olhar para alÉm das efemÉrides · 2017. 2. 22. · caxilÉ, carlos rafael vieira olhar para além...

172
CARLOS RAFAEL VIEIRA CAXILÉ OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES: SER LIBERTO NA PROVÍNCIA DO CEARÁ PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO – 2005

Upload: others

Post on 21-Feb-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

CARLOS RAFAEL VIEIRA CAXILÉ

OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES: SER LIBERTO NA PROVÍNCIA DO CEARÁ

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO – 2005

Page 2: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

CARLOS RAFAEL VIEIRA CAXILÉ

OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES: SER LIBERTO NA PROVÍNCIA DO CEARÁ

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em História Social. Orientadora: Profra. Dr a. Estefânia Knotz Fraga.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO – 2005

Page 3: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira.

São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.

172 p. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.

Page 4: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

CARLOS RAFAEL VIEIRA CAXILÉ

OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES: SER LIBERTO NA PROVÍNCIA DO CEARÁ

Banca Examinadora:

_____________________________________________ – Presidente da Banca Nome Instituição _____________________________________________ Nome Instituição _____________________________________________ Nome Instituição

SÃO PAULO – 2005

Page 5: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Dedico esse trabalho à minha avó Nilza Araújo Caxilé, à Flávia de Rogério e a todos meus familiares.

Page 6: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer primeiramente às Instituições PUC-SP e CAPES

pelo financiamento de meu curso e pesquisa. À minha avó Nilza Araújo Caxilé,

cujas palavras me faltam para expressar a gratidão que sinto por ela. Minha

mãe Adília Araújo Caxilé, uma santa mulher que sempre acreditou no filho

obstinado. Aos meus tios José Dantas da Silveira, Sinval Primo Caxilé e José

Barbosa, que sempre confiaram e torceram pelo sucesso desse trabalho. Às

minhas tias Aleuta Maria Caxilé, Tereza Roseneide Barbosa Caxilé e Maria

Valniza da Silveira, pessoas que sempre permaneceram ao meu lado me

iluminando e aconselhando em muitos momentos.

Sou muito grato a Estefânia Knotz C. Fraga minha estimável guia,

orientadora que esteve presente em todos os momentos dessa dissertação.

Uma verdadeira engenheira do saber, responsável por me mostrar os materiais

certos a serem empregados na construção desse trabalho. A realização dessa

pesquisa só foi possível graças às valiosas contribuições dessa magistral

orientadora.

Ainda sou bastante grato às professoras e professores da PUC-SP como

também da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal do Ceará.

São eles: Maurício Broinizi, Antônio Rago, Olga Brites, Maria do Rosário, Lilia,

Ivone Avelino, Yara Aun Khoury, Maria Izilda Matos, Denise Bernuzzi, Dedea,

Mônica, Raquel, Pedro Tota, Marina de Melo e Sousa, Eurípedes Antônio

Funes, Frank Ribard, e especialmente a Maria Antonieta Antonacci e Maria

Cristina Wissenbach pelas valiosas sugestões feitas no exame de qualificação.

Devo muito aos meus amigos de Fortaleza, Bruno Brasil, Alberto e

Marco Antônio, que sempre me incentivaram e fortaleceram minhas

esperanças. À Flávia Oliveira de Rogério, pessoa extraordinariamente amiga,

que sempre se preocupou e me ajudou durante esses dois anos de pesquisa, e

também à Teti, sua mãe. Aos meus amigos de São Paulo, cujas vivências e

VI

Page 7: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

práticas nesses dois anos são imensuráveis. São eles: Marcelo, Júlio,

Geovanni, Pedro, Zé, Fred, Rodrigo e Vinícios. Aos meus amigos de

residência, Paulo e Jânio. Aos meus conterrâneos que também percorreram e

ainda estão percorrendo esse instigante e delicado percurso da pesquisa

histórica: Moisés, Josiberto, Alênio, Daniel, Viviane, Felipe, André, Zilmar,

Gustavo, Edson e Kiko. Agradeço ainda às minhas amigas paulistas que me

proporcionaram tantos momentos agradáveis, regados a muitas gozações e

risos, Débora, Carol, Malu, Carla, Fernanda, Juliana, Daniela, Luana, Bel,

Roseli e Patrícia. Meus colegas interestaduais, Eglê e Leno de Manaus; Mário,

Érica e Ipojucan do Pará; Eduardo do Rio Grande do Sul; Elizabeth de Santa

Catarina; Vânia do Paraná; Bartolomeu, Vítor, Lívia e Xico da Bahia. Sou muito

agradecido também aos meus colegas da Associação de Pós-Graduandos da

PUC-SP, Ernani, Vladmir, e, principalmente, aos secretários dessa entidade,

Marcelo e Yara, pessoas fundamentais durante a nossa gestão na Associação.

Ainda agradeço ao Elvis, funcionário da Secretária de Alunos da PUC-

SP; à Jane e Betinha, secretárias do programa de pós-graduação em História

da PUC-SP; como também ao Sérgio Resende, diretor do Teatro Universitário

Católico, por me proporcionar muitos momentos divertidos naquele teatro.

Também sou grato a Rô e Albinha pelas calorosas conversas no RôsBar,

escutando Cássia Eller e tomando alguns goles de Boêmia.

Também devo muito à Madalena, bibliotecária da Academia de Letras do

Ceará; ao Mardônio, diretor do Arquivo do Estado do Ceará; Juliano, bolsista

do mesmo Arquivo. Ao erudito pesquisador André Frota, pelas incontáveis

horas que passamos decifrando a grafia dos escrivães, juizes e curadores

presentes nas Ações de liberdade. Aos funcionários Oswaldo e Gerusa, do

Instituto Histórico e Geográfico do Ceará; como também à Gertrudes e seu

marido Almadan, funcionários do Setor de Microfilmagem da Biblioteca Pública

do Ceará, Menezes Pimentel.

A todas essas pessoas do fundo do meu coração sou muito grato e a

elas dedico esse trabalho.

VII

Page 8: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

RESUMO NA LÍNGUA VERNÁCULA CAXILÉ, Carlos Rafael. Olhar para além das efemérides: ser escravo na província do Ceará. 2005. 172 p. Dissertação (Mestrado em História Social) PUC/SP. Inicialmente este trabalho buscou, através da análise de Correspondências

Expedidas, Ofícios, Atas, Anais da Câmara e Periódicos de Época, evidenciar

o processo de extinção do elemento servil na província do Ceará

desencadeado pelas sociedades libertadoras, especificamente a sociedade

Perseverança e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora. Demonstrou-se o

contexto sócio-político e econômico em que elas surgiram, como também os

fatores que possibilitaram a província do Ceará ser a primeira a libertar seus

escravos quatro anos antes do Império, no dia 25 de março de 1884. Em

seguida analisando, principalmente, Ações de Liberdade, evidenciou-se o

importante papel que teve a lei 2040 de 28 de setembro de 1871 para o

encaminhamento jurídico de liberdade de escravos no Brasil. Procurou-se a

partir dos embates parlamentares perceber as experiências sociais do sistema

escravista, vivenciado por senhores e escravos, relacionando essas

experiências aos projetos de encaminhamento de uma sociedade livre. E

finalmente analisou e discutiu alguns trabalhos literários escritos no Brasil,

principalmente no Ceará, a partir da segunda metade do século XIX, que

trataram da condição do africano e do afro-descendente. Focalizou-se

especificamente poesias e romances de caráter romântico e naturalista.

Palavras–chave: escravo, liberto, movimento, abolição.

Page 9: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

ABSTRACT CAXILÉ, Carlos Rafael. Olhar para além das efemérides: ser escravo na província do Ceará. 2005. 172 p. Dissertação (Mestrado em História Social) PUC/SP. Initially this work looked for through the analysis of Sent Correspondences,

Occupations, Proceedingses, Annals of the Camera and Newspapers of Time

to evidence the process of extinction of the servile element in the county of

Ceará unchained by the societies libertadoras, specifically the society

Perseverance and Future and Society From Ceará Libertadora. The partner-

political and economic context was demonstrated in that they appear, as well as

the factors that facilitated the county of Ceará to be the first to free its slaves

four years before the Empire, on March 25, 1884. Soon after analyzing, mainly,

Actions of Freedom, the important paper was evidenced that had the law 2040

of September 28, 1871 for the juridical direction of slaves' freedom in Brazil. It

was sought starting from the parliamentary embates to notice the social

experiences of the system escravista vivenciados for gentlemen and slaves and

to relate them to the projects of direction of a free society. It is finally it analyzed

and he/she/it discussed some literary works written in Brazil, mainly, in Ceará,

starting from the second half of the century XIX that were about the condition of

the African and afro-descending. Focalizou-if specifically poetries and romances

of romantic-naturalistic character.

Words - key: slave, I free, I move, abolition.

Page 10: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO........................................................................................................11

CAPÍTULO 1

O PROCESSO ABOLICIONISTA DOS ESCRAVOS NO CEARÁ:

TRAJETÓRIA ..............................................................................................................23

1.1 – AS LIBERTADORAS: O MOVIMENTO E SEUS FINS ............................................. 24

1.2 – O LIBERTADOR E SEUS IDEAIS ................................................................................ 35

1.3 – COMPRAS, VENDAS E FUGAS.................................................................................... 39

1.3 – A LIBERTADORA EM MOVIMENTO ........................................................................ 41

1.4 – AS SENHORAS ABOLICIONISTAS ............................................................................ 47

1.5 – PRESSA E LIBERDADE................................................................................................. 49

CAPÍTULO 2

RUMO À LIBERDADE ...............................................................................................55

2.1 – A LEI 2040 E OS PROJETOS QUE A RESULTARAM............................................... 56

2.2 – ESCRAVOS BUSCANDO A LEI NA LUTA PELA LIBERDADE ............................. 78

2.2.1 – BERNARDO ........................................................................................................... 78

2.2.2 – JOSÉ, JOAQUIM, ANTÔNIO, ALEXANDRINA E MARIA........................................ 81

2.2.3 – BENEDICTA........................................................................................................... 89

2.2.4 – ESCRAVA MARIA LUIZA DA CONCEIÇÃO........................................................... 93

2.2.5 – EUFRÁSIA E THEODORA ...................................................................................... 95

2.2.6 – CUSTÓDIO............................................................................................................. 97

2.2.7 – ANTÔNIO JOAQUIM ........................................................................................... 100

2.2.8 – MACÁRIA............................................................................................................ 101

CAPÍTULO 3

SER NEGRO NA LITERATURA.............................................................................109

3.1 – LIBERTADOR: LITTERATURA ................................................................................. 110

3.2 – A FAMÍLIA .................................................................................................................... 114

3.3 – GALENO: LENDAS E CANÇÕES POPULARES...................................................... 125

3.4 – ROMANCE: REALISTA NATURALISTA ................................................................ 135

CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................148

FONTES.......................................................................................................................154

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................156

ANEXOS ......................................................................................................................163

Page 11: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

APRESENTAÇÃO

Pátria, Brasil, ergue um brado Um brado augusto de luz, Que nesta festa sublime Vê-se a filha de Jesus! É a virtude predileta A redentora dileta Que se chama – caridade! Que com suas asas douradas Cobre essas frontes magoadas E lhes dá a liberdade! Sim! Que esses pobres escravos Nossos legítimos irmãos, Que a tanto tempo choraram São agora cidadãos! 1

O embrião dessa dissertação começou na graduação. Logo no primeiro

ano do curso de História me interessei em realizar uma pesquisa referente às

religiões afro-brasileiras presentes no Ceará, especificamente, em Fortaleza.

Tal tema me despertou simpatia ainda na infância, quando eu e meus pais

freqüentemente íamos assistir ao maracatú desfilar pelas ruas do centro de

Fortaleza. Desde essa época a cultura afro-brasileira me fascina,

principalmente as religiões e festas. Meu primeiro impulso enquanto recém

ingresso na universidade foi procurar um professor especialista no assunto que

pudesse me auxiliar.

Tive conhecimento de existir no departamento de História um

pesquisador chamado Eurípedes Antônio Funes. Entrei em contato com o

professor e ele se comprometeu a me ajudar. Somente alguns meses depois,

veio a oportunidade de participar de sua pesquisa como bolsista do CNPq-

PIBIC. O tema do projeto era Fazendo a Liberdade: a História dos Negros

Libertos no Ceará, que tinha como objetivo analisar o processo histórico

constituído pelos libertos e ex-escravos, considerando as experiências vividas

por homens e mulheres, sua inserção na sociedade, no mercado de trabalho,

as formas de resistência e de luta contra a discriminação racial e a

1 Poesia declamada por Antônio Olímpio na festa realizada pelos sócios da Sociedade Cearense Libertadora em homenagem a emancipação de 35 escravos. Libertador, 03 de abril de 1881, p. 08.

11

Page 12: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

marginalização social. Procurou-se também perceber a constituição de seus

espaços e suas práticas religiosas e culturais como o maracatú, os reisados e

outros “autos” que possibilitassem a busca de uma identidade.

Além de mim faziam parte do grupo mais dois bolsistas, Alênio e

Mariana, também estudantes de História. O grupo se reunia mensalmente para

discutir avanços ou recuos da pesquisa. Cada componente desenvolvia um

trabalho individual, mas que tinha afinidades em comum. À princípio meu

objetivo era encontrar uma identidade para os negros cearenses através das

religiões afro-brasileiras presentes no Estado do Ceará. Depois de alguns

meses pesquisando em censos, jornais, relatórios e correspondências percebi

que não era possível prosseguir. O material encontrado não permitia o

desenvolvimento do trabalho. Então minha proposta inicial foi substituída.

Passei a trabalhar com jornais de época, do período de 1870 a 1884,

especificamente, O Cearense e O Libertador, sendo esse último um órgão da

Sociedade Cearense Libertadora e, o primeiro, órgão oficial do governo da

Província. Atentou-se para os discursos presentes em ambos os jornais, o teor

laudatório do Libertador pouco se distanciava das propagandas

governamentais presentes no Cearense. Por fim a opção foi de deixar o

Cearense de lado e deter-se no Libertador.

Passou a ser interesse saber um pouco mais sobre quem eram os

indivíduos que escreviam naquele jornal, quais suas intenções, seus anseios,

objetivos e projetos. Passou-se então a ler autores que já haviam desenvolvido

uma pesquisa a respeito. No trabalho do historiador Raimundo Girão, Abolição

no Ceará, encontram-se alguns esclarecimentos sobre esses indivíduos e

sobre o que propunham e desejavam. Além do trabalho de Girão, também a

dissertação de Pedro Alberto de Oliveira, Declínio da Escravidão no Ceará, foi

de grande importância para situar as principais questões dessa pesquisa.

Ao contrário de Girão, que se deteve, principalmente, em questões

específicas referentes às fundações das libertadoras cearenses, Perseverança

e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora, Pedro Alberto desenvolveu um

trabalho de cunho econômico, analisando com acuidade e precisão números e

dados sobre a estrutura da província do Ceará. Como também alguns fatores

12

Page 13: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

que fizeram com que o Ceará fosse a primeira província do Brasil imperial a

libertar seus escravos. Segundo Pedro Alberto foram eles: o intenso tráfico

interprovincial a partir de 1850; a forte seca que assolou o Ceará de 1877 a

1879; assim como o movimento abolicionista desencadeado pelas libertadoras

cearenses.

Além desses dois trabalhos, que muito contribuíram para esta pesquisa,

outros discutiram o movimento abolicionista na província do Ceará. Dentre eles

estão Revelações da Condição de Vida dos Cativos no Ceará, do jornalista e

pesquisador Eduardo Campos, e Notícia do Povo Cearense, de Yaco

Fernandes.

Eduardo Campos trabalhou com inventários, livros de notas, códigos de

posturas, regulamentos emitidos pelo presidente da província e outros

documentos oficiais. O autor chegou à conclusão que o escravo era incapaz de

agir por conta própria, pois não possuía vontade nem decisão. O escravo não

passava de uma “coisa”, uma propriedade, um bem móvel. O autor chegou a

essa conclusão através da leitura de determinados documentos oficiais, dentre

eles, o Regulamento expedido pelo presidente da província, em 1853, o qual

determinava: “art. 1o – São bens do evento os escravos, e o gado vacum e

cavalar achados [...] art.2o – Estes bens são apreendidos, depositados,

avaliados e arrematados, e o produto recolhido a tesouraria provincial [...]”2.

Segundo Campos os únicos momentos em que os escravos demonstravam ter

discernimento de si ocorriam quando praticavam fugas, revoltas e

assassinatos.

Yaco Fernandes, por sua vez, partiu do pressuposto de que os membros

das libertadoras cearenses, principalmente aqueles oriundos da Perseverança

e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora não passavam de “literatos

entusiasmados, burgueses ingênuos“ que para driblar o ócio provinciano,

“pasmaceira provincial”, cogitaram a libertação dos escravos. O autor se

mostrou encolerizado com tais membros: “esses sisudos pândegos da

Perseverança e Porvir e depois de sociedade libertadora cearense, que noutra

2 CAMPOS, Eduardo. Revelação da condição de vida dos cativos no Ceará. In: Da senzala para os salões. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto. 1988. p. 36.

13

Page 14: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

terra qualquer nada arranjariam, estão bem situados no quadro local.”3

Fernandes interpretou o desempenho das libertadoras como uma maneira de

seus sócios se promoverem. Viu suas realizações enquanto ”imposturas” que

visavam mais ao interesse individual de cada membro do que à causa da

abolição.

Outro trabalho também relevante sobre a abolição no Ceará foi escrito

por Almir Leal e intitula-se Saber e Poder – O Pensamento Social Cearense no

Final do Século XX. Nessa dissertação de mestrado defendida na PUC-SP, em

1998, o autor tratou de alguns aspectos da abolição no Ceará, especificamente

no tópico intitulado Estratégias Abolicionistas: Ações Intelectuais. Almir dirigiu

sua análise para o movimento abolicionista desencadeado em Fortaleza pelos

membros das libertadoras. Procurou enfocar a atuação desses indivíduos

considerando que as suas leituras eram socialmente constituídas, figurando

também como ações sociais com práticas políticas distintas. Seu estudo

concluiu que as ações e atitudes tomadas durante a campanha abolicionista

pelas libertadoras Perseverança e Porvir, Sociedade Cearense Libertadora e

Centro Abolicionista 25 de Dezembro estavam relacionadas e tinham origem no

repertório de leitura realizado pelos seus membros na década de setenta do

século XIX, como também por posturas intelectuais desenvolvidas a partir de

1880.

Percebeu-se que grande parte dos trabalhos escritos sobre o movimento

abolicionista na província do Ceará teve como pressuposto um caráter político-

positivista, com características elitistas e biográficas onde se percebe uma

constante exaltação aos valores humanitários das libertadoras e dos

abolicionistas. Os trabalhos produzidos, com algumas exceções, tratam da

questão da abolição tendo como tese central o papel humanitário dos

“cavaleiros da esperança” no processo abolicionista na província do Ceará.

A questão é que os abolicionistas tidos como os cavaleiros da esperança

vão ser retratados nessas obras sempre representando a imagem dos homens

que possuíam o caráter filantrópico e enfeixavam nas suas mãos a tocha que

iria iluminar a sociedade cearense e a conduziria através da luz de seus atos, 3 Idem, p.179.

14

Page 15: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

gestos e sapiência, para uma realidade longe da barbárie representada pela

escravidão. O tema “Ceará Terra da Luz” até hoje tem uma forte conotação nos

discursos proferidos por autoridades estaduais e por intelectuais, que, com

isso, querem exaltar os brios do Ceará e dos cearenses.

Nesse sentido, interessou-nos a percepção da construção desse

discurso legitimador do caráter empreendedor do povo cearense, construído

sob os auspícios da abolição e dos abolicionistas. Do como este discurso ainda

encontra espaço nos dias de hoje na sala de exposição permanente do Museu

do Ceará, cujo nome é “Ceará Terra da Luz,” ou no Centro Cultural de Arte e

Cultura Dragão do Mar, ou mesmo nas placas comemorativas denominam ruas

e logradouros da cidade.

Como afirma Régis Lopes Ramos, “sem o ato de pensar sobre o

presente vivido, não há meios de construir reflexões sobre o passado. E o

próprio conhecimento do atual já pressupõe referências sobre o pretérito.”4

Essa relação entre passado e presente ajudou a melhor delinear os objetivos

desse estudo e a problematizá-lo. Ou seja, a despeito do movimento

abolicionista cearense, especificamente o realizado na cidade de Fortaleza

pelos membros da Sociedade Perseverança e Porvir (1879), Sociedade

Cearense Libertadora (1880), interessa perceber para quem de fato o

movimento abolicionista foi importante, para os libertos ou para a concretização

de uma sociedade capitalista burguesa onde valores como progresso e

modernidade só seriam possíveis com a abolição da mão-de-obra escrava?

Eis o projeto que tinha como objetivo central analisar o processo

abolicionista na província do Ceará, desencadeado pelas libertadoras. Desta

maneira, estabeleceu-se como sujeitos a serem pesquisados, os membros das

sociedades libertadores cearenses. Faria uma análise crítica desses indivíduos

procurando definir os interesses que estavam em jogo naquele momento.

Porém, um trabalho com objetivos bem próximos aos que propus já

havia sido desenvolvido pelo pesquisador Gleudson Passos. Tivemos

4 RAMOS, Francisco Régis Lopes. Museu, ensino de história e sociedade de consumo. In: Trajetos: Revista de História da UFC. Fortaleza, vol. 1, n.º 1, 2001, p. 109.

15

Page 16: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

conhecimento do trabalho de Gleudson através Estefânia Knotz, que orientou a

ambos, e propôs, como primeira atividade acadêmica, realizar uma análise

sobre sua dissertação intitulada As Repúblicas das Letras Cearenses:

Literatura, Imprensa e Política. Nesse trabalho Passos buscou retratar as

ações dos intelectuais cearenses, tendo como parâmetros analíticos a

literatura, imprensa e a política. Também teve como objetivo perceber a

inserção dos letrados cearenses através de posturas intelectuais, políticas, e

“os usos de suas máquinas literárias” com o intuito de construir modelos de

Estado e nação durante as duas últimas décadas do século XIX e as primeiras

do século XX. Seu foco de análise recaía sobre as sociedades literárias

existentes entre 1873 e 1904: a Academia Francesa (1873–1875), o Clube

Literário (1887–1889), a Padaria Espiritual (1892–1898), a Academia Cearense

(1894–1904) e o centro literário (1894–1904). Passou limitou sua análise aos

espaços literários, sociedades, clubes e agremiações, entendendo estes como

espaços eminentemente políticos e urbanos. Utilizou como fontes, jornais de

época, periódicos e pasquins literários, livros de memória, cartas, discursos

oficiais e comemorativos, relatórios dos presidentes da província, manuscritos,

revistas de época e obras literárias.

O trabalho desenvolvido por Passou possibilitou reformulação de alguns

itens desta pesquisa. Foram salutares para este trabalho algumas questões

discutidas pelo historiador: a análise dos discursos produzidos por intelectuais

denominados “Mocidade Cearense”; a percepção do discurso enquanto “uma

ferramenta política dos grupos letrados”; o discurso enquanto poder de

determinados grupos sociais em impor seus anseios e valores aos demais da

sociedade.

os sujeitos da Mocidade Cearense potencializaram sua máquina

discursiva, apropriando-se de enunciados e conteúdos simbólicos

coletivamente engendrados naquele espaço social, tais como os referenciais

morais moral e a força. Recodificando para aquele campo de experimentação

subjetiva os enunciados da ordem burguesa como liberdade política e

econômica, industrialismo, desenvolvimento tecnológico, progresso científico,

produtos de intensidades desejantes do iluminismo, Romantismo e do

Positivismo, aqueles homens tiveram um interesse comum: integrar-se nas

16

Page 17: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

relações de poder de sua sociedade e manter o domínio dos grupos

tradicionais, ou seja, acompanhar a emergência dos novos setores sociais

segundo a manutenção dos antigos setores dominantes na nova ordem

mundial.5

Num primeiro momento esta dissertação se aproxima do trabalho de

Passos, onde pretende fazer uma análise do discurso. Todavia neste trabalho

serão privilegiados os discursos relacionados com a abolição. A preocupação

maior será compreender os discursos produzidos pelos libertadores e sua

relação com os interesses de classe. Entende-se que havia uma preocupação

dos membros das libertadoras de estabelecer uma sociedade capitalista e

burguesa margeada por valores europeus, principalmente ingleses e franceses.

Seremos mais analíticos nesse aspecto.

Após ler a dissertação de Gleudson Passos mais um trabalho nos foi

apresentado, Escravos, Libertos e Órfãos: A Construção da Liberdade em

Taubaté (1871 – 1895), tese defendida em 2001 pela Doutora Maria Aparecida

Chaves Ribeiro Papali.

Nesse trabalho Papali buscou identificar os caminhos emancipacionistas

e tensões abolicionistas na cidade de Taubaté a partir da demanda pela

liberdade jurídica desencadeada pela legislação de 1871, como também

compreender as tensões surgidas no campo do trabalho, onde havia um forte

interesse da elite local pela mão-de-obra disponibilizados pelos libertos e

órfãos (ex-ingênuos). A autora ainda buscou refletir sobre o sentido de

liberdade, através da concepção de escravos e libertos, e estabelecer

parâmetros de liberdade na ótica dos mesmos.

Para desenvolver sua pesquisa, Papali trabalhou com os seguintes

documentos: Ações de Liberdade, periódicos, Atas da Câmara, Leis, Decretos

e Obras de Época. Mas a qualidade do seu trabalho reside na análise das

Ações de Liberdade, material que começou a ser melhor explorado nas últimas

décadas. Dentre outros historiadores que se dedicaram à perscrutação dessa

5 CARDOSO, Gleudson Passos. As Repúblicas das Letras Cearenses: Literatura, Imprensa e Política (1873 – 1904). 2000. Dissertação de mestrado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo. p. 49.

17

Page 18: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

fonte podemos citar Sidney Chalhoub, um dos primeiros a trabalhar as

experiências do cativo por meio da análise de Ações de Liberdade. Papali

utilizou ao todo 90 Ações de Liberdade, ocorridas entre 1871 e 1888,

envolvendo 192 libertandos. Algumas ações são simples petições para alforria

ou concessões sumárias de alforria incondicional, outras são volumosas Ações

contendo argumentos e relatos de libertandos, advogados e testemunhas. A

leitura do trabalho desenvolvido pela historiadora também foi bastante profícua

na melhor definição desta de pesquisa.

Alguns anos atrás, trabalhando no Arquivo Público do Estado do Ceará,

desempenhando a função de pesquisador bolsista do CNPq-PIBIC, deparamo-

nos com algumas Ações de Liberdades não catalogadas, espalhadas em

caixas ainda não numeradas, e que só estavam ali na sala de pesquisa devido

à insistência de um professor pesquisador. Essas Ações em sua grande

maioria são relativas a processos desencadeados por escravos contra seus

senhores, como caracterizou Maria Aparecida Papali, petições para alforria e

Concessões sumárias de alforria incondicional.

Naquele momento não se deu muita importância àqueles documentos.

Transcreveu-se alguns, enquanto de outros apenas informações específicas

foram anotadas. Ainda não havia definido trabalhar com esse tipo fonte.

Portanto, a pesquisa de Papali possibilitou visualizar questões que poderiam

ser desenvolvidas neste trabalho através das Ações encontradas no Arquivo do

Ceará. Foram encontradas doze Ações movidas entre os anos de 1878 e 1880,

classificadas em Petições para alforria e Concessões sumárias de alforria

incondicional.

Deste modo, pela mediação dos autos judiciais, petições e sentenças

auferidas por juízes, curadores, escrivães, advogados e testemunhas, buscou-

se demonstrar como se desenvolveram os trâmites judiciais pelos quais

passava uma Ação de Liberdade, assim como também reconstruir a luta

travada pelos escravos e libertandos no campo judicial em busca da liberdade.

Tentamos mostrar os escravos e libertandos enquanto sujeitos de sua

liberdade na Província do Ceará. Também consideramos importante esclarecer

que a partir da Lei 2040 foi possível aos escravos construírem sua liberdade via

18

Page 19: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

fundos de emancipação ou via pecúlio. Tal lei permitiu aos escravos e

libertandos lutarem pela sua liberdade no campo jurídico, área por excelência

da classe dominante.

Nessa dissertação buscou-se contrapor alguns trabalhos que discutiram

o processo abolicionista na província do Ceará, dando relevância ao papel

humanitário dos membros das sociedades cearenses, Perseverança e Porvir e

Libertadora Cearense, trabalhos que destacaram o papel empreendedor dos

abolicionistas, caracterizando-os como sujeitos corajosos e cultos que

almejaram o fim da escravidão por amor e compaixão ao escravo.

Da mesma forma procuramos contestar os trabalhos que consideraram

os membros das libertadoras como impostores burgueses que visavam acima

de tudo se promover através da campanha abolicionista. Desenvolvemos uma

linha de análise diversa, compreendendo que os membros das libertadoras não

realizaram uma campanha abolicionista devido somente a seus valores

humanitários, mas também não os consideramos farsantes que pretendiam

apenas se autopromover.

Entendo que uma das maneiras de defini-los seja seguir de perto suas

atividades em atos, gestos e palavras. Os membros das sociedades não eram

originários das camadas mais pobres da população cearense, mas também

não eram totalmente oriundos e porta vozes exclusivos dos interesses das

classes dominantes. Por outro lado, é certo que sua composição social os

situaria enquanto membros das camadas mais altas da sociedade. Sua

atuação não pode ser aplicada exclusivamente em termos de defesa de

interesse de classes. Apesar de possuírem estreitos laços de parentescos que

os atavam a famílias proprietárias de terras, sua atuação se dava no contexto

urbano. Logo entendemos que esses indivíduos em grande parte eram

intelectuais da ciência que procuravam legitimar e respaldar cientificamente

suas ações e posições em determinadas instituições do saber, como Academia

Francesa, Academia Cearense de Letras e, posteriormente, Instituto Histórico

Cearense.

19

Page 20: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Ainda refutamos aqueles que consideram o escravo um ser incapaz de

agir por conta própria, ou seja, aqueles que consideraram o escravo como

“coisa”, propriedade, bem semovente, demonstrando ter discernimento de si

apenas quando praticam revoltas, fugas e assassinatos. Nas linhas que

seguem o desenvolvimento desse trabalho entendemos os escravo enquanto

agente social, que, através da experiência cotidiana do cativeiro, construiu

estratégias de luta embasadas numa consciência própria de seus direitos e

fazendo de tudo para alcançar a liberdade.6

Nesse sentido dividimos essa dissertação em três capítulos, onde

buscou-se demonstrar o contexto sócio-político e econômico em que surgiram

as libertadoras cearenses; o tipo de atividade preponderante e sua influência

no emprego da mão-de-obra servil, como também a porcentagem e o perfil da

população cearense a partir da segunda metade do século XIX, precisamente

de 1870 a 1879. Enfocamos também o papel significativo da urbanização de

Fortaleza a partir da segunda metade do século XIX, que possibilitou o

surgimento de uma elite letrada responsável pelo surgimento de sociedades

libertadoras na província. Também importaram os fatores que possibilitaram a

província do Ceará ser a primeira a libertar seus escravos quatro anos antes do

Império, no dia 25 de março de 1888. Analisaremos o surgimento das

libertadoras Perseverança e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora, o papel

da imprensa enquanto importante mecanismo de formação de opinião e os

discursos pronunciados no jornal O Libertador.

Serão focalizados também os anúncios de fugas de escravos presentes

no jornal O Cearense, o papel desempenhado por algumas mulheres no

processo abolicionista da província e a atuação ilegal de alguns membros da

Libertadora Cearense no movimento abolicionista. São aspectos centrais do

primeiro capítulo e para desenvolvê-los pesquisamos os seguintes

documentos: correspondências expedidas, registros de ofícios, Anais da

Assembléia Legislativa, censos, obras de época, periódicos, livro de notas de

6 “A imensa massa populacional que se transferiu do continente africano para a colônia portuguesa não pode ser analisada apenas como ‘força de trabalho’ e, por isso, muitos historiadores hoje, procuram discernir os caminhos, num simples nem óbvios, através dos quais os escravos fizeram história”. SILVA, Eduardo; REIS, João José. Entre Zumbi e o Pai João. O Escravo que Negocia. In: Negociação e Conflito: A Resistência Negra no Brasil Escravista. Companhia das Letras. São Paulo: 1989. p.13.

20

Page 21: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

compra e venda de escravos, assim como as revistas do Instituto Histórico e

Geográfico do Ceará.

No segundo capítulo procurou-se evidenciar o importante papel da Lei

2040 – mais conhecida como Lei do Ventre Livre ou Lei de 28 de setembro de

1871 – para o encaminhamento jurídico da liberdade de escravos no Brasil.

Analisou-se os projetos que resultaram na Lei e, a partir dos embates

parlamentares, percebeu-se as experiências sociais do sistema escravista,

vivenciadas por senhores e escravos, relacionando-os aos projetos de

encaminhamento de uma sociedade livre, e entendendo que a sociedade

escravista foi resultado da dinâmica estabelecida entre escravos e senhores.

Ao tratar das relações entre senhores e escravos privilegiou-se a idéia

de que as relações históricas são fruto de atividades realizadas por homens e

mulheres nas lutas, resistências, conflitos e acomodações. Visualizou-se os

processos cíveis enquanto um campo de conflitos onde os anseios de duas

classes antagônicas se chocam – direito à propriedade privada verso direito à

liberdade. Evidenciar-se-á nesse capítulo como a Lei 2040 possibilitou aos

escravos utilizarem–se de argumentos acerca da ilegalidade da propriedade

privada para obstruir a relação de domínio senhorial, conseguindo colocar seus

senhores na desagradável situação de réus acusados muitas vezes de

exercerem sobre eles um direito fundado sobre bases ilegais. Foram utilizadas

as seguintes fontes: Ações de Liberdade, Leis do Império do Brasil, Anais da

Câmara dos deputados e obras de época.

No terceiro capítulo buscou-se analisar os trabalhos desenvolvidos por

autores que trataram e discutiram a condição do africano e do afro-

descendente na sociedade escravista, principalmente, mas não

especificamente, aqueles que escreveram no Ceará. Analisaram-se os poemas

publicados no periódico O Libertador na coluna intitulada Litteratura; alguns

poemas de Juvenal Galeno publicados na obra Lendas e Canções Populares;

poemas do poeta baiano Castro Alves; e também alguns romances de caráter

naturalista escritos por Aluízio Azevedo e Adolfo Caminha, sendo obra do

primeiro O Mulato e do segundo A Normalista e Bom Crioulo.

21

Page 22: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Examinaram-se as poesias escritas no periódico Libertador,

especificamente aquelas publicadas durante o ano de 1881 por membros das

libertadoras dentre eles, Antônio Bezerra e Juvenal Galeno. As poesias escritas

por Antônio Bezerra no periódico O Libertador, na sua grande maioria, são de

cunho ufanista. Entoou glória aos membros da libertadora e os incitou a lutar,

agir, trabalhar, e a buscar todos os meios que levassem ao fim da escravidão.

Juvenal Galeno, por sua vez, na obra Lendas e Canções Populares

retratou os costumes e práticas sociais dos tipos existentes na população do

Ceará, do rude lavrador passando pelo vaqueiro, pescador e escravo. Galeno

cantou em alguns momentos a condição do cativo. Descreveu através de

versos as amarguras, emoções, paixões e gostos sentidos pelos escravos. Dos

poemas presentes na obra, Cativeiro é aquele que melhor expressa o lamento

do escravo por ser privado da liberdade.

Analisaram-se também algumas poesias escritas por Castro Alves,

dentre elas O Século, onde o poeta se refere à moral cristã para expressar seu

descontentamento com o sistema servil.

Em Tragédia do Lar, escrito em 1865, Castro Alves apontou a

perversidade da escravidão. Contou a história de uma escrava que se viu aflita

ao sofrer a ameaça de ser separada do seu filho. Mostrou a insensibilidade do

sistema escravista para com o direito à maternidade, um dos mais

fundamentais princípios humanos. O poeta denunciou a estrutura do sistema

através da experiência do principal elemento do escravismo: o próprio escravo.

A poesia não foi o único gênero literário utilizado por intelectuais,

populares e abolicionistas, como meio de criticar o sistema escravista. O

romance, especificamente o romance realista-naturalista, também foi um

importante instrumento de contestação. Trabalhou-se especialmente com três

romances: O Mulato, de Aluízio Azevedo, escrito em 1881, obra responsável

por inaugurar o naturalismo no Brasil; assim como, A Normalista e Bom

Crioulo, ambos de Adolfo Caminha, sendo o primeiro publicado em 1893 e o

segundo em 1895.

22

Page 23: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

CAPÍTULO 1

O PROCESSO ABOLICIONISTA DOS ESCRAVOS NO CEARÁ: TRAJETÓRIA

Page 24: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

1.1 – AS LIBERTADORAS: O MOVIMENTO E SEUS FINS

Entendemos que o surgimento das libertadoras cearenses foi fruto das

mudanças que ocorreram na província do Ceará a partir da segunda metade do

século XIX. A criação da Santa Casa de Misericórdia, em 1861, a criação da

Biblioteca Pública, em 1867, a instalação da estrada de ferro Fortaleza-

Baturité, em 1873, a implantação do plano urbanístico do engenheiro Adolpho

Herbster, em 1875, como também a criação da Academia Cearense de Letras,

da Academia Francesa, do Instituto Histórico e Geográfico e de algumas

agremiações literárias são características significativas dessa época. Nesse

cenário emergiram novas forças sociais, uma elite intelectual composta de

letrados e profissionais liberais, dentre eles funcionários públicos, advogados,

professores, médicos e farmacêuticos.7

É importante observarmos que as mudanças ocorridas na província do

Ceará, a partir da segunda metade do século XIX, não estavam acontecendo

isoladamente. Outras províncias do Brasil imperial, principalmente depois de

1850, passaram por transformações sociais, políticas e econômicas onde as

cidades, suas capitais, constituíram-se como as sínteses dessas

transformações. A urbanização exigiu um complexo quadro administrativo que

foi preenchido por burocratas, bacharéis, engenheiros e médicos.

As mudanças que aconteceram a partir dos anos 50 trouxeram como

conseqüência uma forte urbanização. O rápido crescimento das cidades seguiu

um aumento considerável da população citadina, cujos valores tornaram-se

bem diferentes daqueles da população do campo. O meio urbano constituiu-se

espaço bastante propício à difusão de novas idéias. A forte concentração de

pessoas, consoante ao desenvolvimento dos meios de comunicação, jornais,

folhetins e transporte, estradas de ferro e navios a vapor, favoreciam a

transmissão de notícias e sua discussão, estimulando a formação de uma

opinião pública forte.8 Nos centros urbanos observou-se nessa época uma

enorme adesão à causa abolicionista. Através da imprensa, aqueles que 7 Ver: PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas Urbanas e Controle Social (1860-1930). Fortaleza: Demócrito Rocha, 1999.

24

Page 25: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

simpatizavam com o fim do elemento servil procuravam angariar fundos que

seriam destinados à libertação dos cativos.

Quando as sociedades libertadoras surgiram, o sistema escravista

cearense estava bastante desgastado. A forte estiagem que começou no ano

de 1877 e terminou em 1879 foi responsável por obrigar grande parte dos

fazendeiros da província a vender, como uma das alternativas de

sobrevivência, quiçá os únicos bens que ainda possuíam: os escravos.

O escritor e memorialista Rodolfo Teófilo escreveu uma obra de ficção

intitulada A Fome, publicada pela primeira vez no ano de 1898, onde retratou a

calamidade ocasionada pela seca de 1877-79 na província do Ceará. Ainda

que se trate de uma obra de ficção, acreditamos que A Fome não foge da

realidade ocorrida naqueles anos de estiagem. Segundo o autor, o personagem

principal, um pequeno fazendeiro do interior:

Passava os dias meditando: estudava os planos da salvação, que procurava acertar para depois executá-los. A imigração para a capital era a única esperança. Decidiu-se por ela: mas era preciso víveres ou dinheiro, e onde havê-los? A cruz do Santo Lenho vendida ao usurário pouco produziria. Os escravos dariam um produto suficiente às necessidades da viagem, mas quem os compraria naquelas paragens, se os mascates desenganados tinham saído para outra localidade? O fazendeiro compreendia o perigo da situação. Algumas semanas mais de expectativa tornariam impossível a retirada. Estava resolvido a emigrar, mas não sabia onde achar forças para vender os escravos e a cruz da família. Os seus parentes tinham saído todos, exceto seu primo Inácio da Paixão, que vindo despedir-se para no dia seguinte emigrar para a capital, despertou em Freitas uma idéia: mandar por ele os cativos para serem vendidos.9

Através da citação é possível perceber a situação do senhor que morava

no interior da província e não tendo outro recurso ao qual recorrer para

sobreviver naqueles anos de estiagem, optou por vender os únicos bens que

ainda tinham algum valor naquela ocasião, seus escravos. A historiadora

Viviane Lima de Morais, em sua dissertação, corrobora essa assertiva quando

escreveu:

O vaqueiro [...] foi forçado a comercializar suas vestes, motivo de orgulho, representativas de sua identidade; e objetos que, mesmo com valor extremamente depreciado, foram vendidos por ninharias, porque naquele momento só a comida tinha valor...10

8 Ver: MONTENEGRO, Antônio Torres. Abolição. São Paulo: Ática, 1988. 9 TEÓFILO, Rodolfo. A Fome. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1979. p. 09. 10 MORAIS, Viviane Lima de. Razões e Destinos da Migração: trabalhadores e emigrantes cearenses pelo Brasil no final do século XIX. 2003. Dissertação de Mestrado (História Social). Pontifícia Universidade

25

Page 26: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Segundo Robert Conrad, durante a seca a venda de escravos para o sul

do Império foi uma das principais fontes de renda do Ceará. Em 1879 o

imposto cobrado sobre a exportação de escravos rendeu 125:880$000 réis

para os cofres públicos, quantia que representava 7% do orçamento provincial.

Os escravos em grande maioria pertenciam a pequenos proprietários rurais,

fazendeiros e pessoas de classe média das cidades.11

Com a eclosão da guerra do Paraguai, em 1865, o número de escravos

alforriados cresceu consideravelmente. Dos 5.462 homens enviados para a

guerra, 350 eram escravos alforriados.12 Alguns senhores, quando sorteados

para o serviço militar, libertavam seus escravos e os mandavam em seu lugar.

O governo imperial gastou uma boa soma com cartas de alforrias. Dos 350

cativos da província do Ceará que foram enviados para a batalha13, a grande

Católica: São Paulo. p. 74. Ver ainda: MOTTA, Felipe Ronner Pinheiro Imlau. Progresso, Calamidade e Trabalho: Pobreza e Urbanidade Incipiente na Cidade em Fins do Oitocentos. Revista Trajetos, vol. 2, número 04, 2003. Nesse artigo o autor analisa documentos como jornais, relatórios de presidente da província e anais da assembléia legislativa, buscando perceber no contexto da seca de 1877 a 1879, na província do Ceará, as implicações e mudanças ocorridas nesse momento na província. "Não devemos nos distanciar do sofrimento real dos homens e mulheres que foram diretamente atingidos pela calamidade, porém se faz necessário estarmos sóbrios para que possamos captar não somente martírios mas também as estratégias empreendidas por uma classe que soube se utilizar, com destreza, desse apelo emocional, que é bem peculiar aos momentos de seca e escassez." Ibidem, p. 158. 11 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil (1850 – 1880). Rio de Janeiro, Brasília: Civilização Brasileira, 1975. p. 75. 12 ALBUQUERQUE, Diogo Velho Cavalcanti de. Fala recitada na abertura da Assembléia Legislativa da Provincial do Ceará pelo Exmo. Presidente da Província Diogo velho Cavalcanti de Albuquerque no dia 1o de novembro de 1868. Fortaleza, Typ. Brasileira, p. 19. No dia 28 de dezembro de 1868 foi sancionada pelo presidente da província Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, a lei de número 1254 que se destinou a liberar os escravos de preferência do sexo feminino que fossem nascendo. As alforrias seriam realizadas no ato do batismo, sendo fixada a importância para cada um de 150$000 réis pagos pelo cofre público. Somente em 8 de novembro do ano de 1869 foi ela posta em prática pelo presidente João Antônio de Araújo Freitas Henriques, vigorando até 1872, quando prevaleceu a Lei do ventre livre. Ver: GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. 4o edição. Fortaleza: Prefeitura Municipal de Maracanaú, 1988. 13 No dia 06 de novembro de 1866 o governo imperial expediu um decreto concedendo liberdade àqueles escravos da nação que servissem ao exército, estendendo esse benefício às suas esposas se fossem casados. Muitos escravos receberam carta de alforria para lutarem na guerra do Paraguai. O convívio íntimo entre ex-escravos e os demais membros do exército possibilitou a alteração gradativa da opinião desses últimos sobre o cativeiro. Quando a guerra terminou, em 1870, o exército passou a ter uma maior importância política e social dentro da sociedade. Como afirma Lilia Moritz "a elevação política e social do exército e o fortalecimento da campanha abolicionista. A força militar do império era até então a Guarda Nacional, formada por grandes latifundiários, comerciantes e políticos voltados para o controle da ordem e a manutenção do poder da aristocracia agrária. O exército não possuía então qualquer significado social, sendo formado por homens livres, não-proprietários, recrutados mais por castigo ou desemprego. É só com a guerra do Paraguai que o exercito passa a Ter uma posição política e social de destaque, negando-se depois a capturar escravos fugitivos e dando dessa forma importante apoio à campanha em favor da abolição." SCHWARTZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos, cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 33. Terminada a guerra o exército se opunha a perseguir escravos fugitivos, pois os identificava enquanto companheiros que haviam combatido durante as batalhas sob a mesma condição. Joaquim Nabuco escreveu na sua obra: "Essa cooperação dos escravos com o exército era o enobrecimento legal e social daquela classe. Nenhum povo, a menos que haja perdido o sentimento da própria dignidade, pode intencionalmente rebaixar os que estão encarregados de defendê-lo, os que fazem profissão de manter a integridade, a independência e a honra nacional... desde esse dia pelo menos o Governo deu aos escravos uma classe social por aliada: o exército". NABUCO, Joaquim. Abolicionismo. 6o edição. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 35.

26

Page 27: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

maioria foi com o auxílio pecuniário do governo. Os preços variavam entre

1:000$000 réis a 1:500$000 réis pagos em espécie ou com "apólices da dívida

pública". Em Fortaleza essas alforrias foram mais numerosas em 1867 quando

foram libertados 126 escravos.

No ano de 1870, precisamente no dia 22 de outubro, foi sancionada a

resolução de número 1.344 estabelecendo a quantia de quinze contos de réis

para a libertação dos escravos, sendo alforriados 83 indivíduos, 21 na capital e

62 no interior. A lei 1254, durante os quatro anos de existência, alforriou 377

escravos.

Com a resolução da lei 2040 de 28 de setembro de 1871 foi destinado

às províncias um fundo de emancipação proveniente de impostos sobre a

venda e transferências de escravos, de loterias, de multas e de outras fontes.

Na província do Ceará, a primeira cota foi distribuída no ano de 1876, no valor

de 81:537$164 réis repartidos entre os 46 municípios existentes na época,

sendo libertados apenas 110 cativos, em sua maioria do sexo feminino, no

valor total de 48:116$983 réis. Cada escravo custou em torno de 437$000 a

420$000 réis. Juntamente com os 110 cativos libertados, somaram-se mais 14

alforriados a título oneroso e 280 a título gratuito, perfazendo um total de 404,

conforme constam nos números oficiais de 1880. Entretanto, dos 46

municípios, apenas 20 usaram o fundo e isso aconteceu devido ao descaso de

alguns senhores, como também às dificuldades de ordem burocrática.

A partir de 1870, com a queda do cultivo algodoeiro, a exportação de

escravos tornou-se uma importante fonte de renda para alguns proprietários.

De 1871 a 1876 foram 3.256 escravos. A saída desses cativos não abalou

economicamente a província devido ao fato da mão-de-obra servil ser pouco

empregada nas atividades agropecuárias.

O tributo cobrado por cada escravo exportado da província em 1851

custava 5$000 réis, em 1852 passou para 20$000 réis por cada cativo com

idade até 12 anos e 30$000 réis para os que tivessem acima dessa idade. Em

1853, subiu para 30$000 e 60$000 réis respectivamente. Em 1854, passou

para 60$000 réis sem discriminação de idade. Em 1855, aumentou para

27

Page 28: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

100$000 réis, permanecendo até 1860, quando baixou para 40$000 réis.

Sendo que, em 1868, novamente baixou para 30$000 réis, permanecendo até

1871, quando subiu novamente para 60$000 réis.14 Isso significa que nesse

período, uma das principais rendas na receita orçamentária da província foi o

imposto cobrado sobre a exportação dos escravos.

O livro de notas relativo às transações de compra e venda de escravos,

como também procurações e hipotecas envolvendo os mesmos, realizadas

durante o período de 1865 a 1872 na capital da província, mostra-nos que dos

254 escravos negociados, grande parte era destinada à exportação. A maioria

dos escravos negociados vinha do interior da província, onde 116 eram

homens e 138 mulheres. 242 não possuíam nenhuma qualificação profissional

e dos doze que sobraram, nove mulheres eram cozinheiras, dois eram

pedreiros e um era sapateiro. Tal documento nos apresentou nomes de

grandes negociantes de escravos da província como, Jacob Cahu, Joseph

Alcain, Guilherme Augusto de Miranda, Joaquim da Cunha Freire e Francisco

Coelho da Fonseca.15

Foram arrolados no censo realizado na província do Ceará no ano de

1872, 721.686 habitantes, onde 31.913 eram escravos. 182.760 pessoas

trabalhavam na agricultura sendo cativos 7.375 desses trabalhadores. Os

escravos foram pouco empregados na atividade da agricultura, grande parte

realizou atividades de jornaleiros e criados, um total de 21.613 indivíduos. Dos

11.363 escravos restantes foram inclusos como “outros”. Acreditamos que essa

classificação “outros” dizia respeito àqueles escravos que não desenvolviam

uma atividade específica, mas várias.

Contudo, ao ser feito pelo governo, em 1873, o controle da "matrícula

especial" como determinava a lei 2040, verificou-se que o número de escravos

diferentemente daquele apresentado no censo de 1872 era de 32.652, onde foi

constado que durante o período de 1871 a 1873 nasceram 2.597 filhos livres

de mulheres escravas, demonstrando que a população oriunda do cativeiro

crescia numa proporção de 4% ao ano. 14 Ver: SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. Declínio da escravidão no Ceará. 1988. (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Pernambuco: Recife, 1988. 15 Ver: Arquivo Público do Estado do Ceará, Livro de Notas, Fortaleza, 1865-1872, Livro Número 1515.

28

Page 29: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Com a seca advinda no ano de 1877, intensificou-se o tráfico

interprovincial de escravos. A província exportou oficialmente nos três anos de

estiagem mais de seis mil escravos, 19% dos escravos existentes na província

no ano de 1872, precisamente, 6.559 cativos. Acompanhando o raciocínio de

Pedro Alberto de Oliveira chegaremos à cifra de 12.867 escravos a menos na

província durante o período de 1877 a 1880.

O número total de escravos exportados nos três anos da seca totalizou 6.559 cativos. Se acrescentarmos 1.108 referentes a 1880, com o último ano do tráfico interprovincial, e ainda sob as conseqüências diretas da estiagem, aquela quantidade sob para 7.667 indivíduos. Acrescentando-se, ainda, a esses escravos exportados aqueles possíveis 5.200, que devem ter morrido no mesmo período.16

Como se vê as sociedades libertadoras surgiram numa forte crise

escravista, pelo menos no que diz respeito ao Ceará. Foi na região do maciço

de Baturité que surgiu a primeira libertadora, precisamente no dia 25 de maio

de 1870. Dela faziam parte indivíduos ilustres da sociedade cearense, dentre

eles o juiz municipal Antônio Pinto Nogueira Aciolly. Em junho do mesmo ano,

no município de Sobral, foi fundada a libertadora sobralense, destinada a

alforriar somente as crianças escravas do sexo feminino. Na capital da

província, a Perseverança e Porvir foi a primeira libertadora a se instalar, em

1879.

Um poeta abolicionista, em homenagem a libertação de Acarape,

escreveu:

Foi assim que Acarape levantou-se, E o manto enoitado que vestia, Em sublime roupagem transformou-se, Pois o negro não mais, ali, gemia, E a louca phalange encorajou-se Prevendo as victorias que teria, A dizer entre palmas, entre bravos: Tenhamos cidadãos em vez de escravos.17

A libertadora Perseverança e Porvir foi fundada com o objetivo de

alforriar escravos, bem como cuidar dos interesses comerciais e econômicos

de seus membros. Seus primeiros sócios fundadores e diretores foram homens

ilustres. Presidente: José Correia do Amaral, cearense, filho de portugueses. O

16 Ver: SILVA, Pedro Alberto Oliveira. Op. cit., p. 85. 17 Revista da Academia Cearense de Letras, ano LXXXIX, número 45, número especial, 1984, p. 61.

29

Page 30: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

pai era dono de uma casa de ferragens, a primeira do ramo a se instalar em

Fortaleza. Vice-presidente: José Teodorico de Castro, também cearense e

comerciante. O tesoureiro: Joaquim José de Oliveira Filho, livreiro e sócio do

pai na livraria Oliveira. O secretário: Alfredo Salgado, formado em Comércio na

Inglaterra era também intérprete junto ao comércio, cabendo-lhe os negócios

realizados nos idiomas inglês, francês e alemão. Os diretores da sociedade:

Antônio Cruz, comerciante dono de uma casa de negócios e Barros da Silva

dono de uma casa comercial chamada "Bolsa do comércio", ambas localizadas

em Fortaleza.

A princípio a sociedade não tinha sede própria. Realizava as reuniões

em muitos lugares. Somente a partir de 1880, passou a funcionar

definitivamente no “castelo da rocha negra”, residência de José Correia do

Amaral. A associação era mantida através de contribuições espontâneas de

seus sócios, como também com uma determinada quantia vinda de cada

transação comercial realizada pela sociedade. Os diretores da Perseverança e

Porvir foram responsáveis pelo planejamento e criação da Sociedade Cearense

Libertadora, instalada e inaugurada no dia 08 de dezembro de 1880 no salão

de honras da Assembléia legislativa da província.

Nesse dia foram alforriados alguns escravos. Três adultos e três

crianças. Maria Correia do Amaral mãe do presidente da Perseverança e

Porvir, alforriou seu escravo Ricardo. O tenente Filipe de Araújo Sampaio

libertou sua escrava Joana. E os membros diretores da Perseverança e Porvir

deram as cartas de liberdade de Filomena com três filhos. Um dos sócios,

Antônio Dias Martins, narrou os acontecimentos daquele dia:

O resultado não poderia ser mais compensador, nem mais auspicioso para nós e para vós: - a libertação de três adultos, sendo uma mãe com três filhos, uma mulher e um homem e, mais que tudo, a inscrição de 225 sócios. Se os nossos pequenos esforços produziram tão imensos resultados, vós que encetais a vida da Sociedade Cearense Libertadora, tão cheia de adesões sinceras, tão rica de esperanças e tão santa aspirações, com o vosso elevado conceito e dedicação de patriotas provados e cearenses distintos que sois e que estremeceis o querido torrão natal, vós, como dizíamos, tereis muito maior colheita nesta seara luxuriante que enriquece de patriotismo o coração do generoso e nobre povo cearense"18

18 Relatório do secretário Antônio Dias Martins. Apud. GIRÃO, Raimundo. Op. cit.., p. 88.

30

Page 31: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Um dos sócios da Perseverança, o Sr Antônio Bezerra, por ocasião da

fundação da Sociedade Libertadora, declamou:

Moços! Uma grande idéia Vos anima os corações, O mais belo dos padrões! Sim, que vos sobra energia E tendes n' alma a magia Que gera as revoluções; Se a turba não vos entende Dos moços é que depende O destino das nações. Avante, pois, que este século É o século de grande ação, Repugna à luz do progresso A idéia da escravidão; Bem firmes no vosso posto A pátria de tantas glórias Que viu-nos livre nascer, Embora lh'embarquem a marcha Não pode escravos conter; É tempo que a liberdade Aos brados da mocidade Erga os brios da nação, Que igualados aos direitos Batidos os preconceitos, Seja o escavo um cidadão19

Terminada a sessão, os sócios da Sociedade Perseverança e

Porvir escolheram a diretoria que iria compor a recém criada Sociedade

Libertadora. João Cordeiro ficou como presidente; José Correia do

Amaral como vice-presidente; Frederico Borges 1o secretário; Antônio

Bezerra de Menezes 2o secretário; Advogados, Manuel Portugal e

Justino Francisco Xavier; João Crisóstomo da Silva Jataí, tesoureiro; e

como procuradores José Caetano, João Carlos Jataí, João Batista

Perdigão e Eugênio Marçal.

Na verdade, pouco se sabe sobre todos os integrantes da Sociedade

Cearense Libertadora e sobre a sua origem social. Enquanto alguns autores,

dentre eles Almir Leal e Gleudson Passos ressaltam alguns aspectos da

formação intelectual de parte dos membros da diretoria da Libertadora

Cearense os posicionando enquanto oriundos de uma aristocracia agrária,

19 Antônio Bezerra, Revista da Academia Cearense de Letras, ano LXXXIX, V, 45, 1984, número especial, p. 98-99.

31

Page 32: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

outros encontram nessas pessoas representantes de novos segmentos

urbanos bem distintos da aristocracia proprietária de terras.

Entendemos que uma das maneiras que temos para melhor defini-los

seja seguir de perto suas atividades em atos, gestos e palavras. Esses

indivíduos não eram originários das camadas mais pobres da população

cearense, mas também não eram totalmente oriundos e porta vozes exclusivos

dos interesses das classes dominantes. Por outro lado, é certo que sua

composição social os situaria enquanto membros das camadas mais altas da

sociedade. Sua atuação não pode ser explicada exclusivamente em termos de

defesa de interesse de classes. Apesar de possuírem estreitos laços de

parentescos, que os atavam a famílias proprietárias de terras, sua atuação se

dava no contexto urbano. Logo entendemos que esses indivíduos em grande

parte eram intelectuais que procuravam legitimar e respaldar cientificamente

suas ações e posições em determinadas instituições do saber, como Academia

Francesa, Academia Cearense de Letras e posteriormente Instituto Histórico

Cearense.

Os membros das libertadoras cearenses, especificamente, Sociedade

Cearense e Perseverança e Porvir, pertenciam ao meio urbano, faziam parte

da elite letrada cujo pressuposto supunha o engajamento nos ideais europeus.

Para esses abolicionistas, o fim da escravidão levaria o país ao

desenvolvimento social, político e econômico.

Grande parte dos membros da diretoria da Sociedade Cearense

Libertadora interpretou a realidade na qual viviam sob o prisma de teorias

positivistas e evolucionistas, que foram introduzidas no cenário brasileiro a

partir de 1870. Contudo, não seguiam à risca tais doutrinas, mas as

interpretavam segundo seus interesses, como afirma Lilia Schwarcz:

[...] a entrada coletiva, simultânea e maciça dessas doutrinas acarretou, nas leituras mais contemporâneas sobre o período, uma percepção por demais unívoca e mesmo coincidente de todas essas tendências. Tais modelos, porém, foram utilizados de forma particular, guardando-se suas conclusões singulares, suas decorrências teóricas distintas. Dessa forma, se a noção de evolução social funcionava como um

32

Page 33: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

paradigma de época, acima das especificidades das diferentes escolas, não implicou uma única visão de época, ou uma só interpretação.20

Grande parte dos membros da diretoria da Sociedade Cearense

Libertadora teve como objetivo defender preceitos norteadores da ordem

burguesa como: liberdade política e econômica, industrialismo e

desenvolvimento tecnológico.

Os sujeitos da mocidade cearense potencializaram sua máquina discursiva apropriando-se de enunciados e conteúdos simbólicos coletivos daquele espaço social como a moral e a força. Decodificando para aquele campo de experimentações subjetivas os enunciados da ordem burguesa como liberdade política e econômica, industrialismo, desenvolvimento tecnológico, progresso científico, produtos de intensidade desejantes do iluminismo, romantismo e do positivismo, aqueles homens tiveram um interesse em comum: integrar-se nas relações de poder [...]21

No dia da solenidade oferecida em homenagem à instalação da

Libertadora Cearense, muitas pessoas de outras associações compareceram

ao evento: indivíduos pertencentes à sociedade Cavalheiros do Prazer,

membros da Associação Democracia e Extermínio, Gabinete Cearense de

Leitura, Sociedade Artística Beneficente Conservadora e aqueles pertencentes

à Beneficente Portuguesa 2 de Fevereiro. Nesta ocasião grande parte dos que

discursaram enfatizaram temas como progresso e civilização.

Sucedeu-lhe na tribuna o ilustre secretário da Beneficente Portuguesa 2 de fevereiro que, representando a sua benemérita associação, traz-no dela a sincera adesão que tributamos a todos os acontecimentos em que a liberdade, ao sol benemérito de todas as nações, irradia-se nos horizontes onde assinalam o progresso e a civilização; o orador retira-se da tribuna ao som de palmas.22

O público era bem distinto: bacharéis, intelectuais, estudantes, párocos,

médicos, militares e algumas autoridades.

Diversas pessoas contribuíram com o que podiam, o ilustre Dr. Picaço ofereceu em adesão à causa da emancipação o produto de benefício da récita da opereta Madame Angot na Munguba, de que é autor, e lhe foi oferecido pelo empresário do Teatro S. José e cujo produto deverá ser aplicado à libertação de um escravo.23

O francês Pedro Hipólito Girard, dono de um quiosque localizado no

passeio público, ofereceu o produto da venda de uma noite à causa da

liberdade:

20 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 43. 21 CARDOSO, Gleudson Passos. Op. cit., p. 46. 22 Ibidem, p. 89-90. 23 Ibidem, p. 92.

33

Page 34: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

a diretoria da sociedade << Cearense Libertadora >> de acordo com a da <<Perseverança e Porvir>> resolveu em sessão de 22 de dezembro para findo promover um bazar expositor de prendas para juntar no passeio publico ao beneficio offerecido pelo Sr. P. Hypolito Girard; sendo, de entre os socios presentes à sessão, nomeada uma comissão composta dos Sr. Antonio Bezerra de Menezes, José Correa do Amaral, José Barros da Silva, José Theodorico de Castro24

A loja maçônica Fraternidade Cearense ofereceu 50$000 réis, o cônsul

alemão César de la Camp ofereceu 20$000 réis. O periódico Libertador

noticiou:

Às seis horas da tarde do dia 31 de dezembro estava armada no centro do passeio publico uma barraca [...] onde se achavam exposta todas as prendas colhidas.

Esta profusão de objetos dava uma vista esplendida pela projecção de bello effeito produzido pela illuminação, apresentado cambiantes belissimas.

A illuminação principal foi devida ao illustre engenheiro M. Seddon Morgan, a quem daqui tributamos os nossos cordiaes agradecimentos

Igual aspecto de phantazia offerecia o magnifico repuxo que ficava em frente ao bazar produzindo pelo effeito da luz atravez das lanternas de papel de cor-ora chuva de ouro, ora de perolas e as vezes ligeiros iris que assemelhavam-se as azas de beija-flores nas rapinas ondulações feitas pelas brisas do mar

Um concurso de cerca de setecentas pessoas animava ruidosamente a grande festa.

A musica do 15o batalhão de infantaria cedida pelo seu benemerito ... Eram 7 horas da noite e ia começar o leilão Muitos objectos foram vendidos – um bouquet de flores naturaes produziu,

depois de arrematado pelo Sr. Salgado, diretor da sociedade Perseverança e Porvir e pelo mesmo de novo offerecido , 30$000

O lanço teve suas alternativas: uma caixinha com perfumarias offerecida por uma jovem cearense deu 40$000

Assim continuou o leilão mais animado até as 10 horas, tendo produzido cerca de 900$000.

Ficando ainda por vender mais de dous terços das prendas expostas, e sendo a hora adiantada, ficou o leilão adiado para as duas noites seguintes.

O bom do Sr.Hypolito preparara então uma surpresa convidando a directoria e diversas familias para um bem servido banquete que os esperava no hotel L, Univers.

De facto alli encontramos uma profusa mesa, havendo um salão preparado para dança, abrilhantado com a sympathica presença de muitas senhoras, entre as quais se achava a jovem pianista brazileira Idália França que para logo recebeu-nos com uma brilhante execução de piano

Discursos, brindes e hurrahs foram proferidos inspirados na mais ardente idea – a liberdade, na mais perfeita cordialidade – a familia, no mais excelso sentimento – o enthusiasmo

Terminou-se as duas horas da manha (...) No dia 1 e 2 continuou sempre animado e concorrido o leilão; não sendo

possível, porém, concluir a venda de todos os objectos, adiou-se ainda para o dia 5 à noite.

No dia 5 as 5 horas da tarde começou o leilão das ultimas prendas, terminando animado, as 9 da manhã...25

24 O Libertador, 12 de janeiro de 1881, Número 01, p. 3. 25 O Libertador, 07 de fevereiro de 1881, Número 03, p. 6.

34

Page 35: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

1.2 – O LIBERTADOR E SEUS IDEAIS

A Diretoria da Sociedade Cearense Libertadora utilizou a atividade da

imprensa enquanto instrumento de divulgação de seus anseios e ideais

políticos, sociais e econômicos. Os meios de comunicação foram para esses

indivíduos o principal instrumento de transmissão de seus ideais,

possibilitando-lhes formar uma opinião pública conivente com seus interesses.

No dia 1º de janeiro de 1881 a Sociedade Libertadora editou o primeiro

número do jornal Libertador:

Com o título – Libertador – veio a luz nesta capital mais órgão de publicidade, da Sociedade Cearense Libertadora [...] destina-se à sustentação do problema mais difícil que preocupa actualmente o pensamento nacional – a extinção do elemento servil.26

O Libertador apresentou publicação irregular. Do número 01 ao número

07 saiu quinzenalmente com oito páginas em média, do número 08 ao número

18 circulou semanalmente com quatro páginas. Em 28 de setembro de 1881 foi

editado um número especial em comemoração ao aniversário da Perseverança

e Porvir, outro no dia 08 de dezembro em comemoração à fundação da

Sociedade Cearense Libertadora e mais um em comemoração ao aniversário

da Sociedade Libertadora Cearense que fazia um ano de existência.

A creação do libertador é ainda um facto de maxima importancia, porque é a imprensa um grande agente para a realização de grandes ideias principalmente esta, que deve ser discutida com toda a largueza e lucidez, portanto nossos emboras àqueles que promoveram esse grande meio poderoso, essa alavanca potente, que se chama imprensa.27

O jornal poderia ser adquirido em avulso pelo valor de quatro réis e a

assinatura trimestral pelo custo de 2:000 réis. Foi impresso na Typogragia

Brasileira até o número 06, depois passou a ser editado na typografia do jornal

O Cearense. Tinha como formato 21,5x30 cm., 8 páginas divididas em

secções: Libertador, Gazetilha, Expediente, Folhetim, Literatura e Páginas do

Povo. Os redatores eram Antônio Bezerra de Menezes, José Teles Marrocos e

26 O Libertador, 15o de Janeiro de 1881, Número 02, p. 4. 27 O Libertador, 24 de março de 1881, Número O7, p. 2.

35

Page 36: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Antônio Martins. Como colaboradores, Frederico Borges, Justiniano de Serpa,

Martinho Rodrigues, João Lopes, Abel Garcia, Almino Álvares Afonso.

O jornal surgiu com o propósito de atuar na campanha publicitária em

favor da emancipação da escravidão na província do Ceará, primava por uma

escrita eloqüente e poética, sempre se remetendo à "consciência pública",

como maneira de convencimento de suas idéias.28

Em homenagem à fundação do jornal, escreveu um poeta anônimo:

O grande campeão da liberdade, O temido jornal – "libertador" – Se fez o horóscopo da verdade O erro profligando com fervor; A carne apodrecida da maldade Queimava com prazer, embora a dor, Viesse despertar o escravismo, O qual inda sonhava o despotismo.29

O Libertador, nas edições que antecederam o dia 25 de março de 1884,

sempre se referiu à liberdade enquanto elemento principal para o

desenvolvimento das letras, artes, indústria, lavoura, agricultura e que tais

desenvolvimentos somente poderiam ocorrer com o fim da escravidão. A

abolição permitiria a nação crescer e ser tão forte política e economicamente

quanto alguns países do velho mundo, dentre eles, França e Inglaterra.

Os membros da Libertadora Cearense desejavam ver a província do

Ceará como a primeira do Império a libertar seus escravos, "podemos exclamar

cheios de prazer aos nossos irmãos do sul: vinde apprender comnosco a ser

livres!" Ainda exaltavam o espírito empreendedor do povo cearense, "vinde ver

como um povo acabrunhado de mil calamidades naturaes, encara os perigos, e

a despeito de todas as desgraças só sonhara com as grandezas que lhe inspira

o esforço de sua constancia."30.

28 "...a consciência pública revoltou-se, e a liberdade reclamou justiça.” O Libertador, 1o de Janeiro de 1881, Número 01, p. 1. 29 Revista da Academia Cearense de Letras, ano LXXXIX, V, 45, 1984, número especial, p. 61-97. 30 Ibidem, p. 2.

36

Page 37: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Enfatizavam o quanto era vergonhoso para uma nação ainda possuir

escravos: "em meio das grandes idéias que nobilitam o nosso século, uma

grande vergonha faz ainda corar a nossa pátria."31 A grandeza do país, com

seu imenso território, rico em recursos naturais, rios, oceanos e matas, torna-

se diminuta com a existência da escravidão.

Em quanto a liberdade não congraçar-nos no mesmo amplexo, como irmãos que somos perante Deus e a humanidade, perante a civilização e o progresso, seremos um povo sem autonomia, sem consciência do nosso valor...32

Acreditavam que a escravidão representava uma violação às leis

econômicas, políticas e sociais do mundo contemporâneo. Os membros da

sociedade viam a escravidão como um entrave à racionalidade econômica e ao

desenvolvimento de uma nação:

Considerar nos effeitos da emancipação dos escravos dos Estados Unidos, da qual, não obstante Ter sido effectuada de chófre, resultaram grandes benefícios para aquelle paiz.

Ali, os antigos escravos tem feito extraordinário progresso em sua educação moral, scientifica, e industrial como se acha perfeitamente demonstrado em alguns artigos sobre a epigraphe <<educação de libertos>> publicado em novo mundo de junho e julho de 1879.

Quando muitos philantropos da Europa não podiam acreditar na possibilidade de conseguir, que em poucos annos a raça africana fizesse a evolução da semi-barbaria da escravidão para o maximo estado de civilização, no goso de todos os direitos de cidadão de uma Republica perfeitamente democratica, vemos que esse prodigio esta realizado: há negros nas universidades, nas academias, nos collegios e nas escholas; há negros medicos, advogados e em todas as profissões; há negros deputados e senadores; há negros padres e em todos os ramos da religião christan

Sejamos por tanto, ousados e resolutos em affirmar os princípios de uma pura e radical democracia, clamando sem cessar pelo resgate dos captivos.

O progresso, como a religião da humanidade, tem por scopo supremo a fraternidade dos homens e dos povos, commungando todos os mesmos agape os mesmos direitos e os mesmos deveres.

Nós que representamos a opinião, queremos a consagração politica e social dos princípios de liberdade, de justiça de solidariedade, que constituem a sciencia moderna. 33

Os abolicionistas da Sociedade Cearense Libertadora utilizaram-se do

jornal Libertador para expressarem-se politicamente, criticando duramente

aqueles que agiam contra seus interesses. Os que se manifestavam contra ou

se negavam a ajudar eram execrado pelos membros da diretoria: "verificou-se

e está provado que o homem que negou uma pequenina offerta a sympathica

31 O Libertador, 1o de Janeiro de 1881, Número 02, pág 01. 32 Ibidem, p. 1. 33 O Libertador, 15 de Janeiro de 1881, Número 02, p. 3.

37

Page 38: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

comissão de senhoras, sob o futil pretexto de ser contra a ideia (logo é

escravocrata)."34

O juiz municipal José Gonçalves de Moura sentiu a cólera dos diretores,

pois mantinha em cativeiro uma mulher de nome Esperança que se dizia livre.

Os abolicionistas denunciaram e condenaram tal situação:

Os escravagistas, os miseraveis especuladores de carne humana, estes pequenos miseraveis, q' tem accumulado fortuna à custa de tantas lagrimas e gemidos, acossados abolicionista, vendo que a cada momento lhes fugirá das mãos essa nova especie de velocinio de ouro.

E que os infames negociantes de negros rastejam-se até o crime, reduzindo pessoas livres à escravidão.

Mas não nos abandona a fé na generosa e grandiosa propaganda, que levamos por diante. Um dia o escalbello de reo há de ser o throno de ouro desses nojentos e asquerosos egoistas e ambiciosos vulgares, que tem os esgares do avarento, a alma de lama [...]35

E novamente no dia 29 de junho do mesmo ano investiram contra

Petrolina Alves Pontes e Fideralino Ribeiro da Silva, acusados de manter em

seu poder, “mettidos a ferro”, escravos considerados livres. Os abolicionistas

denunciaram o fato ao chefe de polícia da província:

Hoje que a idéa da libertação dos escravos na província não é mais uma utopia, que todos os verdadeiros cearenses se esforçam por estirpar de uma vez o cancro do elemento servil que tem sido o motivo do retardamento do progresso, que de coração anhelamos para este querido paiz, existe ainda alguém que se oppõe ao impulso do grande movimento, lançando mão de meios ignóbeis para neutralisar-lhe toda ação

Existem ainda creaturas que não corando do ridículo papel que representam perante os homens de verdadeiro merecimento, escudam-se na infâmia, praticando actos que na phase presente bem os recommendão a execraçam publica [...]

Em 30 de setembro de 1878 [...] D. Guilhermina Hermilina Freire, concedeu cartas de liberdade a seus escravos Salustiano, Luiza e Rufino [...]

Pois bem; agora aparece Fidelino Ribeiro da Silva, protestando serem os ditos escravos considerados libertos, porquanto aquella senhora , que falleceu em dezembro do ano passado, havia ficado a dever Petrolina Alves Pontes, e quer a todo o transe que os escravos, que entretanto a três anos gozavam de inteira liberdade, fiquem por pagamento da divida [...]

Denunciando-lhe ao Ilm.Sr.Chefe de Polícia, confiamos que, tomando em consideração os soffrimentos dos mesmos perseguidos, mandará informar-se do ocorrido e punira o criminoso com o rigor da lei, para desse modo desbaratar a audacia dos negreiros, que ainda se atrevem a escravisar pessoas livres [...]"36

Os sócios diretores da Libertadora Cearense também questionaram como estava sendo feita a classificação dos escravos na capital:

Vem apelo chamar também a atenção do senhor Fleury para a classificação nessa capital

Seria de grande interesse para o fundo de emancipação a reforma desse serviço que como se sabe foi feito com toda a indifferença e por tanto inçado de defeitos que se notam a primeira vista de observação; além de que hoje o valor dessa

34 O Libertador, 12 de janeiro de 1881, Número 01, p. 4. 35 O Libertador, 16 de junho de 1881, Número 11o, p. 1. 36 O Libertador, 29 de julho de 1881, Número 15, p. 1.

38

Page 39: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

criminosa propriedade está entre nos tão depreciado que vale a pena ser a tal classificação totalmente reformada

Com o movimento abolicionista promovido no imperio, fechados os portos das provincias do rio de janeiro, são paulo, minas gerais, como actualmente se acham com a promoçõa da proibição da exportação pelo porto desta capital obtida pela Sociedade Cearense Libertadora, um escravo da capital e mesmo do interior da provincia não pode Ter maior valor de 40$000 reis

É portanto uma propriedade completamente depreciada e assim não pode absolutamente vingar a avaliação anteriormente feita, nesta capital, em sobral, e em outros municipios

E por tanto appellamos para as autoridades competentes, cuja responsabilidade tornar-se-há solidaria com os delinquentes se não houverem severas e promptas providencias37

Outras vezes utilizavam discursos comoventes, procurando sensibilizar seus leitores, posicionando-se como “irmãos”, “amigos” e “pais” dos cativos.

<< hontem as 3 da tarde por ocasião de atracar a bordo do vapor Ipojuca uma lancha que ia receber carga, vinte escravos dos 52 que se achavam no mesmo vapor, saltaram na lancha procurando ganhar terra>>

<< um dos mesmos escravos dispondo, porém, de mais energia, lançou-se ao mar, e não obstante a grande distancia em que se achava da terra, conseguio a nado chegar até o trapiche, onde mais morto do que vivo, foi aprisionado e levado a bordo.>>

<< na hora em que se deu essa ocorrencia a praia estava quase deserta e assim os escravos não poderam receber nenhum auxilio externo>>

registrando esse acontecimento externamos o mais profundo pezar que nos invadio a alma, por não termos a felicidade de acharem-se na praia, em tal emergencia, os nossos abolicionistas

ah!... si elles lá estivessem-os infelizes teriam encontrado o pae, o irmão e o amigo que nunca tiveram em sua vida!38

1.3 – COMPRAS, VENDAS E FUGAS

Do mesmo modo que a imprensa contribuiu para a campanha

abolicionista, também serviu aos interesses escravocratas. Os periódicos da

província a partir da segunda metade do século XIX, estão repletos de

anúncios de compra, venda e fugas de escravos. Nesses anúncios vinham

normalmente assinalados o nome ou alcunha do cativo, como também a

descrição física, temperamento, hábitos e deformações.

Ha oito dias desapareceram [sic] da casa do abaixo assignado um escravo de nome Matheus, com 25 annos de idade, mulato claro, cor pallida, palpebras grossas, com uma cicatriz de ferida recente em uma das pernas, acual tem atada uma corrêa de veado. Levou camisa e cerola de algodãozinho branco e um chapéo de palha velho. Sem motivo algum para fugir, visto que era livre andar e trabalhar na rua quando lhe parecia; suspeita-se que tenha acostado a algum abarracamento onde tenha deparado algum conhecido. Recommenda-se aos srs. Comissarios e administradores respectivos

37 O Libertador, 03 de março de 1881, Número 05, p. 5. 38 O Libertador, 17 de março de 1881, Número 06, p. 2-3.

39

Page 40: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

e gratifica-se aquem der delle exacta noticia ou o trouxer á casa, sendo dispensável qualquer violência. Fortaleza, 9 de janeiro de 1880. Fenelon Bomilcar da Cunha.39

Havia algumas constâncias em relação aos escravos descritos.

Normalmente, a idade variava de 10 a 60 anos, sendo mais constante a

compreendida entre 15 e 30 anos. Aqueles com estatura alta ou "bastante alta"

eram mais freqüentes do que os de estatura baixa, sendo os de estatura

"regular" ou mediana os mais numerosos. Quanto a cor, os escravos eram

descritos de modos bem variados, sendo mais freqüente a designação de

tonalidade "cor mulata" ou "parda".

Gratifica-se bem quem aprehender os escravos Lourenço, pardo, de 28 annos de idade, baixo, cabellos crespos, olhos pretos, nariz chato, barbado, e boa physionomia; Roberto, preto, de 22 annos de idade, alto, cabellos carapinhos, olhos pretos, nariz chato, pouca barba e boa physionomia, entregal-os na Imperatriz ao senhor Henrique Cordeiro dos Santos, e na capital ao Dr. Meton da Franca Alencar. Supõe-se que elles andão nos abarracamentos dos retirantes.40

Os corpos eram descritos como, "franzino", "regular" ou "bonita figura".

Os cabelos eram em geral descritos como "carapinhados" ou "pixains", mas

também havia aqueles assinalados como "crespos", "cacheados" ou "corridos".

O rostos eram "compridos" ou "redondos". Os dentes geralmente vinham

descritos como "podres" ou "quebrados", ou então com algumas distinções que

indicava uma característica da tribo ao qual pertenciam.

Desapareceu da capital do Ceará, em 23 de setembro de 1879, o escravo José, trajava camisa de algodão grosso e calça de riscado americano, tendo ido ali ser vendido ao Sr. Barão da Ibiapaba, da casa de quem se evadio; quem o pegar e entregar na capital ao mesmo Barão, ou aos senhores João Cordeiro & Cia, no Acarahú ao senhor Antonio Ferreira Junior, ou ao major Francisco Theophilo Ferreira será gratificado com cem mil réis Signaes: idade 19 annos, nariz regular, cabellos quasi carapinhos, olhos pretos, altura baixa, rosto redondo, tem os dentes abertos a faca em um delles na frente quebrado com uma lasca tirada, já querendo mudar de cor.41

Os escravos presentes nos anúncios dos periódicos cearenses, em sua

grande maioria, apresentavam-se como "bastante ladinos" ou "espertos e bem

falantes". Quanto ao temperamento, "prosistas", "risonhos", "muito

despachados". Com relação as preferências lúdicas, as mais freqüentes eram

aquelas relacionadas com dança e música, "toca bem gaita", "Mete-se a

cantador", "é apaixonado por samba é cantador de chulas". Os hábitos são

39 Cearense, 11 de julho de 1880. 40 Cearense, 09 de julho de 1878. 41 Cearense, 02 de maio de 1880.

40

Page 41: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

aqueles relacionados com bebida, fumo e jogos, "um tanto amigo de bebidas",

"toma tabaco e fuma", "vício de jogar a dinheiro".42

Nos anúncios de escravos fugidos publicados, nos periódicos cearenses,

a partir da segunda metade do século XIX, constatou-se a presença de severas

sevícias. Foi possível perceber as péssimas condições sob as quais os

escravos estavam sujeitos, os anúncios vinham acompanhados de informações

como: tinham nas costas "marcas de chicotes" ou "grandes cicatrizes", ou

ainda, "sem o dedo midinho", como também, queimaduras pelo corpo,

membros mutilados e outras atrocidades do gênero.43

1.3 – A LIBERTADORA EM MOVIMENTO

Essas organizações e associações libertárias, dentre elas a

Perseverança e Porvir e a Libertadora Cearense, tinham como objetivos em

comum fazer conexões entre si, visando a ampliação da campanha

abolicionista. Promovendo encontros, atuando na imprensa, apelando para o

público, formando uma opinião pública, criavam um clima de agitação. Seus

encontros e reuniões freqüentemente eram realizados em teatros, salões,

lugares alegres e exuberantes, e reuniam grande número de pessoas.

A SCL promoveu comemoração da data de 18 de fevereiro aniversario da abolição dos escravos de Cuba, uma festa literária que teve lugar no passeio publico na noite do dia 17 de fevereiro

Substituíram-no seguidamente os senhores... que recitaram eloquentes discursos ... e terminados entregue por parte do cidadão Luiz Eustaquio Vieira uma carta de liberdade a escrava Maria de 38 anos

No dia 18 a mesma hora(7 horas) partiu do passeio publico uma grande passeata que tranzitando algumas ruas foi dissolver-se as 7 horas no teatro S.José onde subiu a cena o drama de propaganda – A Libertadora, produção de José de Lima Penante ... até o desfecho final no ultimo acto onde o phrenesi do enthusiasmo levou a tribuna L.Pessoa Barbosa de Freitas e F.Severo tendo este ultimo lido a carta de liberdade de um escravo ...44

42 Ver: RIEDEL, Oswaldo. Escravo no Ceará: Perspectiva Antropológica do Escravo no Ceará. In: Das senzalas para os salões. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1988. Como Também, SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit.. 43 Ver: CAMPOS, Eduardo. Revelação da Condição de Vida dos Cativos do Ceará. In: Da Senzala para os Salões. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1988. 44 O Libertador, 03 de março de 1881, Número 05, p. 6.

41

Page 42: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Era comum nessas festas ou encontros alforriarem-se escravos em

homenagem ao evento. De fato podemos considerar essas ocasiões como

grandes espetáculos. No dia 15 de janeiro de 1881, na inauguração da via-

férrea da cidade de Sobral, foi dada liberdade a alguns escravos, como noticiou

o Libertador de 17 de fevereiro de 1881.

Assim não há uma festa mais imponente, um regozijo publico, um soirée mais importante, que não seja sellado com uma carta de liberdade

Os engenheiros da via-ferrea de sobral, inaugurando o trafego de sua primeira secção, se cotisaram para alforriar uma escrava, a quem entregaram carta de liberdade no meio do esplendido festim que teve lugar no dia 15 de janeiro

Os amigos do senhor Cordolino Barbosa Cordeiro, juiz de direito de Baturité, para tornar mais importante o baile, que lhe ofereceram no dia 7 deste, contribuiram com mais 200 e manumitiram uma escrava

Pelo mesmo motivo o sr Joaquim José de Assis e sua sogra libertaram também uma escrava de 15 annos45

Um pouco mais de um mês depois da instalação da sociedade, no dia 30

de janeiro de 1881, os membros diretores da Libertadora Cearense voltaram a

se reunir. O abolicionista Antônio Bezerra, na sua obra O Ceará e os

Cearenses, narrou os acontecimentos desse dia. Os membros da Sociedade

Cearense se reuniram num ambiente denominado “sala de aço”, onde se

achava uma mesa coberta por um pano preto com duas lanternas na

extremidade e rodeada por vinte cadeiras; nesse ambiente eles decidiram os

caminhos a tomar. João Cordeiro, que estava sentado à cabeceira da mesa,

levantou-se e retirou do seu colete um punhal o qual fincou no meio da mesa e

disse:

Meus amigos exijo de cada um de nós um juramento sobre este punhal, para matar ou morrer, se for preciso, em bem da abolição dos escravos. Vamos travar uma luta horrivel com o governo, e por isso está em tempo de se retirar aquele que for amigo do mesmo governo ou dele for dependente. Quem não tiver coragem para tanto pode sair, que ainda sai em tempo; e logo se retiraram onze [...}46.

Logo depois, João Cordeiro ditou e Antonio Bezerra escreveu o seguinte

estatuto: "Art.1o – Um por todos e todos por um. Parágrafo único – A sociedade

libertará escravos por todos os meios ao seu alcance”. Depois de encerrada a

reunião, assinaram a ata os seguintes sócios: presidente, João Cordeiro; o

vice-presidente, José do Amaral; o 1o secretário, Dr. Frederico Borges; o 2o

45 O Libertador, 17 de fevereiro de 1881, Número 04, p. 4. 46 BEZERRA, Antônio. O Ceará e os Cearenses. Fortaleza: Tip. Minerva, 1906. P. 43-45.

42

Page 43: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

secretário, Antônio Bezerra; os diretores, Antônio Martins, José Teodorico,

José Barros, José Marrocos e Isac do Amaral.

João Cordeiro, nas memórias publicadas na revista do Instituto do

Ceará, deu outra versão para o fato. Segundo ele, no dia 30 de janeiro de

1881, foi decidido pelos membros da libertadora, que seria destinada uma

comissão encarregada de elaborar um estatuto para a sociedade. Dias depois

os membros se reuniram para ler e aprovar o estatuto, mas houve muita

discórdia e João Cordeiro declarou:

[...] o projeto de estatutos que acaba de ser lido não convém. Nós queremos uma sociedade carbonária, sem ligações com o governo, que ocupe-se revolucionariamente da libertação dos escravos por todos os meios ao alcance dos nossos recursos pecuniários, da nossa inteligência e da nossa energia. Os estatutos que nos convém devem ser simplesmente estes: – Art.1o – libertar escravos, seja por que meio for. Art 2o – todos por um e um por todos.47

O abolicionista Isac do Amaral, por sua vez, numa entrevista publicada

no jornal O Nordeste no ano de 1934, afirmou que os estatutos não foram

propostos por João Cordeiro, mas sim por Antônio Bezerra:

[...] a idéia triunfou e se formou um grupo de resistência que prosseguiu na luta, sendo de justiça destacar os nomes do punhado desse núcleo: João Cordeiro, Antônio Cruz, Antônio Martins, Antônio Bezerra, José Teodorico de Castro, Padre Frota, Alfredo Salgado, Frederico Borges, Almino Álvares Afonso, Manuel Albano Filho, João e José Albano, José Barros, João Carlos Jataí, José Marrocos, J. Cândido Maia, Justiniano de Serpa, Rodolfo Teófilo, Filipe Sampaio e Isac do Amaral... eram estes os tais dez libertadores [...] do lado da libertadora – ficamos com a maioria do povo, e do lado dos legalistas, tendo a frente o então Dr. Guilherme Studart, Julio Cesar da Fonseca Filho, João Lopes Ferreira Filho, Antônio Miranda e muitos outros filiados, ficou o apoio oficial e grande parte do funcionalismo público e dos proprietários, que não se queriam aventurar em lutas subversivas, que atentavam contra a constituição do império. Mas todos trabalhavam pela mesma causa [...] 48

A maioria dos membros da Cearense Libertadora entendia que a

abolição da escravidão era o mecanismo pelo qual a sociedade alcançaria o

desenvolvimento econômico, político e social. Tinham como referências leituras

cientificistas e evolucionistas, como também comungavam dos ideais liberais.

Eram a favor do livre comércio e do liberalismo econômico. Baseavam-se na

economia política inglesa. Entendiam que o Estado deveria intervir em algumas

decisões que envolvessem o direito público. Assim como Joaquim Nabuco,

entendiam que a escravidão era um mal que deveria ser superado.

47 Revista do Instituto do Ceará, Vol. 59, 1945. Apud. GIRÃO, Raimundo. Op. cit.

43

Page 44: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Para o abolicionista Joaquim Nabuco a escravidão deveria acabar

porque era um mal para a economia do país, pois lhe tirava a energia e a

resolução, desmoralizava-lhe e a rebaixava politicamente frente a outros

países. Ainda lhe impossibilitava o progresso material, pois a escravidão,

segundo o abolicionista, "impede a imigração, desonra o trabalho manual,

retarda a aparição das industrias, promove a bancarrota, desvia os capitais de

seu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre as classes, produz

uma aparência ilusória de ordem [...]"49.

Nabuco tinha 34 anos quando publicou o Abolicionismo. Defendeu uma

abolição moderada quanto aos métodos e formas de lutas. Foi claro: "[...] a

escravidão não há de ser suprimida no Brasil por uma guerra servil, muito

menos por insurreições ou atentados locais", 50 mas virá de "uma lei que tenha

os requisitos, externos e internos de todas as outras."51 Foi o abolicionista,

nesse sentido, o defensor da causa e o responsável por advogar a favor de

"duas classes sociais que, de outra forma não teriam meios de reivindicar seus

direitos, nem consciência deles. Essas classes são os escravos e os

ingênuos."52

A propaganda abolicionista para Nabuco, não deveria ser dirigida aos

escravos, mas aos homens "idôneos" que se encarregariam de defender os

interesses dos "míseros cativos" que, segundo ele, não teriam condições de

defenderem seus interesses por serem ainda "selvagens" e "bárbaros."

A propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos. Seria uma cobardia, inepta e criminosa, e, além disso, um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à insurreição, ou ao crime, homens sem defesa, e que a lei de Lynch, ou a justiça pública, imediatamente haveria de esmagar. Cobardia, porque seria expor outros que a perigos que o provocador não correria com eles; inépcia, porque todos os fatos dessa natureza dariam como único resultado para o escravo a agravação do seu cativeiro; crime, porque seria fazer os inocentes sofrerem pelos culpados, além da cumplicidade que cabe ao que induz outrem a cometer um crime; suicídio político, porque a nação inteira – vendo uma classe, e essa a mais influente e poderosa do Estado, exposta a vindita bárbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao nível dos animais e cuja as paixões, quebrado o freio do medo, não conheciam limites no modo de satisfazer-se [...]53

48 Entrevista apresentada no jornal O Nordeste, Fortaleza, edição de 24-03-1934. Apud. GIRÃO, Raimundo. Op. cit. 49 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. 6o edição. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000. 50 Ibidem, p. 35. 51 Ibidem, p. 35. 52 Ibidem, p. 35. 53 Ibidem, p. 39-40.

44

Page 45: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

O emancipacionista elegeu alguns motivos pelos quais a abolição, com

requintes de emancipação, deveria acontecer o mais breve possível:

porque a escravidão, assim como arruina economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompendo-lhe o caráter, desmoralizando-lhe os elementos constitutivos, tira-lhe a energia e a resolução, rebaixa a política; habitua-o ao servilismo, impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitais do deu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre as classes, produz uma aparência ilusória de ordem, bem estar e riqueza, a qual encobre os abismos de anarquia moral, de miséria e destruição, que do norte ao sul margeiam todo o nosso futuro."54

Acrescentando ainda:

Porque a escravidão é um peso enorme que atrasa o Brasil no seu crescimento em comparação com os outros Estados sul-americanos que a não conhecem; porque, a continuar, esse regímen há de forçosamente dar em resultado o desmembramento e a ruína do país; porque a conta dos seus prejuízos e lucros cessantes reduz a nada o seu apregoado ativo, e importa em uma perda nacional enorme e contínua; porque somente quando a escravidão houver sido de toda abolida, começara a vida normal do povo, existirá mercado para o trabalho, os indivíduos tomarão o seu verdadeiro nível, as riquezas se tornarão legítimas, a honradez cessará de ser convencional, os elementos da ordem se fundarão sobre a liberdade, e a liberdade deixará de ser privilégio de classe [..]55

Grande parte desses jovens intelectuais abolicionistas, denominados de

“mocidade cearense” tinha concepções bem próximas das de Nabuco, por

vezes idênticas. Nos seus discursos procuravam demonstrar que a escravidão

era um empecilho ao desenvolvimento, como também à organização de uma

sociedade inserida dentro dos padrões europeus de civilização. Cabendo ao

Estado a função de intervir em questões que envolvessem o direito público.

Como já foi dito, tinham ideais evolucionistas e cientificistas.

Acreditavam que uma nação só alcançaria a prosperidade seguindo um ideário

evolutivo-positivista, conforme pregavam os mestres europeus Darwin,

Spencer, Comte e outros que buscavam associar conceitos de ciência e

modernidade para o desenvolvimento dos povos. A abolição foi o modo

encontrado por esses indivíduos para alcançarem o ideal de uma sociedade

com valores burgueses. 56

O movimento abolicionista desencadeado pelos membros das

libertadoras, principalmente a Perseverança e Porvir e a Sociedade Cearense,

54 Ibidem, p. 91-92. 55 Ibidem, p. 91-92. 56 Ibidem, p. 91-92.

45

Page 46: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

não foi um movimento de cunho humanitário e filantrópico. Para tais

abolicionistas, o fim da escravidão consistia na negação da grande

propriedade, na luta pela oportunidade de instrução pública para toda a

sociedade e por uma reforma eleitoral que permitisse uma maior participação

da população. Esses abolicionistas tinham como intenção mudar a estrutura de

produção de forma que outros setores da sociedade, que não somente o dos

grandes proprietários de terra, mas também pequenos produtores e as

camadas médias, passassem a ter uma participação política mais direta e uma

certa parcela de poder. Ainda buscavam um reconhecimento, sobretudo

político, onde o fim da escravidão era também o de uma instituição que

legitimava até então a ordem política e social vigente.

Esses abolicionistas estavam pensando a organização do mercado de

mão-de-obra, de forma que o fim imediato do regime de trabalho escravo viria

acompanhado de uma instrução educacional que formasse o ex-escravo nos

novos valores e comportamentos correspondentes ao modo de produção

capitalista que estava se instituindo. A mudança do sistema servil ao livre

deveria vir acompanhada da garantia de que a organização do trabalho não

seria ameaçada. A liberdade deveria vir atrelada às formas de exploração

capitalistas que estavam surgindo, se assim não fosse, qualquer outra forma de

comportamento seria analisado e interpretado como ociosidade, vício e crime.

Quando a Sociedade Libertadora Cearense foi fundada, o presidente

provincial André Augusto de Pádua Fleury mostrou-se simpático à formação de

uma sociedade com aqueles fins. Ele propôs aos seus membros cuidado

especial com a educação dos libertos, principalmente crianças e mulheres,

entendidos enquanto pontos basilares na constituição da família. O presidente

se preocupou principalmente com a questão moral, recebendo como resposta à

sua preocupação a promessa de que essa questão estaria presente no estatuto

da Sociedade. O presidente tinha como intenção fazer com que a província do

Ceará fosse a primeira a libertar os escravos no Brasil.

Alguns membros da libertadora entendiam que ao Estado cabia a função

de cuidar e dar "educação moral e intelectual" ao ingênuo, o instruindo a "ser

46

Page 47: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

homem" e "cidadão", como ficou exposto no artigo publicado em 19 de agosto

de 1881, no periódico Libertador:

Aos poderes do Estado compete criar asylos onde os ingenuos sejam recebidos onde se lhe dê educação moral e intelectual, onde se lhe dê um officio, um meio de vida.

Nestes estabelecimentos o ingenuo aprendera a ser homem, virá a ser um cidadão. Apprenderá á moldar o seu procedimento pelas boas normas de moralidade, será um ente aproveitavel.

O ingenuo circunscripto à vida mesquinha que lhe dá a lei de 1871, será um auxilio para as revoltas de escravos, um contingente para os seus desmandos

O ingenuo educado livremente será o intermediário entre o senhor e o escravo, abrandará o rigor do primeiro, evitará a ferocidade do segundo

Não consideramos o escravo uma fera, ao contrario, julgamo-lo uma vectima, e quando fallamos em ferocidade reconhecemos um facto, cuja culpa recahe antes no agoz, do que no violentado, que se vae embrutecendo aos poucos, pelo seu regimen de vida.

A educação dos ingenuos, sobre ser uma garantia futura, um meio de desenvolvimento, é a effectuação de um princípio verdadeiro.

A moral e os costumes, a industria e a lavoura, tem tudo a lucrar com a educação dos ingenuos, e tudo à perder com a continuação do seu estado presente57

Ainda entendiam que a escravidão era incompatível com a moral cristã,

tinha caráter antieconômico, provocava a desagregação da sociedade e

causava insegurança:

É a própria biblia que condemna a escravidão, estabelecendo que todos os homens são irmãos, e como taes se devem amar uns os outros: é ella que manda cada um amar ao seu próximo como a si mesmo.

E será, por ventura, amar ao próximo como a si mesmo, Ter qualquer individuo um seu semelhante, um seu irmão, adstricto a sua vontade, obrigando-o a trabalhar sem lhe pagar salario algum, e muitas vezes suppliciando-o atrozmente?

Não quem é deveras catholico não pode querer a escravidão; e aquelles que se dizem catholicos e a appoiam , não passam de vis hypocritas58

1.4 – AS SENHORAS ABOLICIONISTAS

Os membros da Sociedade Cearense Llbertadora contaram também

com a ajuda das mulheres na empreitada contra a escravidão na Província.

Mimosas filhas de Moema, generosa e santa seiva do coração cearense! A vós que tendes a virtude de crear em vossos regaços de mães, varões illustres como Alencar – o espelho de vossa alma plena de poesia e amor; ou Sampaio – a

57 O Libertador, 19 de agosto de 1881, Número 17, p. 3. 58 O Libertador, 08 de agosto de 1881, Número 16, p. 2.

47

Page 48: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

apotheose do vosso coração viril e esforçado de heroismo a vos viemos depor aqui em face do mundo sobre o altar da liberdade: publicas – a imprensa – um voto de sincera gratidão, um brado de jubiloso enthusiasmo pelo modo extremamente patriotico com que acudiste ao reclamo da bendita idéa da emancipação dos escravos que gemem ainda sob o nosso esplendido ceo, nos ferros do captiveiro."59

No dia 17 de fevereiro de 1881 o Libertador lançou um artigo em

homenagem às mulheres cearenses, principalmente, àquelas que ajudaram ou

contribuíram de alguma forma com a realização do Bazar Beneficente:

Na cruzada humanitária que o ceará levantou em prol da mais santa das causas, a mulher cearense tomou a posição mais nobre

Seu nome figurou logo na primeira pagina do livro que recolhia os sufragios abolicionistas

Seus serviços também não se fizeram esperar e ellas nos prestaram com extremo de amor e dedicação

[...] e muito que fizeram as senhoras cearenses no bazar expositor

a mesma dedicação nos veio ainda penhorar no concerto que teve lugar em beneficio da SLC.60

Foi fundada na noite do dia 18 de dezembro de 1882, na chácara do

abolicionista José do Amaral, localizada no Bairro do Benfica, na cidade de

Fortaleza, "uma sociedade abolicionista das distintas filhas do Ceará, das

dignas irmãs de Iracema", a reunião terminou às duas e meia da manhã, e em

homenagem à fundação foram alforriadas seis escravas. A instalação solene

aconteceu no dia 06 de fevereiro de 1883.61

A diretoria provisória foi constituída pelas senhoras: Diretora–Geral: Maria Thomázia Figueira Lima;

1o Vice-Diretora – Carolina Cordeiro; 2o Vice- Diretora – Luduvina Borges; 1o Secretária – Jacintha Augusta Souto; 2o Dita – Euvira Pinho; Tesoureira – Eugênia Amaral. Diretoras: Virgínia Salgado; Maria Farias de Oliveira; Joana Antônia Bezerra; Isabel

Rabelo Silva; Francisca Rangel Bezerra; Luisa Torres de Albuquerque; Francisca Borges da Cunha Mamede; Isabel Vieira Teófilo; Jovina Jataí; Branca Rolim; Francisca Nunes da Cruz; Francisca Joaquina do Nascimento; Jesuina de Paula Pimentel; Maria D'Assunção dos Santos Castro; Maria Teófilo Martins; Estefânia Nunes de Mello; Marieta Pio de Castro e Nerina Martins de Sá.62

59 O Libertador, 17 de fevereiro de 1881, Número 04, p. 2. 60 Ibidem. 61 Ver: SCHIMMELPFENG, Gisela Paschen. A Mulher e a abolição. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1984. 62 Ibidem. p. 28-29.

48

Page 49: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

1.5 – PRESSA E LIBERDADE

Parte dos membros da diretoria da Sociedade Cearense Libertadora

abandonou o caráter moderado do movimento e passou a pregar a abolição

imediata e incondicional:

A cruzada que se levanta pujante do sul ao norte, vai ganhando terreno aos inimigos.

E a frente da cruzada marcha a mocidade generosa, que não se corrompeu ainda ao contacto das seducções da riqueza.

Não é só com o dinheiro que intentam a victoria os mandões das senzalas, mas com ameaças, a arrogância dos que não tem consciência do merito de uma boa causa.

Não recuemos antes as iras de suas ameaças que se enervam de encontro ao delirio da propaganda desta propaganda heroica que vae já ganhando os postos avançados de seus entricheiramentos e escarnece dos desesperados esforços que ainda recorrem para contel-ª

Seja cada um de nos o soldado decidido que há de lançar no altar da pátria o protesto de salval-a do opprobio, que por tanto tempo a tem humilhado.

Pelo contrario procura-a, e para ella se prepara armada de gladio da palavra, mais destruidor que as armas de exterminio.

Somos moços, somos revolucionários. Se, alem dos recursos de nossa palavra de fogo, que fulmina execrações sobre

os traidores da patria, for-nos preciso deitar mãos as armas, sejamos guerreiros. Sirva-nos de exemplo o procedimento magnanimo dos filhos da grande

república americana, que atiraram aos quatro ventos o grito da revolta e libertaram a republica63

Até a década de 80 o movimento abolicionista na Província do Ceará

sempre foi prudente. A cautela sempre se revelou nas táticas de luta, os

abolicionistas sempre procuraram agir dentro da legalidade. Nas demais

províncias do Império, principalmente na Corte, as ações mais radicais também

iriam acontecer, mas somente depois de 1880. Segundo Suely Queiroz, "até lá

[...] o poderio dos senhores de escravos, bem como dos políticos e estadistas a

eles vinculados, obriga seus oponentes a atuarem dentro do estreito espaço

legal em que se podiam mover."64

63 O Libertador, 07 de fevereiro de 1881, Número 3, p. 3. 64 QUEIROZ, Suely R. Reis de. A Abolição da Escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 54.

49

Page 50: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

De fato, alguns membros da diretoria da Sociedade Cearense

Libertadora não pouparam esforços para libertar alguns escravos e é

novamente Raimundo Girão que nos dá detalhes sobre os acontecimentos dos

dias 27, 30 e 31 de janeiro de 1881, quando Pedro Arthur de Vasconcelos,

funcionário da Casa Comercial Inglesa, num intervalo do espetáculo teatral

ocorrido no teatro São Luís, na noite de 26 de janeiro de 1881, discursou sobre

a possibilidade dos jangadeiros deixarem de realizar o transporte dos escravos

para bordo dos navios.

Também lá estava Júlio Cesar da Fonseca, que testemunhou depois:

Pedro Artur de Vasconcelos, tão esquecido, foi o iniciador do movimento, José do Amaral. O toque de clarim cabe ao primeiro, o comando das forças ao segundo. O primeiro levantou o grito, o segundo uniu fileiras. Acudiram logo com o seu apoio e o seu aplauso, para dar corpo à aspiração, diversas pessoas. No Ceará não embarcará mais escravo! Era o lema, o motor do novo lábaro; e com ele, somente, seria vencida a escravidão. Foi no intervalo da representação de um drama, do teatro São Luís, que Pedro Arthur lembrou a necessidade do movimento e que se apelasse para os jangadeiros. O sonho tornou-se realidade. E das brancas e pandas velas das jangadas, alciones da liberdade, se fizeram bandeiras de combate.65

Estava marcado para o dia 27 de janeiro de 1881 o embarque dos

escravos no vapor Espírito Santo com destino ao Rio de Janeiro. Pedro Arthur

juntamente com José do Amaral entraram em contado com o liberto José Luís

Napoleão66, chefe de capatazia no porto e pediram seu auxílio na intervenção

do transporte dos escravos para o vapor.

No dia 26, Antonio Bezerra, Isac do Amaral e João Carlos Jataí saíram à

noite com a função de aliciarem pessoas para acharem-se na praia na hora do

embarque dos cativos. Se devido algum imprevisto a greve dos jangadeiros

não vingasse, essas pessoas causariam tumulto e os escravos fugiriam.

Raimundo Girão afirma que mais de mil e quinhentas pessoas estavam na

praia e clamavam: "no porto do Ceará não se embarca mais escravos!"

Os traficantes buscaram auxílio junto à polícia para tentarem embarcar a

"mercadoria," mas de nada adiantou. Diz Girão:

Apenas, muito cedo, haviam embarcado nove peças, porém dessas os libertadores, por meio legais, retiraram algumas, entre elas, do vapor Pará uma infeliz

65GIRÃO, Raimundo. Op. cit., p. 103-104. 66 Napoleão comprara a própria liberdade e com algumas economias comprou também a liberdade de quatro irmãs bem como de outros colegas de cativeiro. Ver GIRÃO, Raimundo. Op. cit., p. 104.

50

Page 51: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

mãe 'seminua e quase morta de fome', com quatro filhas, despachadas do Maranhão para o Rio de Janeiro – todos desembarcados 'debaixo da bandeira brasileira, ao som da música e ao ribombar de foguetes.67

E mais uma vez, no dia 30, os jangadeiros se recusaram a embarcar 38

escravos no vapor Espírito Santo com destino às províncias do sul do império.

O poeta anônimo escreveu:

O nobre jangadeiro nascimento Que o povo batisou pelo Dragão, Na praia foi o nosso salvamento, Jamais se despertou um só irmão. Era belo de ver, foi um portento. Tinha o povo da praia pela mão, Trancou com chave d`ouro o nosso porto, De muito desgraçado foi conforto.68

Em outro momento, Jataí, Bezerra e Isac ao saber que haviam escravos

depositados num determinado estabelecimento, arquitetaram um plano, que

seria tocar fogo numa casa ao lado do depósito para chamar a atenção das

autoridades e com a distração dos policiais derem fuga aos escravos. Assim,

"pela madrugada o incêndio começou. E, ao repicar dos sinos da Sé e da Igreja

da prainha, e ainda ao som das cornetas da polícia, o povo se aglomerou em

torno. Arrombadas as portas, verificou-se, com maior decepção dos traficantes,

constantemente apupados, que a mercadoria havia fugido."69

O jornal o Libertador noticiou o acontecimento na edição do dia 07 de

fevereiro de 1881:

Assim entendeu elle de seu dever protestar contra o deshumano trafico, e um por um affluiram a praia mais de 1,500 anos homens de todas as classes e condicções.

Lá já estavam os jangadeiros prestando os valiosos e indispensaveis serviços de sua profissão.

A elles, pois, se dirigiram os negreiros solicitando o embarque dos infelizes que destinavam vender no sul.

No porto do Ceará não se embarca mais escravos Esta resposta terminantemente e decisiva partio ao mesmo tempo de todos os

labios Era uma idéa que estava em todas as intelligencias, um sentimento que

brotava em todos os corações Entre elles se achava a escrava Luiza que o Sr.Galdino Francisco Linhares

tinha convertido em propriedade sua, e que entretanto não podia ser vendida em face das garantias legaes de que dispunha.

Em nome, pois, da lei foi arrancada de bordo à mandado da autoridade competente trazida à terra, debaixo da bandeira brazileira, ao som da musica, ao ribombar dos foguetes e no meio das aclamações de um numeroso concurso de povo.

67 Ibidem. p. 105. 68 Revista da Academia Cearense de Letras, ano LXXXIX, Volume 45, 1984, número especial, p. 61-97. 69 GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. Op. cit., p. 107.

51

Page 52: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

No porão de vapor <<Pará>> agonisava uma mãe infeliz, que muito embora livre, fora embarcada no Maranhão, com quatro filhas, para ser vendida no Rio de Janeiro!

Foi a requerimento do presidente da Sociedade Cearense Libertadora que o Sr. Dr. chefe de polícia fez desembarcar essa família:

Confrangiu o coração vel-a chegar, em terra, semi-nua, esqualida e morta à fome.70

Novamente, no dia 30 de agosto de 1881, os abolicionistas praticaram

mais um ato radical. O sr. Camerino de Castro Meneses adquiriu duas

escravas no Ceará e pretendeu levá-las para Belém. Tentou enviá-las pelo

porto do Acaraú até o Maranhão. O sr. Magalhães também tinha interesse em

enviar para Belém uns escravos comprados no Ceará. O chefe de policia se

encarregou de efetivar pessoalmente o despacho dos negros. O vapor Espírito

Santo encontrava-se atracado no porto quando começou o protesto de

populares contra o aparato policial que se encontrava na praia: "duzentas e dez

praças (guardas civis, policiais e soldados do 15 batalhão) postavam-se para

manter o "princípio da autoridade"; mas os libertadores respondiam que “210

era, sem tirar nem por, o número de infelizes negros até aquele instante por

eles declarados livres!"71

No meio da confusão entre policiais e populares, as escravas do

Camerino fugiram auxiliadas pelo abolicionista João Carlos Jataí. Esse evento

custou a demissão de Frederico Borges do cargo de promotor público, Siqueira

Mano e Ferreira do Vale, oficiais da guarda cívica, e Francisco do Nascimento,

da função de prático mor da barra. Outros sofreram suspensão e o 15o

batalhão foi transferido para Belém, como ressalta Gisela Paschen:

o infeliz 15o batalhão só porque desempenhou um papel influente durante a campanha abolicionista, como castigo foi mandado a 7 de março do mesmo ano, no navio de guerra "Purus" para o alto amazonas. Foi uma injustiça, que os anos superiores iriam revelar. Esses soldados e oficiais, além das medalhas ganhas durante a guerra do Paraguai, traziam orgulhosos em suas fardas uma nova "decoração", oferecida, em sinal de saudades e reconhecimentos pelas bravas mulheres libertadoras, lideradas por Maria Thomázia.72

Alguns abolicionistas dentre eles, José e Isac do Amaral, Marrocos,

Carlos Jataí, Cândido Maia e Antônio Bezerra eram mestres em "roubar”

escravos e envia-los para lugares seguros como alguns sítios localizados em

70 O Libertador, 07 de fevereiro de 1881, Número, 03, p. 1-2. 71 GIRÃO, Raimundo. Op. cit., p. 129. 72 SCHIMMELPFENG, Gisela Paschen. A Mulher e a abolição. Op. cit., p. 28.

52

Page 53: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

cidades limítrofes de Fortaleza. O presidente da câmara municipal, coronel

Antônio Pereira de Brito Paiva teve cinco escravos seus furtados pelos

abolicionistas Isac do Amaral, Carlos Jataí, Cândido Maia e Teles Marrocos. O

coronel entrou com uma ação por “delito de furto” e por “indenização de danos”

contra os “ladrões.” Mas depois de um hilário e conturbado processo73 optou

por perdoar os “infratores

Entretanto, esse abolicionismo radical não estava acontecendo

isoladamente na província do Ceará. Maria Helena Machado, na obra O Plano

e o Pânico, tratou em algumas páginas sobre o movimento dos abolicionistas

radicais que atuavam na província de São Paulo. Os caifazes e os cometas

eram grupos de indivíduos que na maioria das vezes tomavam atitudes

extremistas, ora penetrando nas fazendas e estabelecendo contato com os

escravos, estimulando-os a abandonarem o trabalho e fugirem para os

quilombos localizados nas redondezas e, noutras ocasiões, obrigando os

senhores a libertarem seus escravos sob pena de retaliação:

Entretanto, foi na cidade de São Paulo que as atividades desse grupo se tornaram mais conhecida. O episódio da invasão de uma chácara do Braz, pela associação abolicionista do bairro, por exemplo, tornou-se famoso, marcando época na cidade. Em agosto de 1884, o cidadão João Christovão Mendes Gonçalves, morador do Pari( então distrito policial do Braz),queixava-se à polícia “que no dia anterior as 9 horas da noite sua casa foi assaltada por 20 e tantas pessoas que aos gritos ‘Vivão os abolicionistas, morram os escravocratas’, o intimaram a trazer seus escravos, sob pena de morrer e praticarem atos de vandalismo na casa. 74

Nesse sentido, esse capítulo buscou demonstrar que a campanha

abolicionista desencadeada na província do Ceará pelas libertadoras

cearenses, principalmente a Sociedade Libertadora Cearense e a

Perseverança Porvir foi um movimento que teve suas especificidades, onde

grande parte dos indivíduos pertencentes a essas sociedades possuía a

mesma convicção política, mas apresentava posturas e comportamentos bem

distintos.

Buscou-se também demonstrar que os membros das libertadoras eram

oriundos dos centros urbanos que acreditavam no fim da escravidão enquanto 73 Segundo Girão o processo foi tumultuado por audiências intermináveis e barulhentas, um dos réus Isac do Amaral mandou passar repetidas vezes em frente ao prédio do fórum carroças cheias de objetos de flandres causando uma "barulheira infernal", testemunhos de populares como, José Basófia, Zé da Hora e Piau contribuíram para deixar ainda mais cômico o processo. Ver: GIRÃO, Raimundo. Op. cit., p. 138. 74 MACHADO, Maria Helena. O Plano e o Pânico. Rio de Janeiro: Edusp, 1994. p. 155.

53

Page 54: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

um meio que permitiria o desenvolvimento econômico, político e social do país.

Entendiam ainda que o Estado deveria possuir o papel de intervir em questões

que envolvessem o direito público.

Achamos importante salientar que quando essas libertadoras surgiram o

sistema escravista na província do Ceará estava em estado bem avançado de

desestruturação ocasionado pela seca e pelo tráfico interno, como também

pelas alforrias custeadas pelo cofre público. Esses abolicionistas tinham como

intenção mudar a estrutura de produção de forma que outros setores da

sociedade que não somente aqueles que possuíam muitas terras, mas também

pequenos produtores e as camadas médias, passassem a ter uma maior

participação política e uma certa parcela de poder. Buscavam um

reconhecimento, sobretudo político, onde o fim da escravidão era também o de

uma instituição que legitimava até então a ordem política e social vigente.

No próximo capítulo buscaremos evidenciar que a abolição do elemento

servil na província do Ceará não contou apenas com a participação de

indivíduos oriundos das camadas abastadas da sociedade, mas também de

forros, homens livres pobres e escravos. Ressaltaremos o papel ativo do

escravo enquanto sujeito de sua liberdade, lutando no campo jurídico contra

seu senhor.

54

Page 55: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

CAPÍTULO 2

RUMO À LIBERDADE

Page 56: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

2.1 – A LEI 2040 E OS PROJETOS QUE A RESULTARAM

Mando, portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém. O secretario de Estado dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas a faça imprimir, publicar e correr. Dada no palácio do Rio de Janeiro, aos vinte e oito de setembro de mil oitocentos e setenta e um, quinquagesimo da independencia do Imperio.75

Em 28 de setembro de 1871 foi decretada pela princesa Isabel a lei de

número 2040, mais conhecida como Lei do Ventre Livre. A Lei 2040, como

preferimos chamá-la, é objeto de análise desse capítulo. Esse mecanismo

jurídico foi fruto de um demorado e controverso processo de discussão política.

Desde a data em que a discussão foi introduzida na Assembléia Geral,

em 1850, pelo deputado Pedro Pereira Guimarães, até a promulgação da lei,

passaram-se 21 anos onde a emancipação e a extinção da escravidão foram

questões centrais nos debates.

Os projetos que resultaram na lei 2040, especialmente aqueles

discutidos no Conselho do Estado Imperial, constituem-se num importante

ponto de desenvolvimento para esse trabalho. Esses projetos devem ser

analisados a partir do objeto ao qual se prende a Lei. Um aspecto importante

no processo de formulação da lei 2040 foi o encaminhamento jurídico definidor

das relações entre senhores e escravos.

Procuramos a partir dos embates parlamentares, jurídicos, discursos e

discussões parlamentares, captar as experiências sociais do sistema escravista

vivenciados por senhores e escravos e concomitantemente relacioná-las aos

projetos de encaminhamento da abolição e duma sociedade livre.

A sociedade escravista foi conseqüência da dinâmica social, entre

senhores e escravos. Sociedade concentrada em torno desses dois elementos,

mas não resumida, seu campo de influência perpassa uma complexa rede de

relações sociais entre diferentes segmentos sociais, mesmo daqueles não

necessariamente implicados no sistema escravista.

75 Coleção das Leis do Império do Brasil de 1871, Tomo XXXI, parte I, Typographia Nacional, Rio de Janeiro.

56

Page 57: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Ao tratarmos da escravidão e das relações entre senhores e escravos,

privilegiamos a noção de que as relações históricas são construídas por

homens e mulheres num movimento contínuo, realizado através de lutas,

resistências, conflitos e acomodações, sendo as relações entre senhores e

escravos fruto dessas ambigüidades.

Como dissemos anteriormente, no dia 28 de setembro de 1871, foi

promulgada pela então Regente Princesa Isabel, a protetora mais ilustre dos

escravos da Corte76, em nome do Imperador do Brasil, D. Pedro II, a Lei 2040

referente ao “elemento servil”. Para os emancipacionistas a Lei teve como

intenção apaziguar os ânimos dos abolicionistas, resguardar os interesses dos

senhores, concedendo indenização no tocante a perda de sua propriedade,

como também realizar uma política abolicionista legalizada, lenta e gradual.77

No entanto, a historiografia vem demonstrando que a Lei Rio Branco foi mais

do que apenas uma providência legalizada em relação a libertação dos

escravos. Como afirma Maria Aparecida Papali, “em torno da lei do Ventre

Livre foi edificada uma estratégia política de avanço e recuo em relação aos

objetivos históricos que a referida legislação pretendia alcançar.”78

Estudos recentes demonstram que a relação senhor-escravo, antes da

promulgação da Lei 2040, passou por algumas mudanças, sendo uma delas a

perda do poder moral do senhor. Pois mesmo com a prerrogativa da concessão

de alforrias estando nas mãos dos senhores, os cativos se empenhavam em

conquistar a liberdade, buscando várias possibilidades e requerendo, às vezes,

até a intervenção do governo imperial.79 Nesse sentido, parafraseando Sidney

76 Segundo o historiador Eduardo Silva, de todos os presentes recebidos pela princesa Isabel no dia 13 de maio o que "mais sensibilizou os contemporâneos" foi um simples e quase despercebido buquê de Camélias" vindo de um quilombo situado no bairro do Leblon do Rio de Janeiro, que, segundo o autor, existiu com o consentimento e apoio da princesa Isabel. Ainda segundo Silva: "as camélias representavam o projeto da abolição imediata e incondicional. Atravessando de uma ponta a outra a sociedade imperial, o simbolismo das camélias nos permite entrever, por detrás dos panos, momentos-chave da história brasileira, a contribuição da princesa imperial, a contribuição fundamental da elite negra e do próprio escravo." Ver.SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural. Companhia das Letras: São Paulo, 2003. p. 8. 77 CONRAD, Robert. Op. cit., p. 114-121. 78 PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Escravos, Libertos e Órfãos: A construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). Tese de doutorado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2001. p. 40. A autora utiliza como fontes principais ações de liberdade do período de 1871 a 1888, envolvendo 192 libertandos, conceituou os referenciais de liberdade de homens e mulheres escravizados em Taubaté. Procurou compreender os significados da liberdade construídos a partir das experiências vividas por escravos e libertos. 79 Ver: CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista ( Brasil XIX ). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993; GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da

57

Page 58: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Chalhoub, a Lei Rio Branco mais do que uma ampla política emancipacionista

conduzida pelas elites imperiais, constituiu numa grande conquista dos

escravos.80

Desse modo, encontramos nos trabalhos desenvolvidos pelo historiador

inglês E. P.Thompson, acolhida profícua para os nossos estudos. Achamos

que a provocação feita por Silvia Lara81 na revista Projeto História cai bem

nesta circunstância: “[...] que relação poderia haver entre estudos sobre a

formação da classe operária inglesa, as relações gentry-plebe ou as leis e o

direito na sociedade inglesa setecentista e a escravidão africana, o processo

da abolição e a história dos negros depois da emancipação no Brasil.”82

Thompson fez uma importante reflexão sobre a Lei Negra na Inglaterra

do século XVIII.83 Segundo sua análise a Lei é um instrumento da classe

dominante “ela define e defende as pretensões desses dominantes aos

recursos e à força de trabalho – ela diz o que será propriedade e o que será

crime [...]”84; mas a lei também pode ser entendida como um campo de

conflitos, onde apresenta características próprias e lógica de desenvolvimento

independente.

[ ...] de um lado, é verdade que a Lei realmente mediava relações de classe existentes, para proveito dos dominantes; não só isso, como também, à medida que avançava o século, a lei tornou-se um magnífico instrumento pelo qual esses dominantes podiam impor novas definições de propriedade, para proveito próprio ainda maior, [ ...] Por outro lado, a lei mediava essas relações de classe através de formas legais, que continuamente impunham restrições às ações dos dominantes [...] E não só os dominantes (na verdade a classe dominante como um todo) estavam restringidos por suas próprias regras jurídicas contra o exercício da força direta e sem mediações

ambigüidade – As Ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no Século XIX. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, 1994 80 CHALHOUB ,Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 81 LARA. Silva, Hunold. Blowin’in the wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Revista Projeto História, n 12, outubro/1995. Silvia Lara, nesse artigo, utilizou como referência o texto “ La sociedad inglesa del siglo XVIII: lucha de clases sin clases?“. In: THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta y consiencia de clase. Estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Critica, 1979. Nesse texto Thompson rejeitou os termos feudal, capitalista e patriarcal por considerá-los imprecisos e recuperou o conceito de paternalismo para o estudo da luta de classes na sociedade inglesa setecentista, onde a reciprocidade gentry-plebe e a armonia estrutural da relação gentry-multidão foram estudados a partir dos conceitos de hegemonia e luta de classes. Segundo Silva Lara a historiografia brasileira que estudou a experiência negra, na sua grande maioria, sempre deu mais ênfase na análise da violência e dos interesses econômicos. Privilegiavam desse modo a exclusão dos escravos enquanto sujeitos da história. No entanto, já há alguns anos historiadores influenciados pelas análises teóricas e políticas thompsonianas sobre o século XVIII inglês, começaram a insistir na necessidade de incluir a experiência escrava na história da escravidão no Brasil, privilegiando as relações históricas construídas por homens e mulheres realizadas através de lutas, conflitos, resistências e acomodações permeadas de ambigüidades. 82 Ibidem. p. 43. 83 THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 348-361 84 Ibidem. p. 349.

58

Page 59: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

[...] como também acreditavam o bastante nessas regras, e na retórica ideológica que as acompanhava, para permitir, em certas áreas limitadas, que a própria lei fosse um foro autêntico onde se tratavam certos tipos de conflito de classe [...]85

Wilson Roberto de Mattos em seu estudo sobre resistências e práticas

negras na cidade de Salvador, situado no período corrente entre os anos 1850

e 1888, realizou um proveitoso diálogo com Thompson. Segundo o autor:

mas se tomarmos como modéstia, historiograficamente justificada, o fato de Thompson alertar para o caráter restritivo de sua análise, ao século XVIII inglês, confessando ignorar sua validade transcultural, ao contrário de esgotar a discussão, devemos abri-la e, ao gosto metodológico do mesmo Thompson, transformar suas reflexões sobre o papel da lei ou o que nos parece mais importante, os aspectos das relações sociais de classe, por ela mediadas, em expectativas de interpretação da dinâmica das relações escravistas modificadas a partir da intervenção legal do Estado Imperial [...]”86

O autor concluiu que, mesmo com Thompson excluindo os escravos dos

critérios lógicos para o funcionamento das leis modernas, por não possuírem

“foros de cidadania”, já que estavam fora dos padrões de universalidade e

igualdade, mesmo assim a Lei de 1871, transformou parcialmente os escravos

em sujeitos portadores de direitos, incluídos no universo dos critérios

jurídicos.87

A Lei do Ventre Livre permitiu ao escravo dar um grande salto frente ao

direito de domínio tido pelos senhores até então, pois a legitimidade da

propriedade senhorial foi colocada em xeque. Tal Lei fez com que o senhor se

deparasse com uma situação inusitada até aquele momento ao ser colocado

no papel de réu num processo, situação nada agradável para aqueles que

estavam acostumados apenas a cobrar, ordenar e reclamar. Como afirma

Papali, “[...] mesmo saindo perdedor no judiciário (o que não era raro) o

escravo libertando já teria deixado sua marca; nem ele seria o mesmo daí em

diante, nem o judiciário sairia ileso [...].”88

85 Ibidem. p. 356 86MATTOS, Wilson Roberto. Negros Contra a Ordem: Resistências e práticas negras de territorialização no espaço da exclusão social – Salvador – BA (1850-1888). Tese de doutorado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2000. p. 175. 87 Oito dias antes de outorgada a lei 2040, Lei do Ventre livre, foi sancionada a reforma do judiciário, permitindo dessa forma, uma maior autonomia desse poder frente ao executivo. A partir dessa reforma os juizes tiveram um pouco mais de independência frente aos membros do executivo, principalmente, frente os Presidentes das Províncias e o próprio Imperador. Ver: KOERNER, Andrei. Judiciário e cidadania na constituição da República Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1988. 88 PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Op. cit., p. 65.

59

Page 60: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Manuela Carneiro Cunha no seu texto Sobre os silêncios da lei: lei

costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil no século XIX,

revendo o percurso traçado pela Lei de 1871, chegou a conclusão de que as

alforrias, antes da lei, eram legitimadas pelos costumes. A prática de comprar

alforrias através do pecúlio vinha desde os tempos coloniais. A autora se

questiona por que esse costume de comprar alforria com o pecúlio não foi

aprovado em nenhum projeto antes da lei 2040. Observou que esse fato se deu

principalmente devido a uma questão política. Pois os senhores não queriam

se ver na condição de serem obrigados a conceder alforrias a seus escravos,

pois desse modo teriam seu poder moral abalado sensivelmente.89

Mesmo existindo no direito costumeiro a prática do escravo comprar sua

alforria via pecúlio, até 1871 não se fez constar em nenhuma Lei. Antes dessa

data, foram poucas às vezes que o Estado interveio concedendo alforria. Como

afirma Manuela Carneiro “creio que com isso se exaurem as ocasiões em que

o governo se arrogou o direito de interferir na concessão de alforria: razões

imperiosas de Estado, todas entendidas como medidas excepcionais. Sempre,

de qualquer forma indenizava-se os senhores e cabia a estes a concessão da

carta de alforria.”90 Nesse sentido estava em poder dos senhores a faculdade

de decidir sobre a liberdade ou não do escravo.91

Entretanto, esta faculdade estava inserida dentro de determinadas

regras que eram respeitadas pelos senhores. Além da pressão da opinião

pública, principalmente a partir do século XIX, instando as alforrias, mesmo por

indenização, havia também o temor por parte do senhor de perder sua “peça”

por fugas e suicídios. Em suma, no sistema escravista um pacto mínimo entre

escravos e senhores devia ser mantido.

89 CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. In: Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987. 90 Ibidem. p. 47. 91 Analisando cartas de alforrias, o autor percebeu que o senhor, ao conceder liberdade ao escravo, deixava implícita "uma série de medidas que pudessem contemplar o processo de ‘transição’ do trabalho escravo para o livre, principalmente com relação ao direito de propriedade do senhor sobre as peças". Chegou a conclusão de que o processo de alforria tinha como intenção reforçar a autoridade do senhor de modo que fosse garantida a ordem e o controle social. Ver: ALENCAR, Alênio Carlos Noronha. Nódoas da Escravidão: Senhores, Escravos e Libertandos em Fortaleza (1850-1884). Dissertação de Mestrado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2004. p. 132.

60

Page 61: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

O direito de o escravo constituir pecúlio, antes de ser inscrito na lei de 28

de setembro de 1871, vinha sendo praticado no cotidiano de senhores e

escravos. A partir desta data, muitos dos direitos conseguidos

costumeiramente e incorporados na relação senhor-escravo passaram a

vigorar em lei, possibilitando aos escravos, através da experiência cotidiana do

cativeiro, construírem estratégias de luta embasadas numa consciência própria

dos seus direitos e fazendo o máximo para alcançá-los.

É possível considerar que a Lei de 1871 permitiu aos escravos se

apropriarem de alguns direitos, especialmente aqueles referentes à legalização

do pecúlio, à permissão de compra de alforria e à proibição de separação das

famílias, incluindo-os deste modo, ainda que parcialmente, no universo jurídico.

Paralela a essa luta por inserção jurídica, deve-se considerar que a referida Lei

atingiu impreterivelmente algumas prerrogativas do domínio senhorial, dentre

elas a da disposição irrestrita da propriedade escrava. Como afirma Wilson de

Mattos:

[...] as estratégias e lutas individuais dos escravos nas quais eles se utilizam de expedientes legais para conseguirem a liberdade, se por um lado, contribuíram para a definição de um campo legal, legitimador da dominação escravista, por outro lado, fizeram reconhecer alguns direitos, ampliando nos escravos as noções de cativeiro justo ou injusto92

Em 1867, o jurista Perdigão Malheiro publicou o ensaio jurídico e social,

Escravidão no Brasil, onde defendeu medidas que visavam regularizar a prática

do pecúlio.

Entre nós, nenhuma lei garante ao escravo o pecúlio; e menos a livre disposiçãosobretudo por ato de última vontade, nem a sucessão, ainda quando seja escravo da Nação. Se os senhores toleram que, em vida ou mesmo causa mortis, o façam, é um fato, que todavia deve ser respeitado. No entanto conviria que algumas providências se tomassem, sobretudo em ordem de facilitar por esse meio as manumissões e o estabelecimento dos que se libertassem.93

Perdigão Malheiro, fazendo uma analogia entre as Leis romanas e as

práticas presentes na relação senhor–escravo na sociedade brasileira,

principalmente na segunda metade do século XIX, entendeu que no Brasil

diferentemente de Roma, as relações escravistas apresentavam certas

92 MATTOS, Wilson Roberto. Op. cit., p. 178. 93 MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil: Ensaio Histórico, Jurídico e Social. Brasília: Vozes, 1976. p. 62.

61

Page 62: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

peculiaridades que mereciam maior atenção. Uma dessa particularidades era o

pecúlio.

A primeira discussão sobre o direito de o escravo constituir pecúlio

surgiu nos debates parlamentares em março de 1850 e, posteriormente, em

1852,94 fez parte do quarto artigo do projeto do deputado Pedro Pereira

Guimarães. Depois apareceu, em 1866, no projeto do Conselheiro São Vicente,

e dois anos mais tarde, em 1868, no projeto elaborado pela comissão de

Conselheiros do Estado. Em 1870 foi incluso no projeto deliberado em

Assembléia Geral. Sendo que em 28 de setembro de 1871, inseriu-se

definitivamente na lei 2040, artigo segundo, parágrafo quarto.

No Brasil, a prática do escravo economizar para comprar sua liberdade,

mesmo não estando inscrita em Lei, antes de 1871, esteve presente no direito

consuetudinário. Na cidade havia escravos que trabalhavam no ganho dando

aos senhores um jornal estipulado previamente. Em outras ocasiões, fora

dessa jornada estabelecida em acordo anterior, trabalhavam em fábricas e no

arsenal de guerra da corte, em troca de salários cujo destino principal era a

emancipação.95 No campo, plantavam em terras dos senhores, sendo o fruto

do cultivo destinado à constituição do pecúlio.96

94 Antes dessa data houve referência a essa disposição em alguns momentos, sendo a primeira delas em 1817 quando Moniz Barreto ofereceu a D. João VI suas memórias. Depois, em 1823, no projeto de José de Bonifácio e, em 1826, no projeto de José Eloy e, em 1852, no projeto de Pereira da Silva. Ver: CUNHA, Manuela Carneiro. Op. cit., p. 48. 95 A autora fez importantes considerações acerca das práticas e experiências dos escravos de ganho e de aluguel, na cidade de São Paulo, no final do século XIX: “no contexto histórico do século XIX, os senhores viabilizaram, mediante o sistema de ganho e de aluguel, a aproximação, a adequação e mesmo a simbiose do regime de trabalho escravo ao mercado em sua fase proto-assalariada. [...] travestindo concretamente os escravos em trabalhadores remunerados e autônomos adestrou-os ao movimento histórico que apontava em direção ás formas livres, ao mesmo tempo em que resguardou, em tempo hábil, o conteúdo maior da situação escravizada. [...]”. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas: Escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Editora Hucitec, 1998. p. 77-79. As atividades de ganho e de aluguel desempenhadas por determinados escravos em São Paulo, em meados do século XIX, atingiam amplos setores do trabalho urbano principalmente nas atividades do pequeno comércio, como também, no setor de construção, na criação e na manutenção da infra-estrutura urbana e nas manufaturas. Estendiam-se, ainda, as funções braçais e aos trabalhadores semiqualificados – carregadores, agricultores, ajudantes ou serventes, pedreiros, engomadeiras, quitandeiras, barbeiros, alfaiates, ferreiros e outros. O autor traz importantes considerações sobre a atividade de ganho realizadas por escravos em Salvador no século XIX, principalmente as mulheres ganhadeiras: “as mulheres ganhadeiras, de presença bastante marcante nos centros escravistas urbanos, eram as responsáveis pela circulação dos gêneros alimentícios, venda de algumas miudezas, e pela própria alimentação cotidiana dos escravos e libertos “ao ganho”, preparando e vendendo comida em tabuleiros levados na cabeça ou barracas fixas”. MATTOS, Wilson Roberto de. Op. cit., p. 87. Ver ainda sobre escravos de ganho: SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982.; REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês. (1835). São Paulo, Brasiliense, 1986.; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. 2o edição. São Paulo: Brasiliense, 1995.; ALGRANT, Leila Mezan. O

62

Page 63: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

As possibilidades derivadas do exercício das funções de ganho e de

aluguel, organização do trabalho, a ausência do controle exacerbado do

senhor, necessidade de prover alimentação, moradia e vestimentas, permitiam

aos escravos ter mais autonomia frente ao rígido código das relações

escravistas e do controle social aos quais estavam sujeitos, imprimindo, deste

modo, perspectivas múltiplas à vida em meio à escravidão urbana.

Aluízio de Azevedo na obra inaugural do naturalismo brasileiro, O

Mulato, descreveu alguns serviços realizados por escravos e libertos urbanos

nas ruas de São Luís:

[...] da praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade de sons invariáveis e monótonos de uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do mar; para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas.

Mencionou também as lavadeiras que iam "em caminho da fonte, com a

trouxa de roupa suja equilibrada na cabeça"; as pretas minas que vendiam

"mingau de milho"; e ainda os escravos que se dirigiam para o açougue com a

cesta de compras debaixo do braço; como também os negros carregadores

que ficavam no porto embarcando as bagagens dos passageiros

[...] À medida que se aproximava do mar , ia avultando ao seu lado o número de carregadores de bagagens; pretos e pretas passavam com baús, malas de couro e de folhas-de-flandres, cestas de vime de todos os feitios, cofos de pindoba, caixas de chapéu de pêlo e gaiolas de pássaros [...]97

O jurista Perdigão Malheiro compreendeu que a prática de constituição

do pecúlio, presente na sociedade escravista brasileira, foi uma concessão dos

senhores aos escravos. Todavia entendemos que o direito do cativo constituir

pecúlio, presente na lei de 28 de setembro de 1871, mais do que uma

permissão, foi uma conquista dos escravos, direito adquirido com estratégias,

negociações, lutas e pelo costume.98

feitor ausente. Estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. 1808-1822. Petrópolis: Vozes, 1988.; KARASCH.M.C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 96 MALHEIRO, Perdigão. Op. cit., p. 63. 97 AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. Fortaleza: Verdes Mares, 1998. p. 07. A mesma página para serve à citação anterior. 98 Segundo o autor: “[...] o costume constituía a retórica de legitimação de quase todo uso, prática ou direito reclamado. Por isso, o costume não codificado – e até mesmo o codificado – estava em fluxo contínuo. Longe de exibir a permanência sugerida pela palavra “tradição”, o costume era um campo para

63

Page 64: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

A constituição do pecúlio foi apenas um dos vários momentos de tensão

presente no cotidiano do senhor e do escravo. Perdigão Malheiro, enquanto

membro da classe proprietária, entendeu que a propriedade privada deveria ser

respeitada como também os princípios da liberdade. Isso refletia a atitude

zelosa de senhores de escravos com suas propriedades, em confronto com a

de escravos ansiosos por sua liberdade. Propriedade privada versus princípios

da liberdade, constituiu, portanto, o dilema vigente entre proprietários e

governantes.

Sidney Chalhoub99 retrata bem a questão do princípio da propriedade

privada versus princípio da liberdade ao analisar uma ação de liberdade

movida pelas escravas Rubina e Fortunata, em junho de 1864. Na cidade do

Rio de Janeiro, quando Custódio Manoel Gomes Guimarães, no seu leito de

morte, pediu à sua esposa, dona Rosa Guimarães, que depois de morto

concedesse cartas de alforria `a africana Rufina e à sua filha Fortunata houve

uma complicação. Como dona Rosa se recusara a realizar o pedido do marido,

em junho de 1864, nove anos depois, as escravas deram entrada num

processo de liberdade contra a esposa do falecido e seu segundo marido

Joaquim.

O curador alegou ser desejo do falecido libertar as escravas. Os

proprietários, dona Rosa Guimarães e seu esposo Joaquim, por sua vez,

alegaram que não era desejo de Custódio alforriar as escravas, mas apenas

não vendê-las para sanar as dívidas existentes. O raciocínio dedutivo de

Chalhoub ao analisar essa ação correu no sentido de perceber que os

argumentos do curador, como os dos proprietários partem de um pressuposto

em comum: a vontade do senhor teria que prevalecer.100 Nesse sentido, o autor

concluiu que é difícil saber se existia apenas um falso argumento do escravo

sobre a intenção do senhor de alforriá-lo ou se de fato era esta a sua vontade:

[...] é sempre difícil sabermos se as alegações dos escravos eram verdadeiras, e tudo se complica ainda mais porque a lutas dos cativos pela alforria aparece geralmente num tecido mais amplo de relações e conflitos que, como temos visto, pode incluir desde histórias de amor até brigas entre herdeiros. De qualquer forma, a leitura

a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes [...].” THOMPSON, E. P. Op. cit., p. 16-17. 99 CHALHOUB, Sidney. Op. cit., p. 101-102. 100 Ibidem. p. 102-103.

64

Page 65: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

de cartas de alforria e de testamentos do século passado mostra que era relativamente comum que senhores determinassem que um ou mais de seus escravos ficariam livres quando do seu falecimento [...]101

A necessidade de regulamentar as práticas que vinham ocorrendo na

sociedade escravista, como também a perda de controle dos senhores sobre

seus escravos fez com que em 1866 o imperador D. Pedro II solicitasse ao

Conselheiro São Vicente que elaborasse um projeto visando discutir e

normalizar as experiências instituídas na relação entre senhores e escravos.

São Vicente, ao todo, elaborou cinco projetos e determinou a criação em

cada província de juntas “protetoras de emancipação”, que se encarregariam

de zelar pela liberdade dos cativos. Esta junta concederia aos mesmos o direito

de constituir pecúlio, enfim, o direito de alforriar-se pagando o seu valor.

Também permitiu a criação de um fundo de redenção para a libertação anual

de certo números de escravos, declarou que era proibido separar cônjuges e

estipulou que depois de passados três anos o escravo teria direito a um dia

livre por semana para fazer o que bem entendesse.

O projeto não foi bem visto pelo presidente do Conselho Ministerial, o

Marquês de Olinda. Somente depois que esse foi exonerado do cargo e no seu

lugar entrou o ministro Zacarias, o projeto teve discussão no Conselho de

Estado, no dia 1 de fevereiro de 1867. A sessão foi aberta com a seguinte

questão para discussão: “convém abolir diretamente a escravidão? Como, com

que cautelas e providências cumpre realizar essa medida?”102 Os conselheiros

receavam uma abolição “imprudentemente” caminhada, pois previam que,

assim sendo, a paz e a ordem estariam ameaçadas. Porque uma coisa era

atacar a escravidão enquanto “instituição” que atravancava o progresso e a

civilização e outra era debruçar-se sobre questões relativas a utilização do

trabalho, principalmente, sobre como os ex-escravos viveriam em liberdade.

Nesse sentido, os conselheiros pressentindo a inevitabilidade da abolição,

pensaram em realizá-la de forma “prudente” e encaminhada, preservando-a

contra a “desordem” e o “caos social”.103

101 Ibidem. p. 111. 102 NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. São Paulo: Instituto Progresso material, 1949. p. 32. 103 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a Mão e os Anéis: A lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. São Paulo: Unicamp, 1999. p. 97.

65

Page 66: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Ainda no ano de 1867, o Conselho de Estado se reuniu nos dias 2 e 9 de

abril para deliberar sobre a questão. Os conselheiros mostraram-se divididos,

um grupo era contra o projeto de São Vicente: Muritiba, Olinda, Itaboraí e

Eusébio de Queiroz. Outro a favor: Jequitinhonha, Souza Franco, Sales Torres

Homem, Nabuco de Araújo, Abaeté e Paranhos, sendo que se ausentaram das

deliberações do Conselho, o Marquês de Sapucaí e de Bom Retiro. 104

Os conselheiros estavam relutantes quanto à reforma. Achavam mais

conveniente adiá-la para um futuro se possível bem distante. As incertezas que

pairavam sobre os membros do Conselho não eram somente quanto ao

segundo projeto referente ao Pecúlio, mas também quanto aos demais. O

primeiro projeto estabelecia a liberdade dos nascituros e dava à mãe escrava o

direito de decidir sobre o futuro do recém-nascido.105 O terceiro se preocupava

em mapear os escravos existentes nas áreas rurais através da matrícula

destes. O quarto dava a liberdade aos escravos do Império dentro de um prazo

de cinco anos; o quinto e último, autorizava a alforria dos escravos dos

conventos em sete anos.

Na primeira sessão de 2 de abril de 1867, um dos pontos mais

discutidos pelos conselheiros foi sobre a liberdade dos nascituros.

Jequitinhonha concordou com o primeiro projeto de São Vicente, todavia fez

um acréscimo, que os filhos livres nascidos de mãe escrava fossem

considerados libertos e não ingênuos. Essa pequena alteração aos olhos de

um leigo não diz muito, mas significava mexer com um dos preceitos mais

importantes da sociedade brasileira no século XIX, o direito de propriedade.

Conceber o escravo enquanto liberto e não ingênuo desautorizava o senhor a

receber os serviços do libertando até a idade de vinte anos.

Os ministros Itaboraí e Eusébio de Queiroz também foram favoráveis à

liberdade do ventre, mas somente depois de um prazo que duraria até o final

da guerra do Paraguai. O conselheiro Paranhos também foi da mesma opinião.

104 NABUCO, Joaquim, Op. cit., p. 33. 105 Muitas vozes se manifestaram contra a liberdade do ventre. Segundo Joseli Maria Nunes Mendonça, “[...] julgava-se que da possibilidade de retirar-se as crianças do domínio dos senhores de suas mães poderiam advir grandes danos, dentre os quais incluía-se a quebra da força moral dos senhores.” MENDONÇA, Nunes Joseli de. Op. cit., p. 99.

66

Page 67: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Entendeu que a liberdade dos nascituros, por mais legítima que fosse, só

estaria livre de “perigos” 106, quando se desse o término da guerra.

Parlamentares e senhores estavam conscientes da crise do sistema

escravista nas suas bases. O controle sobre os escravos estava lhes

escapando. Fugas e revoltas estavam cada vez mais freqüentes. Nas páginas

dos periódicos de época encontramos um considerável número de fugas. Os

anúncios traziam o nome, idade, descrição física, como também vícios e

habilidades dos fugitivos:

Fugio da casa do abaixo assignado em 20 do mez de setembro de 1869 o escravo de nome Ricardo, cabra fusco, quasi preto, alto e seco, cara bexigosa e toma tabaco, e fuma, é cantador e tocador, elle recommenda as auctoridades policiaes ou mesmo a qualquer cidadão que quiserem o capturar será bem gratificado participando para o districto de Sacco de Orelha, do districto da Serra do Pereiro, á José Alexandre da Silva, sendo o dito escravo d seu genro Florencio, Sacco de Orelha, 1 de Fevereiro de 1870. Francisco José Xavier.107

As fugas, revoltas individuais e coletivas, as grandes insurreições como

também os assaltos às fazendas tiravam o sono dos senhores.108As

insurreições que aconteceram na Bahia nas três primeiras décadas do século

XIX, organizadas pelos haussás e nagôs, comprovavam as expectativas.109 A

tomada do poder pelos negros e escravos permeava o imaginário dos senhores

antes mesmo da proclamação da independência do Brasil, em 1822.110

Segundo Maciel da Costa, devido apenas a “felizes circunstâncias”,

entenda-se por essa expressão, “pelo bom tratamento dado aos (escravos)

pelos senhores, que os alimentavam, vestiam, curavam, instruíam e até mesmo

lhes davam por vezes a liberdade e continuavam a assisti-los enquanto

106 O conselheiro temia que tal medida executada antes do fim da guerra do Paraguai pudesse trazer sérias conseqüências a economia. O conselheiro também temia que os escravos se rebelassem e trouxessem perigos à ordem pública e à segurança individual. Ver: NABUCO, Joaquim. Op. cit., p. 38. 107 A Constituição, 29 de julho de 1865. 108 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco: o negro no imaginário das elites século XIX. São Paulo: Paz e Terra, 1987. 109 Ver: MOURA, Clovis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Ciências Humanas, 1981.; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil - A história do levante dos Malês (1835). Op. cit. 110 Em 1821, João Severiano Maciel da Costa, marquês de Queluz, publicou Memória sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil, tratando sobre o modo e condições com que esta abolição deveria ser feita, e sobre os meios de remediar a falta de braços que ela poderia ocasionar. Célia Marinho diz: “a obra desse mineiro que governou a Guiana Francesa de 1809 a 1819 questiona não só o tráfico como o próprio sistema escravista, responsável pela ‘multiplicação indefinida de uma população heterogênea inimiga da classe rica’. Além da heterogeneidade decorrente de sua condição social de escravos, o autor lembrava também sua natureza bárbara, africana, de gente que vive ‘sem moral, sem leis, em continua guerra, [...] vegetam quase sem elevação sensível acima dos irracionais’ “. Ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Op. cit., p. 40.

67

Page 68: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

livres”111 tinham impedido uma rebelião em dimensão mais ampla, atingindo

grandes proporções e abalando a estrutura política e social do Império.

Em 1823, José de Bonifácio Andrada e Silva já alertava para a

necessidade do término do tráfico de escravos da África para o Brasil. Tal

medida, para o eminente político, era posta como uma solução essencial para

o futuro do país, como forma de superar a heterogeneidade física e civil da

população.112

É nítido nas falas parlamentares e nos textos impressos da primeira

metade do século XIX, analisados por Jaime Rodrigues113, o medo das "ações

escravas" que a todo o momento se faziam presentes, atormentando os nervos

dos políticos. A presença majoritária dos africanos nas principais províncias do

Brasil não dava sossego aos senhores. Era-lhes delegada a culpa pelo atraso e

pobreza material em que viviam os habitantes do Império. Para alguns autores

contemporâneos114 os "bárbaros" costumes africanos juntamente com a

escravização propiciavam os males sociais que afligiam toda a população.

Nesse sentido, o tráfico era um mal que deveria ser combatido através de uma

legislação mais rigorosa.115

Ainda na segunda sessão do dia dois de abril de 1867, o Conselheiro

Nabuco de Araújo apresentou algumas propostas que também tinham como

111 COSTA, João Severiano Maciel da. Memória sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil; sobre o modo e condições com que esta abolição se deve fazer; e sobre os meios de remediar a falta de braços que ela pode ocasionar. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1821. p. 13. In: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Op. cit. 112 SILVA, José de Bonifácio Andrade e. Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil Sobre a Escravatura. Rio de Janeiro: Cabral, 1840. Apud. AZEVEDO, Maria Marinho de. Op.cit., p. 41. 113 Ver: RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio. Campinas: Unicamp, 2000. p. 118. O autor estudou o fim do tráfico de escravos da África para o Brasil. Partiu do pressuposto de que a lei de 1850 antes de ser oriunda da pressão inglesa e da necessidade do Brasil garantir sua soberania, foi fruto da concordância de idéias da elite política do império, como também do esgotamento do projeto de construção do mercado de mão-de-obra baseado exclusivamente no escravo como alicerce da produção e, ainda devido ao vínculo estreito entre "corrupção dos costumes" e escravidão, aliando tudo isso à identificação dos traficantes a piratas, sem esquecer também do medo dos senhores com as ações coletivas escravas. 114 VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas. Bahia: Imprensa Oficial, 1921.; COUTINHO, José Joaquim da Cunha Azeredo. Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da costa da África. Lisboa: Nona oficina de João Rodrigues Neves. 1808. Apud. RODRIGUES, Jaime. Op. cit., p. 33. 115 Em meados do mês de maio de 1831 o marquês de Barbacena apresentou um projeto no senado sobre o fim do tráfico, alegando para tal fins humanitários e morais, e propondo o julgamento dos traficantes pela justiça brasileira, conforme o código penal do Império. Ver: Projetos de Lei, Anais do senado, 31 de maio, 1831. p. 254. Apud. RODRIGUES, Jaime. Op. cit., p. 87-88.

68

Page 69: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

objetivo regular as relações senhor/escravo e encaminhar a emancipação

gradual da escravidão no Brasil.

As propostas exibidas por Nabuco continham muitas particularidades

tiradas do projeto de São Vicente, por exemplo: estipulação do ventre livre,

criação de um fundo destinado à emancipação anual dos escravos, concessão

de um dia livre na semana e o direito do cativo constituir pecúlio através do seu

trabalho, de doações ou de heranças.

Acrescentou também “a alforria invito domino”116. Esse acréscimo traria

como conseqüência a obrigatoriedade do pecúlio para a compra da alforria.

Nabuco receava que o emprego da quantia em poder do escravo tivesse outros

fins que não a compra da liberdade, “[...] sem a aspiração da liberdade

garantida, o escravo perderia todos os estímulos do trabalho e da economia; o

que adquirisse seria para alimentar os vícios, porque tal é o destino que se lhe

permite.”117

Na segunda sessão, realizada alguns dias depois da primeira, no dia 9

de abril de 1867, as opiniões de alguns conselheiros afastaram-se um pouco

daquelas defendidas dias antes. O Ministro Jequitinhonha defendeu uma

emergente mudança na estratificação social presente na sociedade brasileira,

pois considera que a nossa organização social não se podia considerar perfeita

se a sociedade continuasse dividida entre senhores e escravos. Já os

conselheiros Paranhos e Abaeté mantiveram a opinião de que melhor conviria

à nação brasileira realizar a emancipação e não a abolição e, mesmo assim, só

depois de finda a guerra entre Brasil e Paraguai. O ministro Paranhos, por sua

vez, defendeu uma proposta semelhante àquela apresentada por

Jequitinhonha, na sessão de 2 de abril, que fossem considerados libertos e não

ingênuos os filhos de escravas nascidos depois da Lei.

Nabuco nas suas observações sobre os cinco projetos do Conselheiro

São Vicente foi concorde com o primeiro, quarto e quinto, entretanto, ao

primeiro, acrescentou uma emenda, estabelecendo que o recém-nascido

prestaria serviços gratuitos para o senhor de sua mãe até a idade de 20 anos, 116 Nabuco, Joaquim.Op. cit.,p. 44.

69

Page 70: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

se fosse homem e 18 se mulher, sendo que, havendo recusa por parte do

senhor, o projeto deveria permitir que alguma pessoa idônea ou uma

associação autorizada pelo governo se encarregasse de criá-lo e educá-lo.

Quanto ao terceiro projeto, Nabuco fez a ressalva de que a liberdade

seria alcançada pelos escravos se o senhor deixasse de matriculá-los por dois

anos sucessivos, sendo que este senhor pagaria multa de 20$ a 100$ reis se

omitisse a matrícula dos recém-nascidos filhos de suas escravas. No segundo

projeto, manifestou desacordo com a instalação das juntas centrais, municipais

e paroquiais, pois as achava ineficazes. As atribuições desta deveriam ficar a

cargo das autoridades locais, sendo nomeado um coletor para arrecadar e

guardar o fundo destinado à emancipação. Cabia aos promotores públicos e

curadores gerais requererem a quantia a ser arrecadada que fosse “a bem do

escravo”. O pecúlio ficaria sob os cuidados dos párocos da região, cabendo-

lhes a função de conceder as alforrias anuais, que tinham como referência o

valor disposto pelo fundo de emancipação. Os escravos alforriados seriam

aqueles indicados pelos senhores.

Nabuco de Araújo defendeu a elaboração de um projeto que se

apresentasse tutelar, onde ao governo cabia a função de decidir sobre o

destino dos escravos e libertos. O projeto deveria proteger e sustentar o poder

do senhor em conformidade com a religião e as leis. A escravidão não era para

ser abolida, mas apenas regulamentada. O processo da abolição deveria ser

conduzido de forma que a relação de domínio entre senhores e escravos não

se rompesse absolutamente.

Em 11 de abril de 1868 o conselheiro Zacarias foi encarregado de

compor uma comissão para discutir o projeto ou projetos que iriam ser

deliberados nas câmaras. Como presidentes desta comissão foram nomeados

Nabuco de Araújo, Sales Torres Homem e Souza Franco sendo, o último

substituído pelo ministro Sapucaí.

Nabuco redigiu um novo projeto e enviou ao conselheiro Zacarias que o

remeteu aos colegas São Vicente, Sapucaí e Sales Torres Homem,

117 Ibidem. p. 44.

70

Page 71: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

responsáveis por alterar o texto acrescentando as seguintes emendas:

familiares do filho recém nascido de uma escrava teriam o direito da posse da

criança mediante o pagamento de uma quantia determinada ao senhor da mãe;

os recém-nascidos permaneceriam na posse dos senhores e et seriam

dispensados de alguns serviços obrigatórios; os escravos que fossem

maltratados severamente pelos seus senhores teriam a liberdade decretada; o

escravo não poderia receber herança e os filhos recém-nascidos dificilmente

poderiam ser separados de sua mãe.

Nabuco de Araújo pouco atendeu as emendas acrescidas pelos

conselheiros. Em 16 de abril de 1868, o Conselho de Estado se reuniu pela

primeira vez naquele ano para tomar conhecimento do projeto da Comissão. A

discussão consumiu quatro sessões, a primeira no dia 16 de abril e as demais

nos dias 23, 30 e 7 de maio simultaneamente. Na primeira sessão, os membros

do conselho apresentaram discordâncias em muitos itens do projeto

apresentado por Nabuco. O marquês de Olinda, por exemplo, mostrou-se

avesso a todos os itens expostos no projeto: “Se temos de dispor dos escravos

da nação, apliquemos o produto de venda dos mesmos para a dívida ou para

algum estabelecimento de caridade. Quanto a matrícula: já temos o

assentamento dos párocos: isto é o que basta. Quanto ao pecúlio, resgate

forçado, etc: não estamos fazendo lei de moral.”118 O conselheiro

Jequitinhonha discordou do colega quanto a empatia da população à causa da

abolição: “a população está impressionada como diz o marquês de Olinda, mas

é a favor.”

O conselheiro São Vicente, por sua vez, achou mais sensato a não

indenização pelo filho menor que acompanhasse a mãe alforriada. Nabuco

retaliou: “se é duro que a mãe liberta ou para libertar-se preste essa

indenização, o Estado que a tome para si. O que não é justo é que a

expectativa do senhor, confiado na proposta da lei, seja iludida [...]”119. O

conselheiro Rio Branco foi a favor que somente os filhos menores de quatorze

anos acompanhassem a mãe escrava e não todos como propunha o projeto de

Nabuco.

118 Ibidem. p. 64. 119 Ibidem. p. 64.

71

Page 72: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

O marquês de Bom Retiro, baseando-se na máxima presente no direito

cível romano relativa à escravidão – “do partus sequitur ventrem, << pelo direito

ao fruto tão rigoroso como o que há sobre toda a propriedade escrava>>”120,

fez um acréscimo ao dispositivo do projeto relativo a liberdade do ventre. Os

recém-nascidos filhos das escravas só teriam liberdade mediante a

indenização do senhor. Bom Retiro foi a favor da indenização não somente

com a prestação de serviços dos menores, mas também por meio de uma

soma em dinheiro que seria paga pelo fundo de emancipação.

A Lei 2040 de 28 de setembro de 1871 foi fruto de vários projetos e

debates, que por sua vez não eram novos. Em 1831, Pereira de Brito já

levantava questões na Câmara referentes à alforria forçada dos cativos

brasileiros e, em 1850, o deputado cearense Pedro Pereira da Silva

Guimarães apresentou um projeto no parlamento nacional cujos principais

artigos eram: 1o) referente a liberdade daqueles que nascessem do ventre

escravo a partir da data da Lei; 4o) que consistia no direito ao pecúlio e o 6o)

proibindo a venda separadamente de escravos casados.121

Pedro Pereira Guimarães ainda tentou argumentar em favor de seu

projeto, mas os colegas deputados o impediram designando que esse tipo de

discussão deveria ser debatida em sessão distante do público: “são matérias

melindrosas que sempre tem sido tratadas em sessão secreta”122. Pedro

Pereira mostrou-se insistente, mas não conseguiu muito, os deputados

manifestaram-se irredutíveis.

O projeto que tenho a honra de submeter à sua consideração (ao presidente da câmara) e ao seu patriotismo contém três partes distintas, mas todas elas relativas ou tendentes a um só fim, melhorar a condição da raça escrava entre nós. Na primeira parte trata-se, em minha humilde opinião, do meio menos gravoso à sociedade para emancipação daqueles ao cativeiro pela infelicidade de terem nascido de um ventre escravo. Na Segunda parte trata-se da emancipação daqueles que, já tidos e havidos em cativeiro, querem sair dele obtendo por dinheiro a sua liberdade. Na terceira e última parte do projeto trata-se de tomar providências para obstar o abuso da venda de escravos casados123

O deputado Guimarães destoava de seus companheiros de Câmara.

Poucos parlamentares, neste momento, ousaram defender a emancipação e 120 Ibidem. p. 65 121 Ver em anexo no final do texto o conjunto de artigos do projeto. 122 Anais da Assembléia Legislativa, sessão de 22 de março de 1852.

72

Page 73: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

abolição da escravidão no Brasil. Pedro Guimarães defendeu a emancipação,

tendo em vista, que já considerava o cativeiro um sistema amoral e ilegal:

[...] a liberdade não é um direito de herança, mas sim um dom da natureza tão precioso ou mais do que a vida, dom do qual não podemos despojar os outros, nem nós mesmos [...] e por isso, para mim, nada mais estranho e absurdo em jurisprudência que esta denominação de pessoas e cousas, do que este princípio do direito romano do partus sequitur ventrem [...]”124

Ainda nesta ocasião não estava elucidado para os deputados que a

escravidão representava um entrave para o desenvolvimento nacional,

impossibilitando o crescimento político, social e econômico brasileiro. Essa

concepção encontrou morada nas mentes parlamentares só a partir de 1867,

quando foi apresentado e deliberado no Conselho de Estado o projeto de São

Vicente, ilustrado nas páginas anteriores. Porém, mesmo neste momento, no

ano de 1867, as discussões apresentadas na imprensa, assembléias

legislativas, Comissões de direito, etc., normalmente giravam em torno dos

aspectos de cunho moral negligenciados pela conjuntura escravista.

Nos debates das sessões de abril de 1867, como nas de 1868, a maioria

dos conselheiros mostrou-se receosa em tratar da questão da emancipação. A

emancipação deveria ser tutelar, onde ao Estado caberia o papel de velar pelo

bem do cativo. As idéias eram combinadas de modo que a liberdade fosse uma

concessão dos senhores aos escravos numa tentativa de melhorar as

condições do cativo e não de eliminar a escravidão.

As deliberações apresentadas em 1868 pela comissão de conselheiros,

ao tentarem defender o projeto de emancipação frente o Conselho de Estado

trouxeram pela primeira vez para o debate político, a necessidade de substituir

a mão-de-obra escrava pela livre:

[...] é para que as províncias, onde a escravidão deve extinguir primeiro, possam, sem a concorrência de braços escravos, organizar o trabalho livre e chamar mais facilmente a colonização européia; é para que as províncias, onde há poucos escravos, animadas pela disposição da lei, se esforcem para que seja mais pronta a extinção dos seus escravos [...]125

Somente depois de dois anos, na primeira sessão do dia 21 de abril de

1870, a questão seria novamente debatida e esclarecida em Assembléia Geral. 123 Ibidem. 124 Ibidem.

73

Page 74: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Foi criada uma “comissão especial”, encarregada de reunir todos os elementos

existentes sobre a questão servil e elaborar um ou mais projetos sobre o

assunto.126

O deputado Perdigão Malheiro se encarregou de apresentar alguns

projetos contendo seu juízo sobre a questão, “as minhas idéias são públicas

[...] abolicionista de cabeça e de coração, não desejo, todavia a emancipação

precipitada e irrefletida [...]”127. Perdigão, como os conselheiros do Império

responsáveis pelo projeto de 1868, pretendeu uma abolição gradual sem

prejuízo para os senhores e para agricultura: “que tomemos providências que

gradualmente, como que por uma escada conduzam aquelle fim”.

O deputado defendeu o emprego da mão-de-obra livre, pois uma nação

progressista e civilizada não possuía na sua organização social, política e

econômica, o emprego da mão-de-obra escrava: “se o Brasil ou qualquer outra

nação entendesse que o seu desenvolvimento, o seu progresso industrial,

material, ou moral, enfim, sua civilização, dependia essencialmente do

elemento servil, essa nação seria indigna de figurar na comunhão das nações

civilizadas.”128

Todavia a emancipação deveria acontecer gradualmente, sem pôr em

perigo a ordem econômica e social. Perdigão pretendeu uma emancipação

passiva, dentro da ordem e conduzida pelos senhores. Temia uma revolução:

“é sempre ou quasi sempre a revolução que determina a reforma [...] não

desejo isso; e eis porque entendo que devo concorrer, offerecendo, como base

de estudo, synthetisados neste projeto as minhas idéias. “129

125 NABUCO, Joaquim. Op. cit., p. 68. 126 Fala do deputado Teixeira Junior: “[...] para realizar este accordo redigimos requerimento, que é o objeto que me obrigou a pedir a palavra para apresentá-lo a consideração da casa. Parece-me inútil dizer que a esta comissão não faltarão elementos para sua decisão, porque além de lhe serem remettidos os diversos projectos sobre este assumpto, que hão de ser apresentados na sessão de hoje e já teriam sido lidos Sábado se nesse dia tivesse havido sessão, poderá auxiliar-se também de muitos outros trabalhos, importantes que já existem. Refiro-me aos estudos que sobre esta questão tem feito o governo imperial desde 1867, pois que a falla do trono de 1868 declarou ao paiz que semelhante materia continuava a ser objeto de assiduo estudo.” 127 Annaes – Câmara dos deputados. Volume I. Rio de Janeiro: Typografia Imperial e constitucional de J. Villenenve, 1870. p. 56. 128 Ibidem. p. 56. 129 Ibidem. p. 56.

74

Page 75: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Os projetos de Perdigão visavam garantir o direito de propriedade do

senhor, como também, o direito de liberdade do escravo. À primeira vista a

afirmação parece paradoxal, mas percebe-se que sua intenção estava

consonante com a maioria dos parlamentares. O escravo teria direito a sua

liberdade somente mediante a compensação do senhor pela perda de sua

propriedade, que viria na forma de prestação de serviços ou reparo pecuniário:

[...] providência a respeito do direito daquelle que resgata em juizo ou fora delle a liberdade de algum escravo; indenizando-se, se quiser, pelos serviços do mesmo escravo, mediante certas condições; e toma outras providências para que este direito e obrigações sejam effectivamente cumpridas e respeitadas.130

O escravo teria o direito de resgatar sua liberdade mediante o

pagamento de seu valor, disposição presente em projetos passados131. Como

tivemos a oportunidade de ver nas páginas anteriores, o cativo teria direito ao

pecúlio: “conferir-lhe portanto (ao escravo) o direito de propriedade em relação

a seu pecúlio, garante a livre disposição do mesmo, principalmente em bem da

sua manumissão, da do cônjuge, descendentes e ascendentes.”132

Outro ponto nevrálgico num dos projetos de Perdigão Malheiro diz

respeito ao preceito presente no direito civil, que concedia a “titulo de

propriedade ou de hereditariedade a escravidão.“133 No entendimento de

Perdigão a escravidão ainda persistia no Brasil devido, principalmente, ao

nascimento. Novamente a questão: era salutar modificar essa prescrição,

todavia, sem causar prejuízo ao direito da propriedade e ao desenvolvimento

da agricultura. O deputado temia o esvaziamento de mão-de-obra na produção

agrícola:

[...] Aqueles que ficam obrigados a prestar os serviços, segundo o projecto, dado o caso do falecimento do senhor,continuaram a servir; os direitos e obrigações passam ao conjuge, para os herdeiros, e, portanto, não ficam eles desamparados; mas se pertencem ao estabelecimento agricola, acompanham o estabelecimento. Se o estabelecimento couber a um dos herdeiros ou interessados, esses servos para bem dizer acompanham o estabelecimento, não são retirados delle; salvo a única hypothese de infantes ou menores de sete anos, que terão de acompanhar as mães no caso em que elas sejam transferidas por qualquer título de transmissão ou se retirem libertas.134

130 Ibidem. p. 56. 131 Projetos de São Vicente de 1866 e os discutidos pela Comissão de Conselheiros de 1867 – 1868. 132 Annaes – Câmara dos deputados. Op. cit., p. 56. 133 Ibidem. p. 56. 134 Ibidem. p. 59.

75

Page 76: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Perdigão Malheiro, enquanto jurista e representante dos interesses

senhoriais, pretendeu com seu projeto não atacar a escravidão ou promover a

emancipação dos cativos, mas sim impedir que o descontrole sobre as ações

dos escravos viesse a acontecer. Perdigão temia a imprevisibilidade de uma

revolta, tinha receio que esta abalasse a estrutura social, política e econômica

do Brasil. Como também temia uma emancipação onde o direito de

propriedade fosse ilibado.

Pareceu-me que com esse conjunto de providências nos poderemos conseguir um resultado muito satisfatório, sem termos necessidade de atacarmos diretamente a questão da emancipação, a escravidão, sem retirarmos da propriedade de ninguém contra a sua vontade um só escravo, e por conseqüência mantida a ordem social, mantida a organização do trabalho como ella se acha, apenas, sujeitas, a essas modificações que hão de ir auxiliando a transformação do organismo social a que todos nos tendemos e a que eu entendo que devemos aspirar. 135

Na sessão de 21 de abril de 1870, além dos projetos de Perdigão

Malheiro, outros foram lidos, impressos e entraram na ordem dos trabalhos do

dia, ou seja, foram deliberados. Alguns projetos trouxeram novamente para o

palco das discussões relativas a relação escravista no Brasil, o litígio que diz

respeito à defesa da propriedade privada. Desta maneira, foi intento dos

legisladores, ao elaborarem os projetos, darem garantias aos proprietários pela

perda de sua propriedade.

Se o senhor resolvesse libertar algum escravo estaria garantida por lei a

sua indenização, que seria efetuada em forma de serviços prestados pelo

escravo alforriado durante um período que não poderia ultrapassar cinco anos.

O projeto de Lei também alcançou as relações escravistas cujo escravo

possuía mais de um senhor: o escravo alforriado por um dos senhores teria de

continuar prestando serviços aos demais até alcançar a liberdade definitiva.

O projeto também atingiu as relações escravistas que envolviam a

família escrava. O escravo em vias de ser libertado, como o já liberto, teriam a

chance de redimir do cativeiro seu cônjuge, como também, seus ascendentes e

descentes, mediante a apresentação do pecúlio.136

135 Ibidem. p. 59. 136 Annaes – Câmara dos deputados. Op. cit., p. 59. “Considerou-se pecúlio: ‘dinheiro, moveis e semoventes adquiridos pelo escravo, quer por seu trabalho e economia, quer por benefício do senhor ou de terceiro, ainda a título de legado, nos semoventes não se compreendem escravos’.

76

Page 77: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Esses projetos avançaram frente aos demais. Pois, pela primeira vez,

ocorreu a possibilidade do senhor não ser ressarcido pela perda de sua

propriedade. Se o senhor abandonasse seu escravo por motivo de enfermidade

ou invalidez não teria direito a indenização; como também, se o escravo

prestasse algum serviço considerado de “grande valor” para seu senhor. Outra

medida foi acrescentada: ficou proibido possuir escravo enquanto garantia para

sanar dívidas. Todavia, excetuando-se, quando interferisse em interesses

primorosos no cenário econômico da época, a agricultura.

Nos projetos discutidos no dia 21 de abril de 1870 havia também a

proposta de libertar os filhos de escravas que nascessem depois de

promulgada a Lei. Os recém-nascidos estariam parcialmente livres, pois teriam

que servir ao senhor de sua mãe até atingirem a idade de 18 anos. Os

legisladores responsáveis por esse projeto entenderam ser justa esta condição,

pois que seria uma espécie de retribuição pelos “favores” prestados aos

menores quanto a “criação”, “educação” e “alimentação”. Querendo o recém-

nascido remir-se da sua condição, pagariam a importância referente ao tempo

decorrido da criação e educação, ou, uma importância referente ao tempo de

serviço que ainda faltasse.

Houve também a proposta de alforriar os escravos pertencentes à

nação, às ordens regulares e demais corporações religiosas. O texto propunha

a alforria imediata desses escravos. Os escravos de propriedade de ordens

religiosas prestariam serviços durante um período de cinco anos como forma

de indenização, ou então, se as ordens preferissem, receberiam a importância

pecuniária no valor de 400$ reis por cada indivíduo liberto, paga em apólices

da dívida pública que ficaria a encargo do governo.137

No dia 23 de maio de 1870 foi deliberado o projeto final que suscitaria a

Lei 2040. O projeto conteve seis artigos, sendo o primeiro: “as leis que regulam

o estado servil continuam em vigor”. O segundo dividiu-se em cinco parágrafos

e tratou da liberdade do ventre livre. O terceiro, sobre o pecúlio. O quarto,

sobre a matrícula obrigatória de escravos de todas as províncias do império. O

quinto, concernente também a matrícula. O sexto, sobre a obrigatoriedade do 137 Annaes – Câmara dos deputados. Op. cit., p. 60.

77

Page 78: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

governo na execução dessa lei, podendo o mesmo “estabelecer pena de até

30 dias de prisão simples e até 200$000 reis de multa, contra os infractores

della; bem como o respectivo processo e competência”. Optamos por não

detalhar os artigos presentes no projeto por entendermos que os mesmos já

foram tratados e esclarecidos no decorrer do capítulo.

A lei 2040 é o resultado de todas as discussões e deliberações dos

projetos apresentados no Conselho de Estado como na Câmara dos deputados

de 1850 até 1870.

2.2 – ESCRAVOS BUSCANDO A LEI NA LUTA PELA LIBERDADE

2.2.1 – Bernardo

As ações cíveis pesquisadas no Arquivo do Estado do Ceará,

compreendendo um total de vinte, envolviam juizes, escrivães, curadores,

testemunhas, escravos, senhores, promotores e englobaram o período

referente ao decênio de 1870; são ricas em nuanças relativas às disputas de

liberdade pelo escravo, mostraram peculiaridades sobre a obstinação do

escravo em fazer prevalecer seu anseio de obter a condição de homem livre.

Sendo assim, importa a exposição mais acurada de um desses

processos. Mais especificamente trataremos do processo do escravo Bernardo,

que reivindicou o direito de ser livre no dia 06 março de 1874, na cidade de

Fortaleza, Província do Ceará. Bernardo, mulato de mais ou menos 36 anos de

idade, escravo de João Antônio do Amaral, veio por meio de seu curador, o

advogado e abolicionista Justino Francisco Xavier, pedir em audiência pública

ao juiz de direito substituto da 2ª vara civil, Coelho Machado da Fonseca, para

nomear e aprovar árbitros que determinassem o valor de sua alforria.

Bernardo possuía a quantia de 800$000 réis. 470$000 nas mãos do

indivíduo chamado Jurubué Canaverde, 130$000 réis com Manuel Leonardo de

Araujo Feitosa e uma casa de taipa avaliada, presumivelmente, em 200$000

78

Page 79: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

réis. Soma essa adquirida por doação, pelo produto do seu trabalho e por

economias feitas com o consentimento de seu ex-senhor Cipriano de Araújo

Feitosa.

Com a lei de 28 de setembro de 1871138 foi possível o escravo constituir

pecúlio para comprar sua liberdade. Foi permitida ao escravo a formação de

uma economia advinda de doações, legados, heranças ou do seu trabalho e

economias destinada à compra de sua liberdade como da de seus familiares.139

O preço correspondente ao valor da alforria do escravo, que estivesse a

venda judicialmente ou que estivesse presente em inventário, seria aquele

estabelecido pela avaliação. Nos demais casos, o preço fixado era aquele

conseguido mediante negociação entre senhor e escravo e, no caso de não

existir acordo, seria fixado por arbitramento.

Sendo assim, o juiz substituto da 2ª vara cível, Coelho Machado da

Fonseca, estabeleceu três avaliadores para Bernardo: Arcadio Lindolfo de

Almeida, o negociante Antonio dos Santos Neves e o próprio senhor, João

Antônio do Amaral. Bernardo foi avaliado por 800$000 réis, no entanto apenas

possuía seiscentos réis. A casa de taipa que deveria complementar o restante

da soma não foi considerada por João Antônio do Amaral, como se fez constar

no processo “[...] entendendo que a casa que o libertando alega ter nesta

cidade não equivale ao preço razoavel de sua alforria [...] “.140

Quando o senhor e o escravo não chegavam a um consenso, eram

nomeados três árbitros para realizar a avaliação, seguindo o seguinte critério: o

representante do senhor – ou ele próprio – indicava uma lista de três nomes,

dentre os quais o representante do escravo escolhia um, sendo que o

representante do escravo, o curador, também apresentava uma lista onde a

outra parte escolhia um dos nomes indicados; o terceiro árbitro ficava a critério

138 No dia 28 de setembro de 1871 foi outorgada pela Princesa Imperial Regente a Lei N 2040, denominada Lei do Ventre Livre, que declara de condição livre todos os filhos de mulher escrava que nascerem a partir daquela data, providenciando criação e tratamento dos filhos menores de mulheres escravas como também se comprometendo a tratar sobre a libertação anual de escravos. 139 Coleção das Leis do Império do Brasil de 1871. Tomo XXXI, parte I. Rio de Janeiro: Typographia Nacional. Artigo 4o da Lei número 2.040, de 28 de setembro de 1871. 140 Arquivo Público do Estado do Ceará. Tribunal da Relação, Ação de Liberdade, pacote número 64.

79

Page 80: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

de escolha do juiz, não podendo ser rejeitado pelas partes em questão a

menos que fosse comprovado comprometimento no caso.141

Como Bernardo não apresentou a imediata exibição de dinheiro ou título

de pecúlio equivalente ao valor 800$000 reis, a ação foi invalidada, perdendo

Bernardo o direito naquele momento de conseguir sua liberdade. 142

o apelante reclamou contra a violência provou a não existência do pecúlio e ate de meios suficientes para a sua indenização e todavia o juízo continuou e veio por fim uma apelação ex-oficio priva-lo por mais tempo dos serviços do seu escravo, embora ficasse reconhecido que Bernardo não estava nas condições da lei para pedir manumissao e consequentemente o deposito inda que coubesse no caso não tinha lugar na hipótese dada por falta de base para o pedido143

Como ficou exposto acima, João Antônio do Amaral, em sua defesa,

recorreu ao argumento de inexistir pecúlio em poder de Bernardo. A intenção

de João Antônio do Amaral era ganhar tempo para embarcar Bernardo para o

Rio de Janeiro,144 pois certamente lucraria mais com a transação. Nesse

sentido buscou invalidar o processo de arbitramento concedido pelo Juiz.

O processo não nos permite saber ao certo quais eram as intenções de

Bernardo, porém é possível imaginar seu desinteresse em embarcar para o Rio

de Janeiro. Sidney Chalhoub, na obra Visões da Liberdade, estudo sobre os

escravos e os negros livres da cidade do Rio de Janeiro, no final do século XIX,

traz importantes considerações sobre a “transferência maciça” de escravos do

norte para as províncias do sudeste, principalmente Rio de Janeiro e São

Paulo.

Os negros transferidos eram em geral jovens e nascidos no Brasil, no máximo filhos e netos de africanos que haviam sofrido a experiência do tráfico transatlântico [...] muitos desses negros estavam passando por uma primeira experiência mais traumática dentro da escravidão. Separados de familiares e amigos e de suas comunidades de origem, esses escravos teriam provavelmente de se habituar ainda com tipos e ritmos de trabalhos que lhes eram desconhecidos [...]145

141 Ver: MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op. cit., p. 222. 142 Arquivo Público do Estado do Ceará. Tribunal da Relação, Ação de Liberdade, pacote número 64 143 Ibidem. 144 Ver: OLIVEIRA, Pedro Alberto de. Op. cit., p. 70-81. Com o crescente aumento do cultivo de café na região sudeste e com a proibição do tráfico de africanos, a partir de 1850 , a Província do Ceará passou a ser no Nordeste “um dos maiores fornecedores de cativos para o Sudeste “. De 1871 a 1876 oficialmente foram exportados da Província do Ceará 3.252 escravos. Número esse considerado alto, levando em conta que em 1872 a população escrava na província era de 31.913 indivíduos. 145 CHALHOUB,Sidney. Op. cit., p. 58.

80

Page 81: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Provavelmente, Bernardo estava receoso em ir para o Rio de Janeiro. As

informações e experiências que circulavam entre seus companheiros de

cativeiro não deviam ser favoráveis à imigração para a região sudeste. Tal

empreitada os privaria de um certo bem estar que haviam conseguido no

decorrer do tempo. Os anos de cativeiro ensinaram a Bernardo que

determinados valores nutridos por ele deveriam ser respeitados de alguma

forma. Suas relações afetivas tinham de ser consideradas. Os embates e

negociações com os senhores ensinaram aos cativos que as relações sociais

estabelecidas tinham caminhos de mão dupla.

É apropriado perceber que a luta dos escravos não se resumia apenas

na defesa de padrões materiais de vida, mas também na defesa de uma

autonomia espiritual e lúdica.146 Quando os escravos pediam, exigiam e

lutavam era para viver, muito mais que simplesmente sobreviver.

2.2.2 – José, Joaquim, Antônio, Alexandrina e Maria

Numa ação movida pelos irmãos menores de 12 anos, José, Joaquim,

Antônio, Alexandrina e Maria, através de seu curador João Pedro de Oliveira,

contra o indivíduo Joaquim Carneiro de Araújo Costa, no ano de 1873, na

Província do Ceará, constatamos que as testemunhas classificadas para depor

a favor dos apelantes primaram por salientar situações que evidenciasse a

relativa independência dos irmãos com relação a seu senhor: "[...] os menores

nunca estiveram em sujeição do réu porque este nunca os chamou a seu

domínio e que os menores até o ano de 1870 estiveram em casa em

companhia de seus pais [...]"147.

Pesquisas recentes vêm demonstrando que tanto casamentos como

uniões estáveis e prolongadas entre escravos eram consideráveis no Brasil do

século XIX. Robert Slenes, num artigo publicado na Revista de História em

146 Ibidem. p. 08. 147 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 32, pacote 71.Fala de Vicente Ferreira Guilherme, casado, 41 anos de idade, lavrador, testemunha. Na província do Ceará não temos números que comprovem a intensidade dos relacionamentos entre escravos. Não sabemos se houve ou não com muita freqüência casamentos entre cativos na igreja.

81

Page 82: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

comemoração aos cem anos da abolição, salienta que relacionamentos entre

cativos com duração de 10 anos ou mais eram bastante comuns. Como

também eram comuns os casos de filhos que conheciam o pai e passavam os

anos de sua formação em companhia dele. Pesquisando em Campinas, o autor

encontrou, através de registros de matrículas de 1872-1873, nos plantéis com

dez ou mais escravos, um quadro onde 67% das mulheres acima de 15 anos

eram casadas ou viúvas; 87% das mães (com crianças menores de 15 anos

presentes na mesma lista de matrícula) eram casadas ou viúvas; e 82% dos

filhos menores de 10 anos viviam junto com os dois pais, ou com mãe ou pai

viúvo. Constatou também que isso não era apenas uma realidade de São

Paulo, onde os índices de casamento pela Igreja Católica entre escravos eram

bem mais elevados do que em outras províncias. Segundo o autor, o que

diferenciou São Paulo de outras regiões é o fato de que na terra dos

bandeirantes as uniões consensuais entre os cativos teriam sido abençoadas

pela igreja católica e, portanto, documentadas mais freqüentemente do que em

outras províncias. Todavia, o autor também evidencia o fato de que o

percentual de casamentos entre escravos, a proporção de mães casadas e de

filhos que viviam com os dois pais, eram bem menos freqüentes nos plantéis

pequenos, "por seu tamanho e instabilidade, limitavam severamente as

chances de o escravo encontrar um cônjuge ou manter a família nuclear

unida".148

Os embaraços jurídicos dos irmãos José, Joaquim, Antônio, Alexandrina

e Maria começaram naquele dia 20 de agosto de 1873, quando Ricardo Manuel

Barbosa e a liberta Filippa, pais dos menores, solicitaram ao juiz municipal da

villa de Santa Anna, comarca do Acaraú, que se nomeasse um curador e um

depositário para seus filhos. Foi nomeado como curador João Pedro de

Oliveira, que propôs em juízo uma "competente" Ação de Liberdade contra

Joaquim Carneiro de Araújo Costa, senhor dos apelantes, por motivo de

abandono.

148 SLENES, Robert. Lares Negros, Olhares Brancos: histórias da família escrava no século XIX. In. Escravidão. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol 8, n 16, março de 1988/ agosto de 1988. p. 193.

82

Page 83: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Os foros judiciários nas últimas décadas da escravidão foram de fato

lugares de embates consideráveis envolvendo senhores e escravos. O

princípio da liberdade e do direito à propriedade eram duas naturezas que não

se associavam.

Ricardo e Fillipa achavam que seus filhos tinham direito à liberdade e

não admitiam que o réu os submetesse a um cativeiro que eles tinham como

injusto, ou exercido indevidamente. Os pais estavam ainda motivados pelo

desejo de se manterem junto aos filhos.

A história de Ricardo e Filippa impressiona principalmente pela

resolução dos mesmos em fazer prevalecer sua vontade, ver os filhos libertos e

definidamente longe da possibilidade de os terem separados de si. As relações

estabelecidas entre eles e o réu haviam sido sobrepujadas por transações

comerciais cuja lógica fugia do que os dependentes entendiam por justo. A

contenda jurídica travada contra Joaquim Carneiro demonstra que os apelantes

conviveram no cativeiro somente enquanto o consideraram justo ou pelo

menos dentro de uma situação que permitia a convivência entre todos. A partir

do momento em que os laços familiares foram partidos, e se acenou a

possibilidade de separação dos membros da família, Ricardo e Fillipa lutaram

para atingir seus objetivos.

Em seu testemunho, Ferreira Guilherme, testemunha juramentada de 41

anos de idade, casado e lavrador, confirmou o que o curador disse em juízo ao

juiz municipal, " que sempre Barbosa forneceo vestuario e alimento necessario

a seus filhos e bem assim os tem tratado em suas enfermidades, sem que o

senhor Carneiro tenha concorrido com quantia alguma para o sustento dos

mesmos."149 Vicente Ferreira expôs em poucas palavras a total insubmissão

dos cativos a seu senhor. Demonstrando que os apelantes desde sempre

estiveram sob a posse de seus pais e que em nenhum momento o senhor

arcou com os deveres básicos de um proprietário – alimentação, vestuário e

assistência médica. Os menores estiveram sempre fora do domínio de seu

senhor. Vicente falava com total conhecimento de causa, pois morou dois anos

149 Ibidem.

83

Page 84: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

como agregado do coronel Manuel Carneiro da Costa, e ficou bem

familiarizado com o cotidiano dos implicados na contenda.

Ao ser inquirido sobre não saber que o réu não tinha os menores sob

seu domínio, se os mesmos estavam na casa e em terras do réu em

companhia de seu vaqueiro e de Filippa, sua escrava até o ano de 1870, ano

em que foi alforriada, respondeu convincentemente, com todo conhecimento

que lhe cabia, que os menores não eram escravos de Joaquim Carneiro de

Araújo Costa. Isto porque este nunca os manteve em seu domínio, ou seja,

esses nunca lhe prestaram obediência. Afirmou também que o réu nunca

cumpriu com suas obrigações dando alimentação, vestuário e assistência aos

menores, ficando isso ao encargo dos pais dos mesmos.

A alegação de que os menores viviam em liberdade e foram deixados ao

desamparo pelo seu senhor eram justificadas por Fillipa e Ricardo, como

também pelas testemunhas. Princípios essenciais que definiam a escravidão

foram deixados de lado. O regime de trabalho, a produtividade da fazenda, a

obrigação de subsistência com alimentação e vestuário e o domínio são

elementos fundamentais das relações escravistas, e estes não eram

implementados na fazenda. O argumento, enfim, era que "seu senhor não os

mantinha em sujeição", "não os explorava como escravos" e não manifestava

"poder dominial".

Como Vicente Ferreira, Ricardo Manuel Barbosa também vivia como

agregado, prestando serviços em terras de outros em troca de alguma

remuneração e moradia. Nesse regime, o pagamento podia ser efetuado

também por "quarteação", prática em que o agregado, pelos seus serviços

prestados, recebia um animal de cada quatro que nasciam.

A atividade do criatório permitiu a formação de uma unidade social em

que cada fazenda representou uma família caracterizada principalmente pelo

paternalismo, onde laços de parentescos consangüíneos e convencionais

uniam todos ao senhor.150 Uma das testemunhas arroladas no processo,

150 Segundo Valdenice Girão nas fazendas de criatório "o fazendeiro quando residia na fazenda dirigia os trabalhos, cercados dos parentes [...] não havia pagamento de salário e sim, troca de serviço. O fazendeiro sustentava seus agregados de comida, casa e roupa, em troca de seus trabalho." Ver: GIRÃO,

84

Page 85: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Antônio Vicente da Silva, afirmou em seu depoimento, quando perguntado

sobre os bens que Ricardo Manuel Barbosa, sua esposa Filippa e seus filhos

usufruíam na fazenda, respondeu "que o réu em ajuste de vaqueirice com ele

(Ricardo Barbosa) só lhe deu no primeiro ano – um garrote e cinco Quarta de

farinha e no segundo um boiote e um alqueire de farinha e no terceiro um boi

[...]"151

Segundo a versão oferecida por Antônio Vicente, Ricardo Barbosa viveu

como agregado do pai do réu, o coronel Manuel Carneiro da Costa, durante 12

anos, trabalhando como vaqueiro na sua propriedade, uma pequena fazenda.

Quando a fazenda foi vendida, Ricardo foi despedido. Fato não muito comum

de acontecer numa unidade social onde as relações se caracterizam pelo

regime de troca de favores. Infelizmente o processo não nos permitiu saber

quais motivos levaram à desestruturação dos laços que uniam todos ao regime.

Mas o fato é que tal ruptura fez com que os pais das crianças recorressem ao

poder judiciário contra seu senhor.

E agora, Ricardo teria de abandonar algumas tradições peculiares do

sistema de criatório e adaptar outras à lógica econômica do mercado onde leis

particulares de oferta e procura, e as relações entre patrão e empregado,

determinavam as condições materiais do trabalhador. Leis outras que iam de

encontro aos costumes e à justiça da dependência pessoal.152 Ou então teria

de procurar outro senhor que o empregasse nas mesmas condições de

agregado. Fato este difícil de acontecer, pelo menos nas redondezas da villa

de Santa Anna, pois a atitude de colocar seu senhor no banco dos réus,

possivelmente, causou descontentamento em outros fazendeiros da região. O

fato é que o processo não nos possibilita saber o que aconteceu com Ricardo

depois de ser despedido da fazenda Serrote.

Valdenice Carneiro. Da conquista à implantação dos primeiros núcleos urbanos na capitania do Siará Grande. In: SOUZA, Simone de. (Org.). História do Ceará. 4o edição. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1995. p. 35. 151 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 32, pacote 71. Fala de Antônio Vicente da Silva, casado, 35 anos de idade, vaqueiro. 152 FONNER, Eric. O significado da liberdade. Trad, Célia Maria Marinho de Azevedo. Revista Brasileira de História – São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n 16, março de 1988/ agosto de 1988. Nesse artigo o autor discutiu a liberdade enquanto um campo de conflitos onde seu significado era distinto tanto para o branco como para o negro no período posterior a guerra Civil norte americana.

85

Page 86: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Antônio Vicente Guilherme ainda afirmou que um menor chamado

Antônio, de 10 anos de idade, viveu sob os cuidados do réu até seus cinco

anos, depois disso foi morar com a escrava Valentina. Lamentavelmente não

sabemos se Valentina era escrava do réu Joaquim Carneiro de Araújo Costa

ou de seu pai, Coronel Manuel Carneiro da Costa. Antônio Vicente, apenas

disse que Valentina era "escrava da Casa", ou seja, ela trabalhava na casa

grande da fazenda, realizando serviços domésticos. Também não sabemos o

que fez a escrava sair da dependência direta dos seus senhores e ir morar em

outra casa juntamente com o liberto Luís, ex-escravo de Raimundo Carneiro,

irmão de Joaquim Carneiro; presumivelmente, Luís ao ser alforriado recebeu a

permissão do pai do seu senhor, o coronel Manuel Carneiro da Costa, para

viver como agregado nas suas terras. Sendo assim, logo depois de estabelecer

um relacionamento com Valentina, recebeu o consentimento do coronel para a

mesma ir morar em sua companhia, vivendo todos dentro da unidade

econômica e social característica do regime social dos domínios rurais

sertanejos.

Os escravos que fossem abandonados pelos seus senhores tinham

amparo legal na lei de 1871, que determinava a imediata alforria. Consistia

abandono o senhor que não mantinha o escravo sob sua sujeição, sob seu

domínio, exercendo sua autoridade. O abandono também era reconhecido

quando o senhor deixava de cumprir com algumas obrigações, dentre elas a

manutenção de subsistência de seus escravos.

Joseli Maria Nunes Mendonça, ao analisar uma documentação presente

no Arquivo do Tribunal Judiciário de Campinas, constatou que a relação

senhor-escravo para se definir e para se manter deveria ser reconhecida

também como legítima pelo escravo, "este entendimento era completamente

plausível naquele mundo da escravidão”.153 O exercício do domínio por parte

do senhor e tal reconhecimento pelo escravo consistiam em dois elementos

fundamentais na sustentação das relações sociais da escravidão no Brasil a

partir da segunda metade do século XIX, "defender a propriedade escrava

significava manter a possibilidade – ou a viabilidade – do exercício do domínio

153 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op. cit., p. 157.

86

Page 87: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

dos senhores sobre seus escravos, afastando ao máximo as possíveis

contestações sobre a legitimidade de tal domínio."154 Além das obrigações com

alimentação, vestuário, e cuidados nas enfermidades, os senhores deveriam

aplicar também castigos que cumprissem papel pedagógico, mais do que uma

medida punitiva pelas faltas cometidas; nesse sentido, para que o castigo

tivesse esse caráter, deveria ser reconhecido pelos escravos como legítimo.

Como afirma Silvia Lara só esse castigo "moderado", "pedagógico" e "justo"

poderia desempenhar o papel de preservar os laços do domínio senhorial. 155

O advogado Manuel Firmino Maria alegou ser sem procedência a Ação

intentada pelos escravos devido ao fato de não considerar que os menores

foram abandonados pelo seu senhor, pois constou no processo que os

mesmos foram matriculados, como manda o artigo 76 do decreto de 13 de

novembro de 1872. Decreto este que considera abandonado apenas o escravo

cujo senhor, residindo no lugar, não o mantém em sujeição e não manifesta o

querer manter sob sua autoridade.156 Seguindo esta máxima, Manuel Maria

argumentou: "ora a liberdade concedida por paga a escrava mãe, o facto de

acharem esses escravos matriculados pelo suplicante como se legitima o

senhor, são mais que suficientes para provarem não haver tal abandono

[...]"157. O advogado ainda tentou provar ao juiz, "que Ricardo Barbosa em duas

petições confessa por muitas vezes pertencerem esses escravos menores ao

suplicante"158, como também, "que para sustento concorreu o suplicante com

farinha e matalotagens sem em tempo algum revelar a intenção de abandonar 154 Ibidem. p. 160. 155 Ver LARA, Silvia Hunold. Campos da violência, escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 156 Ver Coleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1872. 157 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 32, pacote 71. A pedido do réu foi acrescentada nos autos a ratificação da certidão contendo a matrícula especial dos menores e constando o nome, idade, profissão. Maria era a menor, tinha quatro anos e José, o maior, com nove anos. Todos foram registrados como aptos para o trabalho e com profissão de servente. Ver: MATTOSO, Kátia de Queirós. O filho da escrava ( em torno da lei do ventre). Revista Brasileira de História – São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n 16, março de 1988/ agosto de 1988. p. 37-55. Nesse artigo a autora através de testamentos e inventários post-mortem, constatou que nos últimos 30 anos da escravidão no Brasil, as crianças escravas estavam classificadas em duas etárias, "de zero aos sete para oito anos, o crioulinho ou crioulinha, o pardinho ou a pardinha, o cabrinha ou a cabrinha, são crianças novas, geralmente sem desempenho de atividade do tipo econômico; dos sete para os oitos até os doze anos de idade os jovens escravos deixam de ser crianças para entrar no mundo dos adultos [...]'". Ver ainda: MOTT Lúcia Barros. A criança escrava na literatura de viagens. In: Caderno de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. Número 31: 57-67, dezembro 1972. Segundo a autora: “a idade de 5 a 6 anos parece encerrar uma fase na vida da criança escrava. A partir dessa idade ela aparece desempenhando alguma atividade (...) descascar mandioca, descaroçar algodão e arrancar ervas daninhas". É muito improvável que Maria de apenas quatro anos realizasse alguma atividade regularmente, acredito que seu senhor, ao matriculá-la como apta para o serviço de servente, queria com isso valorizar seu preço para uma futura negociação.

87

Page 88: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

taes escravos"159. Com isso Manuel Firmino pretendeu convencer o juiz de que

o réu Joaquim Carneiro, sempre teve os escravos em sua sujeição como as

demais propriedades que tinha na fazenda, "que esses escravos o suplicado os

tinha em sua fazenda Serrota, onde o suplicado tem gados, cabras, porcos

[...]"160. Ainda pretendeu persuadir o magistrado da falta de propósito do

depósito dos menores escravos, alegando que os mesmos, depositados na

casa de João Pedro de Oliveira, não estavam em segurança por que "o

depositario João Pedro de Oliveira he pauperrimo, nada absolutamente

possue, não tem como garantir o valor dos mesmos escravos que não é inferior

a dous contos e quinhentos mil reis"161. Na verdade a pretensão do advogado

com esse argumento era livrar José e Joaquim do depósito, pois os escravos

nessa condição ficavam impedidos de serem negociados, mas José e Joaquim

já estavam praticamente vendidos para José Feurico Alberto de Araújo e

Alexandre Carneiro da Costa.

No dia 14 de março de 1874, o juiz Antônio de Sabóia deu causa ganha

a Carneiro de Araújo Costa. Porém menos de quatro meses depois, Ricardo

Manuel Barbosa e Filipa apelaram da sentença junto ao Tribunal de Relação de

Fortaleza.162 E pediram que fosse nomeado para defendê-los o Sr. Manuel

Pires Camargo, que reforçou as teses argumentadas por João Pedro de

Oliveira, abandono e falta de domínio senhoril: "[...] os menores desde que

nascerão morarão com seu pai que nem sempre foi agregado do reo, e que

morava na fazenda de serrote [...],como não exigia delles serviço algum, pelo

qual demonstrasse querer tel-o em escravidão e que somente depois da lei

2040 de 28 de setembro de 1871 [...] os dera matricula especial"163 e

acrescentou, " a matrícula não desfaz o abandono porque ella por si só não é 158 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 32, pacote 71. 159 Ibidem. 160 Ibidem. 161 Ibidem. 162 Alguns autores divergem a respeito da data exata da fundação do primeiro Tribunal da Relação do Brasil. Segundo o desembargador Paulino Nogueira Borges da Fonseca o Tribunal da Relação do Brasil teve sua primeira sede na província da Bahia no ano de 1587. Joaquim Inácio Ramalho, por sua vez, diz que isso se deu no ano de 1602, mas que não vigorou por falta de ministros e de presidentes, sendo reinstalado em 1652. Já Tristão de Alencar Araripe insistiu que o Tribunal foi criado em 1609 na Bahia, sendo que no dia 05 de abril de 1626 foi suprimido por um alvará, retornando somente em 1652. O fato é que no dia 03 de fevereiro de 1874 ele foi instalado na província do Ceará, ficaram sob sua jurisdição as províncias do Ceará e do Rio Grande do Norte, sendo sua sede fixada na cidade de Fortaleza. Seu quadro era formado por sete desembargadores, ocupando os cargos de Presidente, Procurador da coroa, fazenda, soberania nacional e desembargadores. Ver: SOUZA, Eusébio de. Tribunal da Apelação do Ceará. 1945.

88

Page 89: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

bastante para fazer alguem captivo é preciso que se prove que esse alguem

era escravo e que prestava serviço ao seu senhor [...]"164. Mas, o

desembargador não considerou os argumentos e no dia 15 de novembro de

1874 negou a apelação.

2.2.3 – Benedicta

A escrava Benedicta, residente na cidade de Fortaleza, por meio do seu

curador Justino Francisco Xavier intentou uma Ação no ano de 1874 contra

Margarida Ferreira de Jesus. Disse o advogado de defesa Francisco Brígido

dos Santos:

Margarida Ferreira de Jesus residente nas proximidades da praia desse termo, que sendo possuidora e senhora da escrava benedicta creola a qual houve por compra, há quasi dezoito annos [...] assim de uma filha desta de nome Damiana, nascida antes da lei de 28 de março de 1871; devia matricular a uma e outra na alfandega desta cidade [...] ocorreo que a suplicante residente num lugar muito pouco frequentado, ou alias deserto, onde nunca sahi, e vivendo no maior isolamento e numa idade avansadissima, e sem uma pessoa que cuide de seus interesses, nunca teve notícia a obrigação que lhe impunha aquelle regimento e sorte extincto o praso, ficou obrigada a provar seo dominio ou senhorio sobre a dita escrava [...]165

Disse mais, que dona Margarida Ferreira de Jesus sempre possuiu

Benedicta na "pacífica posse" pelo menos há 18 anos e que das duas

Benedcta era a única que possuía conhecimento da lei e agiu "maliciosamente"

sem comunicar a obrigação a sua senhora.

O curador de Benedicta, Justino Francisco Xavier, defendeu a tese que:

sendo a residencia da senhora no lugar Boa Esperança no municio dessa capital,- distante apenas 8 léguas – foi ahi sabido por todos os vizinhos a obrigação de serem dados os escravos a matricula especial.

Que a igorancia de direito não se presume, nem se pode allegar, tanto mais quando a lei de que se trata foi publicada pelos jornais da provincia e os prasos para a matricula especial dos escravos, alem de muito extensos, foram também repetidamente annunciados pela imprensa e por editaes.166

163 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 32, pacote 71. 164 Ibidem. 165 Arquivo Público do Estado do Ceará, Ação de Liberdade, Número 139, pacote 71. 166 Ibidem.

89

Page 90: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Foi chamado para depor o lavrador Antônio Francisco Dias, morador

próximo à casa da ré. Quando perguntado pelo advogado de defesa Francisco

Brígido se tinha conhecimento que a acusada Margarida de Jesus sabia da

obrigação de ter de matricular seus escravos, respondeu: “[...] é verdade que a

autora deixou de matricular Benedicta e sua filha como era obrigada , e isto

não foi de vontade sua mas por ignorar que houvesse tal disposição da lei"167

Disse ainda que a ré morava muito distante da cidade, vivendo só, sem ter

comunicação com ninguém, sendo esse o motivo pelo qual deixou de efetuar a

matricula da escrava Benedicta.

Antônio Francisco não foi convincente nas suas respostas. Ao ser

interrogado pelo curador Justino Xavier afirmou que: “conhecia o filho da

mesma autora de nome Vicente Alves como João Rafael os quais morão perto

da caza da autora tendo comunicação com esta”. E também disse que a

acusada tinha conhecimento da existência da Lei 2040, desconhecendo

apenas o preceito que obriga os senhores a efetuarem a matrícula especial de

suas escravas.

O lavrador José Alves Pereira, por sua vez, quando intimado pelo

advogado Francisco Brígido para depor, afirmou que o finado marido de dona

Margarida de Jesus, Bento Alves Ferreira comprou Benedicta quando esta

tinha apenas seis anos de idade e que o casal sempre a manteve sob "pacífica

posse". Também disse que depois da morte do seu marido, dona Margarida

morou praticamente isolada: "visto como não tem moradores no lugar onde

mora sem vizinhos mais ou menos distantes". Ainda afirmou que a escrava

Benedicta tinha conhecimento da lei, pois: "sem nenhum motivo deixou a

authora conduzindo sua filha Damiana".

No segundo depoimento tomado pelo curador Justino Xavier, José Alves

respondeu que conhecia algumas pessoas que moravam próximo à casa de

Margarida que haviam dado a matrícula a seus escravos.Também disse que a

ré era muita bem quista pelos moradores da vizinhança, e quando perguntado

"se a authora tinha comunicações com algum vizinho que frequentassem sua

167 Ibidem.

90

Page 91: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

caza", respondeu que tinha conhecimento do filho chamado Vicente Alves e do

neto Manuel de Azevedo.

O advogado Francisco Brígido defendeu a tese de que não houve

omissão por parte da ré em deixar de matricular Benedicta e sua filha: "culpa e

omissão só não dá sempre quem concorre à força maior; e este é o caso em

que se acha a authora". Também destacou que não houve intenção da ré, mas

apenas desconhecimento da lei, porque "residindo em um lugar ermo e

longínquo da cidade umas nove léguas talvez, não teve conhecimento de que

havia uma semelhante disposição de lei."

A batalha foi acirrada e venceria o melhor, ou seja, aquele que se

locomovesse mais habilmente nos trâmites jurídicos. Justino Xavier foi bem

competente. Disse o curador: "O artigo 8o parágrafo 2o da lei n 2040 de 28 de

setembro de 1871, dispõe o seguinte: os escravos que por culpa ou omissão

dos interessados, não forem dado a matricula até um ano depois do

encerramento desta, serão por este facto considerados libertos"168. Justino fez

questão de citar a lei para com isso afirmar: "esta disposição, como se vê, é

expressa e terminante: não faz exceção alguma pela qual deixasse de produzir

imediatamente a liberdade do escravo, o facto de não ter sido ele matriculado

no praso marcado", e mais adiante prossegue: "para a execução do citado

artigo, na parte concernente ao processo da matricula, promulgou-se o decreto,

n 4835 de 1 de dezembro de 1871, e ahi, no art 19 foi estabelecida a exceção

que permite aos senhores de escravos, ou interessados, provarem não ter

havido culpa ou omissão da sua parte".

Justino Xavier realizou uma considerável discussão sobre as

disposições e decretos referentes à obrigação do senhor de matricular seu

escravo, demostrando no final, que o advogado da ré cometeu um grave erro

jurídico ao enquadrar na hipótese de defesa o decreto de 1o de dezembro de

1871, pois esse diz: "a exceção: salvo os mesmos interessados o meio de

provarem em acção ordinaria e audiencia dos libertos e de seus curadores: 1o

168 Idem. Fala de Justino Francisco Xavier.

91

Page 92: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

o dominio que tem sobre eles; 2o que não houve culpa ou omissão de sua parte

me não serem dadas a matricula dentro dos prasos dos artigos 10 e 16."169

O curador demonstrou a impossibilidade do advogado de defesa utilizar-

se daquele decreto para amparar os interesses da ré, evidenciando as

contradições presentes nas falas das testemunhas. Margarida de Ferreira de

Jesus disse ter comprado Benedicta há 18 anos, entretanto não exibiu o título

de aquisição, tentando prová-lo com os depoimentos das testemunhas. Antônio

Francisco Dias disse conhecer a escrava Benedicta e sua filha Damiana desde

menino, sendo que tinha 25 anos, e Damiana três: "há impossibilidade de ter

conhecido desde menino a Dammiana, que, achando-se com apenas três

anos, presentemente, não existia ao tempo em que a testemunha era menino".

José Alves Pereira disse que Benedicta fora comprada pelo finado Bento Alves

Ferreira, mas no seu depoimento Margarida Ferreira de Jesus afirmou ter

comprado Benedicta há 18 anos, dessa forma o curador demonstrou a

impossibilidade da ré contar com os depoimentos das testemunhas para provar

o domínio sobre Benedicta:

nem mesmo a autora provou que tivesse havido a ignorância alegada desde que residindo ella proxima a cidade; morando nas suas vizinhanças seu filho Vicente Alves, seu neto Manuel de Azevedo, João Rafael e muitas outras pessoas que frequentão essa cidade, evidencia-se que há constante comunicação entre a autora e seus vizinhos, sobre tudo com seus filhos e netos, como afirmão as proprias testemunhas produzidas pela mesma authora: em tais condições ella não podia deixar de Ter tido notícias da lei de que se trata170

No dia 28 de setembro de 1874 o juiz de direito da 2o vara cível de

Fortaleza, Antônio Coelho Machado da Fonseca, considerou os argumentos

apresentados pelo curador Justino Francisco Xavier e deu causa ganha a

Benedicta e sua filha Damiana.

Causa uma certa surpresa encontrarmos casos como o de Benedita,

onde a escrava mais do que sua senhora tem conhecimento das

determinações legais que regulam a relação escravista. Ainda que tenhamos

trabalhado com poucas ações e não disponhamos de um número grande de

escravos que agissem como a escrava Benedicta, pensamos que o fato de tal

escrava ter buscado o auxílio da justiça sob o argumento da ilegalidade de sua

169 Ibidem. 170 Ibidem.

92

Page 93: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

condição, por si só já é uma evidência surpreendente de como os escravos

eram mais do que meras peças, bens semoventes, "coisas". Esse processo

demonstra o quanto o escravo poderia ser astuto e hábil na realização de seus

objetivos.

2.2.4 – Escrava Maria Luiza da Conceição

Infelizmente nós não tivemos a mesma felicidade de outros autores,

dentre eles Maria Cristina Wissenbach e Maria Helena Machado171, que

encontraram documentos comprovando o envolvimento de advogados e oficiais

de justiça conduzindo os embates judiciais que abrangiam escravos na

província de São Paulo. Não temos como saber até onde os curadores

estavam envolvidos na condução dos processos. Ignoramos de quem partiu a

intenção de iniciar os litígios, se foi dos curadores ou dos escravos.

Acreditamos que as ações foram conduzidas tanto pelos advogados

abolicionistas quanto pelas iniciativas dos cativos. Percebemos em algumas

ações a destreza desses advogados em desdobrar os processos.

No dia 11 de julho de 1877, a senhora Anna Joaquina de Freitas,

representada pelo seu advogado o senhor Belmiro de Souza, em audiência

com o juiz da primeira vara civil da comarca de Fortaleza, solicitou a presença

da escrava Maria Luiza da Conceição para “fallar aos termos da acção

ordinaria que a dita sua constituinte move a mesma parda Maria, a fim de

provar a verdadeira condição desta, e requeria que aprovados se houvesse a

citação por feita e acusada, e a acção por proposta"172.

Maria Luiza da Conceição, através do seu curador Virgílio de Morais

disse que "sua ex senhora Anna Joaquina de Freitas Barros, intenta-lhe

171 “[...] o movimento abolicionista , em sua feição paulistana, teve sua origem mais marcante no legalismo de advogados abolicionistas. Utilizando-se das brechas abertas tanto pela lei de 1831, que passava a considerar ilegal a escravização dos africanos e seus descendentes, entrados no país após esta data, quanto pela de 1871, que institucionalizava os pecúlios e a arbitragem judicial do valor do escravo nos casos de conflito, muitos advogados e oficiais de justiça passaram a dedicar-se à defesa gratuita dos cativos.” Ver: MACHADO, Maria Helena. Op. cit., p. 151. 172 Arquivo Público do Estado do Ceará, Ação de Liberdade, Número 909, pacote 64. Fala de José Feijó Fidélio Barrozo, escrivão interino.

93

Page 94: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

atualmente uma Ação para chama-la ao captiveiro, apesar de não ter sido

contemplada na matricula especial por omissão de sua ex senhora"173

Segundo o advogado de defesa, Brígido dos Santos, a suplicante (Anna

Joaquina de Freitas) alegou ser "analfabeta [...] pediu a seu protector e amigo o

capitão Zeferino de Ferreira e Silva, em 20 de abril de 1872, que fizesse

matricula na alfandega dessa cidade a sua escrava Maria, comprada de José

Gomes Rodrigues de Albuquerque em 30 de junho desse ano"174 Disse mais o

advogado: "a petição pela qual se pedia a matricula [...] nella pedia que se

abrisse matricula da dita escrava, sem que se dissesse qual seria a matricula,

si a especial para os effeictos da lei de 28 de setembro de 1871, si a geral,

para lançamento da taxa anual a que os escravos estão sujeitos."175

João Brígido pretendeu provar que não foi intenção de Anna Joaquina

não efetuar a matrícula. Situação essa ocorrida devido ao fato de sua cliente

ser analfabeta e ter pouco entendimento em leis: "Ora seguramente se pode

dizer que houve omissão de sua parte; que teve sciencia e consciencia do que

se passava naquela repartição?". Atribuiu a culpa pela omissão da matrícula à

alfândega.

Os argumentos do advogado não foram muito convincentes, o juiz da 1o

vara cível, Julio de Barbosa, deu o veredicto final favorável à Maria por

considerar que houve omissão de Anna Joaquina em matriculá-la.

Os escravos podiam, muitas vezes, eles próprios, reconhecerem os

caminhos mais sensatos para atingirem a liberdade. O processo de Maria é

profícuo no sentido de nos mostrar isso. Ele sugere que os cativos,

provavelmente auxiliados pelos curadores, advogados, ou através dos contatos

com os moradores da vizinhança, tinham conhecimento de um elemento

nevrálgico para atingirem sua liberdade, a obrigatoriedade de serem

matriculados pelos seus senhores.

173 Segundo o artigo 8o da Lei n 2040 de 28 de setembro de 1871, os senhores que deixassem de matricular seus escravos por culpa ou omissão, dentro do prazo marcado pela mesma lei, perderiam o direito de propriedade sobre o escravo. 174 Arquivo Público do Estado do Ceará, Ação de Liberdade, Número 909, pacote 64.

94

Page 95: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

2.2.5 – Eufrásia e Theodora

Numa outra ação de liberdade encontrada no Arquivo Público do Estado

do Ceará, deparamo-nos com as escravas Eufrásia e Theodora, que no dia 29

de março de 1880, recorreram à instância superior, o Tribunal de Relação de

Fortaleza, em apelação da sentença auferida contra elas, movida por suas ex-

senhoras, as irmãs Thereza e Francisca Maria Pereira. O curador, Justino

Francisco Xavier argumentou:

a injustiça em que, pela sentença de 20 se negou as suplicantes Eufrásia e Theodora, a titulo de liberdade que requereram é manifesta em fase das disposições de direito que regulou a materia controversa...

[...] passamos a demonstral-o com a clareza que nos é possível, sem necessidade de deduções duvidosas nem de extenso desenvolvimento as nossas humildes argumentações176

Nem sempre a lógica aplicada pelo juiz seguia a jurisprudência. Às

vezes, os magistrados eram influenciados por outros motivos, dentre eles

políticos e ideológicos, como afirma Mendonça: "é possível ver também que a

aplicação das leis estava longe de seguir critérios estritamente "lógicos". As

decisões judiciais tornavam-se cada vez mais políticas"177. O campo da lei

oferecia rudimentos que permitiam tanto os defensores da propriedade servil,

quanto àqueles que eram contrários, alcançarem seus objetivos. A partir da Lei

2040 se tornou mais habitual na relação escravista discutir a legalidade da

escravidão. Os próprios escravos, como também advogados, políticos,

funcionários públicos e outros passaram a questionar e a atuar mais

eficientemente para o fim do regime.

Como tivemos a oportunidade de ver, a partir da lei do Ventre Livre, os

escravos utilizaram-se cada vez mais de argumentos acerca da ilegalidade da

"propriedade servil", para romper a relação de domínio senhorial. Conseguiam

com isso colocarem seus senhores numa situação nada agradável, sentá-los

no banco dos réus, acusando-os, muitas vezes, sob o argumento de que

exerciam sobre eles um direito ilegal.

175 Ibidem. 176 Ibidem. 177 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op. cit., p. 183.

95

Page 96: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Justino Francisco Xavier conseguiu provar através de certidão, que no

dia 1o de abril de 1865, Eufrásia e Theodora foram arrematadas em praça

pública por Antônio Santos neves, provou também que no dia 10 de abril o

arrematante pagou o valor das escravas e que mãe e filha depois foram

entregues pelo porteiro do auditório Francisco Feliciano da Costa Catolé, o

mesmo que fez o pregão na praça e assinou os atos ao senhor Santos Neves:

"que ficou effectivamente na posse dellas". E prosseguiu: "ora para que as

suplicadas possam dizer-se senhoras das suplicantes é necessário mostrar

que Santos Neves transferiu a ellas as apelantes [...] não podendo effectuar-se

a transmissão se não for escriptura publica,"178 tendo em vista que as

suplicantes não exibiram nenhum documento que comprovasse o título legal de

posse ou domínio. O curador concluiu o raciocínio argumentando:

o "artigo 3o do decreto n 4835 de 1o de dezembro de 1871 satisfez a exigencia da lei definindo as pessoas a quem incumbia a obrigação de dar a matricula [...] que não pode ser satisfeita por um terceiro senão representando legalmente o interessado obrigado

A lei citada estabeleceu semelhante obrigação no intuito de fornecer a libertação dos escravos; mas fica burlado o seu precisamento toda vez que uma terceira pessoa isentar o interessado da culpa ou omissão, dando o escravo a matricula sem ser representante legal do mesmo interessado"179

O juiz chamou para depor o pernambucano e agente de leilões Antônio

dos Santos Neves de 39 anos, responsável por arrematar em praça pública as

duas escravas em questão, Theodora e Eufrásia. Disse que as escravas foram

penhoradas ao requerente Frederico José Pereira por execução de seu irmão

João Manuel Pereira. E no dia seguinte do arremate, quando foi receber as

escravas na casa do Frederico Pereira, "a familia do executado se mostrou

muito consternada que elle testemunha deixou de recebel-as indo ao João

Manuel Pereira communicar o ocorrido que restitui-lhe o dinheiro pago em

juízo pela arrematação de mencionadas escravas."180 Disse-lhe João Manuel

Pereira, nessa ocasião, que as escravas ficariam para suas sobrinhas,

Francisca e Maria, filhas de seu irmão, João Manuel Pereira.

O advogado de defesa, Paulino Nogueira Borges da Fonseca, utilizou o

depoimento de Antônio dos Santos para provar que as suplicantes Eufrásia e

Theodora de fato eram escravas das suplicadas Francisca Maria Pereira e

178 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 1582, pacote 32. 179 Ibidem. 180 Ibidem.

96

Page 97: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Thereza Maria Pereira. Buscava, desse modo, provar o domínio e posse das

irmãs sobre as escravas, para isso serviu-se do artigo 8o da lei de 28 de

setembro de 2040, como do artigo 85 do regimento nº 5135 de 13 de novembro

de 1872 e também do artigo 19 do decreto número 4835 de 1o de dezembro de

1871, que determinam: "que no caso vertente proceda o juiz

administrativamente."181 Mas não foi convincente nas suas argumentações

decidindo o egrégio Tribunal da Relação, no dia 19 de outubro de 1880, ganho

de causa para Theodora e Eufrásia.

2.2.6 – Custódio

No ano de 1879, na vila de Pacatuba, província do Ceará, o escravo

Custódio, através do seu curador Baltazar Ferreira Lima, entrou com uma ação

de liberdade contra seus senhor Manuel Antônio da Costa. Custódio alegou:

Ter sido abandonado por seo senhor desde o ano de 1871 [...] e que tem vivido fora do poder do seu senhor morando distante dele uma legua pouco mais ou menos que o não tem tratado em suas molestias antes pelo contrario o tem votado o mais completo desprezo, entregando-o aos seus proprios recursos e deixando-o viver fora da sujeição dominada182

Custódio vivia com sua mulher e filhos, trabalhava por conta própria

plantando e prestando serviços na comunidade. Pois a testemunha, João de

Meneses Filho, de 26 anos, casado e agricultor afirmou que "o escravo em

questão mora vivendo de trabalho alugado e faz roçado com seus filhos e

mulher."183 Outra testemunha afirmou que Custódio até se casar vivia na casa

de seu senhor e que não sabe "se o réu deu licença para o casamento do

escravo"184. Entretanto, sabia-se que o réu tinha outros escravos e todos o

abandonaram sem seu consentimento.

181 O artigo 19 do regimento 4835 determina: "os escravos que por culpa ou omissão dos interessados a meio de provarem em acção ordinaria com citação e audiencia dos libertos e de seus curadores: 1o o domínio que tem sobre elles, e 2o que não houve culpa ou omissão de sua parte em não serem dados a matricula dentro do prazo estabelecido" e determina o artigo 85 do regimento n 5125 "que nos casos para que o mesmo regimento não designar forma de processo o juiz proceda administrativamente". Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Op. cit. 182 Arquivo Público do Estado do Ceará, Ação de Liberdade, Número 21, pacote 48. Fala do curador Baltazar Ferreira Lima. 183 Arquivo Público do Estado do Ceará, Ação de Liberdade, n 21, pacote, 48. 184 Idem. Testemunha Francisco da Silva, agricultor, casado e com 40 anos de idade

97

Page 98: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

A versão dos fatos oferecida pelas testemunhas do autor reforçou a

independência de Custódio. Enfatizou que Manuel Antônio da Costa não

detinha nenhum poder sobre o escravo, tendo o mesmo total liberdade para

fazer o que bem entendesse, inclusive prestar serviços para outros sem

precisar ressarcir seu senhor com nenhum valor. Entretanto, ressaltou

também, que Manuel Antônio à algum tempo vinha demonstrando um certo

comportamento estranho, "sucede que as vezes vê alguém e corre para dentro

de casa."185 E que o réu já vinha apresentando essa conduta há algum tempo:

"não sabe se o réu é doido, mas não tem bom juízo [...] pois o reu quando ve

gente corre e se esconde e que este estado do reo não é de pouco tempo mais

de alguns anos."186

Com bases nesses depoimentos o Juiz municipal, Augusto Gurgel, no

dia 20 de fevereiro de 1879, deu o veredicto a favor do réu. Concluiu que as

“condições não se pode razoavelmente presumir o pretendido abandono, nos

restritos termos do artigo 76 do regimento Número 5135 de 13 de novembro de

1872,187 pela ausencia absoluta de uma vontade relfetida e consciente."188

Ainda disse que o abandono do escravo se deu "pouco mais ou menos da data

em que o reu começou a sofrer o desarranjo mental que o impossibilitou para

promover por si seus interesses."189 Considerou também como prova o fato do

suplicante Custódio, como outros escravos, terem sido matriculados antes da

data em que começou a sofrer surtos piscóticos, "por si seus interesses como

atenta a matricula junta a estes autos, pela qual vê que na integridade de suas

faculdades, mantem ele o animo de conservar outros seus escravos na

permanência de seu dominio."190 E somou o fato de ter sido Custódio quem

abandonou seu senhor e não o contrário.

Custódio não se deu por vencido e, através do curador Baltazar, apelou

da sentença junto ao juiz de direito, Avelino Lima. Baltazar apresentou novas

185 Ibidem. 186 Idem. Testemunha, Mathias Lopes de 50 anos, agricultor. 187 O artigo diz: "considera-se abandonado cujo senhor residindo no lugar e sendo conhecido não o mantem em subjeição e não manifesta querer mante-lo sob sua autoridade". Ver: Coleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1872. 188 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, Número 21, pacote 48. 189 Ibidem. 190 Ibidem.

98

Page 99: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

provas no processo que buscaram alegar a sanidade do réu, para isso pediu ao

magistrado que citasse mais quatro testemunhas:

Excelentíssimo senhor juiz de direito: o escravo custodio de Manuel Antônio da Silva acompanhando a apellação ex-officio que o juiz doutor municipal do termo de Pacatuba interpoz da sentença que julgou não abandonado pelo seu senhor [...] verá vossa excelência o depoimento das 4 testemunhas testes e contestes, proprietários, negociantes, homens de probidade que afirmam de ciencia e comercio compridamento, que o senhor do apelado não sofre de loucura, não passa porem de um anacoreta ressalvando bem seus negocios comprando e vendendo nessa villa e acrescenta ainda o tenente Antero da Costa Albano que elle é bem razoável em suas convenções191

Disse mais:

tratando-se de loucura não se encontra nos autos um só acto desses praticados por elle, não joga, não embreaga, e ao contrario vive se concentrando em sua casa, vivendo de seu trabalho agricola, sem encomodar a pessoa alguma, tratando bem seus vizinhos tudo isso se evidencia da justificação junta por documento192.

Julgou o juiz:

Considerando que desde1871 o escravo mora fora da casa do reo mas que este nunca manifestou intenção de não querer mais conservar em sujeição.

Considerando que a intenção não se pode presumir pelo simples facto de morar o auctor fora da casa do reo e ao contrario dos autos consta que depois de Ter o auctor ausentado-se da casa do reo este o fez matricula como os outros seus escravos.

Considerando o estado mental do reo que claramente se manifesta a mais de seis anos pode-se presumir que quando o auctor abandonou já elle tivesse a inteligencia de tal sorte enfraquecida que não podesse mais zelar pelos seus bens

Por tudo isso julgo o auctor carecedor de direito na presente ação e como tal sujeito ao dominio do reo"193 Custódio ainda apelou para a última instância do Tribunal de Relação de

Fortaleza, no dia 15 de outubro de 1879, mas os desembargadores Joaquim

Tiburcio Ferreira Gomes e Antônio de Souza Mendes fizeram os autos

conclusos e, no dia 04 de novembro de 1879, deram ganho de causa ao

senhor Manuel Antônio da Costa e Silva.

Apesar da história não ter tido um final feliz para Custódio, através dela

podemos refletir sobre algumas questões relativas às relações estabelecidas

entre senhor e escravo na sociedade escravista. Os escravos contestaram o

domínio senhorial ao qual não pretendiam mais se sujeitar, buscando para isso

amparo na legislação e no argumento da ilegalidade da "propriedade servil"

caminhos viáveis para alcançar a liberdade. Defendiam a ilegitimidade de sua

191 Ibidem. 192 Ibidem. 193 Ibidem.

99

Page 100: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

condição servil tendo como fundamento a noção de ilegalidade constituída nos

domínios mais altos da legislação do século XIX, usufruindo dos avanços de

intensos debates ocorridos ao nível dos conselheiros e deputados do império,

nível este, que era sem dúvida influenciado constantemente pelos usos que o

dia a dia imprimia às leis, criando novas interpretações, enfim, jogando com

seus sentidos em busca de soluções adequadas aos anseios de liberdade.

2.2.7 – Antônio Joaquim

No dia 09 de outubro de 1879 o escravo Antônio Joaquim, através de

seu curador Luis Francisco de Miranda, entrou com uma Ação de Liberdade

contra seu senhor, Joaquim da Cunha Freire, o barão de Ibiapaba, alegando

que:

tendo o seu senhor o abandonado por invalidez desde o mez de janeiro do ano passado o expulsando de sua caza, e que durante aquella data que já hoje fazem um ano e nove mezes, não o tratou em sua molestia, não o manteve em cativeiro, nem manifestou o Ter em sujeição pelo contrario o deixou sempre viver fora da caza senhorial, vivendo de seus recursos e nem sequer o defendeu em seus crimes"194

O advogado de defesa Justino Francisco Xavier, representante dos

interesses do Barão apresentou outra versão para os fatos:

"[...] que tendo elles (a firma joaquim da Cunha Freire e Irmão), comprado o escravo Antônio, pardo, 29 annos, em 09 de janeiro de 1877, - contratando com seu senhor Manuel Ferrreira de Lima, representado por seu curador – João Guilherme da Silva, de quem recebeu matricula e passaporte juntos. – pagarão effectivamente o preço ajustado de 900 reis [...]"

E, que sendo o referido escravo remetido para o Rio de Janeiro a fim de

ser vendido, não o pode por alegar ser doente de beribéri regressando a

Fortaleza no dia seguinte, chegando a cidade no dia 20 de maio do referido

ano, e que "continuando a fingir-se doente de beribéri foi constantemente

tratado pelo médico da casa do Reo" até o mês de setembro de 1878,

momento "em que elle o escravo, fugio – surpreendendo a todos a Ter elle

podido andar". O réu procurou-o por todos os lugares, mas são foi possível

encontrá-lo "portanto, é falsa a allegação deter sido elle, apelante, abandonado

194 Arquivo Público do Estado do Ceará. Ação de Liberdade, n 1761, pacote 32.

100

Page 101: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

e expulso da sua caza, em janeiro de 1878". Com relação aos crimes, Justino,

salientou que o Barão não tinha conhecimento desses, não foi procurado pelo

escravo para defendê-lo e que durante todo esse tempo o mesmo procurou "a

proteção dos parentes de seu antigo senhor, os quais, não o bastante serem

moradores em outro termo e muito distante desta capital onde melhor se deve

saber do facto alludido em sua petição".

Em fevereiro de 1881 foi dado o veredicto final, com ganho de causa

para Joaquim da Cunha Freire.

2.2.8 – Macária

Numa Ação de Liberdade movida pela libertanda Macária através de seu

curador, o advogado Justino Francisco Xavier, contra os indivíduos Joaquim

Soares Carneiro, Antônio Carneiro Soares e Alexandre José Soares,

encontramos elementos que nos possibilitaram enxergar variadas táticas do

escravo lutando para atingir sua liberdade.

Macária, escrava de José Carneiro da Costa e de sua esposa D. Anna

Theodora de Meneses, através de seu curador e depositário, Justino Francisco

Xavier, contestou judicialmente sua escravização, alegando que:

[...] sendo escrava do sobredito José Carneiro da Costa e de sua mulher Anna Theodora de Meneses, moradores da villa de Santa Anna, elles lhe prometteram verbalmente alforria logo que lhes desse oito crias.

2o Que aceita esta promessa, teve a mesma escrava nove filhos ou crias. 3o Que não obstante o direito a liberdade, adquirido por aquelle facto, - ou

virtude da promessa feita -, succedeu que a preta forra de nome Isabel, mãe da curada do suplicante, dera aos senhores desta diversas quantias no intuito de a libertar; e o próprio suplicado Joaquim Soares Carneiro recebeu a quantia de 200 reis, que lhe coube em partilha no valor da mesma preta Macária, de cujo pagamentos não exigiu recibo de boa fé."195

A promessa feita por D. Anna Theodora de Meneses não fora cumprida.

A pedido do advogado de defesa dos acusados, Manuel Ambrosio da Silveira,

foi acrescida aos autos a revisão do inventário realizada pelo tabelião e

escrivão Domingos Marques, a qual não constou o item dando direito de

195 Arquivo Público do Estado do Ceará, pacote 71, número 135, Ação de Liberdade de 1875. Fala de Justino Francisco Xavier, curador da escrava Macária, pronunciada no dia 10 de novembro de 1873.

101

Page 102: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

liberdade a Macária, mas sim a permissão dada aos filhos herdeiros de Anna

Theodora de a partilharem.196

É importante na história de Macária atentarmos para o fato de termos

uma escrava lutando por sua liberdade com o argumento de que era vontade

de sua senhora que ela ficasse livre depois de sua morte. É difícil se não

impossível sabermos se as alegações de Macária eram verdadeiras,

entretanto, a questão não reside aí, pois a leitura de cartas de alforrias e

inventários do século XIX nos mostram que era mais ou menos comum,

senhores determinarem que depois de sua morte um ou mais escravos

ficassem livres. A consciência desse tipo de freqüência, da alforria

testamentada, interessa como manifestação cabal das capacidades dos

escravos de assimilarem do mundo dos brancos suas práticas, fazendo um uso

inteligente dessas informações, visando ao jogo que poderia lhes garantir uma

vitória, a vitória, cuja conquista representava a liberdade tão almejada.

Fazendo uma análise rápida de 30 cartas de alforria da província do

Ceará, a partir da segunda metade do século XIX, especificamente, entre 1860

e 1870, constatamos que 13 delas determinavam a alforria dos escravos

depois de falecidos seus senhores.

A História de Macária descreve práticas e experiências pelas quais

muitos escravos devem ter passado – a morte de seus senhores representava

um momento de incerteza entre a alforria e a possibilidade de ser comprado ou

vendido, ser remetido para outra província, donde fatalmente teriam que se

submeter a outro modo, fosse ele rural ou urbano. Certamente era o início de

um período de desconfianças. Existia a ameaça de serem afastados de seu

cotidiano, hábitos, costumes e amizades, como também o temor de serem

surpreendidos por senhores perversos com manias e caprichos desconhecidos.

Devemos atentar para o fato de que a relação com o antigo senhor imbricou

numa série de conquistas para Macária. Às custas de muito esforço e conflito,

196 Idem. Revisão do inventário feita por Domingos Marques "[...]pagamento ao orphão Joaquim de sua legítima materna da quantia de seiscentos quatorze mil oitocentos e cinco reis a margem [...] a Terça parte do valor da escrava Macária, crioula de idade de trinta e um anos que foi avaliada em setecentos e cinqüenta mil reis [...] pagamento ao órphão Antônio de sua legítima materna da quantia de seiscentos quatorze mil oitocentos e cinqüenta rei Alexandre de sua legítima materna da quantia de seiscentos quatorze mil oitocentos cinco reis que vai a margem, mais a Terça parte da escrava Macária [...]."

102

Page 103: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

indubitavelmente, ela se preocupou em garantir alguns direitos conseguidos

com os anos de convivência ao lado de dona Anna, sendo um deles a sua

liberdade.

Os processos cíveis referentes à luta jurídica pela liberdade nos

apresentam questões que merecem uma análise mais acurada. O processo

jamais pode ser visto homogeneamente, mas sim enquanto um campo de

conflitos onde vários interesses estão em jogo, principalmente, os anseios

sociais e políticos de duas classes antagônicas que combatem por interesses

tão díspares.

Tal ação nos possibilitou visualizar os múltiplos estados de tensões que

envolviam os sujeitos da contenda – senhor e escravo. O processo não nos

permitiu saber quem estava falando a verdade. Mas repetimos, a questão não

reside na veracidade das alegações. Fossem verídicas ou não as afirmações

feitas por Macária, podemos constatar que os argumentos pretendiam alcançar

um objetivo almejado, a liberdade. É importante notarmos as sutilezas que

envolviam tais processos. Eles trazem, como afirma Papali, "ricos testemunhos

sobre o parecer da época em torno da lógica da construção de uma liberdade

constantemente confrontada com as premissas do direito à propriedade

privada."197 Tais ações envolviam complicadas nuanças que se moviam em

direção aos direitos do homem em busca da liberdade.

Nos autos ainda constou que Macária possuía uma certa liberdade de

ação, pois além de ser escrava de aluguel, depois da morte de D. Anna

Theodora de Meneses passou a morar numa casa distinta da dos seus

senhores. Enquanto esses moravam em uma fazenda chamada Sapió, Macária

vivia numa casa nas imediações da mesma vila, chamada de Santa Anna, de

propriedade de José Carneiro da Costa Júnior. Conforme afirma uma

testemunha: "sempre Macária morou nessa villa na caza de seu senhor, porem

morando seu senhor na fazenda sapió e tendo nesta villa uma outra morada de

caza, Macária occupara esta caza, sendo isso depois que sua senhora Anna

Theodora de Menezes falleceu."198

197 PAPALI, Maria Aparecida. Op. cit., p. 66. 198 Arquivo Público do Estado do Ceará, pacote 71, número 135, Ação de Liberdade de 1875.

103

Page 104: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Nesse sentido podemos considerar que Macária, morando sozinha, tinha

uma relativa liberdade de movimentação, que lhe permita, desse modo,

desfrutar algumas experiências distantes do controle de seus senhores. Sendo

assim, cogitamos que Macária vivendo só, em parte independente de seus

senhores, e, possivelmente suprindo suas necessidades com alimentação e

vestuário, visualizou sua independência decidindo confrontar o que ainda a

impedia de fato vivenciar essa independência integralmente: o aluguel que

tinha de pagar todo mês a seus senhores. Contava nos autos "que esse

aluguel a que ella Macária se prestara era sob sua responsabilidade, a quatro

mil reis por mez; isto é tinha Macária por obrigação de dar a seus senhores

quatro mil reis mensais por aluguel."199

Todas as testemunhas presentes nos autos disseram que Macária

morava só havia algum tempo e se sustentava sem o auxílio de seus senhores,

como também "que sabe por ouvir da própria autora que seus referidos

senhores haviam prometido a alforria se ela desse oito crias." Macária se

encarregou de divulgar em toda a villa a promessa feita por D. Anna Theodora

de Meneses. Possivelmente, Macária estava ciente do proveito desse relato

nas bocas de testemunhas num futuro processo de liberdade.

Podemos observar no processo que todos que testemunharam em favor

de Macária tiveram como amparo de suas elocubrações o fato da escrava viver

como se "forra fosse" ou habitar e se sustentar sem o auxílio de seus senhores.

Como afirma Papali: "questões pautadas em observações retiradas do

cotidiano do libertando, de suas vivências diárias."200 Em todos os depoimentos

verificamos que as testemunhas buscaram deixar evidente que Macária se

sustentava por seus próprios serviços, pagando apenas um aluguel a seus

senhores. Ou seja, Macária na prática vivia quase como se livre fosse, sendo

esse um dos principais argumentos que sustentava sua contenda.

Podemos pensar que para Macária, a liberdade era muito mais do que

apenas um conceito abstrato presente no direito. Ser livre para Macária

representava ter autonomia de trabalhar para si, eximir-se do amparo de seus

199 Ibidem. 200 PAPALI, Maria Aparecida. Op. cit., p. 68.

104

Page 105: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

senhores, escolher sua própria direção, permitir-se trabalhar para quem quiser

e com que quiser. Ou seja, ser livre para Macária era muito mais do que o jogo

retórico dos tribunais dava a entrever nos fógos-fátuos da diáletica

empreendida pelos interlocutores da lei, era viver e sentir a vida como bem

desejasse, como melhor lhe parecesse, era a possibilidade de alcançar a

dignidade, mesmo aquela que diz respeito aos modos mais simples de viver.

Tanto é assim, que as testemunhas classificadas para depor em favor da

escrava faziam questão de enfatizar a parcial autonomia de Macária nas suas

realizações cotidianas, sua independência em algumas situações. As

testemunhas sempre se remetiam à condição de Macária como se forra fosse.

Uma dessas testemunhas, Sra. Tereza Maria de Jesus, lavadeira, solteira de

cinqüenta anos de idade, quando perguntada sobre a condição de Macária,

respondeu o seguinte: "[...] disse mais que Macária morava em outra caza qual

não era de seus senhores por consentimento de seus senhores e trabalhando

como uma mulher forra."201

A testemunha aludida, talvez, imperceptivelmente, refutou uma das

premissas básicas nas quais se sustentavam a escravidão e a submissão.202

Mesmo se remetendo à anuência dos senhores de Macária para que ela

morasse só, a mesma trabalhava "como uma mulher forra", ou seja, se auto

geria, sem dar conta do olhar de sentinela dos senhores. Macária, depois da

morte de D. Anna Theodora de Meneses passou a viver de modo diferente,

principalmente nas questões relativas à vida cotidiana e ao trabalho. Sendo

assim, ciente da sua condição de semi-liberta, buscou através dos meios

jurídicos negar o princípio de submissão, última ligação que a mantinha sujeita

à escravidão.

É possível perceber nos depoimentos das testemunhas a existência de

uma relação de subordinação menos rígida de Macária com seus senhores,

como também, está tacitamente aludida a importância dada ao modo de vida

da escrava, evidenciando que as práticas e experiências no cotidiano e no

201 Arquivo Público do Estado do Ceará, pacote 71, número 135, Ação de Liberdade, 1875. 202 PAPALI, Maria Aparecida. Op. cit., p. 69. Segundo Papali a escravidão se sustentava na sociedade brasileira através de três premissas básicas, hereditariedade, obediência e submissão.

105

Page 106: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

mundo do trabalho tinham tanto valor enquanto evidência quanto qualquer

outro documento escrito remetendo à condição de cativa de Macária.

O depósito203 do cativo enquanto procedimento legal do judiciário para

iniciar-se uma Ação de Liberdade pode ser considerado um fator responsável

pela sujeição do escravo à condição de coisa. O termo depósito subentende

local a ser depositada alguma coisa ou mercadoria, uma espécie de armazém.

Sendo praxe que o escravo, depois de depositado, recebia um tutor para

defender seus interesses. No caso de Macária o depositário e o curador foram

os mesmos, Justino Francisco Xavier, mas não necessariamente tal conjunção

ocorria constantemente, na maioria das vezes as atribuições de depositário e

curador eram destinadas a pessoas distintas.

Presumivelmente, o fato de ser vendida como se fosse mercadoria ou

posta "em depósito" tinha para Macária a mesma conotação, como também o

fato de ter de se submeter à sujeição servil a seus supostos senhores. Tais

questões talvez tivessem a mesma importância para muitos escravos da

época. Devia ser bem constrangedor para Macária ter de remunerar seus

senhores com seu trabalho. Possivelmente tornava menor sua existência, ou

pelo menos, em termos materiais, diminuía-lhe as capacidades de

movimentação. Mesmo não estando sob o controle excessivo de seus

senhores, nos moldes feitorizados ou sob rígida disciplina, sentir-se presa a

alguém ou a algumas pessoas subtraía de Macária essenciais referências de

dignidade.

Se deixarmos de lado todas as contendas jurídicas arroladas na Ação de

Liberdade da escrava Macária, se desconsiderarmos os depoimentos

favoráveis ou não a sua liberdade e fizermos somente uma leitura desse

documento relativa aos indícios de sua vida, teremos uma mulher realizando

vários trabalhos como os de lavadeira, arrumadeira, cozinheira, em troca de um

salário cuja parte era destinada a outros. Veremos ainda uma pessoa vivendo

numa zona rural da vila de Santa Anna, comarca do Acaraú, província do 203 Segundo Sidney Chalhoub o depósito poderia ser público ou particular e tinha como finalidade garantir a segurança dos "libertandos" e afastá-los de possíveis represálias e retaliações que pudessem sofrer de seus senhores. Idem: Visões da Liberdade. Op. cit., p. 108. E ainda, MENDOÇA, Joseli Maria Nunes. Op. cit., pág, 108. A autora como Sidney Chalhoub afirma que os depósitos "tinham um claro sentido de promover a proteção de um escravo que pretendia ser livre".

106

Page 107: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Ceará, possivelmente tendo algum relacionamento amoroso na região, mais ou

menos satisfeita com sua parcial autonomia, uma mulher pobre, mas sem

dúvida em uma posição digna, com uma extensa rede de amizades, e sempre

transitando entre os bairros e vilas da comarca.

Se caso contrário, preferirmos olhar Macária como uma escrava,

encontraremos uma cativa que trabalha para outras pessoas em troca de um

determinado valor, que será destinado a seus senhores. Devido a sua

condição, encontraremos, sem dúvida, uma boa ladina, astuta, perspicaz e

ardilosa no trato com o mundo do trabalho e no modo de levar a vida. Aqui

também descobriremos uma escrava com um amplo e diversificado ciclo de

amizades, uma escrava com muito trânsito entre os moradores da região,

comprometida com a constituição de uma vida mais apropriada, de uma maior

proximidade com a condição de liberta.

De qualquer forma avessos ou não a causa de Macária, encontraremos

uma escrava descontente com sua situação, insubordinada em alguns

momentos, loquaz, com muita astúcia, que não se acomodou e não aceitou

viver sob a dependência de outras pessoas, tentando fazer valer seus anseios.

Ao utilizar como argumentos na defesa de sua liberdade a promessa

feita por D.Anna Theodoro Menezes, como também, o fato de morar a algum

tempo só e arcar inteiramente com seu sustento, Macária, como afirma Papali

"ultrapassa o limite dos ‘tratos de trabalho’ sendo estabelecidos com um

senhor, sob um determinado cativeiro".204 Buscava fazer valer outros preceitos

ancorados em outras condições que não aquelas de tempos mais antigos,

tempos em que vivia sob o domínio de outros senhores.

*

As histórias de Antônio Joaquim, Theodora, Eufrásia, Custódio, Macária

e os demais escravos encontrados nos processos cíveis, revelam-nos uma

relação de dominação e exploração que, de modo contraditório, unia e

separava homens e mulheres, senhores e escravos, através de práticas e

experiências cotidianas, costumes, lutas, resistências, acomodações,

107

Page 108: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

solidariedades, modos de viver, agir, pensar, que construíram o que

entendemos por sistema escravista.

Sendo assim, nesse capítulo buscamos privilegiar as relações

estabelecias entre senhores e escravos. Entende-se que os senhores até

podiam considerar os escravos enquanto indivíduos destituídos de vontade

própria, incapazes de atitudes políticas, que deveriam se comportar conforme a

deliberação de seus proprietários, entretanto, eram homens e mulheres que

mesmo comprados para serem dominados e expropriados, impunham limites

às decisões senhoriais. Possuíam projetos e concepções próprias pelos quais

lutavam, chegando às vezes a conquistar pequenas e grandes vitórias, as

quais os senhores nem sempre entendiam enquanto tais, mas apenas como

favores e concessões paternais. No entanto os escravos as traduziam como

conquistas, conseguidas a custa de muito sofrimento e que de alguma forma

deveriam ser mantidas como direitos.

204 PAPALI, Maria Aparecida. Op. cit., p. 74.

108

Page 109: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

CAPÍTULO 3

SER NEGRO NA LITERATURA

Page 110: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Que brados, tão lamentosos Echoam n’este Brazil? - São de filhos desgraçados que soffrem tormentos mil -São homens escravos feitos [...] Lei absurda, cruel, Contraria em tudo a rasão, Um homem de outro escravo! Oh! É terrível baldão! Mas qual a causa, o motivo De haver senhor e captivo Quando iguaes deviam ser? Entre todos os humanos Só d’uns sobre outros notamos A nobreza do saber. 205

Temos como intenção nesse capítulo demonstra mais uma das muitas

facetas presentes no movimento abolicionista deflagrado na província do

Ceará. A literatura se constituiu um meio profícuo para muitos autores

expressarem seu descontentamento com o sistema escravista. A prosa, o

verso e a narrativa foram utilizados por muitos abolicionistas como um

importante instrumento de combate. Lamentamos muito não termos encontrado

nenhum tipo de material escrito por escravos ou libertos. Os textos que

pesquisamos foram produzidos por aqueles que, de um jeito ou de outro, foram

contra o sistema escravista; ou atacavam o sistema sem incluir o escravo, ou

consideravam as experiências e vivências dos cativos .

3.1 – LIBERTADOR: LITTERATURA

Inicialmente, tentando entender o significado da palavra literatura, nos

deparamos com sua denominação vulgar: "arte de compor obras literárias (em

prosa ou verso); conjunto das obras literárias de um país ou de uma época; os

homens de letras; bibliografia."206 Sendo assim, procuramos nos aprofundar um

205 Libertador, 07 de fevereiro de 1881, p. 08. 206 Moderno Dicionário Enciclopédico Brasileiro. 12a edição, Paraná, 1985.

110

Page 111: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

pouco mais sobre o assunto. Encontramos na obra, Marxismo e Literatura, do

intelectual britânico Raymond Williams, uma boa discussão sobre a questão.207

O conceito de literatura está inserido dentro de um processo histórico,

onde a descoberta de novos meios, novas formas e novas definições de uma

consciência prática em transformação contribuem imensamente para a

evolução do termo.

Na contemporaneidade estudos reconhecem a literatura enquanto uma

categoria social e histórica especializada, "exatamente por ser histórica, um

conceito-chave de uma importante fase de uma cultura, constitui evidência

decisiva de uma forma particular de desenvolvimento social da linguagem"208

Entendemos que a literatura se constitui enquanto parte do social e não

apenas reflexo, sendo possível nesse sentido de revelar determinados

elementos que compõem a sociedade. A literatura tem um papel essencial na

composição e expressão de sentimentos e ideais que permeiam o político e o

social. Concordamos com a historiadora Ivone Cordeiro quando escreveu:

Apesar da sua dimensão material – produção discursiva escrita, a literatura, pela sua própria natureza, produz uma dimensão imaterial – desperta sensibilidades estéticas, sentimentos de amor, prazer, angústia etc., construindo uma sensibilidade que se mobiliza na produção de imagens que se incorporam socialmente como práticas e representações, constituindo-se, assim, numa dimensão necessária da experiência social passível de ser apreendida na sua temporalidade.209

207 Para Williams a palavra literatura começou a ser usada na Inglaterra a partir do século XIV. O termo tem sua raiz no latim, littera, que significa uma letra do alfabeto. Nessa época a literatura era entendida como sendo, apenas, uma situação de leitura, "ser capaz de ler e de ter lido. No século XVII adquiriu o sentido de capacidade e experiência de leitura, ‘literary’. Cem anos depois, no século XVIII, adquiriu o significado próximo à alfabetização e estado de alfabetizado, denominação sedimentada na linguagem inglesa a partir do século XIX, cujo termo será ‘literacy’.” Ainda no século XVII a palavra "literature" foi compreendida como composição métrica escrita e impressa, sendo utilizada enquanto categoria empregada nas áreas de retórica e gramática: "literature era uma categoria de uso e uma condição mais do que de produção". Até o século XVIII o termo "literature" foi entendido também enquanto um conceito social que expressou um certo nível de realização educacional, "uma definição alternativa potencial, e que se acabou realizando, de literature como ‘livros impressos’: os objetos os quais, e através dos quais essa realização se demonstrava". A palavra perdeu o sentido mais antigo de prática e experiência de leitura e se tornou uma categoria de obras impressas. A partir, principalmente dos séculos XVIII e XIX três tendências passaram a prevalecer na definição do termo literatura, "primeira, uma passagem do "conhecimento" para "gosto" ou "sensibilidade" como critério para a definição da qualidade literária; segunda, uma crescente especialização da literatura como obras "criativas", ou de "imaginação"; terceira, um desenvolvimento do conceito de "tradição", em termos nacionais, resultando na definição mais eficiente de "uma literatura nacional". Tendências, que se consumaram totalmente no século XX, foram responsáveis por ampliar o significado da palavra literatura. Adquirindo o termo uma ressonância nova, uma "ressonância especializada". Ver: WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. p. 51-52. 208 Ibidem. p. 58. 209 BARBOSA, Ivone Cordeiro. Sertão: Um Lugar Incomum. O sertão do Ceará na literatura do século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 22.

111

Page 112: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

A partir das primeiras décadas do século XIX, a representação210 da

condição do africano e do afro-descendente no Brasil ocupou maior espaço na

literatura nacional. Estimulada, sem dúvida, pelo sentimento antiescravista que

começou a ganhar maior proporção nessa época, jornais e revistas foram os

principais veículos divulgadores desse trabalho.

A imprensa foi um importante instrumento de propaganda das

sociedades libertadoras. O Libertador teve um papel significativo na formação

da opinião pública. Contribuiu, através de suas seis colunas, para tornar notório

o pensamento de seus membros. A coluna Litteratura permitiu aos

abolicionistas expressarem por meio de versos seus anseios e sentimentos.

Entretanto, poucos eram os poemas presentes na coluna que falam da família,

dos valores e dos sentimentos dos escravos.

Na edição de 17 de março de 1881 foi publicada uma poesia do senhor

Mello Moraes Filho intitulada A família. Uma das raras poesias publicadas no

Libertador que fez alusão ao escravo enquanto homem que sente e age como

tal.

A Academia Francesa foi a primeira agremiação literária que surgiu no

Ceará, isso se deu em 1872, foi instalada na cidade de Fortaleza. Seus sócios

fundadores foram: Rocha Lima, Capistrano de Abreu, João Lopes, Tomaz

Pompeu de Souza Brasil e Xilderico de Farias. Seu caráter mais do que literário

foi filosófico. Nos encontros realizados periodicamente os sócios liam e

debatiam, principalmente, pensadores europeus, dentre eles, Augusto Comte,

Spencer, Taine e outros. Essas leituras foram trazidas das faculdades donde

realizaram seus estudos.

Logo em seguida surgiu o Gabinete Cearense de Leitura, fundado em

02 de dezembro de 1875, em Fortaleza. Seus fundadores foram: Antônio

Domingues, João da Rocha Moreira, Fausto Domingues, Joaquim Álvaro

Garcia, Francisco Perdigão e Antônio Domingues dos Santos, posteriormente

outros se juntaram ao grupo. Como a Academia Francesa, também tinha 210 No século XX alguns críticos, dentre eles Michel Foulcault, entenderam que a linguagem literária tinha por função nomear, isto é, suscitar uma representação, indicá-la e não julgá-la, a natureza dessa

112

Page 113: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

caráter literário e filosófico, seus membros acreditavam que o conhecimento

advindo das letras em formas de idéias e teorias seria capaz de renovar a

sociedade e lançar a coletividade nos rumos do progresso e da civilização.

Utilizavam-se nesse sentido do discurso científico como legitimador de um

saber sobre a dinâmica da sociedade, impregnando e remontando a estrutura

dominante de modo que novas relações de aceitação e novos exercícios de

poder se estabelecessem. Também se empenharam em combater as

estruturas de valores mais conservadores do poder tradicional. Utilizaram o

discurso científico como elemento renovador da sociedade, buscaram romper

com o passado “atrasado” e caminhar rumo ao progresso.

Essas duas agremiações foram marcadas indubitavelmente por um

legado de teorias eurocêntricas. A realidade vivenciada política, econômica e

socialmente pelos países da Europa, em parte, foi responsável por conduzir as

experiências sociais e posturas políticas dos sócios dessas academias.

Os membros dessas duas agremiações entendiam que não somente,

mas principalmente a cultura letrada seria capaz de transformar a sociedade

cearense, de modo que o caos social e a desordem política que estava

instalada na província fosse substituída por uma nova ordem. Esses ideais

encontraram profícua acolhida nas práticas e experiências vivenciadas pelos

membros da Sociedade Cearense Libertadora.

Os letrados da Sociedade Cearense Libertadora, que escreveram na

coluna Litteratura, buscavam nos seus discursos legitimar-se política e

economicamente através da ciência. As leituras cientificistas e evolucionistas

que impulsionaram suas paixões legitimariam suas práticas sociais. A escrita

desses letrados referendava-se nos conceitos que apreciavam a realidade

política, social e econômica da Europa. Acreditavam que os fluxos de idéias

que conduziram a dinâmica daquele continente, contribuiriam, em parte, para a

melhoria da realidade brasileira. O instrumento letrado foi para os membros da

Sociedade Libertadora um importante meio de alcance dos seus ideais

linguagem tem uma relação com as coisas totalmente diferente da forma proposicional.Ver, especielmente, FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Lisboa: Portugália, 1967.

113

Page 114: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

civilizatórios, utilizando-os nas suas atuações políticas em favor de uma nova

ordem.

3.2 – A FAMÍLIA

Partes, Josepha? – Não parto. Não partes, Josepha?! – Não! Que sortes terás? Tu sabes? A sorte da escravidão. Tu vais deixar-me? Tu deixas-me Não sou casada contigo? Oh triste escrava! Meus filhos? Aves do ceu sem abrigo Hontem à tarde abraçava-te Sonhando um sonho fingido, Hoje, Josepha – a desgraça! Hoje, Josepha – vendido! Nossa senhora, vendido! Tu zombas, dize, não é? Ai pobre escrava! Aos escravos Negou Jesus Christo a fé? Amo-te muito. Os rigores Si os supportei, foi por ti; Não vêr-te, é estar morto n'alma Perdoa, esquece, eu menti. Mentiste, sim. A manhã, O que serei, mal fadada, Quando teus filhos disserem, Não vendo mais tua enxada: <Onde meu pai? Foi-se embora?> O que lhes responderei?... Chorava a escrava, choravam ... Responde, <– Filhos não sei!>211

Nessa poesia Mello Morais Filho denunciou a aflição por que passou

uma família212 escrava ao perder um de seus entes. Josepha foi mais uma das

211 Libertador, 17 de março de 1881, Número 06, p. 08. 212 Pesquisas recentes vêm demonstrando que ao contrário do que afirmaram alguns pesquisadores –dentre eles Gilberto Freire, Emilia Viotti da Costa e Florestan Fernandes –, a existência da família escrava não foi tão atípica assim. Segundo Robert Slenes, "na verdade as uniões sexuais de ‘longa duração’ – não evidente, as de 40 anos, que seriam relativamente raras em qualquer sociedade com altos índices de mortalidade, mas , digamos, as de 10 anos ou mais – eram bastante comum entre os escravos". Ver: SLENES. Robert. Lares Negros, Olhares Brancos: Histórias da Família Escrava no Século XIX. Revista Brasileira de História, número 16, ANPUH, Ed Marco Zero, São Paulo, 1988.

114

Page 115: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

muitas esposas que viu seu marido ser vendido para trabalhar nas plantações

de café das províncias do sul do Império.

A Lei do Ventre Livre não remediou a prática de senhores venderem

escravos separado-os de seus cônjuges. A poesia de Morais Filho tem o intuito

de denunciar tal atitude. A lei do ventre livre é de 1871, a poesia foi escrita em

1881, ou seja, dez anos depois da proibição de separar escravos casados.

Provavelmente Mello Morais, estando ciente de tal prática continuar

acontecendo na província do Ceará, decidiu denunciá-la através da poesia.

Morais na mesma edição do dia 17 de março de 1881 mais uma vez

denunciou o opróbrio vivenciado por uma família escrava. A poesia falou de

uma escrava que foi vendida pelo seu antigo proprietário, juntamente com seus

dois filhos a uma nova senhora que decidiu alforriar a escrava, mas não os

filhos. Os filhos seriam postos em liberdade somente depois que os netos da

senhora morresse. Enquanto isso não se realizou, a escrava mendigou fundos

para alforriar os filhos.

Elle vendera a escrava e mais as duas crias; Uma, depois da lei, só tinha quinze dias, Estátua do infortunio, a dor mais cruciante Que a miseria levara ao seio agonisante, Foi um supplicio e atroz: o derradeiro adeus D'm grito de blasphemia, um desafio ao céo! Trez longos annos, sim! De pranto e de martyrios Ella os curtira inteiro: - ella com seus delirios! Fui mãe, eis o meu crime: a condição o quer, Não é serviço à escrava o ser também mulher?!. Assim pensava a triste. O duro captiveiro Lhe consumira o corpo. Esforço derradeiro A subscripção lhe fora: - a graça (ilegível) Da bárbara senhora que n'isso fez-se humana << Aqui tens teu papel; o preço está marcado, não p'ra ti, p'ras crianças ... eu tenho destinado que ficas forra. Espera, espera o teu momento, por morte dos meus netos ... já fiz meu testamento. E quando ella sahira, horrenda de mau trato, Uma criança ao collo, outra sustendo, (ilegível) Aonde a compaixão errante da cidade, Redime a escravidão aos pés da caridade. Ella encontrara elle que empalleceu de assombro,

115

Page 116: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

E toma do mais velho, os dois erguendo ao hombro Com voz já quasi extincta e os olhos já sem brilho. << esmola, meu senhor, p'ra libertar meus filhos>>213

Acreditamos que Moraes teve como intenção comover os leitores,

utilizando para isso um vocabulário saturado de palavras lancinantes: "Estatua

do infortunio, a dor mais cruciante, que a miseria levara ao seio agonisante, foi

um supplicio atroz: o derradeiro adeus, d'um grito de blasphemia, um desafio

ao céu!".

Através dessas impressões o poeta conseguiu denunciar algumas

práticas ilícitas que vinham sendo realizadas por senhores na província do

Ceará. A venda de filhos de escravas que nasceram depois de promulgada a

lei do ventre livre foi uma delas, "Elle vendera a escrava e as duas crias; Uma,

depois da lei, só tinha quinze dias [...]."214 A outra, manter pessoa livre em

cativeiro, "<<aqui tens teu papel; o preço está marcado, não p'ra ti, p'ras

crianças [...] eu tenho destinado que ficas forra. Espera, espera o teu momento,

por morte dos meus netos ... já fiz meu testamento.>>".

Mas como já foi dito, grande parte das poesias publicadas na coluna

Litteratura do periódico Libertador foi muito mais no intuito de difundir o fim da

instituição, a extinção da escravidão. Da mesma forma visavam abrilhantar

aqueles que compunham a Libertadora, muito mais do que apregoar as

característica e qualidades que remetem ao ser escravo. Aquelas

características que iluminariam nos leitores um outro tipo de escravo, aquele

típico ser humano que pensa, sente e age como homem.

No primeiro número do jornal, editado em 1o de janeiro de 1881, o

abolicionista Antônio Bezerra escreveu uma poesia em homenagem à

fundação da Sociedade Cearense Libertadora:

Moços! Uma grande idéa Vos anima os corações, Quereis erguer no futuro

213 Libertador, 17 de março de 1881, Número 06, p. 08. 214 Ibidem.

116

Page 117: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

O mais bello dos padrões! Sim, que vos sobra energia E tendes n'alma a magia Que gera as revoluções; Se a turba não vos entende, Dos moços é que depende O destino das nações. Sois poucos, mas resolutos Cheios de crença e valor, São nobres vossos esforços E nobre mais vosso amor: Amor a causa sublime Daquelles aquem opprime O estigma da escravidão A quem só coube por sorte Miséria e dor – té que morte Os livre a degradação Avante, pois, que este seculo É o seculo de grande acção, Repugna a luz do progresso A ideá de escravidão; Bem firme no vosso posto Oh! Nunca volteis o rosto Aos inimigos da luz, Si vos é dura a provança Tende no ceu confiança Que a gloria ao fim vos conduz A pátria de tantas glorias Que viu-nos livre nascer, Embora lhe embarquem a marcha Não pode escravos conter; É tempo que a liberdade Aos brados da mocidade Erga os brios da nação Que igualados os direitos Batidos os preconceitos Seja o escravo um cidadão Eia, moços, attonita Vos contempla a multidão, Vinde aqui lançar as bases Da mais santa instituição; Cheios de nobre coragem Deixais na vossa passagem Um sulco immenso de luz, Luz que derrama victorias, Que illustra ainda mais as glorias Da terra da Santa Cruz. Seja-vos, pois, a constancia Companheira de labor, Não temam agres trabalhos Quem sabe lutar com ardor: Avante, que a vossa idéa Resume a grande epopeia Que há de um povo remir, Pois já com fé verdadeira

117

Page 118: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Gravaes em vossa bandeira Persevernaça e Porvir.215

Essa poesia foi uma espécie de missiva aos colegas abolicionistas e os

incitou a lutar contra a escravidão. É interessante observar que o termo

revolução apareceu na poesia sutilmente. Antônio Bezerra apenas o sugeriu. A

mocidade possui energia que "gera revoluções". Nessa primeira fase da

Libertadora ainda não estavam definidas as posturas que deveriam ser

tomadas em prol do fim da escravidão na província. Os membros estavam

divididos em emancipacionistas ativos e emancipacionistas passivos.216

Em outro momento, por ocasião de abertura de um congresso

abolicionista acontecido na cidade de Maranguape, em 26 de maio de 1881,

Antônio Bezerra recitou a seguinte poesia:

Chamae-nos? –eis-nos precipites Ao vosso apello de irmãos. Que a mesma idéa nos prende, Apertam-se as mesmas mãos! Trasemos com a mocidade Os cantos que a liberdade Dedica aos moços - heroes, Aquelles que mais que a vida Querem a patria engrandecida, A patria de seus avós. É nobre e grande e sublime A vossa resolução, Erguendo do opprobio o escravo Para fazel-o um irmão; Tentaes refundir de novo N'um mesmo e brioso povo

215 Libertador, 01 de janeiro de 1881, Número 01, p. 07–08. 216 Antônio Bezerra disse que quando os membros da diretoria da libertadora se reuniram no dia 30 de janeiro de 1881 para decidirem sobre quais estatutos seriam convenientes para a libertadora, houve grande desacordo entre os sócios, optando o presidente provisório João Cordeiro por criar apenas um artigo que seria: Um por Todos e Todos por Um; com um único parágrafo – A sociedade Libertará os Escravos Por Todos os Meios ao seu Alcance. João Cordeiro num artigo publicado na Revista do instituto do Ceará, vol.59, de 1945 disse, por sua vez, que depois de organizada uma comissão para pensar sobre os estatutos da libertadora, marcou-se um dia para discuti-los, nesse dia houve tumulto entre os sócios e o próprio João Cordeiro. Para encerrar tal discussão, Cordeiro falou: "O projeto de estatutos que acaba de ser lido não convém. Nós queremos uma sociedade carbonária, sem ligações com o governo, que ocupe-se revolucionariamente da libertação dos escravos por todos os meios ao alcance dos nossos recursos pecuniários, da nossa inteligência e da nossa energia. Os estatutos que nos convém devem ser simplesmente estes:- "art. 1o - Libertar escravos, seja por que meio for. Art. 2o – todos por um e um por todos". Isac do Amaral afirmou que a fórmula dos revolucionários estatutos foi proposta por Antônio Bezerra. Ver: MENEZES, Antônio Bezerra de. O Ceará e os Cearenses. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1906. GIRÃO, Raimundo. Op. cit.

118

Page 119: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Os restos d'Africa infeliz, E nesta nacção denodada Seguis a nobre crusada Que o nosso seculo bemdiz. Sois moço, tende no craneo A chamma da intrepidez, Que apura os vossos esforços Na lucta com a insensatez! Embalde!.. não pode a inveja Deter a luz que dardeja No futuro do Brazil, Vence a ideá ao despotismo, Na treva tomba o egoismo, Surge a patria mais gentil. É tempo! Os povos caminham Pras plagas da perfeição, Da vida os rudes problemas Tiveram já solução: E vós no florir dos annos Com o sangue de americanos Deixae-vos aquem ficar? Não – mocidade, - á victoria! É vosso trabalho a gloria! Vosso destino é marchar. Avante! Não nos medronte A distancia da viagem, Quando a fé dirige o impulso Sobeja n'alma a coragem; Avante ! por toda parte Tremule o vosso estandarte Symbolo de amor e de paz! – Onde á sombra a escravatura, Visando ambição mais pura, Não córe de opprobio mais!

Essa poesia foi publicada no décimo número do Libertador, em 07 de

junho de 1881. Nela Antônio Bezerra estimulou os colegas libertadores à

"nobre cruzada" contra a escravidão. Os incitou a lutar pelo “bom futuro da

nação”. Na sua ótica, futuro indicava progresso. O progresso só seria possível

com o fim da escravidão.

Depois da reunião de 30 de janeiro grande parte dos membros

provisórios da Sociedade Cearense Libertadora abdicou da agremiação. Dos

poucos que ficaram, Antônio Bezerra de Menezes foi um deles. Raimundo

Girão o entitulou mosqueteiro juntamente com João Carlos Jataí e Isac do

Amaral. Essa alcunha foi dada devido à postura tomada por esses membros

em alguns momentos da campanha abolicionista cearense.

119

Page 120: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Das poucas atitudes consideradas de cunho radical e revolucionário

realizadas pela Libertadora, Bezerra de Menezes participou de duas delas.

Sendo a primeira quando aliciou pessoas e as levou ao porto com o objetivo de

tumultuar o embarque de alguns escravos. A segunda, quando participou de

uma ação que permitiu dar fuga a alguns escravos que estavam guardados

para serem vendidos para as províncias do sul do Império. Os casos já foram

aludidos no primeiro capítulo desta dissertação.

As poesias escritas por Antônio Bezerra no periódico Libertador, na

grande maioria, eram de cunho ufanista. Entoou glória aos membros da

Libertadora, incitou-os a lutar, agir e buscar todos os meios que levassem ao

fim da escravidão. O poeta enalteceu seus pares. A mocidade tinha como

missão engrandecer a pátria e marchar em direção ao futuro, ao progresso;

posição, no seu entender, que somente seria alcançada com o fim da

escravidão.

Na edição do dia 17 de fevereiro de 1881 do jornal Libertador um poeta

anônimo celebrou a mocidade libertadora:

Quando o gênio das nações O verbo de amor traduz, Convidando as gerações Para as conquistas da luz, O mundo inteiro ness'hora, Com quem marcha p'r'aurora D'uma esplendida manhã, Surge e busca o seu destino, Esse El-dourado divino – Do progresso a Cannan. Tal é a grande cruzada Deste sec'lo humanitario Que por bandeira sagrada Tem o symb'olo do Calvario; Tal a immensa romaria, A que tambem se associa A cearense mocidade, Que em favor dos opprimidos Acolhe e sente os gemidos Do anjo da liberdade. Contra a violencia corrupta Que o sec'lo tisnando vai Soou a hora da lucta, É tempo, ó moços, marchai:

120

Page 121: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Marchai que o dia da gloria Reserva sempre a victoria Que eternamente reluz, Para os heroes da epopea Apost'los da grande idéa, Que encerra o poema da cruz. Eia pois quebre-se a ponta Do septro do opressor, Não mais se veja esta affronta As faces do redemptor; Cortem-se as garras da féra, Do abutre que dilacera As entranhas da nação; Dê-se em fim no ardor da lucta Morte a negra prostituta, Que se chama – escravidão. Que essa hydra que oriunda Foi do crime e da torpeza Mais não mostre a face immunda Que horrorisa a natureza, Que essa megera fatal Filha da treva e do mal, Que deshonra o Christianismo, Para bem das gerações Seja, envolta em maldições, Aurada ao negro abismo. Tyranuos, sabei e crede Que o redemptor em verdade Sô chorou por quem tem sêde De justiça e liberdade: E si, Cains, despresaes Os tristes prantos e ais Dos captivos ultrajados; No fogo dos corações Vereis fundir-se os grilhões Que algemam os desgraçados.217

É possível notar que o poeta anônimo semelhante a Antônio Bezerra

preconizou a "grande cruzada" da mocidade libertadora em busca do prestígio.

Bezerra falou de "progresso", "futuro", "coragem" e "trabalho". O poeta anônimo

se referiu a "luz", "aurora", "esplendida manhã", "redemptor e 'lucta". Essas

palavras têm a mesma conotação quando empregadas na composição das

duas poesias.

O poeta anônimo apregoou uma luta contra a "negra prostituta", alegoria

à escravidão. O poeta fez alusão à mocidade como "apost'los da grande idéa"

217 Libertador,17 de fevereiro, Número 04, p. 06-07.

121

Page 122: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

que possuem como missão marchar em romaria rumo as "conquistas da luz”.

Tratava-se de "heroes da epopea", que tinham o encargo divino de acolher o

gemido dos "opprimidos" cativos. Semelhante a Bezerra de Menezes, Melo

Morais apregoou a liberdade enquanto uma conquista da mocidade e não dos

escravos. Os escravos eram os "opprimidos", "ultrajados" e "desgraçados".

Consideramos a linguagem um importante meio de composição e

expressão de sentimentos e ideais que permeiam o político e o social. Um meio

que torna possível ao historiador interpretar múltiplas experiências humanas,

através dessa mesma linguagem, apreendida enquanto representação em uma

determinada temporalidade.

Grande parte dos membros da Libertadora Cearense almejaram

alcançar uma mudança histórica onde seus planos e ações, impulsos

emocionais e racionais se transformassem em modelos de civilização. Também

tentaram atingir uma ordem social em que as relações humanas se dessem de

forma racional e planejada. De um certo modo a transformação da sociedade

viria com novas necessidades, fundidas em novas maneiras, gostos e

linguagens, permitindo a esses indivíduos alcançarem o progresso social com a

mudança de certos padrões comportamentais. E na medida que mudaram a

estrutura das relações humanas e desenvolveram novas funções sociais

baseadas num novo código de conduta davam movimento a uma nova

realidade histórica.

O trabalho servil era visto pelos membros da Libertadora Cearense

como uma ocupação inferior, pois, devido ao emprego de escravos, a

sociedade era forçada a adotar uma estrutura de trabalho relativamente

simples, servindo-se de técnicas que podiam ser utilizadas pelos escravos e,

que, por essa razão, tornavam-se menos permeáveis à mudanças, ao

melhoramento e à adaptação a novas situações. Daí vem a preocupação dos

abolicionistas das libertadoras em reformular a situação social de modo que

novas maneiras e comportamentos transformassem essa sociedade.

Os membros da Libertadora Cearense constituíam uma classe em

ascensão que prosseguia seu caminho com avanços e recuos. Era de certa

122

Page 123: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

forma um estrato social marginal com funções e características peculiares, que

pressionavam a partir de seu lugar social contra o sistema vigente. E na

medida que se destacaram e se firmaram em um forte grupamento, buscaram

pressionar os adeptos de um sistema contra o qual tinham fortes

animosidades. Seguiram suas paixões e sentimentos de forma direta e

espontânea, regulando sua conduta menos rigorosamente que a dos

respectivos estratos superiores. Suas compulsões eram de natureza direta,

intelectual e física, induzindo a sociedade a uma transformação social.

Uma das particularidades dessa sociedade libertadora consistiu na

difusão de um código de conduta buscando atingir todas as classes sociais,

defendendo a idéia de que todas as pessoas “capazes” ganhassem a vida

através de um trabalho remunerado e regulado. O trabalho passou a ser visto

não mais como uma das características das classes baixas. A mudança social

que buscaram estava embasada em novas relações de trabalho como também

em novos hábitos e padrões de comportamento.

Visto de perto, onde apenas um segmento desse movimento é

perceptível, as diferenças na estrutura da situação social entre os membros da

Libertadora Cearense podem parecer ainda consideráveis. Mas se for

focalizada toda amplidão do movimento ao longo do processo abolicionista

podemos notar que estavam diminuindo os grandes contrastes de

comportamento entre os membros. Essa redução dos contrates entre os

membros da sociedade cearense, essa mistura peculiar de padrões de conduta

que derivavam de níveis sociais bem próximos, eram altamente características

das sociedades libetadoras, e constituíam uma das peculiaridades mais

importantes do movimento abolicionista da Sociedade Cearense Libertadora

O movimento abolicionistas desencadeado pela Libertadora Cearense

disseminou padrões de conduta ocidentais cujas tendências e padrões

característicos, incluindo a ciência, a tecnologia, a literatura e outras

manifestações, em parte, foram assimilados pelos demais estratos da

sociedade.

123

Page 124: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Mas, por um lado, os membros da Libertadora Cearense, fazendo parte

de uma das camadas superiores da sociedade cearense foram compelidos a

manter, a todo custo, o controle das suas pulsões como uma marca de

distinção. Esses abolicionistas disseminaram pela sociedade cearense seu

próprio estilo de conduta e instituição. O mais das vezes sem uma intenção

deliberada, trabalharam numa direção que levou à redução das diferenças de

poder social e conduta entre duas camadas da sociedade, a saber, a pequena

e média burguesia e os grandes proprietários de terras. Nessa perspectiva a

literatura para os membros da Libertadora Cearense constituía num meio de

avanço em direção ao progresso social.

Grande parte dos membros da Sociedade Cearense Libertadora viam

nos padrões europeus e nas teorias do liberalismo clássico, nas idéias

evolucionistas e cientificistas, no industrialismo e cosmopolitismo, meios de

superação das relações sócio-culturais presentes no poderio senhorial e nos

valores oriundos desse tipo de relação. Acreditavam que novas relações de

trabalho, com o emprego de novas técnicas e tecnologias, como também novas

formas de produção e novo modelo político-econômico mudariam a estrutura

social de modo que eles próprios se inserissem na nova ordem.

Nesse sentido, é possível perceber nas poesias publicadas no

Libertador, nos enunciados de caráter progressista, a pregação de um mundo

moderno como forma de superar o arcaico. Utilizavam como forma de

convencimento artifícios lingüísticos. Nas poesias, a palavra ganha potência e

se transforma num importante instrumento de ação. Os discursos se

materializam em desejos, a retórica ganha força e se torna um importante

mecanismo de penetração social.

As relações que permeavam a estrutura social da sociedade cearense

estavam calcadas em práticas de coerção física e psicológica, sustentada e

executada muitas vezes pelos pais da Mocidade Cearense. Entretanto, essa

mocidade enxergava tais práticas como sendo responsáveis pelo atraso

político e econômico da província. Consideravam a realidade social cearense

bastante arcaica e propuseram uma nova ordem social sustentada, em boa

medida, por instituições fundamentadas num modelo ordenado e progressista.

124

Page 125: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

É possível perceber nos discursos proferidos pelos membros da

Sociedade Cearense Libertadora enunciados que culpam o atraso da estrutura

política e econômica da província e o imputam ao modelo arcaico das relações

sociais praticadas pelas instituições vigentes. A literatura era para esses

sujeitos uma instituição capaz de regenerar e reconstruir os aspectos políticos

e morais da sociedade cearense.

A coluna Litteratura, presente no periódico Libertador, combatia a

realidade social vigente, dando ênfase, principalmente, ao aspecto discursivo

que entendia a escravidão como a grande responsável pela decadência da

ordem social, política e econômica em voga naquele momento. A imagem do

progresso presente em grande parte das poesias publicadas no periódico

contrastava com o modelo político vigente, que por sua vez, se encontrava em

deterioração.

A literatura para os membros da Sociedade Cearense Libertadora tinha

o papel político e moral de regeneração da sociedade. As letras se constituíam

em importante mecanismo de transformação social, que tinha a função de

doutrinar a sociedade, seguindo as premissas teóricas da época, positivista,

determinista e evolucionista. As letras também eram um importante meio de

ação forjada nas práticas discursivas e em produções periódicas, sendo ainda,

um importante instrumento de luta, elemento doutrinador e legitimador. Nesse

sentido, a sessão Litteratura foi um importante instrumento doutrinário, onde a

palavra tornou-se arma em ação, que tinha a função de regenerar o caráter

político e moral da sociedade cearense.

3.3 – GALENO: LENDAS E CANÇÕES POPULARES

Galeno também foi membro da Libertadora Cearense, mas

diferentemente de outros abolicionistas que escreveram na coluna Litteratura,

deu atenção ao escravo, liberto ou libertando, enquanto indivíduo que pensava

e sentia como tal. Análogo a Mello Moraes também buscou reivindicar, na

edição de número 08, do dia 23 de maio de 1881 do jornal Libertador, a

125

Page 126: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

pesarosa condição do escravo na sociedade brasileira. Buscou evidenciar o

difícil percurso da vida de um escravo.

Nessa poesia Galeno se referiu ao cativo como um desafortunado, um

infeliz por ter presenciado a morte da mãe e não poder chorar:

Oh! Sim morreu! Chorei tanto, quando morta a vi no chão..., o magro corpo estragado, pelo azorrague e grilhão..., que o meu senhor castigou-me, mandando calar-me então"; também por ter apanhado ainda criança quando os filhos do seu senhor insistiam em chorar, "bem pequeno... inda criança , começou o meu penar! Duas, três vezes por dia, vinham-me o corpo açoutar ... que os filhos de meus senhores chorava no seu brincar"; ainda por ser forçado a trabalhar durante a infância," fui crescendo, a minha infancia, gastou-se no padecer, quasi nu, ao sol e chuva, trabalhava sem poder.

Em 1865, Juvenal Galeno218 publicou Lendas e Canções Populares,

obra que retratou os costumes e práticas sociais dos tipos existentes na

população do Ceará, do rude lavrador passando pelo vaqueiro, pescador e

escravo. No prólogo da primeira edição escreveu:

Reproduzindo, ampliando e publicando as lendas e canções populares, tive por fim representai-lo tal qual êle é na sua vida íntima e política...

Se o consegui, não sei; mas para consegui-lo procurei primeiro que tudo conhece o povo e com ele identificar-me. Acompanhei-o passo a passo no seu viver, e então, nos campos e povoados, no sertão, na praia e na montanha, ouvi e decorei seus cantos, suas queixas, suas lendas e profecias, - aprendi seus usos, costumes e superstições falei-lhe em nome da Pátria e guardei dentro de mim os sentimentos de sua alma, - com ele sorri e chorei, - e depois escrevi o que ele sentia, o que cantava, o que me dizia, o que me inspirava.219

Galeno denunciou nessa obra, em vários momentos, a funesta condição

do cativo. Descreveu através de versos as amarguras, emoções, paixões e

gostos sentidos pelos escravos. Dos poemas presentes na obra, Cativeiro é

aquele que melhor expressa o lamento do escravo por ser privado da

liberdade. O poeta comparou a presença da liberdade na vida do pássaro e, a

ausência na do escravo. A analogia foi o instrumento preciso utilizado pelo

poeta para demonstrar ao leitor o desdouro da condição do cativo.

Cativeiro

218 Juvenal Galeno da Costa e Silva nasceu em 27 de setembro de 1836, na cidade de Fortaleza. Escreveu Geraldo Torres sobre o poeta: “[...] deixando-nos um valioso acervo de realizações de interesse permanente porque espelham toda a estrutura sócio-cultural de uma época. A essa fonte de informações poderão recorrer sempre todos os que precisarem – hoje e no futuro – conhecer os costumes básicos do homem nordestino, do Ceará por excelência, porque o nosso poeta, sempre adstrito ao realismo e à verdade, deixou obra de grande, sério e precioso conteúdo sociológico [...]” Ver: VERAS, José Geraldo Torres. Juvenal Galeno o Poeta do Povo. Fortaleza, Imprensa Oficial do Ceará, 1994. p. 28. 219 GALENO, Juvenal. Lendas e Canções Populares. 4o edição. Fortaleza: Casa Juvenal Galeno, 1978. p. 407-408.

126

Page 127: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Passarinho, vai-te embora Dêste raminho fronteiro, Que em meu rosto cor da noite, De prantos cai um chuveiro... Vai cantando a liberdade, Que eu choro o meu cativeiro. És ditoso; alegre e solto, Tu cantas o ano inteiro; Não te escute o desgraçado, Cuja vida é o desespero! Vai cantando a liberdade! Que eu choro o meu cativeiro. Tua lei é o teu desejo, Sempre assim desde janeiro! Minha lei – capricho alheio... Meu carinho o mais fragueiro! Vai cantando a liberdade Que eu choro meu cativeiro Tens os filhos no teu ninho, Linda esposa, amor primeiro... Ai de mim, que na ventura Nunca sou nem derradeiro! Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro Quando é noite, tu descansas Sôbre o teu ramo altaneiro, E eu por entre meus soluços, Ferido neste espinheiro... Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro. Tua lei é o teu desejo, Sempre assim desde janeiro! Minha lei – capricho alheio... Meu caminho o mais fregueiro! Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro. Entre os teus nos verdes prados, Tu divagas prezenteiro; Eu só nas lidas do campo, Ou gemendo no terreiro... Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro. De manhã, quando despertas, Vens banhar-te no ribeiro, E eu de enxada ao ombro marcho Mais triste para o cafeeiro! Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro. Como invejo a tua vida, Teu destino lisonjeiro! Bem quisera ser – não posso...

127

Page 128: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

No riso teu companheiro!... Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro. Bate as asas, vai-te embora... Voa ao céu, voa ligeiro; Pede a Deus misericórdia... Que me salve justiceiro... Vai cantando a liberdade, Que eu choro meu cativeiro.220

Além do Cativeiro ainda estão presentes na obra os poemas A Escrava

e A Noite na Senzala. Versos que também retrataram os sentimentos de rancor

e tristeza experimentados pelos cativos. No poema A Escrava, Galeno revelou

a recordação de uma cativa que viu chorar numa senzala. Era uma "pobre

velha, sentada junto a fogueira, nos contava assim a lenda duma escrava

brasileira." A escrava por quem a "velha" chorava chamava-se Maria,

proveniente do Congo, capturada e embarcada ainda jovem para ser vendida

no Brasil:

A Escrava Não posso lembrar-me dela, Sem logo os olhos molhar... Pois neste vale de lágrimas Sem trégua foi o seu penar; Não pude nunca esquecê-la Nas horas de recordar! Seu pranto correndo em fio Seus gritos no padecer, Aquela doce toada De seu dorido dizer... Me ficaram dentro d'alma Com seu penoso gemer! Inda a escuto...quando chora Alta noite a viração, Como ouvi-a na senzala Com profunda comoção, Quando a infeliz recordava Seus males... ao grilhão! Coitada dela, coitada... No cativeiro cruel! Nascera livre na pátria,

220 GALENO, Juvenal. Op. cit., p. 407-408.

128

Page 129: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Como as auras do vergel... E depois quantos espinhos... Que amarga taça de fel! Vou contar-vos sua história... Francisco, dá-me um tição; Antônio, traz-me o cachimbo, Tira o fumo no surrão: Silêncio agora... escutai-me, Meus filhos, muita atenção. E fumando a pobre velha Sentada junto a fogueira, Nos contava assim a lenda Duma escrava brasileira. Era Maria – a cativa De atribulado viver – Filha do Congo, portanto Livre fora o seu nascer, Como o vento do deserto Nas terras do seu prazer. Passara a ditosa infância Na sua pátria natal, Ora gozando os carinhos Do regaço maternal, Ora brincando contente A sombra do bananal. Ficou moça... veio a cisma, Com ela veio o amor... Que doce afeto primeiro... Que sonhos... quanto langor! Maria amava extremosa... Amava com muito ardor. Quando um dia... passeando Sozinha pelo pomar, Viu-se preia dos infames, Viu seu destino mudar... Não gritou...que o não podia... Chorando viu-se amarrar! Chorando viu-se embarcada... Vendida em breve também... Curtindo extrema saudade De suas terras d'além... Contar-vos seus sofrimentos, Ai, quem podera? Ninguém! Que o diga porém o canto, Aquela triste canção, Que muita vez escutei-lhe, Quando á noite, no grilhão, Seu destino lamentava Ao gemer da viração:

129

Page 130: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

[... ]221

No poema A Noite na Senzala, Juvenal Galeno demonstrou o desgosto

que nutria pela escravidão. Declamou a mágoa que sentia pelo traficante e

pelo proprietário de escravos.

A Noite na Senzala Maldição sobre aquelle que imano Em seus lares sustenta a opressão; Sobre aquele que a pátria envilece... Traficando...vendendo um irmão! Oh, que nódoa na história brasília... Maldição... maldição... maldição!... Que noite... que noite aquela, Que na senzala passei! Que cenas... que horrível quadro Ai, chorando contemplei! Desde então tornei-me inimigo Dos malvados opressores... Carpindo tantos horrores, O pobre cativo amei. Amei-o sim... deplorando As dores do meu irmão, Que por lei a mais infame Morria na escravidão; Qu'eu via então miserável, Pelo trabalho alquebrado, Quase nu... ali deitado Sobre trapos, sobre o chão! Amei-o pois padecia; Amei-o... senti-lhe a dor; Amo o fraco, odeio o forte Quando exerce o seu rigor: Amo o gemido, o queixume Do cativo desditoso, Como odeio impiedoso O desumano senhor Pobre irmão! Vinde tiranos, Alta noite o contemplar; Vede... dorme o desgraçado Sem da ventura o sonhar... O cristão... o brasileiro... O cativo miserando... Té que venha o algoz nefando Com chicote o despertar!

221 Ibidem. p. 278-280.

130

Page 131: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Aqui fraco delirando Aquele que não comeu, Perto a mãe, a desgraçada, Que todo o dia gemeu... Vendo o filho de sua alma Sob os açoutes gritando... O sangue seu derramando... Té que os sentidos perdeu! Ali o velho que chora Com tristeza e dissabor, Apesar de escravo, honrado, Dá largas a sua dor... Pois viu a filha donzela, A sua filha querida, Que rôla imbele... perdida... Nos braços de seu senhor! Além a esposa aviltada Aos olhos do esposo seu; A triste mãe sem o filho, Que o fero branco vendeu! O pobre filho que aflito Viu sua mãe açoutada... O quadro da lei malvada Da pátria que Deus me deu! Ó, vinde, vinde, tiranos, Contemplai-os sobre o chão, Enquanto meia-noite Geme a fria viração... Chorando talvez sentidas Tantas dores e torturas, Desta vida as amarguras, Ás mágoas da escravidão! Maldição sobre aquele que imano Em seus lares sustenta a opressão; Sobre aquele que a pátria envilece... Traficando... vendendo um irmão! Oh, que nódoa na história Brasília... Maldição... maldição... maldição! ...222

Das quatro poesias citadas acima, as três primeiras reproduziram a fala

do escravo. A poesia foi uma espécie de lamento declarado pelo próprio

escravo. O cativo apresentou ao leitor sua aflição, sua dor e o tormento da

escravidão. No verso A escrava quem chorou sua sina foi uma cativa "pobre

velha", que sentada junto a uma fogueira recordou a lenda de uma escrava

brasileira, "– Não posso lembrar-me dela, sem logo os olhos molhar... pois

neste vale de lágrimas sem trégua foi o seu penar; não pude nunca esquecê-la 222 Ibidem., p. 211-213.

131

Page 132: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

nas horas do recordar!". Na poesia A noite na Senzala, por sua vez, não foi

mais o escravo quem evidenciou sua condição, quem chorou a triste sorte,

quem pranteou o infortúnio de sua vida foi o próprio abolicionista Juvenal

Galeno. O poeta denunciou a atrocidade do sistema escravista e fez duras

censuras aos traficantes e proprietários de escravos.

Praticamente com o mesmo teor do verso A noite na Senzala, Juvenal

Galeno escreveu O Abolicionista, em 1882, e A Abolição, em 1887. Assumia

claramente uma postura radical contra o sistema escravista. Do mesmo modo

que seus companheiros da Sociedade Libertadora Cearense se denominou

Soldado Abolicionista.

Pregou a militância contra a escravidão, que segundo ele era um

sistema de afronta, por desrespeitar todos os princípios relativos ao homem,

principalmente aqueles relativos ao cristianismo. No verso O Abolicionista

prevaleceu, dentre outros, os termos "santos evangelhos", "alma" e "irmãos",

O Abolicionista Sou com todo o entusiasmo Soldado abolicionista! Da falange remidora Meu nome escrevi na lista; E nos santos evangelhos De minh'alma, pondo a mão, Jurei dar a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! Que me importa que me condene O desumano negreiro? Quem seus irmãos compra e vende. Eu desprezo sobranceiro! Amo somente o que é nobre, Amo somente o que é são; E darei por isso a vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando a praça Nas hostes da abolição! Enquanto houver um cativo Na minha pátria adorada, Não darei costas à luta, Não largarei a estacada! Meu cartucho derradeiro

132

Page 133: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Queimarei na grande ação; E darei a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! Antes, porém, da batalha Vitoriosa e final, Jamais cesse o tiroteio... Não durma quem é leal: Avante, meus camaradas! Ninguém descanse ora, não, Que eu darei a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! Pouco a pouco embora! Avante! Ah, sob o nosso estandarte Proteção ao flagelado... Sejamos seu baluarte!... Derrocando o cativeiro, Eduque-se a multidão! Que eu darei a própria vida Pra acabar a escravidão!... Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! E vós, fugi de vergonha, Sanhoso espumando, ó mar... Quando forem traficantes Nossos irmãos embarcar! Na praia deixando a vítima Da mas nefando opressão! Que eu darei a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! Já cintila a estrela d'alva Perto o dia em que o Brasil Ai mundo dirá: - não tenho Mais elemento servil! Os prantos do cativeiro Mais não banham meu torrão! Ah, darei a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição! Que danças então, que festas Ao redor de mil fogueiras, Onde arderão os malditos Troncos, chicotes, coleiras... Ao som dos hinos dos livres, Ao som da minha canção!... Ah, darei a própria vida Pra acabar a escravidão! Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição!

133

Page 134: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Ó pátria, pátria, que glória! Que prazer, que f'elicidade! Não coraras mais de pejo No meio da humanidade: Sim, jurei, sentando praça Nas hostes da abolição!... Pra acabar a escravidão! Ah, darei a própria vida Ergueremos nossas frontes, Fitando a civilização!... 223

Escrito cinco anos depois do poema O Abolicionista, o verso A abolição

também condenou a escravidão. Espécie de missiva que reclamou a plena

abolição dos escravos no império brasileiro, o poema A Abolição apresentou

também um vigoroso conteúdo cristão. Nesse verso Juvenal Galeno apelou

constantemente aos valores inerentes ao cristianismo.

A Abolição Salve, salve, liberdade! Não mais o vil cativeiro Livre exulte a humanidade Neste império brasileiro! Neste império brasileiro Não mais escravos, não mais; Todos livres no terreiro, No meio dos cafezais! Nos poços da cristandade De livres encham-se as salas, Que o jogo da liberdade Se acenda e queime as senzalas. Se acenda e queime as senzalas E ensanguentados grilhões! Da f'elicidade as opalas Cintilam nos meus clarões! Não mais de nossas bandeiras As côres ... enegrecidas! Nesta terra brasileira Somente frontes erguidas! Somente frontes erguidas, De livres – tocando o céu ! E do azorrague as feridas Da cicatriz sob o véu!

223 Ibidem. p. 499-502.

134

Page 135: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Que chorem debalde ignavos Os desumanos senhores, Do vício e ócio – escravos, Escravos de seus credores. Escravos de seus credores ... O chão aprendam a cavar; Que o reguem com seus suores Pra nova planta brotar. A nova planta – igualdade! Planta de amor, de Jesus... Que abraçou a humanidade, Abrindo os braços na cruz. Abrindo os braços na cruz, Cristo não fez exclusão: Raiou a aurora da luz ... Salve, salve, redenção! Salve, sim, sol radiante, Que surge nesta nação! Salve! Ergueu-se a rola avante A onda da abolição! A onda da – abolição Já lava a pátria gentil! Morre a treva – escravidão... A luz inunda o Brasil!...224

3.4 – ROMANCE: REALISTA NATURALISTA

A poesia não foi o único gênero literário utilizado por intelectuais,

populares e abolicionistas, como meio de criticar o sistema escravista. O

romance, especificamente o romance realista naturalista225 também foi um

importante instrumento de contestação.

O romance realista naturalista se caracterizou pelo objetivismo como

negação do subjetivismo romântico e visualizava o mundo voltado para aquilo

que está diante e fora dele, o não-eu; como também lançava mão do

224 Ibidem. p. 524-525. 225 O romance naturalista foi inaugurado na literatura universal, em 1867, por Émile Zola, com a obra Thérése Raquin, e no Brasil, em 1881, com a obra O mulato de Aluísio Azevedo.

135

Page 136: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

materialismo que negava o sentimentalismo e a metafísica. Rejeitava o

sentimento nacionalista e o passado se preocupando totalmente com o

presente, o contemporâneo. Ainda apresentou antipatia pela burguesia, atacou

aquilo que foi considerado célula mãe da classe, a família. Ideologicamente os

autores desse período eram antimonárquicos e assumiam uma defesa clara do

ideal republicano.226

A obra O mulato que inaugurou o naturalismo no Brasil foi escrita por

Aluízio Azevedo227, em 1881. Diferentemente dos romances que tinham como

objetivo divertir e comover, o naturalismo teve como objetivo incomodar o leitor

da época. Segundo o escritor Sânzio de Azevedo, em nota de introdução da

edição de O mulato de 1998: “O Mulato, em 1881, conseguiu, pelo menos a

princípio, despertar não a indignação dos leitores contra a hipocrisia reinante

na Província, mas o ódio dos próprios conterrâneos que não gostaram nada de

se ver pintados com tintas tão fortes..."228

Esta obra foi um retrato, um libelo cáustico contra a vida e os costumes

maranhenses da época. O Maranhão naquele momento era uma província

caracteriza por uma sociedade escravista influenciada por padres, pela

servidão da mulher e pelo predomínio do português sobre o nacional.229

Um dos principais aspectos do livro é a escravidão, outro é o preconceito

de cor, a adaptação do mestiço à sociedade e o conflito social disso resultante.

A escravidão se apresentou através do drama do personagem principal, 226 NICOLA, José de. Literatura Brasileira das origens aos nossos dias. 3o edição. São Paulo: Ed. Scipione, 1989. 227 Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu no dia 14 de abril de 1857 em São Luís do Maranhão. José de Nicola escreveu sobre o autor: “Aluísio escreveu uma obra propositalmente diversificada: de um lado os romances românticos, que o próprio autor chamava de comerciais ; de outro os romances naturalistas, chamados de artísticos. Ao primeiro grupo pertencem Memórias de um condenado, Mistérios da Tijuca, Filomena Borges, O esqueleto e A mortalha de Alzira, descontado o romance de estréia, Uma lágrima de mulher. São romances de consumo, que seguem perfeitamente a melhor receita folhetinesca. Ao segundo grupo, entre outros, pertencem os três romances maiores de Aluízio: O mulato, Casa de Pensão e O cortiço [...]” Ibidem. p. 136. 228 AZEVEDO, Sânzio. Introdução. In: AZEVEDO, Aluízio. Idem. p. 03. 229 Fernando Góes escreveu na introdução da obra O Mulato, em 1971, "A situação que o Maranhão está vivendo não é das melhores. A aura abolicionista , que varre todo o Norte começa também a soprar por ali, talvez o reduto mais forte e intransigente do escravismo, na região. E a intensa procura de trabalhadores, disputados a bons preços pelos proprietários das lavouras cafeeiras do sul, num auspicioso florescimento, faz com que os agricultores maranhenses transfiram, aos poucos, o braço escravo – que tem sido o sustentáculo do Maranhão, como do resto de todo o Brasil – para aquela zona. Como conseqüência, assiste-se ao despovoamento das fazendas, ao abandono das lavouras de algodão e dos engenhos, à desorganização completa da produção... É uma época ruim para a província, época de desolação e de decadência, que se vai refletir agudamente sobre os costumes,". Ver: GOES, Fernando. Introdução. In: AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. São Paulo: Martins Claret, 1971. p. 11.

136

Page 137: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Raimundo oriundo dela e por isso vítima da sociedade que o continha; ainda

através dos sofrimentos, dos bárbaros castigos impostos aos cativos, o

romancista não deixou de descrever o instrumento de tortura que era o tronco,

"com os buracos redondos, que serviam para prender as pernas , os braços ou

o pescoço dos escravos"230, da vida que levavam nas fazendas e nas cidades,

da situação dos forros, largados pelo sertão, aos bandos. E também tratou da

influência das negras sobre as sinhás-donas, contando-lhes intimidades,

despertando, aguçando-lhes maliciosamente a sensualidade. O escravo, de

certo modo, tornando-se senhor, influenciando, quase dominando os amos, a

senzala passando a impor muitos de seus costumes ao sobrado, à casa

grande. Tudo isso se mistura ao ciúme, ao despeito, à humilhação, à vergonha

das brancas, vendo-se tantas vezes preteridas pelos maridos, que buscavam

nos dengues, no amor lascivo das negras, a plena satisfação do sexo.

Aluízio Azevedo descreveu nos primeiros capítulos de O Mulato as

atividades e práticas de escravos que transitavam pelo espaço urbano do

Maranhão.

Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes; as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças d'água passavam ruidosamente a todo instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem sem-cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.231

No trecho acima, Aluízio Azevedo pintou o ambiente de São Luís à

maneira naturalista. A cena transmite ao leitor um certo desconforto, um leve

incômodo. As fortes tintas usadas pelo escritor para ilustrar o ambiente urbano

de São Luís passam para quem lê o livro uma imagem hostil da capital do

Maranhão.

Nesta cena a representação do escravo urbano que realiza a atividade

do ganho apareceu pela primeira vez. O escravo de ganho foi uma figura

constante nas cidades brasileiras, principalmente, a partir da segunda metade

do século XIX.

230 AZEVEDO, Aluízio. O Mulato, p. 14 231 Ibidem. p. 07.

137

Page 138: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Aluízio Azevedo, além de evidenciar os costumes dos escravos e

libertos nas atividades relacionadas às transações de produtos e serviços pelas

ruas de São Luís, também descreveu o “baile dos pretos”, espaços lúdicos de

sociabilidade de africanos e afro-descendentes:

— os chinfrins , como lhes chamava o meu defunto Espigão, acudiu Maria do Carmo. Conheço! Ora se conheço!... Bastante quizília tivermos nós por amor deles!...

— É uma sem-vergonheira! Ver as escravas todas de cambraia, lagos de fita, água de cheiro no lenço, a requebrarem as chandangas na dança!...

— Ah, um bom chicote!... disseram as duas velhas ao mesmo tempo. – E elas dançam direito?... perguntou a do Carmo.

— Se dançam!... O serviço é que não sabem fazer a tempo e a horas! Lá pra dançar estão sempre prontas! Nem o João Enxova!

A indignação secava-lhe a voz. — Até parecem senhoras, Deus me perdoe! Todas de fazerem de gente! Os

negros a darem-lhes excelência. “ E porque minha senhora p’ ra cá! Vossa senhoria pra lá!” É uma pouca vergonha, a senhora não imagina!... Uma vez que fui espiar um chinfrim, porque me disseram que meu defunto tava lá metido, fiquei pasma! E o melhor é que os descarados não se tratam pelo nome deles, tratam-se pelo nome dos seus senhores!... não sabe o Filomeno?... aquele mulato do presidente...Pois a esse só davam ”Sr. Presidente!.” Outros são “Srs. Desembargadores, doutores, majores e coronéis!”. Um desaforo que devia acabar na palmatória da polícia!232 Azevedo também fez referência aos mocambeiros, negros libertos que

viviam em quilombos localizados no sertão do Maranhão.

Os mocambos formavam grupo á parte; nunca apareciam publicamente, viviam escondidos nos seus quilombos e só se mostravam na estrada real para atacar os viajantes. Os agregados, eram pretos forros, forros em geral com a morte dos seus senhores, e que, habituados desde pequenos ao cativeiro, não tendo já quem os obrigasse a trabalhar e não querendo sair do sertão, ficavam por aí ao deus-dará, pedinchando pelas fazendas um bocado de arroz, para matar a fome, e um pedaço de chão coberto para dormir...233

As práticas e costumes inerentes ao sistema escravista ilustram a obra

do começo ao fim, mas o ponto nefrálgico do livro é o preconceito da cor, o

conflito social resultante da inserção do mestiço na sociedade. A primeira

indicação do preconceito contra o negro na sociedade maranhense surge no

segundo capítulo. Num diálogo entre o cônego Diogo e o rico comerciante

Manuel:

— ora deixe disso! Retrucou Diogo, levantando-se com ímpeto. Nós já temos por aí muito padre de cor!

[...] — ora o que, homem de Deus! É só – ser padre! é só ser padre! E no fim das

contas estão se vendo, as duas por três, superiores mais negros que as nossas cozinheiras! então isto tem jeito?... O governo – e o cônego inchava as palavras – o governo devia até tomar uma medida séria a este respeito! Devia proibir aos cabras certos misteres!

[...]

232 Ibidem. p. 52. 233 Ibidem. p. 137.

138

Page 139: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Pois você queria ver sua filha confessada, casada, por um negro? Você queria seu Manuel, [...] se você viesse a ter netos queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais negro que essa batina?234

O diálogo acima estabelecido entre os dois personagens, Diogo e

Manuel, diz respeito à figura de Raimundo, personagem central no enredo do

livro. Raimundo é um homem de 26 anos de idade, “tez morena e amulatada,

mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e

elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa.”235 Raimundo nasceu

“numa fazenda de escravos na vila do Rosário.”236 Seu pai era o negociante de

escravos José da Silva “que havia enriquecido no contrabando dos negros da

África”.237 Sua mãe era a negra Domingas, escrava que, depois de ter dado à

luz Raimundo, recebeu de José a carta de alforria.

Após a morte de José da Silva, Raimundo foi enviado ainda criança à

Europa para estudar e, ao retornar já adulto a sua terra Natal, Maranhão,

deparou-se com uma sociedade hostil e agressiva aos mestiços. Raimundo

voltou ao Maranhão com o propósito de liquidar os bens herdados do pai e

para tentar reconstruir seu passado. Descobrir quem era afinal sua mãe, “quem

seria ela? [...] talvez irmã daquela santa senhora que foi para ele uma segunda

mãe [...] Mas porque tanto mistério? [...] Seria alguma história, a tal ponto

vergonhosa, que ninguém se atrevesse a revelar-lhe?”.238 Somente no final do

livro, especificamente no capítulo XII, Raimundo descobriu que sua mãe era a

negra Domingas. Uma negra louca que morava na antiga fazenda de seu pai:

“[...] ela as vezes passava meses inteiros na fazenda; os pretos gostavam de

ouvi-la cantar e vê-la dançar. Doida varrida! Estava sempre resmungando lá

consigo...”239.

O enredo do livro gira em torno do conflito de Raimundo de não ser

aceito pela sociedade maranhense por ser filho de uma ex-escrava. Aluísio

Azevedo escreveu O mulato em tom de denúncia. Buscou chocar e mostrar à

sociedade escravista do Maranhão e do Brasil as nefastas relações existentes

no sistema escravocrata.

234 Ibidem. p. 20. 235 Ibidem. p. 36 236 Ibidem. p. 35 237 Ibidem. p. 41 238 Ibidem. p. 45 239 Ibidem. p. 48.

139

Page 140: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

No final da década de 1880, uma nova intelectualidade surgiu na

província do Ceará, foram denominados de Novos do Ceará, esse grupo de

indivíduos era bem mais distinto do que os da Mocidade Cearense, vinham dos

setores médios e baixos da província, profissionais liberais, pequenos

agricultores, funcionários do governo e outros. Suas posturas eram variadas

iam da ortodoxia comtiana até o simbolismo.

As praticas letradas dos Novos do Ceará se diferenciaram daquelas da

Mocidade Cearense, principalmente, no que diz respeito ao modo de ação, pois

evitaram o modelo retórico, acadêmico e científico. Teceram duras críticas aos

setores abastados da sociedade cearense, ao consumismo exacerbado

praticado por essas camadas.

Esse grupo utilizou a literatura para intervir na esfera dos poderes

públicos. Suas práticas discursivas legitimavam posturas contra a ordem

burguesa. A literatura foi para esses sujeitos um importante mecanismo de

combate contra os valores burgueses, cabendo às letras uma função

missionária contra o avanço da ordem burguesa na província do Ceará.

Diferentemente daqueles jovens que compunham a Mocidade Cearense esses

intelectuais não enxergaram na literatura uma instituição regeneradora da

sociedade.

A literatura era para esses sujeitos o elemento capaz de expressar e

compreender o real, sendo ainda um importante meio de ação política,

intelectual, responsável por criar desejos e exercer no público leitor certas

experimentações interpretativas do real. Um dos principais meios de divulgação

dos seus anseios foi o periódico O Pão, que circulou na província do Ceará de

1892 a 1896. Esse jornal se constituiu o principal órgão da Padaria Espiritual.

A Padaria Espiritual surgiu em maio de 1892 e teve como intenção ser

uma sociedade literária de caráter “informal”. Dessa forma ficou conhecida

pelos críticos literários como uma sociedade de boêmios, sarcásticos e

revolucionários. Seus membros combatiam principalmente os valores e

desejos burgueses. O mais radical de seus sócios foi Adolfo Caminha.

140

Page 141: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Caminha escreveu periodicamente na coluna Sabbatina do jornal O

Pão, expressando veemente seu descontentamento com os valores da

burguesia e com os ditames da ordem capitalista, também foi contra o

aformoseamento urbano das cidades da província cearense e contra o

controle e a disciplina pregados pela nova ordem. Contestou tenazmente a

cultura burguesa e a racionalização urbana, características do sistema

capitalista que estava avançando na província, ameaçando os valores

tradicionais e a sociedade rural.

A burguesia ou os setores emergentes da capital cearense foram, sem

sombra de dúvidas, a classe social mais perseguida pelos membros da Padaria

Espiritual. Caminha criticou, principalmente, a lógica do trabalho capitalista e os

modos e valores presentes numa sociedade burguesa. Segundo o autor as

relações trabalhistas presentes na ordem burguesa condicionavam

completamente o trabalho às leis do capital, ou melhor dizendo, aos interesses

do mercado. Fazendo, desse modo, o trabalhador proletário trabalhar somente

para suprir suas necessidades básicas e sustentar as extravagâncias dos

proprietários burgueses. Ainda acusou que numa sociedade burguesa a

satisfação pessoal se dava, apenas, com a aquisição de bens materiais, o que

tornava as pessoas pobres espiritualmente.

Em 1893 o escritor Adolfo Caminha240 publicou A Normalista, obra de

caráter naturalista escrita no Ceará e inspirada nos costumes e práticas sociais

da população local. O crítico literário Sânzio de Azevedo, na introdução de uma

edição do romance, escreveu, “escritor cuja vida não se pode separar

rigorosamente da obra”.241 De fato, os três romances escritos pelo autor, A

Normalista, Bom Crioulo e a Tentação são o resultado de sua insatisfação com

a sociedade que o cercava. A Normalista foi um revide à sociedade

fortalezense do final do século XIX , pelo fato de não ter aceito sua união com

240 Adolfo Ferreira Caminha nasceu na cidade de Aracati no dia 29 de maio de 1867. Ainda jovem ingressou na Escola Naval, sendo Guarda Marinha em 27 de novembro de 1885 e segundo tenente em 27 de novembro de 1888. Participou da agremiação denominada Padaria Espiritual, onde foi expulso em 1896. Também foi jornalista e também funcionário. Publicou os romances A Normalista, Bom Crioulo e Tentação, como também os contos: Judite e Lágrimas de Um Crente e, os poemas: Vôos Incertos além de Cartas Literárias. 241 CAMINHA, Adolfo. A Normalista. Rio de Janeiro: Ed. Tecnoprint, 2001. p. 18.

141

Page 142: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

uma mulher casada, o que acabou em escândalo.242 Na obra A Normalista,

Adolfo Caminha buscou salientar uma tendência dos personagens para a

paixão, tara, cobiça e hipocrisia.

A Normalista praticamente gravita em volta de três personagens

principais, são eles: João Marciel da Mata Gadelha, conhecido como João da

Mata; sua afilhada Maria do Carmo e o Zuza, filho do coronel Souza Nunes.

João da Mata é um amanuense de vida modesta:

[...] esgrouvinhado, esguio e alto, carão magro de tísico, com uma cor hepática denunciando vícios de sangue [...] noutros tempos fora mestre-escola no sertão da província, de onde se mudara para a capital por conveniências particulares [...] De uma feita escapou milagrosamente de ser preso por defloramento numa menor [...] por sinal que tinha uma cicatriz oblonga e funda na têmpera esquerda, e não largava o mau de roer o canto das unhas [...] A sua grande paixão, o seu fraco era a Maria do Carmo, a menina de seus olhos, a afilhadinha.243

Maria do Carmo era uma jovem estudante de 15 anos, “esplêndido tipo

de cearense morena, olhos de cor de azeitona onde boiava uma névoa de

ingenuidade, cabelos cumpridos descendo até a altura dos quadris,

desmanchando-se em ondas de seda finíssima [...], carnes rijas, e cuja atenção

volvia-se insistentemente para o Zuza”.244 Zuza, filho do coronel Souza Nunes,

“passava uma vida regalada, usufruindo largamente a fortuna do pai avaliada

em cerca de cem contos de réis. O coronel franqueava a burra ao filho com

uma generosidade verdadeiramente paternal. Queria-o assim mesmo, com

todas as suas manias aristocráticas e afidalgadas, com os seus jeitos

elegantes, arrotando grandeza e bom-gosto...”245

242 O escritor Cavalcanti Proença na biografia de Caminha escreveu, “O oficial da marinha se apaixona pela esposa de um oficial do exército , escândalo grande em cidade pequena. Rivalidade de forças armadas; a moça, de dezenove anos, rompe com o marido, com a sociedade, com os preconceitos, e vai viver com o seu amado. A cidade ficou em brasa, como incêndio em estopa ou serragem. Uma que outra labareda, pequena; o mais, pura brasa, temperatura elevadíssima. Os alunos da escola militar querem “ vingar a farda do exército”, as famílias puritanas exigem que seja transferido do Ceará o profanador dos bons costumes. Faça suas aventura onde quiser menos em Fortaleza... Correm os dias e parece que o escândalo vai terminar ,quando o Ministro chama o oficial a corte. Ele vem, conta a verdade, o Ministro Acha que o assunto nada tem haver com os regulamentos navais, e o casal continua em Fortaleza Feliz... O novo ministro, Almirante Wandenkolk, manda chama-o urgentemente ao Rio. A intriga renasce e Caminha é transferido para um navio que está de saída para a Europa. Tenta explicar ao comandante a impossibilidade de viajar assim, de uma hora para outra, diz que pedirá uma licença para tratar de saúde. Inútil. É acusado de prática de rebeldia... pede demissão da marinha... em fevereiro de 1890 obteve a demissão.” Ver: PROENÇA, Cavacalti. Biografia de Adolfo Caminha. In: CAMINHA, Adolfo, A Normalista, Rio de Janeiro: Ed, Tecnoprint, 2001. 243 Ibidem. p. 16-7. 244 Ibidem. p. 16-7. 245 Ibidem. p. 35

142

Page 143: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Pode-se perceber o funcionamento do romance pela descrição que o

autor faz das qualidades que caracterizam os personagens. João da Mata,

além de ser uma figura que apresenta desvios morais e sinais de desequilíbrio,

tinha a aparência, que de início, já causa repugnância. Sua descrição física

provoca repulsa no leitor. Sua afilhada, ao contrário, é uma figura pura, ingênua

e face à depravação da sociedade, não possui maldade nas suas atitudes. O

Zuza, por sua vez, é um jovem que estava sujeito às manias do pai. Pode-se

considerar Zuza o porta voz do autor no romance. Zuza diz ao pai que

despreza a cidade pequena, chama “canalhismo de província ao falatório sobre

seu namoro”246; e, quando um jornalzinho o calunia, acha a “província

estúpida” e vai para casa com “nojo do Ceará”. Quando melhora o humor, julga

com menos rigor, mas ainda pensa com desgosto na “vida pacata da

província”, em que “se trabalha um quase nada e fala-se muito da vida alheia”.

Como diz Cavalcanti Proença: “com um pouco de deformações, Zuza será, no

fundo, o próprio Caminha...247”

No romance A Normalista, Adolfo Caminha poucas vezes fez referência

à figura do negro. A primeira alusão é feita no quinto capítulo, quando

escreveu: “Então o Zuza [...], disse que estava aborrecido com as mulheres

que se entregavam facilmente. Em Pernambuco, namorava a filha de um barão

[...] Era uma rapariga esplêndida, mas tão depravada, tão poluta que acabou

fugindo com um jóquei do Prado de Pernambuco, um Negro”.248

O segundo momento ocorre no sétimo capítulo, quando a jovem Maria

do Carmo sonha com Romão249:

De repente...! ouviu a voz aguardentada do Romão, o mesmo que fazia a limpeza da cidade, e logo surgiu-lhe em frente a figura nauseabunda e miserável do negro. Era um Romão colossal, ..., nu da cintura pra cima, as espáduas largas, reluzentes de suor, calças arregaçadas até os joelhos, preto como carvão..., os braços levantados segurando na cabeça chata um barril enorme transbordando imundícias!

246 Ibidem. p. 23 247 Ibidem. p. 12. 248 Ibidem. p. 56. 249 A cidade de Fortaleza até o começo do século XX não possuía esgotos nem fossas. Os dejetos das moradias eram armazenados em barris especiais, denominados cartolas, cumoas ou cambrones. Romão fora um desses indivíduos responsáveis por retirar e lançar os excrementos ao mar. Gustavo Barroso nas suas memórias descreveu Romão como sendo um ex-escravo “bestializado pela miséria”. Era “imundo, fedorento e sórdido, anda meio curvo ,arrimado a um varapau, rosnando sempre nomes feios. Sustenta-se de cachaça e come vísceras cruas que compra ou lhe dão na feira, misturados com farinha de mandioca no fundo do seu fedido chapéu de palha de carnaúba...” Ver: BARROSO, Gustavo. Memórias de Gustavo Barroso. 1º volume. Fortaleza: Governo do Estado do Ceará, 1989. p. 183-184.

143

Page 144: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

[...] gania o negro no silêncio da noite clara, cambaleando muito bêbado... , o negro atirou ao chão o barril de porcarias, que se despedaçou empestando o ar. E o Romão cambaleando sempre, muito fedorento, atirou-se a ela, rilhando os dentes num frenesi estúpido, beijando-a, besuntando-a... ela, mais que depressa, cobrindo o rosto com as mãos quis fugir, sentindo toda a hediondez daquele corpo imundo, mas o negro deito-a no chão com força e... E Maria do Carmo acordou...”250

No nono capítulo, novamente o negro Romão apareceu nos sonhos de

Maria do Carmo:

...e logo tornou-lhe a aparecer em sonho o negro Romão, com as calças arregaçadas, um barril na cabeça a gritar – arre como! [...] depois o preto deixou cair o barril que se derramou, inundando a calçada de imundícias, e ei-lo montado num cavalo branco, a fazer de palhaço de circo, uivando uma porção de asneiras [...] vendo ainda esboçada na sua imaginação a figura hedionda do negro com os bugalhos injetados, a boca abrindo-se num riso nervoso e alvar, o peito à mostra, a venta chata, ela permaneceu imóvel...251

Adolfo Caminha, no seu segundo romance, Bom Crioulo, publicado pela

primeira vez em 1895, e escrito na cidade do Rio de Janeiro, narrou a história

do negro Amaro, um marujo da Marinha imperial. Amaro era um escravo fugido

que depois de alguns anos servindo na marinha, ocupando o cargo de gajeiro

de proa, se apaixonou por Aleixo, um companheiro de embarcação. A questão

de maior relevo da obra será a paixão do negro Amaro pelo marinheiro Aleixo.

Como afirmou Sânzio de Azevedo:

... Bom Crioulo é o ponto mais alto da obra do escritor cearense: focalizando um caso de homossexualismo entre marinheiros, o romance apresenta logo no primeiro capítulo, o negro Amaro... sendo submetido, com dois outros marujos, ao castigo da chibata, então vigente nos navios de guerra, e contra o qual Adolfo Caminha sempre se insurgiu, desde os tempos de aluno. Amaro estava sendo castigado não por ter andado bêbado, provocando arruaças, o que era seu costume, mas por haver esmurrado um segunda classe...252

O primeiro capítulo da obra praticamente é todo ele uma descrição do

costume presente na marinha imperial de castigar com chibatadas os

marinheiros que não se portassem conforme a “ordem e disciplina” interna.

Tinha-se feito silêncio. Uma outra voz segredava baixinho, timidamente. E agora, no silêncio da mostra, é que se ouvia bem o cachoeirar da água no bojo da corveta caturrando...

— Agüenta! Por fim apareceu o comandante abotoando a luva branca de camurça, teso na

sua farda nova, o ar autoritário, solta a espada num abandono elegante, as dragonas tremulando sobre os ombros em cachos de ouro, todo ele comunicando respeito.

[...] os presos... fez o comandante, sem se alterar, dando um puxão na manga da

farda. [...]

250 CAMINHA, Adolfo. Op. cit., p. 70. 251 Ibidem. p. 87. 252 AZEVEDO, Sânzio Introdução. In: CAMINHA, Adolfo. Bom Crioulo. Fortaleza: Ed. ABC, 2001. p. 04.

144

Page 145: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

chegam os presos: um rapazinho magro, muito amarelo, rosto liso completamente imberbe; outro regulando a mesma idade, mas um pouco moreno, também grumete; e um primeira classe, negro alto, espadaúdo, cara lisa.

Vinham em ferros, um a um, arrastando os pés num passo curto e demorado, e encaminharam-se para o meio do convés, fazendo alto a um aceno do comandante....253

O ambiente em que se passou o primeiro capítulo do romance Bom

Crioulo foi o interior de uma corveta da marinha imperial. Adolfo Caminha, por

já ter sido oficial e conhecer bem esse tipo de embarcação, descreveu com

minúcias a parte interna do navio; como também os tripulantes e suas

atividades. A tripulação da corveta era em grande parte composta de negros e

mulatos, os quais eram denominados por Caminha de: “moreno carregado, cor

de bronze”, “moreno cor de jenipapo”, “mulatinho”, Bom-Crioulo”, “marinheiro

negro” e outras designações da mesma natureza.

Das últimas décadas do século XIX até as primeiras do século XX a

marinha possibilitou a escravos e ex-escravos vislumbrar aspectos promissores

referentes ao futuro. Pode-se considerar a liberdade o mais valioso deles.

Adolfo Caminha descreveu satisfatoriamente o que poderia significar para o ex-

escravo a liberdade:

[...] e, assim que a embarcação largou do cais a um impulso forte, o novo homem do mar sentiu pela primeira vez toda a alma vibrar a uma maneira extraordinária, como se lhe houvessem injetado no sangue de africano a frescura deliciosa de um fluido misterioso. A liberdade entrava-lhe pelos olhos, pelos ouvidos, pelas narinas, por todos os poros, enfim, como a própria alma da luz, do som, do odor e de todas as coisas etéreas... enfim todo o conjunto da paisagem comunicava-lhe uma sensação tão forte de liberdade e vida, que até tinha vontade de chorar...254.

Outro aspecto promissor para o ex-escravo era o ofício de marinheiro.

Tal ofício, mesmo estando circunscrito dentro de um rigor disciplinar, permitiu

ao liberto vivenciar outro modo de vida. Ser marinheiro nessa época era uma

garantia para o ex-escravo de ter uma profissão remunerada como também

direito à boa alimentação e moradia. O negro Amaro, personagem principal do

romance de Caminha, é um negro fugido que encontrou na marinha um

ambiente mais digno e esperançoso. Descreveu Caminha:

A disciplina militar, com todos os seus excessos, não se comparava ao penoso trabalho da fazenda, ao regime terrível do tronco e do chicote. Havia muita diferença... Ali ao menos, na fortaleza, ele tinha sua maca, seu travesseiro, sua roupa limpa, e comia bem, a fartar, como qualquer pessoa... ali não se olhava a cor ou a raça do

253 CAMINHA, Adolfo. Bom Crioulo .Op. cit., p. 09-10. 254 Ibidem. p.18-19.

145

Page 146: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

marinheiro; todos eram iguais, tinham as mesmas regalias – o mesmo serviço, a mesma folga.255

Amaro era um negro fugido vindo “ninguém sabe donde, metido em

roupas de algodãozinho, trouxa ao ombro, grande chapéu de palha na

cabeça...”256 Caminha começou o segundo capítulo de Bom Crioulo

descrevendo a aparência e condição de Amaro. A imagem descrita pelo autor

condiz com aquela dos escravos empregados no eito das fazendas de café do

Sul do Brasil. O personagem principal do romance de Caminha, Bom Crioulo, é

um negro fugido com pouca idade, que encontrou na marinha imperial

esperança para seu futuro. Eis a descrição da fuga de Amaro: “[...] menor (teria

18 anos), ignorando as dificuldades por que passa todo homem de cor em um

meio escravocrata e profundamente superficial como era a corte – ingênuo e

resoluto, abalou sem ao menos pensar nas conseqüências da fuga.”257

Nesse tempo o negro fugido preocupava as populações citadinas, ao

ponto de ser literalmente caçados como animal, quando o caso era outro, e o

negro se embrenhava na mata, passava-se a caça-lo de espora e garrucha,

mato adentro. “saltando precipícios, atravessando rios a nado, galgando

montanha ... logo que o fato era denunciado – aqui-del-rei! – enchiam-se as

florestas de tropel, saíam estafetas pelo sertão num clamor estranho, medindo

pegadas, açulando cães, rompendo cafezais. Até fechavam-se as portas, com

medo... Jornais traziam na terceira página a figura de um “moleque” em fuga,

trouxa ao ombro, e, por baixo, o anúncio, quase sempre em tipo cheio,

minucioso, explícito, com todos os detalhes, indicando estatura, idade, lesões,

vícios, e outras características do fugitivo.“258

Esse é um dos trechos mais expressivos do romance no que diz respeito

ao tratamento brutal deferido pelos senhores contra os escravos fugidos.

Amaro, ao fugir para a cidade se deparou com um mundo completamente

estranho e inóspito a pessoas como ele. Caminha evidenciou a terrível situação

do escravo fugido oriundo das fazendas de café, ao encontrar nas cidades uma

realidade tão hostil ou mais do que aquela vivida quando escravo do eito.

Adolfo Caminha teve como intenção ao escrever Bom-Crioulo, evidenciar, 255 Ibidem. p. 19. 256 Ibidem. p. 23 257 Ibidem. p. 23

146

Page 147: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

assim como Aluízio Azevedo na obra O Mulato, determinadas práticas e

costumes presentes na sociedade escravista.

Apesar de Bom-Crioulo ter sido escrito e publicado em 1895 alguns anos

após a abolição da escravidão no Brasil, a sociedade vivida por Adolfo

Caminha ainda guardava traços profundos do sistema servil. Principalmente,

aqueles relativos ao preconceito de cor.

Nesse sentido entendemos que Adolfo Caminha, na obra Bom Crioulo,

alcançou seu intento – de denúncia e evidência de determinadas

peculiaridades existentes numa sociedade escravista.

A obra, quando publicada pela primeira vez, sofreu duras críticas da

sociedade da época. Escreveu Antônio Sales colega de Adolfo Caminha: “uma

novela escabrosa e pouco feliz em que, a pretexto de fabular recordação de

sua vida de marinheiro, o autor desanca a classe que o abandonou e

repeliu...”259. E mesmo depois de passados alguns anos, já no século XX,

escritores insistiram em atacar a obra. Escreveu em 1959 a escritora Lúcia

Miguel-Pereira: “o tema, já de si abjeto, é tratado de modo que o torna

extremamente chocante, com pormenores de todo em todo desnecessários”.260

As críticas eram devidas não ao fato de Caminha ter evidenciado questões

relativas à escravidão, mas pelo fato do romance abordar o homossexualismo,

tema tabu na literatura brasileira.

258 Ibidem. p. 18. 259 SALES, Antônio. O Ceará Literário. In: Almanaque do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, 1932. p. 444. 260 PEREIRA, Lúcia Miguel. Adolfo Caminha. Rio de Janeiro: Agir, 1960. p. 09.

147

Page 148: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa intenção inicial foi, através da análise de documentos oficiais,

dentre eles correspondências expedidas e ofícios expedidos, como também

anais da assembléia legislativa, e ainda, através de periódicos da época,

entender o processo abolicionista desencadeado na província do Ceará a partir

da segunda metade do século XIX. Buscamos demonstrar alguns fatores que

consideramos serem importantes para o entendimento da abolição prematura

da escravidão dos escravos na província do Ceará, no dia 25 de março de

1884.

Um desses fatores foi sem sombra de dúvidas a seca que assolou a

província de 1877 a 1879. Alguns memorialistas contemporâneos do evento

foram responsáveis por deixar registrados os impactos causados pelo

fenômeno na vida social, política e econômica da província. Consideramos

Rodolfo Teófilo o principal deles. Na sua clássica obra, A fome, retratou com

precisão os estragos causados por tão nefasto acontecimento. O personagem

principal da obra, um agricultor interiorano, ao ver-se na aflição causada pela

estiagem, sem ter como sobreviver, sem água nem comida, decidiu migrar

juntamente com a família para a capital da província, mas sem rendimento

nenhum para realizar tal empreitada, seu intento tornou-se quase impossível,

então decidiu vender o único bem que lhe restou, o escravo.

Foi comum a venda de escravos para outras províncias do império,

principalmente para aquelas localizadas no sul, que despontavam no cenário

nacional desenvolvendo o plantio de café. Durante o período em que durou a

estiagem um dos principais rendimentos dos cofres públicos da província era

derivado dos impostos cobrados sobre as transações de venda dos cativos.

Nesse sentido, configurou-se o tráfico interprovincial como outro fator

preponderante no processo precoce da abolição no Ceará. Um terceiro

elemento considerado foram as alforrias concedidas por senhores,

principalmente durante a guerra do Paraguai em 1865. O senhor, para se ver

livre da obrigação de servir na guerra alforriou seus cativos e os enviou em seu

148

Page 149: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

lugar. A província do Ceará foi responsável por mandar 350 cativos para

lutarem no Paraguai. As demais alforrias concedidas aos escravos foram pagas

com o auxílio do governo imperial que deu preferência àqueles escravos

menores de idade e do sexo feminino.

O governo imperial foi responsável por distribuir cotas à província do

Ceará com o objetivo de auxiliar nas alforrias dos cativos, a partir de 1871.

Essas cotas eram provenientes do fundo de emancipação, dos impostos

cobrados sobre as transações de compra, venda e transferência de escravos,

como também de loterias e multas. A primeira cota foi distribuída na província

em 1876, responsável por manumitir 110 escravos, sendo a maioria do sexo

feminino.

Entendemos que, quando as libertadoras surgiram, o sistema escravista

cearense já estava em estado bem avançado de desestruturação devido aos

fatores expostos acima. Os membros das libertadoras eram indivíduos oriundos

de camadas abastadas da sociedade cearense, inseridos num contexto urbano

e literário, onde os ideais de desenvolvimento social, político e econômico

orientavam suas idéias, intenções e atitudes. Eram leitores, dentre outros, de

Darwin, Spencer e Conte, respectivamente teóricos do evolucionismo,

determinismo e positivismo. Interpretavam as concepções desses autores a

seu modo aplicando-as à realidade vivenciada na província.

Contudo, buscaram mudar a estrutura de produção de modo que outros

setores da sociedade e não somente os grandes proprietários de terras, mas

também pequenos e médios comerciantes, pequenos e médios proprietários de

terras e profissionais liberais participassem da conjuntura política da província,

tentando obter maior poder de decisão em questões de ordem política, social e

econômica.

Grande parte, se não a maioria dos membros das libertadoras

cearenses, principalmente a Perseverança e Porvir e Libertadora Cearense

pretendiam uma abolição conduzida por eles, os únicos capazes de

promoverem a extinção do elemento servil na província sem causar o pânico e

149

Page 150: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

o caos na sociedade. Utilizaram a imprensa como meio de divulgar seus

anseios e ideais políticos, sociais e econômicos.

Outro foco de estudo que privilegiamos foi a atuação de alguns

indivíduos da Libertadora Cearense em atividades de cunho ilegal. Os

abolicionistas Isac e José do Amaral, Antônio Bezerra, Carlos Jataí e Pedro

Arthur foram responsáveis por realizar, com a ajuda dos jangadeiros, atividades

consideradas ilícitas pelas normas legais da época, como impedir que escravos

com destino às províncias do sul do império embarcassem no vapor Espírito

Santo. Em outro momento entraram em contado com os jangadeiros,

responsáveis por realizar a travessia do trapiche para os navios, e pediram que

eles aderissem ao movimento, interrompendo o transporte dos cativos. Ainda

atuaram auxiliando fugas e roubando escravos, enviando-os para sítios

localizados nas redondezas da capital da província.

Entretanto ressaltamos também a atuação dos cativos no processo

abolicionista desenvolvido na província do Ceará. Através da lei 2040 foi

possível ao escravo lutar pela sua liberdade no campo jurídico, âmbito até

então considerado exclusivo dos senhores. A lei 2040 foi fruto de controversos

debates e projetos, determinados e discutidos em sessões parlamentares.

Desde a primeira vez que a discussão foi introduzida na Assembléia Geral, em

1850, pelo deputado cearense Pedro Pereira Guimarães, até sua promulgação,

passaram-se 21 anos.

A lei teve como intenção acalmar os ânimos dos senhores de escravos

procurando resguardar seus interesses, ao conceder-lhes indenizações no

tocante à perda de sua propriedade e ainda assim realizando uma política

emancipacionistas lenta e gradual. Entretanto, a lei 2040 permitiu também aos

escravos e advogados abolicionistas construírem estratégias políticas de

avanços e recuos na defesa de escravos que, pela lei, buscavam a liberdade.

Insistimos em afirmar que a lei 2040 foi, principalmente, uma conquista

para os escravos, pois permitiu incluí-los, ainda que parcialmente, no campo

jurídico. A lei proporcionou ao escravo questionar o direito de legitimidade e

150

Page 151: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

propriedade dos senhores que, em determinadas situações, se viram obrigados

a conceder alforrias a seus escravos.

A lei 2040 permitiu ao escravo, através da experiência cotidiana do

cativeiro, construir estratégias de luta baseadas na consciência própria de seus

direitos e fazendo de tudo para alcançá-los.

As ações de liberdade, ricas de nuanças e determinadas peculiaridades,

permitiram-nos perceber as disputas envolvendo senhores e escravos no

âmbito jurídico e captar o escravo obstinado em fazer prevalecer seu direito de

homem livre. O processo de Bernardo é significativo nesse sentido, como

também os de José, Joaquim, Alexandrina, Maria, Maçaria e os demais

analisados no decorrer do trabalho. Não perdemos de vista que as ações

judiciais jamais podem ser vistas uniformemente, mas sim como um campo de

luta, onde estão em jogo múltiplos interesses, principalmente os anseios de

duas classes antagônicas.

Outros sujeitos sociais que também apareceram nesses litígios foram os

advogados, curadores e juízes. Os documentos que pesquisamos não nos

permitiram conhecer a dimensão do envolvimento desses sujeitos no

direcionamento dos processos e se as ações foram intentadas inicialmente

pelos escravos ou pelos advogados abolicionistas. Entretanto, foi possível

perceber a destreza desses indivíduos em conduzir os processos, como

tivemos a oportunidade de ver na ação intentada por Benedicta, através de seu

curador Justino Francisco Xavier. No que se refere aos julgamentos

conduzidos pelos juízes é possível aceitar que nem sempre suas decisões se

pautaram no mérito da lei, mas que outros motivos os impeliram a fazer uma

leitura e interpretação da lei que arbitrava a favor de interesses nos

testamentos declarados, mas possíveis de encontrar acolhimento nos

interstícios dos termos e da redação da lei.

A literatura foi um ambiente profícuo de manifestação contra o

escravismo. Foi muito bem utilizada por abolicionistas e outros sujeitos. O

periódico Libertador, órgão da Sociedade Cearense Libertadora, foi

responsável por publicar numa de suas colunas denominada Litteratura os

151

Page 152: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

sentimentos e anseios de determinados indivíduos que se identificavam com a

causa abolicionista na província. Antônio Bezerra foi um dos principais

abolicionistas que escreveu nessa coluna. Suas poesias foram uma espécie de

missiva aos colegas. Os incitou a lutar pelo futuro da nação. Suas poesias são

de enaltecimento e de cunho fortemente saudosista. Pregou o fim da

escravidão como forma de se chegar ao progresso. Nessa coluna poucas são

as poesias que se referem ao escravo enquanto indivíduo que fala da sua

tristeza, dos seus sentimentos. Melo Morais e Juvenal Galeno foram dos

poucos que escreveram nessa coluna e deram atenção ao escravo, liberto ou

libertando, entendendo-os enquanto indivíduos que pensam e agem como tais.

Descreveram as amarguras, emoções, paixões e gostos experimentados pelos

cativos.

Os abolicionistas não utilizaram somente a poesia como meio de

criticarem o sistema escravista. O romance naturalista também foi um

importante instrumento de contestação. O Mulato, de Aluízio Azevedo, escrito

em 1881, foi preciso em evidenciar o preconceito de cor existente na sua

província natal, São Luiz. A obra foi um libelo contra os costumes e práticas

escravistas presentes na sociedade maranhense na época. Adolfo Caminha,

nas obras A Normalista e, principalmente, Bom Crioulo, também evidenciou

determinados aspectos vivenciados por escravos e libertos na sociedade da

época.

Infelizmente devido ao limitado prazo de conclusão da pesquisa não foi

possível deter-se na compulsão e análise mais acurada de Processos Crimes,

um tipo de fonte que consideramos extremamente esclarecedora das práticas

e experiências de escravos e senhores no sistema escravista. Vamos aguardar

um momento adequado para realizar um trabalho mais detalhado com tais

documentos. Como os Processos Crimes, consideramos de muito valor social,

no que diz respeito as práticas escravistas do pós-abolição, as Ações de

Liberdade. Apesar de termos desenvolvido um estudo com as ações que

tínhamos em nosso poder, muitas outras ainda se encontram depositadas em

caixas lacradas e vedadas ao público pesquisador no Arquivo Público do

Estado do Ceará. Acreditamos que quando houver boa vontade das

autoridades responsáveis em investir em pessoal e na melhor manutenção do

152

Page 153: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Arquivo, muitas ações virão à tona e, assim, será possível estudar com mais

acuidade as relações estabelecidas entre os vários sujeitos presentes nessa

contenda judiciária. Com relação ao estudo dos trabalhos literários que tratam

da condição do africano e do afro-descente no Ceará acreditamos ser um

campo promissor que aguarda por ser melhor explorado.

153

Page 154: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

FONTES

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ

Fundo: Câmara Municipal, série: Correspondências expedidas, período:

1881- 1890, município: Fortaleza, ala: 20, estante: 429, caixa, 40

Fundo: Câmara Municipal, série: Correspondências expedidas, período:

1881- 1890, município: Fortaleza, ala: 20, estante: 429, caixa, 39

Registros de ofícios ao chefe de polícia pela presidência da Província:

ala: 19, estante: 414, números: 209, 210, 211, 216, 235.

Registros de ofícios da secretaria de polícia aos subdelegados da

Província, estante, 413, número: 339.

Registro de ofícios aos delegados pela secretaria de polícia do Ceará

(1885 – 1887), estante: 413 número:336.

Registro de ofícios ao chefe de polícia pela presidência da Província

(1884 – 1885), ala: 19, estante, 414, número: 212,213.

Registro de ofícios da secretaria de polícia aos delegados da Província

(1884 – 1885), estante, 413, números: 345, 335, 337, 338, 345. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ

Leis do Ceará (1882 – 1883)

DOCUMENTAÇÃO JURÍDICA — ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ.

Ações de Liberdade (1871 – 1880). Números: 907 ,908, 135, 704, 567,

234, 546, 567, 876, 454, 679, 375 .

DOCUMENTAÇÃO LEGISLATIVA — BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE.

Coleção dos Anais do Parlamento Nacional (1871)

PERIÓDICOS: BIBLIOTECA PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ (MENEZES PIMENTEL)

Libertador: 1881, 1883, 1884;

Cearense: 1871, 1879;

A Constituição: 1879, 1881.

154

Page 155: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

OBRAS DE ÉPOCA ALVES, Castro. Os Escravos.São Paulo: artin Claret, 2003.

AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. São Paulo: Martins Claret, 1971.

BARROSO, Gustavo. Memórias de Gustavo Barroso. 1º volume. Fortaleza: Governo do Estado do Ceará, 1989.

BEZERRA, Antônio. O Ceará e os Cearenses. Fortaleza: Tip. Minerva, 1906. BRAZIL, Thomaz Pompeu de Souza. O Ceará no Centenário da

Independência. Fortaleza: Typ. Minerva, 1922.

__________________. Rápida Notícia Sobre o Ceará destinada a exposição

de Chicago. Fortaleza: s/ ed.,1893.

BRÍGIDO. João. O Ceará ( Lado Cômico ). Fortaleza: s/ ed., 1900.

CAMARA, João. Almanaque Administrativo, Estatístico, Mercantil, Industrial e

Literario do Ceará. Fortaleza: Typ. d ‘a República ( coleção completa de

1985 a 1930 ).

CAMINHA, Adolfo. A Normalista. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 2001.

______________. Bom Crioulo. Fortaleza: ABC, 2001.

CAMPOS, Eduardo. Revelação da Condição de Vida dos Cativos do Ceará. In: Da Senzala para os Salões. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1988.

COLARES, Otacílio. Crônicas de Fortaleza e do Siará Grande. Fortaleza:

Edições UFC, 1980.

________________. Para a história do jornalismo cearense (1890–1924).

Fortaleza: Typ. do Instituto do Ceará, 1925.

GALENO, Juvenal. Lendas e Canções Populares. 4o edição. Fortaleza: Casa Juvenal Galeno, 1978.

NABUCO, Joaquim. A Escravidão. Recife: Massangana, 1988.

________________. Minha Formação. Rio Grande do Sul: Edelbra, 2001.

________________. O Abolicionismo. São Paulo: Companhia Editora Nacional,

1983.

________________. Política. Recife: Ática, 1982.

TEÓFILO, Rodolfo. A Fome. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1979.

155

Page 156: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

BIBLIOGRAFIA

ALBUQUERQUE, Mozart Soriano. História Abreviada de Fortaleza. Fortaleza:

Edições UFC, 1982. ALENCAR, Alênio Carlos Noronha. Nódoas da Escravidão: Senhores,

Escravos e Libertandos em Fortaleza (1850-1884). Dissertação de Mestrado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2004. p. 132.

ALGRANT, Leila Mezan. O feitor ausente. Estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. 1808-1822. Petrópolis: Vozes, 1988.

ANDRADE, Manuel Correia de. Abolição e Reforma Agrária. São Paulo: Ática, 1987.

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: A África na filosofia da cultura. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

ARAGÃO, Elizabeth Fiúza. A Transformação da Indústria Têxtil no Ceará: O setor de fiação e tecelagem (1880–1950). Fortaleza: Ed. UFC/ Stylus Comunicações, 1989.

AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco: o negro no imaginário das elites século XIX. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. Fortaleza: Casa de José de Alencar/ UFC, 1996.

BARBOSA, Ivone Cordeiro. Sertão: Um Lugar Incomum. O sertão do Ceará na literatura do século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcante. A Margem da História do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1992.

BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX. In: KHOTE, Flávio (Org. e Trad). Walter Benjamin. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1985, p. 45-80

BEZERRA, José Tanísio Vieira. Quando a ambição vira projeto: Fortaleza entre o progresso e o caos ( 1846/1879 ). 2000. (Dissertação de Mestrado em História Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução por Fernando Thomaz. Edição 4ª. Rio de Janeiro: Bertrand Brazil, 2001.

CAMPOS, Eduardo. As Irmandades Religiosas no Ceará Provincial. Ceará: Secretaria de Cultura Turismo e Desporto, 1990.

_________________. Capítulos de História da Fortaleza do século XIX. Fortaleza: Edições UFC, 1985.

_________________. Revelações da Condição de Vida dos Cativos do Ceará. O Escravo na Cotação do Mercado Negreiro Cearense. In: Da Senzala aos Salões. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1990, Pp. 21-74.

CANCLINI, Nestor. A encenação do popular. In: Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 24-54.

CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravo ou Camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CARDOSO, Gleudson Passos. As Repúblicas das Letras Cearenses: Literatura, Imprensa e Política (1873–1904). 2000. Dissertação de mestrado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo.

156

Page 157: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CASTELO, Plácido Aderaldo de. História do Ensino do Ceará. 1970. Monografia N 22. (História Social) Fortaleza: Departamento de Imprensa Oficial.

CASTRO, Antônio Barros de. Escravos e Senhores nos Engenhos do Brasil. São Paulo: IFHC/Unicamp, 1976.

CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sistema escravista (Brasil XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993.

CERQUEIRA, José Luciano. O Negro e a Abolição. In: __________ (org).Atualidade & Abolição. Recife: Massangana, 1991, p. 23-40.

CHACON, Vamireh. Ideologia e Escravidão. In: CERQUEIRA, José Luciano (org). Atualidade & Abolição. Recife: Massangana, 1991, p. 43-60.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

_________________. Os mitos da abolição: Trabalhadores. Campinas: Secretaria Municipal de Cultura, 1989.

_________________. Visões da Liberdade. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1998.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.

CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil (1850-1888). Edição 2º. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

CORDEIRO, Celeste. Antigos e Modernos no Ceará Provincial: progresssimo e reação tradicionalista no Ceará provincial. São Paulo: Annablume, 1997.

COSTA, Emíla Viotti da. Da senzala á colônia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962.

COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil no século XIX. In: Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987,p. 25-50.

CURTIN, Philip D. Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral”. In: História Geral da África. Metodologia e pré-história da África, vol 1, coordenação J. Ki- Zerbo. São Paulo: Editora Ática/ UNESCO, 1980, p. 45-68.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. 2o edição. São Paulo: Brasiliense, 1995.

DUBY, Georges. História Social e Ideologia das Sociedades. In: História Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. Pp. 130-145.

ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Um desafio irrecusável: a contribuição da literatura para os estudos de História. Projeto História. São Paulo: Educ – PUC/SP, n 20, 2000, p. 44-78

FENELON, Déa Ribeiro. Cultura e História Social: Historiografia e Pesquisa. Projeto História. São Paulo: Educ – PUC/SP, n 10,1993,p . 46-78

FERNANDES, Yaco. Notícia do povo cearense. Edição 2, Fortaleza: Editora da UFC, 1998.

157

Page 158: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

FONNER, Eric. O significado da liberdade. Tradução por Célia Maria Marinho de Azevedo. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUN/Marco Zero, vol. 8, n 16, março/agosto de 1988.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Lisboa: Portugália, 1967. _______________. Microfísica do Poder. Tradução por Roberto Machado.

Edição 13. Rio de Janeiro: Graal, 1998. FRANÇA, Jean M. Carvalho. Imagem do negro na literatura brasileira. São

Paulo, Brasiliense, 1998. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata.

Edição 4. São Paulo: UNESP, 1997. FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Edição 9, Rio de Janeiro: José

Olympio, 1958. FUNES, Eurípedes Antônio e GONÇALVES Adelaide. Abolição – Manifestação

e Herança. Fortaleza: UFC/NUDOC , 1990. _______________. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone de. (org.) Uma nova

História do Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, Fortaleza, 2000.

GENOVESE, Eugéne. O Mundo dos senhores de escravos; dois ensaios de interpretação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. 4o edição. Fortaleza: Prefeitura Municipal de Maracanaú, 1988.

GIRÃO, Valdenice Carneiro. Da conquista da implantação dos primeiros núcleos urbanos na capitania do Siará. In: SOUZA, Simone de. (org.) História do Ceará, Edição 4, Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1995.

GOES, Fernando. Introdução. In: AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. São Paulo: Martins Claret, 1971.

GORENDER, Jacob. A escravidão Reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. _______________. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978. GOULART, Maurício. A Escravidão africana no Brasil: das origens a extinção

do Tráfico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade – As Ações de liberdade da

Corte de Apelação do Rio de Janeiro no Século XIX. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, 1994

GUINZBURG, Carlos. Mitos Emblemas Sinais: Morfologia e História. Edição 2. São Paulo: Companhia das Letras 1989.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição 26. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995.

IANNI, Octavio. Escravidão e Racismo. São Paulo: Hucitec, 1978. JACQUES, Julliard. A Política. A História Novas Abordagens. Rio de Janeiro:

Francisco Alves, 1995, Pp. 180-196. KARASCH, Mary. Minha nação: identidades escravas no fim do Brasil colonial.

In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (org.). Brasil, colonização e escravidão. Tradução por Ângela Domingues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

_______________. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

KLEIN, Herbert S. A África no tempo do comércio atlantico de escravos, e A organização africana do comercio de escravos. In: O comércio atlântico de escravos. Quatro séculos de comércio esclavagista. Tradução por Francisco Agarez. Lisboa: Editora Replicação, 2002.

158

Page 159: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

KOERNER, Andrei. Judiciário e cidadania na constituição da República Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1988.

LARA, Silva Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

_______________. Blowin’in the wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Revista Projeto História, n 12, outubro/1995.

LE GOFF, Jacques. As Mentalidades: Uma História Ambígua. In: LE GOFF, Jacques. História Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, Pp. 68-83.

LODY, Raul. O Povo do Santo. Rio de Janeiro: Pallas, 1995. LOVEJOY, Paul E. A África e a escravidão e a escravidão na economia política

da África. In: A escravidão na África. Uma história e suas transformações. Tradução por Regina Bhering e Luiz Guilherme Chaves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

MACHADO, Maria Helena. O Plano e o Pânico. Rio de Janeiro: Edusp, 1994. MATOS, Maria Izilda Santos. Meu lar é o botequim. Edição 2. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 2002. MATTOS, Wilson Roberto. Negros contra a ordem: Resistências e práticas

negras de territorialização no espaço da exclusão social – Salvador/Bahia ( 850-1888). 2000. Tese de doutorado (História Social), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

MATTOSO, Kátia de Queirós. O filho da escrava (em torno da lei do ventre livre). Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n 16, março/agosto de 1988.

_______________. Ser escravo no Brasil. Edição 3. São Paulo: Brasiliense, 2003.

MELO, Josemir Camilo. Ceará: Abolição Precoce ou Crise Econômica. Fortaleza: UFC/NUDOC, 1990.

MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os caminhos da Abolição no Brasil. São Paulo: UNICAMP, 1999.

MEYER, Marlyse. O Carnaval nos Folguedos Populares Brasileiros. Outros Olhares. Campinas: Área de Publicações/CMU-UNICAMP, v.1, n.1 jan./jun,1996.

MONTENEGRO, Antônio Torres. Abolição. São Paulo: Ática, 1988. MONTENEGRO, João Alfredo. A Historiografia Cearense da Abolição.

Fortaleza: UFC/NUDOC, 1990. MORAIS, Viviane Lima de. Razões e Destinos da Migração: trabalhadores e

emigrantes cearenses pelo Brasil no final do século XIX. 2003. Dissertação de Mestrado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo.

MOTT, Luis R.B. A revolução dos negros no Haiti e o Brasil. Revista Questões & Debates, ano 3o, n 4, junho de 1982.

MOTT, Maria Lúcia Barros. A criança escrava na literatura de viagens. Caderno de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, n 31, dezembro 1972.

MOTTA, Felipe Ronner Pinheiro Imlau. Progresso, Calamidade e Trabalho: Pobreza e Urbanidade Incipiente na Cidade em Fins do Oitocentos. Revista Trajetos, vol. 2, número 04, 2003.

MOURA, Clovis. Rebelião da Senzala. Edição 2. Rio de Janeiro: Conquista, 1972.

NABUCO, Joaquim. A Escravidão. Recife: Massangana, 1988.

159

Page 160: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

_______________. Minha Formação. Rio Grande do Sul: Edelbra, 2001. _______________. O Abolicionismo. 6o edição. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000. _______________. Política. Recife: Ática, 1982. _______________.. Um estadista do Império. São Paulo: Instituto Progresso

material,1949. NASCIMENTO, Francisco. Síntese histórica da escravidão negra, In: História

do Ceará. SOUZA, Simone de. (Org.) Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1995.

NEWITT, Malyn. Os prazos, História e Moçambique. Tradução por Lucélia Rodrigues e Naria Georgina Segurado. Portugal: Publicações Europa-América, 1997.

NICOLA, José de. Literatura Brasileira das origens aos nossos dias. 3o edição. São Paulo: Ed. Scipione, 1989.

NOBRE, Geraldo. Introdução a história do jornalismo cearense. Fortaleza: Gráfica Editorial Cearense, 1974.

NOGUEIRA, João. Fortaleza Velha. Fortaleza: Edições UFC, 1984. OLIVEIRA, Almir Leal de. O Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do

Ceará – Memória, Representações e Pensamento Social (1887–1914). 2001. Tese de Doutorado (História social), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

OLIVEIRA, Pedro Alberto de. O declínio da escravidão no Ceará. 1988. Dissertação de Mestrado. (História Social) Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco.

PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Escravos, Libertos e Órfãos: A construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). Tese de doutorado (História Social). Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2001.

PATROCÍNIO, José do. Campanha Abolicionista. 1º edição. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional do livro, 1996.

PEREIRA, Lúcia Miguel. Adolfo Caminha. Rio de Janeiro: Agir, 1960. PIMENTEL, José Ernesto. Urbanidade e Cultura Política. A cidade de Fortaleza

e liberalismo cearense no século XIX. Fortaleza: Edições UFC, 1998. PINHEIRO, Francisco José. A organização do mercado de trabalho no Ceará

(1850–1880). 1990. Dissertação de Mestrado (História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

PINTO, José Machado. Quando a Imprensa é Notícia. Rio de Janeiro: ed. Temârio, 1978.

PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas Urbanas e Controle Social (1860-1930). Fortaleza: Demócrito Rocha, 1999.

PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 2 edição. São Paulo: Brasiliense, 1957.

PROENÇA, Cavacalti. Biografia de Adolfo Caminha. In: CAMINHA, Adolfo, A Normalista, Rio de Janeiro: Ed, Tecnoprint, 2001.

QUEIROZ, Suely R. Reis de. A Abolição da Escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1999.

QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Ática, 1987.

RAMOS, Arthur. O Folclore Negro do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1935.

_______________. O Negro na Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Editora da Casa do Brasil do Estudante, 1934.

160

Page 161: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

RAMOS, Francisco Régis Lopes. Museu, ensino de história e sociedade de consumo. In: Trajetos: Revista de História da UFC. Fortaleza, vol. 1, n.º 1, 2001.

REIS, João José, SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

REIS, João José. A Morte é uma Festa. São Paulo: Companhia das Letras,1991.

_______________. Rebelião escrava no Brasil – A História do levante dos Malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986.

RIEDEL, Oswaldo de Oliveira. Perspectiva Antropológica do Escravo do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1988.

_______________. Escravo no Ceará: Perspectiva Antropológica do Escravo no Ceará. In: Das senzalas para os salões. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1988.

RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio. Campinas: Unicamp, 2000. RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. Edição 2. São Paulo: Companhia

Editora Nacional, 1935. SCHIMMELPFENG, Gisela Paschen. A Mulher e a abolição. Fortaleza:

Secretaria de Cultura e Desporto, 1984. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e

Questão Racial no Brasil 1870 – 1930. Edição 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

_______________. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos, cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança. In: A África antes dos portugueses. São Paulo: EDUSP. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

_______________. Ifé e Benim. In: A África antes dos portugueses. São Paulo: EDUSP. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

_______________. Os brasileiros ou agudás e a ocupação colonial da África ocidental, cumplicidade, acomodação e resistência. In: A África e a instalação do sistema colonial ( c.1885 – c. 1930), Actas da III reunião internacional de história da África. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica Tropical, 2000.

_______________. Os lançados e Angola In: A manilha e o libambo: A Äfrica e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Biblioteca Nacional, 2002.

SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural. Companhia das Letras: São Paulo, 2003.

SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e Conflito: A Resistência Negra no Brasil Escravista. Companhia das Letras. São Paulo: 1989.

SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. Declínio da escravidão no Ceará. 1988. (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Pernambuco: Recife, 1988.

SLENES, Robert. Lares Negros, Olhares Brancos: Histórias da família escrava no século no século XIX. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 8, n 16, março/agosto de 1988 .

SODRÉ, Nelson. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

161

Page 162: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

STEIN, Stanley, J. Vassouras: Um município brasileiro do café (1850-1900). Tradução por Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: Estudo Sobre a Cultura Popular Tradicional. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1988.

_______________. Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. _______________. Tradición, revuelta y consiencia de clase. Estudios sobre la

crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Critica, 1979. VAIFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravidão. Petropolis: Vozes, 1986 VANSINA, Jan. A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos

primeiros estados. In: História Geral da África IV. A África do século XII ao século XVI. São Paulo: Ática/UNESCO, 1988.

VERAS, José Geraldo Torres. Juvenal Galeno, o Poeta do Povo. Fortaleza, Imprensa Oficial do Ceará, 1994.

WEYNE, Walda. Imprensa e Ideologia: O papel dos jornais cearenses na transição Monarquia/ República. Fortaleza; UFC/ NUDOC, 1992.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. _________________. O campo e a cidade na História e na Literatura. São

Paulo: Companhia das Letra, 1973. WISSENBACH, MARIA CRISTINA CORTEZ. SONHOS AFRICANOS, VIVÊNCIAS

LADINAS: ESCRAVOS E FORROS EM SÃO PAULO (1850-1880). SÃO PAULO: HUCITEC, 1988.

162

Page 163: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

ANEXOS ANEXO A – Lei N 2040 – 28 de setembro de 1871

Declara de condição livre os filhos de mulher escrava nascerem desde a

data desta lei, libertos os escravos da nação e outros, e providencia sobre a

criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre a libertação anual de

escravos.

A princesa imperial regente, em nome de sua majestade, o senhor D.

Pedro II, faz saber a todos os súbditos do Império que a assembléia geral

decretou e ela sancionou a lei seguinte:

Art.1o Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a

data desta lei, serão considerados de condição livre.

Parágrafo 1o Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a

autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e

tratá-los até a idade de oito anos completos.

Chegando o filho da escrava a esta idade o senhor da mãe terá a opção,

ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos

serviços do menor até a idade de 21 anos completos.

No primeiro caso o governo receberá o menor, e lhe dará destino, em

conformidade da presente lei.

A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda

com o juro anual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de 30 anos.

A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar

daquele em que o menor chega a idade de oito anos e, se a não fizer então,

ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços dos mesmo

menor.

Parágrafo 2o Qualquer desses menores poderá remir-se do ônus de

servir, mediante prévia indenização pecuniária, que por si ou por outro ofereça

ao senhor de sua mãe, procedendo-se a avaliação dos serviços pelo tempo

que lhe restar a preencher, se não houver acordo sobre o quantum da mesma

indenização.

163

Page 164: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Parágrafo 3o Cabe também aos senhores criar e tratar os filhos que as

filhas de suas escravas possam Ter quando aquelas estiverem prestando

serviçso.

Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços

das mães. Se esta falecer dentro daquele prazo, seus filhos poderão ser postos

á disposição do governo.

Parágrafo 4o Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores

de oito anos, que estejam em poder do senhor dela por virtude do parágrafo 1o

, lhe serão entregues, exceto se preferir deixá-los, e o senhor anuir a ficar com

eles

Parágrafo 5o No caso de alienação da mulher escrava, seus filhos

livres, menores de 12 anos, a acompanharão, ficando o senhor da mesma

escrava sub-rogado nos direitos e obrigações do antecessor.

Parágrafo 6o Cessa a prestação de serviços dos filhos das escravas

antes do prazo marcado no parágrafo 1o , se, por sentença do juízo criminal,

reconhecer-se que os senhores das mães os maltratam , infligindo-lhes

castigos excessivos.

Parágrafo 7o O direito conferido aos senhores no parágrafo 1o transferi-

se nos casos de sucessão necessária, devendo o filho da escrava prestar

serviços a pessoa a quem nas partilhas pertencer a mesma escrava.

Art. 2o O governo poderá entregar a associações por ele autorizadas os

filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou

abandonados pelos senhores delas, ou tirados do poder destes em virtude do

artigo primeiro parágrafo 6o .

Parágrafo 1o As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos

dos menores até a idade de 21 anos completos e poderão alugar esses

serviços, mas serão obrigados:

1o A criar e tratar os mesmos menores

2o A constituir para cada um deles um pecúlio, consistente na quota que

para este fim for reservada nos respectivos estatutos.

3o A procurar-lhes, findo o tempo de serviços, apropriada colocação.

Parágrafo 2o As associações de que trata o parágrafo antecedente serão

sujeitas a inspeção dos juizes de órfãos, quanto aos menores.

164

Page 165: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Parágrafo 3o A disposição desse artigo é aplicável as casas de expostos,

e as pessoas a quem os juizes de órfãos encarregarem a educação dos ditos

menores, na falta de associações ou estabelecimentos criados para este fim.

Parágrafo 4o Fica salvo ao governo o direito de mandar recolher os

referidos menores aos estabelecimentos públicos, transferindo-se nesse caso

para o Estado as obrigações que o parágrafo 1o impõe ás associações

autorizadas.

Artigo 3º. Serão anualmente libertados em cada província do Império

tantos escravos quanto corresponderem a quota anualmente disponível do

fundo destinado para a emancipação.

Parágrafo 1o o fundo de emancipação compõe-se:

1o Da taxa de escravos

2o Dos impostos gerais sobre transmissão de propriedade de escravos.

3o Do produto de seis loterias anuais, isentas de impostos, e da décima

parte das que forem concedidas d'ora em diante para correrem na capital do

Império.

4o Das multas impostas em virtude desta lei

5o Das quotas que sejam marcadas no orçamento geral e nos provinciais

e municipais.

6o De subscrições, doações e legados com esse destino.

Parágrafo 2o As quotas marcadas no orçamento provinciais e

municipais, assim como as subscrições, doações e legados com destino local,

serão aplicadas a emancipação nas províncias, comarcas, municípios e

freguesias designadas.

Artigo 4o É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que

lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento

do senhor, obtiver de seu trabalho e economias. O governo providenciará nos

regulamentos sobre a colocação e segurança do mesmo pecúlio.

Parágrafo 1o Por morte do escravo metade do seu pecúlio pertencerá

ao cônjuge sobrevivente, se o houver, e a outra metade se transmitira a seus

herdeiros, na forma da lei civil. Na falta de herdeiros, o pecúlio será aplicado ao

fundo de emancipação de que trata o artigo 3o .

Parágrafo 2o O escravo que, por meio de seu pecúlio, obtiver meios

para indenização de seu valor, tem direito a alforria, se a indenização não for

165

Page 166: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

fixada por acordo o será por arbitramento. Nas vendas judiciais ou nos

inventários o preço da alforria será o da avaliação.

Parágrafo 3o É, outro sim, permitido ao escravo, em favor de sua

liberdade, contratar com terceiros a prestação de futuros serviços por tempo

que não exceda de sete anos, mediante o consentimento do senhor e

aprovação do juiz de órfãos.

Parágrafo 4o O escravo que pertencer a condôminos, e for libertado por

um destes, terá direito a sua alforria, indenizando os outros senhores da quota

do valor que lhes pertencer. Esta indenização poderá ser paga com serviços

prestados por prazo não mais de sete anos, em conformidade do parágrafo

antecedente.

Parágrafo 5o A alforria com a cláusula de serviços durante certo tempo

não ficará anulada pela falta de implemento da mesma clausula, mas o liberto

será compelido a cumpri-la por meio de trabalho nos estabelecimentos

públicos ou por contratos de serviços a particulares.

Parágrafo 6o As alforrias, quer gratuitas, quer a titulo oneroso, serão

isentas de quaisquer direitos, emolumentos ou despesas.

Parágrafo 7o Em qualquer caso de alienação ou transmissão de

escravos é proibido, sob pena de nulidade, repassar os cônjuges, e os filhos

menores de 12 anos, do pai ou mãe.

Parágrafo 8o Se a divisão de bens entre herdeiros ou sócios não

comportar a reunião de uma família, e nenhum deles preferir conservá-la sob o

seu domínio, mediante reposição da cota parte dos outros interessados, será a

mesma família vendida e o seu produto rateado.

Parágrafo 9o Fica derrogada a ord. Liv.4o , TIT.63, na parte que revoga

as alforrias por ingratidão.

Artigo 5º. Serão sujeitas a inspeção dos juizes de órfãos as sociedades

de emancipação já organizadas e que de futuro se organizarem.

Parágrafo único As ditas sociedades terão privilégios sobre os serviços

dos escravos que libertarem, para indenização do preço da compra.

Artigo 6o Serão declarados libertos:

Parágrafo 1o Os escravos pertencentes a nação, dando-lhes o governo

a ocupação que julgar conveniente.

Parágrafo 2o Os escravos dados em usufruto a coroa

166

Page 167: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Parágrafo 3o Os escravos das heranças vagas

Parágrafo 4o Os escravos abandonados por seus senhores se estes o

abandonarem por inválidos, serão obrigados a alimentá-los, salvo o caso de

penúria, sendo os alimentos taxados pelo juiz de órfãos.

Parágrafo 5o Em geral os escravos libertados em virtude desta lei ficam

durante cinco anos sob a inspeção do governo. Eles são obrigados a contratar

seus serviços sob pena de serem constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar

nos estabelecimentos públicos.

Cessará, porém, o constrangimento do trabalho sempre que o liberto

exibir contrato de serviços.

Artigo 7º. Nas causas em favor da liberdade

Parágrafo 1o O processo será sumário

Parágrafo 2o Haverá apelações ex-ofício quando as decisões forem

contrárias a liberdade.

Artigo 8o. O governo mandará proceder a matrícula especial de todos os

escravos existentes no Império com declaração do nome, sexo, estado, aptidão

para o trabalho e filiação de cada um, se for conhecido.

Parágrafo 1º O prazo em que deve começar a encerrar-se a matrícula

será anunciado com a maior antecedência possível por meio de editais

repetidos, nos quais será inserta a disposição do parágrafo seguinte:

Parágrafo 2o Os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados,

não forem dado a matrícula até um ano depois do encerramento desta, serão

por este fato considerados libertos.

Parágrafo 3o Pela matrícula de cada escravo pagará o senhor por uma

vez somente o emolumento de 500 reis, se o fizer dentro do prazo marcado, e

de 1$000 se exceder o dito prazo. O produto deste emolumento será destinado

as despesas da matrícula o excedente ao fundo de emacipação

Parágrafo 4o Serão também matriculados em livros distintos os filhos da

mulher escrava que por esta lei ficam livres.

Incorrerão os senhores omissos, por negligência, na multa de 100$ a

200$, repetida tantas vezes quantas forem os indivíduos omitidos, e, por

fraude, nas penas do artigo 179 do código criminal.

167

Page 168: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Parágrafo 5o Os párocos serão obrigados a ter livros especiais para o

registro dos nascimentos e óbitos dos filhos de escravos, nascidas desde a

data desta lei. Cada omissão sujeitará aos párocos a multa de 100$000.

Artigo 9o O governo em seus regulamentos poderá impor multas até

100$ e penas de prisão simples até um mês

Artigo 10o Ficam revogadas as disposições em contrário.

Manda portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e

execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar

tão inteiramente como nela se contém. O secretário de Estado dos negócios da

Agricultura, Comércio e obras públicas o façam imprimir, publicar e correr.

Dada no palácio do Rio de Janeiro, aos vinte e oito de setembro de mil

oitocentos e setenta e um, qüinquagésimo da independência do império.

Princesa Imperial Regente.

Theodoro Machado Freire Pereira da Silva

Para vossa alteza imperial ou

O conselheiro José Agostinho Moreira Guimarães a fez.

Chancellaria-mor do Império – Francisco de Paula de Negreiros

Sayão Lobato.

Transitou em 28 de setembro de 1871 –André Augusto de

Padua Fleury.∗

∗ Colleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,1871.

168

Page 169: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

ANEXO B – Projetado apresentado pelo Deputado Pedro Pereira da Silva Guimarães no ano de 1852 na Assembléia Legislativa do Império.

A ASSEMBLÉIA GERAL LEGISLATIVA DECRETA:

Art.1o - São livres da data da presente lei em diante todos os que no

brasil nascerem de ventre escravo.

Art.2o - São igualmente considerados livres os que nascidos em outra

parte vierem para o Brasil da mesma data em diante.

Art.3o - Todo aquele que criar desde o nascimento até a idade de 7 anos

qualquer dos nascidos no art. 1o , o terá por outro tanto tempo para servir,

e só então aos 14 anos ficará emancipado para bem seguir a vida que lhe

padecer.

Art.4o – Todo o escravo que der em remissão de seu cativeiro uma soma

igual ao preço que ele tiver custado a seu senhor, ou este o houvesse por

título oneroso ou gratuito, será o senhor obrigado a passar carta de

liberdade, sob pena do art. 139 do código criminal.

Art. 5o - Não havendo preço estipulado, o valor do escravo para ser

alforriado será designado por árbitros, um dos quais será o promotor

público da Comarca respectiva.

Art. 6o - Nenhum escravo casado será vendido, sem que seja igualmente

á mesma pessoa o outro consorte.

Art. 7o - O governo fica autorizado a dar os regulamentos precisos para a

boa execução da presente lei e igualmente a criar os estabelecimentos

que forem necessários para a criação dos que nascidos da data desta lei

em diante forem abandonados pelos senhores dos escravos.

Art. 8o - ficam revogadas as leis e disposições em contrário∗.

∗ Apud. GIRÃO, Raimundo. A Abolição no Ceará. Fortaleza: Prefeitura Municipal de Maracanaú, 1988, p. 36-37.

169

Page 170: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

ANEXO C – Decreto N 4960 – De 08 de maio de 1872 Altera o regulamento approvado pelo decreto n 4835 do 1o de dezembro

de 1871 na parte relativa a matrícula dos filhos livres de mulher escrava

Para evitar que a lei n 2040 de 28 de setembro do anno passado se

torne vexatória em sua execução, e que incorram na penalidade nella

communada as pessoas que de boa fé deixarem de matricular no mez de abril

próximo findo, os filhos livres de mulher escrava, nascidos até 24 de dezembro

do ano passado, hei por bem decretar.

Art. 1o Serão dadas as matrículas respectivas, até o fim de agosto de

1872, todos os filhos de mulher escrava nascidas desde o dia 28 de setembro

do anno passado até 31 do corrente mez de maio: e desta data em diante

dentro do prazo de trez mezes contados do nascimento. Os senhores das

escravas declararão nas relações que devem apresentar, quaes os menores

livres que tenham fallecido antes de serem dadas as matrículas.

Art.2o As relações dos matriculados até junho do corrente ano serão

enviadas no mez de outubro próximo futuro a diretório geral de estatística e aos

juizes de órfãos.

Art.3o Ficam revogados o art. 26 e a Segunda parte do art. 29 do

regulamento aprovado pelo decreto n 4835 de 1o de dezembro do anno

passado.

O Barão de Itaúna, no meu conselho, senador do Império, ministro e

secretário de Estado dos negócios da agricultura, commercio, obras públicas,

assim o tenha entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em oito de

maio de mil oitocentos e setenta e dois, quinquagésimo primeiro da

independência do Império.

Com a rubrica de sua majestade o Imperador Barão de Itaúna.∗

∗ Colleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,1872.

170

Page 171: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

ANEXO D – Acta da Sessão Magna realizada pela Associação Perseverança e Porvir que celebrou a criação da Sociedade Cearense Libertadora

Aos vinte dias do mez de maio do anno civil de mil oitocentos e oitenta

e oito, n'esta cidade de Fortaleza, capital da heroica província do Ceará, em

um dos salões do club iracema, a uma hora da tarde, o cidadão José Correia

do Amaral abrio a presente sessão magna.

Que esta democratica associação, progenitora dessa grande epopeia

civica que opulentou a historia patria sob o nome libertadora cearense,

solenemmente reconhecida ao governo imperial, que fez da vontade nacional

a ponte de apoio de seu programa de acção e reacção, vem prestar as suas

homenagens de amor e de gratidão aos poderes constituidos que fizeram, pela

vez primeira no segundo reinado, da opinião do paíz o mote de ordem para a

nova evolução do progresso, da reorganização politica e social do povo

brazileiro.

A – perseverança e porvir – que abrio diante da noite do seo paiz

escravisado a primeira pagina da libertação do Ceará, que tomou, na fila dos

mais fortes da vanguarda, lugar perpetuo em todas as lutas d'esses imortais

triunphadores, conquistando – posição que lhe assignala a rapida e gloriosa

historia d'essa evolução humanitaria, que foi começo d'essa grande reforma

realisada entre flores e hymnos por honrra nossa e amor da humanidade; vem,

agora, com o justo direito que lhe conferem os factos ainda palpitantes de

emoção na memoria publica, em pleno dia da gloria, diante da confraternização

comum de todos os brazileiros, saudar a patria livre e engrandecida perante o

congresso civico das nacionalidades

E justo que aquelles liberrimos carbonarios, que começaram a lucta e

evoluiram n'esta esplendida campanha, tendo por armas de combate a penna

como espada, a opinião como artilharia o povo como exercito e a imprensa

como campo aberto e vasto das vitorias proficuas; é justo, sim, que venham

com essa assemblea fortalecida e livre congratular-se com o ponto final do

triunfo completo da liberdade...

171

Page 172: OLHAR PARA ALÉM DAS EFEMÉRIDES · 2017. 2. 22. · CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira Olhar para além das efemérides: ser liberto no Ceará / CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. São Paulo:

Causou-nos um jubilo inefavel a espectação desse deslumbramento e

estupendo facto por nostão ansiosamente esperado:- a sanção da aurea lei

que iniciou a presente legislatura; desse projeto de dez dias que deslumbrou

as duas casas do parlamento percorrendo apenas a distancia que identificou

a coroa com o povo, a lei com a opinião, de cujo contacto nasceo como

cohesão social a igualdade brazileira:

- o sol da patria que alevantou-se por sobre a Bahia da

guanabara na aurea data da redempção nacional, devia Ter as

mesmas cores ardentes e iradas do sol de 14 de julho na França ,

da alvorada do 1o de janeiro no Acarape, da nossa aurora do 25 de

março

- a pequena história da perseverança e porvir- associação

constituída sob os mais solidos preceitos de confraternidade moral

e social para fins economicos, derivou, por uma gloriosa fatalidade,

para a ideia libertadora em cuja evolução se fundio, alistando os

mais activos de seus consorcios a sua primogenitura obra social – a

libertadora cearense.

- Organizada para negócios economicos e sem fim comercial

teve sempre em vista a repulsão do tráfico dos negros e d'essa

idéia que faz cohesão natural com a data de sua constituição, veio a

creação do peculio para escravos, a libertação por unidade a

construção popular da libertadora, a emancipação dos municipios ,a

redempção da provincia, a abolição total da escravidão no Brasil∗.

∗ Acta da Sessão Magna realizada pela Associação Perseverança e Porvir que celebrou a criação da Sociedade Cearense Libertadora . Fortaleza: Typ universal, 1890.

172