intermédio de jornais. Guardei essa história para
proteger minha vida e as das pessoas que amo, mas hoje, aqui sentado nessa cadeira,
olhando minhas verdes pastagens, resolvi contar minha história, e a partir deste
momento, você leitor acaba de ter o conhecimento sobre Antúrio. Você também sabe o
mistério da plantação, e assim como aconteceu com Pedro e seus amigos, cuidado, a luz
cintilante e suas sombras podem estar vindo ao seu encontro.
Olhares na Noite
95
Céu rosado em campos de trigo RÔMULO CÉSAR
Quando acordei, ele estava lá. De costas, mãos para trás tocando juntas na
lombar, calça preta de brim, sapatos finos, camisa branca abotoada até os punhos e na
gola, cabelos loiros e lisos, os fios rarefeitos na frente permitiam as entradas na testa.
Olhava, em silêncio, através da janela fechada.
As dores na coluna eram fortes e me faziam perder o ar. Resmunguei e se virou.
Olhou-me dentro dos olhos, mantendo a inércia da voz, como se procurasse alguma
emoção no meu rosto, que se mantinha confuso, refletindo as ideias da mente. Foram
apenas alguns segundos de contemplação recíproca.
Tudo bem com o senhor? Sim, senhor. Onde estou? Não lembras de nada? De
nada o quê? Sabes quem sou? Nem estou certo quem mesmo sou. Deveria lembrar?
Hans se apresentou ressaltando o sotaque germânico de um sobrenome que não
entendi. Informou que havia passado longo tempo desacordado, mas seria normal tendo
em vista o acontecido. Não me preocupasse, pois estava sendo bem cuidado, naquele
seminário para jovens do sexo masculino. Ele era o que se chama de Cajador,
responsável por conduzir o rebanho ao paraíso do Pai Eterno.
Ajudou-me a levantar. As estrelas do céu pareciam circundar em volta da cabeça
ainda dolorida. Vamos dar uma volta. Devo apresentar-te as instalações e os demais
seminaristas. Seguimos juntos, me apoiando nos seus braços magros e compridos,
homem extremamente alto, quase dois metros, calculava. Passamos pelo corredor da
casa de madeira escura, bem rústica, com o piso rangendo um som incômodo.
Enquanto andávamos, pude ver jovens de roupas antigas, sentados no terraço,
em sofás, pensativos, sem esboçar emoções, silêncio tumular. Cá com meus botões,
lembrava de nunca querer o seminário, cheio de dúvidas quanto à vocação religiosa,
repleto de interrogações em todos os meandros da vida. Decidiram por mim e, quando
percebi, vestia a farda cinza, assistindo às aulas para me tornar um excelente Cajador,
longe das mulheres, perto de homens, em nome da educação religiosa e do cajado do
profeta Isaías.
O sobrado antigo respirava passado. Havia uma atmosfera de embotamento,
certa tristeza, naqueles rostos juvenis, nos móveis escuros, pesados, não se via uma
Olhares na Noite
96
planta, um animal, nem formigas ou baratas. Odiava ratos, mas até torci para que uma
ratazana aparecesse trazendo sinal de vida, mostrando o movimento das pernas, o andar.
Passei a me sentir mal, a influência do ambiente carregado, a angústia coçando no peito.
Indaguei a Hans o porquê daquela monotonia. Perguntou minha altura. Um metro e
noventa. Mandou, apenas, ler o Salmo Noventa. Nada entendi.
Chamou-me a uma espécie de altar com imagens sacras. Tomou à mão uma
caixa quadrada de plástico e na outra a pedra de bronze, que ficou brilhosa ao seu toque.
Inseriu a pedra na caixa, ocupando boa parte do recipiente, afirmando que o espaço de
Deus nas nossas vidas deveria corresponder, em proporção, ao que da caixa a pedra
preenchia. Contudo, havia lacunas a serem ocupadas de outras formas mais prazerosas.
Não entrou em detalhes.
Deu-me a pedra e pediu que fechasse os olhos. O que vi ali, não conseguiria
descrever com simples palavras. Os sonhos mais absurdos que houvera sonhado na vida
batiam à porta das retinas, em imagens disformes, multiformes, cores psicodélicas,
formatos inimagináveis e seres de outro mundo. Joguei ao chão o objeto de tanta
transcendência como quem afasta os maus desejos ou devaneios. Olhei para Hans que
sorriu compreendendo o espanto. Suado, ansioso, pedi para respirar o ar outonal da
tarde que caía. Avisou, não vá à varanda, que se achava interditada para reformas.
Aproximei-me da janela de um dos quartos altos, abrindo para contemplar o
final vespertino. Um moinho, ou seriam dois, girava as pás em ritmo cigano no fundo
do horizonte, enquanto o céu docemente rosado caía sobre as vastas plantações de trigo
que se perdiam de vista. Quando o sol foi ferido e derrubado pela noite enluarada, senti-
me coberto pelo manto divino, como se a paz batesse à porta da alma até então
preventivamente fechada. Todavia, percebi que, na verdade, as batidas eram na porta da
casa, pois freiras de hábitos negros entravam de malas às mãos, como quem está de
mudança.
Não mais via os jovens seminaristas silentes. Todos haviam deixado o sobrado.
Cada vez mais confuso, segui ao quarto de Hans, encontrando a figura magra e alta de
costas, na posição de sempre, olhando através da janela. Perguntei se seríamos
despejados. Notei algo diferente dessa vez. Não pude ver as mãos saindo aos punhos,
nem a cabeça pela gola do Cajador. Somente a camisa branca, os sapatos e calças pretas,
o contorno do corpo equilibrado no ar, mais nada.
Voltou-se para mim já recomposto, os olhos vermelhos, não digo a íris, mas o
branco do olhos eram rubros e deixavam escorrer, pela face pálida, lágrimas de sangue.
Olhares na Noite
97
Veio em passos firmes, salivava como quem vê o alimento próximo à boca. Sentia que
desejava me tomar como seu, dizia frases malditas, diabolicamente malditas, rogava
pragas, amaldiçoava as freiras, desafiava o nome de Deus, cuspindo sempre que o
pronunciava. A presença do mal, exposta a poucos metros.
Chegou bem perto, tentei refutá-lo, falando em Jesus. Despiu-me as palavras
deixando-me nu, não de roupas, mas de defesa e argumentos, pois as minhas fraquezas e
dúvidas alimentavam a fúria daquele homem sem qualquer sinal de medo. Caminhando
para trás, me afastando do sangue nas retinas, achei um crucifixo perdido na madeira do
quarto. Encostei-o no rosto demoníaco queimando-lhe a face, e gritei vai de retro. Rezei
em alto e bom som o Salmo Noventa. Sumiu através da varanda.
Proibido, foi dito, mas arrombei a porta daquela varanda, encostando-me no
parapeito de madeira velha e carcomida. Somente ali lembrei a queda. Queria pular,
sempre quis por termo aos questionamentos tecidos, o chão me atraía sobremaneira,
sobretudo a promessa de enterro na areia, o calor da terra cobrindo as dúvidas exalantes
pelos poros do espírito. Senti as dores nas costas voltarem, quando olhei para Hans me
chamando ao solo. Trazia a face do Cão. Devo ter aceitado o convite indecente e
fúnebre, pois cheguei ao pequeno cemitério dos Cajadores. Na lápide simples, meu
nome jazia, ao lado do ano de 1867.
Pus as mãos na cabeça me sentindo morto, na verdade, confirmando todos os
sentimentos surgidos desde o encontro com o Cajador. Pensei no cajado do pastor de
ovelhas, mas deve ser o da morte, a foice. Ao lado do túmulo, outro, mais antigo,
esculpindo o nome de Hans Mortengarden. Ouvi o gargalhar do sarcasmo, ao tempo em
que pude avistar um corpo magro de pé sobre o telhado do sobrado. Gargalhava em
timbres nefastos, como quem ganha o jogo. Era frio o outono no seminário do medo.
Olhares na Noite
98
A porta azul MAYCON BATESTIN
Quarta-feira. Dezembro de 2009.
19h00min.
Hospital Municipal de Cachoeiro de Itapemirim
Pronto Socorro. Leito 1.
- Onde estou?
- Eduardo?
- Sim...
- Eduardo Costa Filho?
- Sim...
- Consegue me ouvir?
- Sim...
- Abra os olhos. Pronto, agora você pode me ver...
- O que está acontecendo?!
- Consegue contar de 1 a 10?
- Consigo.
- Então, conte para mim!
- 1, 2, 3, 4...
- Tá bom... Bem, pelo que vejo, sua visão está perfeita. Nenhum aneurisma ou
possibilidade de um... Parece não haver, também, qualquer tipo de sequela.
- O que está acontecendo? Onde eu estou?
- Está tudo bem filho, você está no Hospital Municipal de Cachoeiro de
Itapemirim.
- Hã? O que? Hospital? Droga... Minha mãe vai me matar!
- Não se preocupe, a recepção já chamou sua família, eles estão a caminho.
- Minha família... O que aconteceu?
- Você foi encontrado inconsciente na Rodovia da Safra, nos limites da cidade,
alguém ligou para o corpo de bombeiros e eles trouxeram você até aqui.
Olhares na Noite
99
- Safra? Como eu fui parar lá? Eu não me lembro de nada disso. O que é que
aconteceu?
- Hum... Do que é que você se lembra?
- Nós estávamos...
- “Nós” quem?
- Eu, Zeca e Thiaguinho...
- Seus amigos?
- Sim... Nós estávamos correndo atrás de pipas na rua ontem.
- Ontem?
- É, ontem. E nós enjoamos. Decidimos brincar de outra coisa.
- Do quê?
- Tocar a campainha.
- Como?
- É tipo um trote... Nada demais, eu juro. Não queríamos prejudicar ninguém.
Nós íamos de porta em porta tocando as campainhas.
- E vocês fugiam sempre que alguém atendia, né?
- É, mas poxa doutor... Era só uma brincadeira. Eu não fiz nada demais, por
favor... Não conte para minha mãe.
- Eu não vou contar nada, relaxa. Diga para mim, o que é que aconteceu nesse
dia?
- Eu não sei.
- Bem, você disse que isso foi ontem, né? Que dia você acha que foi ontem?
Você sabe pelo menos quando aconteceu?
- Hum... Domingo?!
- Você acha que ontem foi domingo?
- Sim.
- Hoje é Quarta-feira filho...
- O que?! Não pode ser. Quarta feira?! Meu Deus.
- Que aconteceu naquele dia, filho?
- Eu não sei. Havia uma casa, uma porta azul, toda azul. Nunca vi nenhuma
porta igual aquela. Aí, Zequinha e Tiago, os garotos, me desafiaram a tocar a campainha
dela.
- E...?
Olhares na Noite
100
- E... Eu não sei. Não me lembro de mais nada. Acho que toquei... Eu não sei.
Poxa doutor, que é que está acontecendo? Por que você está me olhando assim?
- Assim como?
- Como se eu fizesse algo de errado.
- Bem... Desculpa meu modo de te olhar, filho. É que isso é muito estranho, você
não apresenta nenhuma lesão cerebral e, no entanto, apresenta sintomas de trauma, não
consegue reconhecer o dia do evento que o levou a estar aqui. Eduardo, você estava
desaparecido a mais de oito anos...
- O quê? Oito anos?
- Sim, você é Eduardo Costa Filho, é o caso de desaparecimento mais famoso da
cidade na última década, segundo a história, contada nas mídias, você sumiu junto com
seus amigos numa noite de domingo, sem vestígio algum. Eles, porém, foram
encontrados mortos dois dias depois. Totalmente desfigurados, foi preciso fazer
reconhecimento da arcaria dentária, para saber quem eram. E agora, você aparece aqui,
perfeitamente saudável. E o motivo para eu estar te olhando assim, é que você não
envelheceu nada!
- Não pode ser... Meu Deus! Pára com isso! Meus amigos estão mortos? Zeca?
Tiaguinho? Para... Não... Não... Eu quero minha mãe. O que tá acontecendo? Por que eu
estou aqui?
- Eles já estão vindo. Acalme-se!
- Não! Para! Eu quero ir embora... Me solta!
- Enfermeiras!
- Me soltem.
- Essa injeção vai ser para te acalmar. Por favor, tenha calma Eduardo! Sua
família chegou, acalma-se.
- Não, me solta! Mãe!
(Dois dias depois)
7h00min.
Hospital Municipal de Cachoeiro de Itapemirim
Pronto Socorro. Leito 1.
Olhares na Noite
101
- Bem, não há mais motivos para segurá-lo no hospital. Como eu disse, seu filho
está perfeitamente saudável.
- Mas doutor, ele não envelheceu nada! Isso é normal? Ainda nem consigo
acreditar que é ele!
- Nem eu. Não sei o que houve. Das coisas que eu sei, senhora, é que ele não
sofreu nenhuma lesão, não há nada de errado com ele. Mas se me permite, gostaria de
enviar algumas amostras de sangue e tecido para alguns médicos em São Paulo, gostaria
de explicar o caso e talvez eles tenham uma hipótese mais provável.
- Hipótese?
- Sim, eu tenho uma, mas prefiro não contar.
- Conte!
- Acho que existe algum tipo de doença invisível aos nossos olhos, algo que
atrase o envelhecimento das células de seu filho.
- Meu Deus...
- Mas é só uma hipótese. Não pode ser provado, por isso, estamos dando alta ao
seu filho.
- O que eu devo fazer?
- Esperar. Acho que temos que esperar e ver o que acontece, enquanto isso.
Aproveite seu filho, são oito anos!
- Olha, ele acordou!
Enquanto isso...
- Então, você voltou. Eu estava te esperando, Eduardo.
- Quem é você? Onde eu estou?
- Não se lembra? Você me chamou.
- Eu não te chamei.
- Ahhh, chamou sim. E eu atendi!
- O que você quer de mim?
- Sua alma! Sua carne! Tudo!
- Mãeeeeeeeeeee... Mãeeeeeeeeeeeee... Mãeeeeeeeeee
- Pode gritar à vontade, Eduardo, ninguém aqui vai te ouvir...
- Socooooooooooorrrrrrrrrrrrrrrrrrrooooooooooooo!
- Adoro gritos. Sabe, seus amigos gritaram muito.
Olhares na Noite
102
- Meus amigos?
- Ah sim. Como gritaram... “Eduardooooo”, “Eduardooo”, eu os devorei, e eles
estavam uma delicia...
- Mãeeeeeeeeeee... Mãeeeeeeeeeeeee... Mãeeeeeeeeee
- Venha até a mim, Eduardo. Estou te esperando.
- Aahhh!
- Olha, ele acordou!
(Dois anos depois)
10h00min.
Casa da Família de Eduardo
Corredor.
- Filho, já chega disso, são dois anos já. Você não pode viver para sempre aqui
dentro! Uma hora vai ter que sair de casa. Tá me ouvindo?
- Filho, atende sua mãe. Olha, eu sei que você está chateado por termos te
inscrito de novo na escola, mas sua vida tem que começar, o que passou, passou e nada
vai mudar.
- Eduardo, se não abrir a porta, seu pai vai arrombá-la! Não nos force a fazer
isso!
- Filho? Tá me ouvindo? Não me force a fazer isso. Seja sensato, você já é quase
um adulto, tá na hora de perder o medo.
(Um ano depois)
15h00min.
Bairro Santo Antônio – Cachoeiro do Itapemirim
Beco.
- Então você veio.
- Tive que vir. Não resisti.
- Ninguém resiste.
A porta se abre.
Olhares na Noite
103
- Entre.
- Não.
- Entre!
- Não!
- ENTRE!
- Ahhhhhhhhhhh Socorro! Socorro!
- Grite, grite para mim! Sou todo ouvido.
- O que quer de mim?
- Oh, ainda não percebeu? Eu quero te comer!
- Socorro... Socorro...
- Relaxa, Eduardo, em poucos segundos, você será totalmente devorado.
- Adeus mãe.
(Alguns dias depois)
Casa da Família de Eduardo
Sala de estar.
- Senhora e senhor Emilia Costa e Mateus Filhos
- Pois não?
- Somos da polícia militar e lamento informar que encontramos seu filho.
- Ai Meu Deus, por favor, não diga... Não diga...
- lamento senhora.
- Nãooooooooooooooooooooo
(Algumas horas depois)
Casa da Família de Eduardo
Sala de estar.
- Bem, eu gostaria de fazer uma pergunta a vocês, tudo bem?
- Sim
- Essa filmadora foi achada no local, é de vocês?
Olhares na Noite
104
- Sim, é nossa.
- Ela foi achada no local do crime. Ela contém as últimas imagens de seu filho. E
eu quero que prestem atenção, pois eu quero perguntar uma coisa
- Sim.
- Pois bem, vejam.
Algum tempo depois...
- Meu Deus, o que era aquilo?
- Nós não sabemos, enviamos o material para especialistas fora do Brasil, e eles
estarão analisando isso.
- Era um monstro?
- Achamos que seja um alienígena, o primeiro alienígena, e seu filho conseguiu
expor isso.
- Meu Deus...
- Seu filho disse que deixou um bilhete no quarto, explicando o porquê dele
retornar à Porta Azul, essa casa que vocês viram. Bem, minha pergunta é simples: o que
está escrito no bilhete?
- Ele disse que lamenta a morte de seus amigos e que agora ele é um quase
adulto, que está na hora de assumir suas responsabilidades e que...
- Tudo bem, querida... Tudo bem...
- E que nos ama muito e lamenta por nós duvidarmos dele. Que ele achava que o
motivo de não ter envelhecido e sobrevivido é porque a casa precisava dele como uma
criança, como uma eterna criança e ele iria provar ao mundo...
- Bem, seu filho expôs uma coisa grandiosa. Se essa casa existe há séculos, e ela
seja a responsável pelo desaparecimento das inúmeras crianças da região, seu filho
então foi um herói.
- Obrigada.
- Prometo, nós vamos investigar essa casa!
Olhares na Noite
105
A voz IGOR SILVA
Baseado em “O caso do Sr. Valdemar” – Edgar Allan Poe
“Eu não tinha medo de olhar as coisas horríveis, mas ficava apavorado à ideia de nada
ver”.
E. A. Poe
John, amigo de longa data, foi o primeiro a me apresentar os tortuosos caminhos
da mente humana. John era psiquiatra, mas usava métodos que, muito provavelmente,
não seriam bem vistos pelos colegas de profissão.
Uma de suas práticas favoritas era a hipnose. Eu não entendia muito sobre essa
técnica, por isso ele resolveu me mostrar como funcionava. Estávamos nós dois no seu
respectivo consultório quando uma bela senhora com roupas bem mais curtas que o
normal, entrou apressada.
John esboçou um sorriso ao perceber que ali havia um desafio. Eu, no entanto,
devo admitir que não foi a mente dela que me chamou a atenção.
Jane, pois assim ela se chamava, afirmou estar sendo perseguida por vozes
anônimas que lhe tiravam o sono.
John assentiu e pediu que ela nada temesse, apenas descrevesse o seu mal. Jane
contou que as tais vozes lhe falavam de um passado distante, cujos eventos ela não
pretendia lembrar.
Sem nada dizer, John foi até a mesa e pegou um pêndulo de cobre cuja ponta
sustentava um ônix em forma de prisma. Apagou as luzes e acendeu as velas.
- Observe, estimado Paul. É mais sábio aquele que vivencia e não aquele que lê.
Mesmo no escuro, pude ver sua boca crispada: algo que ele sempre fazia quando
se concentrava. Balançou o pêndulo para a esquerda e para a direita até as pálpebras
caírem.
- A primeira voz, que se manifeste! - ele ordenou, com seu irritante sotaque
britânico.
Olhares na Noite
106
A voz se fez ouvir. Era metálica e cortante, algo que, sem sombra de dúvidas,
não pertencia a este mundo.
- Ai de ti que me tornou audível, rebento dos céus – ela lamentou – sobre seus
ombros recairá pesado fardo. Eu venho das terras sem luz, onde a Noite reina absoluta.
Um lugar onde outras vozes sem rostos lamentam e gritam, se alimentando de chamas e
discórdia.
- Dizei-me o que quer, espírito infame.
- A demência é o ar que preenche meus pulmões, é seiva que me sustenta a vida.
A humana, em especial, tem um gosto único...
- Afaste-se primeira voz. Aproxime-se segunda voz.
A primeira voz se foi tão rápido quanto chegou, levando consigo um silvo de
lamento que molestou meus tímpanos. Assim, cada uma das vozes foi se extinguindo de
modo que, ao final de quase seis horas, Jane saiu do consultório, completamente curada.
Esse episódio me marcou profundamente. Desde então, hipnose tem sido a
palavra de ordem em minhas incursões nas bibliotecas.
John sempre me acompanhou nos meus estudos, e devo dizer que aprendi muito
nos dois últimos anos em que fui observador assíduo de suas seções. Essa parceria
perdurou até o dia em que ele contraiu hanseníase e caiu de cama.
Mesmo sem sua agradável companhia, prossegui com minhas pesquisas. John
não tinha família na Inglaterra e o mais próximo de um parente que ele podia contar
morava na América do Sul.
Com o tempo, constatei algo em minhas pesquisas que me transportou para além
das barreiras da euforia: não havia registros de experiências hipnóticas com pessoas à
beira da morte.
Quando tomei ciência desse fato, de imediato pensei em convidar John para uma
experiência. Sabia eu que ele era um amante da psicanálise e não titubearia um segundo
sequer em me ajudar. Mas aí parei para pensar: seria um desrespeito ímpar usar de sua
doença como objeto de análise. A vida tinha me ensinado da pior forma que uma
hipnose mal feita pode trazer consequências catastróficas e, em uma situação tão
adversa, os efeitos poderiam prejudicar ainda mais o estado de saúde do coitado.
Por várias semanas, fui tomado pela vontade de convidá-lo e a necessidade de
não fazê-lo, até que chegou à minha residência um bilhete curto.
Olhares na Noite
107
Caríssimo amigo,
Julian e Phil disseram-me que pouco me resta de vida e gostaria de passar
meu último dia ouvindo seu sotaque americano.
John O relógio marcava 09:00 p.m. quando eu calcei minhas luvas e peguei, por
precaução, o pêndulo de cobre.
Assim que cheguei ao sobrado, logo percebi que a situação era, de fato, caótica.
Enfermeiros saiam e entravam da casa, sempre com cara de espanto.
As nuvens encobriram o brilho lunar e a escuridão bruxuleava sobre a
residência.
Adentrei o local e um cheiro de podre invadiu minhas narinas de forma ardente,
e fez com que eu precisasse recostar a cabeça na parede, nauseado. Constatei que o odor
vinha do quarto do meu amigo.
Quando abri a porta, um sentimento de repulsa mesclado com compaixão me
envolveu. Deitado, John estava coberto até o pescoço por um conjunto de lençóis.
Apesar de tudo, parecia ter plena consciência do que se passava.
- Amigo, – eu sussurrei ao pé do ouvido – preciso pedir-lhe algo. Escute com
atenção.
E por preciosos minutos, relatei a ele os meus achados no campo do
magnetismo. Vez ou outra ele respondia com acenos e sorrisos.
-... E gostaria que participasse dessa experiência – pedi, enfim.
Ele não pestanejou nem por um momento. Pediu encarecidamente que eu
começasse o trabalho e declarou, veemente, que não tinha nada a perder.
Seria necessário duas testemunhas, então optei por chamar o Dr. Julian e o Dr.
Phil. Usei o mesmo pêndulo que ele, certa feita, usara com Jane.
Concluído o estágio inicial de hipnose, eu o interroguei.
- Sente-se bem, John?
- Eu estou morrendo... – respondeu com uma voz fraca – Mas é uma morte fraca,
menos dolorosa que a vida.
- E o que vê, John?
Olhares na Noite
108
- Vejo trevas e luz que se misturam em uma dança incomum. Pelos céus, eu
imploro, não me acorde!
Os médicos estavam estarrecidos. Os sinais vitais do moribundo eram por
demais fracos e, não fosse o fato dele estar falando tão claramente, julgariam que ali
estava um autêntico caso de catalepsia.
Deixei que John descansasse por algumas horas e mais uma vez voltei ao quarto.
- Consegue aguentar até amanhã, amigo? – indaguei.
- Sim, só me deixe morrer assim – ele suplicou em murmúrio quase inaudível.
Fui para casa pensativo. Até agora tudo parecia correr bem e o que mais me
intrigava era a descrição de John para o que via. Estaria eu produzindo a primeira EQM
assistida do mundo?
Por uma semana ele se manteve vivo e o caso do leproso desenganado pela
medicina que sobrevivia há seis dias correu a Europa. Por todos os cantos, boatos de um
suposto milagre corriam de boca em boca. Romeiros começaram a cruzar centenas de
quilômetros só para acompanhar, frente à misteriosa residência, o caso que estava
desafiando a ciência, que se auto-afirmava tão moderna até então.
Por fim, John já não tinha forças para falar, somente mexia fracamente a boca
até que se passaram vinte dias de estado hipnótico.
Estava questionando-o como de costume, quando o relógio soou a décima
segunda badalada. De imediato, os olhos de John se abriram bruscamente. Seu globo
ocular estava banhado em sangue, a boca aberta e o rosto cadavérico lhe conferiam um
aspecto cadavérico.
Ele agarrou meu pulso.
- Eu estava dormindo. E agora... Agora... Estou morto.
Eu reconheci a voz. Era uma mescla do timbre grave de John com o que
atormentava Jane, anos atrás.
- Eu disse que ele carregaria um pesado fardo se me despertasse. Agora é hora
de partir... Literalmente.
Um sorriso bizarro se esculpiu em sua face. O corpo então começou a se
contrair. Quanto mais John gritava, mais o corpo se envergava.
Eu não sabia o que fazer, atônito a tudo.
Um grito de dor quebrou as vidraças e então John se partiu em minhas mãos,
completamente podre. Uma névoa escura partiu, então o corpo se partiu em minhas
mãos, completamente podre. Uma névoa escura partiu em direção a mim.
Olhares na Noite
109
Lembro-me de silvos cortantes molestando uma vez mais os meus ouvidos.
Tinha chegado a minha vez.
Olhares na Noite
110
A ameaça SIMONE PEDERSEN
Civilizadamente assinaram os papéis e se despediram do juiz.
No estacionamento, ele a avistava na calçada. “Finalmente, estou livre dessa
vaca”, pensou enquanto acenava para ela. ”Não vejo a hora de contar para a Catarina
que agora podemos viver nossa paixão”.
Ela, compenetrada, aguardava os carros passarem para atravessar a rua. Quando
viu uma moto, titubeou. Decidiu atravessar quando um caminhão estava a uma distância
segura. Olhou dos lados, quando sentiu um perfume familiar. Lembrou-se da amante
dele, sempre perfumada, com roupas insinuantes e batom vermelho-carmim. Lembrou-
se da ameaça dela, que se não abrisse mão dos bens, terminaria paraplégica sem
desfrutar nada. Como era baixa, pensou, uma puta que destruía casamentos sem pensar
em mais nada. Ficaria com ele, mas a parte dela estava em seu nome agora.
De repente, enquanto atravessava a rua, sentiu uma mão quente em suas costas,
virou-se e teve a nítida impressão que havia uma mulher com olhos avermelhados bem
atrás dela, mas quando quis apressar os passos, sentiu apenas seu corpo ser jogado no
chão e alguém em pé em cima dela para não levantar-se.
O motorista assustado tentou frear, mas não conseguiu mover os pés, como se
mãos os segurassem, pressionando o esquerdo no acelerador. Precisou ligar o pára-
brisas para limpar o vidro subitamente coberto de sangue e pedaços de miolos,
misturados com unhas e um olho que ainda se movimentava.
Saiu do caminhão aos gritos, enquanto o ex-marido incrédulo não conseguia sair
de onde estava, até que sua amante surgiu do nada e o abraçou, carinhosamente,
enquanto certificava-se de que a bolsa estava fechada, onde havia um lenço cobrindo
um coração pulsante.
Olhares na Noite
111
Sob os ares e olhares da noite GERALDO TROMBIN
Não via com bons olhos aquela noite. Se as paredes têm ouvidos, com certeza,
naquela madrugada calorenta, beberrona e acentuadamente negra pelas densas nuvens
carregadas de uma aparente tempestade, tinha também olhos, nariz e boca.
Principalmente depois do ferrenho bate-boca que tomou conta alucinadamente dos ares
e olhares do Stick Beer – um barzinho mais parecido com curva de rio de tantos galhos
e enroscos – quando Fabiano di Paula, o popular F.d.P., após voltar superempolgado do
banheiro masculino, onde acabara de ver sentada relaxadamente lá no trono masculino,
reinando feito uma rainha, com as pernas e partes íntimas escancaradamente expostas
aos olhos do mundo, a morena pseudo-Luiza Brunet, já em tempos muito idos,
liberando toda a sua liquidez cervejeira exageradamente consumida.
Envolvido pelo clima de excitação provocado por aquela visão sanitarista
esdrúxula, F.d.P., ao caminhar de volta para a sua mesa não resistiu aos bem delineados
e arrebitados encantos da loira Giulia insinuantemente debruçada no balcão,
percorrendo assim, vagarosa, voraz e pervertidamente, seu olhar pelo exuberante
derrière daquela que era nada mais nada menos do que mulher do seu arquirrival – o
Paulinho Boca de Litro – como se fosse comê-la, literalmente, com os olhos, exibindo,
sem escrúpulos, diante de todos, seu avolumado e pujante objeto ereto de desejo. Ah!
Por quê? Foi o início do maior quebra-pau, um tremendo quebra-quebra. E de quebra,
F.d.P. ainda foi esgrimido pelo gargalo quebrado e cortante da garrafa de 51 empunhado
pelo seu adversário maior. Não deu outra: em segundos, o ruído agudo e estridente da
sirene do resgate rasgou ao meio aquela noite aparentemente calma, socorrendo Fabiano
em velocidade muito acima do limite, com destino ao hospital mais próximo.
Com um rasgo de uns quatro dedos no pescoço, e sangrando em bicas, enquanto
a equipe médica rapidamente se preparava para interná-lo, em um momento de
descuido, pernas para que te quero: Fabiano bateu em retirada sem ninguém perceber,
deixando como pista as gotas de sangue demarcando o chão. Ressabiado, angustiado,
todo retalhado e revirado, com o queixo na nuca, de tão atormentado que ficou, sumiu
do mapa com o que ouvira sair da boca de Paulinho ainda martelando em sua cabeça:
Olhares na Noite
112
“Eu vou acabar com você, seu f.d.p., filho d’uma égua. Abre o olho. Não perde por
esperar!”
Chegando em casa, tremendo que nem vara verde, ressentido e retalhado,
Fabiano imediatamente acendeu todas as luzes, também, pudera, estava com medo até
da própria sombra. Logo em seguida, baita azar! Graças a um apagão repentino, a
escuridão se fez plena, deixando-o ainda mais afoito – sem fósforo, isqueiro ou mesmo
uma vela para acender, não podia cuidar do seu ferimento. Que penumbra! Só pode ser
coisa daquele maldito Boca de Litro!, pensava ele.
Tirou a camisa e com ela fez uma compressão local para tentar estancar o
sangue, mas em vão. Enfraquecido, jogou-se na cama, deitando aquele corpo molegato e
encharcado pela “mardita branquinha” quando tudo começou a girar. Começou a ver e
ouvir coisas, sentindo-se observado por todos os lados pelos olhares da noite.
Assombrado, não conseguia pregar os olhos nem tirar da cabeça a cena grotesca do
Paulinho Boca de Litro vindo cambaleando enraivecido para cima dele com aquele caco
de garrafa na mão. Foi tudo tão rápido que nem percebeu o estrago que sua tara
momentânea pela mulher do próximo, que, aliás, estava bem próximo, havia provocado
em seu rosto, cortando-o precisamente como fio de navalha e marcando-o para o resto
dos seus dias. Que agonia!
Sob aquele manto negro que invadiu sua residência, para onde quer que olhasse,
parecia rever o bendito momento de tensão provocado por um instante instintivo de
tesão.
Subitamente, pancadas na porta. Insistentemente. Qué q’eu faço?, pensava
Fabiano. Será que é o Boca de Litro que veio para terminar o serviço?
Sem dar um pio, sem mexer um fio de cabelo ou um cílio, fingiu não ouvir as
estridentes batidas, permanecendo quieto como se não houvesse ninguém ali dentro.
Minutos depois, o silêncio volta a reinar, mas não por muito tempo. Um estrondo ainda
maior assusta, acorda e arregala os olhos da madrugada, como se provocado por
violentos chutes na porta, parecendo vibrar até o batente. Apesar do seu estado
febricitante, continuou calado, fingindo-se de morto, adormecendo ali... Para sempre.
Um violento estampido põe a porta abaixo:
Boom!
Um corre-corre invade o local, passando ofegante pela sala rumo ao quarto,
guiado pelos feixes de luz emanados das lanternas que acendem a triste e trágica
partida: Fabiano, todo estirado, depois de fugir amedrontado do pronto-socorro, com
Olhares na Noite
113
olhar de peixe-morto, coberto de vermelho-sangue da cabeça aos pés da cama. Dessa
vez, a equipe de resgate havia chegado tarde para estagnar a hemorragia que acabou
presenteando-o com uma enorme coroa de flores contendo a seguinte inscrição: Olho
por olho, dente por dente. Vai com Deus, f.d.p.! Assinado: Paulinho Boca de Litro.
Olhares na Noite
114
O contador de estrelas SIHAN FELIX
Há muito tempo na rua sem nome morava Heitor. Não existia sequer uma flor
onde morava, e muito menos sabor na sua comida havia. Mesmo assim, todo dia, Heitor
olhava para o céu e sorria. Ninguém conseguia encontrar motivos para aqueles sorrisos,
mas sempre estava Heitor ali, olhando para o céu e sorrindo.
‘Ele deve ser maluco.’ Dizia uma senhora que passava. ‘Pobre coitado!’
Lamentava um homem bem arrumado. Ele não se importava. Continuava quase imóvel
deitado nos tijolos empilhados de uma construção, na esquina da rua sem nome.
Heitor não sabia sua idade, muito menos de onde viera. Lembrava somente do
seu nome. Algumas pessoas diziam que ele apenas surgiu ali. Outras afirmavam que um
casal desconhecido deixara uma criança naquela construção abandonada há muito
tempo. Ainda havia aqueles que juravam que a criança que fora deixada ali não era
Heitor, pois viram quando levaram o bebê.
Houve um tempo em que ele chorava sentado naqueles tijolos e jamais olhava
pra cima. Entretanto, a verdade é que Heitor não se preocupava mais com muita coisa. E
isso já fazia muito tempo.
‘Filho!’ Chamou um velho homem na rua. Não era seu pai, de fato, mas o
homem queria falar-lhe. ‘Você é um rapaz diferente.’ Concluiu o velhinho. Heitor
sorriu, mas não respondeu. Nunca havia escutado a própria voz. Decidiu não a escutar
nesse momento. Aquele senhor, com sua enorme barriga fofa e sua barba grisalha,
provavelmente entendera, porque retribuiu o sorriso e desapareceu no meio da multidão.
Quando anoiteceu, uma chuva muito pesada pegou Heitor de surpresa. Ele
estava, em cima dos tijolos, preparado para dormir. A chuva, sem pedir licença, chegou
o assustando. Heitor foi logo encharcado pela água gelada. Nem teve tempo para se
proteger.
Essa noite, narrava uma senhora que passava ali à sua família, foi especial.
Heitor, já ensopado, abriu os braços, levantou a cabeça e deixou que a água acertasse
seu rosto. Ela cessara a caminhada parecendo impressionada. Não havia nuvem
qualquer. ‘Um menino divertindo-se com uma chuva que vinha do céu já seria, no
Olhares na Noite
115
mínimo, muito estranho. Imagine isso mais o fato de a chuva estar atingindo apenas
ele!’ Ela comentava.
Após algum tempo, Heitor abriu os olhos, ainda na mesma posição. A chuva
cessou. O céu permanecia muito limpo e, pela primeira vez, ele parou para olhar as
estrelas. Todas brilhavam intensamente, mas ele teve certeza que podia diferenciá-las.
Voltou a deitar ali. Queria, então, contar uma a uma.
A contagem já estava alta quando Heitor dormiu. ‘Irei continuar na próxima
noite’, pensou ele. Logo cedo, foi acordado por um bando de pombos que pousaram em
cima dos tijolos. Bocejou abrindo bem a boca e esfregou os olhos. O dia estava claro e a
correria na rua era intensa como sempre. Às vezes passava um grupo uniformizado
caminhando depressa. Pareciam formigas atrás de açúcar.
Não demorou a aparecer uma velhinha bem magricela, com as costas um pouco
curvas e uma bengala entortada, acompanhada de uma moça jovem e bonita. ‘Veja! Foi
esse menino! Ele faz magia negra! Não cheguem perto dele!’ Apontando um enorme
dedo, a senhora, que mais parecia uma bruxa saída das mãos de um cartunista, berrava
por ali.
Os passos, as buzinas, o choro de um bebê pedindo à mãe para mamar, as
conversas ao telefone, os vendedores ambulantes berrando, tudo impedia a velhota de
ser ouvida. Mas Heitor escutava claramente, e não entendeu o que se passava. ‘Vamos,
mamãe! É só um pobre menino de rua.’ Convidava a moça bonita, piscando um olho
para Heitor.
O resto do dia passou como de costume. Ninguém mais apareceu com acusações
tão absurdas. Enquanto a noite chegava, Heitor se preparava para dormir. Ali nos tijolos
era apenas ele, seu velho lençol rasgado e um travesseiro de espumas. Quando,
finalmente, escureceu, ele deitou mais uma vez olhando para o céu e reiniciou a
contagem das estrelas.
Mais uma vez a contagem estava alta quando o sono o abraçou. Vários dias de
tentativas frustradas seguiram. Dias esses que a velha bruxa não voltou a aparecer. Mas
Heitor estava determinado a completar a contagem ou, ao menos, conseguir ter a certeza
de que conhecia todas elas. Acreditando que a contagem estava o fazendo dormir, uma
ideia o animou: Iria dar nome a cada uma delas.
Ansioso pela chegada da noite, Heitor caminhava de um lado para o outro
decidindo com quais nomes batizar as estrelas. ‘Não posso ficar preocupado com isso.
Olhares na Noite
116
São tantas! Melhor esperar.’ Refletia ele. Mas logo estava imaginando todos os tipos de
nomes para as mais variadas estrelas de quaisquer constelações à vista.
O batizado começou no primeiro brilho lá em cima. Heitor planejara fazer aquilo
rápido e, caso sentisse a chegada do sono, iria desenhar nos tijolos a posição da última
estrela e seu nome.
Depressa seu plano começou a fazer efeito. As noites passavam e Heitor sempre
conseguia continuar de onde havia parado. Seus desenhos ajudavam, e sua memória
para nomes era incrível, além de criativa.
Muitas noites passaram até que, finalmente, Heitor terminou a contagem das
estrelas. Ficou sorrindo feito um bobo para elas. Algumas vezes se pegava conversando
em pensamento com as estrelas Alice e Sofia, que eram iguaiszinhas, e com o estrelo
Paulo e a estrela Maria, que ficavam bem afastados de todas as outras. Essas eram as
estrelas mais brilhantes de todo o céu.
Certa vez Heitor viu, novamente, o mesmo homem de barriga fofa e barba
grisalha de antes sair do meio da multidão. ‘Meu nome é Antônio, Heitor. Logo você
poderá conversar comigo também.’ Disse aquele homem que parecia muito bondoso.
Sem entender, Heitor sorriu e, mais uma vez, recebeu o sorriso mais afetuoso que já
presenciara.
A noite havia chegado. Como de costume, Heitor já estava deitado para receber
as estrelas. Uma a uma iam surgindo, como uma grande explosão de fogos de artifício.
Mas, de alguma forma, ele viu surgir, em meio a todas aquelas que ele já conhecia, uma
nova estrela. Tornara-se a mais brilhante. Heitor acreditou que, de tão forte que era o
brilho, aquela estrela estava sorrindo. Lembrou do sorriso do homem muito bondoso e a
chamou de Antônio.
Todas as noites, o estrelo Antônio aparecia reluzente. Tornara-se o melhor
amigo de Heitor. Talvez fosse coincidência, mas nunca mais aquele senhor bondoso
com sua barriga fofa e barba grisalha apareceu ali na construção.
Em uma ocasião, Heitor conversava, em pensamento, calorosamente com o
estrelo Antônio, quando a moça que havia piscado o olho para ele apareceu. ‘Era ela
que acompanhava a senhora corcunda.’ Ele lembrou. ‘Menino, minha mãe está doente
e pediu para falar com você.’ Ela estava muito aflita. Heitor não se lembrava se algum
dia pisara no mundo fora da construção. ‘Minha mãe já não tem a cabeça de anos atrás,
mas disse que você é diferente.’ Os olhos dela estavam carregados de lágrimas. Heitor
assentiu com a cabeça e então sentiu o chão de fora da construção abaixo dos seus pés.
Olhares na Noite
117
A velha mulher com aparência de bruxa estava deitada em uma cama bem
simples de madeira. ‘Posso falar com ele a sós, Rosa?’ A senhora perguntou. ‘Claro,
mamãe!’ Antes que Rosa saísse daquele quarto, ainda pôde escutar: ‘Eu te amo, minha
filha!’
Heitor ficou a sós com a bruxa doente. O silêncio dominou o ambiente por dois
ou três minutos, enquanto ela o observava. Por fim, olhando nos olhos do menino
assustado, disse: ‘Adoraria estender nossa conversa, rapaz. Meu nome é Tomires.’
Depois de dizer isso, ela fechou os olhos e pareceu dormir.
De volta à construção, Heitor voltou a subir no seu quarto improvisado ao ar
livre. Ele não havia entendido o que passara na casa da dona Tomires. Deitou para
continuar a conversa com o estrelo Antônio e, para sua surpresa, aparecera uma estrela
ainda mais brilhante, justamente ao lado do seu amigo.
No dia seguinte, os pombos estavam grulhando em cima dos tijolos para acordá-
lo. Bocejou esfregando os olhos e sorriu. Dormira muito bem, e estavam entrando na
primavera. Bandos de pássaros voavam no parque, do outro lado da multidão. Lá
desabrochavam muitos tipos de flores. Eram sinais do início dessa estação na rua sem
nome.
Um par de meninas gêmeas destacava-se no meio de toda aquela gente. Elas
olhavam para o céu e pareciam procurar algo. Passaram os olhos pela construção até
acharem o que procuravam em cima de um monte de tijolos. Caminharam até lá. ‘Oi,
Heitor!’ Heitor arregalou os olhos. ‘Como sabe meu nome?’ Perguntou Heitor em
pensamento.’ ‘Nós somos Alice e Sofia.’ Ele escutou de uma delas. Elas estavam
sorrindo para ele, e ele, mesmo assustado, retribuiu.
A primeira noite estrelada da primavera chegava com um cantarolar
ensurdecedor dos pássaros. Deitado no lugar de costume, estava Heitor, esperando o
retorno dos seus amigos e amigas. Nada lhe dava mais prazer do que o início da noite.
O ar estava muito limpo e as estrelas estavam muito visíveis, mas Heitor sentiu
falta de duas estrelas das mais brilhantes. Alice e Sofia não estavam mais ali. Em seus
lugares podia-se ver apenas o céu muito escuro. ‘Elas não estão mais no mesmo lugar,
não é, Heitor?’ Rosa estava ali, parada ao lado dos tijolos. Com um susto, Heitor se
sentou e balançou a cabeça negativamente. ‘Alice e Sofia são minhas filhas. Depois de
ontem, pedi para o pai delas trazê-las de volta. Estavam viajando. Crianças, por terem
pouco tempo entre nós, são assim: Quando ficam longe de quem as ama, brilham lá em
cima para podermos vê-las.’ Explicou a linda jovem. ‘Por que você não viajou
Olhares na Noite
118
também?’ Como a grande maioria, Heitor era uma criança curiosa, mas havia
perguntado em pensamento. ‘Porque eu estava trabalhando. Só vou ficar de férias no
verão.’ Ela, de alguma forma, havia escutado o silêncio.
Com um aceno, Heitor a convidou para subir nos tijolos. Rosa subiu um pouco
desajeitada e deitou ao lado dele. ‘Onde está minha mãe, Heitor? Tive medo de olhar
para o céu ontem.’ Ele não sabia o que responder. Então apontou para a estrela mais
nova e brilhante, ao lado do estrelo Antônio. ‘Está certo. É a mais brilhante, não é?’
Heitor concordou com um gesto. ‘Eu tinha certeza que ela iria ficar ao lado do papai’.
A voz dela estava um pouco presa. ‘Aquela ali é papai, Heitor.’ Ela apontou. ‘O meu
gordo Antônio.’ Ela completou tentando sorrir.
Heitor estava entendendo agora. Os nomes das estrelas não eram coincidências.
O bondoso Antônio e a dona Tomires, antes de aparecerem brilhando no céu, haviam
dito que ele era diferente. ‘Eles também eram diferentes.’ Pensou ele. E completou: ‘E
Rosa também é.’ ‘Sim, Heitor. Nós somos diferentes. Minha família, a sua, e todas as
outras que conseguem acreditar em sonhos são assim.’ Novamente ela escutara seus
pensamentos. ‘Por quê?’ Perguntou ele silenciosamente, um pouco inconformado. Logo
ela respondeu: ‘Imagine o céu à noite sem estrelas! Se você consegue imaginar, já tem
a sua resposta.’ Um céu completamente escuro não fazia sentido, ele acreditou.
‘Eu conheci seu pai, Heitor. Era um bom homem. Trabalhava nessa construção
aqui.’ ‘E minha mãe?’ Heitor perguntou calado. ‘Sua mãe, depois que seu o pai subiu,
ficou desesperada. Você era muito pequeno. Acho que tinha uns dois anos.’ Rosa
respondeu delicadamente. ‘Meu pai subiu? Quem é ele?’ Por pouco sua voz não saiu,
mas não era necessária. Rosa apontou para um par de estrelas muito afastadas de todas
as outras: ‘Paulo e Maria, Heitor. Seus pais.’
As lágrimas desceram uma a uma pelo rosto daquela criança. Rosa o abraçou
como abraçaria suas próprias filhas e não disse mais nada. Foi um abraço demorado e
forte. ‘Você quer vir comigo, Heitor?’ Perguntou ela, o convidando para ir a sua casa.
Mudo, como sempre, ele respondeu: ‘Obrigado! Mas quero conversar com meus pais.’
No outro dia, a multidão não sentiu falta do menino em cima dos tijolos.
Continuavam os passos, as buzinas, o choro de um bebê pedindo à mãe para mamar, as
conversas ao telefone, os vendedores ambulantes berrando e, então na primavera, os
pássaros contribuíam com a algazarra. Mas uma criança, no meio de tudo aquilo,
contava ao pai que um moleque de roupas rasgadas tinha dito que ela era diferente. ‘E
eu sei, filha.’ Dizia o pai.
Olhares na Noite
119
À noite, preocupada, Rosa olhou para o céu. Havia uma estrela a mais lá longe
de todas as outras, entre Paulo e Maria. Era uma estrela muito brilhante e, mesmo não
confiando totalmente nos seus olhos inundados, acreditou que a estrela havia piscado
uma única vez para ela. ‘Talvez ele tenha ido para longe’. Ela sorriu.
Olhares na Noite
120
O bosque do terror FÁTIMA DE MENEZES DANTAS
Eu disse que acampar no bosque não era uma boa ideia. Falei sobre as lendas
temíveis que circulavam a respeito daquele local. Eles me ouviram? Não. Então, aqui
estamos nós.
- Qual é Etan, ainda está com medo? – zombou Dênis. – Sabia que ele era
medroso demais para passar uma noite longe da mamãe...
Ele e Thomas riram com vontade. Sentado num canto da barraca, tentei ignorar
os dois. Afinal, era só uma dupla de jovens bobos, metidos a corajosos. Um dia não
seria necessário mais do que isso para me ver livre de tudo aquilo.
Se pelo menos Thomas não houvesse estacionado o carro tão longe da clareira
onde acampávamos...
Balancei a cabeça, tentando esquivar-me dos pensamentos ruins. Era uma bela
noite, a lua lançava sua luz esbranquiçada sobre nós e as risadas femininas oriundas da
barraca ao lado perfaziam o único som no calmo bosque.
O sono já começava a tomar conta de mim no instante em que um ruído
diferente de vozes humanas alcançou meu campo auditivo. Olhei ao redor,
sobressaltado.
- Vocês ouviram isso? – perguntei aos rapazes.
- Deve ter sido um animal... – iniciou Dênis. Quando Thomas lançou-lhe um
olhar preocupado, ele completou: – Uma ave ou algo assim. Não há animais selvagens
neste bosque.
Será que não? - indagou uma voz mordaz em minha cabeça. Uma voz de
mulher.
Um grito cortou o ar. Senti o coração acelerar e a pele enregelar. O som viera da
barraca das garotas. Rapidamente fui até lá, e os outros rapazes me seguiram. Dora
correu em nossa direção, lívida como papel.
- O que aconteceu? – questionei, as palavras saltando da boca num impulso
desenfreado. – Onde está Isabel?
Olhares na Noite
121
- Ela... ela... – soluçou. – Disse que queria tomar um pouco de ar, sentir a
natureza... E entrou no meio das árvores. Eu já ia procurá-la... Esse grito foi dela, estou
com medo de que algo a tenha...
Nós quatro olhamos para as árvores. A grossa cobertura vegetal dificultava a
passagem de luz. A escuridão era quase total. Mesmo assim, pegamos lanternas e
avançamos por entre os galhos longos e afiados.
Procuramos por cerca de meia hora, e nada. Resolvemos, por fim, separar-nos.
Thomas seguiu com Dora pela direita, eu fui com Dênis pela esquerda. A escuridão só
aumentava; o ar noturno ficava cada vez mais frio.
De repente, a lanterna que Dênis carregava começou a falhar. Segundos depois,
ela se apagou. Imergimos na escuridão, girando nosso olhar para todas as direções,
tentando enxergar alguma coisa.
Então, veio uma rajada de vento e, depois, algo brilhou no escuro. Começou
como um leve fulgor, que se expandiu até assumir uma forma fixa. Uma forma humana.
Era uma mulher, com a pele alva e os longos cabelos negros caindo elegantemente pelas
costas. Com aquela camiseta extravagante e a calça jeans, ela lembrava Ana, a jovem
que sumira misteriosamente alguns meses atrás. Pensando bem, a polícia havia dito que
a adolescente fora vista pela última vez nas proximidades do bosque.
- Saia daqui – disse-me Ana, seus sussurros urgentes. – Saia do bosque agora.
Só então reparei nas marcas de sangue e barro na roupa dela. Olhei alarmado
para Thomas. Ele olhava exatamente para o local onde Ana estava, mas parecia não a
enxergar. Batia na lanterna, como se ainda precisássemos de luz.
- Por favor... – implorou a moça, enquanto desaparecia entre as árvores, levando
a repentina luminosidade consigo. Bastou um segundo para que a escuridão voltasse.
Porém esta durou pouco tempo. A lanterna voltou a funcionar.
- Temos de levá-la ao médico – falei a Dênis.
- Quem?
- Ana.
- Que Ana?
Meu estômago afundou. Vi em seus olhos que ele não estava brincando.
Tentei esquecer o que acabara de acontecer, fincando-me na procura por Isabel.
Avançamos por um trecho particularmente escabroso da mata, repleto de plantas
espinhentas. A luz da lua era mais forte naquela área, iluminando até os cantos mais
camuflados.
Olhares na Noite
122
Subitamente, o horror tomou conta de mim. Uma corrente elétrica percorreu
todo o meu corpo, gelando cada parte dele.
Chamei Dênis. Sua visão se deteve no corpo de Isabel, que se encontrava deitado
numa posição esquisita em meio aos arbustos. Ela estava coberta de sangue, seu rosto
quase irreconhecível, de tão coberto de arranhões. E, no lado esquerdo de seu tórax,
havia um rasgão enorme.
- Temos de sair daqui – eu disse.
- Vamos procurar os outros...
Ao longe, um animal uivou. Outro clamor, desta vez masculino, retumbou no
bosque.
- Corre! – gritei.
Ele vai pegar vocês.
Quem é ele? - perguntei desesperado à voz em minha cabeça.
Silêncio. Corremos durante quase uma hora, sem descansar, buscando a abertura
na vegetação pela qual havíamos entrado. Os galhos produziram arranhões profundos
em nossas faces, mas nem assim paramos.
Colidimos em alguém. Thomas. Os olhos dele estavam arregalados, sua camisa
suja de lama.
- Vocês não vão acreditar...
- Espere... – Dênis balbuciou. – Dora está... morta?
- Sim.
- Vamos embora! – insisti, voltando a correr. Os dois me seguiram.
As moças sempre vão primeiro... Ele gosta de deixar os jovens de coração
valente por último... Espera até que a coragem deles vire pó e, depois, em pó os
transforma.
Tapei os ouvidos.
- Ali!
Encontramos a clareira. O acampamento estava completamente arrasado. As
barracas, rasgadas. Tudo revirado. E pegadas. Pegadas enormes no chão lamacento.
- É imenso! – arfou Thomas.
Algo se moveu em meio às sombras. Vislumbrei dois grandes olhos amarelos
nos observando das árvores. Galhos se partiram.
- Para o carro! – gritei, o coração martelando freneticamente.
É inútil fugir.
Olhares na Noite
123
- Cale-se! – explodi.
- Está atrás de nós! – afligiu-se Thomas, quando o barulho de ramos se
quebrando tornou-se mais intenso.
Etan, saia daqui! - aconselhou-me a voz de Ana. Olhei para os lados, todavia
não vi a moça.
Eu sei, eu sei!
Outro grito. Muito próximo, próximo demais. À minha frente, Dênis correu
ainda mais rápido. Virei a cabeça. Thomas não estava mais atrás de mim. Uma poça
escura aparecera perto da árvore que eu acabara de atravessar. Era sangue.
Uma risada alcançou meus ouvidos. Agora só restam dois, entoou a voz
zombeteira.
Chegamos a uma nova clareira. Paramos numa bifurcação enquanto Dênis
lembrava o caminho que nos conduziria ao carro. Meu coração desacelerou um pouco.
Vai ficar tudo bem, pensei e, em seguida, engoli em seco. Não, não vai ficar nada bem.
Thomas, Dora e Isabel – todos mortos!
- É esse! – disse Dênis, apontando o da direita.
Mas, antes que pudéssemos dar um passo, algo saiu das sombras. Uma criatura
imensa andava lentamente em nossa direção. Ameaçadoramente. Seus olhos eram
impiedosos. O focinho era grande e estava sujo de sangue. Quando ele abriu a boca,
uma fileira de dentes longos e afiados lançou uma espécie de sorriso para mim.
- O que é isso?! – exclamou Dênis.
Uma palavra veio à minha mente. Não era possível. Não poderia ser um...
Lobisomem - completou uma voz masculina. Ela me pareceu estranhamente
familiar...
Foi então que descobri que não conseguia me mover. O medo paralisara minhas
pernas, incapacitando-me de correr. Parecia que o mesmo se passava com Dênis. Não
encontrei resquícios de resistência nos olhos dele. Só havia pavor e aquiescência da
morte. E o monstro se aproximava cada vez mais. Eu tinha de sair dali... Mas por que
lutar? Eu também já chegara ao meu limite. Não, você tem de fugir. Nem sabia se
aqueles pensamentos eram meus ou mais uma voz. Não importava.
Olhei novamente para Dênis, suplicante. Ele balançou a cabeça. Então, reuni o
que restava de coragem em mim e dei alguns passos para trás. Repentinamente, a
criatura partiu para cima de nós e eu descobri que podia correr. Mas Dênis não. Ouvi
Olhares na Noite
124
sons horríveis vindos do lugar onde ele estava, contudo não pude voltar para ajudá-lo.
Não consegui.
Ele vai pegar você, corre!
Não sairá deste bosque, pelo menos, não com vida!
Captei um uivo terrível na noite.
Etan!
- Calem-se. Calem-se todos!
Etan! - repetiu a voz que eu conhecia. De súbito, Thomas apareceu ao lado de
uma árvore. - Ele matou todos nós. Vai matar você!
- Não, não!
No céu, uma nuvem encobriu a lua. A única luz de que dispunha se extinguiu.
Lua cheia, como não percebi antes? Logo, lá estava o farfalhar de folhas e o quebrar de
galhos de novo. Ele estava à minha procura. O último dos cinco. E a escuridão era
implacável. Tateei o ar, andando devagar para frente. Silêncio. Um silêncio irreal,
repleto de prenúncios.
A nuvem se afastou da lua. Mas o que a luminosidade revelou não me trouxe
alívio. Os raios esbranquiçados incidiram sobre um focinho monstruoso, a poucos
centímetros de meu rosto. Cogitei gritar, porém o pânico calara minha voz. Além do
mais, não havia ninguém para me socorrer. Eu estava sozinho com a aberração que
assombrara meus sonhos quando criança. Acabou, pensei. Houve um movimento, senti
uma dor intensa no lado do corpo e desmaiei. Naquele momento, pensei que era mesmo
o fim.
No entanto, o pior é que não era. Acordei alguns dias depois e a ferida que o
lobisomem fizera estava quase sanada. Era manhã, e dirigi até o vilarejo mais próximo
em busca de ajuda.
Logo voltara ao bosque. Era lua cheia novamente. Enquanto vagava pelas
árvores, senti a transformação. Virei lobisomem e ouvi vozes humanas. Um grupo de
jovens se aventurava pelo local.
- Vocês nunca escutaram as histórias sobre este bosque? – dizia uma menina. –
Sobre um lobo gigantesco que, em noites de lua cheia, espreita das árvores, faminto? E
sobre as almas das vítimas do monstro, que ainda vagam pela mata, enlouquecendo
aqueles que por ela se arriscam?
- Ah, deixa de bobagem – zombou um rapaz. – Ou vai me dizer que já quer
voltar para a mamãe?
Olhares na Noite
125
Então, uma fome devastadora tomou conta de mim, acompanhada de um desejo
assassino. E só o que ouvi, durante as horas que antecederam o amanhecer, foram gritos
de terror. Eles podiam gritar à vontade, isto só atiçava meu apetite.
Olhares na Noite
126
Acluofobia ALEXANDRE COPELLI
Tenho medo do escuro. Você não tem? Pense bem. O escuro é a solidão, uma
vazia imensidão. Um infinito, sem começo e sem fim. Podemos estar acompanhados,
não importa, ele vem e devora tudo. Olhamos para o lado e já não há mais lado. Não
sabemos mais quem é aquele de quem seguramos a mão. Perco o chão.
A energia elétrica acabou há pouco. Ele veio me comendo. O escuro. Minha
cama afundou. Cadê cama? Cadê Parede? Nada restou, sou agora todo mente. Estou
num mundo que é todo eu. Minha subjetividade devora toda a corporeidade. Estendo
minha mão e nada vejo. Nem sei se ainda tenho mão. Perco os limites. Do corpo. Do
quarto. Tudo some, ou tudo vira uma mesma coisa. Todo o universo é meu pensamento
solto, vagando perdido. Meu corpo é palavra. Sou metafísica pura. Sou só. Tenho medo
do escuro.
Vou tateando ao meu lado no que parece ser a minha cama, mas como posso
saber? O escuro a levou embora junto de tudo mais. Tateio. Tateio. Não há ninguém
aqui. E deveria haver? Já nem sei... Estou confuso... Perco o rumo na escuridão. Tenho
medo das presenças que possam vagar por essa dimensão, dos olhos que possam estar
me observando. E infantilidade ou não, tão logo o negrume vem, sinto-os todos sobre
mim. Os olhos.
O escuro é outra dimensão sim. Não importa se o espaço era grande ou pequeno
antes, vira o infinito. Num descampado ou num caixão, tudo vira imensidão.
Adentramos outro universo. Quando há luz, há espaço, sei até onde vão os limites do
meu quarto. Se o escuro é infinito, se meu chão sumiu e meu teto ruiu, como saberei o
que pode estar acima de mim? Estou sozinho. Mas sinto constante aquela presença que
me sufoca, o próprio breu talvez. Não sei.
Remexo-me na cama. Ainda tenho um corpo. Mas será que ele ainda é o mesmo
que sob a luz? Sinto que ainda estou com minha bermuda azul, o manto preto que
fundiu tudo numa coisa só, ainda não me fez bermuda, e nem fez dela corpo. Mas, nada
me garante que isso também não possa acontecer. A metamorfose já começou. Minha
bermuda já nem é mais azul. Sabemos que as coisas em si não têm cor, o que vemos é
ilusão, é a luz refletida por esses objetos. E se não há mais luz, não há cor. Minha
Olhares na Noite
127
bermuda é agora tão preta quanto eu. Talvez nem haja mais bermuda. Somos ambos o
escuro. Sou todo o espaço que me cerca. Onde estão meus limites? Perco o rumo na
escuridão...
Não tenho coragem de sair da cama. Tenho pavor do escuro. Não quero procurar
vela, andar pela infinitude, topar com coisas que não sei o que são. E se a luz voltar? E
se eu descobrir que perambulando por esse universo que se sobrepôs ao outro, acabei
atravessando os limites do que antes era o meu quarto? Como retornar? E se eu me
perder na subjetividade? Tenho medo. Não consigo.
A escuridão me sufoca. Posso senti-la. Posso ouvi-la. O nada grita à minha volta.
Mas agora a pouco ouvi algo mais. De onde veio esse sopro quase sussurro que passou?
Sei que ouvi. Senti. Sei lá. Perco o rumo, a noção de espaço e de tempo. Já nem sei
quanto tempo faz que a luz se apagou. O tempo existe aqui? Vivemos num contínuo
espaço-tempo, e se a escuridão é o infinito, não há mais espaço, tampouco então há o
tempo. Isso pode nunca mais acabar! Posso estar sonhando. Posso ter morrido? Não sei.
Oh, tenho pânico do escuro! Falta-me ar... Aliás, como saber se nesse universo
existe oxigênio, já que meu corpo, minhas paredes, bermudas e limites já não existem
mais? Não, não há ar. Eu também já não posso mais respirar...
Não suporto mais isso. O escuro não é natural. O próprio Deus tinha medo dele.
“E faça-se a luz” ele gritou em desespero, acuado como eu.
– E faça-se a luuuuuuz! – Cadê? Meu grito nada acendeu, a escuridão
permanece... O iluminismo não iluminou nada na minha vida. Não respiro. Não
raciocino. Estou ficando tonto...
Eu precisava sair dessa cama, ir até a cômoda. Mas não tenho coragem de
atravessar o quarto para verificar se ela ainda está lá. Lá do outro lado, onde agora
pareço ver, quase, quase palpável, grandes olhos a me observar. Não, não os vejo de
fato, porque nada se pode ver na escuridão, mas sei com certeza que estão ali... Sim ali,
agora sei onde os olhos estão... Talvez esteja lá também a minha cômoda. O que quero
pegar lá? Não lembro. Remédios talvez... Ah sim, os remédios que não venho tomando.
Mas deveria. Talvez, nem sei. Perco o rumo na escuridão. Precisava ir até lá. Mas não
tenho coragem. Não aguento mais isso! Não aguento! Não agueeeento!
Oh, que vergonha, agora eu estou chorando... O que posso fazer, eu tenho
pavor...
- Socorro! Socorrooooooo! – Então ainda posso gritar? Não tenho corpo, mas
ainda tenho voz. Voz infante que soa vergonhosamente chorosa. Voz que fará com que
Olhares na Noite
128
aquele que me observa salivando, tenha asco de mim. Se ele esperava sua presa se
acossar, chegou a hora de me pegar.
Tudo a minha volta roda. Inferno, eu não consigo mais parar de chorar. Mas
agora é tarde demais para querer me controlar. Escuto aquilo vindo em minha direção.
Ouço passos lentos, leves, talvez nem ande, flutue. Oh, estou apavorado, o que eu faço?
Estou com tontura. O infinito gira ao meu redor. Tonteira. Como posso girar nesse
mundo sem fronteira? Giro em relação a que? Minhas paredes se foram. Devo estar
caindo, sendo engolido por um buraco negro. Talvez ele me despedace antes do que
aquela coisa que se aproxima cada vez mais rápido pelo corredor. Sim, não vem da
cômoda, vem de fora, agora vejo... Mas vem de qualquer forma... Vem cada vez mais
rápido. Mais perto. Sinto. Não sei o que fazer! Morrer assim, desesperado, comido pelo
escuro, sem corpo, sem começo ou fim. Ai de mim!
Tudo roda. Tudo gira. Mas não vejo nada. Não há nada além do escuro que me
engoliu, do breu que agora sou. Sou buraco. Sou ausência. Todo consciência. O nada
roda. O nada gira. Não consigo respirar... Não consigo me mexer... Ele me imobilizou, o
mostro. O medo... Sei lá... Imobilizado, angustiado, infantilizado, encolhido me torno os
lençóis amarrotados...
Alguém murmurou alguma coisa? Estão falando comigo? Não sei, talvez... Nem
sei se posso ouvir, será que ainda tenho ouvidos? Estou chorando tão alto, não consigo
ver, respirar, raciocinar... A porta range. Abre. Olhos vermelhos, enormes.
AAAAHHHHHHHHHHHHH!
Alguma coisa se jogou sobre mim... Sobre mim, eu acho... Há alguém... Em
mim, dentro, em cima... Não sei... Ajude-me, alguém! Debato-me, esse alguém urra, me
unha, me joga de um lado para o outro da cama... Tem garras enormes... Parece... Tem?
Não sei... Jogamos-nos de um lado para o outro... Ou sou eu quem me jogo, jogo ele...
Não sei...
Luto desesperado. As palavras... As palavras... Fogem-me... Brigo... Garras,
unhas, saliva... Tudo em câmera lenta... Ouço gritos? Ouço! Meu? Daquilo que me
ataca? Sinto coisas se quebrando em minhas mãos... Viscosidade... O que? Não sei...
Rolo pelo chão, agora percebi... Ele não parece mais tão forte, não parece tão grande...
Aliás, a coisa é até fraca, quem diria? Eu como bicho acuado é que ganho força... Grito!
Grito eu, grita ele, ela... A coisa está cedendo ante meu medo, meus punhos...
Cedendo... Está acabando... Estou socando-o contra o chão... Estou acabando...
Parou! Acho que a coisa parou...
Olhares na Noite
129
Já acabou? Tateio o chão ao meu redor... Viscosidade. Limbo. Coisas duras,
coisas moles. Cabelos. Longos fios da besta. Coisas ainda quentes. Tateio mais. Uma
seringa. Uma colher. Ah, sim usadas antes de me deitar, jogadas debaixo da cama antes
da energia acabar, agora lembro. Estou mais calmo... Acho que começo a raciocinar
novamente. Um pouco...
É, seja lá o que for esse demônio, está agora mais consumido pela escuridão do
que eu. Acabou-se para ele. Mas a luz ainda não voltou. Ainda tenho medo de escuro.
Medo de olhos que ainda possam estar me observando. É, mas pensando bem, ainda
bem que isso veio até mim. Uma porta a mais e ele estaria agora no quarto de Bia...
- Oh Não! FILHAAAAAAAAAAAAAAA!
Olhares na Noite
130
O 13° detento DANIEL LUIS DE SOUZA
Geraldo estava sendo perseguido por seus inimigos de infância. O mais veloz
deles, Pedro, tinha matado, anos atrás, dois de seus cachorros. Um deles, Sofia, com
tiros de chumbinho, mergulhados no veneno, antes de serem carregados na arma, que
possuía mira a laser, e atingiu entre os olhos da cadela, enquanto amamentava seus
filhotes. Um dos rebentos de Sofia, Tobe, também tombou com veneno, plantado dentro
de uma almôndega, atirada ao pátio da antiga residência dos pais de Geraldo, agora
mortos.
Geraldo fugiu pelas ruas do centro da cidade percorrendo inúmeras esquinas, até
conseguir dobrar uma delas e entrar num pátio, antes que seus perseguidores tivessem
alcançado a última rua do trajeto do fugitivo, que se escondeu atrás de um prédio
comercial com expediente encerrado.
Ele espiou os rapazes seguindo o curso normal da rua e pensou tê-los despistado,
mas eles o surpreenderam por trás e o amedrontaram com insultos e ameaças, que o
fizeram sair correndo novamente.
Dessa vez percorreu o centro antigo, e ao se distanciar dos outros corredores,
rumou em direção ao rio. Invisível diante da escuridão da noite nublada, foi até a
margem oposta.
Estava começando a acomodar-se para descansar, quando surgiram não se sabe
de onde, os ameaçadores ex-colegas de escola. Deitado em sua cama redonda, com
colchão de mola gigantesco, como o de uma casa de swing, Geraldo acordou com o
toque do telefone.
O número de Joana, que era discado todas as noites, foi reconhecido no
identificador de chamadas e a ligação foi atendida prontamente. A voz da mulher era
suave, como um mantra, e possuía uma dicção perfeita, porém, naquela chamada, estava
arrastada, como a de um bêbado.
Ela era alcoolista e depressiva crônica, mas essas patologias nunca tinham
afetado a afinação de suas cordas vocais durante os últimos dois anos de ligações
telefônicas noturnas entre o casal de amigos. A mudança no estilo de voz preocupou
Geraldo, que ouviu apenas: “Me ajuda, por favor.”
Olhares na Noite
131
Geraldo desembarcou do ônibus na parada em frente ao shopping, localizado na
rua de Joana. Passavam das duas e meia da madrugada, e Geraldo caminhava na
velocidade de um cooper, olhando insistentemente para todos os lados. Avistou, vindo
na direção oposta à sua, um homem barbudo, cabeludo e de olhos saltados, que corria
vestindo roupas de ginástica molhadas, com o que deveria ser suor.
Entrou no pátio da moça que suplicava e se encaminhou em direção à casa, a
qual já tinha passado em frente diversas vezes, sempre tentando adquirir coragem para
tocar a campainha e conhecer a sua amiga virtual.
Nas fotos que trocaram através da internet, a moça de 22 anos, que morava
sozinha, aparecia com curvas que deveriam ser apreciadas pelas ruas da cidade como
obras de arte itinerantes. Era a magra mais gostosa que Geraldo tinha visto, e suas coxas
deveriam ser mais grossas que a cintura dela. No rosto disputavam a atenção os olhos
azuis, a pele clara e os cabelos loiros da franja.
Geraldo também era considerado um homem no mínimo bem afeiçoado, com
seu porte físico de segurança de festa, e rosto suave como de um adolescente. Mas seu
modo pouco comunicativo fazia que até mesmo seus subordinados mais
desinteressantes obtivessem maior sucesso com as mulheres do que Geraldo obtinha na
empresa de informática que trabalhava.
Geraldo chegou diante da porta, cerrou o punho, e bateu com as articulações dos
dedos na parte superior da madeira. A porta estava destrancada e se abriu. O homem
entrou dizendo:
- Joana? Sou eu, Geraldo.
Caminhou pela casa escura vagarosamente e disse:
- Joana?
Enquanto subia as escadas, tentou se comunicar novamente:
- Joana, você esta bem? Sou eu, Geraldo. Você parecia aflita ao telefone.
Viu uma única porta aberta no andar superior da casa, e se encaminhou até ela.
Acendeu a luz do cômodo e ficou catatônico ao ver o corpo da bela jovem, com quem se
comunicava quase diariamente. Pela primeira vez estava despida de qualquer peça de
roupa, e estava envolta por alguns litros de sangue.
Algum tempo depois, três policiais entraram no quarto gritando “PRO CHÃO,
PRO CHÃO, PRO CHÃO” e lhe apontando as pistolas. Geraldo foi preso como
suspeito do crime de estupro, seguido de assassinato. Vários programas de auditório e
Olhares na Noite
132
telejornais nacionais discutiam sobre os perigos de se conhecer pessoas através da
internet.
Apesar de ser chefe de um departamento na empresa em que trabalhava, Geraldo
não tinha feito curso universitário e acabou parando numa cela de um presídio da
capital, com outros 11 presos, todos detidos pelos mesmos crimes atribuídos ao jovem
solitário.
Seu novo ambiente era constituído basicamente de paredes de concreto
umedecidas por infiltrações. Uma porta de ferro com uma pequena abertura, para passar
as refeições, e uma pequena janela de ferro no lado oposto quebravam a regra. Durante
as 24 horas do dia, a claridade se mantinha inalterada, num tom que possibilitava ver os
companheiros de encarceramento e os poucos objetos que existiam ali, mas
impossibilitava a leitura, ou enxergar os detalhes menores, como a cor do feijão servido
no almoço.
Havia quatro camas, e cada uma delas era ocupada por três presos, que as
dividiam em turnos de oito horas para cada um. No período disponibilizado a Geraldo, o
sono era interrompido por duas refeições, o almoço e o lanche da tarde.
Apesar das circunstancias, Geraldo acreditava que sua vida melhoraria. Afinal,
poderia ser pior. Era respeitado pelos outros detentos, e conversava mais no
enclausuramento do que quando estava em liberdade, apesar de esperar ser violentado
logo no primeiro dia. As penas brasileiras, brandas, também o esperançavam, além da
notoriedade do seu processo, que levaria a uma grande investigação que poderia
encontrar o verdadeiro culpado.
Num dia acordou com o barulho no corredor, esperando ser o lanche da tarde.
Tratava-se da chegada de um novo membro para dividir a cela, acusado de estuprar e
matar 25 mulheres por todo o país.
Chamava-se Jair e foi reconhecido por Geraldo. Era o homem que corria na rua
de Joana no dia de sua morte. Jair notou ser observado e sorriu, reluzindo a cela escura
com seus dentes branquíssimos, retribuindo o olhar.
- Não estou vendo você direito, mas deve ser o namoradinho virtual da mulher
mais gostosa que eu peguei.
Os demais presos fitavam Geraldo e Jair. Os três ocupantes das camas
naquele horário esqueceram a preguiça existente ao despertar, e juntaram-se aos demais.
Jair continuou:
- Pessoal, temos um inocente aqui.
Olhares na Noite
133
Outro detento gritou:
- Que comece a festa!
Geraldo é ocasionalmente espancado, e diariamente estuprado desde aquele dia
pelos seus companheiros de confinamento, que o alimentam à força, para evitar o
suicídio do pobre homem por inanição.
Olhares na Noite
134
Caça NARJARA DE OLIVEIRA
O nevoeiro cobre a cidade naquela noite fria de inverno.
O sujeito de sobretudo negro espera pacientemente. Ele observa cada canto
daquela cidade até então deserta, o menor movimento ganha sua atenção.
Acende um cigarro, na segunda tragada ouve um ruído característico.
Alguém está saindo de dentro do bueiro.
É um homem calvo de aparência jovem. Ele se movimenta com cuidado,
prestando atenção ao seu redor. Não quer se pego de surpresa como na última vez.
O estranho de sobretudo aguarda o momento certo para entrar em ação. Esperou
horas e podia muito bem aguardar mais alguns instantes para fazer o seu trabalho.
Após concluir que o ambiente é seguro, o homem calvo percorre os becos em
busca de algo. A tonalidade pálida de sua pele e as olheiras revelam que ficou muito
tempo escondido entre as trevas de seu esconderijo.
Não desviando o foco daquele homem, o estranho o segue com cautela.
Precisava esperar o momento adequado.
O homem calvo pula o muro que divide o ferro velho. Sobre o capô do carro
antigo, nota-se algo que tanto deseja. Um gato cinzento de pêlo curto dorme
tranquilamente.
O homem saliva observando o pequeno animal. Ele o quer, deseja saciar sua
fome, mas não nota que o estranho está cada vez mais perto de seu objetivo.
Ele se arrasta com cuidado para não espantar o felino. Chega perto o suficiente
e, com agilidade, abraça o animal contra o seu corpo, sufocando-o até a morte.
Estava feito, teve sucesso ao conseguir a refeição que tanto ansiava há dias.
Não podia esperar mais, o faria ali mesmo, não havia ninguém, o lugar era
apropriado. A névoa era sua proteção. Mas não contava com a aparição daquele homem
de sobretudo negro.
Este retirou de dentro de seu casaco, uma espécie de arma. Ajustou-a mirando no
seu alvo.
Olhares na Noite
135
Como se pressentisse que algo estava para acontecer, o homem calvo se esconde
atrás do carro. Ele sabe que alguém está observando seus movimentos. Lamenta-se por
ter sido tão descuidado e não sabe se terá a mesma sorte que tivera antes.
Decide largar o corpo daquele pequeno animal, por mais que estivesse faminto,
não queria correr o risco de ser pego.
O homem calvo corre se embrenhando na escuridão.
O caçador nota a ação de seu alvo e decide ir atrás, tinha certeza, não o perderia
dessa vez.
O medo é visível em seu rosto. Ele corre como nunca, saltando pequenos
obstáculos à sua frente. Percorre a antiga linha de trem, deparando-se com vários vagões
abandonados e castigados pelo tempo.
Sabe que não tem para onde ir, o lugar era perfeito para ser localizado. Decide se
esconder em um dos vagões, ansiando que seu caçador o procurasse em algum dos
vários outros vazios. Aproveitaria sua distração para tentar fugir mais uma vez.
O som de passos é presente. O caçador sorri porque descobriu o plano de sua
caça. Era questão de tempo.
O homem calvo fica a espreita, e observa pela brecha que o caçador se dirigia ao
lado oposto da onde se encontrava. Essa era a hora. Saltou e correu o quanto pôde sem
olhar para trás.
Estava a poucos metros da entrada do esgoto principal da cidade. Estava dando
certo, ele realmente pensou que conseguiria escapar mais uma vez. Mero engano.
Quando estava perto o suficiente de seu refúgio, uma figura se pôs a sua frente.
A silhueta revelou uma mulher trajada de couro negro.
Era o fim, tinha sido capturado. Sem ter para onde fugir, decide esperar pelo seu
triste destino.
A mulher de longos cabelos escuros e traços orientais dirige-se a ele. Acuado,
manteve-se imóvel e sentiu a mão gélida tocando o seu pescoço.
Ela sorriu, mostrando seus caninos protuberantes. Seu parceiro chega ao local.
- Você sabe que não deve brincar com a refeição de nossos contratantes.
- Eu adoro ver o olhar desolado deles quando os pegamos. É fascinante e quase
prazeroso.
- Vamos, temos que levá-lo intacto.
- Nem uma gotinha? – A mulher pergunta esperançosa para o seu parceiro.
Olhares na Noite
136
- Perdemos muito quando levamos aquela criança com uma suposta mordida no
braço esquerdo. Não queremos que isso se repita – o caçador respondeu, olhando firme
para sua parceira.
- Ok, vamos terminar logo com isso – a mulher respondeu indiferente.
Chegando ao local, o casal de caçadores entrega a jaula contendo o homem
calvo para a pessoa que os contratou.
- Vocês demoraram dessa vez – comentou o homem aparentando ser de meia
idade.
- Como vê, a presa tem um certo valor por ter nos dado tal trabalho – respondeu
o caçador.
- Quando acabarmos com ele, terão sua recompensa – disse fixando um olhar
sádico sobre a vítima que se encontrava encolhida no canto da jaula.
- Vamos. Ainda temos muito trabalho para realizar.
O ano é 2033. Sua raça expandiu de tal forma que os humanos se tornaram uma
iguaria única e valiosa para os vampiros nobres.
O casal retorna para a cidade visivelmente desabitada. Por mais difícil que fosse,
sabiam que encontrariam mais humanos refugiados. Estariam à espreita, prontos para
cumprir seu objetivo: caçar.
Olhares na Noite
137
A história da garota no poço de sangue THRIS WAY
- Papai? Para aonde estamos indo?
A floresta escura lançava seus braços negros de sombras pelo caminho. Claire
não gostava de sombras - não gostava de nada que fosse escuro ou sombrio - mas o pai
não lhe soltava a mão, carregando-a pelo caminho deserto.
- Onde está o Colin, papai? Ele não vem com a gente?
O pai parou bruscamente. Lá estava a capela do outro lado da cidade, com seu
aspecto sombrio cheio de corvos na torre de pedra. A cruz estava enquadrada no alto
pelo feixe de luz prateada da lua, deixando o aspecto do lugar ainda mais aterrorizante.
Claire foi hipnotizada por aquela mórbida paisagem por um longo tempo.
- Papai? – Chamou amedrontada, desviando o olhar da igreja infausta.
Mas ela estava sozinha.
***
Fazia muito tempo que Colin não voltava para sua cidade natal - a pequenina e
quase insignificante Maywell - talvez desde que tivesse perdido o pai, quando ainda era
apenas um moleque irresponsável de sete anos. Esteve em Londres todo este tempo com
os tios, pequenos nobres, mas pessoas com contatos entre os mais poderosos. Graças à
ajuda deles conseguiu se formar em advocacia e agora trabalhava para um velho senhor
de grande riqueza que lhe tinha quase como um filho. Sua vida estava garantida.
Não gostava de recordar da sua infância sofrida, pois quanto mais lembrava,
parecia sempre esquecer-se de algo, embora nunca descobrisse o que era. Naquela época
ajudava seu pai a vender as frutas mirradas que colhiam no campo. A colheita era tão
pobre quanto eles. Passavam fome. Não tinham quase nada. A casa era precária e
ameaçava despencar na menor das tempestades. A vida era cruel e sem esperanças.
Todos sofriam.
Agora possuía tudo. Não era rico, mas possuía dignidade e trabalho. Estava feliz.
Mas ao voltar àquela cidade, acercava-lhe um clima de perda, sentia que todos os seus
sonhos de uma vida normal e honesta estavam ameaçados. Sentia isso na pele. O
Olhares na Noite
138
coração palpitava e precisava de um esforço redobrado para se manter em pé e driblar a
tremedeira das pernas. Suava frio.
- Senhor Colin! – chamou a senhora Ângela, que há muito tempo cuidava dos
terrenos de sua antiga casa. – Seja benvindo de volta, senhor Colin! Como vai?
- Estou muito bem. – Colin curvou-se – Obrigado pela recepção. Notícias do
comprador do terreno?
Os dois começaram a andar pelas ruas.
- Ah, estas são boas novas! Foi-me preciso meses e mais meses de lábia para
convencer aquele homem, meu senhor! Como foi difícil!
- Mas não havia me dito que ele não era daqui de Maywell? Que não havia como
saber das lendas? – Colin resmungou meio nervoso. Queria o quanto antes resolver
aquele assunto.
- Sim, meu senhor Colin, mas parece que depois de ouvir a “História da Garota
no Poço de Sangue” ele pôs na cabeça que investigaria o terreno antes da compra, e foi
o que fez.
- E o que ele descobriu? – perguntou Colin, puxando um lenço das vestes para
enxugar o rosto molhado de frio suor.
- Ora, meu senhor, isso eu não sei. Mas ele saiu bem impressionado. Custou-me
muito convencê-lo de que o senhor esclareceria todas as dúvidas quanto ao terreno
quando chegasse, e só então voltou a se interessar pela compra.
Ele olhou para a pracinha ao redor, não gostava mais de Maywell, aliás, somente
o menino ingênuo que era quando morava nas redondezas poderia gostar de um lugar
sinistro como aquele.
- Eu vou até lá agora mesmo. Por favor, chame o senhor comprador, e peça que
venha ao meu encontro, senhora Ângela.
A velha pareceu meio perturbada com a repentina decisão de Colin, mas ele não
tinha nem mais um segundo a perder. Queria se livrar da última coisa que o ligava
aqueles abomináveis dias de pobreza da sua infância.
Chegou com alguma dificuldade à casa que no passado lhe pertencera. Não
entrou, mas admirou-lhe o aspecto sombrio de velharia. As telhas despedaçadas e
cobertas por folhas caídas não eram mais convidativas do que um túmulo aberto em
meio ao cemitério. Aliás, era o que aquele lugar parecia: o campo de um grande e
esquecido cemitério. As grandes árvores obsoletas se balançavam dançando com a
ventania fúnebre que nunca parecia abandonar o lugar. Tudo lhe causava calafrios,
Olhares na Noite
139
como se a qualquer momento visões assombrosas fossem desfilar seus cortejos
espirituais. Admitia, estava com um pouco de medo. Mas não era apenas pela
fantasmagoria do local. Algo a mais existia ali, aquém das suas lembranças, das suas
recordações infaustas de criança.
Mas não foi a casa que o deteve. Ele passou por ela. Segundo diziam as lendas
de Maywell, o problema maior do terreno estava no poço atrás da capela. Até mesmo as
crianças da cidade sabiam recitar os poemas consagrados àquela diáfana história:
“Havia uma garota no Poço de Sangue. Uma garota mergulhada no Poço de Sangue”.
Colin desprezava aquela lenda. Não haveria absolutamente nada de errado com o poço –
a razão o convencia – mas, ainda assim, algo lhe causava medo.
A floresta continuava com suas árvores sinuosas atrapalhando o caminho
sombrio. As altas copas praticamente se juntavam umas com as outras no alto,
parecendo a enorme tampa de um caixão de nobre madeira, desejosas de enterrar Colin
ainda vivo.
Ele parou de correr ao chegar bem próximo à capela. A igreja marcada pela
erosão apresentava claramente seus sinais de decadência, no alto da torrezinha, moradia
de afamados corvos, o sino de bronze parecia impotente. Esperou encontrar algumas
freiras ou algum padre, ou monge...
Mas ele estava sozinho.
- Papai?! – chamaram.
O sussurro o sobressaltou tremendamente. O coração palpitou mais forte dentro
do peito. Em sua mente um monte de possibilidades sobrenaturais fez arrepiar sua
espinha. Ele começou a tecer razões lógicas e acalentadoras para ter ouvido uma voz
como aquela no meio de uma floresta completamente deserta.
- Colin?
Parecia agora que imaginava chamarem seu nome, principiou a atravessar os
arredores da igrejinha e se dirigiu para a última parte da floresta, onde estava o tal poço.
Foi quando sentiu ainda mais forte e mais perto aquele chamado inoportuno:
- Colin! Meu irmão!
Ele parou, sem poder mais andar. As pernas não o obedeciam, não queriam
seguir em frente. Todo o corpo de Colin tremia. Mais algumas fortes batidas de seu
coração, e ele tinha certeza que seu peito seria arrebentado para pôr o órgão pulsante
para fora. Uma sensação estranha e magnética jazia atrás de suas costas. Sentiu o vento
Olhares na Noite
140
mais gelado que o do ártico e uma presença inegável atrás de si. Tudo que não queria
era olhar para trás, mas de alguma forma, era o que sentia que deveria fazer.
Virou o rosto... Olhou. Uma silhueta prateada pequenina, com a forma de uma
criança acabava de desaparecer entre as sombras como se fosse vapor. Ele pulou para
trás sem poder acreditar. Das sombras só havia a voz, agora longínqua, que repetia
“Colin! Meu irmão!”.
Ele não tinha irmão nem irmã. Recordava-se apenas da sua infância sozinho com
o pai. Voltou a correr para alcançar o poço. Qualquer som seria mais oportuno que
aquele chamado das sombras. Estava com medo e sozinho naquela floresta assombrada.
Lá estava o poço, tão solitário quanto ele, numa clareira da floresta. Era como se
nem mesmo as árvores quisessem tocá-lo, por medo. Sua presença melancólica era
perturbadora em meio aquele vazio. O balde que o complementava jazia alçado em cima
das bordas, seco, sem coragem de ir para a profundeza das águas. Uma ventania
inesperadamente mais forte atormentava Colin, que não possuía mais palavras para
descrever a amedrontadora situação. Estava de frente ao poço, contudo, havia aquela
mesma presença assustadoramente magnética atrás. Novamente acabou se virando...
- Colin, meu irmão...
Era a mesma figura translúcida e prateada de antes: uma menina de longos
cabelos loiros e olhos claros, pele branquinha com pontinhos de sardas, bochechas
rosadas e um antigo vestido branco de linho. Ela o encarava profundamente.
- Eu não tenho irmãos! – Colin bradou amedrontado.
- Você se esqueceu, não foi, Colin? Desde aquele dia... Você se esqueceu.
O fantasma veio em sua direção. Colin, assustado, recuou para trás.
- Eu estive tão sozinha, Colin... Eu nunca deixei de chamar por você.
Ele escapou para o poço, apoiou-se nas bordas de pedra, derrubando o balde
dentro das águas escuras, escuras... Seus olhos não conseguiram se desviar da
vermelhidão luminosa das águas profundas. Aquilo não era apenas água, mas sangue...
E sob seu olhar, emergia um corpo de uma criança mutilada. Com um choque, as suas
lembranças do passado esquecido voltaram de uma só vez:
- Claire! – Ele suspirou paralisado.
- Colin...
Ele sentiu as mãos geladas do fantasma o empurrar para o poço. Caiu sem
escolha, o gosto era de sangue e ele mergulhava para dentro daquelas rubras águas
repugnantes com ares de pavor antigo.
Olhares na Noite
141
- Colin, você se lembra o que aconteceu? Papai gostava muito de mim, mas ele
fazia coisas de que eu não gostava. Naquela época você não sabia, mas era porque eu
parecia muito com a mamãe, Colin.
“Papai quis se livrar de mim por isso. Ele me levou até a floresta, como na
história do João e Maria. Ele me trouxe até aqui e depois me abandonou...
“Logo vieram os ladrões e me maltrataram. Fizeram coisas horríveis comigo e
jogaram meu corpo no poço. As irmãs da capela me acharam no poço cheio de sangue e
foram avisar a você, Colin. Papai te confessou o que havia feito. Você não pôde perdoá-
lo e o matou. Você não se lembra? Foi porque depois você correu até onde eu estava e
viu meu corpo no poço de sangue. As irmãs te carregaram para casa. Você desmaiou e,
por causa do trauma, esqueceu o seu passado.
“Mas eu não esqueci você Colin... Eu nunca deixei de te amar.”
Agora Colin se lembrava de tudo e afundava nas águas vermelhas. Não se
importava mais com nada, só queria ficar junto da sua irmã. Da sua adorada Claire.
Nunca mais queria esquecer-se dela.
Olhares na Noite
142
Fugitiva SORAIA BARBOSA
Alice estava aflita, queria fugir daquele pesadelo, se livrar do terror que
martirizava sua alma todos os dias. Não havia ninguém disposto a ajudar, estava
sozinha, tudo o que ouvia eram conselhos batidos dados com receio a uma jovem
considerada louca. Já havia tentado não voltar para aquele apartamento, mas não obteve
êxito, uma energia misteriosa a fazia voltar sempre, mesmo que à força.
Alimentada apenas por um fio de esperança, ela esperou por dias e nada se
resolveu, as coisas só pioravam, queriam deixá-la louca e sabia disso. Não aguentava
mais chegar, passar por aquele cenário assustador, se trancar em seu quarto e chorar, se
lamentar pela sua vida esperando pelo dia em que se tornaria livre, mesmo sem saber se
tal dia ainda chegaria.
Cheia de todo aquele sofrimento, a garota resolveu tentar fugir de uma vez por
todas, se livrar, mesmo que isso fosse custar sua vida. Arrumou seu quarto assim que
chegou do curso, queria deixar tudo em ordem para não dar trabalho quando fossem
procurar por ela. Deixaria algo para terem pistas de onde encontrá-la ou saberem, pelo
menos, o porquê de sua loucura, de sua fuga desesperada.
Já estava ansiosa quando saiu do quarto, ainda queria olhar um pouco aquele
lugar com o intuito de não se esquecer de tudo o que passou ali. Não que quisesse se
lembrar, mas que ficasse memorizado em sua alma para que nunca mais voltasse lá,
nem mesmo em outras vidas.
No corredor estavam eles, fantasmas com a aparência assustadora infestando a
parede. Observavam Alice com seus olhares mórbidos, vazios. Fizeram questão de não
fazer barulho naquele dia, sabiam que não aguentava mais e estava indo embora. Todos
aqueles dias a atormentando já foram o suficiente para conseguir o que queriam. Agora,
a decisão sobre sair dali dependeria apenas dela.
Tensa, a garota foi andando até a sala, pisando sobre os ossos secos espalhados
por todo o chão e tocando as paredes para se guiar em meio à névoa densa que
inacreditavelmente infestava todo o local. Chegando à porta, tentou abri-la. Estava
lacrada. Sim, lacrada, algo impedia que a chave fosse inserida na fechadura, o que não
causou surpresa em Alice. Aquela porta ficava bloqueada todos os dias a partir do
Olhares na Noite
143
momento em que entrava lá, aqueles seres a prendiam como pais severos querendo
segurar a filha delinquente em casa. Não tinha como negar que realmente agiu como a
filha delinquente, mas não queria mais aquele castigo, não achava que ainda merecia.
Ao se afastar da porta, Alice percebeu algo tocando levemente seu braço. Em
seguida, pequenos arranhados chamaram sua atenção. Uma enorme tarântula escalava
seu braço, determinada a fazê-la sofrer com a dor provocada pelo seu temível ataque. A
garota deu um grito e começou a dar uma série de tapas rápidos em seu braço, na
tentativa desesperada de isolá-la. Um dos tapas atingiu ligeiramente a aranha que caiu
em meio aos ossos, ficando escondida entre eles.
Após tomar fôlego, Alice continuou seguindo em sua última busca pela saída
daquele terrível cárcere. Na sala, um homem se encontrava sentado no sofá. Não
conseguiu ver quem era, estava de costas. Com medo de quem poderia encontrar,
resolveu passar rapidamente por ali e seguir para a cozinha.
Enquanto passava atrás do sofá, a garota ouviu o homem a chamando. A voz era
familiar, então, olhou para trás instintivamente. Na mesma hora ficou horrorizada com o
que viu, os olhos se arregalaram e um sussurro de espanto saiu com o pouco ar que
havia restado em seus pulmões. O homem tinha o rosto totalmente desfigurado, sangue
fresco escorrendo em meio às enormes feridas. Dava gargalhadas enquanto Alice olhava
apavorada, se divertia vendo-a naquele estado.
Diante daquela cena digna de um sangrento filme de horror, saiu correndo para o
corredor que dava para a cozinha. Enquanto a jovem passava, os fantasmas começaram
a jogar seus braços atemorizantes sobre ela. Sempre que um deles a tocava, sentia um
forte calafrio, sugavam o quanto podiam de sua energia para tentar pará-la, ver se
realmente queria sair dali. No final do corredor, já enfraquecida, bateu o pé em uma
estaca de madeira que havia no caminho, fazendo com que tropeçasse e caísse no chão
da cozinha.
Ao abrir os olhos, Alice se viu estirada em meio a uma poça de sangue.
Rapidamente, levantou-se tentando retirar o excesso do líquido do corpo, o cheiro a
deixava enjoada. Quase sem respirar, observou a cozinha por um tempo. Fazia dias que
não ia nessa parte do apartamento, tinha medo das coisas que via ali, sempre trazia
comida da rua para comer em seu quarto, o único lugar que podia ficar em segurança.
A cozinha tinha sangue por todo o chão, talheres espalhados em cima da mesa e
das pias, além de travessas com um líquido verde e fedorento cheio de insetos perto de
pratos como se estivessem prontos para serem servidos. O cheiro no local era
Olhares na Noite
144
insuportável.
Logo, a jovem encontrou sua saída. A névoa não impediu que avistasse uma luz
enorme vinda do final da cozinha. Bastava caminhar até lá e supostamente estaria livre.
Caminhava em direção à luz quando uma mão que parecia estar apodrecida veio
de debaixo da mesa e agarrou sua perna. Ela gritou com o susto e em questão de
segundos, sentiu seu corpo batendo com muita força contra o chão. Sentiu muita dor,
estava fraca, mas precisava lutar, não queria se render agora que tudo já estava quase
acabado. Debaixo da mesa, dois monstros com a aparência de corpos em decomposição
puxavam suas pernas, tentando atacá-la.
Desesperada, Alice batia as pernas e chutava as mãos dos monstros, tentando se
livrar. As criaturas eram fortes e pareciam determinadas a não deixá-la sair dali.
Logo que conseguiu deixar uma das pernas livre, Alice chutou o pé da mesa com
força. Junto com gotas da sopa de insetos asquerosa que se encontrava sobre a mesa,
caiu uma faca. Na mesma hora, pegou o objeto e começou a utilizá-lo para atingir os
monstros.
Em uma das tentativas, Alice perfurou a mão de um deles, que emitiu um terrível
grito agudo e soltou suas pernas. Na mesma hora, se levantou e tornou a correr em
direção à luz. Quando olhou para trás, notou que o outro monstro havia saído de baixo
da mesa e agora ia atrás dela.
No final da cozinha, havia uma grande porta de vidro fechada. Do lado de fora,
era possível ver uma varanda e o céu repleto de estrelas. Não teve tempo para se
emocionar com a bela vista do cenário externo, estava há muito tempo sem ver a lua e
as estrelas, sentia saudades, mas se ficasse ali, era certo que nunca mais as veria. Logo,
tentou abrir a porta que estava trancada. Olhou para trás e viu que o monstro ainda a
perseguia, desta vez segurando uma faca. Ele já estava se aproximando, não tinha muito
tempo para pensar em como fugir.
Desesperada, começou a dar chutes na porta até que o vidro se quebrou. Sem se
importar com os cortes que se abriram em sua perna, abaixou e passou pelo vidro
quebrado. Correu pela varanda se sentindo quase vitoriosa, finalmente tinha conseguido
sair daquela casa. Conseguiria se livrar pra sempre? Não sabia... Ao chegar à beirada da
varanda, uma decepção, estava no oitavo andar do prédio. Sim, sempre morou no oitavo
andar e estava na varanda de seu apartamento.
Ao virar-se para trás, viu o monstro na varanda vindo atrás dela com a faca,
determinado a levá-la de volta para sua prisão, onde achava que ela merecia ficar por
Olhares na Noite
145
toda a eternidade. Alice, disposta a se livrar daquele pesadelo a qualquer custo, virou-se
de costas para o apartamento, olhou para o céu e pulou.
***
Ao ouvir o som da queda, vizinhos ligaram para a emergência. Em minutos já
havia carros de polícia e uma ambulância em frente ao prédio. Policias interrogavam os
moradores que contavam sobre o passado da jovem. Alguns estavam até arrependidos
por não terem feito nada antes, pois sabiam que estava louca e que um dia isso poderia
vir a acontecer.
Alice dividia o apartamento com três amigos, até que um dia todos
desapareceram misteriosamente e ela começou a ficar estranha. Acordava na hora de ir
para o seu curso que era à tarde, e chegava em casa sempre às seis. Quando passava
desse horário chegava murmurando, como se alguém estivesse a levando à força para o
apartamento, porém, não havia ninguém com ela, todos viam que estava sozinha. Ao
entrar no apartamento, se trancava no quarto e ficava até o dia seguinte, muitas vezes
chorando até adormecer. Se perguntassem sobre seus companheiros, ela dizia apenas
que eles foram embora, voltaram para casa.
Na noite do suicídio, Alice gritou muito, parecia estar em pânico. Alguns
vizinhos viram quando a garota, assustada, fugindo de algo invisível, foi até a varanda e
pulou.
Depois de ouvir os estranhos relatos, policiais entraram no apartamento para
investigar. Tudo parecia normal, só um pouco empoeirado devido ao fato da garota não
frequentar os cômodos. As portas estavam todas abertas, com exceção do quarto onde
ela ficava.
Quando entraram no quarto, os policiais ficaram surpresos. O local estava todo
arrumado e sobre a cama estava um diário. Nele havia várias coisas sobre a vida de
Alice que, de início era uma garota aparentemente normal, mas nas últimas semanas só
havia feito rabiscos sem sentido. Na última página havia uma mensagem: “Estávamos
bêbados e discutimos por causa de uma dívida, então eu perdi a cabeça e matei todos
eles. Agora, não me deixarão em paz enquanto não me matarem também. Hoje espero
sair daqui.”
Preocupados, os policias começaram uma busca por todo o apartamento.
Encontraram sobre a mesa da cozinha um refratário com sopa de legumes e uma análise
Olhares na Noite
146
revelou que a sopa estava envenenada. Os corpos dos ex-companheiros de Alice
estavam embaixo da mesa, todos com o rosto desfigurado pelo efeito do veneno, um
deles segurava uma faca.
Olhares na Noite
147
EPÍLOGO
...mas um filete escasso de luz é capaz de renovar as esperanças.
Mas não há gozo num mundo de desilusões, onde a dama da capa negra quer
arrancar-lhe o último suspiro.
Apenas por soslaios. Nenhuma inspiração para viver.
O rubor escapa-lhe da face.
A avidez retorna-lhe e é como se fosse um fantasma. A luz esvai-se lentamente.
Corre para alcançá-la. É inútil, está de volta à escuridão.
Decide finalmente se retirar.
A soturna lady consegue seu prêmio.
Caminho de encontro ao barqueiro.
Só a alma sussurrante.
Viagem sem volta.
Olhares na Noite
149
Alexandre Copelli nasceu em Votorantim, São Paulo, em 1989. Cursa Processamento
de Dados. É co-autor de duas antologias de contos: O Livro Negro dos Vampiros,
Andross editora, e Vampirus Brasil, Giz Editorial.
Contato: [email protected]
Alexandre da Costa trabalhou durante dez anos como jornalista. Nesse período, lançou
dois livros com pesquisas sobre futebol. Desde 2004, cansado das redações
burocráticas, virou professor de História. Em 2009, participou da antologia de contos
Marcas na Parede, da Andross Editora. É formado em comunicação social e História.
Foi correspondente internacional em Tóquio entre 2000 e 2002. Mantém o blog
http://aledacosta.blogspot.com há cinco anos, local em que publica seus ensaios
fotográficos e contos.
Contato: [email protected]
Angelo Tiago de Miranda reside em São Paulo - Capital. É geógrafo, professor de
Geografia e estudante do curso de Licenciatura em Pedagogia. Escreve artigos e planos
de aula de Geografia no site UOL Educação (http://educacao.uol.com.br/). Já participou
da antologia de contos II Concurso História do Meu Bairro, História do Meu
Município, da editora Arte & Ciência. Conquistou recentemente a 3ª colocação na
categoria conto no I Concurso Literário História da Cidade – Embu 50 anos. O texto
será publicado na forma de antologia, prevista para ocorrer no segundo semestre de
2010.
Contato: [email protected]
Daniel Luis de Souza é graduando, do 5º semestre, de Psicologia na Universidade do
Vale do Rio dos Sinos. Foi premiado com a segunda colocação no concurso literário
Nossa Terra, Nossa Gente, da editora Taba Cultural.
Contato: [email protected]
Diego Alves nasceu na cidade de Pederneiras, SP, em 1988. Sempre gostou de ler e
ouvir histórias, e aos dez anos começou a escrever as dele. Quando estava na sexta série,
ficou em segundo lugar no Terceiro Concurso de Contos, Crônicas e Poesias de
Pederneiras. Em 2009 foi classificado para a segunda fase do Mapa Cultural, categoria
literatura, da cidade de Pederneiras.
Olhares na Noite
150
Expõe suas obras em: http://oultimovampiro.blogspot.com/,
http://detrasdovidro.blogspot.com/ e http://cronicasbardas.blogspot.com/
Contato: [email protected]
Edweine Loureiro da Silva é advogado e Mestre em Política Internacional pela
Universidade de Osaka (Japão). Recebeu Medalha de Bronze no IV Concurso Nacional
de Contos de Cordeiro (RJ) – “Troféu Machado de Assis” – em 2008. Foi também 1ª
Menção/ Categoria Crônica no IX Concurso Literário “PRÊMIO CLEBER ONIAS
GUIMARÃES” em 2009, além de selecionado no II Concurso “Poetas em
Desassossego”, em Portugal.
Contato: [email protected]
Eriwelton “Erivas” Soares, é estudante, e novato no ramo da escrita de terror. Começou
a escrever poesias simples aos sete anos, e aos 14 passou por influencias mais sombrias
por intermédio de uma amiga, na qual tem muito apreço; e a partir daí começou a
explorar o quesito terror e épico. Possui um livro divulgado no site
http://eremitasoul.wordpress.com
Contato: [email protected]
Fátima de Menezes Dantas nasceu em 1995 e, desde então, reside em Mossoró - Rio
Grande do Norte. Há dois anos, iniciou suas atividades literárias, escrevendo pequenos
textos e desenvolvendo ideias para um livro. Leitora compulsiva, encontrou nos livros
um refúgio contra as chagas do mundo. Algumas de suas obras podem ser encontradas
no blog http://www.fatimamd.blogspot.com/.
Contato: [email protected]
Georgette Silen tem 38 anos e nasceu em Caçapava, São Paulo. É arte educadora,
formada em artes cênicas. Escritora de ficção e fantasia, possuí contos publicados nas
antologias Dimensões.BR e Marcas na Parede da Andross Editora, está organizando a
antologia O Grimoire dos Vampiros pela Editora Don Munhoz, participa da Antologia
Folhas de Espantos, também da Editora Don Munhoz e da antologia Metamorfose:
Fúria dos Lobisomens da Editora All Print. Foi selecionada para a antologia
Paradigmas 4, da Tarja Editorial; e Poe 200 Anos, da editora All Print.
Contato: [email protected]
Olhares na Noite
151
Geraldo Trombin é publicitário e membro do “Espaço Literário Nelly Rocha Galassi” –
de Americana/SP (desde 2004), lançou em 1981 o seu livro Transparecer a Escuridão,
produção independente de poesias e crônicas. Com mais de 120 classificações
conquistadas em inúmeros concursos realizados em várias partes do país, tem trabalhos
editados em mais de 40 publicações.
Contato: [email protected]
Igor Silva é pseudônimo de Igor Patrick Silva, escritor nascido em Diamantina, MG. É
autor da série O Olho de Hórus. Atualmente, é colunista do Potterish
(http://www.potterish.com) e organizador do projeto Antologia Meio-Sangue, em
parceria com a Editora Intrínseca, além de escrever periodicamente para a TerrorZine.
Publicou anteriormente em Dias Contados, Andross editora e Solarium II, Multifoco.
Contato: [email protected]
Isabella Oliveira nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1992. É componente de um
seleto grupo literário em sua cidade. Essa é sua primeira publicação em e-book.
Contato: [email protected]
Lariel Frota é pseudônimo de Marli Ribeiro de Freitas, que é professora, escritora e
poeta. Participou da antologia Universo Paulistano com o poema “Pressa” e da
antologia Dias Contados com a crônica “Relatos de Cassandra”, ambos da Andross
Editora.
Contato: [email protected], [email protected]
Luis Filipe de Almeida vive em Esteio, Rio Grande do Sul. Começou a escrever há
pouco menos de um ano. Expõe seus textos no blog "Depois da Meia noite" de
endereço: http://no-calar-da-noite.blogspot.com/
Contato: [email protected]
Marcelo dos Santos é gaúcho da cidade de Frederico Westphalen, no estado do Rio
Grande do Sul. Hoje dedica seus estudos no curso de Direito da URI. O autor tem em
seu currículo três romances escritos, mais de 20 contos de terror e cerca de 400 poesias.
Atualmente vive com os pais e a irmã em Frederico Westphalen, e se dedica no
acabamento do seu primeiro romance, que em breve será lançado.
Olhares na Noite
152
Contato com o autor: [email protected]
Marcos Gallo nasceu em São Paulo, capital, em 1992. Mudou-se para Juiz de Fora, MG.
Já ganhou um concurso de poesias, mas essa é a sua primeira publicação.
Expõe suas obras em: http://marcosgallo.blogspot.com/
Contato: [email protected]
Marília Fernandes nasceu em 08/12/1994 em Mossoró, Rio Grande do Norte, onde vive
até hoje. É uma assídua leitora, sendo este o primeiro de muitos projetos que sonha
publicar.
Contato: [email protected]
Maycon Batestin é um autor cachoerense, formado em Publicidade e Propaganda, que
admite sofrer certos pesadelos com filmes de Freddy Kruger e Stephen King.
“- Mas eu quero que diga, o que lhe faz ser um poeta?
- O que faz de todo mundo um poeta, o amor!” (Maycon Batestin - O Poeta)
Contato: [email protected]
Narjara de Oliveira tem 27 anos, e nasceu em Diadema, onde ainda reside. Começou a
escrever no inicio de 2009 e desde então não parou mais.
Essa é sua primeira participação em e-book. Possui uma página onde divulga seus
textos no site: http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=52766
Participou do Projeto Pequenas Histórias, da editora Cidadela.
Contato: [email protected]
Paulo Cilas nasceu em Volta Redonda, RJ, em 1991. Hoje vive em Juiz de Fora, MG,
com a família. Descobriu sua paixão por escrever na terceira série, quando ganhou seu
primeiro concurso literário. Publicou o conto “Insanidade” no livro Dias Contados, e o
poema “Só a plenitude do amor” no livro Palavras Veladas, ambos da Andross Editora.
Em 2010 sai o livro O Grimoire dos Vampiros, da editora Literata, que tem seu conto
“Becos sem saída”. Atualmente é organizador de antologias e concursos online.
Expõe suas obras em: http://letradosemsangue.blogspot.com/,
http://triomip.blogspot.com/ e http://paulocilas.blogspot.com/
Contato: [email protected]
Olhares na Noite
153
Poliane Andrade de Oliveira, nascida aos 21 de janeiro em Muriaé - MG. Escritora e
musicista. Seu acervo é dotado de contos, poesias e músicas. Com algumas obras
publicadas, segue trilhando no caminho dos sonhos, mergulhada no mundo das letras e
das notas musicais, trazendo na alma o dom de transformar um sentimento em poesia e
uma nota em melodia.
Contato: [email protected]
Rafael de Andrade nasceu em Porto Velho, Rondônia em 1986. Graduando em Ciências
Sociais na Universidade Federal de Rondônia. Já publicou nas antologias Dias
Contados, Dimensões.BR, Marcas na Parede (Andross, 2009), Folhas de Espanto (Don
Muñoz, 2009) e O Grimoire dos Vampiros (Literata, 2010).
Contato: [email protected]
Rafael Farias Cabral nasceu em São Paulo, em 1986. Já teve dois trabalhos selecionados
para antologias da Via Literária que serão publicadas no 1° semestre de 2010.
Atualmente está escrevendo seu primeiro livro: Tevet.
Contatos: http://www.tevetbook.xpg.com.br e [email protected]
Rafael Jordan nasceu em Juiz de Fora, MG, em 1992. Publicou anteriormente no livro
Réquiem para o Natal, da Andross Editora e em 2010 terá uma nova publicação no livro
O Grimoire dos Vampiros.
Publica no blog Letrados em Sangue (http://letradosemsangue.blogspot.com/).
Contato: [email protected]
Rômulo César é natural de Recife-PE, casado, uma filha, trinta e três anos de idade,
Bacharel em Direito pela UFPE – Faculdade de Direito do Recife, Procurador Federal,
escritor e compositor amador, autor de cinquenta e um contos, noventa e seis poemas e
um romance em fase de correção.
Contato: [email protected]
Sihan Felix é pseudônimo de Pedro Henrique Felix Barbosa, vencedor de vários
prêmios nas categorias poesia e crônica. Escritor da peça teatral Sentimentos ao Vento,
encenada no Teatro Valdemar de Oliveira-PE. Escritor do Romance filosófico A Face
da Ira - e o deus fecundado, prefaciado por Cyl Galindo. Como músico é professor de
Olhares na Noite
154
piano do Liceu de Artes e Ofícios Claudio Santoro em Manaus-AM. Elegido um dos
cinquenta poetas da língua portuguesa no mundo, por uma editora portuguesa.
Contato: [email protected]
Simone Pedersen é apaixonada por literatura, participa de várias antologias com contos,
poesias e crônicas. Colunista do jornal A Folha de Vinhedo e autora do livro infantil
Vila Felina.
Contato: [email protected]
Soraia Barbosa nasceu em Barra do Piraí, Rio de Janeiro, em 1989. Atualmente é
acadêmica do curso de Sistemas de Informação. Já teve participação em um antologia
de contos de terror, esta é sua primeira publicação em e-book. Expõe suas obras no site
http://soraescritora.blogspot.com/.
Contato com a autora: [email protected]
Tailine Hijaz tem 18 anos e vive na cidade de Forquilhinha, em Santa Catarina. Teve
uma poesia premiada pela Academia Criciumense de Letras e esta é sua primeira
publicação em e-book. É acadêmica do Curso de Direito da UNESC e publica no blog
Direito & Afins.
Contato com a autora: [email protected] e www.tailinehijaz.wordpress.com
Thiago Felix desde cedo descobriu seu apreço pelas criaturas da noite, já participou de
uma antologia em homenagem a Edgar Allan Poe, intitulada Poe: 200 anos da editora
All Print e atualmente está terminando seu primeiro livro sólo.
Blog: http://cronicasdamorte.zip.net/
Contato: [email protected]
Thris Way é o pseudônimo de Ana Paula Araujo dos Santos, que nasceu no Rio de
Janeiro, Capital, em 1992. É acadêmica do curso de Letras e participou da antologia
Marcas na parede - Contos sobrenaturais, de suspense e de terror, pela Andross
Editora.
Contato: [email protected]