comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a

314
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a história de dois paralelos Rodrigo Bragio Bonaldo Tese de doutorado Porto Alegre, Dezembro de 2014.

Upload: others

Post on 08-Nov-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA

Comemoraccedilotildees e efemeacuterides ensaio episoacutedico sobre a

histoacuteria de dois paralelos

Rodrigo Bragio Bonaldo

Tese de doutorado

Porto Alegre Dezembro de 2014

2

RODRIGO BRAGIO BONALDO

Comemoraccedilotildees e efemeacuterides ensaio episoacutedico sobre a

histoacuteria de dois paralelos

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Histoacuteria

Orientador Temiacutestocles Cezar

BANCA EXAMINADORA

Dr Francisco Murari Pires (USP)

Dr Felipe Charbel Teixeira (UFRJ)

Dr Fernando Nicolazzi (UFRGS)

Dr Benito Bisso Schmidt (UFRGS)

Orientador Dr Temiacutestocles Cezar (UFRGS)

PORTO ALEGRE

Dezembro 2014

3

There is no great and no small

To the Soul that maketh all

And where it cometh all things are

And it cometh everywhere

I am the owner of the sphere

Of the seven stars and the solar year

Of Caesarrsquos hand and Platorsquos brain

Of Lord Christrsquos heart and

Shakespearersquos strain

RW Emerson History (Essays)

4

Agradecimentos

Esta tese representa o fim de um longo percurso geograacutefico e intelectual que

iniciou na periferia de antigas preocupaccedilotildees e que parece encerrar-se no centro de

novos interesses Devo admitir que escrever algumas linhas de agradecimentos eacute

tarefa aacuterdua para quem apenas consegue pensar atraveacutes de diaacutelogos imaginaacuterios

extrapolados de sentenccedilas ditadas pelos mais diferentes interlocutores Contato ocular

ou soslaio tiacutemido de minha parte pouco importaraacute

Apoacutes doze anos de formaccedilatildeo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

gostaria de comeccedilar agradecendo agrave instituiccedilatildeo que sempre me acolheu personificada

em seus professores funcionaacuterios e alunos Agravequeles com quem pude conviver com

maior intensidade em geral ligados como eacute de se esperar ao Departamento de

Histoacuteria ficam meus agradecimentos especiais A Temiacutestocles Cezar pela orientaccedilatildeo

amizade confianccedila e respeito intelectual Aos colegas de linha de pesquisa Lucas La

Bella Costa Evandro Santos Renata Dal Sasso Eliete Tiburski Pedro Silveira e

Vitor Batalhone pela constante interlocuccedilatildeo e eventual empreacutestimo de livros e fontes

A Luciana Boeira por tudo isso somado ao companheirismo fraternal do outro lado

do Atlacircntico Ainda ao trio de amigos que desde a graduaccedilatildeo satildeo meu elo mais forte

com a dimensatildeo materialista do pensamento histoacuterico Nauber Gavski da Silva

Guinter Tlaija Leipnitz e Fernando Cauduro Pureza No miacutetico apartamento da Lopo

Gonccedilalves 498 habitado pela alma de Custoacutedio natildeo haacute como se esquecer dos anos de

convivecircncia e conversas com Gabriel Focking A Tiago Ribeiro e Caacutessia Silveira

pequenos grandes personagens de minha vida intelectual

Tambeacutem devo render meus cumprimentos agrave famiacutelia Bonaldo que sempre me

apoiou Edison e Marise Alexandre e Ana igualmente a Vera Braggio

Ao governo brasileiro por ndash atraveacutes da CAPES ndash possibilitar natildeo apenas o

financiamento dessa pesquisa mas igualmente a experiecircncia de estaacutegio doutoral na

Franccedila Na Franccedila a Franccedilois Hartog professor que me acolheu durante um ano na

Escola de Altos Estudos em Ciecircncias Sociais de Paris e que me incentivou a estudar

5

as efemeacuterides Somado ao periacuteodo no exterior agrave co-orientaccedilatildeo e ao tempo na

Biblioteca Nacional francesa devo lembrar dos professores Benito Bisso Schmidt e

Fernando Nicolazzi participantes de minha banca de qualificaccedilatildeo durante a qual

realizaram criacuteticas cujo teor ndash mesmo que natildeo endereccedilado a isso ndash terminou por

modificar os rumos da pesquisa Agradeccedilo tambeacutem aos professores Francisco Murari

Pires e Felipe Charbel Teixeira membros da banca de doutorado e leitores criteriosos

de meu texto Embora natildeo tenha conseguido incorporar todas as suas contribuiccedilotildees

gostaria que soubessem que elas estaratildeo na pauta de minhas futuras reflexotildees

Por fim agradeccedilo a Bruna Vargas natildeo apenas pela correccedilatildeo de partes do

manuscrito mas pela paciecircncia mundana a minha eventual desatenccedilatildeo pelas questotildees

sublunares nos uacuteltimos dois anos Ainda devo algumas palavras a Michael

Uwemedimo pela ediccedilatildeo do resumo em liacutengua inglesa

Rodrigo Bonaldo

Florianoacutepolis Janeiro de 2015

6

Resumo

ldquoComemorar efemeacuteridesrdquo natildeo eacute apenas uma expressatildeo legiacutetima utilizada para

fazer referecircncia agrave celebraccedilatildeo de uma festa nacional Desde o final do seacuteculo XIX ao

menos em liacutengua portuguesa os dois termos tecircm sido associados como sinocircnimos A

presente tese representa um esforccedilo em compreender o desenvolvimento de dois

conceitos ndash comemoraccedilotildees e efemeacuterides ndash na longa duraccedilatildeo Os encontros e desvios

entre as praacuteticas associadas a um e a outro seratildeo pontuados atraveacutes da seleccedilatildeo de

episoacutedios intelectuais seguidos pelo exame de debates que os tocavam na periferia de

suas articulaccedilotildees

Na primeira parte dedicada agraves comemoraccedilotildees montei uma revisatildeo desse bem

conhecido toacutepico de estudos endereccedilada a uma uacutenica hipoacutetese a saber o ldquoofiacuteciordquo

comemorativo pode ser entendido como uma forma de comunicaccedilatildeo e transmissatildeo

geracional de valores Inspirado pelas fontes argumento que os eventuais pontos de

encontro entre o par de objetos propostos nesta tese satildeo anaacutelogos agraves interrelaccedilotildees

entre a ldquoordem do tempordquo e a ldquoordem da naturezardquo entre o tempo dos homens e o

movimento das estrelas

Neste drama conceitual se pudermos assim chamaacute-lo fariacuteamos perceber como

a superaccedilatildeo dos antigos modelos cosmoloacutegicos natildeo se esquivou em guardar para

assumir termo caro a Pomian uma loacutegica cronosoacutefica Se eu for bem sucedido esse

argumento deveraacute se expressar na segunda parte As efemeacuterides como taacutebuas do

movimento dos corpos celestes vieram sofrer uma lenta transiccedilatildeo rumo ao registro

dos feitos humanos Bebendo em fontes antigas e nas praacuteticas de emulaccedilatildeo

personagens bem conhecidos da primeira modernidade associaram o termo primeiro

aos diaacuterios pessoais depois ao jornalismo e nos seacuteculos seguintes agrave histoacuteria literaacuteria

religiosa e poliacutetica Na Franccedila as eacutepheacutemeacuterides emergem da revoluccedilatildeo jaacute como um

subgecircnero historiograacutefico No Brasil da segunda metade do seacuteculo XIX listas de

efemeacuterides encontram lugar comum junto agraves comemoraccedilotildees dentro dos debates do

7

IHGB Eacute no horizonte do projeto de naccedilatildeo que busco observar a uniatildeo dos paralelos

Esse horizonte ndash como um ponto de chegada ndash vai aparecer ao final de cada secccedilatildeo da

tese observado a partir da celebraccedilatildeo do quadricentenaacuterio da descoberta de Cabral

Palavras-Chave Comemoraccedilotildees Efemeacuterides Antigos e Modernos Histoacuteria da

Historiografia Projeto de Naccedilatildeo

8

Abstract

ldquoComemorar efemeacuteridesrdquo is a Portuguese phrase that despite its academic

ring is often used in the mainstream press It translates roughly as the

commemoration of an auspicious occasionrsquo and is used in reference to the public

marking of nationally significant events

By the end of the nineteenth century the two terms of this phrase came to be

synonymous in Portuguese This thesis represents an effort to understand the

development of these two terms ndash efemeacuterides and comemoraccedilotildees ndash over the longue

dureacutee The long-term similarities in the practical and public uses of these terms are

explored by tracing their discursive deployments and examining the debates that

surrounded such public uses

The first section dedicated to commemorations frames the analysis of this

much discussed topic with the following hypothesis the act of commemoration is a

form of moral utterance between generations it is the rehearsal and transmission of

collective values

Drawing on historical sources I argue that the eventual points of contact

between these terms can be seen as analogs to the discursive exchange and conflict

between the classical and peripatetic notions of the ldquoorder of timerdquo and the ldquoorder of

naturerdquo

In this conceptual drama one sees how the sublation of old cosmological

perspectives nevertheless still contains what I shall call ndash following Pomian ndash a

chronosophy This analysis leads to the second part of the thesis Efemeacuterides

originally tables of the movements of the celestial bodies ndash also known as almanacs ndash

underwent a slow transition from the celestial to the earthly from the charting of the

stars to the recording of human deeds Drawing on classical texts well-informed

readers of early modernity would have associated those writings in the first instance

with diaries then with journalism and in the following centuries with political

9

history Emerging from the French Revolution as a historiographical subgenre lists of

Efemeacuterides shared a common function with commemorations as nation-building

practices that described the horizon of a project to create national identity This

horizon as a meeting point of moral utterance and political project is explored at the

end of both sections of the thesis as it is observed in the quadricentenial celebration

of Cabralrsquos Discovery of Brazil It is at this horizon that the parallel developments of

comemoraccedilotildees and efemeacuterides promise to meet

Keywords Commemorations Ephemerides Ancients and Moderns History of

Historiography Nation-Building Process

10

SUMAacuteRIO

Agradecimentos_____________________________________________________4

Resumo____________________________________________________________6

Abstract____________________________________________________________8

Introduccedilatildeo A naccedilatildeo e o cosmos_______________________________________12

Da festa da federaccedilatildeo agrave federaccedilatildeo da memoacuteria _____________________________23

Parte I Comemoraccedilotildees

1 Entre a memoacuteria e a moral as comemoraccedilotildees como reparaccedilatildeo identitaacuteria

11 A grande forccedila___________________________________________________ 29

12 Entre a memoacuteria coletiva e os costumes_______________________________ 35

13 Comemoraccedilatildeo como dever de esquecimento____________________________41

14 Era das comemoraccedilotildees 10__________________________________________45

15 Dos homens ceacutelebres aos grandes homens______________________________46

16 Oficiar a moral dos grandes homens da naccedilatildeo___________________________63

2 Celebrar os mortos e editar a naccedilatildeo Poliacuteticas de memoacuteria e esquecimento

21 O espelho perfeito de Bonifaacutecio a Bonifaacutecio___________________________72

22 A lembranccedila como ato moral________________________________________76

23 Catalisadores do discurso moralista___________________________________88

24 Da crise moral ao grande jubileu_____________________________________94

25 A naccedilatildeo editada ou o Livro do Centenaacuterio_____________________________102

26 Oradores historiadores e magistrados morais___________________________120

Almas em movimento Chamado geracional ao som das estrelas_______________131

11

Parte II Efemeacuterides

3 Ordem da Natureza As efemeacuterides e os nuacutemeros da mudanccedila

31 Efemeacuterides antigas a ordem do tempo submissa________________________ 145

32 Primeiras experiecircncias cristatildes a ordem do tempo comemorada_____________156

33 A escolaacutestica e a via media_________________________________________161

34 Experiecircncias humanistas brechas na ordem natural______________________175

35 Conjunccedilotildees astrais e eventos sublunares_______________________________178

36 Le Roy e o Imperador uma (des)ordem da natureza____________________185

4 Ordem do Tempo O retorno das efemeacuterides agrave histoacuteria

41 Conhecer os ciclos preluacutedio de um eclipse da natureza _________________212

42 As Diatribes das Efemeacuterides________________________________________232

43 As efemeacuterides na escola de moral e de poliacutetica _________________________244

44 Uma moral e uma cosmologia ______________________________________251

Conclusatildeo Da perfeiccedilatildeo da alma e do progresso da naccedilatildeo________________266

Referecircncias bibliograacuteficas ____________________________________________284

12

A naccedilatildeo e o cosmos

O universo requer a eternidade Os teoacutelogos

natildeo ignoram que se a atenccedilatildeo do Senhor se

desviasse um uacutenico segundo de minha matildeo

destra que escreve esta tornaria a cair no

nada () Por isso afirmam que a

conservaccedilatildeo deste mundo eacute uma perpeacutetua

criaccedilatildeo e que os verbos conservar e criar

tatildeo antagocircnicos aqui satildeo sinocircnimos no Ceacuteu

Borges Histoacuteria da Eternidade

O tempo ainda estaacute na base de nosso problema como um dia esteve para

Borges Ciacuteclico linear senoidal progressivo ou decadente natildeo se trataraacute no entanto

de classificaacute-lo entre essas categorias mas de entender a forma como expressotildees

contingentes de sua experiecircncia julgaram fazecirc-lo em um longo caminho que natildeo

deixa de seguir a proacutepria temporalidade Mesmo o par de objetos propostos por esta

tese jaacute levanta a poeira que se esconde debaixo das claacutessicas formidaacuteveis e influentes

teses de Mircea Eliade ou Karl Loumlwith As efemeacuterides por mais que antecipem a

expectativa do retorno de uma configuraccedilatildeo astral natildeo poderiam senatildeo no sonho dos

profetas anular a constante revoluccedilatildeo das estrelas intervalos naturais sob os quais

dias e anos como em uma linha reta inexoravelmente continuam a passar As

comemoraccedilotildees por mais que sejam anunciadas pelos signos do progresso projetam a

lembranccedila atraveacutes dos muacuteltiplos de 7 lidos no livro do Jubileus ndash ou dos ciclos

avultados pelo nuacutemero 5 em sua versatildeo poacutes-leviacutetica do centenaacuterio Pareceria muito

sedutor periodizar ndash como se pudeacutessemos lhes encontrar o ritmo ideal ndash a histoacuteria de

dois conceitos paralelos entre uma era ciacuteclica dos annos orbis pagatildeos e uma era

linear e irreversiacutevel apregoada com clareza desde ao menos a escolaacutestica e

chancelada pela filosofia da histoacuteria iluminista e pela historiografia do seacuteculo XIX

Esse trajeto diria Eliade seria o capiacutetulo de uma filosofia da histoacuteria1

O que proponho no entanto eacute bem mais modesto e de todo particular Se

Krzysztof Pomian jaacute assinalava o caminho Franccedilois Hartog retomando o problema

da Ordem a partir da histoacuteria da historiografia cunhou o termo que norteia minha

reflexatildeo temporalizaccedilatildeo do tempo Tanto as efemeacuterides ndash humanas ou celestes ndash

1 ELIADE Mircea O mito do eterno retorno Satildeo Paulo Mercuryo 1992 p 5

13

quanto as comemoraccedilotildees ndash sagradas ou profanas ndash propotildee um tipo de cronologia ldquoA

esse primeiro e poderoso instrumento de temporalizaccedilatildeo do tempordquo escreveu Hartog

ldquosoma-se aquele que nomearei de domesticaccedilatildeo da simultaneidade do natildeo-

simultacircneordquo dentro do qual entre as muitas imagens que poderiacuteamos lhe associar

encontramos a necessidade de nos manter atentos agrave coexistecircncia da diversidade das

formas de configuraccedilatildeo temporais2 Que relaccedilatildeo efemeacuterides e comemoraccedilotildees na

marcha da longa duraccedilatildeo manteacutem com a ordem do tempo e aquilo que inspirado

pelas fontes chamarei de ordem da natureza De que maneira e sob qual contexto se

daacute no caso brasileiro o encontro semacircntico ndash pouco evidente em outras liacutenguas ndash

entre os dois conceitos que busco esclarecer

A celebraccedilatildeo do quadricentenaacuterio da naccedilatildeo brasileira a reafirmaccedilatildeo e

reificaccedilatildeo de uma identidade geral aqui faz as vezes natildeo de um estudo de caso ou de

um laboratoacuterio particular mas de um ponto de chegada Inicialmente imaginei esta

tese como um estudo do desenvolvimento das comemoraccedilotildees nacionais de 1900

talvez de 1908 e de 1922 ao lado daquela do ano 2000 Mais do que isso o objetivo

de meu projeto era dar conta do que imaginava ndash hoje acredito superestimando as

fontes ndash ser o gecircnero comemorativo por excelecircncia do tempo presente as narrativas

jornaliacutesticas da histoacuteria esses best-sellers contemporacircneos que me ocuparam por dois

anos durante o mestrado A experiecircncia de pesquisa na longa duraccedilatildeo outrossim me

fez logo tomar conhecimento da antiguidade da contingecircncia e da diversidade dos

topoi que poderiam ser lidos como comemorativos

O encontro mais iacutentimo que tive com o conceito de efemeacuteride em minha

experiecircncia de intercacircmbio doutoral na Franccedila terminou salvando-me de abraccedilar uma

tarefa inexequiacutevel Eacute por volta do ano do grande jubileu nacional quando os saacutebios

os publicistas e os oradores da naccedilatildeo sentem-se banhados pelas ondas comemorativas

do fin de siegravecle que debates realizados no ciacuterculo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico

Brasileiro comeccedilam a sinalizar o improvaacutevel choque dos paralelos Pouco depois os

conceitos tornariam-se algo como sinocircnimos imperfeitos e diversos oacutergatildeos oficiais ou

associaccedilotildees privadas poderiam enunciar a frase ldquocomemorar efemeacuteridesrdquo Essa uniatildeo

semacircntica parcial e original natildeo seria possiacutevel de todo modo sem o diaacutelogo e o

intercacircmbio de textos e ideias entre o Brasil e outras naccedilotildees entre as comemoraccedilotildees

2 HARTOG Franccedilois La temporalisation du temps une longue marche Texto apresentado em

conferecircncia ministrada por Franccedilois Hartog no dia 10 de outubro de 2011 como participaccedilatildeo no

Programa Caacutetedras IEATFUNDEP p 1

14

revolucionaacuterias europeacuteias e americanas o centenaacuterio lusitano de Camotildees e os

modelos literaacuterios franceses lidos nas populares eacutepheacutemeacuterides Entretanto seria preciso

esperar ateacute o seacuteculo seguinte no arrebentar de outras ondas comemorativas para

observarmos jaacute tanto mareados a dicionarizaccedilatildeo dos dois termos finalmente como

sinocircnimos3

ldquoEntatildeo o seu trabalho pretende usar um meacutetodo comparativordquo perguntou-me

o entatildeo presidente da EHESS Apenas o fato de desfilar pelos corredores do oitavo

andar do novo preacutedio da instituiccedilatildeo perfilado por nomes para mim quase miacuteticos a

cada porta ndash nomes que eu conhecia e admirava desde a graduaccedilatildeo ndash jaacute era motivo

para certo nervosismo Mas ouvir o professor Hartog explicar meu proacuteprio trabalho

apoacutes uma breve exposiccedilatildeo feita em um confuso e balbuciante francecircs teve ares de

epifania Felizmente ele natildeo era o tipo de erudito que se deixava impressionar com a

ingenuidade e a ignoracircncia dos alunos mensagem que escutei em sua tiacutemida e sincera

risada ao me ouvir insinuar uma possiacutevel relaccedilatildeo entre o termo efemeacuteride e o filoacutesofo

Evecircmero Com um bom inventaacuterio de fontes e indicaccedilotildees bibliograacuteficas apoacutes

acompanhar ao longo do ano letivo de 2011-2012 um seminaacuterio intitulado

precisamente Temporalisation du Temps tentei dar conta de integraacute-los em uma

contribuiccedilatildeo original Descobri que minhas suspeitas natildeo eram de todo desbaratadas

e que a relaccedilatildeo entre o tempo coacutesmico das efemeacuterides e os ancestrais divinizados pela

memoacuteria das geraccedilotildees posteriores ndash se natildeo falha minha primitiva leitura de Evecircmero ndash

tornava-se clara (ainda que em meados da modernidade jaacute por distinccedilotildees

metafoacutericas) nos ofiacutecios comemorativos mesmo que eu tenha de bom grado

abandonado a busca de um elo semacircntico que nem o mais alucinado dos filoacutelogos

oitocentistas teria coragem de traccedilar

Escrever sobre comemoraccedilotildees nacionais natildeo deveria representar um grande

desafio A literatura a respeito como se deveria imaginar cresceu junto agraves vagas

celebrativas do final do seacuteculo XX Graccedilas a esses ciclos pude ter acesso a um grande

nuacutemero de trabalhos publicados na Franccedila e na Inglaterra nos Estados Unidos e no

Brasil Quem seguir o raciociacutenio de Pierre Nora referecircncia unacircnime no campo

tenderaacute a ver as comemoraccedilotildees articuladas em torno de duas palavras de ordem a

3 O primeiro dicionaacuterio a fazecirc-lo incluindo a passagem ldquo3 comemoraccedilatildeo de um fato importante de

uma data etcrdquo foi tardiamente HOUAISS Antocircnio VILLAR Mauro de Salles FRANCO Francisco

Manoel de Mello Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Riod e Janeiro Objetivo 2001 p 1102

entrada Efemeacuteride

15

geraccedilatildeo e os centenaacuterios4 O desafio aqui seria o de pensar esses fenocircmenos na longa

duraccedilatildeo ou seja suas praacuteticas antes das grandes ondas do final do milecircnio ndash as

comemoraccedilotildees antes de Nora ndash deslocadas portanto daquilo que Hartog diagnosticou

como um presente presentista e agora reunidas ao lado do patrimocircnio e da memoacuteria

no refuacutegio comum da identidade5

Dividido em duas partes o estudo que apresento eacute ainda intercalado entre dois

outros textos No proacutelogo uma breve leitura da festa da federaccedilatildeo ndash feita sobre os

despojos da majestade de Michelet ndash tenta lanccedilar um luminar propedecircutico a respeito

natildeo das comemoraccedilotildees antes de Nora mas propriamente da memoacuteria coletiva antes

de Halbwachs Ao longo da primeira comemoraccedilatildeo moderna natildeo se trata de buscar

uma origem algo grandiosa do fenocircmeno jaacute descrito nos Quadros Sociais mas tatildeo

somente um iniacutecio possiacutevel lido pelo espiritualismo republicano francecircs atraveacutes de

estampas coloridas por expressotildees como ldquounanimidade dos espiacuteritosrdquo ou ldquosubstacircnciardquo

nacional expressotildees que apontam ndash em uma perspectiva quiccedilaacute ligada agrave ideia de

Benjamin Constant sobre a liberdade representativa dos modernos ndash ao paralelo com

o problema da alma entre os antigos

De Ciacutecero a Durkheim dele a seu seguidor Halbwachs e de laacute ateacute a polecircmica

com Marc Bloch inicio o primeiro capiacutetulo indicando os aspectos de uma religiatildeo

ciacutevica sob os quais se revestem os chamados ldquocultos positivosrdquo dentre os quais

Alexandre Herculano jaacute na Portugal do seacuteculo XIX parecia designar um papel

especial ao historiador Comeccedilo a falar igualmente dos centenaacuterios do fin de siegravecle

dando atenccedilatildeo especial ndash interessado no sacerdoacutecio moral ndash ao cerimonial de seus

supostos representantes os grandes homens Conceito que acompanho em Victor

4 NORA Pierre Lrsquoegravere de la commeacutemoraison In Les lieux de meacutemoire III Paris Gallimard 1984 v 3

p 982-983 5 ldquoAssim esse presente que reina aparentemente absoluto ldquodilatadordquo suficiente evidente mostra-se

inquieto Ele queria ser seu proacuteprio ponto de vista sobre si mesmo e descobre a impossibilidade de se

fiar nisso mesmo na transparecircncia das grandes plataformas de Beaubourg Ele se mostra incapaz de

preencher a lacuna no limite da ruptura que ele proacuteprio natildeo cessou de aprofundar entre o campo de

experiecircncia e o horizonte de expectativa Escondido na sua bolha o presente descobre que o solo

desmorona sob seus peacutes Reneacute Magritte poderia ter pintado isso Trecircs palavras chave resumiram e

fixaram esses deslizamentos de terreno memoacuteria mas trata-se na verdade de uma memoacuteria

voluntaacuteria provocada (a da histoacuteria oral) recontruiacuteda (da histoacuteria portanto para que se possa contra

sua histoacuteria) patrimocircnio ndash 1980 foi decretado o ano do Patrimocircnio ndash o sucesso da palavra e do tema (a

defesa a valorizaccedilatildeo a promoccedilatildeo do patrimocircnio) acompanha a crise da proacutepria noccedilatildeo de ldquopatrimocircnio

nacionalrdquo comemoraccedilatildeo de uma comemoraccedilatildeo agrave outra poderia ser o tiacutetulo de uma crocircnica dos uacuteltimos

vinte anos Esses trecircs termos apontam para um outro que eacute como seu lar a identidaderdquo HARTOG

Franccedilois Regimes de historicidade presentismo e experiecircncias do tempo Autecircntica Belo Horizonte p

156 e passim

16

Cousin e Thomas Carlyle ainda em RW Emerson e Augusto Comte atento a

identificar seus leitores em Portugal e no Brasil

Eacute essa relaccedilatildeo do Brasil com outras naccedilotildees da geraccedilatildeo portuguesa de 1870

com a sua contraparte brasileira que marca o tom do segundo capiacutetulo Nele entro

mais propriamente no que chamarei de ldquoofiacutecios comemorativosrdquo retomados no

contexto dos diaacutelogos intelectuais que refaziam ao ritmo dos navios a vapor a

aventura de Cabral embora tambeacutem singrando o caribe rumo agrave Ameacuterica do Norte Se

no capiacutetulo anterior tento escrevinhar algumas linhas a respeito das comemoraccedilotildees

nacionais durante o Impeacuterio agora iremos nos aproximar dos ciclos dos centenaacuterios

O objetivo primordial eacute deixar que as ondas de memoacuteria nos carreguem ateacute as praias

do Rio de Janeiro do ano de 1900 Quanto mais o fizermos mais sentiremos a

necessidade de entendermos o sentido que as fontes naquele momento atribuiam agrave

ordem do tempo Falava-se muito em progresso eacute verdade e nisso o trabalho pioneiro

de Wanderley da Rocha em dissertaccedilatildeo defendida dois anos antes dos 500 de Cabral

torna-se uma referecircncia incontornaacutevel Mas falava-se em igual medida de decadecircncia

e o descompasso sentido entre desenvolvimento teacutecnico e a crise moral seraacute lido a

partir das referecircncias citadas pelos proacuteprios colaboradores do Livro do Centenaacuterio

Dentro desse contexto qual seria o valor atribuiacutedo agraves comemoraccedilotildees Eacute na dinacircmica

entre progresso e decadecircncia verdadeira agoniacutestica da memoacuteria coletiva subscrita nas

entrelinhas do ldquootimismordquo da imprensa e dos oradores oficiais que proponho

observarmos as propostas de reafirmaccedilatildeo e reificaccedilatildeo daquilo que seraacute chamado mais

tarde de identidade nacional

O intervalo que segue a primeira parte eacute destinado natildeo apenas ao sonho dos

leitores mas igualmente a defender a necessaacuteria tarefa de escutar mais do que de

evidenciar os nexos que ligavam no intervalo das vidas humanas o espaccedilo da

geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo ciacutevicas presentes ao menos desde as anacicloses da geraccedilatildeo de

Poliacutebio Recortei senatildeo uma uacutenica fonte parte final da Repuacuteblica de Ciacutecero essa

imitaccedilatildeo do trabalho homocircnimo do filoacutesofo da academia ateniense Com certa

liberdade que a distacircncia dos seacuteculos delega agrave imaginaccedilatildeo histoacuterica no melhor sentido

collingwoodiano planejo prestar tributo ao Sonho de Cipiatildeo lendo-o como um

chamado geracional Busco fazer ouvi-lo como um apelo em nome da virtude ciacutevica

o qual antecipava as expectativas dos optimus e campeotildees da coisa puacuteblica

modestamente mantendo-o em paralelo ao repertoacuterio das vozes puacuteblicas que jaacute se

fizeram ouvir no capiacutetulo anterior A relaccedilatildeo de alteridade forma fundamental de

17

comunicaccedilatildeo que ilumina pela diferenccedila os mais variados povos humanos quer no

espaccedilo quer no tempo deixa escapar ainda assim questotildees sobre a trajetoacuteria da alma

a transmissatildeo dos valores a memoacuteria e o esquecimento da posteridade temperadas

mais de milecircnio e meio mais tarde pelas metaacuteforas celestes na exaltaccedilatildeo moderna dos

grandes homens e da naccedilatildeo

Tal imagem dos paralelos aliaacutes expediente fundamental da historia magistra

inspirou por muito tempo os modernos leitores de Plutarco e de suas vidas

encontrando seu auge ndash tanto no sentido de zecircnite ndash com os Romanos e Franceses de

Mably ndash quanto na acepccedilatildeo dos iniacutecios da decadecircncia ndash dado jaacute o impasse registrado

por Hartog da Revoluccedilatildeo Antiga e Moderna de Chateaubriand6 O paralelo era entatildeo

um tipo especial de comparaccedilatildeo entre gregos e romanos nos tempos de Plutarco

entre antigos e modernos agrave eacutepoca das querelas7 Em meu trabalho a figura encontra

esse sentido embora muito menos enquanto um instrumento balizador de accedilotildees

devendo a uma ordem coacutesmica o princiacutepio da imutabilidade humana como algueacutem

poderia ler nos gregos nem tampouco eacute claro pela vocaccedilatildeo retoacuterica de modelos de

virtude como poderia-se fazer notar em Perrault Devo ao topos antigo senatildeo a

possibilidade do exerciacutecio de um ldquoolhar distanciadordquo Nesse vetor horizontal os

paralelos correriam distanciados pelos seacuteculos protegidos pela integridade de suas

contingecircncias8

Mas natildeo se trata de uma busca da origem dos conceitos nem dos arqueacutetipos de

suas praacuteticas A linha de Ariadne que se movimenta por vezes agrave busca de analogias

entre antigos e modernos eacute na verdade uma caccediladora de seus debates e para isso

segue o desenvolvimento das fontes Se escrever sobre comemoraccedilotildees eacute em grande

parte revisitar um fenocircmeno que ganha atenccedilatildeo crescente escrever sobre efemeacuterides

por sua vez demonstrou-se uma tarefa mais complexa Desconheccedilo trabalhos que

tenham se interessado em refazer mesmo ao sabor do esboccedilo episoacutedico e incompleto

6 Chauteaubriand imaginava-se como um nadador entre dois seacuteculos preso a tarefa siacutesifica de alcanccedilar

a outra margem do rio da histoacuteria incapacitado de fazecirc-lo como sentia-se pelo peso de suas

experiecircncias Ver a instigante anaacutelise de HARTOG Franccedilois Les Anciens les Modernes les Sauvages

ou le Temps des Sauvages In Chateaubriand le Tremblement du Temps Berchet Presses

Universitaires du Mirail Toulouse 1994 p 177-200 7 HARTOG Franccedilois Du parallegravele agrave la comparaison In Entretiens drsquoarcheacuteologie et drsquohistoire

Plutarque Grecs et Romans em questions 1998 pp 161-171 8 Estou longe portanto do paralelo como ldquoconcursordquo entre povos tal como descrito em uma leitura

retoacuterica ligada ao gecircnero demonstrativo por GICQUIAUD Greacutegory La balance de Clio reacuteflexions

sur la poeacutetique et la rheacutetorique du parallegravele In Marc Andreacute Bernier (org) Parallegravele des anciens et des

modernes Rheacutetorique histoire et estheacutetique au siegravecle des Lumiegraveres Presses Universitaires Laval

2007

18

que apresento o caminho de seu conceito Tampouco encontrei um estudo comparado

entre seus usos afinal natildeo seria um conceito deslocado das praacuteticas meramente uma

palavra Existem no entanto toda uma seacuterie de estudos que senatildeo as citam de

passagem resolveram dissertar sobre a especificidade de algumas de suas

manifestaccedilotildees As efemeacuterides ndash como veremos a partir do terceiro capiacutetulo ndash correm

tambeacutem paralelamente agraves comemoraccedilotildees Como dois conceitos de movimento

compartilham o ritmo da ordem do tempo ainda que as tarefas a eles associadas os

distanciem interditando-os de confundirem suas representaccedilotildees antes que as praacuteticas

natildeo o faccedilam Momentos de aproximaccedilatildeo no entanto nunca deixaram de ser comuns

embora suas circunstacircncias tenham oscilado no arranjo das imitaccedilotildees e na editoraccedilatildeo

criativa de modelos

Tomei conhecimento desde cedo das Efemeacuterides de Alexandre escritas

provavelmente pelo secretaacuterio do rei e futuro diaacutedoco do reino do Ponto Eumenes de

Caacuterdia mas perdidas para sempre envolta nos misteacuterios da morte do monarca ou

consumidas pelas chamas da biblioteca de Alexandria Ignorar o grego seria um

desafio ainda maior natildeo fosse eacute claro o cuidado da geraccedilatildeo de Poliacutebio em

transcerver-lhe em latim o significado dos modelos Aleacutem do precircambulo representado

por obras esquecidas essa eacute em todos os efeitos uma histoacuteria que comeccedila na Roma de

Cipiatildeo embora seus sonhos eacute claro possam nos transportar para a Atenas do seacuteculo

V ou um pouco aleacutem Das efemeacuterides histoacutericas narrativa dia-a-dia dos feitos dos

homens ndash em Isiodoro jaacute um subgecircnero de narratio rei gestae ndash fui obrigado a

aventurar-me no solo movediccedilo de praacuteticas que seriam desde os primoacuterdios do

iluminismo de Bayle o pinaacuteculo das supersticcedilotildees travestidas de arte

Natildeo julguei necessaacuterio como um dia o fez Thorndyke incluir uma nota de

rodapeacute desculpando-me frente ao leitor por colocar um saber maldito em seu

ldquoverdadeiro lugar na histoacuteria da ciecircnciardquo Apenas registro que estudar os saberes

celestes entre antigos e modernos faz-me sentir tatildeo astroacutelogo quanto meu irmatildeo

aracnoacutelogo desejaria se tornar um animal de oito patas Tampouco por outro lado

planejei travestir esta tese em alguma espeacutecie de oficializaccedilatildeo da memoacuteria disciplinar

das ciecircncias naturais Galileu encomendara horoacutescopos a seus filhos papas e reis

mantinham astroacutelogos em suas cortes e mesmo Newton nutria conhecido interesse

pela astrologia inferior Muitos antepassados da ciecircncia moderna foram bruxos

dotados de racionalidade defensores do texto e leitores do cosmos E para decodificaacute-

lo eles necessitavam do caacutelculo das efemeacuterides celestes

19

A ordem natural peripateacutetico-ptolomaica encontrou seus limites na medida em

que incetivava olhares aos ceacuteus fazendo que alguns entrevessem entre as rachaduras

constatadas pela autoacutepsia no edifiacutecio das autoridades a proximidade do fim dos

tempos O uso do princiacutepio da influecircncia celeste previa mas o diluacutevio e a

conflagraccedilatildeo natildeo vieram Olhando mais de perto com ajuda da arte telescoacutepica a lua

dos esboccedilos de Galileu parecia muito pouco com as esferas perfeitas dos autores

claacutessicos dotada de picos mares e imperfeiccedilotildees como se a esfera superior estivesse

tambeacutem sujeita agrave geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo Natildeo pretendo no entanto evocar a faacutecil

vitoacuteria de uma ldquorevoluccedilatildeo cientiacuteficardquo Lenta mudanccedila de praacutetica como veremos a

transiccedilatildeo do ouvido agrave visatildeo que fez os fenocircmenos celestes passarem de sinais

catastroacuteficos e morais a meros fatos naturais natildeo parece ter sido sempre linear e

progressiva Caso fosse possiacutevel deduzir certa ldquoaceleraccedilatildeo do tempordquo com o advento

da imprensa teremos que admitir tanto constrangidos que as fontes natildeo liam os

fenocircmenos registrados por elas sequer como tiacutemidos ldquoexcessos de informaccedilatildeordquo Os

limites da ordem natural do cosmos medieval esbarrariam em formas de representaccedilatildeo

que se apontavam para o futuro esse seria um porvir que insistiria em ser lido nos

textos autoritativos do Livro Sagrado envoltos em escatologia milenarismo ou ainda

expressos pelos signos do ldquogrande medordquo A evidecircncia de um ldquobeco sem saiacutedardquo para

usar expressatildeo cara a Pomian eacute o papel da pequena comparaccedilatildeo que ofereccedilo entre as

leituras de Louis Le Roy e Padre Antocircnio Vieira a respeito da correspondecircncia entre

os fenocircmenos celestes e o destino dos homens e dos Estados

A crise dos modelos alexandrinos foi cercada pelo desenvolvimento da oacutetica

da filologia e do descaso pelas supersticcedilotildees Mas se no seacuteculo XVII Spinoza jaacute

acreditava que o tempo biacuteblico havia chegado ao fim natildeo seria demais lembrar que

como fatalidade linear ele insistiu em retornar atraveacutes dos ciclos dos jubileus O

mesmo acontecera com a ordem da natureza natildeo mais propagada apenas por um

intransigente seacutequito de aristoteacutelicos nem menos ainda por grupos de astroacutelogos e

miacutesticos relegados ao uacuteltimo degrau da repuacuteblica das letras Palavras muito bem

vindas poderiam ser enunciadas a respeito do direito natural ateacute hoje debatido

embora deva advertir desde jaacute natildeo eacute esse o caminho ao qual as fontes me levaram Jaacute

no capiacutetulo quatro ao se aproximarem do seacuteculo das luzes as efemeacuterides reafirmam

seu sentido claacutessico de narrativa dia-a-dia aproximando-se natildeo da luz advinda das

esferas celestes mas daquela produzida pela reuniatildeo dos homens na esfera puacuteblica Eacute

no publicismo preacute-revolucionaacuterio que retomarei os debates encabeccedilados por nomes

20

bem conhecidos da histoacuteria da histoacuteria contra um inimigo comum os ldquofiloacutesofos

economistasrdquo esse seacutequito religioso que insistia em incluir a ordem natural na pauta

dos direitos inalienaacuteveis da propriedade privada e do livre comeacutercio Se a aceleraccedilatildeo

dos ciclos naturais sentida pelos renascentistas parecia apressar a histoacuteria a seu fim

biacuteblico os debates protagonizados nas efemeacuterides puacuteblicas poucos anos antes de

1789 foram um dos muitos agentes testemunhais do progresso revolucionaacuterio

Agrave eacutepoca da revoluccedilatildeo assistiremos a reemergecircncia das efemeacuterides histoacutericas

modelos que seratildeo glosados imitados e divulgados pelos quatro cantos do globo

Parte delas ainda parecia guardar entretanto algo dos sarrabais dos lunaacuterios dos

almanaques e das ephemeris dos seacuteculos anteriores Na Franccedila da restauraccedilatildeo uma

dessas fontes como veremos aparentava nutrir esperanccedilas no retorno da esfera

puacuteblica ao seu lugar natural Sua acircnsia em projetar o futuro como se apenas dessa

maneira pudessem completar o passado significando o presente manteacutem entre as

efemeacuterides como vou propor inspirado ainda em Pomian uma potencialidade

cronosoacutefica a qual escreve o porvir em linhas gerais a partir de um discurso de

verdade ldquomisto de profecias e periodizaccedilotildeesrdquo9 Trata-se de um tipo especial de

prognoacutestico pois sua fortaleza eacute construiacuteda como o resultado loacutegico de um sistema

baseado em um conjunto de fatos previamente ordenados no tempo com precisatildeo de

dias apresentando-os como a mateacuteria bruta da histoacuteria Populares no seacuteculo XIX as

eacutepheacutemeacuterides anunciavam natildeo mais a influecircncia das conjunccedilotildees e eclipses das esferas

celestes no mundo sublunar mas julgavam influenciar a esfera puacuteblica rumo agrave tarefa

de naturalizar a grandeza moral de certos personagens poliacuteticos atraveacutes de um

trabalho de memoacuteria

A proximidade do centenaacuterio da grande comemoraccedilatildeo ndash momento em que a

fala do orador faz os paralelos se tocarem ndash ocasionou no caso brasileiro uma seacuterie

de discussotildees no IHGB que terminaram por chancelar as efemeacuterides como um gecircnero

comemorativo ndash e frente ao julgamento da vontade poliacutetica dos pareceristas ora

aceitas pelo Instituto ora vistas como mais proacuteprias para as folhas diaacuterias

Relacionadas a datas natildeo escapariam a polecircmicas em especial durante um momento

em que a transiccedilatildeo para a repuacuteblica fazia o IHGB perder grande parte de seu prestiacutegio

anterior Tanto alheias ao Instituto vozes de uma autoproclamada ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo

com forte suporte publicista acreditariam anunciar o futuro da naccedilatildeo sob a imagem

9 HARTOG 2013 p 31

21

de uma velha ordem natural A investiccedilatildeo a respeito dos valores atribuiacutedos aos

conceitos de comemoraccedilatildeo e efemeacuteride encontraria agora um ponto de equiliacutebrio no

movimento de um tempo nacional como se seu projeto ndash o horizonte da naccedilatildeo ndash

fizesse igualmente as vezes de uma intersecccedilatildeo entre duas linhas paralelas

22

Proacutelogo

23

Da festa da federaccedilatildeo agrave federaccedilatildeo da memoacuteria

Comemorar a tomada da Bastilha festejar a revoluccedilatildeo ou projetar a naccedilatildeo Na

ordem das questotildees passado presente ou futuro Em julho de 1790 Paris com uma

Assembleia Nacional sua proacutepria federaccedilatildeo um prefeito seus comissaacuterios

municipais sua guarda nacional ainda assim estava atrasada estupefata agrave espera dos

ldquo26000 delegados vindos de todos os cantos da Franccedilardquo10

Frente agrave hesitaccedilatildeo e agrave calculada lentidatildeo das autoridades um perioacutedico local o

Chronique de Paris publica uma carta assinada pelo granadeiro Cartheri na qual o

simples ldquosoldado-cidadatildeordquo exortava seus compatriotas a auxiliarem nos preparativos

para a grande festa

Quereis caros compatriotas tornar completo vosso fermento

ciacutevico () Aquela que foi tatildeo bem sucedida aquela que nos

eacute hoje familiar a reuniatildeo de nossas vontades a vontade

nacional E qual eacute a circunstacircncia mais favoraacutevel a essa

empresa que aquela que se prepara para o 14 de julho11

A repercussatildeo dessa pequena carta publicada dia 5 sob a cartola das

ldquovariedadesrdquo teria sido acompanhada por uma intensa movimentaccedilatildeo popular a partir

do iniacutecio do mecircs milhares de parisienses de todos os gecircneros e classes atenderiam ao

chamado revolucionaacuterio como se representassem enfim a tal vontade nacional

Os aristocratas com a aboliccedilatildeo de seus privileacutegios datando de poucos dias eacute

claro tinham todos os motivos do mundo para se preocupar12 Em suas memoacuterias o

marquecircs de Ferriegraveres traria relatos do clima de hostilidade e sarcasmo que as

multidotildees do Champ-de-Mars armavam contra a jaacute antiga classe dominante Mesmo a

imprensa revolucionaacuteria com seus interesses em jogo tentava acalmar os acircnimos

10 BERNE Paul Souvenir du 14 Juillet 1880 Trois dates Fecircte nationale du 14 juillet 1880 Le 14

juillet 1789 Le 14 juillet 1790 Imp De Menaboeuf-Genin Lyon 1880 Monographie imprimeacutee p

26 11 Voulez-vous chers compatriotes rendre complet votre ferment civique () Celle qui nous a si bien

reacuteussi celle que nos est aujourdrsquohui familiegravere la reacuteunion geacuteneacuterale de nos volonteacutes la volonteacute nationale

Et quelrsquoe circonstance plus favorable agrave cette enterprise que celle qui se preacutepare pour le 14 julliet

Chronique de Paris T2 Paris monographie imprimeacutee 5 de Julho de 1790 p 742-743 12 Sobre a aboliccedilatildeo da nobreza em 19 de junho de 1790 e a reaccedilatildeo da aristocracia ver DOYLE W

Aristocracy and its Enimies in the Age of Revolution Oxford Oxford University Press 2009 p 239

24

Uma coisa uma soacute coisa pode infligir um observador

patriota nesses belos dias As paacutes de muitos cidadatildeos foram

decoradas com divisas ameaccediladoras contra os aristocratas

() O caraacuteter de um povo livre eacute subjugar o orgulho e

perdoar os vencidos Os aristocratas natildeo satildeo mais dignos de

sua ira13

Ferriegraveres chega a mencionar como o faria mais tarde Michelet que tanto os

aristocratas quanto os revolucionaacuterios suspeitavam de uma grande conspiraccedilatildeo A

nobreza temia um massacre jaacute no dia 14 enquanto que os revolucionaacuterios

suspeitavam de um plano para distrair os manifestantes e com a cidade entregue agraves

moscas saqueaacute-la queimaacute-la e assassinar seus habitantes14

Afinal ldquoconduzir essas massas indisciplinadas a Paris ao centro da agitaccedilatildeordquo

seria mesmo desejaacutevel Ainda teriacuteamos que esperar alguns anos como veremos mais

tarde nesta tese para a invenccedilatildeo do termo vandalisme (impossiacutevel pensaacute-lo sem a

ideia de patrimocircnio) mas outras palavras deviam fazer sua vez ldquoe o rei o que

aconteceraacute a elerdquo ldquoEis o que os realistas se diziam com terrorrdquo ldquoO reirdquo diriam os

jacobinos tambeacutem pela boca de Michelet ldquoo rei vai fazer a conquista de todo esse

povo creacutedulo que nos chegaraacute das proviacutencias Essa perigosa reuniatildeo vai amortecer o

espiacuterito puacuteblico () Ela vai monarquizar a Franccedilardquo15

Na Assembleia Nacional tanto aqueles que sentavam agrave esquerda do

presidente quanto os que se posicionavam a sua direita pareciam natildeo conseguir

compreender a dimensatildeo do fenocircmeno popular Natildeo sabiam o que ele era embora

soubessem que natildeo o queriam ali Seu temor natildeo era por conta dos delegados que jaacute

se instalavam no Hocirctel de Ville Seu temor era por conta dos milhares de cidadatildeos

que de todos os lados do paiacutes prometiam um conjunto de grandes peregrinaccedilotildees

rumo agrave capital era o temor de que muitos mais do que a ordem poderia admitir

fossem integrados pela naccedilatildeo no novo pacto federativo

Em 6 de julho de 1790 o Chronique de Paris escreve que a poliacutecia e os

funcionaacuterios puacuteblicos haviam rejeitado a proposta de apoio popular agraves obras da festa

13 ldquoUne chose une seule chose pouvoit affliger un observateur patriote dans ces beaux jours Les

pelles de beaucoup de citoyens eacutetoient orneacutees de devises menaccedilantes contre les aristocrates () le

caractegravere drsquoun peuple libre est de dompter les superbes et de pardonner aux vaincus Les aristocrates

ne sont plus dignes de votre courrouxrdquo Reacutevolutions de Paris 17900703 (T4N52)-17900710 p 755 14 FERRIEgraveRES Meacutemoires du Marquis de Ferriegraveres Paris Baudouin Fils 1822 pp 88-89 15 MICHELET Jules Histoacuteria da Revoluccedilatildeo Francesa da queda da Bastilha agrave Festa da Federaccedilatildeo

Trad Maria Luacutecia Machado Cia das Letras Satildeo Paulo 1989 p 413

25

ldquoEacute faacutecil de conceberrdquo dizia o perioacutedico ldquoqual desordem nascera do concurso de todos

que desejarem trabalhar no Campo de Marterdquo16 incluindo mulheres crianccedilas

monges prostitutas e becircbados17 Natildeo foi o bastante Na tarde seguinte alheias agraves

autoridades mais e mais pessoas natildeo parariam de chegar

Dia 11 Jean-Sylvain Bailly ndash o primeiro prefeito de Paris ndash vem a puacuteblico

agradecer o entusiasmo dos moradores da capital mas tambeacutem pedir que parem de se

dirigir ao Champ-de-Mars pois seu trabalho natildeo era de modo algum necessaacuterio18

Enquanto isso e ao menos desde o dia 7 comissaacuterios municipais espalhavam cartazes

solicitando aos cidadatildeos que natildeo ajudassem os trabalhadores19

A Assembleia tambeacutem fez o que pocircde para esvaziar o evento decidiu tudo

muito tarde pocircs as despesas de deslocamento a cargo dos poderes locais dificultando

as condiccedilotildees de translado dos moradores das regiotildees mais pobres do paiacutes

Mas boa parte deles jaacute estava a caminho

ldquoE ao atravessar em bandos as aldeias e as cidadesrdquo rumo ao grande burgo

ldquoeles cantavam com todas as forccedilas com uma alegria heroacuteica um canto que os

habitantes agraves suas portas repetiamrdquo20 Cantavam a mesma canccedilatildeo que os parisienses

no ritmo da enxada e da picareta entoavam ao remexer como camponeses a terra do

Campo da Federaccedilatildeo

Le peuple en ce jour sans cesse reacutepegravete

Ah Ccedila ira Ccedila ira Ccedila ira

Suivant les maximes de lrsquoEacutevangile

(Ah Ccedila ira Ccedila ira)

Du leacutegislateur tout srsquoaccomplira

Celui qui srsquoeacutelegraveve on lrsquoabaissera

Et qui srsquoabaisse on lrsquoeacutelegravevera

A gazeta literaacuteria Mercure de France comentou a popularidade desses cacircnticos

revolucionaacuterios dizendo que sua sonoridade ldquomisturava-se aos lugares comuns contra

os aristocratasrdquo 21 A Festa da Federaccedilatildeo afinal exigia um pacto federativo Uma

federaccedilatildeo poliacutetica uma nova ordem que integrasse todas as aldeias vilas e cidadelas

que vinham se armando desde o veratildeo passado um acordo que levaria de certa

16 ldquoil est facile de concevoir quel deacutesordre naicirctroit du concours de tous ceux qui deacutesiroient travailler au

Champ-de-Marsrdquo Chronique de Paris 6 Julliet 1790 743 17 Reacutevolutions de Paris 17900703 (T4N52)-17900710 p 753-5 18 Chronique de Paris 11 Julliet 1790 p 765 19 Reacutevolutions de Paris ibidem p 755 20 Ibidem p 414 21 Mercure de France 8 Julliet 1790 p 214-5

26

maneira ao famoso mote mais tarde publicado em todos os textos oficiais de uma

repuacuteblica ndash e de uma Franccedila ndash ldquouna e indivisiacutevelrdquo Como se aquela que era ldquoa ordem

mais profunda a unanimidade dos espiacuteritosrdquo ndash da qual nos fala Michelet a respeito do

dia da tomada da Bastilha ndash pudesse ser reeditada impressa e revivida na alma de

todos os cidadatildeos22

A ideia para uma celebraccedilatildeo desse tipo em uma provaacutevel expressatildeo de um

tempo cada vez mais ceacutelere apareceria poucos dias apoacutes a queda da fortaleza O

marquecircs de Villete em 18 de julho de 1789 jaacute falava em realizar uma festa por uma

revoluccedilatildeo que ldquonrsquoa point drsquoexemple dans lrsquoHistoirerdquo 23 Sua manifestaccedilatildeo natildeo foi eacute

claro uacutenica Segundo Simon Linguet o primeiro a sugerir a festa revolucionaacuteria fora

Caillegravere de lacuteEacutetang24 De todo modo propostas para o grande jubileu natildeo faltaram

embora certos monarquistas mais temerosos sugerissem datas diferentes Gois

professor de pintura e escultura na Academia Real chegou a indicar uma data em

julho argumentando que ateacute aquele mecircs a Assembleia Nacional jaacute teria terminado ldquole

grand oeuvre de la Constituitionrdquo25

Linguet por sua vez parecia mesmo preocupado em evitar uma festa que

desenvolvesse ldquoessa sensibilidade desastrosardquo que faz a plebe revender o patildeo que

ganha e se bater por uma nova caneca de vinho ldquocrsquoest la Discorde qui semble y

preacutefiler plutocirct que Bacchusrdquo Era preciso ao contraacuterio estimular a comodidade e a

seguranccedila puacuteblica26 E natildeo foi essa a opccedilatildeo escolhida pelos organizadores assinada

pelo prefeito e ordenada por um desfile Desfile durante o qual trotearam as

companhias de cavaleiros vendo marchar a seguir os granadeiros os eleitores da

cidade de Paris seus voluntaacuterios os representantes da comuna o Comitecirc Militar os

presidentes distritais os deputados para o Pacto Federativo os guarda-bandeiras ndash

saindo da rua Saint-Denis encontrando a Assembleia Nacional na praccedila Louis XV

22 MICHELET Jules op cit p 153 23 VILLETTE Charles Lettres choisies du marquis de Villete Paris 1792 apud TREacuteVIEN Claire Le

Monde agrave lrsquoenvers the carnivalesque in prints of the construction of the fecircte de la feacutedeacuteration of 1790

In French History Vol 26 No 1 2012 p 38 24 LINGUET Simon Adresse au peuple franccedilais concernant ce qursquoil faut faire amp ce qursquoi faut pas faire

pour fecircter la fecircte meacutemorable et nationale du 14 juillet 1790 Et sur-tout la neacuteceacutessiteacute de nrsquoy admettre

aucun cheval Paris 1790 p 4 25 Ele tambeacutem sugeria ldquoun Monument agrave Gloire du Roi et de la Nationrdquo no qual poder-se-ia ler a

inscriccedilatildeo ldquoLOUIS XVI PEgraveRE DES FRANCcedilOIS RESTAURATEUR DES LOIX ET DE LA

LIBERTEacuterdquo GOIS Projet de monumento et fecircte patriotique Paris 1790 p 3 26 ldquocette sensibiliteacute funeste () crsquoest la Discorde qui semble y preacutefiler plutocirct que Bacchusrdquo Idem

respectivamente pp 12 14 e 15

27

tomando o caminho do Champ-de-Mars para em frente agrave Escola Militar saudar o rei

e a rainha cantando o Te Deum27

A austeridade da procissatildeo de fato jaacute foi ressaltada por Mona Ozouf28 Seu

projeto e sua execuccedilatildeo marcados pelos temores bem expressos por Simon Linguet

poderiam ignorar ndash mas natildeo simplesmente excluir ndash a memoacuteria de todos aqueles que

responderam ao chamado patrioacutetico do pacto federativo mesmo que esse viesse a ser

por uma contradiccedilatildeo de origem realizado por uma vocaccedilatildeo unitaacuteria ldquoAs proacuteprias

Federaccedilotildeesrdquo como fez questatildeo de lembrar Michelet ldquocontaram a sua histoacuteriardquo Elas a

diziam da forma como podiam desde que muitos mal sabiam escrever e as

endereccedilavam ldquoagrave sua matildee a Assembleia Nacional fielmente ingenuamente em uma

forma com muita frequecircncia grosseira infantilrdquo Eacute claro que ldquonem sempre se

encontrava nos campos escriba haacutebil que fosse digno de consignar essas coisas na

memoacuteriardquo 29

Quatorze de Julho de 1789 foi o dia em que Paris tomou a Bastilha Quatorze

de julho de 1790 foi o dia em que a Franccedila tomou Paris Os federados atendendo ao

badalar dos sinos de um novo culto ciacutevico dirigiram-se agrave capital de certo carregando

o pouco que tinham suas experiecircncias seus ldquohomens memoacuteriardquo eles de matildeos dadas

agrave juventude esperanccedilosa do ccedila ira Com seus filhos casando-se no altar da paacutetria

teriacuteamos uma origem possiacutevel para a ldquosubstacircncia francesardquo em Michelet Ou caso

pensemos com Mona Ozouf um ritual de batismo ciacutevico coletivo de transferecircncia de

sacralidade no qual suacuteditos do rei satildeo convertidos em cidadatildeos De todos os usos e

interpretaccedilotildees que podemos alccedilar sobre o episoacutedio para noacutes a Festa da Federaccedilatildeo natildeo

eacute mais do que um iniacutecio ndash mesmo um dos muitos possiacuteveis ndash natildeo da harmonia mas do

conflito entre diferentes experiecircncias comemorativas as quais produzem e demandam

diferentes expectativas traduzidas em formas diversas de lembrar e de esquecer o

iniacutecio do encaixe de uma moldura nacional sobre um grande painel de lembranccedilas

coletivas retrato polissecircmico de um passado ainda assim como veremos sempre

conflituoso e ndash embora natildeo uno e indivisiacutevel ndash organizado dentro dos limites morais e

poliacuteticos de uma federaccedilatildeo da memoacuteria

27 BAILLY LA FAYETTE Ordre de marche pour la confeacutederation qui aura lieu le 14 juillet amp

dispositions dans le Champ-de-Mars Paris 1790 28 OZOUF Mona La fecircte reacutevolutionnaire 1789-1799 Paris Gallimard 1976 p 82 29 MICHELET op cit p 402

28

I

Comemoraccedilotildees

29

1

Entre a memoacuteria e a moral

As comemoraccedilotildees como reparaccedilatildeo identitaacuteria

11 A grande forccedila

A mais bela das cartas Ciacutecero parecia feliz com sua pequena mensagem de 55

ac hoje conhecida como Ad Familiares V 12 Endereccedilada a Lucceius amigo que

havia demonstrado interesse em escrever sobre seu consulado ela era na verdade um

pedido muito particular O patriacutecio solicitava ao historiador que suspendesse as leges

historiae rompendo com a cronologia analiacutestica pulando para o presente e como se

natildeo bastasse narrasse os tempos de sua magistratura em um estilo ornamentado Era

em outras palavras o requerimento de um elogio feito por algueacutem que alegava natildeo

receber o reconhecimento que merecia Em uma passagem dessa correspondecircncia

Ciacutecero afirmava que suas esperanccedilas de imortalidade natildeo eram depositadas

unicamente na commemoratio posteritatis (V121) na recordaccedilatildeo que o futuro lhe

renderaacute mas que esperava tambeacutem poder fruir da gloacuteria ainda em vida (ut vivi

perfruamur) Como se o salvador da repuacuteblica demandasse em poucas palavras ser

reconhecido como o paralelo vivo dos costumes ancestrais30

Mencionar remeter ou a accedilatildeo de lembrar A palavra latina commemoratio em

Ciacutecero e Quintiliano natildeo foge a um uso retoacuterico e utilitaacuterio como antiquitatis

exemplorum prolatio tratava-se de uma citaccedilatildeo ou seja o evocar de uma lembranccedila

antiga e um suporte em sua autoridade exemplar Utilitaacuterio sim em um sentido

30 Cicero em outro documento sugere que Atticus adquira uma coacutepia dessa carta para suas leituras

(Att 464) Nessa mesma passagem ele descreve sua Ad Familiares V 12 como ldquoValde Bellardquo A

carta aqui citada jaacute foi alvo de vaacuterias interpretaccedilotildees a mais corrente aponta para o egotismo o cinismo

e o oportunismo de Ciacutecero outra tenta justificar seu pedido de elogio a partir das regras do gecircnero

demonstrativo uma terceira e bem menos ortodoxa tenta identificar sinais de ironia no texto lendo-o

como uma brincadeira entre amigos Sobre a primeira e a terceira interpretaccedilotildees ver HALL John

Cicero to Lucceius (Fam512) In its Social Context Valde Bella In Classical Philology 93 1998

308 nota 1 Sobre a segunda interpretaccedilatildeo ver CHIAPPETTA Angeacutelica Natildeo Diferem o Historiador e

o Poeta O Texto Histoacuterico como Instrumento e Objeto de Trabalho Liacutengua e Literatura 2 1996

Departamentos de Letras USP p 15-34 e tambeacutem PAVES Leonardo Acquaviva Historia Magistra

Vitae Histoacuteria e Oratoacuteria em Ciacutecero Satildeo Paulo USP 2011 Dissertaccedilatildeo de Mestrado Principalmente

pp 55-58

30

poliacutetico e moral O exemplo a recordaccedilatildeo de um feito verdadeiro ou dado como tal

de toda maneira tinha como missatildeo ser ldquouacutetil para persuadirrdquo precisamente o que se

queria entatildeo comemorar31

Como o episoacutedio da Ad Familiares faz supor commemoratio era anaacuteloga

ainda a monumentum a qual expressa uma das tarefas do espiacuterito (mens) a memoacuteria

ldquoCom a antiguidade Romanardquo escreve Fernando Catroga monumentum ldquotinha dois

significados denotava uma obra comemorativa de arquitetura e de escultura () e

aplicava-se a edificaccedilotildees funeraacuterias destinadas a perpetuar a lembranccedila de algueacutemrdquo 32

Gloacuteria em vida gloacuteria em morte

Eacute verdade que com o cristianismo anuncia-se o tempo da espera mas da

mesma maneira celebra-se a lembranccedila do exemplo salvador O culto da Eucaristia

centra a esperanccedila do religare no milagre da recordaccedilatildeo ao comer o corpo e beber o

sangue do Salvador ldquoFazei isto em memoacuteria de mimrdquo (et gratias agens fregit et dixit

hoc est corpus meum pro vobis hoc facite in meam commemorationem 1 Coriacutentios

XI24 e 25 similiter et calicem postquam cenavit dicens hic calix novum testamentum

est in meo sanguine hoc facite quotienscumque bibetis in meam commemorationem

tambeacutem em Lucas XXII19) Se Santo Agostinho ainda utilizava a palavra

commemoratio em um sentido muito parecido com o dos claacutessicos latinos ndash fazendo

diga-se logo remissotildees agrave necessidade dos fieacuteis comemorarem certas festas sagradas ndash

ao longo da Idade Meacutedia a comemoraccedilatildeo torna-se ldquoum ato religioso atraveacutes do qual

pedimos aos vivos que se lembrem ou seja de agir em oraccedilatildeo pelos mortosrdquo 33 Na

vulgata talvez a fonte mais importante o termo aparece mais uma vez em uma das

cartas da tradiccedilatildeo paulina dessa vez indicando a obrigaccedilatildeo de comemorar todos os

anos os pecados ao lado do sacrifiacutecio do messias (Hebraeos X3)

Em portuguecircs o termo comemorazones ainda no plural surge por volta do

seacuteculo XIII provavelmente acompanhando a popularizaccedilatildeo dos sermotildees em liacutengua

vulgar Nos dois seacuteculos seguintes a expressatildeo evolui para cotildememoraccedilotilde e

31 ldquo() quod proprie vocamus Exemplum id est rei gestae aut ut gestae utilis ad persuadendum id

quod intenderis commemoratiordquo QUINTILIANO Inst Oratoire LIV V 11 6 Na traduccedilatildeo francesa

de Ouizille ldquo() celle que jrsquoappelle proprement lrsquoexemple crsquoest-agrave-dire la citation drsquoun fait vrai ou

censeacute tel ameneacutee dans le dessein de persuader ce qursquoon a en vuerdquo Paris CLF Panckoucke 1829-

1840 V 3 p 7 32 CATROGA Fernando O culto dos mortos como uma poeacutetica da ausecircncia In ArtCultura

Uberlacircndia v 12 n 20 jan-jul 2010 p 170 33 ldquo() un acte religieux par lequel on demande aux vivants de se souvenir crsquoest-agrave-dire drsquoagir par la

priegravere pour les mortsrdquo Namer Geacuterard La commeacutemoraton en France de 1945 agrave nos jours Logiques

Sociales lrsquoHarmattan Paris 1987 pp 143-144

31

finalmente conmemoraccedilon34 Sua relaccedilatildeo estreita com os ritos catoacutelicos eacute evidente ao

menos ateacute a primeira metade do seacuteculo XIX35 Alexandre Herculano em suas Lendas

e Narrativas ironiza a palavra no hilariante Alhos e Bugalhos no qual conta a

histoacuteria de Satildeo Pantaleatildeo Bispo de Nicomeacutedia Convertido por Hermolau o santo

passa a praticar curas ldquomais baratas e mais rapidas ao mesmo tempo que as offertas

dos doentes escaceavam nos templos pagatildeosrdquo Atraiu a fuacuteria do imperador

Maximiano o qual decidiu lanccedilaacute-lo agraves feras que por milagre resolveram tatildeo somente

limpar-lhe os peacutes Ceacutesar coleacuterico pediu sua cabeccedila e ldquoo sancto segundo parece

estava jaacute saciado de prodigios ao golpe do algoz a cabeccedila voou-lhe dos hombrosrdquo

Neste dia natildeo somente Satildeo Panteleatildeo entrou no rol dos maacutertires sagrados como

tambeacutem ganhou a gloacuteria da lembranccedila ldquoMas ndash acudiratildeo os leitores ndash que nos importa

a noacutes que essa commemoraccedilatildeo seja a vinte-sete ou a vinte-oito seja em julho ou em

dezembro Vamos a festa e deixemo-nos de historiasrdquo escreveu Herculano36

O cristianismo como uma religiatildeo em si comemorativa acentua o fenocircmeno

ao frisar o sacrifiacutecio do messias agrave eucaristia segue-se a anamnese processo que

permite no coraccedilatildeo do fiel reviver a memoacuteria do Cristo Com a emergecircncia do

Estado Naccedilatildeo e a desestruturaccedilatildeo da cristandade ocidental catoacutelica (dita universal) as

comemoraccedilotildees se particularizam e passam a ser dotadas de sentidos seculares

associados pouco a pouco ao que chamamos hoje de identidade nacional Sob o elo

providencial que unia o universal e o particular os seacuteculos XVIII e XIX assistem agrave

emergecircncia vitoriosa ndash na esteira do que seraacute chamado ldquociecircncia positivardquo ndash de uma

categoria geral Em suma se segundo Paul Ricoeur recordar eacute em si mesmo um ato

de alteridade a comemoraccedilatildeo moderna como sentenciou Bernard Cottret eacute fruto de

uma relativa fragmentaccedilatildeo37

34 Aqui sigo CUNHA Antocircnio Geraldo da Dicionaacuterio etimoloacutegico Nova Fronteira da Liacutengua

Portuguesa Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 Trabalho que deve muitos de seus verbetes ao

claacutessico MACHADO Joseacute Pedro Dicionaacuterio etimoloacutegico da liacutengua portuguesa com a mais antiga

documentaccedilatildeo escrita e conhecida de muitos dos vocaacutebulos estudados 2 ed Lisboa Confluecircncia

1967 3 v 35 Ao comentar as poliacuteticas comemorativas do regime liberal portuguecircs dos anos 20 do seacuteculo XIX

Maria Isabel Joatildeo afirma que ldquoApesar das caracteriacutesticas laicas de que se procuraram revestir as festas

liberais a tradiccedilatildeo religiosa manteve-se presente nestas comemoraccedilotildees que comeccedilavam com

frequecircncia pela celebraccedilatildeo de missa solene e Te Deum Laudamusrdquo JOAtildeO Maria Isabel Percursos da

memoacuteria centenaacuterios portugueses no seacuteculo XIX In Revista de Letras e Culturas Lusoacutefonas Camotildees

Nuacutemero 8 Janeiro-Marccedilo de 2000 p 2 36 HERCULANO Alexandre Lendas e Narrativas II 1851 cap 4 p 177 37 Respectivamente RICOEUR Paul Entre meacutemoire et histoire In Projet no 248 1996-1997 e

COTTRET Bernard HENNETON Lauric Du bon usade des commeacutemorations Histoire meacutemoire et

identiteacute XVIe-XXIe siegravecle Rennes Presses Universitaires 2010 p 9 O termo francecircs commeacutemoratio

32

Embora fragmentadas as comemoraccedilotildees como noacutes as conhecemos hoje

guardam algo de religioso ndash fato demonstrado pelo proacuteprio vocabulaacuterio presente na

documentaccedilatildeo que nos restou das festas revolucionaacuterias francesas ldquoReligio a

lsquoescrupulosa atenccedilatildeorsquo no exerciacutecio de um rito no qual ligamos a origem agrave

introspecccedilatildeo de uma lsquore-leiturarsquo (relegere) ou mais provavelmente agrave renovaccedilatildeo de

um viacutenculo (religare)rdquo 38 Por sinal os fenocircmenos comemorativos seculares

dificilmente escapam a uma funccedilatildeo lituacutergica Eles organizam independente das cores

de suas hostes um rito de comunhatildeo com o abstrato seja ele uma deidade seja ele

uma naccedilatildeo divinizada imagens construiacutedas tendo como modelo ou referecircncia uma

essecircncia ancestral ou originaacuteria

Eacute a moldura de uma religiatildeo civil ndash cuja Franccedila oferece uma forma exemplar ndash

que permite a comparaccedilatildeo e o artifiacutecio de analogias entre os fenocircmenos

comemorativos ocidentais contemporacircneos e outros ritos representativos antigos

modernos e mesmo selvagens Eacute nesse sentido que a anaacutelise e o vocabulaacuterio de Eacutemile

Durkheim continuam populares entre os estudiosos das comemoraccedilotildees No capiacutetulo

IV das formas elementares da vida religiosa o socioacutelogo definiu a forma e a funccedilatildeo

do que chamou de Culto Positivo Realizou na verdade um estudo sobre a

representaccedilatildeo totecircmica entre duas tribos aboriacutegenes australianas os Warramunga e os

Arunta Entre esses grupos o rito consistia em relembrar o passado tornando-o

presente por meio de uma representaccedilatildeo dramaacutetica da mitologia do clatilde Mitologia que

natildeo eacute mais do que o conjunto de crenccedilas comuns ao grupo uma maneira de manter a

lembranccedila de suas tradiccedilotildees viva a partir do estabelecimento de uma relaccedilatildeo

dramatuacutergica entre o ancestral comum e um totem

() o celebrante neste caso natildeo eacute de forma alguma

considerado como encarnaccedilatildeo do ancestral que

representa este eacute um ator interpretando um papel () o

caraacuteter dessas cerimocircnias eacute dramaacutetico contracenado por

uma espeacutecie muito especial de bobos eles agem ou pelo

menos acredita-se que eles agem sobre o curso da

natureza 39

aparece tambeacutem no seacuteculo XIII ao passo que o verbo commeacutemorer do qual deriva o substantivo

commeacutemoraison surge no seacuteculo seguinte 38 ldquoReligio cette lsquoattention scrupuleusersquo agrave lrsquoexercice drsquoun rite qursquoon rattache lrsquoorigine au recueillement

drsquoune lsquore-lecturersquo (relegere) ou plus vraisemblablement au renouvellement drsquoum lien (religare)rdquo

ORY Pascal Une Nation pour meacutemoire 1889 1939 1989 Trois jubileacutes reacutevolutionnaires Presses de

la Fondation Nationale des Sciences Politiques Paris 1992 p 17 39 ldquoLe mot est drsquoautant plus de circonstance que lrsquoofficiant en ce cas nrsquoest aucunement consideacutereacute

comme une incarnation de lrsquoancecirctre qursquoil repreacutesente crsquoest un acteur qui joue un rocircle () Les exemples

33

O celebrante (lrsquoofficiant) encena o ancestral em uma representaccedilatildeo cerimonial

pontuada pelo curso da natureza Trata-se em linguagem moderna de um evento

marcado no calendaacuterio e assim conforme veremos anaacutelogo a um ponto de encontro

entre a ordem do tempo e a ordem da natureza Cada um desses clatildes alega descender

de um uacutenico ancestral comum correspondente a um soacute totem ao redor do qual a

histoacuteria lendaacuteria a identidade e o proacuteprio nome do grupo encontram seu eixo

fundamental ldquoPoderiacuteamos mesmo nos perguntar se esses chefes miacuteticos espeacutecie de

semideuses satildeo submetidos agrave reencarnaccedilatildeordquo chega a questionar Durkheim40 Com

seus liacutederes reencarnados ou natildeo (nessa forma elementar que seria crenccedila paralela agrave

metempsicose dos antigos) o objetivo de todos os ritos positivos para o socioacutelogo

francecircs eacute bastante claro eles servem agrave reparaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos e dos grupos

Do ponto de vista dos celebrantes ligar o passado do ancestral agrave identidade do

presente eacute o mesmo afinal de contas que unir o indiviacuteduo agrave coletividade41

Como os alimentos para nossa vida fiacutesica ndash diria Durkheim em mais uma de

suas ceacutelebres metaacuteforas naturalistas ndash os ritos representativos satildeo necessaacuterios para o

ldquobom funcionamento de nossa vida moralrdquo 42 E eles se expressam de uma forma

simples atraveacutes de um aspecto exterior bastante familiar agraves sociedades seculares o da

recreaccedilatildeo Durkheim parece mesmo insinuar que todas as festas que todo o aparato

de entretenimento possuem em si uma origem religiosa embora ressalte que os ritos

representativos (ou o culto positivo) e as recreaccedilotildees coletivas natildeo formem

necessariamente o mesmo fenocircmeno Em uma passagem que natildeo seria nada estranha

ao supracitado Simon Linguet Durkheim alega que a recreaccedilatildeo laica faz o rito passar

do comemorativo ao ldquocorrobbori vulgaire simples regozijo puacuteblico que natildeo tem mais

nada de religioso e ao qual todo mundo pode participar indistintamenterdquo43 Ou seja

sem um officiant ndash sem uma direccedilatildeo que aponte ao passado do ancestral ndash o rito deixa

de produzir identidade e alteridade de reparar moralmente um grupo a partir da

qui preacutecegravedent suffisent agrave montrer quel est le caractegravere de ces ceacutereacutemonies ce sont des drames niais drsquoun

genre tout particulier ils agissent ou du moins on croit qursquoils agissent sur le cours de la naturerdquo

DURKHEIM Eacutemile Les formes eacuteleacutementaires de la vie religieuse Le systegraveme toteacutemique en Australie

Paris Les Presses universitaires de France 1968 (1921) cinquiegraveme eacutedition 647 pages Collection

Bibliothegraveque de philosophie contemporaine p 355 Grifos meus 40 ldquoOn peut mecircme se demander si ces chefs mythiques sorte de demi-dieux sont soumis agrave la

reacuteincarnationrdquo Idem p 357 41 Idem respectivamente p 353 361 42 ldquobon functionnement de notre vie moralerdquo Idem p 364 43 ldquocorrobbori vulgaire simple reacutejouissance publique qui nrsquoa plus rien de religieux et agrave laquelle tout le

monde peut indiffeacuteremment prendre partrdquo Ibidem 363

34

segregaccedilatildeo e da agregaccedilatildeo Estariacuteamos agora em um ponto no qual ldquotodos participam

porque sua proacutepria ideia contempla todas as pessoasrdquo44 Seria esse um dos motivos

pelos quais uma Ordonnace du comiteacute de police de lrsquoHotel-de-ville ainda em janeiro

de 1790 proibiu o uso de maacutescaras e fantasias45

Celebraccedilatildeo fuacutetil carnavalesca ou anocircmala essa palavra persiste a relaccedilatildeo

entre comemoraccedilatildeo e entretenimento eacute documentada por qualquer dicionaacuterio Passar

de um a outro da comemoraccedilatildeo identitaacuteria ao jubilo popular eacute um processo

recorrente ldquoVamos aacute festa e deixemo-nos de historiasrdquo dizia Herculano46 A funccedilatildeo

do celebrante (officiant) que para os aboriacutegenes era a de admitir a solidariedade entre

o homem e o animal para a reproduccedilatildeo da espeacutecie totecircmica continuaria sendo a de

organizar os diferentes grupos pela orientaccedilatildeo do passado comum de representar a

continuidade a partir de uma origem miacutetica em uma festa presente com data marcada

Natildeo deixemos as histoacuterias pois neste valle de lagrymas elas satildeo ao mesmo tempo

uma moral e uma cosmologia47 Para os nativos da Austraacutelia tratava-se de um

movimento no qual o homem imita o animal no qual ele se identifica Essa ldquogrande

forccedila moralrdquo capaz de produzir a coesatildeo por um sistema prescritivo e reproduzir com

ela a proacutepria sociedade eacute para Durkheim a proacutepria ldquoforccedila coletivardquo 48 Em um culto

ciacutevico recheado por vezes pelas accedilotildees de reenactement os homens imitam ndash diriam

os celebrantes ndash outros ldquograndes homensrdquo Essa forccedila coletiva de objetivo moral

poderia ser relacionada jaacute em termos contemporacircneos ao que chamamos de memoacuteria

coletiva

44 ldquo() everyone participates because its very idea embraces all peoplerdquo BAKHTIN M Rabelais and

His World Bloomington 1984 p 5 45 ldquoFauxrdquo MARAT LrsquoAmi du peuple ou le Publiciste parisien jornal politique er impartial 70 3 Fev

1790 8 apud TREacuteVIEN op cit p 36 Treacutevien estuda a Festa da Federaccedilatildeo como um ritual

carnavalesco Para uma abordagem mais ampla que vecirc toda a Revoluccedilatildeo Francesa como um grande

carnaval conferir JOHNSON J H Versailles mette les Halles masks carnival and the French

Revolution In Representations 73 2001 46 Ao qual ele completa Devagar devagar Eacute justamente porque isto eacute uma historia grave sisuda

erudita que eu natildeo me havia de metter abrutadamente na narraccedilatildeo sem deixar averiguada esmiuccedilada e

fixada a data precisa e irrecusavel do meu recontamento Sabem o que eacute uma data Uma data eacute depois

de uma questatildeo de orthographia do talho e feitura de uma judia a que os nossos velhos chamavam

uma aljuba e depois de um phalansterio a que os dictos velhos chamariam uma sandice a cousa mais

importante que conheccedilo neste valle de lagrymasrdquo HERCULANO op cit Idem 47 ldquo() crsquoest une morale et une cosmologie em mecircme temps qursquoune histoirerdquo DURKHEIM op cit p

357 Sobre o ldquovalle de lagrymasrdquo ver a uacuteltima expressatildeo na nota imediatamente supracitada 48 Idem p 368

35

12 Entre a memoacuteria coletiva e os costumes

Em 1925 Maurice Halbwachs ex-aluno de Henri Bergson publicou seus

Cadres Sociaux de la Meacutemoire A premissa baacutesica desse estudo jaacute demonstrando o

quatildeo proacuteximo o autor havia se tornado de Eacutemile Durkheim alegava ser dentro da

sociedade que ldquoo homem adquire suas lembranccedilas as lembra e como dizemos as

reconhece e as localizardquo 49 Eacute nesse sentido argumenta Halbwachs que existe uma

ldquomemoacuteria coletivardquo e em sua base grupos que a organizam transmitem e tornam

possiacuteveis as suas lembranccedilas Mais interessado na bios do que na histoacuteria ndash na

experiecircncia vivida em detrimento da experiecircncia passada ndash os Quadros Sociais

receberiam criacuteticas ainda em 1925 vindas de um colega da universidade de

Estrasburgo Marc Bloch

O ponto principal das observaccedilotildees de Bloch centrava-se no problema da

transmissatildeo da memoacuteria coletiva O fundador dos Annales lamentava o fato de

Halbwachs ter abordado senatildeo de forma muito geneacuterica o problema da tradiccedilatildeo e dos

costumes centrais em especial quando do estudo das formas de reproduccedilatildeo e

reorientaccedilatildeo dos valores presentes nas sociedades preacute-modernas europeias ldquoComo o

indiviacuteduordquo indagava Bloch ldquoconserva e encontra suas lembranccedilasrdquo ldquoComo a

sociedade conserva e encontra as suasrdquo tal era o tom de suas cobranccedilas50

Tome-se por exemplo a sociedade religiosa cristatilde a

penitecircncia do fiel se alimenta tanto dos ritos

constantemente renovados quanto de memoacuterias

particularmente daquelas que falam da vida do Salvador

mas a maioria dos ritos seratildeo apenas formas vazias

caso eles natildeo comemorem ou natildeo simbolizem o

percurso de Deus ou paralelamente o de seus santos O

tesouro histoacuterico ou lendaacuterio do cristianismo se

transmite de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo sobretudo por

intermeacutedio dos ritos 51

49 ldquo() cest dans la socieacuteteacute que normalement lhomme acquiert ses souvenirs quil se les rappelle et

comme on dit quil les reconnaicirct et les localiserdquo HALBWACHS Maurice Les cadres sociaux de la

meacutemoire Paris Feacutelix Alcan 1925 Collection Les Travaux de lrsquoAnneacutee sociologique p 7 ldquordquo 50 BLOCH Marc Meacutemoire Collective Tradition et Coutume In Revue de synthegravese historique T40

N14 Paris 1925 (12) p 78 51 ldquoPrenons par example la socieacuteteacute religieuse chreacutetienne la pieacuteteacute du fidegravele se nourrit agrave la fois de rites

sans cesse renouveleacutes et de souvenirs particuliegraverement de ceux qui portent sur la vie du Sauveur mais

la plupart des rites ne seraient que des formes vides srsquoils ne commeacutemoraient ou ne symbolisaient la

carriegravere du Dieu ou accessoirement celle de ses saints et par ailleurs le treacutesor historique ou leacutegendaire

du christianisme se transmet de geacuteneacuteration en geacuteneacuteration surtout par lrsquointermeacutediaire des ritesrdquo Idem p

76 Grifos meus

36

O autor de Os Reis Taumaturgos ndash livro publicado aliaacutes um ano antes ndash

conhecia melhor do que ningueacutem o papel dos ritos na transmissatildeo das memoacuterias

cristatildes se eles natildeo comemorarem o Cristo natildeo relembrarem seu exemplo seja dos

evangelhos seja da via-cruacutecis sua funcionalidade reprodutora ndash e mais ainda

ressignificadora ndash estaria ameaccedilada Tanto a memoacuteria individual quanto a memoacuteria

coletiva natildeo pareciam para Marc Bloch conservar o passado como insinuava a sua

leitura dos Quadros Natildeo ldquoela se encontra e se reconstroacutei sem cessar sempre falando

do presente Toda memoacuteria eacuterdquo afinal ldquoum esforccedilo52rdquo Halbwachs pelo contraacuterio

havia afirmado quando de sua distinccedilatildeo entre rito e crenccedila que embora os primeiros

pudessem ser do ponto de vista formal ldquoos elementos mais estaacuteveis da religiatildeordquo com

os anos foram deslocados de seus significados originais53 Estaria o socioacutelogo

desconsiderando a dimensatildeo criativa de seus quadros sociais em favor de uma visatildeo

por demais secular das representaccedilotildees coletivas contemporacircneas

Sem duacutevida que hoje em dia e desde muito tempo o fiel

israelita que come o cordeiro pascal natildeo pensa celebrar

as memoacuterias dos ancestrais que escaparam do Faraoacute que

o catoacutelico tatildeo pouco familiarizado com os misteacuterios de

sua religiatildeo ao ver o padre levantar a hoacutestia natildeo reflete

sobre a palavra do Evangelho ldquoEste eacute meu corpo tomai

e comei () este eacute meu sanguerdquo Essa eacute

incontestavelmente a interpretaccedilatildeo presente e hoje

tradicional desses ritos Mas ela se confunde de fato

com seu significado primordial54

Para Bloch eacute claro essas consideraccedilotildees natildeo invalidavam a ldquohipoacutetese diretivardquo

que Halbwachs havia proposto aos historiadores Tratava-se apenas de reorientar a

problemaacutetica a partir do ponto de vista da erudiccedilatildeo histoacuterica de cobrar que a

sociologia estude tambeacutem as incoerecircncias ou mesmo os ldquoerros da memoacuteria coletivardquo

52 Idem p 77 53 ldquoLe rite est peut-ecirctre leacuteleacutement le plus stable de la religion puisquil se ramegravene agrave des opeacuterations

mateacuterielles constamment reproduites et dont les rituels et les corps de precirctres assurent luniformiteacute

dans le temps et dans lespace A lorigine les rites reacutepondirent sans doute au besoin de commeacutemorer

un souvenir religieux par exemple chez les Juifs la fecircte pascale et chez les chreacutetiens la communion

rdquo HALBWACHS 1925 p 180 54 ldquoEst-ce bien vrai Nul doute que de nos jours et depuis longtemps lrsquoIsraeacutelite pieux qui mange

lrsquoagneau pascal ne pense ceacuteleacutebrer le souvenir des ancecirctres qui fuirent devant Pharaon ou que le

catholique tant soit peu instruit des mystegraveres de sa religion en voyant le precirctre eacutelever lrsquohostile ne

songe agrave la parole eacutevangeacutelique lsquoPrenez ceci est mon corps ceci est mon sangrsquo Telle est

inconstablement lrsquointerpretation preacutesente et aujourdrsquohui traditionelle de ces rites mais se condond-

elle en effet avec leur signification premiegravererdquo BLOCH 1925 p 80

37

55 Acaso as fontes natildeo mostravam ao medievalista que na Europa ocidental ldquodurante

muitos seacuteculos a vida juriacutedica natildeo encontrou outra acolhida senatildeo nas fundaccedilotildees dos

costumesrdquo56 E que se essas sociedades ldquosonharam viver de sua memoacuteriardquo essa

memoacuteria agrave revelia de todo esforccedilo natildeo era mais do que um ldquoespelho infielrdquo virado

para o presente57

A resposta de Halbwachs foi tanto sutil quanto sectaacuteria Em sua mais famosa

obra poacutestuma ele fez questatildeo de distinguir a histoacuteria da memoacuteria ldquoA histoacuteria pode se

representar como a memoacuteria universal do gecircnero humanordquo escreveu ldquomas tal coisa

natildeo existerdquo A verdadeira musa da histoacuteria para o socioacutelogo natildeo era Clio mas outra

filha de Mnemosine Poliacutemnia em referecircncia a sua multiplicidade narrativa ldquoNatildeo

existe memoacuteria universalrdquo completa Halbwachs ldquotoda memoacuteria coletiva tem por

suporte um grupo limitado no tempo e no espaccedilordquo 58 A histoacuteria por sua vez aparece

como um quadro de mudanccedilas incessantes com o olhar do historiador no todo

observando de regiatildeo em regiatildeo todas as reaccedilotildees que se produzem e interagem

dentro do corpo social Os historiadores ldquocompreendem que () eacute preciso que se

desenvolva uma seacuterie de transformaccedilotildees no qual a histoacuteria se apresenta como a soma

(no sentido do caacutelculo integral) ou o resultado finalrdquo 59 Trata-se de uma visatildeo

exterior aos grupos ldquoA memoacuteria coletivardquo pelo contraacuterio ldquoeacute o grupo visto de

dentrordquo em uma curta duraccedilatildeo em um espaccedilo natildeo muito maior do que o de uma vida

humana em geral transcorrido em um percurso carente de grandes modificaccedilotildees Ela

apresenta aos grupos uma visatildeo de si mesmos que vai se alterar ao longo do tempo

mas ainda assim de uma forma que os quadros se reconheccedilam nas suas ldquoimagens

sucessivasrdquo 60

55 ldquoM Halbwachs nrsquoeacutetudiera-t-il pas un jour les erreurs de la meacutemoire collective rdquo Ibidem p 80 56 BLOCH 1925 p 81 57 ldquoEssenciallement traditionnalistes les socieacuteteacutes du moyen acircge ont fait le recircve de vivre de leur

meacutemoire mais cette meacutemoire nrsquoa eacuteteacute des eacutegards qursquoun miroir infideacutelerdquo BLOCH 1925 p 81 58ldquoCertes la muse et lhistoire est Polymnie Lhistoire peut se repreacutesenter comme la meacutemoire

universelle du genre humain Mais il ny a pas de meacutemoire universelle Toute meacutemoire collective a

pour support un groupe limiteacute dans lespace et dans le tempsrdquo HALBWACHS Maurice La Memoacuteire

Collective 1950 p 57 Ateacute onde pude conferir Halbwachs natildeo cita nominalmente as consideraccedilotildees de

Marc Bloch 59ldquo() ceux qui eacutecrivent lhistoire et qui remarquent surtout les changements les diffeacuterennotces

comprennent que pour passer de lun agrave lautre il faut quil se deacuteveloppe une seacuterie de transforma-tions

dont lhistoire naperccediloit que la somme (au sens du calcul inteacutegral) ou le reacutesultat final Tel est le point

de vue de lhistoire parce quelle examine les groupes du dehors et quelle embrasse une dureacutee assez

longuerdquo HALBWACHS 1950 p 59 60 ldquoLa meacutemoire collective au contraire cest le groupe vu du dedans et pendant une peacuteriode qui ne

deacutepasse pas la dureacutee moyenne de la vie humaine qui lui est le plus souvent bien infeacuterieure Elle

38

Em ldquoum quadro de si mesmordquo o grupo visto de dentro esse espelho antes

imperfeito para Bloch torna-se bastante fiel em Halbwachs Mesmo alheio aos

protestos da erudiccedilatildeo o raciociacutenio intuitivo encontra em seu diaacutelogo com Marc

Bloch um dos contornos arquetiacutepicos que vatildeo marcar os estudos culturais do poacutes-

guerra o problema da identidade ldquoO grupo no momento em que vislumbra seu

passado sente-se o mesmo e toma consciecircncia de sua identidade atraveacutes do tempordquo 61

Perguntar-se se essa natildeo seria uma ldquofalsa consciecircnciardquo natildeo parece uma questatildeo

relevante para Halbwachs como percebemos em sua obra poacutestuma ele nunca se

mostrou interessado em ouvir os apelos de seu colega em relaccedilatildeo aos ldquoerros da

memoacuteria coletivardquo Afinal sendo um quadro sempre o mesmo as mudanccedilas tecircm de

ser apenas aparentes ldquoas transformaccedilotildees ou seja os fatos que satildeo produzidos dentro

do grupo se resolvem eles mesmo em similitudesrdquo 62 O passado da memoacuteria coletiva

definitivamente natildeo eacute um paiacutes estrangeiro

A diferenccedila fundamental nas posiccedilotildees de Maurice Halbwachs para aquelas que

vatildeo pulular na segunda metade do seacuteculo XX portanto natildeo era exatamente marcada

pela ausecircncia de centralidade da questatildeo identitaacuteria Geacuterard Namer em 1994

prefaciando a reeditaccedilatildeo dos Quadros Sociais da Memoacuteria para a Albin Michel jaacute

comentava a relaccedilatildeo entre a postura antinazista de Halbwachs com seus insigths sobre

memoacuteria e identidade espeacutecie de remeacutedio contra a propaganda antisionista (que

maltratava o passado do povo judeu ao mesmo tempo justificando a eliminaccedilatildeo de

seu futuro) o investimento na experiecircncia sensiacutevel tornou-se ndash para um quadro cuja

tradiccedilatildeo ditava ser ldquoo povo da memoacuteriardquo ndash um dos caminhos para garantir seu

presente63 A diferenccedila fundamental entre a postura de Halbwachs para digamos a de

Michel Pollack eacute que ndash embora o socioacutelogo membro do Instituto de Histoacuteria do

preacutesente au groupe un tableau de lui-mecircme qui sans doute se deacuteroule dans le temps puisquil sagit de

son passeacute mais de telle maniegravere quil se reconnaisse toujours dans ces images successivesrdquo Idem p 60 61 Idem p 59 62ldquoPuisque le groupe est toujours le mecircme il faut bien que les changements soient apparents les

changements cest-agrave-dire les eacuteveacutenements qui se sont produits dans le groupe se reacutesolvent eux-mecircmes

en similitudes puisquils semblent avoir pour rocircle de deacutevelopper sous divers aspects un contenu

identique cest-agrave-dire les divers traits fondamentaux du groupe lui-mecircmerdquo HALBWACHS 1950 p

60 63 ldquoLembrem-se [Zakhor] dos dias do passado considerem as geraccedilotildees haacute muito passadas Perguntem

aos seus pais e estes lhes contaratildeo aos seus liacutederes e eles lhes explicaratildeordquo (Deuteronocircmio 327)

NAMER Geacuterard Postface In HALBWACHS Maurice Les Cadres sociaux de la meacutemoire 1994

Para uma perspectiva que trabalha o holocausto como plano de trabalho pedagoacutegico para a memoacuteria

ver TORNER Carles Shoah une pedagogie de la meacutemoire Les Eacuteditions de lrsquoAtelier Paris 2001

Principalmente cap 2

39

Tempo Presente parta de premissas em nada estranhas agraves da Memoacuteria Coletiva ndash os

resultados de seus estudos apontam para os esquecimentos e conflitos memoriais

Sim ldquoa memoacuteria colabora para o sentimento de continuidade e de coerecircncia de

uma pessoa ou de um grupo em sua reconstruccedilatildeo de sirdquo 64 Mas seu resultado dentro

do corpo social natildeo tende necessariamente para a harmonia A memoacuteria natildeo eacute um

objeto esculpido passivamente pelo esquecimento como uma rocha erodida pela brisa

e pelas aacuteguas marinhas Sua forma eacute resultado de debates tensotildees e batalhas nessa

imagem endossada por Beatriz Sarlo de um ldquopassado sempre conflituosordquo 65 A

superaccedilatildeo do funcionalismo ou ao menos de sua crenccedila na tendecircncia agrave

harmonizaccedilatildeo foi bem explicitada por Pollak ldquonatildeo se trata mais de lidar com os fatos

sociais como coisasrdquo escreveu o socioacutelogo ldquomas de analisar como os fatos sociais se

tornam coisas como e por quem eles satildeo solidificados e dotados de duraccedilatildeo e

estabilidaderdquo 66

Hoje mais do que nunca tornou-se uma espeacutecie de consenso afirmar que

relembrar o passado eacute elemento crucial para qualquer senso de identidade Maurice

Halbwachs no entanto interessado no caraacuteter muacuteltiplo das memoacuterias coletivas jaacute

havia se apercebido que modos diferentes de lembranccedilas criavam uma tendecircncia agrave

fragmentaccedilatildeo das identidades Para ele a multiplicidade dos grupos era tambeacutem uma

multiplicidade de duraccedilotildees coletivas67 Esse insight saudado por Seixas como uma

intuiccedilatildeo halbwachiana sobre o problema da diversidade tatildeo caro em nosso mundo

contemporacircneo permite-nos pensar o conjunto de memoacuterias coletivas como uma

federaccedilatildeo de grupos especiacuteficos que produzem (ou demandam a produccedilatildeo de) seus

passados68 Grupos que por vezes em episoacutedios de secessatildeo podem entrar em

conflito e protagonizar ldquoverdadeiras batalhasrdquo de memoacuteria como nos ensinou

Michael Pollak

Mas de que maneira Halbwachs perceberia essas batalhas Se natildeo vejamos A

memoacuteria coletiva no singular encamparia todo o espaccedilo de experiecircncias de uma

64 POLLAK Michael Memoacuteria e identidade social In Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro vol 5 n

10 1992 p 5 65 SARLO Beatriz Tempo passado cultura da memoacuteria e guinada subjetiva Satildeo Paulo Companhia

das Letras Belo Horizonte UFMG 2007 p 9 66 POLLAK Michael Memoacuteria esquecimento silecircncio In Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro vol 2

n 3 1989 p 2 67 Ver HALBWACHS 1950 p 78 68 Nas palavras da autora ldquoEssa fragmentaccedilatildeo essa verdadeira lsquotendecircncia federativa da memoacuteriarsquo

delineia justamente um dos fenocircmenos maiores de nossa atualidade base de formaccedilatildeo das

subjetividades muacuteltiplas e diferenciadasrdquo SEIXAS Jacy Alves de Halbwachs e a memoacuteria-

reconstruccedilatildeo do passado In Histoacuteria Satildeo Paulo 20 2001 p 107

40

geraccedilatildeo Se os grupos sociais satildeo diversos e com eles os meios de lembrar

precisamos responder francamente pela negativa Por isso desde muito cedo o

socioacutelogo percebeu a instrumentalidade de se utilizar o conceito no plural

reconhecendo a multiplicidade dos quadros sociais da memoacuteria Sendo assim

qualquer processo identitaacuterio individual passaria por pelo menos um punhado de

grupos famiacutelia ambiente educacional trabalho religiatildeo etc determinando uma

dezena de olhares ndash ou ldquopontos de vistardquo ndash sobre a memoacuteria coletiva Seu resultado

natural deveria ser (caso acessemos a mesma premissa que Durkheim utilizou para a

divisatildeo social do trabalho) a produccedilatildeo da solidariedade social No entanto um

conflito entre por exemplo trabalho e religiatildeo levaria sob a loacutegica funcionalista natildeo

apenas a um entrecruzamento de pontos de vista mas a um sentimento de perda de

identidade esfacelamento de valores ciacutevicos religiosos morais causas enfim

relacionadas por Eacutemile Durkheim a certos episoacutedios de suiciacutedio69 Trata-se de um

ponto realmente natildeo explorado por Maurice Halbwachs Como jaacute havia apontado

Marc Bloch havia pouco espaccedilo para recriaccedilatildeo ressignificaccedilatildeo ndash e diriacuteamos noacutes

para conflitos ndash dentro dos Quadros Sociais da Memoacuteria Pela loacutegica funcionalista

batalhas de memoacuteria natildeo eram mais do que sintomas de uma patologia social trataacutevel

como explicou Durkheim em A Divisatildeo do Trabalho Social atraveacutes de

regulamentaccedilotildees morais e juriacutedicas sobre o trabalho70

Regrar o mundo do trabalho pela lei e pela moral encontraria uma soluccedilatildeo

moderna e corporativa derivada ndash ou reinventada ndash na longa duraccedilatildeo do problema dos

costumes base do rito positivo do reencontro da coletividade no ancestral divinizado

pela performance do officiant cujo princiacutepio e fim era a reparaccedilatildeo moral da

sociedade Se o exemplum romano aparecia por vezes como um meio de transmissatildeo

dos costumes dos ancestrais (mos maiorum) ndash reparados pelo bom uso dos paralelos

instrumentalizados pelo ergon do orador ndash poderiacuteamos entender as comemoraccedilotildees

modernas como formas de comunicaccedilatildeo geracional da memoacuteria coletiva Mais do que

simples transmissatildeo como indicava Marc Bloch em que medida a comemoraccedilatildeo

69 Mais especificamente ao tipo de ldquosuicide anomiquerdquo Ver DURKHEIM Eacutemile Le suicide Paris

Presses Universitaires de France 2007 p 288 70 ldquoUne reacuteglementation morale ou juridique exprime donc essentiellement des besoins sociaux que la

socieacuteteacute seule peut connaicirctre elle repose sur un eacutetat dopinion et toute opinion est chose collective

produit dune eacutelaboration collective Pour que lanomie prenne fin il faut donc quil existe ou quil se

forme un groupe ougrave se puisse constituer le systegraveme de regravegles qui fait actuellement deacutefautrdquo

DURKHEIM Eacutemile De la division du travail social Livre I Paris Les Presses universitaires de

France 1967 (1893) p 18

41

insinua a reproduccedilatildeo a subversatildeo ou o consentimento dos valores identitaacuterios

estabelecidos Como elas ajudaram ou ajudam a nos pensar como naccedilatildeo

13 Comemoraccedilatildeo como dever de esquecimento

Nem religiatildeo nem raccedila sequer a liacutengua menos ainda a geografia O que

definiria a naccedilatildeo ndash ou diriacuteamos noacutes a identidade nacional ndash era para Ernest Renan

algo de uma ordem muito mais sublime O autor da famosa conferecircncia de 11 de

marccedilo de 1882 entusiasta da filologia admitiria que a liacutengua sim convida agrave uniatildeo

Mas existe algo bem mais forte do que ela trata-se da vontade71 Ora a raccedila ndash

qualquer coisa que se faz e se desfaz ndash natildeo parecia possuir aplicaccedilatildeo poliacutetica A

geografia por sua vez forneceria tatildeo somente um substrato apresentando um campo

de luta e de trabalho As religiotildees mesmo elas natildeo se mostravam mais de impossiacutevel

convivecircncia dentro de uma mesma unidade poliacutetica Para Renan herdeiro intelectual

de Jules Michelet a naccedilatildeo era uma alma72 Como alma funda-se em um princiacutepio

espiritual Princiacutepio dividido entre passado e presente em duas partes ldquouma eacute a

posse comum de um rico legado de lembranccedilas a outra uma concessatildeo atual o

desejo de viver em conjunto a vontade de continuar a fazer valer a heranccedila que

recebemos indivisiacutevelrdquo 73 Indivisiacutevel eacute claro caso o horizonte ainda seja observado

pelas lentes da experiecircncia ldquoO culto dos ancestraisrdquo declara sem tardar ldquoeacute dentre

todos o mais legiacutetimordquo 74 Convocado o ldquoplebiscito de todos os diasrdquo ainda histoacuteria e

cosmologia uniam-se para que ldquouma grande agregaccedilatildeo de homens espiacuteritos sadios e

coraccedilotildees caacutelidos criassem uma consciecircncia moral que chamamos de naccedilatildeordquo 75

Moral do latim mores plural de mos de onde os antigos romanos derivavam

sua mos maiorum significa em sentido estrito algo ldquorelativo aos costumesrdquo Ora

mesmo a ideia de ldquonaccedilatildeo-contratordquo por mais propositalmente contraposta que

estivesse ao chamado historicismo romacircntico alematildeo ndash com sua insistecircncia na heranccedila

71ldquoIl y a dans lrsquohomme quelque chose de supeacuterieur agrave la langue crsquoest la volonteacuterdquo RENAN Ernest

Qursquoest-ce qursquoune nation Confeacuterence fait en Sorbonne le 11 mars 1882 Calman Leacutevy 1882 pp 7 72O jovem Renan escreveu a Michelet ldquo() personne nrsquooccupe dans ma penseacutee autant de place que

vous personne ne me repreacutesente drsquoune maniegravere plus intime les reacuteflexions qui forment ma nourriture

habituellerdquo RENAN Ernest Carta a Jules Michelet(Paris 12 de Junho de 1848) In Correspondance

1846-1871 Paris 1926 Calmann-Leacutevy Eacutediteurs 3 p 8 73 RENAN Idem p 9 74 RENAN Idem Ibidem 75 ldquoUne grande agreacutegation drsquohommes saine drsquoesprit et chaude de coeur creacutee une conscience morale

qui srsquoappelle une nation RENAN Idem p 10 Grifos meus

42

da raccedila no territoacuterio e na liacutengua ndash natildeo parecia conseguir fugir do problema dos

costumes Ou devemos ignorar que mesmo Renan insinuava uma espeacutecie de religiatildeo

ciacutevica com base no culto dos ancestrais Insistir na questatildeo dos costumes para definir

as caracteriacutesticas comuns de um povo natildeo era em nada eacute claro incomum ainda no

seacuteculo XIX Alexis de Tocqueville em suas reflexotildees sobre a Ameacuterica e os Estados

Unidos jaacute se perguntava ldquoo que satildeo todos esses haacutebitos essas opiniotildees esses usos

essas crenccedilas senatildeo aquilo que eu chamei de costumesrdquo Comparando o

desenvolvimento do leste e do oeste sua conclusatildeo natildeo era menos moralista ldquosatildeo

particularmente os costumes portanto que fazem os americanos dos Estados Unidos

() capazes de suportar o impeacuterio da democraciardquo O uso de criteacuterios morais para a

definiccedilatildeo das caracteriacutesticas de um povo tambeacutem era promissor como criacutetica aos

determinismos naturais e geograacuteficos Como o faria mais tarde e a seu modo Renan

Tocqueville lamentava que na Europa ldquoexageramos a influecircncia que exerce a posiccedilatildeo

geograacutefica do paiacutes sobre a duraccedilatildeo das instituiccedilotildees democraacuteticas Atribuiacutemos muita

importacircncia agraves leis muito pouca aos costumesrdquo76

Mas o moderno impeacuterio dos costumes enquanto consciecircncia moral natildeo

dependeria tatildeo somente da lembranccedila Seu criteacuterio natildeo era tatildeo soacutelido como foi para

os antigos com uma moral superior divinizada nos exemplos de virtude natildeo o

caminho moderno era cada vez menos fabuloso e por isso mesmo mais vago ao

menos no que diz respeito aos criteacuterios de unidade nacional ldquoO progresso dos estudos

histoacutericosrdquo escreveu Renan ldquoeacute com frequecircncia um perigo para a nacionalidaderdquo As

investigaccedilotildees historiograacuteficas narravam descreviam lembravam a todo instante os

pormenores ndash sem raridade violentos e imorais ndash da formaccedilatildeo poliacutetica de todas as

naccedilotildees Por isso a consciecircncia moral de que nos falava Renan envolvia algo mais do

que a commemoratio dos ancestrais ldquoa essecircncia de uma naccedilatildeordquo escreveu ldquoeacute que

todos os indiviacuteduos tenham muitas coisas em comum e tambeacutem que todos tenham

esquecido de certas coisasrdquo77 Afinal bem esquecer algumas coisas ou ldquomesmo o erro

histoacuterico eacute um fator essencial na criaccedilatildeo de uma naccedilatildeordquo Assim podemos entender

76 ldquoQursquoest-ce que toutes ces habitudes ces opinions ces usages ces croyances sinon ce que jrsquoappeleacute

des moeurs () Ce sont donc particuliegraverement les moeurs qui rendent les Ameacutericains des Eacutetats-Unis

seuls entre tous les Ameacutericains capables de supporter lrsquoempire de la deacutemocratie () Ainsi lrsquoon

exagegravere en Europe lrsquoinfluence qursquoexerce la position geacuteographique du pays sur la dureacutee des instituitions

deacutemocratiques On attribue trop drsquoimportance aux lois trop peu aux moeursrdquo TOCQUEVILLE Alexis

de De la deacutemocratie en Ameacuterique I (deuxiegraveme partie) Les classiques des sciences sociales version

numeacuterique par Jean-Marie Tremblay pp 132-133 77 ldquoOr lrsquoessence drsquoune nation est que tous les individus aient beaucoup de choses en commun et aussi

que tous aient oublieacute bien de chosesrdquo RENAN Idem p 4

43

essa ceacutelebre frase em Renan aquilo que chamamos de identidade nacional pertence agrave

ordem da memoacuteria sujeita ao esquecimento ndash ou mesmo a adulteraccedilatildeo ndash de acordo

com os princiacutepios morais de sua vontade poliacutetica Em outras palavras a consciecircncia

moral advoga quando necessaacuterio por um dever de esquecimento

A proacutepria noccedilatildeo contemporacircnea de ldquoidentidaderdquo de uso recorrente desde o

mundo do poacutes-guerra jaacute foi questionada em seus usos e abusos78 Para Richard

Handler o conceito refere-se a trecircs aspectos da experiecircncia humana primeiro aos

indiviacuteduos tambeacutem aos grupos ou coletividades imaginadas de modo individualizado

e por fim ao relacionamento entre os dois ou seja agraves maneiras pelas quais as

pessoas satildeo imaginadas a assimilar elementos identitaacuterios coletivos em suas

identidades pessoais (de onde podemos deduzir a identidade nacional) Cada cultura

no entanto tende a lidar com esses problemas a seu proacuteprio modo Handler

antropoacutelogo ligado agrave Universidade da Virgiacutenia cita o exemplo do povo Hopi que

diferentemente dos ocidentais ldquonatildeo imaginam pensamentos presos no espaccedilo interior

de seus cracircniosrdquo Ao contraacuterio esses nativos do sudoeste dos Estados Unidos

consideram que os ldquopensamentos humanos agem rotineiramente como uma forccedila no

mundo exteriorrdquo Se um Hopi prestar atenccedilatildeo a uma queda d`aacutegua um arbusto ou um

milharal ele vai naturalmente supor que seu pensamento ndash ou ele mesmo ndash navega

dentro desses espaccedilos de seus olhos agrave agravegua de sua mente ao peacute de milho Definir o

ser pelo fluxo de consciecircncia significa em outras palavras que em certas culturas a

individualidade natildeo eacute definida em termos de barreiras fiacutesicas ou corporais79 Em outro

exemplo Handler chega a mencionar os balineses descritos por Geertz para quem os

detalhes idiossincraacuteticos de uma biografia ao menos na acepccedilatildeo ocidental natildeo seriam

compreensiacuteveis Afinal dentre eles natildeo existe a ideia de um sentido essencial

contiacutenuo do nascimento agrave morte para a personalidade de um indiviacuteduo

Mesmo a Europa do iniacutecio do seacuteculo XIX como vimos era estranha ao

conceito de identidade presente nos estudos sociais poacutes-halbwachianos Handler

propotildee demonstrar isso atraveacutes da obra de Jane Austen todos os seis romances da

autora comeccedilam por uma narraccedilatildeo extensa das conexotildees familiares dos personagens

78 Aqui sigo HANDLER Richard Is ldquoIdentityrdquo a Useful Cross-Cultural Concept In GILLIS John

R (org) Commemorations the politics os national identity Princeton University Press New Jersey

1994 79 ldquo() unlike Westerners who imagined their thoughts to be enclosed in an inner space contained

within their skulls the Hopi (southwestern United States) consider that human thought acts routinely as

a force in the outer world ()ldquoA Hopi would naturally suppose that his thought (or he himself) trafficts

with the () corn plant () that he is thinking aboutrdquo Idem p 31

44

de onde deriva a seguir a relaccedilatildeo entre senhores e servos Na ausecircncia do conceito de

identidade as caracteriacutesticas morais dos personagens seus trejeitos e idiossincrasias

eram definidas a partir do relacionamento com outros seres humanos80 Em

Tocqueville no que diz respeito agrave constituiccedilatildeo ldquoidentitaacuteriardquo do povo norte-americano

observamos uma certa dualidade ndash senatildeo mesmo um diaacutelogo ou uma contradiccedilatildeo ndash

entre os costumes (mœurs) historicamente construiacutedos e a imagem do ldquocoraccedilatildeo

humanordquo (cœur humain) de caraacuteter aparentemente universal e natural81

Natildeo eacute a toa que em Ernest Renan a naccedilatildeo era ainda um projeto Criado por

uma consciecircncia moral pelo anseio de viver junto o futuro era exposto por uma

vontade poliacutetica alicerccedilada no ideal do progresso e defendido pelas armas da retoacuterica

deliberativa em um plebiscito-de-todos-os-dias Hoje os conceitos de identidade ndash e

por extensatildeo de identidade nacional ndash teriam se tornado evidecircncias Ainda uma vez

a ordem do tempo parecia sentenciar sua justiccedila Clara e distinta a identidade

nacional por vezes parece o resultado de um equiliacutebrio entre a memoacuteria coletiva tal

como descrita por Maurice Halbwachs e a amneacutesia coletiva de que nos falou

Benedict Anderson82 De todo modo temos um resultado que foi tambeacutem uma

invenccedilatildeo a passagem entre simples costumes em comum a uma nacionalidade

compartilhada exigiu o reagrupamento de toda uma sorte de experiecircncias tarefa que

soacute se tornou possiacutevel atraveacutes de um investimento do Estado e de grupos da sociedade

civil organizada em politicas puacuteblicas de memoacuteria e de esquecimento Pois se uma

naccedilatildeo ndash mais do que um territoacuterio uma liacutengua uma religiatildeo um regime ndash ldquoeacute uma

memoacuteriardquo como afirmou Pascal Ory deveriacuteamos acrescentar que ela tambeacutem parece

ser um conjunto de diversos esquecimentos83

80 HANDLER op cit p 35-36 81 Cito duas passagens ldquo() tous les proceacutedeacutes qui se deacutecouvrent tous les besoins qui viennent agrave naicirctre

tous les deacutesirs qui demandent agrave se satisfaire sont des progregraves vers le nivellement universel Le goucirct du

luxe lamour de la guerre lempire de la mode les passions les plus superficielles du cœur humain

comme les plus profondes semblent travailler de concert agrave appauvrir les riches et agrave enrichir les

pauvres TOCQUEVILLE op cit Introduction E a seguir ldquoIl y a en effet une passion macircle et leacutegitime

pour leacutegaliteacute qui excite les hommes agrave vouloir ecirctre tous forts et estimeacutes Cette passion tend agrave eacutelever les

petits au rang des grands mais il se rencontre aussi dans le cœur humain un goucirct deacutepraveacute pour leacutegaliteacute

qui porte les faibles agrave vouloir attirer les forts agrave leur niveau et qui reacuteduit les hommes agrave preacutefeacuterer leacutegaliteacute

dans la servitude agrave lineacutegaliteacute dans la liberteacuterdquo Idem p 49 Grifos meus 82 ANDERSON Benedict Imagined Communities Reflections on the Origin and Spread of

Nationalism ver Ed New York Verso 1991 Principalmente capiacutetulo 11 83 ORY Pascal 1992 p 8 ldquo() il apparaicirct clairement que plus encore qursquoun territoire une langue une

religion ou un reacutegime une nation crsquoest une meacutemoirerdquo

45

14 Era das comemoraccedilotildees 10

No final do seacuteculo XIX a onda dos centenaacuterios banhou praias dos dois lados

do Atlacircntico Na Ameacuterica do Norte em 1876 comemorou-se a declaraccedilatildeo da

independecircncia Na Franccedila em 1889 foi a vez do centenaacuterio da revoluccedilatildeo francesa

Seguiram-se os festejos do descobrimento da Ameacuterica em 1892 e depois as do

proacuteprio seacuteculo jaacute no ano de 1900 Essa onda na verdade ganhou aspecto de um

verdadeiro tsunami nem a longiacutenqua Austraacutelia sequer um paiacutes independente deixou

de comemorar em 1888 o aniversaacuterio de sua colonizaccedilatildeo

Em Portugal ainda em 1880 assistimos agrave celebraccedilatildeo promovida por uma

comissatildeo de imprensa do tricentenaacuterio de Camotildees Naquele ano Teoacutefilo Braga

incitava o clamor popular nas paacuteginas do Commercio de Portugal enquanto que

Luciano Cordeiro atraveacutes da Sociedade de Geografia de Lisboa planejava os

festejos84 Tendo em matildeos o Catheacutecisme positiviste ndash que seria traduzido para o

portuguecircs por Miguel Lemos um pouco mais tarde em 1888 ndash os intelectuais

lusitanos entendiam que atualizar a densidade mneumocircnica definindo explicitamente

o que se deve lembrar e implicitamente o que se deve esquecer era afinar o espiacuterito

nacional com o ldquoprogresso da humanidaderdquo 85 Sua via era didaacutetica e jaacute tinha sido

expressa pelo mestre ldquomoralizer la puissance mateacuterielle agrave laquelle le monde reacuteel est

neacutecessairement soumisrdquo86 Com a doutrina em seus braccedilos os mais notoacuterios

disciacutepulos de Augusto Comte conspiravam para ldquoatravessar a histoacuteria e imprimir com

convicccedilatildeo o tiacutetulo de Grande na fronte dos que fizeram por merececirc-lordquo87

Como officiant do culto positivo o intelectual por meio da imprensa ou de

comissotildees extraordinaacuterias encarnaria os ancestrais da naccedilatildeo evocaria seus siacutembolos

seus valores morais definindo a identidade e apresentando-a agraves novas geraccedilotildees a

partir do caraacuteter dos grandes homens da histoacuteria nacional Afinal ldquoSempre que uma

forccedila extranha e desconhecida agitar e suspender a nacionalidade Portuguezardquo

84 Conferir JOAtildeO Maria Isabel op cit p 3 85 Sobre o progresso relacionado agraves comemoraccedilotildees ver O Positivismo Revista de Philosophia II vol

Porto Livraria Universal 1880 p 517 apud JOAtildeO op cit p 11 86 ldquo() moralizer la puissance mateacuterielle agrave laquelle le monde reacuteel est neacutecessairement soumisrdquo COMTE

Auguste Sommaire exposition de la religion universelle en treize entreacutetiens sistemaacutetiques entre une

Femme et um Precirctre de lrsquohumaniteacute Paris Place de lacuteEstrape 1891 (ediccedilatildeo original de 1845) p 21

Cartilha baacutesica da religiatildeo da humanidade esse texto define datas comemorativas e as associa aos

grandes homens da histoacuteria Eacute apresentado na forma de um diaacutelogo entre um padre e uma mulher os

dois ldquopoderes moderadoresrdquo da sociedade 87 LAFFITTE Pierre Les grands types drsquohumaniteacute Appreacuteciation systeacutematique des principaux agents

de lrsquoeacutevolution humaine Paris E Leroux 1875 p 70

46

escreveu Joaquim Nabuco sobre Camotildees ldquoa attraccedilatildeo viraacute do teo genio satellite que se

desprendeo della e que resplandece como a lua no firmamento da terra para agitar e

revolver os oceanosrdquo88

15 Dos homens ceacutelebres aos grandes homens

Em novembro de 1783 com o fim da Guerra de Independecircncia o general

Washington escreve seu farewell to the Nation Sem aceitar soldo algum durante os

oito anos de serviccedilos ao exeacutercito tendo gasto sua proacutepria fortuna no esforccedilo

revolucionaacuterio o comandante continental entrega o posto ao primeiro sinal de paz No

ano anterior ele jaacute havia ldquocom uma mistura de grande surpresa e assombrordquo lido

recusado e prometido repreender com severidade qualquer insinuaccedilatildeo a respeito de

sua permanecircncia no poder Sim haviam aqueles que dentre as fileiras do proacuteprio

exeacutercito sonhavam em vecirc-lo rei89

Mas a imagem do bom homem aposentado senhor de Mont-Vernon a lavrar

os campos e escrever cartas agrave sombra de sua figueira natildeo apenas afastaria da

hagiografia civil georgiana qualquer cor tiracircnica como tambeacutem tornaria Washington

ndash pai fundador da naccedilatildeo ndash exemplo de democracia Ou acaso antes de se tornar o

primeiro presidente ele jaacute natildeo havia sido eleito o primeiro Cincinnatus do novo

mundo90 Mesmo agrave revelia sem sequer ter estado em nenhuma reuniatildeo antes disso

ele foi feito presidente da reacutecem instituiacuteda Ordem de Cincinnatus Logo dentro da

cosmologia republicana e atraveacutes de uma verdadeira tradiccedilatildeo biograacutefica ele deveria

88 NABUCO Joaquim Camotildees Discurso pronunciado aacute 10 de junho de 1880 Rio de Janeiro G

Leuzinger amp Filhos 1880 p 29 89 ldquo() acredito que podemos logo dizer que existem fortes argumentos para admitirmos o tiacutetulo de rei

()rdquo GUIZOT Vie de Washington Correspondence et eacutecrits de Washington pub Drsquoapregraves lrsquoeacutedition

ameacutericaine et preacuteceacutedeacutes drsquoune introduction Paris Charles Gosselin 1870 p179 A correspondecircncia

entre George Washington e o Col Nichola na qual o coronel propotildee o reinado ao general foi

publicada jaacute por John Marshal em sua obra escrita entre 1804 e 1807 Ela eacute referecircncia unacircnime em toda

a hagiografia civil georgiana Ver MARSHALL John Vie de George Washington geacuteneacuteral en chef des

armeacutees ameacutericaines durant la guerre de lrsquoindependance et preacutesident des Eacutetats-Unis drsquoAmeacuterique

Paris Dentu 1807 Vol 5 p 8 SAWYER Joseph Dillaway George Washington 1732-1799 Bi-

centennial ed Boston Thomas W Best 1927 v 2 p 86-87 WILSON Woodrow George Washington

fondateur des Eacutetats-Unis Paris Payot 1927 (1893) 90 ldquoPor testemunhar respeito agrave memoacuteria desse ceacutelebre romano querdquo escreveu seu primeiro bioacutegrafo

ldquoretirando-se do comando de seus exeacutercitos entregou-se aos trabalhos da agriculturardquo a nata do

oficialato revolucionaacuterio ndash sob a lideranccedila do general Knox ndash fundou a Sociedade de Cincinnatus

MARSHALL John op cit p 13-14 Sobre Cincinnatus a fonte claacutessica eacute LIVIUS Titus Histoire

romaine de Tite Live Paris Panckoucke 1830-1833 Ver principalmente Vol I I30 e Vol II III20-29

47

se tornar aos olhos de muitos a personificaccedilatildeo do sistema poliacutetico norte-americano91

O culto dos founding fathers eacute particularmente importante na histoacuteria das

comemoraccedilotildees norte-americanas George Washington como escreveu Lyn Spillman

foi ldquoconsistentemente reverenciado como heroacutei nacional desde a deacutecada de 1780rdquo

ldquoRetratos celebraccedilatildeo de aniversaacuterios capelas reliacutequias livros artigosrdquo eram tatildeo

comuns que como dizia-se agrave eacutepoca o primeiro presidente americano ldquonatildeo era um

homem mas um Deusrdquo92

E o que fazer com um Deus senatildeo reservar-lhe espaccedilo de adoraccedilatildeo em solo

sagrado Natildeo deveria ser necessaacuterio insistir nos laccedilos entre os pais fundadores e a

Franccedila ldquoPergunte ao habitante de qualquer naccedilatildeo em qual paiacutes da terra ele gostaria de

viverrdquo refletiu Thomas Jefferson e ele responderaacute certamente em sua proacutepria ndash mas

ldquoqual seria a sua secunda opccedilatildeo A Franccedilardquo93 Em 2 de Abril de 1791 na sequecircncia

da morte do Conde de Mirabeau a Assembleia Nacional Constituinte decretou que a

Igreja de Sainte Geneviegraveve patrono de Paris fosse convertida em um Panteatildeo de

divindades civis Os primeiros corpos a chegar foram de santos seculares como

Voltaire e Rousseau cujos restos mortais cruzaram o poacutertico sob o qual hoje se pode

ler a inscriccedilatildeo ldquoaos grandes homens o reconhecimento da paacutetriardquo 94

ldquoChamo de grandes homensrdquo escreveu Voltaire em carta a Thieacuteriot ldquotodos

aqueles que se destacaram no uacutetil e no agradaacutevelrdquo 95 Na Franccedila ainda em 1758 a

academia jaacute tinha mesmo decidido trocar o curso de eloquecircncia pelo curso de elogio

dos homens ceacutelebres da naccedilatildeo fato que segundo Jean-Claude Bonnet lavrou ldquoa ata

de nascimento oficial do culto dos grandes homensrdquo 96 Pouco mais tarde Marat

anotaria em diaacuterio um esboccedilo de sua proacutepria tipologia entre os ilustres registrou os

papeacuteis do filoacutesofo do legislador do orador do guerreiro do negociante e do

91 Sobre Washington natildeo ter participado das reuniotildees da sociedade antes de sua nomeaccedilatildeo para presidi-

la ver FREEMAN Douglas Southall George Washington a Biography Volume Five Victory with

the help of France New York Charles Scribnerrsquos Sons 1952 p 453 92 SPILLMAN Lyn Nation and commemoration Creating national identities in the United States and

Australia Cambridge University Press New York 1997 p 23 93 ldquoAsk the travelled inhabitant of any nation in what country on earth would you rather livemdash

Certainly in my own where all my friends my relations and the earliest and sweetest affections and

recollections of my life Which would be your second choice Francerdquo JEFFERSON Thomas The

Writings of Thomas Jefferson 1892 ed Paul L Ford vol 1 p 149 94 Sobre o Pantheacuteon ver OZOUF Mona Le Pantheacuteon lrsquoEacutecole Normale des morts In Nora Pierre

Lieux de meacutemoire Vol 1 La Reacutepublique Paris Gallimard 1984 pp 139-166 E tambeacutem BONNET

Jean-Claude Naissance du Pantheacuteon Paris Fayar 1998 95 ldquoJrsquoappelle grands hommesrdquo resumiraacute Voltaire ldquotous ceux qui ont excelleacute dans lrsquoutile ou dans

lrsquoagreableacuterdquo VOLTAIRE Lettre agrave Thieacuteriot Juillet 1735 apud HARTOG Franccedilois Anciens modernes

sauvages Paris Galaade Eacuteditions 2005 p 158 96 BONNET op cit p 10

48

magistrado97 Mas esse culto natildeo foi revelado dos ceacuteus Ele eacute terreno secular e sua

genealogia poderia ser traccedilada pelo menos ateacute os primeiros seacuteculos de nossa era

atraveacutes da obra de Plutarco mesmo que a ldquonaturezardquo dos homens comemorados tenha

se modificado substancialmente desde entatildeo

Plutarco escrevera vidas Seu projeto de biografias paralelas um romano na

sequecircncia de um grego ao lado de suas Obras Morais compunha um corpus uacutenico na

antiguidade98 Natildeo as Vidas plutarquianas natildeo eram exatamente histoacuteria mas uma

espeacutecie de filosofia moral aplicada ldquoporque a narraccedilatildeo dos fatos aticcedila no espectador a

vontade de agirrdquo Elas funcionavam como uma pintura ou talvez uma escultura de

todo modo compondo ldquoo retrato de uma almardquo 99 Retrato que deveria ser fiel

captando a condiccedilatildeo humana atraveacutes de seu sempre peculiar conjunto de elementos

nobres e imperfeitos lembrando com Platatildeo que ldquoas grandes naturezas satildeo capazes

de grandes viacutecios e de grandes virtudesrdquo

Nem toda palavra presente nas Vidas era no entanto traccedilada pela natureza

humana A Fortuna o imponderaacutevel divinizado mostrava-se uma protagonista

inevitaacutevel necessaacuteria e ativa Como bem resumiu Franccedilois Hartog as biografias

plutarquianas se interessam muito particularmente ldquopelas estrateacutegias face agrave Fortunardquo

afinal ldquoquem se opotildee a ela quem a acompanha e quem por ela eacute abandonadordquo 100 A

beleza moral acaba se tornando o resultado indireto da vontade dos homens ilustres

satildeo as suas respostas face ao imponderaacutevel que determinam o tipo de caraacuteter que vai

imortalizaacute-los Seguindo esse raciociacutenio ainda estamos no terreno da moral mas

tambeacutem no do poliacutetico ndash com seu habitual cadinho de anedotas conselhos frases de

efeito as Vidas Paralelas tornam-se um tipo particular de dieta uma espeacutecie de

coleccedilatildeo de exemplos que a seu tempo ajudaram a formular uma memoacuteria comum

grego-romana Uma memoacuteria e uma moral Mesmo que sua atenccedilatildeo agrave bios faccedila da

tarefa de classificar Plutarco como historiador uma empresa tanto difiacutecil em nada

impediu Adriana Zangara de ver no bioacutegrafo do mundo antigo a expressatildeo maacutexima da

historia magistra vitae Atrair a atenccedilatildeo dos leitores por meio da emoccedilatildeo causada

pelas imagens exemplos e paralelos dos e entre os nomes ilustres do passado realizar

97 Citado por OZOUF Mona 1984 pp 149-166 98 Sobre Plutarco tomo por guia HARTOG 2005 principalmente pp 127-160 99 Respectivamente ldquola narration des faits (historia tou ergou) entraicircne chez le spectateur la volonteacute

drsquoagirrdquo PEacuteRICLES 1224 A seguir ldquoEacutecrire une vie crsquoest faire ldquole portrait drsquoune acircmerdquo CATAtildeO o

Jovem 24 1 apud HARTOG 2005 p 133 Ver notas 15 e 17 pp 301 100 HARTOG 2005 p 137

49

o julgamento impliacutecito de seus viacutecios e de suas virtudes e erigir um edifiacutecio moral

comum a gregos e romanos ndash natildeo era esse o seu trabalho101

O objetivo das Vidas natildeo era tatildeo somente falar do passado mas aconselhar

fazer refletir sobre os costumes e corrigi-los quando necessaacuterio Ao lado das Obras

Morais do mesmo autor as biografias plutarquianas foram especialmente valorizadas

no final da Idade Meacutedia Plutarco era lembrado como o preceptor de Trajano

conquistador da Daacutecia e seus escritos formularam a base de um sem nuacutemero de

cartilhas pedagoacutegicas conhecidas hoje como espelhos dos priacutencipes Ainda no seacuteculo

XIII o monge bizantino Maxime Planude jaacute tinha transcrito glosado e divulgado a

obra de Plutarco102 Sua redescoberta no ocidente deu-se durante o pontificado de

Avignon quando em 1373 Simone Atumano realizou a primeira traduccedilatildeo latina do

tratado Do controle da coacutelera texto que vinte anos depois seria reescrito em um latim

mais pomposo por Coluccio Salutati Para Erasmo ldquose Soacutecrates trouxe a filosofia do

ceacuteu para a terra Plutarco eacute aquele que a introduziu no coraccedilatildeo das casas ateacute o quarto

de dormirrdquo103 Afinal essas cartilhas morais ndash como escreveu Jacques Amyot em sua

traduccedilatildeo das Obras dedicada a Charles IX ndash ldquotendem a conduzir ao mesmo fim que os

livros dos santosrdquo Uma leitura cristatilde de Plutarco natildeo era apenas improvaacutevel mas

loacutegica haacute muito que a vida dos homens canonizados tornou-se exemplo ndash segui-los

era o caminho da virtude104

Talvez o melhor caso dos usos de Plutarco durante a primeira modernidade

venha da obra de Michel de Montaigne Nascido em uma rica famiacutelia de comerciantes

de Bordeaux ele seria educado e alfabetizado segundo os preceitos humanistas caros

agraves elites renascentistas europeias Seu pai Pierre Eyquem fez questatildeo que aprendesse

o latim como primeira liacutengua ldquoquanto a mimrdquo escreveu Montaigne em um de seus

Ensaios ldquoeu tinha seis anos antes de compreender o francecircs mais que o perigordin ou

o aacuterabe e sem meacutetodo sem livro sem gramaacutetica ou preceito sem chicote e sem

laacutegrimas tinha aprendido o latimrdquo 105 A educaccedilatildeo claacutessica rendeu-lhe natildeo apenas um

101 ZANGARA Adriana Voir lrsquohistoire Theacuteories anciennes du reacutecit historique Paris EHESS 2007 p

13 102 HARTOG 2005 p 146 103 Idem p 147 104 Hartog percebe uma leitura cristatilde de Plutarco em Racine lida a partir das anotaccedilotildees escritas agraves

margens de seu exemplar das Vidas ldquoas notas mais precisas vem propor uma leitura-traduccedilatildeo cristatilde de

uma frase ou uma expressatildeo eacute assim que tuchecirc (Fortuna) daimocircn (democircnio) ou pronoia

(clarividecircncia) podem em todo caso serem glosados em ldquoProvidecircnciardquo HARTOG 2005 p 156 105 MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Cap XXV Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 125 Pinguin

Books Satildeo Paulo 2010

50

profundo apreccedilo pelos antigos como tambeacutem a vocaccedilatildeo aos estudos humanistas

Parafraseando e respondendo agrave famosa imagem de Beacuternard de Chartres ndash ldquosomos

como anotildees apoiados nos ombros de gigantesrdquo ndash Montaigne diria que ldquoeacute preciso ter

costados bem firmes para decidir andar ombro a ombro com essas pessoasrdquo 106 E que

largas costas natildeo foram cultivadas desde a infacircncia a suportar a carga do latim

Especialmente dado agrave leitura dos moralistas romanos chegou a admitir que natildeo havia

travado relaccedilotildees ldquocom nenhum outro livro soacutelido a natildeo ser Plutarco e Secircneca em que

me abasteccedilo como as Danaidesrdquo107 Seus ensaios aliaacutes formariam um corpus

ldquoconstruiacutedo com os despojosrdquo desses dois autores108

Entre Secircneca e Plutarco entretanto o mais estimado era com certeza o uacuteltimo

o ldquonosso Plutarcordquo como ele com frequecircncia o chama era o seu homem Para

Montaigne ldquoPlutarco eacute um filoacutesofo que nos ensina a virtuderdquo109 ldquoDe todos os autores

que conheccedilordquo o autor das Vidas seria ldquoaquele que melhor misturou a arte e a

natureza o julgamento e a erudiccedilatildeordquo Esse ldquotatildeo perfeito juiz das accedilotildees humanasrdquo110 E

como julgar os feitos dos homens senatildeo conhecendo suas histoacuterias e frequentando

por meio delas as ldquograndes almas dos melhores seacuteculosrdquo111 Mas a riqueza do

trabalho de Plutarco era vista pelo autor dos Ensaios natildeo tanto como conclusatildeo

poreacutem mais como ferramenta ndash uacutetil e agradaacutevel ndash que nos convida a continuar seu

trabalho de embelezamento moral do mundo ldquoHaacute em Plutarcordquo escreveu Montaigne

ldquomuitos discursos extensos digniacutessimos de serem conhecidosrdquo poreacutem existem

tambeacutem ldquomil outros que ele simplesmente aflorou sinaliza soacute com o dedo por onde

106 MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Cap XXV Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 86 lsquoNous sommes

comme de nains jucheacutes sur des eacutepaules de geacuteantrsquo eacute expressatildeo atribuiacuteda a Bernard de Chartres poreacutem

fixada por Jean de Salisbury em seu Le Metalogicon preacutesentation et traduction par Franccedilois Lejeune

Laval Presses de lrsquouniversiteacute de Laval Paris 2009 (1159) (III 4) No original ldquoDicebat Bernardus

Carnotensis nos esse quasi nanos gigantium humeris insidentes ut possimus plura eis et remotiora

videre non utique proprii visus acumine aut eminentia corporis sed quia in altum subvenimur et

extollimur magnitudine giganteardquo Na traduccedilatildeo francesa de Dumez Herveacute ldquo Bernard de Chartres disait

que nous sommes comme des nains jucheacutes sur les eacutepaules de geacuteants de sorte que nous pouvons voir

plus de choses qursquoeux et des choses plus eacuteloigneacutees qursquoils ne le pouvaient non pas que nous jouissions

drsquoune acuiteacute particuliegravere ou par notre propre taille mais parce que nous sommes porteacutes vers le haut et

exhausseacutes par leur taille gigantesque ldquo HERVEacute Dumez Sur les eacutepaules des geacuteants Quasi nanos

gigantium humeris insidentes) Le Libellio dAegis volume 5 2009 ndeg 2 eacuteteacute pp 1-3 Diversos

autores da primeira modernidade a utilizaram glosaram imitaram e parafrasearam Sobre essa questatildeo

ver tambeacutem CIBOIS Philippe laquo Sur les eacutepaules des geacuteants raquo La question du latin 25 novembre 2012

Disponiacutevel em httpenseignement-latinhypothesesorg6359 acesso em 18102013 107 Idem Ibidem 108 MONTAIGNE Os Ensaios Livro II Cap XXXII Defesa de Secircneca e Plutarco p 284 109 MONTAIGNE op cit p 280 110 Respectivamente MONTAIGNE op cit Livro III Sobre os coxos pp 467 e Livro II Sobre a

embriaguez pp 223 111 MONTAIGNE op cit Livro I Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 100

51

iremos se isso nos agrada e por vezes se contenta em dar apenas um toque no ponto

mais vivo de um assuntordquo Diante da breviedade marca do estilo plutarquiano

ldquoprecisamos arrancaacute-los dali e pocirc-los na vitrinerdquo112

Tomar para si uma menccedilatildeo casual uma passagem que sentiu tatildeo somente um

leve toque da autoridade do artista e colocaacute-la em evidecircncia ndash aqui temos um

procedimento caro agrave constituiccedilatildeo das memoacuterias exemplares Um exemplo como

interpretou Jean Starobinski eacute a ldquofigura que colocado agrave parte (ex-emplum) mas

chamando agrave imitaccedilatildeo e agrave generalizaccedilatildeo pode confortar o indiviacuteduo dentro de sua

singularidade virtuosardquo Mais do que isso ele torna-se um instrumento criador de

identidades ldquofazendo esforccedilo para manter em estado de semelhanccedila face agravequeles que

fizeram os milagres da constacircnciardquo conclui Starobinski ldquoele se exerceraacute e se tornaraacute

identico a si mesmordquo 113

Figura que obteacutem sucesso em unir passado e futuro a escolha de um exemplo

a ser conjurado eacute tarefa medida e levada a cabo eacute claro pelos interesses dos dias de

hoje como escreveu Louis Marin a arte do historiador agrave la Plutarco consistiria em

saber ldquodeslocar o epidiacutectico dentro do narrativordquo ndash ou trazer o uacutetil ao presente no

sentido da retoacuterica demonstrativa114 Encontrar elementos proveitosos no passado era

a tarefa primordial da erudiccedilatildeo Seu corolaacuterio era o estabelecimento de paralelos natildeo

mais entre gregos e romanos mas entre antigos e modernos

A praacutetica de erigir paralelos entre vidas ilustres comeccedilaraacute entretanto a ser

questionada ao menos na Europa apoacutes 1680 Os reis absolutos os mais dignos

candidatos a terem suas vidas cantadas e comparadas natildeo poderiam por sua proacutepria

natureza possuir exemplos Louis XIV para Charles Perrault transformou-se dentre

todos os reis sejam os de hoje sejam os do passado no ldquomais perfeito modelordquo115 A

impossibilidade de paralelismos exemplares foi acompanhada pela elevaccedilatildeo de uma

nova categoria a qual viria a substituir em certos contextos os homens ilustres ou

mesmo os heroacuteis ldquoO grande homemrdquo ou o homem que encarna o espiacuterito de seu

tempo natildeo precisaria mais sair nem de Plutarco nem da antiguidade sequer do

passado recente ele pode ser um contemporacircneo

Categoria poliacutetica voltada para o presente os grandes homens ainda insistiam

outrossim em marchar no ritmo da moral Gabriel Bonnot abade de Mably fez

112 Idem p 101 113 STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982 p 29 114 MARIN Louis Le Portrait du Roi Paris Minuit 1981 p 46-51 apud HARTOG 2005 p 152 115 PERRAULT Charles Le Siegravecle de Louis le Grand 1687 apud HARTOG 2005 p 156

52

questatildeo de ressaltar em seus ensinamentos ao priacutencipe de Parma que a histoacuteria ainda

deveria ldquoser uma escola de moral e de poliacuteticardquo 116 Mably em outra ocasiatildeo jaacute nos

falou muito de Plutarco ldquomodelo perfeito quando a questatildeo eacute escrever a vida de um

homem ilustrerdquo 117 Ele continuava sendo o nosso homem mesmo que o uacutetil e o

agradaacutevel do topos antigo junto a seus exemplos estivessem desestabilizados por

uma nova relaccedilatildeo com o tempo que reconhecia a aceleraccedilatildeo e valorizava o presente

em nome de projetos de futuro A forccedila moral das biografias plutarquianas como

criteacuterio da perfectibilidade mantinha-se viva no coraccedilatildeo das casas e no quarto de

dormir

Tatildeo tarde quanto em 1847 Joatildeo Manuel Pereira da Silva rendia suas

referecircncias a Plutarco Sua sequecircncia de biografias de brasileiros ilustres teve como

tiacutetulo original justamente O Plutarco brazileiro A criacutetica literaacuteria nacional natildeo

tardou por defender seu projeto por mais que tenha sido considerado por muitos

deveras ambicioso ldquoos costumes os fatos histoacutericos a cronologia as ideacuteias morais e

filosoacuteficas da eacutepoca a influecircncia dos homens ceacutelebres tudo isso Plutarco estudou

sobre ()rdquo118 Na Franccedila de Volney e Acher dentre muitos outros interessados na

educaccedilatildeo infantil ndash nessa dimensatildeo privada da utilidade dos exemplos ndash natildeo

cansavam de reafirmar o programa da histoacuteria mestra da vida mesmo que no caso do

autor das Liccedilotildees de histoacuteria ela pudesse ser desvirtuada a partir do mal uso dos

paralelos Afinal a imitaccedilatildeo quando baseada em comparaccedilotildees viciosas teria tornado

possiacutevel o terror Retirar a moral da histoacuteria ainda estava para muitos fora de

cogitaccedilatildeo119

Entre os dias 5 e 22 de maio de 1840 Thomas Carlyle historiador escocecircs

realiza meia duacutezia de conferecircncias dedicadas uma a uma agraves seis categorias de

grandes homens que ele havia classificado o heroacutei como divindade como profeta

como poeta como sacerdote como homem de letras e ao final como rei ou

revolucionaacuterio120 Sua visatildeo sobre o heroacutei (sinocircnimo para ele de Great Men) estava

116 MABLY Gabriel Bonnot de De l`eacutetude de l`histoire Paris Fayard 1988 pp 12-13 117 ldquoJe vous parlerai plus affirmativement de Plutarque qui est un modegravele parfait quand ilnest que

question que deacutecrire la vie dun homme illustrerdquo MABLY Gabriel Bonnot Abbeacute de De la maniegravere de

eacutecrire l`histoire Alexandre Jombert Jeune Paris 1786 p 14 118 Gazeta Oficial do Brasil 1811847 Citada por Pereira da Silva Ver ENDERS Armelle ldquoO

Plutarco Brasileirordquo A Produccedilatildeo dos Vultos Nacionais no Segundo Reinado In Estudos Histoacutericos

2000 25 p 46 nota 8 p 60 119 VOLNEY CF Leccedilons d`histoire Gaulmier Paris Garnier 1980 p 71-115 apud HARTOG 2005

p 163 120 CARLYLE Thomas On Heroes Hero-Worship and the Heroic in History Reprint of the Sterling

Edition Echo Library 2007

53

intrinsicamente relacionada agrave histoacuteria ou melhor dizendo agrave ldquoHistoacuteria Universalrdquo a

histoacuteria ldquodo que o homem alcanccedilou neste mundordquo que eacute no fundo ldquoa Histoacuteria do

Grande Homem que aqui trabalhourdquo Sem o grande homem pois natildeo temos histoacuteria

universal ndash sem seus pensamentos seus sentimentos natildeo haveriam feitos ou eventos a

serem lembrados121

Dentre todos os seis tipos de grandes homens descritos e comentados por

Carlyle o uacuteltimo deles o heroacutei como rei tem sua importacircncia ressaltada Ele eacute o

ldquocomandante entre os homensrdquo e por isso pode ser reconhecido como ldquoo mais

importante dos grandes homensrdquo Categoria final de heroacutei o liacuteder eacute ldquopraticamente o

sumaacuterio de todas as vaacuterias figuras do heroiacutesmordquo122 Ele eacute poeta sacaredote homem de

letras e possui em si algo de divino Polecircmico em seu tempo O historiador

certamente sabia disso pois ldquocoisas muito lamentaacuteveis escritas cerca de cem anos

atraacutes ou mais sobre o lsquoDireito divino dos Reisrsquo adornam hoje sem leitores as

bibliotecas puacuteblicas deste paiacutesrdquo Natildeo era aliaacutes a esse tipo de argumento que Carlyle

se referia Pois escolher um homem descanccedilar um pedaccedilo redondo de metal em sua

cabeccedila chamaacute-lo de rei ndash nada disso vai conjurar a virtude divina Sua postura apesar

de religiosa era tanto mais secular ldquoExiste um Deus neste mundo e o consentimento

divino () olha por toda regra e obediecircncia dos atos morais do homemrdquo ldquoNatildeo existe

ato mais moral entre os homensrdquo ndash conclui Carlyle ecoando o De Officis de Ciacutecero ndash

ldquodo que a regra e a obediecircnciardquo Dessa maneira o ldquoverdadeiro rei como guia do

praacutetico sempre guarda algo de Pontiacutefice de guia espiritual do qual se levanta toda

praacuteticardquo 123 Enquanto os heroacuteis miacuteticos e os antigos profetas eram registros de uma

121 Respectivamente ldquoFor as I take it Universal History the history of what man has accomplished in

this world is at bottom the History of the Great Men who have worked hererdquo E a seguir ldquoThe

thoughts they had were the parents of the actions they didrdquo CARLYLE Thomas op cit Lecture I The

Hero as Divinity Odin Paganism Scandinavian Mythology 122 ldquoThe Commander over Men he to whose will our wills are to be subordinated and loyally

surrender themselves and find their welfare in doing so may be reckoned the most important of Great

Men He is practically the summary for us of all the various figures of Heroism Priest Teacherrdquo

Idem Lecture VI The Hero As King Cromwell Napoleon Modern Revolutionism 123 Respectivamente ldquoMuch sorry stuff written some hundred years ago or more about the Divine

right of Kings moulders unread now in the Public Libraries of this countryrdquo () ldquoTo assert that in

whatever man you chose to lay hold of (by this or the other plan of clutching at him) and claps a round

piece of metal on the head of and called Kingmdashthere straightway came to reside a divine virtue so

that he became a kind of god and a Divinity inspired him with faculty and right to rule over you to all

lengths thismdashwhat can we do with this but leave it to rot silently in the Public Librariesrdquo () ldquoThere

is a God in this world and a Gods-sanction or else the violation of such does look out from all ruling

and obedience from all moral acts of men There is no act more moral between men than that of rule

and obediencerdquo () ldquoThe true King as guide of the practical has ever something of the Pontiff in

himmdashguide of the spiritual from which all practice has its rise This too is a true saying That the

King is head of the ChurchmdashBut we will leave the Polemic stuff of a dead century to lie quiet on its

bookshelvesrdquo Idem Lecture VI The Hero As King Cromwell Napoleon Modern Revolutionism

54

era longiacutencua o grande homem de Carlyle saudado pelo canto dos poetas e homens

de letras guiava seus comandados em direccedilatildeo ao futuro Ponta-de-lanccedila da aceleraccedilatildeo

do tempo essa expressatildeo jaacute tinha encontrado alguns anos antes eacute verdade debate

diverso do outro lado do Canal

Em 1828 a imagem dos grandes homens tomava forma na segunda liccedilatildeo do

curso de histoacuteria da filosofia ministrado por Victor Cousin Inspirado pelo idealismo

hegeliano Cousin acreditava que a condiccedilatildeo histoacuterica de um povo repousava na

siacutentese de todos os elementos que compotildee sua ldquovida interiorrdquo ldquoem sua liacutengua em sua

religiatildeo em seus costumes (moeurs) em suas artes em suas leis em sua filosofiardquo124

Essa siacutentese era tambeacutem uma representaccedilatildeo de si mesma a ldquoideiardquo diria Cousin

manifesta a existecircncia histoacuterica de um povo Assim como carrega as marcas da

ldquounidade do espiacuteritordquo sua expressatildeo material individualiza-se em um personagem

especiacutefico O grande homem de Cousin natildeo existe sem uma dupla condiccedilatildeo ser

perpassado pelo ldquoespiacuterito geral de seu povordquo e ao mesmo tempo expressar esse

espiacuterito de uma forma profundamente individual Hegel jaacute havia ensinado que a

relaccedilatildeo entre o geral e o particular ndash entre o desenvolvimento da ideia e a accedilatildeo

individual ndash seria moderada pela ldquoastuacutecia da razatildeordquo125 O grande homem entra em

cena acreditando ser o autor e o ator de si mesmo mas como espeacutecie de encarnaccedilatildeo

da ideia ele natildeo eacute mais do que a manifestaccedilatildeo de uma determinada etapa de

desenvolvimento do espiacuterito

Fazem a histoacuteria por certo mas a vontade dos grandes homens natildeo pode na

leitura de Cousin ser fixada como uacutenica dimensatildeo da agecircncia Ora ldquoo grande

homemrdquo lido no Cours ldquonatildeo eacute uma criatura arbitraacuteria que poderia ser ou natildeo ser eacute o

representante mais ou menos realizado que todo grande povo suscitardquo Nessa leitura

oitocentista natildeo satildeo mais as consequecircncias morais das estrateacutegias maquinadas diante

do imponderaacutevel que determinam portanto o caraacuteter do personagem ilustre Eacute a

unidade da diversidade do espiacuterito (a siacutentese de uma ldquovida interiorrdquo) que manifesta e

determina o desenvolvimento de um povo entendido como uma ideia a qual o grande

homem representa A beleza moral eacute claro continua presente embora natildeo deva

obediecircncia ao Deus cristatildeo mas agrave razatildeo divinizada Presos ainda ao mundo sublunar

124 ldquo() un peuple n`est un veacuteritable peuple qursquoagrave la condition d`exprimer une ideacutee qui passant dans

tous les eacuteleacutements dont se compose la vie inteacuterieure de ce peuple dans sa langue dans sa religion dans

ses moeurs dans ses arts dans ses lois dans sa philosophie lui donne une physionomie particuliegravererdquo

COUSIN Victor Introduction a lrsquohistoire de la philosophie Paris Imp Pillet Fils Aineacute Librarie

Acadeacutemique 1872 p 202 125 HEGEL GWF Leccedilons sur la philosophie de lrsquohistoire Traduccedilatildeo francesa Paris Vrin 1963 p 37

55

dos costumes ao ldquosentimento da necessidaderdquo ndash a consciecircncia de que o universo eacute um

sistema racional ldquoou seja a evidecircncia de sua missatildeordquo ndash escapa aos grandes homens

Eles parecem compreendecirc-lo senatildeo confusamente como se fizessem a histoacuteria

soubessem disso mas no fundo fossem peccedilas articuladas em um grande tabuleiro

pelos artifiacutecios da razatildeo126 Satildeo bobos como seriam para Durkheim aqueles que

julgassem encarnaacute-los em um rito positivo

Ainda assim esses personagens formavam como o fariam mais tarde para

Carlyle todo o conjunto de experiecircncias que temos a relatar ldquodai-me a seacuterie dos

grandes homens todos os grandes homens conhecidos e eu vos farei a histoacuteria do

gecircnero humanordquo 127 Hegel em 1806 refletiu sobre sua visatildeo de Napoleatildeo em uma

Iena ocupada ldquoeu vi o Imperador ndash essa alma do mundo ndash sair da cidade () Eacute

efetivamente uma sensaccedilatildeo maravilhosa ver tal indiviacuteduo que concentrado em um

ponto sob a cela do cavalo estende-se sobre o mundo e o dominardquo 128 Pouco importa

se ele o sabe pois no instante em que passava pelos olhos de Hegel o grande homem

era imagem do Absoluto

Para aleacutem da grandiloquecircncia do vocabulaacuterio hegeliano compartilhado pelo

ecletismo de Cousin a contribuiccedilatildeo do Cours para o debate sobre os grandes homens

eacute clara Ela marca uma ruptura uma passagem entre o topos antigo plutarquiano para

a dimensatildeo formadora da liberdade dos modernos a representaccedilatildeo O grande homem

natildeo eacute nada sem o seu povo natildeo pode ser nada sem representar sua liacutengua seus

costumes sua religiatildeo suas leis As marcas de identidade entre as massas descritas

por Cousin e os liacutederes que as representam poderiam ainda inspirar a imitaccedilatildeo de um

Julien Sorel Mas as experiecircncias comemorativas apontam para especificidades bem

mais conflituosas na formulaccedilatildeo de um panteatildeo nacional Os grandes homens quiccedilaacute

nas entrelinhas como figuras puacuteblicas do plebiscito-de-todos-os-dias contam votos

diferentes em cada parcela da populaccedilatildeo Desse ponto de vista desprovido da filosofia

da histoacuteria os grandes homens tornariam-se os deputados da federaccedilatildeo da memoacuteria

representantes plurais ancestrais ou natildeo de respectivos quadros sociais De exemplos

virtusos do passado a homens puacuteblicos do presente sua tarefa comemorativa

126 ldquoIl faut que le sentiment de la neacutecessiteacute c`est-agrave-dire l`eacutevidence de leur mission les frappe ils

semble comprendre confuseacutement sans cela ils agiraient comme de simples individus et qu`ils

n`auraient pas toute la puissance qui leur est neacutecessairerdquo COUSIN op cit p 209 127 ldquoDonnez-moi la seacuterie des grands hommes tous les grands hommes connus et je vous ferai l`histoire

du genre humainrdquo Idem p 207 128 GWFHegel Correspondance Paris Gallimard 1990 ti p 113-115 apud HARTOG 2005 p

165 Grifos meus

56

continuaria sendo a correccedilatildeo dos valores e a afirmaccedilatildeo da identidade mesmo que ndash

unindo passado presente e futuro ndash o faccedilam mediados pelo discurso do progresso da

civilizaccedilatildeo ou em uma expressatildeo por um projeto nacional

Antes de poderem legislar a memoacuteria de quaisquer grupos reivindicar seu

passado e servir de manancial identitaacuterio os grandes homens precisariam ser eleitos

No seacuteculo XIX o processo de canonizaccedilatildeo ciacutevica tem como etapa fundamental o

julgamento histoacuterico realizado pelo sacerdote secular De inegaacutevel sabor plutarquiano

as biografias no Brasil do IHGB possuiacuteam a funccedilatildeo do ldquoguia praacuteticordquo (natildeo muito

longe do sentido atribuiacutedo a eles por Carlyle) de servir como exemplo de

comportamento e estiacutemulo agrave emulaccedilatildeo129 Mas o seu reconhecimento estava longe de

ser uma imposiccedilatildeo do saber erudito ou da interpolaccedilatildeo puacuteblica do homem de letras

essas natildeo eram mais do que instacircncias cujas deliberaccedilotildees seriam comumente medidas

entre um determinado uso do passado e uma soluccedilatildeo de compromisso para com os

demais mecanismos poliacutetico-morais de enquadramento da memoacuteria Aniversaacuterios

centenaacuterios demais datas redondas a naturalizaccedilatildeo do calendaacuterio a partir do tempo

das efemeacuterides jaacute carrega em si o caraacuteter seletivo e a inevitabilidade do esquecimento

Em 4 de julho de 1889 os cem anos da morte de Claacuteudio Manuel da Costa ndash

jurista poeta e inconfidente ndash foram comemorados pelo Instituto Histoacuterico e

Geograacutefico Brasileiro Natildeo seria faacutecil integrar tal personagem dentro do panteatildeo de

papel nacional mas a reorientaccedilatildeo da revolta como precursora da liberdade nacional

fez por retiraacute-lo do acircmbito excusivamente republicano e entregaacute-lo agrave famiacutelia imperial

ldquoPara tantordquo escreveu Enders referindo-se ao discurso do historiador Joaquim

Norberto de Sousa Silva ldquoa alocuccedilatildeo que pronuncia na cerimocircnia transforma o

suiciacutedio de Claacutedio Manuel da Costa num ato poliacutetico na melhor tradiccedilatildeo romanardquo

Como maacutertir nacional o lugar de Claacuteudio Manuel da Costa no passado da naccedilatildeo ldquonatildeo

lhe rouba ningueacutem natildeo lhe pode ser disputado entre a cronologia dos fatos A

posteridade eacute a justiccedila da histoacuteria que julga em uacuteltima instacircncia e essa o sagra como o

129 Essa tese jaacute foi defendida por GUIMARAtildeES Manoel Luiz Salgado A disputa pelo passado na

cultura histoacuterica oitocentista no Brasil In CARVALHO Joseacute Murilo (Org) Naccedilatildeo e cidadania no

Impeacuterio novos horizontes Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo brasileira 2007 p 109 Maria da Gloacuteria de

Oliveira ndash em tese de doutorado dedicada precisamente ao problema biograacutefico na historiografia do

Brasil oitocentista ndash chega a afirmar que ldquo() em meio agraves vicissitudes da atmosfera poliacutetica brasileira

no uacuteltimo dececircnio dos oitocentos os pressupostos da historia magistra vitae continuavam vaacutelidos e

convenientesrdquo OLIVEIRA Maria da Gloacuteria de Escrever vidas narrar a histoacuteria a biografia como

problema historiograacutefico no Brasil oitocentista FGV Editora Rio de Janeiro 2011 p 60

57

nosso protomaacutertirrdquo130

A crise do Impeacuterio encontrou um ponto criacutetico na onda dos centenaacuterios Como

se sabe 1889 marca os cem anos da tomada da Bastilha Sob a eacutegide da vitoacuteria

decisiva de 1877 seguida dois anos depois pela queda dos uacuteltimos bastiotildees

conservadores ndash no senado e no Eliseu ndash os republicanos viram-se livres para

organizar o centenaacuterio da revoluccedilatildeo O regime de Sadi Carnot eleito em 1887 era

entretanto ainda muito jovem fraacutegil isolado e cercado por monarquias no concerto

das naccedilotildees europeias No cenaacuterio nacional teria que lidar tanto com escacircndalos de

corrupccedilatildeo quanto com a ameaccedila boulangista ndash o ldquogeneral revancherdquo promoveria uma

espetacular ascensatildeo atraindo votos de parcela consideraacutevel do eleitorado

republicano ao mesmo tempo em que conspirava em segredo com os monarquistas A

revoluccedilatildeo natildeo era ldquoum blocordquo senatildeo aos olhos daqueles que se consideravam seus

herdeiros legiacutetimos reverberando identidade a partir dela131 Comemoraacute-la era um

assunto sensiacutevel e transformaacute-la em consenso um mero projeto Projeto que

comeccedilaria ndash com a aposta no simbolismo do retorno da representaccedilatildeo nacional a Paris

ndash jaacute nos primeiros meses apoacutes a conquista do poder Agrave oficializaccedilatildeo da Marseillaise e

do 14 de julho segue-se a reabertura do Panteatildeo para a inumaccedilatildeo solene de Victor

Hugo eventos que ocorrem respectivamente entre o iniacutecio de 1879 maio de 1880 e

1o de junho de 1885132 A esquerda em 1889 ansiosa por sediar uma grande festa de

afirmaccedilatildeo nacional em torno de iacutecones republicanos era no entanto ldquouma esquerda

moderada engajada sobretudo em um processo de moderaccedilatildeo por razotildees

independentes das circunstacircncias comemorativasrdquo Pierre Tirard ndash nomeado primeiro

ministro pela segunda vez em fevereiro de 1889 ndash prometeu ao suceder Floquet uma

poliacutetica comemorativa ldquosaacutebia tolerante e liberalrdquo 133 Isso natildeo significou tatildeo somente

continuar pautando a efemeacuteride pelos mesmos criteacuterios despolizatiados que marcaram

a Exposicatildeo Universal mas quando do encontro inevitaacutevel com assuntos sensiacuteveis agrave

memoacuteria da naccedilatildeo tocaacute-los de forma prudente e quase defensiva

130 ENDERS Armelle op cit p 50 O discurso de Joaquim Norberto de Sousa Silva se encontra na

RIHGB T 53 1890 21 131 A imagem da revoluccedilatildeo como ldquoum blocordquo eacute invocada com frequecircncia na histoacuteria dos usos poliacuteticos

do passado francecircs George Clemenceau primeiro ministro durante a Grande Guerra era

particularmente adepto da expressatildeo Segundo Jean-Marie Mayeur no entanto seu uso remonta a 29

de janeiro de 1891 quando no contexto das agitaccedilotildees da IIIa Repuacuteblica os republicanos promovem

intenso debate em torno de uma peccedila de teatro intitulada Thermidor de Victorien Sardou a qual

consideraram ofensiva agrave memoacuteria nacional Ver MAYEUR Jean-Marie ldquoLa Reacutevolution Franccedilaise est

un blocrdquo Commentaire 45 primavera de 1989 pp 145-152 132 Ver ORY Pascal 1992 p 30 133 Idem p 35

58

O grande homem do centenaacuterio celebrado em 1889 precisaria ser uma figura

enquanto ainda natildeo consensual ao menos pouco polecircmica Em 4 de dezembro de

1886 o governo francecircs institui uma comissatildeo encarregada de reunir e divulgar

documentos ineacuteditos relativos agrave revoluccedilatildeo Dentre as duas primeiras ediccedilotildees

realizadas pelo oacutergatildeo encontram-se as cartas trocadas entre Lazare Carnot e Danton

Em 26 de janeiro de 1887 Charles-Louis Chassin homem de letras e fervoroso

republicano declara frente agrave comissatildeo histoacuterica da cidade de Paris

ldquoO Centenaacuterio nacional de 1789 natildeo seraacute celebrado com

uma convicccedilatildeo saacutebia e natildeo serviraacute agrave educaccedilatildeo ciacutevica e

patrioacutetica das novas geraccedilotildees se ele natildeo for precedido

por uma vasta enquete provando atraveacutes dos fatos

coletados pelo meacutetodo positivo a legitimidade das

reivindicaccedilotildees de nossos paisrdquo134

Instruir a comemoraccedilatildeo como forma de transmissatildeo de valores entre geraccedilotildees

como viria a sugerir algumas deacutecadas mais tarde Marc Bloch Uma comissatildeo

mesmo atraveacutes de um meacutetodo positivo a julgar o passado em ldquouacuteltima instacircnciardquo

como disse do outro lado do Atlacircntico um Sousa Silva De todo modo cientista ou

juiacuteza a corte acadecircmica republicana teria de contar os votos de um juacuteri popular e

sensiacutevel a ele escolher uma figura como Danton para ldquovedeterdquo do centenaacuterio Menos

de um ano depois os frutos da comissatildeo jaacute estavam maduros o monumento a Danton

foi decidido por deliberaccedilatildeo em novembro de 1887 A inauguraccedilatildeo no entanto sofreu

com atrasos e natildeo foi realizada antes de 14 de julho de 1891 ndash embora o projeto de

Auguste Paris jaacute tivesse sido escolhido haacute quase dois anos em maio de 1889 O

problema natildeo parece ter sido a oposiccedilatildeo monarquista mas seu exato oposto alas

radicais republicanas insatisfeitas vilipendiaram a obra como um ldquocontra-

monumento agrave revoluccedilatildeo francesardquo135

A imagem de Danton um repuacuteblicano anticlerical natildeo conduz o terror agraves

sombras do esquecimento Ela o esculpe em sua estaacutetua cujo pedestal faz menccedilatildeo ao

martiacuterio de 1793 Essa soluccedilatildeo conciliatoacuteria amortece o impacto ofensivo de 1789

retira a revoluccedilatildeo das matildeos dos radicais e ndash ao menos acreditavam os moderados ndash a

134 ldquoLe Centenaire national de 1789 ne sera ceacuteleacutebreacute avec une conviction raisonneacutee et ne servira agrave

lrsquoeacuteducation civique et patriotique des geacuteneacuterations nouvelles que srsquoil est preacuteceacutedeacute drsquoune vaste enquecircte

prouvant par les faits recueillis selon la meacutethode positive la leacutegitimiteacute des revendications de nos

pegraveresrdquo CHASSIN Charles-Louis Les eacutelections et les cahiers de Paris Preacuteface tome I p XIX 135 Bulletin municipal officiel 16 juillet 1891 Ver tambeacutem ORY op cit p 99

59

entrega agraves matildeos da naccedilatildeo Talvez natildeo fosse esse um antigo sonho republicano

endossado pela historiografia positiva ndash de Alphonse Aulard ou Gabriel Bonnot ndash

comemorar ldquoo uacutenico homem de Estado que o ocidente deve honrar depois de

Fredericordquo136 Natildeo se tratava afinal de uma manobra da extrema esquerda ou da

necessidade de demolir a monarquia ldquoA revoluccedilatildeo estaacute condenadardquo disse Ernest

Renan em fevereiro de 1889 ldquose depois de cem anos ela estiver ainda por

recomeccedilarrdquo137 Como resultado a personagem de Danton imaginaria um officiant eacute

eleita por conquistar ldquoo maior nuacutemerordquo de coraccedilotildees e mentes138

Enquanto isso de volta ao outro lado do Atlacircntico a jovem repuacuteblica

brasileira ensaiava suas primeiras poliacuteticas comemorativas Seus modelos eacute claro

viriam da Franccedila e de Portugal e sua inspiraccedilatildeo no catecismo positivista ia bem aleacutem

do lema na bandeira nacional talhado entre as estrelas que representam os Estados da

federaccedilatildeo139 Em 14 de janeiro de 1890 um decreto leva a reforma do espaccedilo ao

tempo (DEC 155-B1890 ndash DECRETO DO EXECUTIVO ndash 14011890) O novo

calendaacuterio ciacutevico do regime deveria lembrar fatos relacionados agrave fraternidade

universal mas principalmente outros tantos associados agrave solidariedade nacional Era

a vez da repuacuteblica ldquocomemoraccedilatildeo dos precursores da independecircncia reunidos em

136 ldquoLe grand Danton le seul homme drsquoEacutetat dont lrsquoOccident doive srsquohonorer depuis Freacutedeacutericrdquo COMTE

Auguste Systegraveme de politique positive ou traiteacute de sociologie instituant la reacuteligion de lrsquohumaniteacute

Tome 3 Contenant la Dynamique Sociale ou le traiteacute geacuteneacuteral du progregraves humain Paris 1853 p 596 137 ldquoLa Reacutevolution est condamneacutee srsquoil est prouveacute qursquoau bout de cent ans elle en est encore agrave

recommencer ()rdquo RENAN Ernest Reacuteponse au discours de reacuteception de Jules Claretie Discours

prononceacute dans la seacuteance publique le jeudi 21 feacutevrier 1889 Paris Palais de lrsquoinstitut p 6 138 ldquo() dans lrsquoembellie le personnage rallie le plus grand nombrerdquo ORY Pascal op cit p 157 As

tentativas de canonizaccedilatildeo ciacutevica eacute claro natildeo terminaram em Danton A ala mais a esquerda da

comemoraccedilatildeo segundo Pascal Ory entende usar a excepcionalidade da efemeacuteride para ldquoir mais longe

na reabilitaccedilatildeo histoacutericardquo No aniversaacuterio da aboliccedilatildeo dos privileacutegios em 4 de agosto de 1889 quatro

heroacuteis republicanos satildeo elevados ao estatuto de grandes homens ldquotrecircs siacutembolos patrioacuteticos

encarregados de demonstrar a identificaccedilatildeo entre a Naccedilatildeo e a Repuacuteblica (Lazare Carnot Marceau La

Tour drsquoAuverne) e um siacutembolo democraacutetico o deputado Alphonse Baudin morto nas barricadas em 2

de dezembro de 1851 em defesa da representaccedilatildeo nacional face ao ldquocesarismordquo ORY op cit p 127

Alguns anos antes Miguel Lemos e Teixeira Mendes tinham sido expulsos da Politeacutecnica ndash ao que

parece o Baratildeo do Rio Branco natildeo estava feliz com a atuaccedilatildeo publicista dos dois alunos de Benjamin

Constant Lemos vai para Paris e mesmo que natildeo tenha conseguido completar os estudos dada a

falecircncia da famiacutelia acaba ingressando nos ciacuterculos sociais primeiro de Littreacute depois de Laffitte

sempre com um olhar atento agrave poliacutetica de Gambetta Em 1880 ele eacute sagrado sacerdote da humanidade

e pouco depois retorna agrave corte Entre 1884 e 1885 o Centro Positivista da Corte organiza eventos em

homenagem agrave Danton eventos que culminam no centenaacuterio da queda da Bastilha Ver ALONSO

Acircngela Ideacuteias em movimento a geraccedilatildeo 1870 na crise do Brasil Impeacuterio Satildeo Paulo Paz e Terra

2002 p 294 139 No contexto dos eventos patrocinados pelo Centro Positivista da Corte escreve Angela Alonso ldquoa

progressiva atribuiccedilatildeo de legitimidade a uma via revolucionaacuteria chegaria ao aacutepice no centenaacuterio da

Tomada da Bastilha em 14 de Julho de 1889 com eventos apoteoacuteticos na Corte em Satildeo Paulo e n Rio

Grande do Sulrdquo ldquoA evoluccedilatildeo poliacutetica chegou ao seu termo revolucionaacuteriordquo Gazeta de Notiacutecias

12111889 ALONSO op cit p 318-319

60

Tiradentesrdquo em 21 de abril 7 de setembro como dia da independecircncia 15 de

novembro como ldquocomemoraccedilatildeo da paacutetria brasileirardquo satildeo alguns exemplos140

O novo calendaacuterio como toda poliacutetica comemorativa precisava se apresentar

com algum grau de legitimidade e para isso demonstrar sensibilidade com as

memoacuterias enquadradas141 Mas nem todos os expoentes do novo regime estavam

satisfeitos ldquoE para os que quiserem ver na independecircncia alcanccedilada em 1822 a

palavra suprema dos nossos anseios ndash disse ningueacutem menos do que o presidente em

mensagem ao Congresso Constituinte ndash apontaremos o 7 de abril de 1831 em que

banimos o nosso primeiro Imperadorrdquo142 Ora a palavra suprema dos anseios do

marechal Deodoro natildeo se encontrava naquele longiacutencuo 7 de setembro mas

comeccedilava a ser pronunciada apenas um ano antes no 15 de novembro data em que

ldquoiniciamos a demoliccedilatildeo de trecircs seacuteculosrdquo143

A reorganizaccedilatildeo do calendaacuterio em torno dos valores e das expectativas do

novo regime poliacutetico exigiu a intervenccedilatildeo de grandes homens que associados a esta

ou agravequela data conferem a elas um sentido edificante na medida em que marcam a

ruptura entre o tempo antigo e o tempo novo144 Tiradentes em seu 21 de abril seria

transformado pela iconografia republicana em uma espeacutecie de Cristo secular e seu

martiacuterio saudado como um sacrifiacutecio no altar da paacutetria145 Mas o tiacutetulo de patriarca da

independecircncia continuaria sob o vulto de Joseacute Bonifaacutecio146 Membro da Academia de

Ciecircncias de Lisboa criacutetico da escravidatildeo poreacutem leal a D Pedro I e preceptor de seu

herdeiro Andrada e Silva era o candidato ideal para angariar o maior nuacutemero de votos

dentre os mais diversos grupos e quadros sociais da memoacuteria147 Mais tarde os

140 Ver OLIVEIRA Luacutecia Lippi As festas que a Repuacuteblica manda guardar Estudos Histoacutericos 2

1989 pp 172-189 141 Ainda em 1889 Siacutelvio Romero tomou as vestes de oficiante e organizou uma comissatildeo para

organizar festejos em homenagem a Tiradentes Ver ALONSO op cit 291 142 apud NETO Edgar Leite Ferreira O improviso da civilizaccedilatildeo a Naccedilatildeo Republicana e a construccedilatildeo

da ordem social no final do seacuteculo XIX Niteroacutei UFF 1989 (diss mestrado ndash mimeo) p A1 143 Discurso de Deodoro da Fonseca em ocasiatildeo do primeiro aniversaacuterio da declaraccedilatildeo da repuacuteblica 15

de novembro de 1890 apud NETO op cit p 40 Citado tambeacutem por SIQUEIRA Carla A Imprensa

comemora a Repuacuteblica memoacuterias em luta no 15 de novembro de 1890 Estudos Histoacutericos Rio de

Janeiro vol 7 n 14 1994 p 161-181 A autora ressalta o investimento republicano no 15 de

Novembro lembrando as batalhas de memoacuteria na imprensa oitocentista 144 Sobre a divisatildeo entre tempo antigo e tempo novo como elemento fundamental das aspiraccedilotildees

republicanas ndash e no caso francecircs revolucionaacuterias ndash ver BACZKO Bronislaw 1984 Le calendrier

reacutepublicain In NORA Pierre (org) Les lieux de meacutemoire Paris Gallimard passim 145 Importante notar que o Centro Positivista da Corte jaacute comemorava a Inconfidecircncia Mineira como

ldquofesta ciacutevicardquo a partir de 1881 ALONSO op cit 292 146 Ver MOTTA Marly Silva da A naccedilatildeo faz cem anos o centenaacuterio da independecircncia e a questatildeo

nacional no iniacutecio dos anos 20 Rio de Janeiro CPDOCFGV 1992 p 16 147 A elevaccedilatildeo de Joseacute Bonifaacutecio a grande homem da naccedilatildeo jaacute estava sendo preparada desde antes do

iniacutecio do II Reinado Um elogio histoacuterico eacute proferido na Academia Imperial de Medicina ainda no ano

61

monarquistas liberais da geraccedilatildeo de 1870 iriam fazer todo o possiacutevel para representar

certa continuidade entre suas criacuteticas morais agrave escravidatildeo ndash esse cancro mortal que

ameaccedilava os fundamentos da naccedilatildeo ndash e a campanha abolicionista do fim do seacuteculo

Natildeo seria exagero dizer que dentro do contexto comemorativo brasileiro Joseacute

Bonifaacutecio valeria um Danton148

Ainda na Ameacuterica poreacutem um pouco mais ao norte e cerca de um seacuteculo antes

um panfleto escrito sob o pseudocircnimo de ldquoCassiusrdquo causa polecircmica na nova

repuacuteblica A data assinada marca 10 de outubro de 1783 Aedanus Burke ndash o autor

ele mesmo um ex-combatente revolucionaacuterio mais tarde congressista pela Carolina

do Sul ndash demonstra revolta contra a receacutem criada Sociedade dos Cincinnati ldquoCassiusrdquo

fazia referecircncia a um dos assassinos de Juacutelio Ceacutesar Ao lado de Junius Brutus era

considerado um homem ilustre nos EUA dos anos 1700 por ter tentado evitar a queda

da repuacuteblica cometendo o tiraniciacutedio Burke acreditava que a Sociedade era ldquona

verdade e vai acabar sendo um pariato hereditaacuterio uma nobreza para seus membros

e sua prole masculinardquo149 Seu argumento era claro Essa Ordem como chamavam

alguns violava os artigos da confederaccedilatildeo assim como todos os valores pelos quais a

de sua morte em 1838 e publicado na revista do IHGB alguns anos mais tarde SILVA MAIA Emiacutelio

Joaquim Elogio histoacuterico do conselheiro Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva Revista do IHGB VIII

1846 pp 116-40 Uma estaacutetua em bronze encomendada ao escultor Louis Rochet tem seu siacutetio no

Largo de Satildeo Francisco inaugurado em 1872 em uma cerimocircnia que contou com a presenccedila da famiacutelia

real membros da alta aristocracia e com discurso do orador do IHGB Joaquim Manuel de Macedo

Alguns anos depois em 1877 com o aceite por parte do Instituto do Elogio histoacuterico a Joseacute Bonifaacutecio

escrito por Latino Coelho Bonifaacutecio eacute saudado como ldquo() ministro ilustrado e previdente conselheiro

leal e esforccedilado lidador na grandiosa empreza da emancipacatildeo nacional se como alguns pensam natildeo

foi o pensamento foi o braccedilo que guiou destro o movimento reaccionario coroado do mais feliz

sucesso Seu nome sua gloria a justa celebridade de seus feitos constituem um patrimonio de

inestimavel valor para a naccedilatildeo que o preza e honrardquo Parecer sobre o Elogio Histoacuterico de Joseacute

Bonifaacutecio de Latino Coelho por Olegaacuterio Herculano de Aquino e Castro e Joseacute Tito Nabuco de

Arauacutejo Revista do IHGB t40 v2 1877 p 519 Sobre o gecircnero dos elogios histoacutericos ver

OLIVEIRA Maria da Gloacuteria Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade biografia memoacuteria e

experiecircncia da histoacuteria no Brasil oitocentista Varia Histoacuteria Belo Horizonte vol 26 no 43 p283-

298 janjun 2010 Eacute claro que nem todos concordavam em alccedilar Bonifaacutecio ao meacuterito de patriarca da

independecircncia Escrevendo ao tesoureiro e organizador de facto da Sociedade Comemorativa da

Independecircncia do Impeacuterio o historiador Alexandre de Mello Moraes um criacutetico da monarquia alega

que a estaacutetua de Andrada e Silva um falso patriota devia ser ldquocontemplada com indiferenccedilardquo Ver

Correspondecircncia de Alexandre Joseacute de Mello Moraes para Ameacuterico Rodrigues Gamboa 23 de outubro

de 1872 In MELLO MORAES Alexandre Joseacute de A independecircncia e o Impeacuterio do Brazil ou a

Independecircncia comprada por dous milhotildees de libras esterlinas Rio de Janeiro Typ Do Globo 1877

pp 352-354 apud KRAAY Hendrik Alferes Gamboa e a Sociedade Comemorativa da Independecircncia

do Impeacuterio 1869-1889 Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo v 31 n 61 2011 p 20 148 Como escreveu Armelle Enders ldquoNa histoacuteria incerta do panteatildeo brasileiro Joseacute Bonifaacutecio de

Andrada e Silva (1763-1838) eacute um dos raros personagens cuja estaacutetua manteve desde 1822 a solidez e

a constacircncia do bronzerdquo ENDERS Armelle Os Vultos da Naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e formaccedilatildeo de

brasileiros Rio de Janeiro FGV Editora 2014 p 72 149 ldquoIt is in reality and it will turn out to be a hereditary peeragerdquo BURKE Aedanus Considerations

on the Society or Order of Cincinnati proving that it creates a Race of Hereditary Patricians or

Nobility Philadelphia Robert Bell 1793

62

revoluccedilatildeo lutou e a medida que suas ideias forem se corrompendo vai

inexoravelmente conspirar contra suas conquistas ldquoTocai o trompete em Zionrdquo150

ldquoComo a uacutenica organizaccedilatildeo social aleacutem do congressordquo analisou Harry M

Ward ldquoa Sociedade dos Cincinnati serviu ateacute certo ponto como instrumento de lobby

dos veteranos pressionando o congresso para abrir terras no oeste recompensar os

militares garantir pensatildeo aos veteranos e corrigir seus pagamentosrdquo 151 Em apenas

um ano 13 sociedades foram estabelecidas com um quadro social de 2150 dos 5500

oficiaacuteis que poderiam ser eleitos e contando com 23 dos 65 signataacuterios da

Constituiccedilatildeo152 Os seus fundadores no entanto natildeo poderiam prever a intensa

oposiccedilatildeo que sofreriam John Quincy Adams em 1787 maldizeu a sociedade

alegando que a instituiccedilatildeo tornar-se-ia fatal para a constituiccedilatildeo Diversos

representantes regionais passaram resoluccedilotildees condenando os Cincinnati contando

mesmo com o apoio de alguns heroacuteis da independecircncia Quando o panfleto de Burke

chegou agraves matildeos de Benjamin Flanklin ele encorajou a sua traduccedilatildeo para o francecircs

realizada pelo conde de Mirabeau153

George Washington que havia aceito o cargo de presidente da Ordem escreve

ao colega Thomas Jefferson que o aconselha a manter os rumos da associaccedilatildeo

afastados da poliacutetica O general resolve tambeacutem propor o fim do princiacutepio da

hereditariedade o que embora votado em instacircncia nacional natildeo eacute aceito por todas as

unidades regionais da Ordem Com muitos de seus membros se dirigindo ao oeste ndash

ao lado de uma nova oposiccedilatildeo inspirada pela revoluccedilatildeo francesa ndash por volta de 1800

a sociedade estava esvaziada154 O trabalho de transformar um personagem em

ldquoheroacuteirdquo ndash em um ldquomorto divinizadordquo como jaacute expressava Stephan Czarnowski ndash

150 ldquoblow ye the trumpet in zionrdquo Idem 151 ldquoAs the only national oranization other than Congress the Society of the Cincinnati served to some

extent as a veteranrsquos lobby pressing Congres to open lands in the west for military bounties to grant

pensions for all Revolutionary War veterans and to compensate veterans for the difference in price

between what they sold their pay ()rdquo WARD Harry M The War for Independence and the

Transformation of American Society UCL Press London 1999 p 233 152 Idem Ibidem 153 MIRABEAU Consideacuterations sur lrsquoOrdre de Cincinnatus ou Imitation drsquoun pamphlet Anglo-

Ameacutericain J Johnson Londres 1784 Sobre o entusiasmo de Benjamin Franklin contra os Cincinnati

ver OLSTER Lester C Benjamin Franklins Vision of American Community A Study in Rhetorical

Iconology (Studies in RhetoricCommunication) University of South Caroline 2004 p 128 No dia 13

de Julho de 1784 Franklin escreveu em seu jornal ldquoMirabeau and Champfort came and read their

translation of (American) Mr Burkersquos pamphlet against the Cincinnati which they had much enlarged

intending it as covered satire against noblesse in generalrdquo Idem p 129 154 WARD op cit p 234

63

estava longe de seguir uma jornada linear155 Entre o esquecimento do episoacutedio e sua

pontual lembranccedila ele demonstra que mesmo um Deus mesmo um grande homem

estaria sujeito a enroscar-se no tortuoso emaranhado dos usos do passado Ele eacute como

o proacuteprio passado uma figura sempre conflituosa

16 Oficiar a moral dos grandes homens da naccedilatildeo

As topografias do passado com seus picos de densidade memorial suas

planiacutecies esquecidas seus cruzamentos de interesses mesmo que comumente

naturalizadas natildeo escondem o traccedilo humano de seus contornos graacuteficos156 Os

grandes homens natildeo escalavam as montanhas da lembranccedila de matildeos nuas belos como

os deuses a subir ao Olimpo extasiados pelo transe comemorativo incutido pelo

endosso em massa de uma consciecircncia moral Eles eram eleitos preparados e

elevados por um quadro social ao cargo de representante identitaacuterio do grupo em um

duplo esforccedilo memorial e social As poliacuteticas comemorativas satildeo casos emblemaacuteticos

desse trabalho de enquadramento da memoacuteria incentivadas por associaccedilotildees civis

comissotildees estatais e divulgadas pela imprensa a organizaccedilatildeo de seus eventos

demonstra tambeacutem a disputa pelo cargo de celebrante aquele que ministra a

celebraccedilatildeo ordena e oficializa o passado a ser comemorado Comemoraccedilatildeo que

assim entendida torna-se na feliz expressatildeo cunhada por Geacuterard Namer uma

vontade poliacutetica da memoacuteria157 Vontade cuja pretensatildeo eacute ser ldquogeralrdquo esse tipo de uso

do passado enfrenta a oposiccedilatildeo de vontades particulares em episoacutedios que tecircm sido

descritos pela literatura especializada enquanto ldquobatalhas de memoacuteriardquo158 Se a

comemoraccedilatildeo eacute ndash como insinuava Marc Bloch em seu diaacutelogo com Maurice 155 CZARNOWSKI Stefan Le culte des heroacutes et ses conditions sociales Saint Patrick heacuteros national

de lrsquoIrlande Paris Alcan 1919 Apud ENDERS Armelle Os Vultos da Naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e

formaccedilatildeo de brasileiros Rio de Janeiro FGV Editora 2014 p 15 156 A analogia topograacutefica eacute de responsabilidade de ZERUBAVEL Eviatar Time Maps Collective

Memory and the Social Shape of the Past The University of Chicago Press 2003 ChicagoLondres

prinicpalmente p 25-34 157 ldquoHalbwachs ne parle pas de la commeacutemoration et de la propagande politique la commeacutemoration est

une volonteacute politique de la meacutemoire et ce nrsquoeacutetait pas la faccedilon dont Halbwachs posait le problegraveme ()

La commeacutemoration que nous eacutetudions ici pose donc un problegraveme nouveau qui est celui des rapports de

la politique et de la meacutemoire agrave cocircteacute de la meacutemoire sociale subie presque inconscientement par les

hommes sous la forme de tradition il y a donc une mise en place de meacutemoire collective une volonteacute de

faire se souvenir il y a aussi un deacutesir diffus conscient ou non de se souvenir que nous eacutetudions ici Au

service de cette volonteacute politique de meacutemoire la commeacutemoration joue aussi un peu le rocircle de meacutediardquo

NAMER Geacuterard op cit p 5-6 158 POLLACK 1989 p 5 ldquomneumonic battlesrdquo eacute a expressatildeo usada por ZERUBAVEL Eviatar

Social Mindscapes An Invitation to Cognitive Sociology Cambridge Mass Harvard University Press

1997 pp 97-99

64

Halbwachs ndash uma forma de comunicaccedilatildeo entre geraccedilotildees o officiant tenta contracenar

nos episoacutedios que discutiremos logo a seguir algo como o papel de guardiatildeo da

memoacuteria nacional

Celebraccedilotildees ciacutevicas tornaram-se tradicionais jaacute durante o Segundo Impeacuterio

Algueacutem eacute claro tinha que as oficiar e no periacuteodo a tarefa da seleccedilatildeo de datas

memoraacuteveis e organizaccedilatildeo de seus respectivos festejos foi levada a cabo por

associaccedilotildees civis e divulgada na imprensa Entre 1841 e 1889 pelo menos 887

sociedades ndash grande parte dedicadas agrave beneficiecircncia e agrave ajuda muacutetua ndash foram criadas

no Rio de Janeiro com a tarefa de auxiliar na vida ldquomaterial e moral de artesatildeos

operaacuterios ex-escravos industriais comerciantes engenheiros advogados e meacutedicos

entre outros setoresrdquo Desde pelo menos a deacutecada de 50 do seacuteculo XIX dezenas

desses grupos alguns muito efecircmeros outros nem tanto tinham como objetivo

comemorar o 7 de Setembro159

Em 1869 aparece a Sociedade Comemorativa da Independecircncia do Impeacuterio

cujos soacutecios elegeram presidente Francisco Joaquim Betencourt arquiteto ligado ao

Liceu de Artes e Ofiacutecios do Rio de Janeiro A eminecircncia parda da associaccedilatildeo era no

entanto um reles alferes reformado Eleito tesoureiro Ameacuterico Rodrigues Gamboa

destacou-se como organizador dos eventos comemorativos160 Sua tarefa natildeo seria

beneficiente mas igualmente moral e edutiva como aplaudiu o Diaacuterio de Notiacutecias os

festejos ciacutevicos ldquoacostuma-os futuros cidadatildeos agrave sociedade torna-os mais aptos para

a vida social e arregimentados como estatildeo grava-lhes a noccedilatildeo de que em todos os

acontecimentos em todos os atos da vida mister se faz a ordemrdquo161

O primeiro lugar escolhido pela Sociedade para festejar a autonomia nacional

foi a Praccedila da Constituiccedilatildeo que desde 1862 abrigava a estaacutetua equestre de D Pedro I 159 ldquovida material e moral de artesatildeos ()rdquo eacute citaccedilatildeo presente na primeira paacutegina do artigo PEREIRA

DE JESUS Ronaldo Cultura Associativa no seacuteculo XIX atualizaccedilatildeo do repertoacuterio criacutetico dos

registros de sociedades na cidade do Rio de Janeiro (1841-1889) In Anais do XXVII Simpoacutesio

Nacional de Histoacuteria Conhecimento histoacuterico e diaacutelogo social Natal RN 22 a 26 de Julho de 2013 O

autor apurou que ndash entre 1841 e 1889 ndash 46 sociedades comemorativas dentre as quais nos sobraram 10

estatutos foram criadas no Rio de Janeiro Destacam-se a Associaccedilatildeo Nacional Vinte e Quatro de

Setembro (1861-1865) a Sociedade Gloacuteria do Lavradio (1862-1881) a Sociedade Ipiranga (1862) a

Sociedade Patrioacutetica Brado do Ipiranga (1865) a Sociedade Primeiro de Dezembro (1862) a

Sociedade Sete de Setembro (1868) a Sociedade Vinte e Oito de Setembro (1880) e a Sociedade

Comemorativa da Independecircncia do Impeacuterio (1872-1881) Angela Alonso destaca o papel poliacutetico

desse surto associativo ldquodesde a deacutecada [de 1870] ateacute a queda do regime emergiram muacuteltiplas

manifestaccedilotildees puacuteblicas de protesto exacerbando a demanda liberal por reformas associaccedilotildees de

proprietaacuterios manifestaccedilotildees populares associaccedilotildees abolicionistas militares republicanas literaacuterias e

outras congecircneres O movimento intelectual foi uma dimensatildeo desta mobilizaccedilatildeo coletivardquo ALONSO

2002 p 98 160 Sobre a Sociedade Comemorativa do Impeacuterio ver KRAAY 2011 texto que tomo como guia 161 Diaacuterio de Notiacutecias 10 de julho de 1888 Apud KRAAY op cit p 29

65

um siacutembolo possiacutevel da Independecircncia e emblema maacuteximo da monarquia162 Liberais

exaltados como Teoacutefilo Otoni chegaram a apelidar a estaacutetua de ldquomentira de bronzerdquo

inaugurando uma frase que viraria palavra de ordem dos republicanos163 Certamente

preferiam ver Tiradentes ndash e natildeo o descendente direto de seus assassinos ndash elevado a

grande homem da naccedilatildeo164 Esse clima de hostilidade entre republicanos e

monarquistas era publicado diariamente na imprensa do periacuteodo de modo que os

relatos sobre as comemoraccedilotildees imperiais variam de veiacuteculo a veiacuteculo de um sempre

simpaacutetico Jornal do Commercio ao sarcasmo e agrave hostilidade de Mephistopheles e da

Revoluccedilatildeo Desde a inauguraccedilatildeo da estaacutetua ateacute os eventos anuais promovidos pela

Comemorativa no entanto centenas de almas uniam-se na praccedila a cantar o Te Deum

os organizadores nisso sem grande sucesso tentavam afastar os democircnios

republicanos que jaacute um ano depois em 1871 tornariam puacuteblicas as primeiras

denuacutencias contra supostos financiamentos governamentais agrave Sociedade165

ldquoA Sociedade Comemorativa era no maacuteximordquo escreveu Hendrik Kraay

ldquouma associaccedilatildeo do que pode ser considerada a classe meacutedia baixardquo Sabe-se que

Gamboa seu real organizador natildeo era exatamente uma figura destacada da sociedade

162 Tanto a estaacutetua de D Pedro I quanto o monumento a Joseacute Bonifaacutecio foram encomendados ao

escultor Louis Rochet Isso aconteceu natildeo apenas pelo artista francecircs ser o autor da estaacutetua equestre de

Carlos Magno localizada em frente a Notre Dame de Paris mas pelas impossibilidades tecnoloacutegicas de

se realizar trabalhos sofisticados em bronze no Brasil da eacutepoca Para Paulo Knauss ldquoEnquanto o

imperador foi representado a cavalo trazendo a Constituiccedilatildeo para simbolizar a afirmaccedilatildeo do Estado

nacional Joseacute Bonifaacutecio foi representado como intelectual cercado de alegoria das virtudes claacutessicas

simbolizando a razatildeo de Estado As duas imagens se completavam e a promoccedilatildeo da primeira imagem

se estendida assim pela segunda imagem constituindo um circuito narrativo que unia duas praccedilas

importantes na vida urbana constituindo um texto urbanordquo Ver KNAUSS Paulo A festa da imagem

a afirmaccedilatildeo da escultura puacuteblica no Brasil do seacuteculo XIX 19amp20 Rio de Janeiro v V n 4 outdez

2010 Disponiacutevel em lthttpwwwdezenovevintenetobraspknausshtmgt Ver tambeacutem RIBEIRO

Maria Eurydice de Barros Memoacuteria em bronze ndash estaacutetua equestre de D Pedro I In KNAUSS Paulo

(Coord) Cidade vaidosa imagens urbanas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Sette Letras 1999 E

ainda SANTOS Gisele Cunha dos amp MONTEIRO Fernanda Fonseca ldquoCelebrando a fundaccedilatildeo do

Brasil a inauguraccedilatildeo da Estaacutetua Equestre de D Pedro Irdquo Revista Eletrocircnica de Histoacuteria do Brasil Juiz

de Fora UFJF v 4 nordm 1 Juiz de Fora UFJF janjun 2000 163 Ver CARVALHO Joseacute Murilo de A formaccedilatildeo das almas o imaginaacuterio da Repuacuteblica no Brasil Satildeo

Paulo Companhia das Letras 1993 p 60 E tambeacutem FERREIRA 1989 p 91 164 Segundo Joseacute Murilo de Carvalho os republicanos chegaram mesmo a preparar um poema

impresso em forma de panfleto a ser distribuiacutedo no dia da inauguraccedilatildeo da estaacutetua ldquoNos dias de

cobardia festeja-se a tirania Fazem-se estaacutetuas aos reis Hoje o Brasil se ajoelha E se ajoelha

contrito Ante a massa de granito do primeiro Imperadorrdquo () ldquoFoi ele o maacutertir primeiro Que pela

paacutetria morreu Do sangue de Tiradentes Brotou-nos a salvaccedilatildeordquo As coacutepias do poema seriam

apreendidas pela poliacutecia CARVALHO 1993 p 61 165 Ver KRAAY op cit p Diario de Noticias 5 de set 1872 Jornal do Commercio 6 set 1873

FERREIRA DA ROSA Francisco Memorial de [sic] Rio de Janeiro personagens ndash fatos ndash narrativa

de acontecimentos ndash vida e progresso da cidade em meio seacuteculo (1878-1928) Arquivo do Distrito

Federal v2 p 88 (1951) FERREIRA DA ROSA Francisco Chronica antiga In Prosa sadia

(pequeno extrato de uma antiga coleccedilatildeo de escritos) 9 v Rio de Janeiro Graacutefica sauer 1936-1946

v6 p 24-25 ldquo7 de Setembrordquo O Mequetrefe set 1892 ldquoSC da Independecircncia do Impeacuteriordquo Jornal da

Tarde 9 set 1871 ldquoMemorandum 7 de setembrordquo Corsario 3 set 1882

66

fluminense e que o Baratildeo de Lorena soacutecio mais proeminente talvez apenas ldquojulgasse

uacutetil participar de uma sociedade que festejava agrave sua portardquo 166 Preconceito contra um

certo ldquomonarquismo popularrdquo influenciando ou natildeo Gamboa e outros trecircs direitores

tiveram foram cassados em 1876 A nova diretoria sob Isidro Borges Monteiro chefe

da poliacutecia da Corte na deacutecada de 50 tratou de organizar uma comemoraccedilatildeo nos

mesmos moldes das anteriores Para sua frustraccedilatildeo todos os esforccedilos da nova direccedilatildeo

natildeo parecem ter feito justiccedila ao carisma do velho alferes A Revista Illustrada sempre

irocircnica escreveu que naquele ano foi de suas camas que a ldquobrava genterdquo ouviu os

ldquoestourados do Morro de Santo Antocircniordquo167 No ano seguinte a Comemorativa

naufragou e Gamboa sempre entusiasta fundou a Sociedade Independecircncia

organizando eventos no largo de Satildeo Francisco desta vez ao redor do monumento a

Joseacute Bonifaacutecio

O Jornal do Commercio em geral simpaacutetico agraves comemoraccedilotildees do Impeacuterio fez

elogios agrave nova associaccedilatildeo escrevendo que a velha Comemorativa ldquonatildeo tem vivido

senatildeo girandolando e erguendo coretosrdquo168 A referecircncia criacutetica agrave arquitetura efecircmera

comemorativa eacute recorrente na imprensa do periacuteodo considerada de gosto duvidoso

por jornalistas e leitores A Gazeta de Notiacutecias chegou a escrever ndash diante da cena

ldquocada vez mais grotescardquo na qual veteranos da Guerra do Paraguai guardavam coretos

sob a proteccedilatildeo de canhotildees de papel ndash que os fortes e as peccedilas de artilharia estariam a

sitiar a estaacutetua equestre169 Algo como pressionar D Pedro ainda mais uma vez para

que declare o ldquoFicordquo Ironias republicanas agrave parte os perioacutedicos satildeo unacircnimes em

descrever ilustrar e narrar a intensa movimentaccedilatildeo do ldquopovordquo diante das bandas de

muacutesica fogos e discursos nem que estivessem laacute como o fizera um jovem Luiz

Edmundo tatildeo somente para ldquogozar as luminaacuteriasrdquo instaladas pelos celebrantes170

Em 1886 com a morte do alferes Gamboa um grupo ligado ao governo

assume o controle das comemoraccedilotildees promovendo um programa muito parecido com

o dos anos anteriores No entanto o perfil social dos participantes parece ter mudado

166 KRAAY op cit respectivamente p 20 e p 19 167 Revista Illustrada 8 set 1877 Apud KRAAY op cit 21 168 Jornal do Commercio 17 set 1876 169 Segundo um recorte da eacutepoca acerca da imprensa oitocentista brasileira ldquoa Gazeta de Notiacutecias

fundada pelo dr Ferreira de Araujo [em 1875] que ainda a dirige hoje e outros inaugurou no Brasil o

jornal barato popular livre de compromisos partidaacuterios ou similhantes e tambeacutem o jornal facil de

fazer sem systema na distribuiccedilatildeo das mateacuterias aacute portuguezardquo Ver MATTOS Joseacute Verissimo de A

Instrucccedilatildeo e a Imprensa In ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO

DO BRASIL Livro do Centenaacuterio (1500-1900) Imprensa Nacional Rio de Janeiro 1900 Vol 1 170 EDMUNDO Luiz De um livro de memoacuterias 5v Rio de Janeiro sn 1958 v1 p 66 Apud

KRAAY op cit p 25

67

ldquoo tradicional anjinho vestido de verde e amarelordquo disse o Diaacuterio de Notiacutecias em

1887 ldquocedeu o passo aos elegantes representantes do grand-monde fluminenserdquo171

Com uma nova lideranccedila que incluia senadores ex-ministros e outras celebridades

carimbadas ano-a-ano no Almanaque Laemmert a Comemorativa sob a aprovaccedilatildeo da

imprensa investiu no caraacuteter pedagoacutegico do 7 de Setembro expresso no ldquodesejo das

classes dirigentes de promoverem os meios de despertar no povo o sentimento da

nacionalidade e de em seus coraccedilotildees fazer revigorar ndash se natildeo nascer ndash o amor agrave

paacutetriardquo172 Menos festa e mais histoacuterias invertendo a loacutegica de Herculano numa clara

tentativa de traduzir em rito positivo aquilo que muitos consideravam um mero

corrobbori vulgar ou espeacutecie de carnaval fora de eacutepoca

Nas comemoraccedilotildees imperiais tardias esse ldquoamor agrave paacutetriardquo seria expresso jaacute

por uma ldquomistura de heroacuteis republicanos e tradicionais figuras monarquistasrdquo 173 Em

1887 alguns coleacutegios particulares do Rio de Janeiro diante da arquitetada hesitaccedilatildeo

das escolas municipais fizeram seus alunos realizarem procissotildees ciacutevicas jaacute sob as

hostes de Tiradentes e Joseacute Bonifaacutecio No ano seguinte a Cacircmara Municipal natildeo

vetou participaccedilotildees e grande nuacutemero de escolas puacuteblicas uniram-se ao desfile Em

1889 no entanto foi proclamada a Repuacuteblica e com ela assistimos ao fim das

sociedades comemorativas da independecircncia do Impeacuterio A partir de agora o iacutedolo

das origens iria marchar sobre outra data o 15 de novembro oficiado ao som dos

tambores do Exeacutercito Nacional

Um par de anos apoacutes a proclamaccedilatildeo e a Repuacuteblica encontra seu primeiro

centenaacuterio o martiacuterio ciacutevico de Tiradentes contava aniversaacuterio Novamente a Praccedila

da Constituiccedilatildeo esse inegaacutevel lugar de memoacuteria do Brasil oitocentista ganhou

feiccedilotildees de campo de batalha Seu nome ainda em 1890 seria trocado para Praccedila

Tiradentes Mas setores republicanos ndash em especial o clube cuja alcunha comemorava

o heroacutei inconfidente ndash acreditavam que era o momento de fazer as reivindicaccedilotildees de

sua memoacuteria avanccedilar ainda mais174 Em 1893 militantes do Clube Tiradentes tentam

171 ldquoNotas do diardquo Diaacuterio de Noticias 6 set 1887 Apud KRAAY op cit p 28 O Diaacuterio de Noticias

fundado em 1885 era um ldquoum importante veiacuteculo abolicionistardquo dirigido por Ruy Barbosa Para um

recorte da eacutepoca a cerca da imprensa oitocentista brasileira Ver MATTOS Joseacute Verissimo de op cit 172 ldquoChronica da semanardquo Gazeta de Notiacutecias 9 set 1888 173 KRAAY op cit 29 Trata-se de um momento no qual a pedagogia moral dos grandes homens

comeccedila a encontrar seus limites frente ao tropismo nacional Armelle Enders defende a tese de que no

Brasil do segundo reinado ldquoa eacutetica monaacuterquica e tradicional ainda eacute mais forte que a nova pedagogia

dos grandes homensrdquo Ver ENDERS 2000 p 56 174 Os republicanos tambeacutem se organizavam na trilha dos surtos associativos do Segundo Impeacuterio

Segundo Armelle Enders ldquoem fins da deacutecada de 1860 a facccedilatildeo liberal que desejava reformas radicais

particularmente no que dizia respeito agrave autonomia das proviacutencias veio engrossar a corrente republicana

68

encobrir com tapumes a estaacutetua equestre ndash a ldquomentira de bronzerdquo ndash para as

comemoraccedilotildees do 21 de Abril A manifestaccedilatildeo chegou a contar com o apoio do

prefeito Barata Ribeiro que pouco depois recuou Frente agraves numerosas criacuteticas

recebidas chega a declarar que ldquoum povo sem tradiccedilatildeo eacute um povo sem histoacuteria e

portanto sem valor moralrdquo 175 Mesmo os republicanos tendiam a entender que os

heroacuteis nacionais deveriam promover algum compromisso buscar o consenso evitar

causar aquilo que pouco mais tarde seria chamado do outro lado do Atlacircntico de

anomia social E que personagem qual heroacutei republicano seria mais adequado para

adequar-se ao tropismo nacional Para Joseacute Murilo de Caravalho

Na figura de Tiradentes todos podiam identificar-se ele

operava a unidade miacutestica dos cidadatildeos o sentimento de

participaccedilatildeo de uniatildeo em torno de um ideal fosse ele a

liberdade a independecircncia ou a repuacuteblica Era o totem

ciacutevico Natildeo antagonizava ningueacutem natildeo dividia as

pessoas em classes sociais natildeo dividia o paiacutes natildeo

separava o presente do passado nem do futuro176

Antes de chegar a esse ponto em sua hagiografia ciacutevica ndash para que seu mito

possuiacutesse a liberdade ainda que tardia de adentrar todos os lares da naccedilatildeo ndash ele

deveria sofrer com a concorrecircncia de outros candidatos a representante de uma

federaccedilatildeo da memoacuteria No norte Frei Caneta ao sul os heroacuteis da Farroupilha

Nenhum deles no entanto seria agraciado com investimentos simboacutelicos

comparaacuteveis ao do heroacutei inconfidente jaacute exercidos desde o iniacutecio do Segundo

Impeacuterio O futuro liacuteder do Partido Republicano do Rio dedicou ndash ainda em 1866

quando presidente da proviacutencia das Minas Gerais ndash um monumento em gloacuteria a

Tiradentes A primeira celebraccedilatildeo do 21 de Abril data de 1881 mesmo ano em que

outro monumento eacute proposto no Rio Grande do Sul177 Mas a benccedilatildeo da

panteonizaccedilatildeo ciacutevica de Tiradentes foi obra da fortuna Em 1873 Joaquim Norberto

de Souza e Silva publica sua Histoacuteria da Conjuraccedilatildeo Mineira Treze anos antes ele

havia obtido acesso agrave ldquopreciosiacutessima coleccedilatildeo de documentos originais das duas

que se organizou como partido em 1870 dando origem em meio a certa desordem a todo tipo de

clubesrdquo ENDERS 2014 p 225 175 ldquoO prefeito do Distrito Federal Barata Ribeiro poacutes um ponto final na discussatildeo argumentando em

favor da manutenccedilatildeo do Imperador que lsquoum povo sem tradiccedilatildeo eacute um povo sem histoacuteria e portanto

sem valor moralrsquo DPedro I ficou onde estava mas obrigado a dividir o espaccedilo com seu rival na praccedila

que recebeu o nome de Tiradentesrdquo NETO Edgard Leite Ferreira op cit p 91 176 CARVALHO 1993 p 68 Grifos meus 177 Idem p 57

69

devassas que se procederam nas capitais das capitanias de Minas Gerais e Rio de

Janeirordquo 178 Souza e Silva considerava Tiradentes uma figura menor no cenaacuterio da

conjuraccedilatildeo Simpaacutetico agrave monarquia e ligado ao IHGB acreditava que seu trabalho

deveria arrefecer os acircnimos em torno do martiacuterio lembrando inclusive a

recomendaccedilatildeo do Imperador ao Instituto ldquoEacute de mister que natildeo soacute reunais os trabalhos

das geraccedilotildees passadas () como tambeacutem () torneis aquela a que pertenccedilo digna dos

foros da posteridaderdquo179

Ao utilizar como fontes natildeo somente as devassas mas tambeacutem um conjunto

de Memoacuterias anocircnimas contendo o depoimento de Raimundo de Penaforte confessor

dos inconfidentes o historiador enfatizou a mudanccedila de conduta de Tiradentes

Viacutetima de muitas privaccedilotildees sucessivos interrogatoacuterios recluso e com poucas palavras

carinhosas a ouvir aleacutem daquelas que saiam dos laacutebios de frades franciscanos

Tiradentes teria sido domado Beijou as matildeos e os peacutes de seu carrasco e andava para a

morte com um crucifixo entre os punhos grilhados a enunciar monoacutelogos de

inspiraccedilatildeo cristatilde 180 Tais evidecircncias foram divulgadas pelo soacutecio honoraacuterio do IHGB

como uma contribuiccedilatildeo agrave defesa da memoacuteria geracional dos Braganccedila ldquoFui por muito

tempo entusiasta do Tiradentesrdquo escreveu ldquoagrave medida poreacutem que me instruiacutea na

histoacuteria da malograda conjuraccedilatildeordquo encontrou um homem que ldquoem 21 de abril de

1792 jaacute natildeo era o mesmo ardente apoacutestolo da emancipaccedilatildeo poliacutetica () Prenderam

um patriota executaram um fadrerdquo 181

178 SOUSA E SILVA Joaquim Norberto de Discurso ao Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro 23

de Novembro de 1860 In Histoacuteria da Conjuraccedilatildeo Mineira Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Domiacutenio

publico Original de 1873 179 Idem Ibidem A referecircncia original eacute IHGB Discurso do Imperador D Pedro II In Revista do

IHGB Rio de Janeiro 12 552 1849 180 ldquoLadeado dos oficiais de justiccedila entrou na cadeia o algoz negro Era o famoso Capitania tatildeo

ceacutelebre pelos seus crimes Vinha vestir-lhe a alva e atar-lhe o baraccedilo ao colo Pedindo-lhe de costume o

perdatildeo da morte pois que a justiccedila e natildeo a sua vontade lhe moviam os braccedilos desceu o Tiradentes de

seu pedestal de gloacuteria para humilhar-se de mais e lhe dizer ldquoOh meu amigo deixe-me beijar-lhe as

matildeos e os peacutesrdquo O que fez com grande admiraccedilatildeo do proacuteprio algoz Ao despir-se para vestir a alva

tirou tambeacutem a camisa e ungiu seus laacutebios com estas belas palavras ldquoO meu Redentor morreu por mim

tambeacutem assimrdquo SOUZA E SILVA op cit p 140 ldquoOs soliloacutequios que fazia com o crucifixo mdash quando

estas palavras se acham agrave paacuteg 414 da minha obra entre aspas e aiacute se lecirc a nota 2ordf na qual digo

pertencerem estas expressotildees a Frei Raimundo de Penaforte que assim as escreveu nos Uacuteltimos

momentos dos inconfidentes de 1789rdquo SOUZA E SILVA Joaquim Norberto de O Tiradentes perante

os historiadores oculares de seu tempo Resposta a um injusto reparo dos criacuteticos da Histoacuteria da

Conjuraccedilatildeo Mineira Memoacuteria lida na sessatildeo de 9 de dezembro de 1881 pelo soacutecio honoraacuterio Joaquim

Norberto de Sousa Silva 2ordm vice-presidente In SOUZA E SILVA op cit p 147 181 ldquoFui por muito tempo entusiasta do Tiradentes Os maacutertires atraem as simpatias como os algozes se

tornam dignos das maldiccedilotildees populares Agrave medida poreacutem que me instruiacutea na histoacuteria da malograda

conjuraccedilatildeo senti modificar-se e arrefecer-se o meu entusiasmo e achei-me ante o homem que em 21

de abril de 1792 jaacute natildeo era o mesmo ardente apoacutestolo da emancipaccedilatildeo poliacutetica Os anos que passou na

masmorra segregado do mundo mdash o coloacutequio com os frades franciscanos que lhe transmudaram as

70

Os republicanos de iniacutecio protestaram Mas se o objetivo da Histoacuteria da

Conjuraccedilatildeo Mineira era desmontar o mito de Tiradentes ndash apresentando-o como um

fraco pouco convicto da causa que o levou agrave morte preservando de modo indireto a

imagem da famiacutelia real ndash seu resultado seria o contraacuterio Tiradentes se fortaleceu Sua

imagem sacra favorecida pela ausecircncia de qualquer iconografia original veio unir-se

a um processo jaacute em andamento Ainda em 1866 Castro Alves escrevia o ldquodrama

histoacuterico brazileirordquo Gonzaga ou a Revoluccedilatildeo de Minas encenado em Satildeo Paulo

Salvador e Rio de Janeiro Como o tiacutetulo indica a peccedila centra-se no heroiacutesmo de

Gonzaga saudado como ldquomaior que Napoleatildeordquo Mas ela termina com um poema que

canta ldquoei-lo o gigante da praccedila o Christo da multidatildeo Ersquo Tiradentes quem passardquo

182 A seguir em 1882 aparece o panfleto mineiro nomeado ldquoAgrave forca o Cristo da

multidatildeordquo que chega a atribuir ao maacutertir republicano ldquomaior fortaleza moral do que a

de Cristordquo 183 Na ausecircncia de imagens os artistas da repuacuteblica trataram de pintar com

realismo o sacrifiacutecio ciacutevico de Tiradentes elevando-o por fim ao estatuto de grande

homem da histoacuteria nacional Verdadeiro representante da federaccedilatildeo da memoacuteria

brasileira ndash talvez ao gosto de Victor Cousin ndash ele seria aos poucos saudado como

ldquonossordquo ateacute mesmo por monarquistas como o Visconde de Taunay184

Enquanto o culto de Tiradentes era exportado de seu lugar original trabalhado

e oficiado como pertencente a ldquotodos noacutesrdquo a memoacuteria de Joseacute Bonifaacutecio seguia a

mesma direccedilatildeo embora trilhando o caminho inverso O velho conselheiro jaacute vinha

sendo reabilitado nos ciacuterculos monarquistas pelo menos desde o ano de sua morte em

1838 quando foi velado por Emiacutelio Joaquim da Souza Maia como uma ldquovictima da

intrigardquo 185 Comparado a Aristiacutedes e Seneca ele teria caiacutedo em desgraccedila seguindo as

ideacuteias mdash os conselhos que lhe deram os seus juiacutezes com fementidas promessas mdash tudo isso

transformou o conjurado em um homem eivado de misticismo Prenderam um patriota executaram um

fraderdquo SOUZA E SILVA Joaquim Norberto de O Tiradentes perante os historiadores oculares de

seu tempo op cit p 146 182 CASTRO ALVES Gonzaga ou a revoluccedilatildeo de minas Drama histoacuterico brazileiro Rio de Janeiro

Livraria Coutinho 1975 p 89 Os versos ldquoMaior que Napoleatildeo Uma voz sombria murmura Brazil

Maria E Gonzaga Oh Maldiccedilatildeordquo encontram-se na paacutegina seguinte 183 CARVALHO 1993 p 64 184 ldquoEscrevendo apoacutes a proclamaccedilatildeo o visconde de Taunay reclamava contra o monopoacutelio que os

republicanos especialmente os jacobinos queriam manter sobre a memoacuteria do heroacutei Ao libertar o paiacutes

o Impeacuterio alegava realizou o sonho de Tiradentes Por essa razatildeo ldquotambeacutem ele nos pertencerdquo

CARVALHO 1993 p 71 O O texto de Taunay eacute citado igualmente por Luacutecia Lippi Oliveira para

quem ldquoTaunay coloca Tiradentes no panteatildeo dos monarquistasrdquo Ver OLIVEIRA Luacutecia Lippi 1989 p

12 Referecircncia original Visconde de Taunay ldquoO Tiradentes e noacutes monarquistasrdquo Em Impeacuterio e

Repuacuteblica pp 5-15 185 ldquo() este homem que merecia as homenagens dos compatriotas e estima do seu priacutencipe ia em

pouco tempo ser victima da intrigardquo SILVA MAIA Revista do IHGB VIII 1846 p 136

71

palavras de Ciacutecero por ter prestado serviccedilos a seu paiacutes186 Da miseacuteria do exiacutelio a

memoacuteria de Bonifaacutecio elevaria sua personagem agrave dignidade do grande homem

modelo para a accedilatildeo e exemplo a ser imitado187 Cinco anos apoacutes a edificaccedilatildeo de seu

monumento no Largo Satildeo Francisco o IHGB voltava a comemorar Andrada e Silva

desta vez jaacute como ldquolidador na grandiosa empreza da emancipaccedilatildeo nacionalrdquo Era

ainda o ldquoministro ilustrado e previdente conselheiro leal e esforccediladordquo segundo os

mestres do Instituto cuja ldquogloacuteria a justa celebridade de seus feitos constituem um

patrimocircnio de inestimaacutevel valor para a naccedilatildeo que o preza e honrardquo 188

ldquoNatildeo haacute um ressurgimento dos grandes homens como patrimocircniordquo

perguntaria Franccedilois Hartog referindo-se aos dias atuais Ora no IHGB do seacuteculo

XIX Bonifaacutecio jaacute o era preceptor dos monarcas o velho conselheiro seria saudado

pela transcendecircncia geracional dos valores morais que representava189 ldquoPatrimocircnio

memoacuteria comemoraccedilatildeo os trecircs termos natildeo se intimidam a alternarrdquo Mas para que

possuam um foco de organizaccedilatildeo precisam fazer referecircncia a um quarto a

identidade190 Identidade que em 1900 isolada entre circuitos aristocraacuteticos natildeo seria

capaz de oficiar o grande homem frente aos quadros sociais jaacute organizados em torno

do tropismo nacional Para isso era preciso ir ao puacuteblico

186 ldquoMuita razatildeo pois tinha Cicero quando dizia ndash misero interdum civis optime de republica meritos

(desgraccedilados aquelles cidadatildeos que tiverem feito mais serviccedilos ao seu paiz)rdquo Eacute sem surpresa que

Silva Maia traduz republica por ldquoseu paizrdquo SILVA MAIA op cit p 136 187 ldquoA sabedoria a humanidade a fidelidade a justiccedila a modestia a resignaccedilatildeo em fim quasi todas as

virtudes fizeram de sua existecircncia uma pratica constante de acccedilotildees nobres e sublimes e do dia de sua

morte como diz eloquentemente Bossuet fallando de um grande homem o melhor o mais glorioso e o

mais feliz de sua vida Aqui tendes pois illustre auditoacuterio um modelo para grandes acccedilotildees aqui vos

offereccedilo este bello exemplo dimitaccedilatildeo elle merece certamente ser seguido tanto pelo que tem de bom

como porque o individuo que o apresenta respirou no berccedilo o mesmo ar que respiramosrdquo SILVA

MAIA op cit p 139 188 Parecer sobre o Elogio Histoacuterico de Joseacute Bonifaacutecio de Latino Coelho por Olegaacuterio Herculano de

Aquino e Castro e Joseacute Tito Nabuco de Arauacutejo Revista do IHGB t40 v2 1877 p 519 189 ldquoE voacutes Augusto Monarcha que honraes com vossa imperial presenccedila esta illustre sociedade voacutes

que fostes por vosso augusto pai confiado ao grande homem de quem lamentamos a perda quando a

idade aumentar os vosso jaacute felizes conhecimentos tereis um prazer bem vivo em vos lembrardes que

foi Joseacute Bonifacio quem primeiro dirigeu vossos nascentes passos quem delineou vossos estudos e

quem traccedilou a linha de vossa importante instrucccedilatildeo que promettem fazer-vos um dia um dos maiores

principes do vosso seculo entatildeo o mundo mostraraacute com assombro aacute mais remota posteridade o grande

Imperador do Brasil e diraacute - eis o pupillo de Joseacute Bonifacio de Andrada e Silvardquo SILVA MAIA op

cit p 139-140 190 ldquoNy agrave-t-il enfin une reviviscence des grands hommes comme patrimoine () Patrimoine meacutemoire

commeacutemoraison les trois termes nont cesseacute de tournoyer ils font systegraveme et renvoient vers un

quatriegraveme qui en figure comme le foyer organisateur identiteacuterdquo HARTOG 2005 p 187

72

2

Celebrar os mortos e editar a naccedilatildeo

Poliacuteticas de memoacuteria e esquecimento

21 O espelho perfeito de Bonifaacutecio a Bonifaacutecio

Satildeo Paulo 8 de dezembro de 1886 Reunidos no teatro Satildeo Joseacute o senador

Dantas apresenta o orador Ruy Barbosa em uma cerimocircnia ciacutevica que prestava

homenagem a certo Andrada e Silva Seu objetivo Prestar tributo ao ldquoGrande Mortordquo

comprometendo-se ndash diriam eles ldquotacitamenterdquo ndash com o lema da reforma servil

ldquoprimeiro a aboliccedilatildeo nada sem a aboliccedilatildeo tudo pela aboliccedilatildeordquo191 Morto haacute quase

meio seacuteculo o Patriarca de fato havia condenado a escravidatildeo em seu famoso

discurso agrave Assembleia Constituinte Dissolveu-se a Assembleia em 12 de novembro

de 1823 e condenou-se Bonifaacutecio relegando-o ao exiacutelio e descartando seu projeto de

lei emancipatoacuteria192 Mas natildeo era essa histoacuteria senatildeo indiretamente que se queria

comemorar naquela noite Era a histoacuteria de outro Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva

neto materno do Patriarca morto em 26 de outubro daquele ano Ano em que

protagonizou discussotildees acaloradas no senado do Impeacuterio contra Ribeiro da Luz em

nome da bandeira abolicionista Duas imagens sucessivas como no espelho

supostamente fiel de Halbwachs no qual um grupo se reconhece e faz reconhecer-se

Natildeo existia apenas um Bonifaacutecio e como toda vida o proacuteprio neto era

possuidor de um sem nuacutemero de perfis Detalhe que natildeo passava despercebido pela

191 ldquoFoi para este fim que a cidade de Satildeo Paulo alevantou-se em noite de 8 de Dezembro de 1886 e foi

ao theatro Satildeo Joseacute sancionar com a sua adesatildeo o preito que se tributava ao ldquoGrande Mortordquo ndash

subscrevendo tacitamente o lemma do eminente e ilustrado brasileiro o conselheiro Ruy Barbosa

orador oficial de tatildeo patrioacutetica solenidade ldquoPrimeiro a aboliccedilatildeo nada sem aboliccedilatildeo tudo pela

aboliccedilatildeordquo Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva Realisada em

noite de 8 de Dezembro de 1886 no Theatro S Joseacute Satildeo Paulo Publicaccedilatildeo em favor da libertaccedilatildeo dos

captivos Typographia King 1887 192 Os argumentos do velho Bonifaacutecio partiam de princiacutepios morais e cristatildeo e encontravam verbo nos

corolaacuterios do direito natural ldquoHa de espantarrdquo escreveu ldquoque hum trafico tatildeo contra aacutes Leis da moral

humana e aacutes santas maximas do Evangelho e ateacute contra as leis de huma satildea poliacutetica dure ha tantos

seculos entre os homens que se dizem civilizados e christatildeosrdquo ANDRADA E SILVA Joseacute Bonifaacutecio

de Representaccedilatildeo aacute Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil sobre a

Escravatura Paris Firmin Didot 1825 p 20 Seu projeto de lei previa o fim da escravidatildeo no Impeacuterio

do Brasil em apenas 4 ou 5 anos

73

sinceridade intelectual de Souza Dantas ldquoOs oradores que tiverem de mostrar-vos em

todas as faces o quadro da vida e do gecircniordquo disse o homem puacuteblico ldquoestudaratildeo nelle

o prosador o poeta o polemista o jornalista o orador o jurisconsulto o professor e

vos diratildeo a que alturas elle subiu em todas essas revelaccedilotildees muacuteltiplas de sua vasta e

esplendida intelligecircnciardquo 193 Ora selecionemos pois o Grande Morto a ser

comemorado naquela noite de 1886 era neto mas tambeacutem avocirc embora muito mais

senador do que conselheiro muito menos pedagogo dos monarcas do que exemplo

moral de toda a naccedilatildeo Afinal dentre esse inuacutemero quadro de atividades e virtudes

ciacutevicas solicitou o senador Dantas aos seus leitores

Deixae pois que de toda a vida do pranteado cidadatildeo eu

destaque antes voacutes em breve mas raacutepido relevo apenas

a ultima phase de sua carreira aquella em que a morte

de suacutebito o colheo como nrsquouma apoteose quando no

pleno apogecirco da gloria e do talento elle voltara-se todo aacute

maior das causas aacute que seu espiacuterito dedicou-se aquella

que seu coraccedilatildeo mais profundamente amou a liberdade

dos escravos194

Retirar detalhes da biografia de um homem ilustre investir na lembranccedila de

certo feitos e seguindo uma loacutegica jaacute centenaacuteria ldquoarrancaacute-los dali e pocirc-los na vitrinerdquo

195 O procedimento que investe na densidade memorial de tal ou qual episoacutedio

precisa ndash pela boa feacute da ciecircncia e pela sensibilidade agraves identidades contituidas ndash

argumentar com as evidecircncias lembradas por outras vontades poliacuteticas e a partir dali

minimizaacute-las senatildeo conduzindo-as ao esquecimento Sim ldquoJoseacute Bonifaacutecio foi

monarchistardquo admite Barbosa em seu discurso embora natildeo soubesse ldquodizer se ateacute os

seus uacuteltimos dias continuou a encarar o throno como em 1861 quando via nas

proviacutencias do Impeacuterio uma famiacutelia de lsquoirmatildes igualmente desveleadas em amor

estremecido aacute monarchiarsquordquo196 Mais do que lembraacute-lo como parceiro dos imperadores

cabe dizer que ldquoelle natildeo alimentava prevenccedilotildees fundamentaes contra a republicardquo197

Agora em finais do seacuteculo XIX ldquotodas as proviacutencias tecircm trazido a esta memoria sua

oblaccedilatildeo e todas a consagram a Joseacute Bonifaacutecio o abolicionistardquo 198 Barbosa ndash

193 Idem p 9 194 Idem ibidem Grifos meus 195 MONTAIGNE op cit Livro I Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 101 196 BARBOSA Ruy Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva

1886 p 26 Citando BONIFAacuteCIO Joseacute Discurso de 28 de junho de 1861 197 BARBOSA Ruy 1887 p 27 198 BARBOSA Ruy 1887 p 67

74

oficiante ou ldquoorador oficial de tatildeo patrioacutetica solemnidaderdquo ndash natildeo mediu esforccedilos

retoacutericos para associar o grande homem a certo projeto liberal ldquosem avenccedilas com o

captiveirordquo 199 Ou natildeo era a aboliccedilatildeo nas palavras do uacuteltimo Bonifaacutecio a ldquomelhor de

todas as causasrdquo 200 Nisso ldquoa naccedilatildeo toda o applauderdquo ndash ou pelo menos assim

aclamava o orador oficial em nome da naccedilatildeo Pois agravequeles que celebravam Andrada e

Silva por outros motivos sobrava-lhes a provocaccedilatildeo dizendo que ldquomorresse elle trez

anos antes e toda a sua existecircncia anterior natildeo se compararia com alguns momentos

da phase que a cerrourdquo 201 Ruy Barbosa queria assim neste distinto malabarismo

memorial conduzido por um claro uso poliacutetico do passado chegar agrave conclusatildeo de que

ldquose o partido liberal () refusa a missatildeo de partido abolicionista natildeo pode reclamar a

heranccedila de Joseacute Bonifaacuteciordquo 202 E de nada vale murmurar nas sombras do

esquecimento que Andrada e Silva ldquopouco fezrdquo como se o caraacuteter dos grandes

homens fosse quantificaacutevel

ldquoA medida do valor dos homens () natildeo eacute arithmetica

senatildeo moral estaacute na personalidade a qual se aprecia

menos pelas acccedilotildees do que pela influencia () Essa

forccedila irradiadora para que natildeo haacute dynamometro

possiacutevel que poacutede mais do que as obras a eloquecircncia a

majestade e o gecircnio eacute o caraacuteter isso a que algueacutem

chamou de a vontade do homem purordquo 203 199 BARBOSA Ruy 1887 p 61 200 BONIFAacuteCIO Joseacute Sessatildeo de 4 de setembro de 1885 Anaes do Senado 1886 vol IV p 179

APUD BARBOSA 1887 p 61 Ver tambeacutem FARIA Julio Cezar de Joseacute Bonifaacutecio o moccedilo

Companhia editora nacional Satildeo Paulo 1944 p 338 201 BARBOSA Ruy 1887 p 61 202 BARBOSA Ruy 1887 p 62 203 BARBOSA Ruy 1887 p 70 A leitura de Ruy Barbosa sobre o problema dos grandes homens natildeo

parece sair de Cousin senatildeo talvez apenas indiretamente de Carlyle atraveacutes da obra do ensaiacutesta

americano RW Emerson Muito popular no final do seacuteculo XIX Emerson chegou a realizar uma

releitura das tipologias do Grande Homem de Carlyle sob o tiacutetulo de Representative men No texto

citado por Barbosa ldquoA vontade dos puros emana deles para os outros entes como a agua deriva de um

vaso para outro inferior O caraacuteter eacute a ordem moral entrevista atraveacutes de uma natureza individualrdquo

EMERSON Waldo Ralph Character In Essays Second Series The Complete WorksVol III

Boston and New York Houghton Mifflin and Company 1904 p 95 No original ldquoThe will of the pure

runs down from them into other natures as water runs down from a higher into a lower vessel This

natural force is no more to be withstood than any other natural force We can drive a stone upward for

a moment into the air but it is yet true that all stones will forever fall and whatever instances can be

quoted of unpunished theft or of a lie which somebody credited justice must prevail and it is the

privilege of truth to make itself believed Character is this moral order seen through the medium of an

individual naturerdquo O transcendentalismo de Emerson adepto de uma loacutegica neo-platonica (the tought

is always prior to the fact) inspirada pela crenccedila na metempsicose (the transmigration of souls is no

fable) fazia-o sustentar a existecircncia de uma ldquomente comum a todos os homens individualmenterdquo (there

is one mind common to all individual men) de modo que ldquose toda histoacuteria estaacute em um soacute homem ela

pode ser explicada pela experiecircncia individualrdquo (if the whole of history is in one man it is all to be

explained from individual experience) Em seu ensaio sobre a Histoacuteria (1841) Emerson propotildee uma

praacutetica de leitura que permita ao indiviacuteduo a possibilidade de ldquoviver toda a histoacuteria em sua proacutepria

75

O trabalho de enquadramento de uma bios feito por uma vontade poliacutetica da

memoacuteria ndash ou seja uma comemoraccedilatildeo ndash precisaria estar atenta agraves prerrogativas da

consciecircncia moral agora traduzidas pela imagem ldquopurardquo diriacuteamos noacutes editada de

um grande homem da histoacuteria nacional Em Emerson ndash o ldquoalgueacutemrdquo a quem se refere

Barbosa na passagem supracitada ndash o caraacuteter do great men manifesta-se como

sineacutedoque da consciecircncia social204 Sua existecircncia individual no entanto uacutenica

continua representativa como fora para Cousin ldquoprimeiro de coisas depois de ideiasrdquo

205 A forccedila do seu caraacuteter puro o qual habita uma ldquoesfera superior do pensamentordquo

introduz com ele ldquoverdades morais na mente geralrdquo 206 ldquoNossa religiatildeo eacute o amor e o

pessoa () ele deve transferir seu ponto de vista daquele que a histoacuteria eacute comumente lida de Roma a

Atenas e Londres ateacute ele mesmo sem negar sua convicccedilatildeo de que ele eacute o tribunal e se a Inglaterra ou o

Egito tiver algo a dizer ele analisaraacute o casordquo (he sould see that he can live all history in his own person

() he must transfer the point of view from which history is commonly read from Rome and Athens

and London to himself and not deny his conviction that he is the court and if England or Egypt have

any thing to say to him he will try the caserdquo Emerson que se dizia naturalista pensava que o

conhecimento do passado ou a possibilidade de revivecirc-lo aproximava-nos da natureza humana

Buscava natildeo a ldquotiraniardquo dos fatos (facts tyrannize over them and make the men of routine the men of

sense) mas a ldquorazatildeo necessaacuteriardquo (necessary reason) de cada evento qual poderia desvelar a identidade

da histoacuteria ldquoseu pensamento vive ao longo de toda linha de templos esfinges e catacumbas passa

satisfeito por todos eles para viver de novo na mente ou no agorardquo (his thought lives along the whole

line of temples and sphinxes and catacombs passes through them all with satisfaction and they live

again to the mind or are now) A natureza do pensamento humano vive no fluxo de consciecircncia que

paira sobre um tempo coacutesmico O estudioso da histoacuteria nessa loacutegica vasculha o passado ateacute encontrar

a si mesmo ldquonossa admiraccedilatildeo do antigo natildeo eacute a admiraccedilatildeo do velho mas do naturalrdquo () pois

ldquoquando um pensamento de Platatildeo torna-se meu pensamento ndash quando uma verdade que acendeu a

alma de Piacutendaro inflama a minha nada haacute mais Quando eu sinto que noacutes dois nos conhecemos em

uma percepccedilatildeo () por que devo medir graus de latitude por que devo eu contar anos egiacutepciosrdquo (Our

admiration of the antique is not admiration of the old but of the natural () when a thought of Plato

becomes a thought to me ndash when a truth that fired the soul of Pindar fires mine time is no more When

i feel that we two meet in a perception () why sould I measure degrees of latitude why should I count

Egyptian yeras) Esse encontro do homem universal (universal men) com a natureza universal

(universal nature) eacute promovido por uma leitura absolutamente sinedoacutequica entre a experiecircncia

individual e o singular coletivo ldquoem outras palavras natildeo existe propriamente histoacuteria apenas

biografiardquo (on other words there is no properly History only biography) EMERSON Ralph Waldo

History In The Complete Works Vol II Essays First SeriesBoston and New York Houghton

Mifflin and Company 1904 pp 4-41 Sua visatildeo dos grande homens eacute tambeacutem naturalmente pautada

pelo individualismo metodoloacutegico como a passagem citada por Barbosa evidencia eles satildeo a

expressatildeo individual de uma razatildeo necessaacuteria ndash a ordem moral 204 ldquo() men of character are the conscience of the society to which they belongrdquo EMERSON

Character 1904 p 96 Na nota 2 dessa mesma paacutegina o editor incluiu ldquoIn the lecture on Politics as

first delivered these sentences occur Character is the true theocracy It will one day suffice for the

government of the world 205 ldquoMen are also representative first of things and secondly of ideasrdquo EMERSON Waldo Ralph

The Complete Works Uses of Great Men In Representative men Vol IV Boston and New York

Houghton Mifflin and Company 1904 p 8 206 ldquoI count him a great man who inhabits a higher sphere of thoughtrdquo Idem p 6 ldquoHow to illustrate the

distinctive benefit of ideas the service rendered by those who introduce moral truths into the general

mindrdquo Idem p 21

76

apreccedilo desses patronosrdquo 207 Com o seu culto a grande forccedila sobre a qual repousa o

projeto comemorativo pocircde traduzir-se atraveacutes do intento de ldquoarrancar o Brasil da

lethargia moral em que tem vivido () e lhe fazer compreehender que deve e haacute de

restituir aacute humanidade essa grande parte de seu ser a qual tem sido arredada a

comunhatildeo dos homens pelas algemas da escravidatildeordquo 208 Nesse gesto simboacutelico que

devolve a humanidade aos cativos ndash mesmo que teoricamente avesso ao holismo

funcionalista um gesto quase durkhemiano de reparaccedilatildeo moral ndash encontramos como

corolaacuterio certa desumanizaccedilatildeo panteonizadora ndash e possivelmente algo mais Ou

oficiando a memoacuteria de Joseacute Bonifaacutecio o neto em uma seacuterie de discursos que natildeo

fazem sequer referecircncia a sua mocidade natildeo estariam os ldquonovos liberaisrdquo

enquadrando de uma soacute vez tambeacutem a mateacuteria memorial de seu avocirc materno

Inegaacutevel diaacutelogo para dizer o miacutenimo entre experiecircncias geracionais Mas

conversar com os mortos eacute sempre uma tarefa para cegos no qual o passado ndash sem

uma existecircncia visiacutevel para aleacutem do ruiacutedo de uma memoacuteria inexoravelmente sujeita

aos trabalhos do presente ndash eacute aberto a usos e abusos A commemoratio barbosiana natildeo

apenas editou uma vida recortando seus uacuteltimos atos supendendo-os da ordem do

tempo copiando e colando-os jaacute no proacutelogo de sua existecircncia Seu epitaacutefio natildeo

satisfeito com a simples adesatildeo agrave causa foi bem aleacutem relacionando o grande homem

agrave imagem do ldquoradicalismo abolicionistardquo e aquinhoando um procedimento caro as

mais antigas autarquias orientais representou a mais perfeita continuidade ndash de

Bonifaacutecio a Bonifaacutecio ndash da memoacuteria coletiva de um quadro identitaacuterio e

abolicionista209

22 A lembranccedila como ato moral

Barbosa referia-se aos uacuteltimos anos do Impeacuterio era posterior ao bem sucedido

gabinete do Baratildeo de Rio Branco (1871-1875) deacutecada de interrompidos avanccedilos

207 ldquoOur religion is the love and cherishing of these patrons The gods of fable are the shining moments

of great menrdquo Uses of Great Men p 4 208 BARBOSA Climaco Ao Puacuteblico Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de

Andrada e Silva p 4 Grifos meus 209 BARBOSA Ruy op cit ldquoTransubstanciado por esse contacto com a realidade eterna o coraccedilatildeo de

Joseacute Bonifacio eacute hoje o coraccedilatildeo impessoal da patria e o sentimento que propulsa o musculo titanico eacute

o radicalismo abolicionistardquo p 60-61 Para Angela Alonso os ldquoNovos Liberais () ressaltaram uma

continuidade abolicionista na histoacuteria brasileira Apresentaram-se como herdeiros da melhor cepa

liberal do Impeacuterio a geraccedilatildeo de Bonifaacutecio idealizadora da Independecircncia e da monarquia

constitucional com trabalho livre bem como de todos os reformadores do Segundo Reinado mesmo os

conservadores como Euseacutebio Paranaacute e Rio Brancordquo op cit p 293

77

liberais e obstaacuteculos impostos agrave causa abolicionista210 Derrotado nas eleiccedilotildees de

1886 frustrado e excluiacutedo dos ciacuterclos de poder ele perguntava-se se ldquohaacute ahi na

chronica deste paiz ephemeacuterides de immoralidade comparaacuteveis aacutes destes dois

annosrdquo211 A escravidatildeo esse crime do direito ciacutevil contra o direito natural jaacute era ao

menos desde o velho Bonifaacutecio catalisadora de um discurso moralista ndash mas a

aboliccedilatildeo natildeo marcou o fim do topos Quanto mais se aproximavam da virada do

seacuteculo os anos mais evidenciavam atraveacutes de parte da intelectualidade e da imprensa

certa leitura moral das crises que assolariam a jovem repuacuteblica Marcas da geraccedilatildeo de

1870 Daqueles ldquotristiacutessimos temposrdquo de ldquoum mundo que se acabardquo e no qual se

pode escutar o ldquoranger das peccedilas de um edifiacutecio que se esboroardquo 212 Eacute possiacutevel que

sim muito embora a tendecircncia a assinalar esse tipo de diagnoacutestico natildeo lhe seja eacute

claro uacutenica

Em 1843 o perioacutedico O Panorama ou Jornal Literaacuterio e Instructivo da

Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uacuteteis publica pela primeira vez o

romance histoacuterico O Bobo Preocupado nitidamente com o problema da identidade

nacional seu autor Alexandre Herculano elenca o reinado de Dona Urraca I (1078-

1126) como periacutedo originaacuterio da nacionalidade portuguesa O cenaacuterio eacute o castelo de

Guimaratildees no Condado Portucalense e o enredo termina por versar em torno de D

Bibas o Bobo que caiacutera em desgraccedila com a morte de seu querido protetor D

Henrique Testemunha das intrigas palacianas ora espiando por debaixo dos panos de

mesa jurava vinganccedila tornando-se espeacutecie de eminecircncia parda de uma histoacuteria

secreta

Degradaccedilatildeo moral Era esse o sentimento de Herculano em relaccedilatildeo a um dos

mais ldquodesastrosos periacuteodos de desordens de rebeliotildees e de guerras civisrdquo signos do

reinado de D Urruca Resistir era inuacutetil dizia o autor pois qualquer accedilatildeo contraacuteria

aos desmandos da monarquia tomava finalidades ldquoindividuais desconexas e por isso

sem resultados definitivos efeito natural de instituiccedilotildees puacuteblicas viciosas e

210 Ver ALONSO 2002 A autora defende que Rio Branco teria retirado certas pautas da matildeo dos

liberais e republicanos (como por exemplo a reforma do ensino) ao passo que jaacute em 1878 o gabinete

do Visconde de Sinimbu natildeo fazia mais do que ecoar o poder moderador 211 BARBOSA Ruy op cit p 50 212 Tristiacutessimos tempos sr Conselheiro () Vim buscar inspiraccedilotildees agrave Europa Levo-as mas quatildeo

diversas do que eu sonhava Este eacute um mundo que se acaba () Sente-se o ranger das peccedilas de um

edifiacutecio que se esboroa Carta de Tavares Bastos agrave Nabuco de Araujo 1867 Apud ALONSO Acircngela

2002 Citado nas paacuteginas 52 e 96

78

incompletasrdquo 213 Para o escritor lusitano isso acontecia porque

A ideacuteia de naccedilatildeo e de paacutetria natildeo existia para os homens

drsquoentatildeo do mesmo modo que existe para noacutes O amor

cioso da proacutepria autonomia que deriva de uma

concepccedilatildeo forte clara consciente do ente coletivo era

apenas se era um sentimento frouxo e confuso para os

homens dos seacuteculos XI e XII Nem nas crocircnicas nem

nas lendas nem nos diplomas se encontra um vocaacutebulo

que represente o espanhol o indiviacuteduo da raccedila godo-

romana distinto do sarraceno ou mouro () O que falta

eacute a designaccedilatildeo simples precisa do suacutebdito da coroa de

Oviedo Leatildeo e Castela E por que falta Eacute porque em

rigor a entidade faltava socialmente214

Em um periacuteodo em que a identidade natildeo era uma evidecircncia a compatibilidade

coletiva era afirmada ndash mesmo na ausecircncia de uma designaccedilatildeo para portugueses e

espanhoacuteis ndash ainda assim pela via da alteridade Entre cristatildeos e muccedilulmanos a

afinidade grifada pela feacute ldquoaparecia clara e distintardquo Em outras palavras enquanto a

identidade nacional natildeo se fazia (no vocabulaacuterio cartesiano uma evidecircncia) ldquocada

catedral cada paroacutequia cada mosteiro cada simples asceteacuterio era um anel da cadeia

moral que ligava o todo na falta de um forte nexo poliacuteticordquo215 Mas esse tipo de elo

identitaacuterio natildeo era suficiente para deter a crise cuja imagem manifesta atraveacutes de

costumeira pintura moral ganhou sentido histoacuterico pelo paralelo traccedilado por

Herculano entre a archeacute e o telos da lusitanidade ldquoPobres fracos humilhadosrdquo o

presente dos portugueses ndash como o foi a sua origem ndash era experienciado pelo topos da

decadecircncia moral Na leitura do autor de O Bobo o horizonte soacute ganhava em

expectativa quando iluminado pela lembranccedila de uma aurora gloriosa

() depois de tatildeo formosos dias de poderio e de renome

que nos resta senatildeo o passado Laacute temos os tesouros dos

nossos afetos e contentamentos Sejam as memoacuterias da 213 HERCULANO Alexandre O bobo Satildeo Paulo Saraiva 1959 Documento digitalizado por Antonio

de Padua Danesi Disponiacutevel em httpwwwdominiopublicogovbr Acesso em 14 de Dezembro de

2013 p 2 214 Idem Ibidem 215 Idem Ibidem ldquoHavia-a mas debaixo de outro aspecto em relaccedilatildeo ao grecircmio religioso Essa sim

que aparece clara e distinta A sociedade criada era uma e preenchia ateacute certo ponto o incompleto da

sociedade temporal Quando cumpria aplicar uma designaccedilatildeo que representasse o habitante da parte da

Peniacutensula livre do jugo do Islam soacute uma havia christianus O epiacuteteto que indicava a crenccedila

representava a nacionalidade E assim cada catedral cada paroacutequia cada mosteiro cada simples

asceteacuterio era um anel da cadeia moral que ligava o todo na falta de um forte nexo poliacuteticordquo Grifos

meus

79

paacutetria que tivemos o anjo de Deus que nos revoque agrave

energia social e aos santos afetos da nacionalidade Que

todos aqueles a quem o engenho e o estudo habitam para

os graves e profundos trabalhos da histoacuteria se dediquem

a ela No meio de uma naccedilatildeo decadente mas rica de

tradiccedilotildees o mister de recordar o passado eacute uma espeacutecie

de magistratura moral eacute uma espeacutecie de sacerdoacutecio

Exercitem-se o que podem e sabem porque natildeo o fazer

eacute um crime 216

Essa tarefa ciacutevica alcanccedilaria feiccedilotildees complementares a um rito positivo quer

seja de um exerciacutecio de reparaccedilatildeo moral Para Herculano celebrar os tesouros do

passado portuguecircs eacute mais do que um compromisso dos eruditos uma espeacutecie de

dever do historiador o qual recusando-se a julgar (positivamente) o passado colonial

seria ele mesmo condenado como criminoso Ora os tempos grandiosos do impeacuterio

ultramarino eram a uacutenica dimensatildeo em que a histoacuteria paacutetria aparentava aos olhos de

muitos intelectuais de sua eacutepoca marchar no ritmo das naccedilotildees mais civilizadas217

Essa leitura da experiecircncia peninsular do tempo ndash seu passado seu presente seu

futuro ndash natildeo foi em nada uacutenica a Alexandre Herculano embora as particularidades de

cada autor envolvido em sua reflexatildeo evidenciassem ainda diferentes formas de se

relacionar com os dias que jaacute se foram Almeida Garrett acostumado a viajar de

livros em matildeos no deleite do quarto toma enfim o caminho da estrada ndash e nele

testemunha a experiecircncia decadentista Sua obra Viagens na Minha Terra eacute o ldquosentir

da criserdquo embora tambeacutem seja um manifesto pelo caraacuteter do povo portuguecircs

entendido por meio de seus elementos constituidores imaginados a partir da ldquoterra da

tradiccedilatildeo dos costumes e do proacuteprio passadordquo 218

Algumas deacutecadas mais tarde os beletristas de 1870 natildeo seriam tiacutemidos em

transformar as impressotildees da geraccedilatildeo anterior em armas de embate puacuteblico Antero de

Quental esboccedilou em uma das famosas Conferecircncias do Casino 27 de maio de 1871

uma visatildeo que em algum sentido tornou-se arquetiacutepica da ldquodecadecircncia como uma

216 Idem Ibidem Grifos meus 217 ldquoAgrave medida que o seacuteculo XIX se desenrola comeccedila a desenhar-se com nitidez o progressivo

distanciamento do nosso paiacutes face agraves naccedilotildees que lentamente se industrializam e se desenvolvem e que

concomitantemente vatildeo produzir uma natildeo menos prodigiosa revoluccedilatildeo cultural de que nos chegaratildeo

ecos Satildeo pois a conscientizaccedilatildeo destes factos e a assunccedilatildeo da nossa pequenez e impossibilidade

fiacutesica para a realizaccedilatildeo de tatildeo difiacutecil desiderato que levaratildeo toda uma geraccedilatildeo a preocupar-se

denodadamente com as razotildees da decadecircncia nacional () RODRIGUES Vitor Luis Gaspar A

decadecircncia da monarquia constitucional portuguesa factores de afirmaccedilatildeo do ideaacuterio republicano

Ponta Delgada Universidade dos Accedilores 1986 p 83 218 RODRIGUES op cit p 84

80

espeacutecie de estigma indeleacutevel e recorrente de nosso destino peninsularrdquo 219 Sua palavra

aparece como um apelo agrave ldquocomunhatildeo moralrdquo diante de um amplo quadro de

dissoluccedilatildeo dos costumes220 As causas Accedilatildeo funesta do cristianismo

contrarreformado associado ao tribunal da inquisiccedilatildeo agrave ordem jesuiacutetica e agrave poliacutetica

do antigo regime que levaram os paiacuteses ibeacutericos agrave ldquomorte moralrdquo 221 Sua soluccedilatildeo

notemos natildeo era menos polecircmica ldquoEacute necessaacuterio um esforccedilo virilrdquo escreveu Antero

de ldquoquebrar resolutamente com o passadordquo O respeito agrave ldquomemoacuteria dos nossos avoacutesrdquo

sua rememoraccedilatildeo piedosa deveria ser mantida poreacutem ao custo de jamais os

imitarmos O passado observado atraveacutes da dinacircmica entre decadecircncia e progresso

natildeo era mais lido atraveacutez de imagens que certo vez nas paacuteginas de Plutarco foram

ldquovirtudes em accedilatildeordquo222 Era tambeacutem um espaccedilo traacutegico de viacutecios corrupccedilatildeo e mazelas

Essa desvalorizaccedilatildeo do caraacuteter moralmente utilitaacuterio do passado cuja recusa a

imitatio pode ser entendida tambeacutem como um triunfo na crenccedila na dinacircmica do

progresso difere do modelo de Alexandre Herculano muito embora seu socialismo agrave

la Prudhomme tambeacutem natildeo fizesse quoacuterum entre grande parte dos republicanos de

seu paiacutes223 Mesmo assim ldquomarca uma eacutepoca em Portugalrdquo Foi a primeira vez que

como disse um contemporacircneo ldquoem Portugal entra o espiacuterito moderno e a primeira

vez que aqui se expotildee () que o Catolicismo foi uma das causas () da decadecircncia de

Portugal e de Espanhardquo224

Inexistente no latim claacutessico o termo decadentia (de-cadere) aparece durante

219 LOURENCcedilO Eduardo Revisitaccedilatildeo da mitologia anteriana Prefaacutecio agraves Causas da decadecircncia dos

povos peninsulares nos uacuteltimos trecircs seacuteculos In QUENTAL Antero Lisboa Tinta-da-china 2008 p

11-12 220 QUENTAL Antero Causas da decadecircncia dos povos peninsulares nos uacuteltimos trecircs seacuteculos

Prefaacutecio de Eduardo Lourenccedilo Lisboa Tinta-da-china 2008 p 25-26 221 Nas palavras do autor ldquoO espiacuterito sombrio e depravado da sociedade reflectiu-o a Arte com uma

fidelidade desesperadora que seraacute sempre perante a histoacuteria uma incorruptiacutevel testemunha de acusaccedilatildeo

contra aquela eacutepoca de verdadeira morte moral Essa morte moral natildeo invadira soacute o sentimento a

imaginaccedilatildeo o gosto invadira tambeacutem invadira sobretudo a inteligecircnciardquo op cit pp 30-31 222 Sobre a relaccedilatildeo necessaacuteria entre as imagens como ldquovirtudes em accedilatildeordquo e o estiacutemulo agrave imitatio ver

HARTOG Franccedilois Plutarque entre les anciens et les modernes In PLUTARQUE Vies Parallegraveles

Paris Gallimard 2001 p 14 223 ldquoOponhamos ao catolicismo natildeo a indiferenccedila ou uma fria negaccedilatildeo mas a ardente afirmaccedilatildeo da

alma nova a consciecircncia livre () a filosofia a ciecircncia e a crenccedila no progresso na renovaccedilatildeo

incessante da Humanidade pelos recursos inesgotaacuteveis do seu pensamento () Oponhamos agrave

monarquia centralizada uniforme e impotente a federaccedilatildeo republicana de todos os grupos

autonoacutemicos de todas as vontades soberanas () oponhamos a iniciativa do trabalho livre a induacutestria

do povo pelo povo e para o povo natildeo dirigida e protegida pelo Estado mas espontacircnea natildeo entregue

agrave anarquia cega da concorrecircncia mas organizada duma maneira solidaacuteria e equitativa operando assim

gradualmente a transiccedilatildeo para o novo mundo industrial do socialismo a quem pertence o futurordquo

Idem 224 REIS Jaime Batalha Correspondecircncia Apud BERRINI Beatriz Brasil e Portugal A Geraccedilatildeo de

70 Campo das Letras Porto 2003 p 25

81

a Idade Meacutedia para designar a deteriorizaccedilatildeo a ruiacutena ou o colapso Na modernidade

decadecircncia opotildee-se a progresso e natildeo seraacute ldquode resto por acaso que a decadecircncia

como categoria de anaacutelise histoacuterica se aviva no seacuteculo XIX quando a ideia e a crenccedila

no progresso se desenvolvem fortementerdquo225 Joel Serratildeo em verbete do seu

Dicionaacuterio de Histoacuteria de Portugal segue um rumo parecido ao afirmar que ldquosem a

ideia de progresso a ideia de decadecircncia ldquonatildeo alcanccedila sentido algum () soacute se torna

legiacutetimordquo afinal de contas ldquodizer que algo decai apoacutes se ter postulado previamente

em que consiste subirrdquo226

Apenas nove anos separam a conferecircncia de Quental das comemoraccedilotildees do

tricentenaacuterio da morte de Camotildees Aqueles que sentiam a crise reconheciam tambeacutem

certa necessidade em retornar ao passado como se nele protegida pela passagem dos

anos repousasse certa essecircncia virtuosa e esquecida A municcedilatildeo vinha do norte

carregada nas folhas da Fraserrsquos Magazine em palavras anotadas anos antes pelo

proacuteprio Thomas Carlyle

Carlyle resenha o romance histoacuterico de Guilherme Centazzi saudado

justamente por se afastar dos modelos peninsulares que lhe eram contemporacircneos O

Estudante de Coimbra contava a histoacuteria do jovem que saiacutedo da universidade se via

na frente de batalha das guerras liberais Era para o criacutetico escocecircs um livro raro

entre os romances lusitanos ldquofundado sobre fatos natildeo faacutebulas em eventos histoacutericos

e costumes nacionais ao inveacutes de absurdos leviatatildes e geografias impossiacuteveisrdquo227 Se o

retrato do presente havia salvo o romance portuguecircs do atraso das mirabilia ainda

vivas no antigo regime ele natildeo tinha ainda assim contribuiacutedo para frear a decadecircncia

de Portugal Guerra permanente nunca andou de lado com o progresso das belas

letras mas revoluccedilotildees e guerras civis exatamente o tipo de conflito no qual os

lusitanos viam-se de imediato envolvidos lhes seriam fatais

Alguns argumentos que mais tarde estaratildeo presente na conferecircncia de Quental

jaacute se faziam ouvir nessas palavras de Carlyle As causas primaacuterias do decliacutenio ldquode

uma naccedilatildeo que outrora foi vanguarda empreendedora das descobertasrdquo foram por um

lado a ldquoafluecircncia do ouro vindo dos paiacuteses receacutem descobertos a opressatildeo do jugo

225 PIRES Antoacutenio Machado A Ideia de Decadecircncia na Geraccedilatildeo de 70 2 ed Lisboa Vega 1992 p

18 226 SERRAtildeO Joel Dicionaacuterio de Histoacuteria de Portugal Vol 1 V decadecircncia 227 ldquo() a book founded on facts and not on fables on historical events and national customs instead

of absurd leviathans and impossible geographyrdquo CARLYLE Thomas Romance of Portuguese

Revolution March 1848 In Frasersrsquos Magazine for Town And Country January to June 1848

London John W Parker West Strand Vol XXXVII p 274

82

espanholrdquo e por outro ldquoos grilhotildees impostos ao progresso pelos jesuiacutetas e pela

Inquisiccedilatildeordquo embora ldquoa continuidade de seu estado de degradaccedilatildeo pelo menos em

dias recentes ldquodeva ser buscada em sua proacutepria incansaacutevel turbulecircncia e em suas

querelas internasrdquo228 Primeiro romance moderno de Portugal Eacute bem possiacutevel que

Carlyle concordasse Mas isso natildeo significa em nada que fosse uma obra prima se

em Lisboa ele poderia ser considerado um livro de primeiro escalatildeo em Londres

estaria mais proacuteximo do terceiro229 As guerras liberais haviam valorizado a

pertinecircncia dos temas presentes e com eles o romance moderno mas o paralelo de

seus frutos artiacutesticos com o grande vulto da lusitanidade era ainda visto como

profundamente desigual ldquoQuatildeo incomensuraacutevel eacute o intervalo entre o melhor dos

escritoresrdquo ndash exalta o professor escocecircs ao denegrir os beletristas portugueses de seu

tempo ndash e o ldquoinspirado e patrioacutetico autor drsquoOs Lusiacuteadasrdquo230 Passados quase

quatrocentos anos Portugal era ainda nada mais do que ldquoa terra nativa de Camotildeesrdquo231

Nessa terra de Camotildees Almeia Garret natildeo demoraria para flertar com uma

leitura ldquonacionalistardquo drsquoOs Lusiacuteadas escrevinhando o eacutepico no grande-homem-poeta

do ensaiacutesta escocecircs ou aquele que canta a naccedilatildeo ldquoNatildeo admirardquo escreveu Oliveira

Martins ldquoque desde entatildeo Camotildees ficasse na alma popular como siacutembolo da naccedilatildeo e

Os Lusiacuteadas como sua biacutebliardquo Deveriacuteamos nos surpreender caso o poeta zarolho

animasse tambeacutem os espiacuteritos dos filhos do Brasil Pai da liacutengua ldquoassim dotado com

todos os caracteres do povo que representavardquo poderia tambeacutem de alguma maneira

representar a Ameacuterica Portuguesa232 No ambiente intelectual e poliacutetico varrido pelas

ondas comemorativas de finais do seacuteculo dezenove a geraccedilatildeo brasileira de 1870

228 If the primary causes of decline in a nation which once led the van of natical enterprise and

discovery were the great influx of gold from new-found countries the oppressive Spanish yoke and

the fetters imposed on progress by Jesuits and the Inquisition the continuance of its degraded state at

least in recent days must be sought in its own restless turbulence and internal quarrels Idem p 272 229 () it is refreshing to turn to a book which if in England it would be esteemed of third-rate merit

may certainly claim in Portugal a place in the very first rank () Idem p 274 230 Idem p 273 231 ldquo() the native land of Camoens ()rdquo Idem p 272 232 ldquoNatildeo admira pois que desde entatildeo Camotildees ficasse na alma popular como siacutembolo da naccedilatildeo e Os

Lusiacuteadas como a sua biacuteblia Natildeo admira que tivesse passado agrave condiccedilatildeo de epoacutenimo desta pequena

paacutetria tatildeo semelhante a Atenas e mais ainda a Esparta na agitaccedilatildeo da sua vida poliacutetica na grandeza da

sua missatildeo colonial e tambeacutem na miseacuteria fuacutenebre da sua decomposiccedilatildeo Natildeo admira que desde o

seacuteculo XVII por toda a parte onde surgisse de entre as ruiacutenas do edifiacutecio nacional algum fuste de

coluna ainda de peacute ou algum friso inteiro onde se visse correr agitada a trageacutedia de outras eras por

toda a parte onde se erguesse do matagal de urzes e cardos da histoacuteria a haste florida de uma accedilucena

de saudade ou de esperanccedila a corola dessa flor ou a forma dessa evocaccedilatildeo tivesse o perfume e a cor

dos Lusiacuteadas e se considerasse uma revelaccedilatildeo de Camotildees () E quis a sorte que um poeta assim

dotado com todos os caracteres do povo que representava aparecesse no momento proacuteprio da completa

definiccedilatildeo do seu pensamentordquo MARTINS Oliveira Camotildees Os Lusiacuteadas e a Renascenccedila em

Portugal 4ordf ed Lisboa Guimaratildees Ed 1986 (2ordf ed1891)

83

acessaria o mesmo personagem numa tentativa jaacute assinalada pela criacutetica de edificar

um contrapeso ibeacuterico ao indianismo saquerema233 Logo o centenaacuterio de Camotildees

seria comemorado no Brasil ao lado de uma efemeacuteride nacional imaginando um

personagem particular dentro do quadro geral do desenvolvimento da nacionalidade

transeuropeacuteia Castro Alves234

Contavam apenas dez anos da morte do autor de Navio Negreiro Para alguns

jaacute era hora de lembraacute-lo urgecircncia que se confundia na inspiraccedilatildeo do poeta ldquoaquele

que como o pai da trageacutedia grega possa dedicar suas obras lsquoao Temporsquo ()rdquo e nele

ldquoencarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento da sua eacutepocardquo235

Comemorar um defundo que mal terminou por ser velado pode parecer tanto comum

no mundo contemporacircneo mas para os finais do seacuteculo XIX o gancho jornaliacutestico

em especial um tatildeo imediato natildeo era ainda uma evidecircncia arbitrariamente edificada

sob os escombros dos excessos de informaccedilatildeo O paralelo precisava prestar contas ao

leitor ldquoA justificaccedilatildeo do decenaacuteriordquo explicava Ruy Barbosa ldquoeacute que Castro Alves

escreveu o poema da nossa grande questatildeo social e da profunda aspiraccedilatildeo nacional

que tem a resolverrdquo236 Em outras palavras o passado recente era acessado pelas

demandas de um tempo presente em franca aceleraccedilatildeo Suas palavras de ordem a

memoacuteria do morto sua comemoraccedilatildeo e a elevaccedilatildeo dele ao estatuto de patrimocircnio

nacional

Barbosa inicia o elogio comentando sua escolha como oficiante Ele natildeo eacute

poeta ndash natildeo habita os ldquocimos mais proacuteximos do astrordquo ndash escolha que demonstra

entatildeo um ldquonovo tributo ao nome que comemoraisrdquo237 Novo tributo que natildeo pretendia

233 Para Angela Alonso ldquoa recuperaccedilatildeo de Camotildees passou pelo filtro da geraccedilatildeo 1870 portuguesa No

auge do romantismo luso Almeida Garret se encarregara de prover uma leitura nacionalista de Os

Lusiacuteadas e de elevar Camotildees agrave situaccedilatildeo de mito Essa versatildeo se cristalizara na tradiccedilatildeo poliacutetico-

intelectual saquarema Por isso as geraccedilotildees 1870 a portuguesa e a brasileira retornaram a Camotildees

como estrateacutegia revisionista da proacutepria ideia de naccedilatildeordquo ALONSO op cit p 287 Ver tambeacutem

LOURENCcedilO E Mitologia da Saudade Cia das Letras Satildeo Paulo 1999 234 Transeuroeacuteia pois como escreveu Anne-Marie Thiesse ldquonada eacute mais internacional do que a

formaccedilatildeo das identidades nacionaisrdquo THIESSE Anne-Marie La creacuteation des identiteacutes nationales

Europe XVIII-XIX siegravecles Paris Seuil 1999 Citado tambeacutem por ENDERS 2014 p 14 235 Pensando nos versos de Castro Alves Rui Barbosa lembra do ldquoglorioso arauto de Agamemnon

imortalizado por Homero Taltiacutebios lsquosemelhante aos deuses pela vozrsquo () o poeta aquele que como o

pai da trageacutedia grega possa dedicar as suas obras ldquoao Tempordquo sentiu a natureza teve a inspiraccedilatildeo

universal e humana encarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento da sua eacutepocardquo

BARBOSA Rui Elogio ao Poeta (1881) In Trabalhos diversos Rio de Janeiro Ministeacuterio da

Educaccedilatildeo e Cultura 1957 (Obras Completas de Rui Barbosa v 8 1881 t 1) p II-III 236 Idem XXIII-XXIV 237 Minhas senhoras meus senhores ndash Obedeccedilo ainda assustado e confundido agrave honra da eleiccedilatildeo que

me eleva ateacute aqui Incapaz de ambicionaacute-la nem sonhaacute-la achei-me todavia desarmado para lhe

resistir Cativo agrave espontaneidade dela natildeo menos cativo me senti agrave origem deste mandato agrave bela

geraccedilatildeo nova de minha terra aos moccedilos agravequeles que em todo paiacutes suscetiacutevel de ressurreiccedilatildeo ou de

84

escalar o Olimpo sem duacutevida Era patente que Rui Barbosa escrevendo ao Diaacuterio da

Bahia em 1881 referia-se com tais palavras ao problema da escravidatildeo A atualidade

que o falecimento de Castro Alvez ganha atraveacutes da pauta abolicionista demonstra o

caraacuteter poliacutetico dessas efemeacuterides ldquoculturaisrdquo ldquoOrardquo continua Barbosa ldquoo elemento

servil eacute o cunho negro de toda a nossa histoacuteria e a extinccedilatildeo do elemento servil seraacute a

fimbria luminosa de todo o nosso futurordquo238 A geraccedilatildeo de 1870 foi pioneira em um

novo tipo de jornalismo de opiniatildeo ndash ou na linguagem da eacutepoca publicismo ndash o qual

natildeo desconhecia a teacutecnica da efemeacuteride Nas paacuteginas dessa imprensa em ascensatildeo

catalizavam-se discursos poliacutetico-morais nos quais a escravidatildeo era vista como a ldquoa

ignomiacutenia que barbariza e desumana o escravo conspurca a famiacutelia livre () perverte

irreparavelmente a educaccedilatildeo de nossos filhos () explica todos os defeitos do caraacuteter

nacional toda a indolecircncia do nosso progressordquo O orador natildeo lanccedilava palavras ao

vento proselitismo sem alvo mas marcava-o com tons pedagoacutegicos claros Seu

diaacutelogo era para com a ldquobela geraccedilatildeo novardquo os moccedilos suscetiacuteveis de ldquoressurreiccedilatildeo ou

de progressordquo Para eles Barbosa ensinava que se ldquotodas as sombras do nosso

horizonterdquo podem ser explicadas pela escravidatildeo o abolicionismo jaacute havia se tornado

a ldquoexpressatildeo da mais inflexiacutevel das necessidades sociaisrdquo239

Concentrar os esforccedilos intelectuais no trabalho da memoacuteria abolicionista na

luta contra esse peso do passado teve como efeito colateral ndash de um ponto de vista

atento agraves foacutermulas de identificaccedilatildeo nacional ndash a relativizaccedilatildeo do indianismo das

geraccedilotildees anteriores A leitura moral que encabeccedila a lista de preocupaccedilotildes dos

oficiantes quando em vez eacute uma forma de associar o Brasil a sua heranccedila lusitana

deixando por ora suspensos certos aspectos americanos de nossa formaccedilatildeo ldquoNoacutes

somos brasileiros natildeo somos guaranisrdquo escreveu Joaquim Nabuco ldquoa liacutengua que

falamos ainda eacute portuguesardquo Em sua polecircmica com Joseacute de Alencar o abolicionista

reconhecia com certo desdeacutem que estudar os ldquodialetos selvagens a religiatildeo grosseira

os mitos confusos os costumes rudesrdquo dos iacutendios brasileiros era prestar um serviccedilo agraves

progresso representam a alianccedila da generosidade com a forccedila o grande desinteresse e as grandes

aspiraccedilotildees Mas designando para esta homenagem ao poeta o uacuteltimo dentre voacutes arriscastes-vos a uma

temeridade que me deixou perplexo enquanto natildeo sondei intimamente o vosso desiacutegnio Agora sim

que o percebo Natildeo foi um excesso de inexperiente confianccedila foi pelo contraacuterio uma deliberaccedilatildeo

maduramente refletida para demonstrar a profundeza da influecircncia da obra desse extraordinaacuterio

representante da nossa poesia a voz que a houvesse de atestar devia partir natildeo dos cimos mais

proacuteximos do astro deslumbrados pelo seu esplendor escaldados pela sua irradiaccedilatildeo mas caacute da

humildade do vale que de tatildeo longe o contempla Neste sentido a infimidade da escolha foi um novo

tributo ao nome que comemorais e a este tiacutetulo a vossa designaccedilatildeo acertou Idem I 238 Idem p XXIV 239 Idem p XXIV

85

artes e agrave ciecircncia Mas o que lhe parecia impossiacutevel era ldquoquerer fazer dos selvagens a

raccedila de cuja civilizaccedilatildeo nossa literatura deve ser o monumentordquo240

E que monumentos sobrariam senatildeo aqueles que comeccedilam por enaltecer a

liacutengua portuguesa e com ela o poeta renascentista Em Camotildees e os Lusiacuteadas texto

de 1872 Nabuco jaacute oferecia sua resposta escolhendo o poema eacutepico lusitano para

objeto de seus estudos acreditava ter tomado ldquoum assumpto nacionalrdquo Os versos

camonianos ldquosatildeo a obra prima da literatura portugueza que eacute a nossardquo Bem diferente

era aquela ldquolitteratura inspirada pela vida errante das tribus primitivasrdquo a qual natildeo

teria direito a se chamar nacional ldquoA poesia poacutede idealisar o caracter o coraccedilatildeo as

guerras a civilizaccedilatildeo ateacute drsquoesses ferozes habitantes de nossos sertotildees mas a poesia

que se impuzer essa aliaacutes bella missatildeo seraacute uma poesia phantasticardquo concluiu241

Em Portugal Teoacutefilo Braga cofundador da revista O Positivismo e bem ao

contraacuterio de Nabuco republicano convicto torna-se a figura maacutexima na organizaccedilatildeo

do tricentenaacuterio Seus trecircs artigos intitulados precisamente O Centenaacuterio de Camotildees

em 1880 apresentavam a ambiccedilatildeo de aproveitar a crise das instituiccedilotildees monaacuterquicas

como mote para uma verdadeira ldquorevivescecircncia nacionalrdquo Seu ldquoComitecirc de Salvaccedilatildeo

Puacuteblicardquo com o auxiacutelio de Ramalho Ortigatildeo foi a vanguarda das comemoraccedilotildees

camonianas atraindo em pouco tempo a atenccedilatildeo das mais prestigiadas instituiccedilotildees

de ensino do paiacutes e finalmente do proacuteprio governo242 Seu objetivo era

destacadamente moral e poliacutetico em Os centenaacuterios como synthese affectiva nas

sociedades modernas texto de 1884 Braga oferecia um balanccedilo e um prognoacutestico a

respeito do fenocircmeno comemorativo Por meio da relaccedilatildeo entre os grandes homens e

suas paacutetrias os centenaacuterios eram vistos fundamentalmente como mateacuteria difusora da

nacionalidade243 Exaltar os ldquovultos histoacutericosrdquo da paacutetria lusitana natildeo era mateacuteria

desconhecida do notoacuterio erudito Em 1881 com a colaboraccedilatildeo de diversos autores

entre eles Oliveira Martins Braga havia jaacute lanccedilado o seu Plutarcho Portuguez244

240 COUTINHO Afracircnio (Org) A polecircmica Alencar-Nabuco Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

1978 p 190 241 NABUCO Joaquim Camotildees e os Lusiacuteadas Rio de Janeiro Tipographia Imperial do Instituto

Artiacutestico 1872 p 10-12 242 Aqui trabalho a partir de CABRAL Alexandre Luiacutes de Camotildees Poeta do Povo e da Paacutetria Notas

oitocentistas ndash I Lisboa Horizonte 1980 243 BRAGA Teoacutefilo Os Centenaacuterios como synthese affectiva nas sociedades modernas Porto

Typographia de AJ da Silva Teixeira 1884 Para quem ldquoO Centenaacuterio de Camotildees neste momento

histoacuterico e nesta crise dos espiacuteritos teve a significaccedilatildeo de uma revivescecircncia nacionalrdquo p 10 244 BRAGA Teoacutefilo Plutarco Portuguez collecccedilatildeo de retratos e biographias dos principaes vultos

histoacutericos da civilizaccedilatildeo portugueza Desenhos de Julio Costa e phototypias Emilio Biel amp Cia

86

Nessa obra os grandes homens uniam-se agrave paacutetria cuja siacutentese feliz era a proacutepria

histoacuteria Histoacuteria costurada natildeo pelas estrateacutegias dos biografados face agrave fortuna mas

atraveacutes dos serviccedilos ndash morais e poliacuteticos ndash que renderam sentido civilizatoacuterio agrave paacutetria

paacutetria sentida na leitura da bios de seus arquitetos como uma comunidade afetiva

instituiccedilatildeo e entidade quase sagrada amada e respeitada por seus cidadatildeo e protegida

no coraccedilatildeo de todos os verdadeiros republicanos245

A atenccedilatildeo agrave efemeacuteride a data redonda parecia sistematizar as estrateacutegias

literaacuterias e poliacutetico-morais do autor Um ano antes do aniversaacuterio de Camotildees Braga jaacute

preparava o terreno para seu proselitismo republicano em um periacuteodo que se estende

de 1879 a 1891 lanccedila as Soluccedilotildees Positivas da Repuacuteblica Portugueza seguidas do

Programma do Partido Republicano Portuguez Nesses textos procurava destituir

todo conteuacutedo socialista (ao estilo da juventude de Antero de Quental) do projeto

republicano ldquoadaptando-o dessa forma agrave realidade social portuguesa afim derdquo nas

palavras de um comentador ldquocaptar as simpatias de uma pequena e meacutedia burguesiardquo

246 Novamente o officiant ndash nas provaacuteveis vestes do magistrado de Herculano ndash busca

uma soluccedilatildeo de compromisso como mecanismo moral frente agraves amplas audiecircncias

No presente caso a vontade poliacutetica da memoacuteria intentava cada vez mais unir o topos

da decadecircncia agrave proacutepria imagem da monarquia247

Foi nesse contexto ndash agravado pelo Ultimatum britacircnico de 1890 ndash que

Oliveira Martins em artigo publicado no Jornal do Commercio datado de 1894

transportou a discussatildeo para o outro lado do Atlacircntico248 Na peccedila o puacuteblico carioca

pocircde confrotar-se com o questionamento de inegaacutevel sabor decadentista sobre se

havia ou natildeo recursos ldquointelectuais morais sobretudo econocircmicosrdquo para que os

portugueses sobrevivessem como povo autocircnomo em suas fronteiras nacionais Com

as potecircncias europeias arquitetando a partilha do impeacuterio lusitano Martins

perguntava-se ainda se ldquosalvar-nos-aacute no Seacuteculo XIX Angola como nos salvou o

collaboradores drsquoeste volume Theophilo Braga Oliveira Martins Joaquim Vasconcellos Julio de

Mattos e Paiva e Pona Pocircrto J Costa E Biel amp Cia 1881 245 CATROGA Fernando Paacutetria naccedilatildeo e nacionalismo In SOBRAL Joseacute Manoel VALA Jorge

(Org) Identidades nacionais inclusatildeo e exclusatildeo Lisboa ICS 2010 246 RODRIGUES op cit p 97 247 ldquoEssa identificaccedilatildeo entre monarquia e decadecircncia conduziria por outro lado e de forma inevitaacutevel

a uma outra noccedilatildeo que apresentava a Repuacuteblica como a nova foacutermula de salvaccedilatildeo nacional ()rdquo

RODRIGUES op cit p 94-95 248 Em 11 de janeiro de 1890 o governo inglecircs demanda a retirada das tropas portuguesas estacionadas

no territoacuterio do atual Zimbaacutebue Lisboa acata as ordens O sonho lusitano de unir suas duas uacuteltimas

grande colocircnias ndash Moccedilambique e Angola ndash termina e para muitos natildeo o que culpar senatildeo o

entreguismo dos monarquistas O episoacutedio leva agrave queda do governo nomeaccedilatildeo de um novo ministeacuterio

e oferece municcedilatildeo agrave causa republicana

87

Brasil no seacuteculo XVIIIrdquo249

A decadecircncia era um topos poliacutetico-moral entre beletristas eruditos e filoacutesofos

da segunda metade do seacuteculo XIX Sua temaacutetica chegava ao Brasil no ritmo dos

vapores europeus pelos ensaios da Fraserrsquos da Quaterly ou da Westminster ainda

atraveacutes das paacuteginas da Revue des Deux Mondes Disponiacutevel na corte em Satildeo Paulo e

na Bahia o quinzenal francecircs natildeo era apenas muito lido no Impeacuterio do Brasil

mantendo-se igualmente como uma referecircncia constante em artigos de jornais e

discursos puacuteblicos Certa vez o conselheiro Saraiva admitiu que natildeo lia outra coisa

atitude que lhe rendeu gracejos no que foi defendido pelo proacuteprio imperador ldquoeacute

quanto bastardquo bradou D Pedro II250 Mas natildeo bastava O topos da decadecircncia

adentrava o repertoacuterio poliacutetico-moral dos homens de letras brasileiros jaacute contavam

algumas deacutecadas igualmente por meio do filtro da geraccedilatildeo portuguesa de 1870 Com

o centenaacuterio de Camotildees ele soacute ganhou mais forccedila Em Teoacutefilo Braga temos o modelo

republicano da leitura drsquoOs Lusiacuteadas de volta agrave origem ndash natildeo mais vista na Idade

Meacutedia como em Herculano mas no renascimento e na expansatildeo ultramarina ndash

declamar os versos eacutepicos de Camotildees era como reacender as chamas da gloacuteria em um

tempo de escuridatildeo251

No Brasil tanto republicanos quanto monarquistas foram bastante ativos na

comemoraccedilatildeo do centenaacuterio camoniano Entre eles surgiram diversos Camotildees todos

de alguma forma prontos para o combate Afonso Celso Jr e Miguel Lemos vieram

somar facetas ao grande-homem-poeta enquanto Belivaacutequoa e Martins Jr prestavam-

lhe em conferecircncias e poemas todo o tipo de homenagens Em junho de 1880 a

revista Brasileira dedicou-lhe um nuacutemero e mais tarde em 1885 a Igreja Positivista

ergueria um busto do poeta252 Se em Portugal as comemoraccedilotildees em torno do autor de

Os Lusiacuteadas ganhavam feiccedilotildees republicanas de ofensa agrave monarquia no Brasil elas

apareciam como um ataque ndash republicano ou natildeo ndash agrave velha leitura indianista de uso

conservador e afastando-se dela reafirmava a heranccedila lusitana Por outro lado

249 MARTINS Oliveira Portugal Contemporacircneo 3ordf Ediccedilatildeo Lisboa Antocircnio Maria Pereira 1895 pp

XII-XIV 250 SODREacute Werneck Histoacuteria da Imprensa no Brasil Rio de Janeiro 1966 Civilizaccedilatildeo Brasileira

Apud ALONSO op cit p 53 251 Nas palavras de Eduardo Lourenccedilo Braga promovia uma ldquoutilizaccedilatildeo partidaacuteria da sua gloacuteria posta

ao serviccedilo dos primeiros alvores republicanosrdquo Ver LOURENCcedilO 1999 p 60 252 ALONSO op cit p 288-289 Para a autora ldquoEssas efemeacuterides culturais tinham clara conotaccedilatildeo

poliacutetica As figuras selecionadas compunham uma visatildeo da tradiccedilatildeo nacional que se afastava do cacircnon

indianista da elite imperial e representavam uma ruptura em relaccedilatildeo aos esquemas de legitimaccedilatildeo que

os saquaremas tinham construiacutedo para a sociedade estamental e para o sistema poliacutetico restritivordquo p

290

88

celebrar Camotildees Bonifaacutecio o velho e ateacute certo ponto Tiradentes era expediente que

encontrava na tradiccedilatildeo nacional jaacute acostumada a esses vultos certa legitimidade

moral para campanhas que possuiacuteam ndash como no caso da escravidatildeo ndash claros limites

legais A vontade poliacutetica da memoacuteria aparecia mais uma vez indissociaacutevel de seus

instrumentos morais de enquadramento

23 Catalisadores do discurso moralista

ldquoUma dramaacutetica duacutevida sobre o futuro do paiacutes e uma lei de alternacircncia de

grandezadecadecircncia como motor da histoacuteria nacionalrdquo253 Assim Antoacutenio Machado

Pires resume seu estudo sobre a Ideacuteia de Decadecircncia na Geraccedilatildeo de 70 em Portugal

As relaccedilotildees da geraccedilatildeo de Eccedila de Queiroz Oliveira Martins Teoacutefilo Braga e Antero

de Quental com o Brasil eram relativamente estreitas254 Seus diaacutelogos atravessavam

o oceano em obras publicadas atraveacutes de mateacuterias de jornal assinadas drsquoaleacutem mar e

natildeo esqueccedilamos uma intensa correspondecircncia Diversas pautas cairiam bem ao topos

decadentista se em Portugal ele jaacute havia aparecido tendo como causa o catolicismo

contrareformado e a longevidade do absolutismo no Brasil os liberais republicanos

poderiam reeditar-lhe os argumentos Algo como a superaccedilatildeo de uma sociedade e de

uma organizaccedilatildeo poliacutetica que jaacute natildeo andam mais em harmonia ambas condenadas agrave

ldquocorrupccedilatildeordquo ora entendida como resultado da ldquoprostraccedilatildeo moral a que nos arrastou o

absolutismo praacutetico sob as vestes do liberalismo aparenterdquo255

Para os monarquistas liberais mais iacutentimos dos ciacuterculos de poder o topos da

decadecircncia ndash inseparaacutevel de certo juiacutezo teleoloacutegico ndash era estimulado natildeo por uma

criacutetica ao sistema poliacutetico mas pela condenaccedilatildeo moral da escravidatildeo Em uma

campanha que beirava os limites da legalidade o discurso moralista suas atribuiccedilotildees

de certo e errado viacutecios e virtudes ndash por vezes evocados a partir dos costumes cristatildeos

ndash preparava um terreno comum de inteligibilidade e legitimidade para com a tradiccedilatildeo

imperial Natildeo tinha sido o bastante para o velho Bonifaacutecio e seu ldquocancro mortalrdquo eacute

verdade mas a proacutepria valorizaccedilatildeo de seu vulto jaacute abria um novo precedente

memorial

A escravidatildeo essa ldquoverdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na fronterdquo

253 PIRES 1992 p 26 254 Sobre essa questatildeo ver BERRINI 2003 255 Manifesto Republicano 1870 In PESSOA R C A ideia republicana no Brasil atraveacutes de

documentos Satildeo Paulo Alfa-Ocircmega 1973 p 70

89

era tambeacutem indubitaacutevel catalizadora do discurso moral256 No Brasil de meados do

seacuteculo XIX a moral aquilo que eacute relativo aos costumes era um terreno dominado

ora pela referecircncia aos ancestrais ora pelos ensinamentos do cristianismo Ou

Bonifaacutecio o velho natildeo foi exilado logo apoacutes insultar as elites escravocratas

declarando com todas as palavras que seus membros natildeo eram verdadeiros cristatildeos

ldquoHa de espantarrdquo ousou dizer agrave Assembleia Constituinte ldquoque hum trafico tatildeo contra

aacutes Leis da moral humana e aacutes santas maximas do Evangelho e ateacute contra as leis de

huma satildea poliacutetica dure ha tantos seculos entre os homens que se dizem civilizados e

christatildeosrdquo Ao que ele intreacutepido completaria ldquomentem nunca o focircramrdquo257

Mesmo argumentos nitidamente econocircmicos natildeo se esqueciam de acessar

dentro de um amplo repertoacuterio disponiacutevel de conceitos e ideias a ordem da moral

Quintino Bocaiuacuteva liberal republicano comentando a crise do campo natildeo deixou de

fazer o julgamento de um paiacutes escravocrata ldquomoral e economicamente gangrenado por

essa instituiccedilatildeo fatalrdquo258 Natildeo era apenas uma palavra arbitraacuteria ou estiliacutesticamente

inclusa em um rol de consideraccedilotildees negativas a respeito das poliacuteticas monaacuterquicas

Em outra ocasiatildeo ao debater poliacuteticas de imigraccedilatildeo capazes de trazer braccedilos livres ao

paiacutes Bocaiuacuteva admitiu que ldquocada vez que mais estudo e aprecio as coisas da nossa

decadecircncia moral e dessa lacircnguida frouxidatildeo que enerva as almas () de nossa

populaccedilatildeordquo seus olhos encontravam ldquoa escravidatildeo como origem como a sede como

o foco maldito donde se exala esse miasmo atrofiadorrdquo259 O mundo mudava os

poderes tradicionais esboroavam-se e no espaccedilo de uma vida natildeo ldquoexiste ainda

organizado nenhum poder moralrdquo260 Conceito que garantia pontes de inteligibilidade

entre conservadores liberais e republicanos a moral carregava mais do que isso

trazia tambeacutem uma chave explicativa para a compreensatildeo da dinacircmica entre

decadecircncia e progresso Como resumiu Nabuco a escravidatildeo deve encontrar seu

teacutermino porque ldquoassim como arruiacutena economicamente o paiacutesrdquo ldquocorrompe-lhe o

caraacuteter desmoraliza-lhe os elementos constitutivosrdquo acostuma-nos ao servilismo nos

faz desprezar o trabalho manual retardando a imigraccedilatildeo e ldquoa apariccedilatildeo das induacutestriasrdquo

Ela encobre ldquoos abismos da anarquia moral de miseacuteria e destituicatildeo que do Norte ao

256 NABUCO Joaquim O Abolicionismo Ediccedilotildees do Senado Federal Vol 7 Brasiacutelia 2003 p 23 257 ANDRADA E SILVA 1825 p 20 258 BOCAIUacuteVA Quintino A crise da lavoura In SILVA E (org) Ideacuteias poliacuteticas de Quintino

Bocaiuacuteva BrasiacuteliaRio de Janeiro Senado FederalCasa Rui Barbosa 1986 p 184 259 BOCAIUacuteVA 3081870 Colonizaccedilatildeo Asiaacutetica Cartas a Nicolau Moreira In SILVA E (org)

1986 260 BOCAIUacuteVA Quintino A questatildeo social In SILVA 1986 p 478

90

Sul margeiam nosso futurordquo Em Nabuco o argumento moral reorientava-se com

desenvoltura do passado para o futuro esse ldquopeso enorme que atrasa o Brasilrdquo eacute o

mesmo fardo que impedia nosso progresso261

Os argumentos de Bonifaacutecio e Nabuco poderiam ser inscritos como devedores

de uma tradiccedilatildeo moralista e providencial de criacutetica agrave escravidatildeo Em 1863 Goldwin

Smith jornalista e historiador britacircnico radicado nos Estados Unidos ministra uma

conferecircncia depois publicada em panfleto intitulada Does the Bible Sanction

American Slavery Smith partia do ponto de vista confessional de que a ldquoBiacuteblia tem

muita relaccedilatildeo com a poliacutetica e a ciecircncia () e com tudo o que adentra a vida moral do

homemrdquo262 O amor de Deus acreditava move todos os tipos de trabalhos que nos

levam a ldquodescoberta de verdades cientiacuteficas e filosoacuteficasrdquo ldquoAssimrdquo continua ldquoem

seu movimento avante o progresso da natureza humana tem como condiccedilatildeo

transformar-se em semelhanccedila a seu Criadorrdquo Em suma ldquoa Biacuteblia reconhece o

progressordquo263 Fomos feitos agrave imagem e semalhanccedila do demiurgo e continuamos a ser

feitos assim Mas o Livro tambeacutem observa no Velho Testamento o trabalho

compulsivo como instituiccedilatildeo tradicional do Povo Escolhido tambeacutem faz menccedilatildeo ao

captivos no Novo Testamento sem incutir-lhe algum juiacutezo edificante Entretanto

mesmo que o coacutedigo de leis daquelas ldquorudes instituiccedilotildees de uma naccedilatildeo primitiva

incluindo a escravidatildeordquo natildeo tenham se modificado por um uacutenico milagre eles o

foram pela accedilatildeo paulatina dos propoacutesitos divinos264 A providecircncia como no catoacutelico

Bossuet ordenava o mundo atraveacutes de seus desiacutegnios Goldwin em uma intervenccedilatildeo

moral na poliacutetica interna de uma Ameacuterica fraturada em duas propotildee demonstrar seu

argumento anti-esclavagista a partir do recurso a exemplos retirados da histoacuteria sacra

e secular chegando a utilizar um procedimento comum em seu tempo recorre agrave crise

do escravismo romano lido a partir do diagnoacutestico de uma crise moral ora citando

261 NABUCO O Abolicionismo op cit p 110 262 ldquoThe Bible has much to do with politics and science and with everything that enters as all parts of

our social and intellectual state do enter into the moral life of manrdquo SMITH Goldwin Does the Biblie

Sanction American Slavery Oxford amp London John Henry and James Parker 1863 p 3 263 The love of God and Man () moves the high and self-devoted labours which have led to the

discovery of scientific and philosophic truth And thus in its onward progress human nature is by the

very condition of that progress changed Into the likeness of its Maker ()The Bible recognises

Progress Idem p 3-4 Grifos meus 264 ldquoThis code of laws takes the rude institutions of a primitive nation including Slavery as they stand

not changing society by miracle which as has been said before seems to have been no part of the

purposes of God ()while it takes these institutions as they stand it does not perpetuate them but

reforms them mitigates them and lays on them restrictions tending to their gradual abolitionrdquo Idem

Ibidem

91

Gibbon ora citando Mommsen265

A perfectibilidade pressupotildee o movimento constante da alma Ela eacute anaacuteloga ao

progresso que ndash ldquoreconhecido pela Biacutebliardquo ndashtransformava a natureza humana em algo

cada vez mais perfeito com Deus Uma busca inquieta que garantia a simetria entre

ordem do tempo e ordem da natureza pelo trabalho da matildeo invisiacutevel da providecircncia

divina sobre os povos escolhidos A criacutetica moral agrave escravidatildeo encontra nas palavras

de Godwin Smith um inusitado aliado no providencialismo protestante

A tese de Goldwin Smith natildeo era na verdade em nada original mas

acompanhava um movimento cultural em liacutengua anglo-saxatilde que tinha como um de

seus corolaacuterios a criaccedilatildeo de interdiccedilotildees morais ao trabalho escravo266 Unclersquos Tom

Cabine o romance sentimental sobre o escravo que no leito de morte perdoa os

capatazes que o torturaram talvez tenha sido o maior best seller do seacuteculo XIX

Famosa tambeacutem no Brasil a obra de Harriet Stowe foi aqui encenada diversas vezes

no final do seacuteculo XIX267 Tatildeo cedo quanto em 1793 Noah Webster perguntava-se

referindo agrave escravidatildeo se ldquouma grande revoluccedilatildeo nos governos do velho mundo natildeo eacute

um evento desejaacutevelrdquo268 Seu texto de pouco mais de 50 paacuteginas trazia um painel da

degradaccedilatildeo moral das populaccedilotildees cativas em Connecticut apresentando a escravidatildeo

como ato ldquobarbaro e perversordquo clara ldquoviolaccedilatildeo das leis da natureza e da

sociedaderdquo269 Mais tarde com a Guerra de Secessatildeo o fluxo de panfletos livros e

artigos abolicionistas provenientes dos Estados do norte encontra terreno fertil no

clima abolicionista de parte das elites ilustradas brasileiras

No Abolicionista de Joaquim Nabuco novamente seraacute Theodor Mommsen

quem aparece dando as cartas Eacute na Histoacuteria Romana que o liberal brasileiro vai

buscar o paralelo que faltava ao seu diagnoacutetico de crise moral Nada muito diferente

do expediente de Goldwin que igualmente e em plena segunda metade do seacuteculo

XIX foi buscar na crise do escravismo romano ndash lido atraveacutes do mesmo historiador

alematildeo ndash sua comparaccedilatildeo para com o caso americano ldquoOnde quer que se a estuderdquo

265 ldquoBut the Roman world was doomed and it was doomed partly because the character of the upper

classes had been deeply and incurably corrupted by the possession of a multitude of slavesrdquo Idem p

124Mommsen eacute citado na paacutegina 63 jaacute Gibbon aparece um pouco depois na paacutegina 90 266 Para uma perspectiva mais abrangente ver DRESCHER Seymour Capitalism and Antislavery

British Mobilization in Comparative Perspective New York amp Oxford Oxford University Press 1987 267 Ver ALONSO op cit p 190 268 ldquoAnd let humanity and benevolence decide whether liberty or slavery is the most eligible and

whether a general revolution in the governments of the old world is not a desirable eventrdquo WEBSTER

Noah Effects of slavery on morals and industry Cornell University Library 1793 p 56 269 ldquothat the practice of enslaving their brethren of the human race is barborous and wicked and that it

is a violation of the laws of nature and societyrdquo Idem p 7

92

seja na Roma antiga na Ameacuterica do Norte ou no Brasil ldquoa escravidatildeo passou sobre o

territoacuterio dos povos que a acolheram como um sopro de destruiccedilatildeordquo270 Entre a Roma

de Mommsen e o Brasil e as Colocircnias de Oliveira Martins Nabuco constroacutei um

argumento que dispotildee toda a naccedilatildeo brasileira como viacutetima da escravidatildeo ldquoesse preccedilo

quem o pagou e estaacute pagando natildeo foi Portugal fomos noacutesrdquo271

Deixe-mos as histoacuterias natildeo paguemos o preccedilo do perdatildeo esqueccedilamos tudo

queimemos os registros em uma anistia irrestrita que promova a ldquoreconciliaccedilatildeo de

todas as classesrdquo Se o povo brasileiro necessitava de um ldquooutro ambienterdquo no qual

poderia ldquodesenvolver-se e crescer em meio inteiramente diversordquo em nome da ordem

e da ldquomoralizaccedilatildeo de todos os interessesrdquo o caminho a ser percorrido para Nabuco

era natildeo apenas o do ldquoesquecimento da escravidatildeordquo mas o de uma trilha que apagasse

ldquoateacute mesmo a recordaccedilatildeo da luta em que estamos empenhadosrdquo272 Sem as histoacuterias

como ficariam nossa moral e nossa cosmologia Libertar os captivos deslembrar seus

seacuteculos de trabalhos forccedilados entregaacute-los nuacutes de passado e de pertences ao seio da

paacutetria sem origem e de duvidoso destino natildeo seria o mesmo que olvidaacute-los como

cidadatildeos

Anos depois jaacute na repuacuteblica Rui Barbosa completaria os planos de Nabuco

ateando fogo aos registros do cativeiro A integraccedilatildeo da heranccedila afro-brasileira ndash de

seu passado e de seus costumes ndash dentro da federaccedilatildeo da memoacuteria nacional parecia de

fato fora de cogitaccedilatildeo Era preciso libertar para melhor assimilar Nisso a posiccedilatildeo do

grupo de Miguel Lemos era tanto emblemaacutetica Os positivistas tambeacutem natildeo se

furtavam em condenar a escravidatildeo em tons morais O trabalho compulsoacuterio

derrubava as distinccedilotildees entre o produtor e o produto do trabalho reificando o

primeiro agrave imagem do segundo e degradando por fim o proacuteprio senhor Alheios ao

direito exilados da cidadania a raccedila amante natildeo era parte legiacutetima da sociedade ciacutevil

embora ainda assim ela natildeo cessasse de angariar o usofruto de seu trabalho por meio

da instituiccedilatildeo criminosa da escravidatildeo

Esse era um argumento que mesmo em Franccedila poderia ser recuado a

Condorcet ldquode duas uma ndash ou natildeo haacute moral ou eacute preciso acceitar como um principio

que o crime seraacute sempre um crime muito embora a opiniatildeo o natildeo estigmatise e a lei

270 NABUCO O Abolicionista op cit p 139 271 Idem p 120 272 Idem p 206

93

do paiz o tolererdquo273 Traduzido em 1881 por Aaratildeo Reis engenheiro pela Politeacutecnica e

simpatizante dos positivistas a Escravidatildeo dos Negros de Condorcet veio unir-se ao

repertoacuterio do combate abolicionista como em Ciacutecero ainda mais uma vez poderiacutea-se

dizer que ldquonem tudo que eacute permitido eacute honesto nem tudo que eacute legal eacute moralrdquo (De

Officis 325667) Agora o raciociacutenio colocava em oposiccedilatildeo na praacutetica pelo menos

duas leituras morais legitimatoacuterias distintas a abolicionista secular e a escravista

catoacutelica ndash e nisso era ainda mais agressivo do que os argumentos providencialistas da

tradiccedilatildeo moralista anglo-saxatilde que via ordens de reparaccedilatildeo divina na marcha agrave

perfectibilidade

Se a escravidatildeo era um crime ldquodegradanterdquo o abolicionismo soacute poderia

encontrar o rumo da criacutetica das instituiccedilotildees que lhe davam suporte como na tradiccedilatildeo

liberal o Estado e a Igreja foram seus alvos preferenciais Os poderes seculares e

espirituais seriam senatildeo responsaacuteveis ao menos cuacutemplices da ldquomonstruosidade

social originada da infame opressatildeo que a raccedila inteligente exerceu sobre a raccedila

amanterdquo274 Embora legal o trabalho compulsoacuterio era certamente ilegiacutetimo pois

imoral

A moral em jogo no entanto natildeo era a dos negros A luta dava-se entre duas

leituras ocidentais contrastantes dispostas em conflito ainda talvez para usar o

vocabulaacuterio de Chateaubriand a evidecircncia tardia do choque entre dois ldquosistemasrdquo As

memoacuterias em cena aquelas que possuiacuteam meios de assumir uma franca disputa

poliacutetica tambeacutem natildeo tinham origem na Aacutefrica sequer na senzala O projeto

positivista de naccedilatildeo natildeo planejava tampouco incluir espaccedilos de revindicaccedilatildeo

identitaacuteria afro-brasileira Seus costumes natildeo seriam bem vindos Tatildeo logo os

captivos fossem libertos os sacerdotes da humanidade assumiriam a tarefa de

arrebanhaacute-los em nome da razatildeo e da eugenia da raccedila A ciecircncia positiva fazia

acreditar que a miscigenaccedilatildeo entre negros iacutendios e europeus ndash entre a ldquoraccedila

inteligenterdquo a ldquoraccedila amanterdquo e a ldquoraccedila nativardquo ndash permitiria a sobrevivecircncia dos

caracteres mais evoluiacutedos de cada etnia ao mesmo tempo em que eliminaria seus

aspectos nocivos275

Parte do repertoacuterio poliacutetico disponiacutevel aos publicistas da geraccedilatildeo de 1870

273 CONDORCET A escravidatildeo dos negros (reflexotildees) Traduccedilatildeo do engenheiro civil Aaratildeo Reis Rio

de Janeiro Typ De Serafim Joseacute Alves 1881 p 23 274 LEMOS Miguel (Org) O positivismo e a escravidatildeo moderna Rio de Janeiro Igreja Positivista do

Brasil 1884 p 21 275 Idem p 38

94

deste ou do outro lado do Atlacircntico os argumentos morais quando apropriados por

uma vontade poliacutetica natildeo se furtavam em orientaacute-la Desde os antigos ndash como um dos

princiacutepios fundamentais daquilo que os modernos chamariam de memoacuteria ndash a moral

subscrita nos costumes ancestrais entraria em franca contradiccedilatildeo caso o oportunismo

do orador transformasse-a em instrumento passivo A sua proacutepria evocaccedilatildeo jaacute suscita

no coraccedilatildeo das audiecircncias a imagem da beleza moral o viacutecio e a virtude o bom e o

mau o exemplo a imitar ou combater A mudanccedila de regime poliacutetico tampouco a

aboliccedilatildeo abalaram o topos da decadecircncia nem menos ainda a argumentaccedilatildeo moral

Esses continuariam a ser acessados e apropriados o tanto quanto permanecerem

oportunos

24 Da crise moral ao grande jubileu

Na Ameacuterica portuguesa desde a proclamaccedilatildeo de 1889 ateacute ao menos 1898 jaacute

no governo Campos Sales o novo regime republicano enfrentava sucessivos

transtornos Poliacutetica financeira malagrada Encilhamento revoltas messiacircnicas

confrontos entre militares e civis esse clima de instabilidade poliacutetica natildeo deixou de

ser interpretado atraveacutes de matizes morais dentre as quais se fez sentir os efeitos do

topos da decadecircncia Em 1900 a Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutephico de Satildeo

Paulo publica ndash como vatildeo fazer diversas instacircncias afiliadas ao IHGB ndash um nuacutemero

dedicado agrave comemoraccedilatildeo do quadricentenaacuterio da descoberta de Cabral Joatildeo Vampreacute

folclorista filoacutelogo e criacutetico literaacuterio sergipano escreve sobre as Festas Tradicionais

brasileiras Por tradiccedilatildeo ele entendia todo um conjunto de ldquoelementos da morfologia

universal das literaturasrdquo produto resultante do sincretismo da ldquoemotividade

sensorialrdquo que ldquonos conduz agraves relaccedilotildees entre a natureza coacutesmica e a moralrdquo 276 O

objetivo das tradiccedilotildees ensinava Vampreacute seria ldquoo bello o idealrdquo tomado ainda a

partir da definiccedilatildeo tomista ldquoresplendecircncia formae super partes materiae

proportionatas vel super diversas vires vel actionesrdquo 277 Objetivo que no caso

brasileiro estaria longe de ser alcanccedilado em nosso paiacutes ldquoo desprezo pelo passadordquo

demonstraria uma ldquodegradaccedilatildeo intelectual denota no individuo e no povo um estado

de selvaacutetica rudezardquo Seu diagnoacutestico apontava que

276 VAMPREacute Joatildeo Festas Tradicionais Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutephico de Satildeo Paulo

Tomo VI 1900-1901 p 87-88 277 Na traduccedilatildeo do autor ldquoO Bello eacute o esplendor comunicado pela forma aacutes diversas partes da mateacuteria

ou a vaacuterios princiacutepios a varias acccedilotildees harmonicamente unidas em um mesmo todordquo Idem p 86

95

Tudo quanto na nossa terra tornava a existencia heroica

e bella tudo quanto a envolvia em um nimbo de doce e

meiga poesia tudo quanto na vida punha uma nota

alacre de vibrante emoccedilatildeo ou de cariciosa e amoravel

meiguice tudo isto desappareceu para dar logar aacute peor

das situaccedilotildees moraes - a de uma patria abatida

desvirilisada soacute porque impertinentemente se querem

apagadas a luz redemptora das tradicccedilotildees as nossas

lendas mais santas278

Nas lareiras da naccedilatildeo natildeo ardiam mais sob os cuidados de seus respectivos

nuacutecleos familiares o fogo das tradiccedilotildees A frustraccedilatildeo das expectativas para com a

repuacuteblica tatildeo sublinada pela historiografia somava-se a uma leitura conservadora que

via a necessidade de se valorizar as experiecircncias nacionais ndash sob a eacutegide do passado

da memoacuteria da tradiccedilatildeo ndash como forma de reparaccedilatildeo moral Evidecircncias desse

discurso Vampreacute toma as palavras de Herculano veste a toga ciacutevica e reafirma

convicto que ldquoo mister de recordar o passado () eacute uma espeacutecie de magistratura

moral eacute um sacerdoacuteciordquo279 Sem a rememoraccedilatildeo de nossas heranccedilas as ldquolembranccedilas

mais queridas da famiacutelia desapparecemrdquo fadadas a um esquecimento que ndash segundo

Vampreacute em sua expliacutecita filiaccedilatildeo a Spencer ndash jaacute estava no entanto sociologicamente

determinado280

Herbert Spencer foi o porta-voz por excelecircncia do clima otimista que dos anos

de 1850 a 1880 justificava em seu paiacutes a crenccedila no progresso ndash mas ia aleacutem Seu

projeto intelectual ambicionava reabilitar uma filosofia da histoacuteria reunindo

prerrogativas do espiacuterito e da natureza em um quadro nomoloacutegico uacutenico Sua lei

ldquoToda forccedila ativa produz mais do que uma mudanccedila ndash toda causa produz mais do que

um efeitordquo281 Seu corolaacuterio ldquoUniversalmente o efeito eacute mais complexo do que a

causardquo282 Spencer intuiu seu statement of the law a partir das observaccedilotildees de

naturalistas que desde solo Alematildeo estudavam as seacuteries de mudanccedilas ocorridas entre

a germinaccedilatildeo de uma semente em uma aacutervore ou dos um oacutevulos em animais Suas

pesquisas demonstrariam algo que o filoacutesofo transformou em expressatildeo loacutegica geral 278 Idem p 89 Grifos meus O autor acrescenta que ldquo() neste particular estou com Spencer quando

diz que ideacuteias e sentimentos se devem acommodar ao estado socialrdquo 279 Idem p 90 280 Idem p 92 281 ldquoEvery active force produces more than one cause ndash every cause produces more than one effectrdquo

SPENCER Herbert Progess Its Law and Causes In The Westminster Review Vol 67 (April 1857)

p 466 282 Idem Ibidem ldquoUniversaly the effect is more complex than the causerdquo

96

o desenvolvimento constitui-se em um ldquoavanccedilo da homogeneidade de estrutura para a

heterogeneidade de estruturardquo283 O progresso assim entendido natildeo estaria reduzido a

niveis moleculares mas presente na cosmologia na geologia conduzindo os rumos

da histoacuteria natural guiando a marcha das civilizaccedilotildees e refletindo-se na manifestaccedilatildeo

de seus espiacuteritos ndash sua arte seus costumes sua religiatildeo e poliacutetica nada escapava ao

prodigioso esquema spenceriano ldquoo progresso natildeo eacute um acidenterdquo fez questatildeo de

ressaltar ldquomas uma necessidade beneficienterdquo284 Do simples ao deveras complexo os

modos de mudanccedila pareciam ainda mais ceacuteleres entre as ldquodivisotildees civilizadasrdquo da

espeacutecie humana dentre as quais se destacavam os povos europeus285

Em Spencer a aceleraccedilatildeo dos modos de mudanccedila sociais ou histoacutericos ndash em

uma palavra o progresso ndash estava naturalizada a partir de sua lei bio-cosmoloacutegica

geral E eles iam cada vez mais raacutepido como se seguissem o curso de um caminho de

ferro286 Isso natildeo significa no entanto que a ordem da natureza natildeo pudesse passar

por percalccedilos que conduzam indiviacuteduos ou espeacutecies inteiras na direccedilatildeo oposta do

desenvolvimento heterogecircneo Mudanccedilas agudas nas condiccedilotildees fiacutesicas no ambiente e

na nutriccedilatildeo associadas a variaccedilotildees intensas nos costumes das populaccedilotildees afetadas

poderiam direcionaacute-las a modos de vida mais simples287 Natildeo se tratava entretanto de

todo uma anomalia ldquoo processo envolve natildeo simplesmente a tendecircncia agrave

diferenciaccedilatildeo de cada raccedila de organismos em diversas raccedilasrdquo explicava Spencer

ldquomas envolve uma tendecircncia agrave produccedilatildeo ocasional de um organismo de certa forma

superiorrdquo 288 O progresso resulta entatildeo no desenvolvimento de raccedilas superiores

derivadas da conquista de melhores condiccedilotildees de vida e do desenvolvimento de

costumes mais complexos ou heterogecircneos cujo caso exemplar eacute dado pelas

283 ldquoThe investigations of Wolf Goethe and Von Baer have established the truth that the series of

changes gone through during the development of a seed into a tree or an ovum into an animal

constitute an advance from homogeneity of structure to heterogeneity of structurerdquo Idem p 446 284 ldquoProgress is not an accident not a thing within human control but a beneficient necessityrdquo Idem p

484 285 ldquoIt is alike true that during the period in which the Earth has been peopled the human organism has

become more heterogeneous among the civilized divisions of the speciesrdquo () This characteristioc

which is more marked in Man than in any other creature is more marked in the European than in the

savagerdquo Idem p 451 286ldquoThe change from the homogeneous to the heterogeneous is displayed equally in the evolution of

civilization as a whole and in the progress of every tribe or nation and is still going on with increasing

rapidityrdquo Idem 458 287 ldquoNot only would there be thus caused certain modifications consequent on change of physical

conditions and kind of nutriment but also in some cases other modifications consequent upon change

of habitsrdquo Idem p 477 288 ldquoThe process involves not simply a tendency Towards the differentiation of each race of organisms

into several races but it involves a tendency to the occasional production of a somewhat higher

organismrdquo Idem Ibidem

97

condiccedilotildees morais europeacuteias O resultado oposto eacute a ldquoretrogradaccedilatildeordquo conceito

inspirado no movimento aparente reverso de um planeta em relaccedilatildeo ao ponto de

observaccedilatildeo terrestre289

Noccedilatildeo ainda marginal no artigo fundador de 1857 a retrogradaccedilatildeo ganha

corpo na filosofia do uacuteltimo Spencer A partir de 1875 o otimismo vitoriano comeccedila

a ser sistematicamente questionado e as ideias spencerianas sobre a inevitabilidade

do progresso entram em cheque Suas reflexotildees acerca do papel moral necessaacuterio e

benemeacuterito do progresso datildeo lugar a textos que diagnosticam a intervenccedilatildeo poliacutetica

ou estatal na economia e na vida civil como antinatural e originadora da decadecircncia

Jaacute nos Principios de Sociologia (1876-1896) Spencer continua a desenvolver sua

teoria geral da evoluccedilatildeo aplicada agraves sociedades humanas embora sublinhando

igualmente a possibilidade da decadecircncia290 Nem o maior apoacutestolo do progresso

resistiu ao pessimismo do uacuteltimo quartel do seacuteculo XIX Como diversas obras e cartas

escritas na uacuteltima fase de sua vida testemunham o filoacutesofo passou a acreditar que

viviacuteamos em um periacuteodo de barbarizaccedilatildeo seja pela intervenccedilatildeo militar inglesa

malograda no estrangeiro ndash seja por meio da tirania sindical ndash a dinacircmica entre

progresso e decadecircncia fazia a uacuteltima ritmar sobre os avanccedilos da raccedila291 A premissa

de que ldquouma constituiccedilatildeo moral melhor adaptada deve necessariamente aparecer

assim que as circunstancias modificam-serdquo continuaria vaacutelida embora seu resultado

fosse uma composiccedilatildeo moral menos heterogecircnea ndash no jargatildeo spenceriano menos

evoluiacuteda ou civilizada292

Mas voltemos ao Brasil de finais do XIX Escrevendo para o Instituto

Histoacuterico e Geograacutefico de Satildeo Paulo Vampreacute dizia que ldquoa fragmentaccedilatildeo dessa

memoacuteria familiar e individualrdquo era apresentada ldquocomo o signo de uma corrosatildeo mais

289 ldquoIn some cases the habits of life adopted beign simpler than before a less heterogeneous structure

will result there will be a retrogradationrdquo Idem Ibidem 290 Satildeo textos dessa fase SPENCER Herbert Principles of Sociology Williams and Norgate London

1877 SPENCER Herbert The Man Versus the State Caxton Printers Idaho 1960 [1884] Sobre a

dinacircmica entre progresso e decadecircncia no pensamentro de Herbert Spencer sigo BECQUEMONT

Daniel Herbert Spencer progregraves et deacutecadence In Mil neuf cent No 14 1996 pp 69-88 Ver tambeacutem

HARTOG Franccedilois Croire en lacuteHistoire Flammarion Paris 2013 Progregraves et Reacutevolution p 231 291 BECQUEMONT op cit p 83-85 292 Para o primeiro Spencer ldquoUne constitution morale mieux adapteacutee devait neacutecessairement apparaicirctre

lorsque les circonstances changeaient Certes tous les individus ne seraient pas capables dacqueacuterir ces

qualiteacutes morales et certains disparaicirctraient dans la quecircte de la perfection mais les faculteacutes humaines

seraient neacuteanmoins faccedilonneacutees jusquagrave ladaptation complegravete agrave leacutetat social et le mal et limmoraliteacute

appeleacutes agrave disparaicirctre la perfection de lhumaniteacute neacutetait quune question de tempsrdquo BECQUEMONT

op cit p 70

98

ampla aquela que atingia a sociedade brasileira na sua totalidaderdquo 293 A crise poliacutetica

era lida pelo autor como um problema mesmo para a moral domeacutestica como se ndash

reeditando Balzac em terras tropicais ndash ao expulsar a famiacutelia imperial a repuacuteblica

tivesse expurgado a autoridade de todos os pais de famiacutelia da naccedilatildeo

Oscilando entre a crenccedila no progresso e os sintomas da decadecircncia uma auto-

proclamada ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo fundaria um ano antes do grande jubileu nacional a

Associaccedilatildeo do Quarto Centenaacuterio do Descobrimento do Brasil Seu manifesto seu

objetivo seu (como diriam no discurso de inauguraccedilatildeo do monumento aos

descobridores) ldquoprotestordquo era ao mesmo tempo uma afirmaccedilatildeo do presente uma

honraria ao passado e um projeto de futuro encaminhado pela ldquopujanccedila da geraccedilatildeo de

1900rdquo ndash testemunha ldquoeloquente do progresso da Arte neste famoso torratildeo americano

() oferenda immorredoura que os bons Brasileiros dedicam aacute Patriardquo 294

Ramiz Galvatildeo diretor da Biblioteca Nacional era o nome puacuteblico da

Associaccedilatildeo Entre colaboradores eventuais organizadores publicistas e escritores

reuniu em torno da causa comemorativa nomes como Capistrano de Abreu Olavo

Bilac mesmo Machado de Assis e Joseacute do Patrociacutenio chegando com sua lideranccedila a

arrefecer a influecircncia de liberais histoacutericos como Ruy Barbosa295 Diante da

diversidade de abordagens possiacuteveis Galvatildeo pretendia conduzir as comemoraccedilotildees no

sentido de promover trabalhos que no mesmo espiacuterito daqueles desenvolvidos

durante sua administraccedilatildeo da Biblioteca Nacional (1870-1882) celebrassem

ldquocondignamente a origem e o desenvolvimento da Nacionalidade Brasileirardquo 296

Mapeamento de fontes conservaccedilatildeo de cultura material organizaccedilatildeo de acervos

documentais realizaccedilatildeo de exposiccedilotildees e cerimocircnias ciacutevicas o drama comemorativo

em um setting montado por instrumentos nada estranhos agrave ciecircncia positiva visava

293 Ver WANDERLEY Marcelo da Rocha Jubileu Nacional A comemoraccedilatildeo do Quadricentenaacuterio

do Descobrimento do Brasil e a Refundaccedilatildeo da Identidade Nacional (1900) UFRJ 1998 dissertaccedilatildeo

que tomo por guia 294 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz O Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Imprensa Nacional Rio

de Janeiro 1900-1904 Vol IV p 174 295 WANDERLEY 1998 p 62 A partir de 1890 e de forma marcante apoacutes a conturbada presidecircncia de

Deodoro os governantes da repuacuteblica comeccedilam a advogar por poliacuteticas mais conciliatoacuterias para com a

heranccedila lusitana e imperial brasileira A posiccedilatildeo de Ramiz Galvatildeo era a esse respeito mais adequada

do que a de diversos republicanos histoacutericos Em 7 de setemebro de 1890 O Paiz ndash jornal simpaacutetico agrave

repuacuteblica ndash publica que Quaisquer que sejam as criacuteticas histoacutericas do feito do Ipiranga a Naccedilatildeo

brasileira natildeo esqueceraacute nunca que ( ) o Princiacutepe ( ) esqueceu os sentimentos de subordinaccedilatildeo e de

dever ao seu pai e ao seu Rei para proclamar a Independecircncia poliacutetica do povo cujos destinos dirigia

A Revoluccedilatildeo de 7 de setembro formou assim uma nova nacionalidade americanardquo apud NETO 1989 p

74 296 Estatutos In O Livro do Centenaacuterio op cit p 47 Citado tambeacutem por WANDERLEY 1998 p 65

99

conduzir o cidadatildeo rumo agrave auto-identificaccedilatildeo para com um personagem abstrato

definido narrativamente como brasileiro

Patrono da cadeira nove da Academia Brasileira de Letras preceptor ateacute

1889 do priacutencipe e baratildeo de Ramiz o tambeacutem professor do Coleacutegio D Pedro II

conquistou amplo tracircnsito no universo letrado carioca da virada do seacuteculo Atento ao

surto dos centenaacuterios Ramiz Galvatildeo vinha ao menos desde a exposiccedilatildeo camoniana de

1880 credenciando sua autoridade de oficiante reafirmada logo no ano seguinte com

o sucesso da Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do Brasil297 De certa maneira ele reeditava o

projeto do IHGB em seu ofiacutecio de ldquocoligir e organizar os elementos para os estudos

histoacutericos e geograacuteficos nacionais que se encontravam dispersos nas proviacutenciasrdquo 298

Mas ele tambeacutem o atualizava frente agrave urgecircncia comemorativa agrave proximidade da data

redonda como um apelo moral e pedagoacutegico agraves futuras geraccedilotildees

[A Associaccedilatildeo do Quarto Centenaacuterio teve] o intuito de

assentar um marco imorredouro na estrada de nossa

existecircncia nacional marco que assinale o esforccedilo

heroacuteico do passado e ao mesmo tempo sirva de estimulo

agraves geraccedilotildees futuras que tecircm de receber o legado quatro

vezes secular engrandececirc-lo e elevaacute-lo ao fastiacutegio da

prosperidade299

E como fazecirc-lo O registro mais perene dos trabalhos da Associaccedilatildeo agrave sombra

do bronze de seus monumentos comemorativos satildeo memoacuterias de papel O Livro do

Centenaacuterio (1500-1900) monumental obra coletiva que reunia nomes como

Capistrano de Abreu e Siacutelvio Romero tinha como objetivo confesso dizer ldquoao mundo

inteirordquo que a heranccedila europeacuteia ndash essa ldquoprogidiosa semente plantada pelos

Portuguezes ao fechar-se do seculo XVrdquo ndash havia finalmente germinado300 ldquoDe uma

raccedila inferior e engolfada na barbaria fez-se um povo que cresceu abriu os olhos aacute luz

297 Quando assume seus encargos frente agrave Associaccedilatildeo do Quarto Centenaacuterio derivada de uma

ldquoComissatildeo Centralrdquo comemorativa fundada em 1898 Ramiz Galvatildeo jaacute havia publicado os Anais da

Biblioteca Nacional (1876) realizado a supracitada exposiccedilatildeo Camoniana e tambeacutem a grande

Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do Brasil (1881) cuja publicaccedilatildeo do Cataacutelogo foi saudada por Joseacute Honoacuterio

Rodriguecircs como ldquode extraordinaacuteria importacircncia na historiografia brasileira natildeo somente por ser a

uacutenica em sua eacutepoca em termos universais como porque nada melhor se construiu no Brasil ()rdquo

formando uma ldquoressurreiccedilatildeo do passado e uma previsatildeo de futurordquo ver RODRIGUES Joseacute Honoacuterio

ldquoIntroduccedilatildeordquo In Cataacutelogo da Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do Brasil Brasiacutelia Editora da Universidade de

Brasiacutelia 1981 v1 pVII e X 298 BARBOSA Januaacuterio da Cunha ldquoDiscurso do Primeiro Secretaacuterio Perpeacutetuo do Institutordquo Revista

do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro IHGB 1839 t1 p 9 299 ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro do

Centenaacuterio (1500-1900) Rio de Janeiro Imprensa Oficial 1900 vol I p VII 300 Livro do Centenaacuterio vol 1 op cit p VII

100

da civilizaccedilatildeordquo sem o qual jamais esquecera liccedilotildees recebidas dos ldquomestres e da

experiecircnciardquo O Brasil havia trilhado o caminho do progresso e da liberdade

organizando-se como naccedilatildeo autocircnoma O grande jubileu era a forma de apresentaacute-lo

ao concerto das naccedilotildees ldquoEacute preciso demonstrar com factos que a Republica dos

Estados Unidos do Brasil natildeo eacute um mythordquo escreveu Coelho Neto301

O quarto volume do Livro do Centenaacuterio publicado mais tarde em 1910

reuniu um conjunto de artigos e estatutos referentes agrave proacutepria Associaccedilatildeo Sua

Memoacuteria Histoacuterica como foi chamada eacute uma fonte imprescindiacutevel para o estudo do

jubileu nacional e mais especificamente das poliacuteticas de memoacuteria do grupo Gecircnero

de certo duplamente comemorativo ou natildeo comemora ele a proacutepria comemoraccedilatildeo

Sua visatildeo do passado fazia-se clara jaacute na introduccedilatildeo

ldquoPrestar culto aos grandes homens que honraram a

nossa raccedila eacute certamente um dever ciacutevico de que se natildeo

exquecem os povos civilizados mas fazer a apotheose

da Patria festejando com esplendor a data mais solenne

de sua existencia equivale a uma synthese de

commemoraccedilotildees centenarias porque o seu unico nome

enfeixa todas as nossas glorias e alegriasrdquo 302

Seguir o exemplo ndash modelo para imitaccedilatildeo e autoridade ndash dos povos

civilizados Como se passou vinte anos antes em terras portuguesas com o centenaacuterio

de Camotildees as comemoraccedilotildees de 1900 seriam capitaneadas em paacuteginas de jornal

ldquoDas columnas editoriaes drsquoO Paiz partiu effectivamente o primeiro gritordquo lanccedilando

a ideia de emular no Rio de Janeiro uma das grandes ldquofeiras do progressordquo ndash essas

Exposiccedilotildees Universais Internacionais tatildeo ceacutelebres em propagandear os avanccedilos

materiais teacutecnicos comerciais e industriais de todas as naccedilotildees da terra A proposta

sabe-se natildeo vingou seja pelos percalccedilos da nascente repuacuteblica seja pelo ldquovecircso

funesto da procrastinaccedilatildeordquo que em finais do seacuteculo XIX ldquotanto retarda os nossos

passos no caminho do progressordquo 303

Projetos para o jubileu natildeo faltaram mas a ldquopoliacutetica absorvia ainda a atenccedilatildeo

geralrdquo dadas as ldquoferidas abertas no corpo da Naccedilatildeo por um periacuteodo de luctas

301 NETTO Coelho Gazeta de Notiacutecias 3 de Junho de 1898 302 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit Introducccedilatildeo 303 ldquoAmolentados pelo ardor dos tropicos costumamos deixar para a ultima hora aquillo que

apparelhado com tempo vagar e estudo meditado poderia ser feito com mais brilho e perfeiccedilatildeordquo Livro

do Centenaacuterio vol 4 op cit p 6-7

101

sangrentas e de desvarios lamentaacuteveisrdquo 304 A partir de 1898 no entanto a Gazeta de

Noticias adere agrave causa comemorativa publicando primeiro um poema dedicado a

Cabral depois um curioso artigo de Coelho Neto propondo que ldquofaccedilamos alguma

cousa para que natildeo se diga que somos indifferentesrdquo 305 Por traacutes desse apoio da

imprensa estava o nome de Ramiz Galvatildeo que em 27 de maio daquele ano publica

seu proacuteprio artigo na Gazeta O texto mostrava-se atento aos centenaacuterios europeus

evocava-lhes a autoridade mantinha-a como exemplo e solicitava a disposiccedilatildeo geral

de todos os ldquoBrasileiros patriotas para esta commemoraccedilatildeo histoacutericardquo 306

A estrateacutegia publicista do ex-diretor da Biblioteca Nacional farto de contatos

entre os homens das letras mostrava-se vitoriosa ldquoA briosa imprensa fluminense

assim como boa parte da imprensa dos Estadosrdquo escreveu Galvatildeo na memoacuteria

histoacuterica ldquoacceitou com calor o pensamento da commemoraccedilatildeordquo 307 Mais do que

isso parece ter arregimentado diversas vozes que dia-a-dia traziam em seus

editoriais palavras de apoio agrave organizaccedilatildeo das celebraccedilotildees paacutetrias Aquele coro no

centro do jornal toda manhatilde repetindo algo como ldquolembrai-vos do quarto centenaacuterio

do descobrimento do Brasil Ersquo necessario que faccedilamos alguma cousardquo 308 Repetir

redizer e reforccedilar de novo como se a pedagogia ciacutevica fosse espeacutecie de dever ldquoa

imprensa e as vaacuterias associaccedilotildees brasileiras devem dar o exemplo tractando de

espalhar a ideacutea pelos Estadosrdquo 309 A Memoacuteria Histoacuterica ainda compila os endossos

editoriais de diversos veiacuteculos da eacutepoca A Lavoura e A Cidade de Barbacena O

Estado de Satildeo Paulo o Jornal da Bahia a Gazeta de Petroacutepolis entre outros foram

tiacutetulos que participaram ativamente da campanha comemorativa310

E alguma coisa comeccedilou a ser feita No dia 4 de agosto de 1898 eacute fundada por

iniciativa de oficiais da Marinha do Brasil a primeira Comissatildeo Central do

Centenaacuterio Ramiz Galvatildeo e Manuel Pederneiras representantes da Gazeta e do

Jornal do Commercio satildeo chamados agrave reuniatildeo presidida pelo contra-almirante

304 IdemIbidem 305 ldquoNatildeo digo que festejemos o quarto anniversario do descobrimento do Brasil com uma Semana

Sancta () Eacute necessaacuterio fazermos alguma cousa () Essas festas preparam o espiacuterito do povo e vatildeo

constituindo a tradiccedilatildeo () Enfim seja como focircr o necessaacuterio eacute que faccedilamos alguma cousa para que

natildeo se diga que somos indifferentesrdquo NETTO Coelho Fagulhas Gazeta de Notiacutecias 25 de maio de

1898 306 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz O Centenaacuterio do Brasil Gazeta de Notiacutecias 27 de Maio de

1898 307 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit p 11 308 NETTO Coelho Gazeta de Notiacutecias 6 de Junho de 1898 309 NETTO Coelho Gazeta de Notiacutecias 3 de Junho de 1898 310 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit pp 10-17

102

Guillobel Demonstraccedilotildees religiosas festejos navais e militares uma exposiccedilatildeo

retrospectiva brasileira terminando em 15 de Novembro de 1900 e uma exposiccedilatildeo

nacional projetada para apresentar ao mundo os progressos da naccedilatildeo ndash esse era o

plano inicial das comemoraccedilotildees acompanhado pela edificaccedilatildeo de duas estaacutetuas de

Pedro Alvares Cabral uma em Porto Seguro outro no Rio de Janeiro e de verbas

para a construccedilatildeo de um Asilo de Invaacutelidos da Marinha (que levaria o nome do

descobridor) Sem esquecer eacute claro de festejos populares e da tradicional queima de

fogos

Sob a presidecircncia do contra-almirante Joseacute Candido Guillobel Ramiz Galvatildeo

e Paulo de Frontin vice-presidentes a Comissatildeo dava os primeiros passos rumo a uma

proposta de financiamento A ideia era a manutenccedilatildeo ao longo do ano de 1899 de

uma ldquotaxa commemorativardquo de quatro por cento sobre a parte dos direitos de

importaccedilatildeo Dessa vez no entanto as vozes puacuteblicas natildeo seriam unacircnimes No dia 16

de agosto a folha vespertina A Notiacutecia chama a taxa de ldquoOnus dispensavelrdquo Essa

criacutetica adiantou a decisatildeo da Cacircmara que de fato ignorou a mateacuteria durante a leitura

do projeto de orccedilamento da receita Assustados os diretores da Comissatildeo ldquoapenas

tiveram tempo para correr aacute Camara e conseguiram de alguns amigos intervenccedilatildeo

immediata para que nem tudo se perdesserdquo Mas nem a amizade de Nilo Peccedilanha seria

suficiente a primeira emenda do requerimento relativa agrave taxa comemorativa foi

recusada em nome do interesse dos consumidores que vivendo em um paiacutes que

importava boa parte de suas manufaturas pagariam a conta311

25 A naccedilatildeo editada ou o Livro do Centenaacuterio

Logo no iniacutecio de 1899 natildeo restou alternativa aos membros da Comissatildeo Sem

financiamento estatal a proposta de transformaacute-la em Associaccedilatildeo distribuir tiacutetulos de

soacutecios benemeacuteritos contribuintes foi aceita com entusiasmo Ramiz Galvatildeo e Paulo

Frontin a sua frente a primeira diretoria teve ainda um oficial do baixo escalatildeo do

exeacutercito e nenhum membro da marinha Pouco menos de um mecircs mais tarde em 8 de

fevereiro assumiu como presidente o almirante Balthazar da Silveira ex-governador

do Rio de Janeiro sob a presidecircncia de Floriano Peixoto

311 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit p 41-42

103

O novo plano comemorativo entretanto jaacute havia sido aprovado e nele

percebemos a retirada das demandas da Marinha do Brasil nada de verbas para asilos

de Invaacutelidos nem estaacutetuas de Pedro Alvares O foco agora havia mudado

radicalmente Do bronze ao papel o grande monumento comemorativo tornou-se o

Livro do Centenaacuterio ainda que em suas paacuteginas o descobridor continuasse a adornar

o centenaacuterio como seu grande homem312 O navegador ndash orientado pelo tempo escrito

nas estrelas o ano da efemeacuteride ndash era conjurado de volta agrave vida e quiccedila mareado suas

gestas agrave deriva nas ondas comemorativas encontrava ainda haacutebeis timoneiros nas

figuras de Galvatildeo e Frontin ldquoPanteotildees diversosrdquo dos ldquojazigos monumentaisrdquo esses

construiacutedos natildeo de ldquopedra e calrdquo ou ldquomaacutermore e bronzerdquo mas da ldquopalavra solene da

histoacuteriardquo Ainda assim um guia para o ldquoespiacuterito da mocidaderdquo cadinho de virtudes

como exemplo agraves novas geraccedilotildees ora elevado a ldquoum culto especial para os mortosrdquo

Foacutermula que natildeo era estranha agrave historiografia nacional do seacuteculo XIX313

O Livro do Centenaacuterio (1500-1900) foi originalmente dividido em 16

memoacuterias confiadas a ldquodistinctos especialistasrdquo muito embora ao final mais de 23

autores tenham colaborado com a monumental obra coletiva A memoacuteria que

inaugura o livro foi redigida por Capistrano de Abreu Eacute em ldquoo Descobrimento do

Brasilrdquo que encontramos sua famosa tese a respeito do ldquodescobrimento socioloacutegicordquo

portuguecircs produto final da discussatildeo oitocentista em torno dos possiacuteveis preceptores

de Cabral em terras de Vera Cruz Pouco mais tarde essa tese vai dialogar

diretamente com o parecer da Comissatildeo de Histoacuteria a respeito dos estudos de Joseacute

Feliciano de Oliveira Em O Descobrimento do Brasil esboccedilo de uma apreciaccedilatildeo

histoacuterica vemos a persistecircncia das velhas discussotildees sobre a premeditaccedilatildeo ou a

casualidade do feito de Cabral De acordo com o bispo Correa Nery a descoberta

poderia ser vista como fruto da forte feacute de Portugal314

Muito mais edificante era a memoacuteria que se seguia escrita pelo Padre Julio

Maria ndash sobre ldquoa religiatildeo ordens religiosas instituiccedilotildees pias e beneficientes do

Brasilrdquo Padre Maria dividia a histoacuteria do catolicismo brasileiro em trecircs quadros de

ferro associados cada um a certo estado do espiacuterito moral Sua ordem Agrave colocircnia o

esplendor ao Impeacuterio a decadecircncia agrave Repuacuteblica o combate315 Combate que teria

312 Idem pp 51-55 313 PORTO ALEGRE Manuel de Arauacutejo Iconografia Brasileira RIHGB t 19 p 349-350 1856 314 RIHGB 1905 p 265-66 315 ldquoO periacuteodo da Republica natildeo poacutede ser ainda para a religiatildeo como foi o colonial o esplendor Natildeo eacute

tambeacutem como foi o do impeacuterio a decadecircncia Ersquo natildeo poacutede deixar de ser ndash o periodo do combaterdquo

104

iniciado contra o regalismo a submissatildeo que disfarccedilada de uniatildeo catoacutelica entre

Estado e Igreja soacute fazia desmerecer a uacuteltima atraveacutes da tirania secularizadora da

coroa ilustrada316 Grande adversaacuterio do positivismo contra quem abriu ldquocombate de

morterdquo Padre Maria julgava que o impeacuterio ldquopelo enfraquecimento das ordens

religiosas pelo desprestiacutegio do clero pela rapidez da reacccedilatildeo catholica na questatildeo

religiosa () pelo racionalismo e o scepticismo das classes dirigentes ()rdquo foi a

ldquodecadecircncia da religiatildeordquo 317 Nesse exame moral as expectativas cristatildes para com a

repuacuteblica haviam se alargado imaginando que a ldquoeducaccedilatildeo leiga [a] secularizaccedilatildeo

da eschola [entre] outros manjares da cozinha positivista por muito provados jaacute natildeo

regalam o paladar de nossa eacutepocardquo 318

Em uma leitura que creditava reunir Cesar Cantugrave Hippolyte Taine e Jacques-

Beacutenigne Bossuet o autor da segunda memoacuteria definia a histoacuteria como a ldquosciencia que

ligando o presente ao passado como o effeito aacute causa e os meios ao fim transporta

para a ordem eterna do universo as leis que regem o mundo moralrdquo 319 A histoacuteria

universal como um ldquolongo encadeamento de causas particularesrdquo dependeria em

uma matriz celestial e logo necessaacuteria das ldquoordens secretas da Providecircncia

divinardquo320 Padre Maria natildeo se acanhava em considerar o proacuteprio ldquodescobrimento da

Ameacuterica um facto providencial de induacutestria preparado por Deus para compensaccedilatildeo e

MARIA Padre Julio A religiatildeo ordens religiosas instituiccedilotildees pias e beneficientes do Brasil Livro do

Centenaacuterio (1500-1900) op cit vol 1 p 123 Notar que a numeraccedilatildeo do Livro do Centenaacuterio reinicia sua

contagem em cada memoacuteria 316 Neste ponto ao comentar a questatildeo religiosa Padre Maria parece voltar-se contra a ala

ultramontana que defendia a religiatildeo de Estado e reafirmava a base catoacutelica do regime imperial A

disputa com a maccedilonaria levou o gabinete Rio Branco ndash ele mesmo gratildeo-mestre de duas lojas ndash a

processar os bispos por desobediecircncia civil os quais seriam anistiados pouco mais tarde por Sinimbu

Diversas leituras morais da crise pulularam neste cenaacuterio Para Mendes de Almeida a laicizaccedilatildeo do

Estado enfraquece ldquoo espiacuterito () arrasta-o a maior corrupccedilatildeo e deperecimento moral () Esta

civilizaccedilatildeo tem dado exclusiva atenccedilatildeo agraves ciecircncias fiacutesicas e agraves invenccedilotildees industriais () desprezando a

verdade religiosardquo ALMEIDA Mendes de Anais do Senado do Impeacuterio 3061873 Para Candido

Mendes a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado era uma excentricidade revolucionaacuteria francesa sendo

necessaacuterio manter a ldquosupremacia da lei moral sobre a poliacutetica ou a civilrdquo MENDES Cacircndido Anais do

Senado do Impeacuterio 1031872 Ver ALONSO op cit p 89 317 MARIA Padre Julio op cit p 107 A frase ldquoabri combate de morte contra o Positivismordquo ndash

referindo-se as suas publicaccedilotildees jornaliacutesticas aparece mais a seguir na paacutegina 122 318 Idem 104 Grifos originais 319 ldquoErsquo certo que a histoacuteria natildeo eacute a chronica nem a gazeta eacute a harmonia do verdadeiro do bello e do

bomrdquo Idem 5 E continua citando CANTUgrave Cesar Histoire universelle Lacombe Paris 1883 ldquoDahi eacute

que decorre a necessidade de se exigir da histoacuteria a foacutermula de seus phenomenos e tambem a

necessidade de combinar-se o seu elemento livre accidental humano com o seu elemento essencial

immutavel divinordquo 320 ldquoMais souvenez-vous monseigneur que ce long enchaicircnement des causes particuliegraveres qui font et

deacutefont les empires deacutepend des ordres secrets de la divine Providence () Dieu excerce par ce moyen

ses redoutables jugements selon les regravegles de as justice toujours infaillible () Ne parlons plus de

hasard ni de fortune ou parlons-en seulement comme dacuteun nom dont couvrons notre ignorancerdquo

BOSSUET Discours sur lrsquoHistoire Universelle Garnier Fregraveres Paris p 421-422

105

equiliacutebrio das perdas que na Europa o protestantismo acarretou aacute Egrejardquo Se para noacutes

os grandes homens o satildeo pelo trabalho de enquadramento dos mecanismos morais e

poliacuteticos da memoacuteria para o historiador do catolicismo brasileiro eles nasciam do

recebimento de uma ldquomissatildeo divinardquo Ou Pedro Alvares grande homem natildeo o foi jaacute

por ter recebido o santo encargo ldquofazendo enfim do Brasil um novo scenario dado

ao christianismordquo 321

ldquoQuadro fiel da marcha do gecircnero humano atraveacutes dos seacuteculosrdquo a histoacuteria eacute

compreendida como um ldquomovimento geralrdquo cujo sentido eacute encadeado do Alfa

atraveacutes de suas causas particulares (do ldquopoliacutetico juriacutedico scientifico litterario

industrial artiacutestico das naccedilotildeesrdquo etc) rumo ao Omega ldquoo fim () destino da

humanidaderdquo ndash seu inevitaacutevel reencontro com Deus lido a partir de Deschamps

(Oeuvres Tomo II parte 2)322 Do ponto de vista da ordem terrena daquilo que eacute do

homem a nacionalidade poderia ser definida ainda a partir de nossos aspectos

morais ldquoNatildeo compreendordquo disse o autor ldquoque se possa escrever uma memoacuteria

histoacuterica () onde o inicio e o desenvolvimento de nossa nacionalidade () os usos e

os costumes ndash [natildeo estejam] identificado[s] com as crenccedilas religiosas de nossos

antepassadosrdquo A identidade entre dois personagens abstratos ndash o Brasil e o brasileiro

ndash soacute poderia ser entendida atraveacutes do catolicismo ndash ldquocatholicismordquo que emprestando

suas caracteriacutesticas ldquoformou nossa nacionalidaderdquo 323

Com seus sacerdotes desacreditados ndash pontes de ligaccedilatildeo com o mundo

superior interditadas ndash os rumos da proacutepria histoacuteria brasileira eram desorientados pelo

quadro de dissoluccedilatildeo dos costumes Nesse periacuteodo ingloacuterio marcado pelo ceticismo e

pelo ateiacutesmo cientificista natildeo haacute ldquoum soacute que tenha nas matildeos a bandeira das ideacuteas

grandes das grandes verdades moraes que nas eacutepochas de decadecircncia retemperam os

povos e salvam as naccedilotildeesrdquo 324 Mas a situaccedilatildeo natildeo mudaria magicamente com o fim

do Impeacuterio A crise brasileira natildeo dependia afinal de contas das formas de

321 ldquoConsiderando neste trabalho o descobrimento da America um facto providencial de industria

preparado por Deus para compensaccedilatildeo e equilibrio das perdas que na Europa o protestantismo

acarretou aacute Egreja dando a Pedro Alvares Cabral uma missatildeo divina fazendo enfim do Brasil um

novo scenario dado ao christianismo diratildeo talvez que eu faccedilo do Discurso sobre a Histoacuteria

Universal essa obra prima de Bossuet o modelo a regra o limite dos quadros e narraccedilotildees da

Histoacuteriardquo MARIA Padre Julio op cit p 6 322 Idem p 7 Grifos originais 323 Idem p 7 324 Idem p 105

106

governo325 Ela eacute uma ldquocrise moral resultante da profunda decadencia religiosa desde

o antigo regimen das classes dirigentes da naccedilatildeo e que soacute poacutede ser resolvida por uma

reacccedilatildeo catholicardquo 326 Mais do que um convite a refletir a comemoraccedilatildeo do

quadricentenaacuterio convocava o ldquoespiacuterito pensadorrdquo ndash nesse ponto do tempo em que os

paralelos se encontram ndash a reviver e se deixar convencer pela autoridade moral dos

exemplos fundadores ldquonunca maior missatildeo se deparou agrave egreja em nosso paizrdquo 327

Missatildeo divina esse convite de Deus agrave ldquoreconstrucccedilatildeo moral da sociedaderdquo 328

O que deveriacuteamos entatildeo reconstruir ou reparar moralmente Com padre

Maria a comemoraccedilatildeo como em sua forma elementar religiosa (re-ligare) fazia

cantar e escutar o Te Deum em toda ocasiatildeo festiva ao menos ateacute suas histoacuterias

unirem-se em um singular coletivo capaz de distinguir e clarificar ndash por vezes em uma

uacutenica e longa dissertaccedilatildeo ndash os designiacuteos da identidade nacional ouvida agora desde as

margens tranquilas de um ceacutelebre riacho Em sua expressatildeo mais sincera fundamental

e edificante a comemoraccedilatildeo proposta por Padre Maria enquadrava a memoacuteria

brasileira a partir do catolicismo ao mesmo tempo em que exortava um retorno agrave

confessatildeo ancestral

A proacutepria ldquocrise moralrdquo contra a qual Padre Maria cerrava os punhos tornava

evidente o brasileiro jaacute era lembrado como algo mais do que simplesmente catoacutelico

Siacutelvio Romero escrevendo outra memoacuteria retoma alguns aspectos de sua Histoacuteria da

Litteratura Brasileira Realizou na verdade uma leitura filiada a Spencer ndash em seu

apego agrave dinacircmica entre progresso e decadecircncia ndash do desenvolvimento das belas letras

em nosso paiacutes329 Outrora modelo no iniacutecio do seacuteculo XIX Portugal jaacute natildeo o era mais

como explicava Romero ldquoSob a influecircncia da navegaccedilatildeo directa a vaporrdquo a Franccedila

325 Ersquo aacute religiatildeo natildeo a esta ou aacutequella forma de governo que a Providecircncia Divina mostra na sucessatildeo

dos factos e na corrente dos acontecimentos o desiacutegnio misericordioso de fazer reviver na terra do

Cruzeiro retemperada e triunphante a feacute que animou os nossos descobridores Idem p 130 326 Idem p 130 327 Idem p 124 328 Ersquo ao catholicismo natildeo a um partido poliacutetico que manifestadamente na hora presente Deus

convida aacute reconstrucccedilatildeo moral da sociedade Idem p 130 329 O autor chega a inclui a si mesmo ndash ao lado de Clovis Bevilaqua ndash como um expoente da ldquocorrente

spencerianardquo da criacutetica nacional ROMERO Sylvio Litteratura In Livro do Centenaacuterio (1500-1900)

vol 1 op cit p 124 Para Angela Alonso esse tipo de filiaccedilatildeo intelectual autoproclamada deveria ser

entendida como um elemento constituidor da identidade de um grupo que acessando um repertoacuterio

teoacuterico internacional ndash seja via Revue des Deux Mondes seja via Quaterley Review ndash fazia um

determinado uso poliacutetico de suas ferramentas conceituais Nas palavras da socioacuteloga ldquoCategorias como

lsquodarwinismorsquo lsquopositivismorsquo lsquoliberalismorsquo sofreram apropriaccedilotildees redefiniccedilotildees usos poliacuteticos Isso eacute

evidente nas polecircmicas entre facccedilotildees termos como lsquopositivistas laffitistasrsquo e lsquolittreiacutestasrsquo [Miguel

Lemos] lsquodarwinistasrsquo e lsquospencerianosrdquo () foram criados nas controveacutersias As categorias satildeo

constrativas exprimem relaccedilotildees entre grupos a proacutepria nomeaccedilatildeo eacute uma arma em meio a conflitos de

definiccedilatildeo de identidades ALONSO 2002 p 32 Grifos Meus

107

havia assumido tal posiccedilatildeo ldquoO brasileiro supposto egual ao europecirco julga[va]-se o

primeiro povo drsquoAmericardquo Ora jaacute com a guerra do Paraguay ldquoproblemas politicos e

sociaes varios novos ideaes philosophicos abre-se um periodo de reacccedilatildeo

pessimisticardquo marcado pela preponderacircncia germacircnica jaacute no contexto da grande

vitoacuteria de 1871 Ao sabor dos tempos emprestaacutevamos conceitos ideias aqui noccedilotildees

acolaacute Embora ainda fosse cedo para falar em antropofagia cultural ndash o vocabulaacuterio

era certamente outro ndash na sua ldquoespeacutecie de balanccedilo ethnographicordquo o criacutetico literaacuterio

havia chegado agrave conclusatildeo de que o ldquoser genuiacuteno brasileirordquo era ldquopura e simplesmente

o mesticcedilo physico ou moralrdquo 330

O problema da raccedila jaacute fazia parte do repertoacuterio do IHGB pelo menos desde a

famosa dissertaccedilatildeo de Karl Von Martius escrita em 1843 mas publicada na revista do

instituto em 1865 Como se deve escrever a histoacuteria do Brasil apresentava a

necessidade de se pensar na tarefa de narrar o passado do paiacutes ldquoos elementos que ahi

concorreratildeo para o desenvolvimento do homemrdquo331 Com a autoridade de um

naturalista que entre 1817 e 1820 tinha desbravado as selvas amazocircnicas a mando do

rei da Bavaria Martius havia chegado agrave conclusatildeo de que as peculiaridades das

populaccedilotildees brasileiras eram fruto da fusatildeo de trecircs raccedilas ldquoa de cocircr cobre ou americana

a branca ou caucasiana e enfim a negra e ethiopicardquo Ao lado das costumeiras

atribuiccedilotildees morais relacionadas agrave ldquopequena paacutetriardquo ndash aos normandos e saxotildees de

Walter Scott ou aos Gauleses e Francos de um Montesquieu ndash as raccedilas de Martius

agora possuiam cor Cores e costumes que carregavam tambeacutem a chave do

entendimento dos destinos do desenvolvimento nacional ldquocada uma das

particularidade physicas e moraes que distinguem as diversas raccedilas offerece a este

respeito um motor especialrdquo332

O vocabulaacuterio de Martius seguia de perto os estudos de anatomia comparada

realizados anos antes na Alemanha por Johan Friedrich Blumenbach Embora o autor

dos Elementos de Fisiologia fosse um defensor da monogenia cristatilde e das teorias de

degeneraccedilatildeo ele natildeo via as raccedilas negras e americanas como definidamente inferiores

mesmo que seus comentaacuterios a esse respeito tenham sido pouco impactantes Pelo

contraacuterio sua obra parece mesmo ter contribuiacutedo para o desenvolvimento do

330 Idem p 7 Grifos originais 331 MARTIUS Karl Friederich Phillipe von Como se deve escrever a histoacuteria do Brasil RIHGB Rio

de Janeiro 1865 t6 2 Ed pp 389-411 In GUIMARAtildeES Manuel Luiz Salgado Livro de Fontes de

Historiografia Brasileira Rio de Janeiro Eduerj 2010 p 63 332 Idem p 64

108

cientificismo racioloacutegico do seacuteculo XIX333 Nela estavam presentes as descriccedilotildees

fisioloacutegicas de cinco raccedilas humanas das quais trecircs seratildeo identificadas no Brasil de

Martius334

Eacute sem surpresa portanto que Martius fala em ldquoraccedilas inferioresrdquo ao mesmo

tempo em que encontra espaccedilo para saudar a miscigenaccedilatildeo dos elementos negros

iacutendios e brancos Mais do que isso a fusatildeo eacutetnica eacute percebida como uma verdadeira

obra da Providecircncia que reuniu no Novo Mundo ldquouma ao lado da outra de uma

maneira desconhecida na histoacuteria antigardquo trecircs raccedilas humanas junto agraves ldquocondiccedilotildees para

o [seu] aperfeiccediloamentordquo335 Essa era a ldquoactividade historicardquo cujo Impeacuterio de Brasil ndash

a quem o historiador ldquocomo autor Monarchico-Constitucionalrdquo deve servir ndash era

chamado a realizar a perfectibilidade fiacutesica e moral natural e humana das

populaccedilotildees brasileiras336 Para Martius o Brasil das trecircs raccedilas era um grande

experimento divino que chamava as atenccedilotildees racionais da filosofia natural e da

filosofia moral reunificadas sob a eacutegide do vocabulaacuterio e dos instrumentos

taxonocircmicos das novas ciecircncias

Na Europa do iniacutecio do seacuteculo XIX enquanto Karl Von Martius preparava-se

para passar algumas temporadas no Brasil geoacutelogos naturalistas e filoacutelogos eram

chamados a oferecer modelos explicativos aos saacutebios obcecados pela busca das

origens Uma das heranccedilas da revoluccedilatildeo ndash da abertura de um tempo novo que por sua

proacutepria definiccedilatildeo natildeo poderia buscar raiacutezes em nenhum passado muito longiacutenquo ndash

333 Sobre essa questatildeo ver FREDRICKSON George M Racism A Short History Princeton University

Press 2002 principalmente pp 56-58 ldquoWhatever their intentions Linnaeus Blumenbach and other

eighteenth-century ethnologists opened the way to a secular or scientific racismrdquo p 57 334 ldquoThus among the five varieties into which I would divide the human race in the first which may be

termed Caucasian and embraces Europeans (except the Laplanders and the rest of the Finnish race)

the western Asiatics and the northern Africans it is more or less white In the second or Mongolian

including the rest of the Asiatcs (except the Malays of the peninsula beyond the Ganges) the Finnish

races of the north of Europe as the Laplanders ampc and the tribes of Esquimaux widely diffused over

the most northern parts of America it is yellow or resembling box-wood In the third or Ethiopian to

which the remainder of the Africans belong it is of a tawny or jet black In the fourt or American

comprehending all the Americans excepting the Esquimaux it is almost copper coloured and in some

of a cinnamon and as it were ferruginous hue In the fifth or Malaic in which I include the

inhabitants of all teh islands in the Pacif Ocean and of the Philippine and Sunda and those of the

peninsula of Malaya it is more or less brown ndash between the hue of fresh mahogany and that of cloves

or chesnutsrdquo BLUMENBACH Friedrich Johan The Elements of Physiology Elliotson John (trans) 4

ed London Longman Rees Orme Brown and Green Paternoster-Row 1828 pp 174-175 335 Idem 66 336 ldquoEm a classe baixa tem lugar esta mescla e como das inferiores e por meio drsquoellas se vivificam e

fortalecem assim se prepara actualmente na ultima classe da populaccedilatildeo brasileira essa mescla de raccedilas

que drsquoahi a seculos influira poderosamente sobre as classes elevadas e lhes communicaraacute aquella

actividade historica para a qual o Imperio do Brasil eacute chamadordquo Idem p 86 () ldquoNunca esqueccedila pois

o historiador do Brazil que para prestar um verdadeiro serviccedilo aacute sua paacutetria deveraacute escrever como autor

Monarchico-Constitucional como unitaacuterio no mais puro sentido da palavrardquo Idem p 86

109

foi ser responsaacutevel por uma intensa mobilizaccedilatildeo pelo reconhecimento de algum

ldquomotorrdquo (como diria Martius) da histoacuteria nacional Sylvain Venayre escrevendo a

respeito do caso francecircs afirma que alguns historiadores ldquosobretudo falavam de

naccedilatildeordquo e essa ldquosimples palavra parecia os autorizar a procurar na histoacuteria as

qualidades lsquonativasrsquo da Franccedilardquo337 Guizot Thierry Michelet Quinet e mais tarde

Fustel de Coulanges Taine e Vidal de la Blache todos pareciam a sua maneira

interessados nessa discussatildeo Discussatildeo que nos conta um pouco da histoacuteria daquilo

que mais tarde jaacute no seacuteculo XX atenderaacute pelo nome de ldquoidentidade nacionalrdquo

Da teoria das ldquoduas naccedilotildeesrdquo francesas ndash essa cisatildeo ancestral de supostas

repercussotildees classistas ndash passamos a medida em que nos afastamentos do periacuteodo

revolucionaacuterio ao evocar incessante das imagens de unidade338 Apoacutes 1871 os

estudos racioloacutegicos vinculados agraves ciecircncias naturais comeccedilam a sofrer oposiccedilatildeo

ldquoCiecircncia alematilderdquo agora contraposta agraves ldquoconcepccedilotildees francesasrdquo como mostrou

Venayre eacute uma elaboraccedilatildeo que aparece com a perda da Alsaacutecia-Mosela e ela tambeacutem

eacute concomitante com o prestiacutegio do novo impeacuterio alematildeo No Brasil Siacutelvio Romero

vem falar dos ldquonovos ideaes philosophicosrdquo ideias vindas da Alemanha que

exatamente nesse momento abrem um ldquoperiodo de reacccedilatildeo pessimisticardquo O

repertoacuterio da decadecircncia e a criacutetica da ldquodissoluccedilatildeo dos costumesrdquo encontra focirclego

renovado ao apropriar-se do prestiacutegio das novas taxonomias raciais

Mesmo que Ernest Renan como vimos tenha em sua conferecircncia de 1882

desacreditado a instrumentalidade poliacutetica da categoria de raccedila diversos de seus

contemporacircneos mesmo na Franccedila natildeo haviam abandonado esse vocabulaacuterio339

Muitos deles eram constantemente lembrados entre os ldquodistinctos especialistasrdquo

chamados a escrever as tais memoacuterias centenaacuterias Hyppolyte Taine era um deles

Com Taine temos a ceacutelebre foacutermula da Raccedila do meio e do momento Ou como ele

337 VENAYRE Sylvain Les Origines de la France quand les historiens racontaient la nation

LrsquoUnivers historique Paris Seuil 2013 p 14 338 A Franccedila de Michelet ndash que por vezes com ela conversava em meios aos seus textos usando o

familiar ndash era uma assimiladora de espiacuteritos uma conversora de paixotildees Ao contraacuterio da Alemanha

que nunca possuiu e da Itaacutelia que haacute muito deixou de ter a Franccedila sim ldquotem um centrordquo Ela era

ldquouacutenica e identica depois de vaacuterios seacuteculosrdquo e merecia ser considerada como ldquouma pessoa que vive e

morrerdquo A Franccedila atraiu absorveu e identificou franceses na Inglaterra na Alemanha mesmo na

Espanha neutralizando ldquoum pelo outro e convertido todos a sua substacircnciardquo MICHELET Jules

Introduction a lrsquoHistoire Universelle Suivi du discours drsquoouverture 3a ed Paris L Hachette 1843 p

5 339 VENAYRE 2013 chama a atenccedilatildeo para o caraacuteter oportunista da oposiccedilatildeo de Renan ndash entendida

como uma oposiccedilatildeo ao germanismo ndash ao conceito de raccedila

110

mesmo explicou ldquoa mola interior a pressatildeo de fora e a impulsatildeo jaacute adquiridardquo340 O

autor das Origens da Franccedila Contemporacircnea era um tanto desconfiado da erudiccedilatildeo a

histoacuteria para ele natildeo deveria ser escrita a partir dos fenocircmenos superficiais que

emergem na leitura das fontes Pelo contraacuterio era preciso entender as suas causas

mais profundas ldquoQue os fatos sejam fiacutesicos ou morais natildeo importa eles tecircm sempre

causas () o viacutecio e a virtude satildeo produtos como o sulfato e o accediluacutecarrdquo disse em uma

de suas mais citadas frases341

A naturalizaccedilatildeo da moral natildeo era no entanto direta e absoluta Para continuar

usando o vocabulaacuterio do autor a proacutepria passagem de uma ldquoreligiatildeo disciplinarrdquo para

uma ldquoreligiatildeo moralrdquo demandou a criaccedilatildeo e ediccedilatildeo de doutrinas ritos e mesmo de

uma arquitetura sacra 342 Os trecircs conceitos fundamentais ndash a ordem das causas ndash natildeo

cessavam de se entrecruzar formando um ldquosistema de sentimentos e ideias humanasrdquo

sistema que tinha como motor alguns traccedilos gerais ldquocertos caracteres de espiacuteritordquo

comuns aos ldquohomens de uma raccedila de um seacuteculo ou de um paiacutesrdquo 343 Mesmo a raccedila

causa ldquouniversal e permanente presente a cada momento e a cada casordquo demonstraria

variaccedilotildees ao longo do tempo e do espaccedilo pela accedilatildeo do meio e do momento344 Nesse

sistema de sentimentos poderiacuteamos definir o caraacuteter de um povo ldquocomo o resumo de

todas as suas accedilotildees e de todas suas sensaccedilotildees precedentes ou seja como uma

quantidade e como um peso natildeo infinitordquo 345

Ainda que estivessemos em um clima intelectual alimentado constantemente

de analogias comparaccedilotildees ou importaccedilotildees diretas de conceitos desenvolvidos sob a

oacuterbita cientiacutefica do evolucionismo bioloacutegico a raccedila enquanto elemento mais

340 TAINE H Histoire de la litteacuterature anglaise T 1 Paris Librarie de L Hachette 1866

Introduction p XXXIV O conceito de raccedila em Taine parece natildeo ter uma filiaccedilatildeo eminentemente

bioloacutegica lido talvez como paralelo ao conceito de Volk em Herder 341 ldquoQue les faits soient physiques ou moraux il nacuteimporte ils ont toujours des causes il y en a pour

lacuteambition pour le courage pour la veacuteraciteacute comme pour la digestion poacuteur le mouvement musculaire

pour la chaleur animale Le vice et la vertu sont des produits comme le vitriol et le sucre et toute

donneacutee complexe naicirct par la rencontre dacuteautres donneacutes plus simples dont elle deacutependrdquo Idem p XV

Grifos meus 342 Idem XVI 343 ldquoIl y a donc un systegraveme dans les sentiments et dans les ideacutees humaines et ce systegraveme a pour moteur

premier certains traits geacuteneacuteraux certains caractegraveres dacuteesprit et de coeur communs aux hommes dacuteune

race dacuteun siegravecle ou dacuteun paysrdquo Idem p XVIII 344 ldquoCe sont lagrave les grandes causes car ce sont les causes universelles et permanentes preacutesentes agrave

chaque moment et en chaque cas ()rdquo Idem p XVII Taine explica que as diferenccedilas fundamentais

entre povos germacircnicos e latinos ndash ambos de suposta origem ariana ndash seriam derivadas do clima

mediterracircnico e noacuterdico instacircncias determinadoras de seus ldquocaracteres de espiacuterito suas formas mais

gerais de pensar e de sentirrdquo Idem p XVI-XVII 345 ldquoEn sorte quacuteagrave chaque moment on peut considegraverer le caractegravere dacuteun peuple comme le reacutesumeacute de

toutes ses actions et de toutes ses sensations preacuteceacutedentes cacuteest-agrave-dire comme une quantiteacute et comme un

poids non pas infinirdquo Idem XXV

111

invariaacutevel das foacutermulas sociais natildeo definiria mecanicamente uma nacionalidade Ou

acaso ela natildeo poderia ser moldada pelo efeito de outras causas fundamentais O meio

(natural poliacutetico e social) composto por essas ldquoforccedilas exterioresrdquo encontraria nos

discursos poliacutetico e morais dos oficiantes da velha repuacuteblica os instrumentos

necessaacuterios para que moldasse a ldquomateacuteria humanardquo346 O momento eacute verdade natildeo

poderia parecer mais propiacutecio a Grande Data o jubileu nacional instante em que os

reloacutegios da naccedilatildeo ecoavam os sinos comemorativos dobrados por um punhado de

intelectuais e publicistas da naccedilatildeo ldquoQuando o caraacuteter nacional e as circunstacircncias do

ambiente operamrdquo escreveu Taine ldquoelas natildeo operam em uma taacutebula rasardquo Trata-se

de uma lousa na qual as impressotildees jaacute estatildeo marcadas347 Marcada por uma missatildeo

divina ou um dever ciacutevico encarrilhar a locomotiva nacional nos trilhos de ferro do

progresso era tarefa que partindo de caminhos a lembrar e atalhos a esquecer

alcanccedilava enfim ao tocar o problema da raccedila os contornos bem definidos de uma

poliacutetica de atropelamento eacutetnico

O Brasil natildeo eacute o iacutendio este onde a civilizaccedilatildeo ainda natildeo

se extendeu perdura com os seus costumes primitivos

sem adeantamento nem progresso Descoberto em 1500

pela frota portugueza ao mando de Pedro Alvares

Cabral o Brasil eacute a resultante directa da civilizaccedilatildeo

occidental trazida pela immigraccedilatildeo que lenta mas

continuamente foi povoando o soacutelo A religiatildeo a mais

poderosa focircrccedila civilizadora da epocha internou-se pelos

longincuos e invios sertotildees brasileiros e sob o influxo de

Nobrega e Anchieta conseguiu assimilar nuacutemero

consideraacutevel de aborigenes que assim se incorporaram aacute

Naccedilatildeo Brasileira Os silviacutecolas esparsos ainda

abundam nas nossas magestosas florestas e em nada

differem dos seus ascendentes de 400 annos atraacutes natildeo

satildeo nem podem ser considerados parte integrante da

nossa nacionalidade a esta cabe assimila-los e natildeo o

conseguindo elimina-los348

346 O meio eacute definido por Taine como ldquoles puissances exteacuterieures qui faccedilonnent la matiegravere humaine et

par lesquelles le dehors agit sur le dadansrdquo Idem p XXIX 347 ldquoQuand le caractegravere national et les circonstances environnantes opegraverent ils nacuteopegraverent point sur une

table rase mais une table ougrave des empreintes sont deacutejagrave marquegravees Selon quacuteon prend la table agrave un

moment ou agrave un autre lacuteemoreinte est diffeacuterente et cela suffit pour que lacuteeffet total soit diffeacuterentrdquo p

XXIX-XXX 348 FRONTIN Paulo de Sessatildeo Magna do Centenaacuterio no dia 4 de Maio de 1900 Livro do Centenaacuterio

1500-1900 Vol 4 Memoacuteria Histoacuterica p 187 Grifos Meus

112

Temos o direito de nos sentir chocados com essa passagem mas para analisaacute-

la creio ser necessaacuterio comeccedilar afirmando que as referecircncias aos padres Manuel da

Noacutebrega e Antocircnio Vieira natildeo satildeo em nada aleatoacuterias Em um texto publicano nos

anos 90 do seacuteculo XX Eduardo Viveiro de Castro preocupou-se em entender aquilo

que os antropoacutelogos costumam chamar de ldquovisatildeo do iacutendio sobre a tribordquo Ao seguir a

leitura de Clifford James Castro observa a percepccedilatildeo de si dos povos nativos do

Brasil menos como ldquouma fronteira a ser defendidardquo e mais enquanto ldquoum nexo de

relaccedilotildees e transaccedilotildees no qual o sujeito estaacute ativamente comprometidordquo Para essa

leitura falar em ldquoidentidaderdquo talvez fosse tanto abusivo pois para os nativos era ldquoa

troca natildeo a identidade o valor fundamental a ser afirmadordquo fenocircmeno proacuteximo da

ldquoouverture agrave lrsquoautrerdquo de que fala Levi-Strauss 349 Esse elemento de alteridade

presente no perspectivismo ameriacutendio permite ao pesquisador compreender as

enigmaacuteticas afirmaccedilotildees dos Tupinambaacute registradas por Noacutebrega que alegavam

querer ser ldquochristianos como nosotrosrdquo Como mostra Castro querer ser cristatildeo era

no fundo querer ser iacutendio encontrar no outro parte de si e mesmo sua proacutepria

memoacuteria Os povos do litoral brasileiro entregavam-se aos catequistas tomavam

comunhatildeo aprendiam a rezar mas para o espanto dos missionaacuterios regressavam

com imensa facilidade aos ldquomaus costumesrdquo de seus ancestrais Logo no iniacutecio do

ensaio Castro cita uma longa passagem do Sermatildeo do Espiacuterito Santo de autoria do

Padre Vieira que aqui reproduzo em parte

Os que andastes pelo mundo e entrastes em casas de

prazer de priacutencipes veriacuteeis naqueles quadros e naquelas

ruas dos jardins dois gecircneros de estaacutetuas muito

diferentes umas de maacutermore outras de murta A estaacutetua

de maacutermore custa muito a fazer pela dureza e

resistecircncia da mateacuteria mas depois de feita uma vez natildeo

eacute necessaacuterio que lhe ponham mais matildeo sempre

conserva e sustenta a mesma figura a estaacutetua de murta eacute

mais faacutecil de formar pela facilidade com que se dobram 349 Na passagem citada pelo autor ldquoAs narrativas de contato e mudanccedila cultural tecircm sido estruturadas

por uma dicotomia onipresente absorccedilatildeo pelo outro ou resistecircncia ao outro [] Mas e se a identidade

for concebida natildeo como uma fronteira a ser defendida e sim como um nexo de relaccedilotildees e transaccedilotildees

no qual o sujeito estaacute ativamente comprometido A narrativa ou narrativas de interaccedilatildeo devem nesse

caso tornar-se mais complexas menos lineares e teoloacutegicas O que muda quando o sujeito da lsquohistoacuteriarsquo

natildeo eacute mais ocidental Como se apresentam as narrativas de contato resistecircncia ou assimilaccedilatildeo do

ponto de vista de grupos para os quais eacute a troca natildeo a identidade o valor fundamental a ser afimadordquo

CLIFFORD James 1988 The predicament of culture twentieth century ethnography literature

andart Cambridge Mass Harvard Univ Press p 344 apud CASTRO Eduardo Viveiros de O

maacutermore e a murta In A Inconstacircncia da Alma Selvagem Cosacnaify Satildeo Paulo 2005 pp 195-196 e

206

113

os ramos mas eacute necessaacuterio andar sempre reformando e

trabalhando nela para que se conserve Se deixa o

jardineiro de assistir em quatro dias sai um ramo que

lhe atravessa os olhos sai outro que lhe descompotildee as

orelhas saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete e

o que pouco antes era homem jaacute eacute uma confusatildeo verde

de murtas350

Nesse excerto o jesuiacuteta faz menccedilatildeo agraves dificuldades encontradas pelos

missionaacuterios em dobrar as almas do gentio brasileiro Pontuava a ldquodiferenccedila que haacute

entre umas naccedilotildees e outras na doutrina da feacuterdquo sendo algumas ldquonaturalmente duras

tenazes e constantesrdquo resistindo com armas duacutevidas e desentendimentos aos

misteacuterios revelados e outras que como as do Brasil ldquoreteacutem tudo o que lhes ensinam

com grande docilidade e facilidaderdquo As uacuteltimas no entanto satildeo um pouco como

estaacutetuas de murta e natildeo de maacutermore perdendo ldquoa nova figurardquo ao simples

ambandono das matildeos do jardineiro ldquoEacute necessaacuterio que [se] assista sempre a estas

estaacutetuasrdquo dizia Vieira ldquotrabalhando () contra a natureza do tronco e o humor das

raiacutezesrdquo 351

O tema da ldquoinconstacircncia da almardquo selvagem como mostrou Castro eacute

recorrente em toda a histoacuteria do Brasil fazendo-se notar em sua proacutepria histoacuteria da

histoacuteria Para Varnhagen que de certo nunca viu os iacutendios com muita simpatia eles

eram ldquofalsos e infieacuteisrdquo igualmente ldquoinconstantes e ingratosrdquo Na obra de Serafim

Leite historiador da ordem jesuiacutetica no Brasil careciam de vontade e expressavam

sentimentos superficiais Ainda Seacutergio Buarque de Holanda retomaria a questatildeo

descrevendo-os como ldquoinacessiacuteveisrdquo a ldquocertas noccedilotildees de ordem constacircncia e

exatidatildeordquo 352

Em sua base o problema das trecircs raccedilas talvez seja anaacutelogo ao tema aristoteacutelico

das trecircs potecircncias da alma Muito caro aos jesuiacutetas e aos peripateacuteticos da Coimbra

seiscentista a doutrina tendia a atribuir a cada uma das raccedilas uma faculdade ldquoaos

iacutendios a percepcatildeo aos africanos o sentimento aos europeus a razatildeordquo 353 Ou ainda a

raccedila inteligente a raccedila amante e a raccedila selvagem Jaacute nos Dialogo sobre a conversatildeo

350 VIEIRA Antonio Sermao do Espfrito Santo in Sermoes Sao Paulo Editora das Americas vol 5

1957 [1657] p 216 Apud CASTRO 2005 183-184 351 Idem Ibidem 352 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Histoacuteria geral do Brasil antes de sua separaccedilatildeo e

independecircncia de Portugal Satildeo Paulo Melhoramentos Tomo I 1959 [1854] p 51 BUARQUE DE

HOLANDA Seacutergio Raiacutezes do Brasil Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1956 [1936] Ver CASTRO

2005 p 186 nota 5 para uma bibliografia completa 353 CASTRO 2005 187

114

do Gentio vemos na fala do interlocutor Nugueira a descriccedilatildeo do problema ldquoisso

estaacute claro pois a alma tem trecircs potentias entendimento memoria vontade que todos

tecircmrdquo354 Essa eacute uma toacutepica que segue ateacute o seacuteculo XX de Gilberto Freyre355 Se os

iacutendios entendiam bem diziam os pregadores a memoacuteria e a vontade lhes eram fracas

retornando sem grande resistecircncia aos ldquocostumes inveteradosrdquo como beber de seus

vinhos ter muitas esposas fazer a guerra e praticar a antropofagia356 Por vezes

incapazes de reconhecer uma religiosidade entre os povos primitivos da Ameacuterica por

outras intolerantes a suas praacuteticas os padres traduziam uma questatildeo tanto epistecircmica

quanto poliacutetica como se o problema fosse o fato de que ldquoos selvagens natildeo crecircem em

nada porque natildeo adoram nada E natildeo adoram nada no fim das contas porque

obedecem a ningueacutemrdquo 357

Os costumes do gentio eram o inimigo principal dos pregadores jesuiacutetas do

seacuteculo XVI Entre os tupinambaacutes a praacutetica de ensopar a carne dos guerreiros

capturados e oferece-las em grandes banquetes fazia parte do ciclo de contagem do

tempo Para eles na leitura de Castro ldquoo outro natildeo era um espelho mas um destinordquo

358 O guerreiro que hoje come a carne do vencido amanhatilde seraacute devorado e ao fazecirc-

lo alcanccedilara a honra Honra que se assentava na capacidade de engendrar a vinganccedila

a qual se tornava por sua vez ldquoa instituiccedilatildeo que produzia a memoacuteriardquo 359 Teriacuteamos

entre os selvagens do seacuteculo XVI uma ordem do tempo baseada natildeo na justiccedila mas

na vinganccedila ao longo da qual o homem sacrificado recebia a gloacuteria de em seu

momento final ocupar um papel anaacutelogo ao do Deus agostiniano (conditor et

administratorhellip ordo temporum)360 O ritual de canibalismo era antecedido por um

diaacutelogo Na leitura de Castro nesses debates

Os exemplos natildeo trazem nenhuma evocaccedilatildeo religiosa

nenhuma menccedilatildeo a divindades ou ao destino poacutestumo

da alma da viacutetima Em troca todos eles falam de algo

354 NOacuteBREGA Padre Manuel da Dialogo sobre a conversatildeo do Gentio MetaLibri Satildeo Paulo 2006

[1556-1557] p 9 355 FREYRE Gilberto Casa-grande e senzala (formaccedilatildeo da famiacutelia brasileiro sob o regime de

economia patriarcal) Rio de Janeiro Joseacute Olympo 1954 [1933] pp 316-318 356 CASTRO 2005 190-192 357 CASTRO 2005 216 358 CASTRO 2005 211 359 CASTRO 2005 234 360 ldquo() in ordine temporum habenda sunt quorum est conditor et administrator Deusrdquo

AUGUSTINI S Aureii De Doctrina Christiana Libri Quatuor et Enchiridion ad Laurentium Editio

Stereotypa Lipsiae Sumtibus et typis caroli tauchnitii 1838 pp Livro II Cap XXVIII [2844] pp 64-

65 Trabalharei o tempo em Santo Agostinho no capiacutetulo 3

115

que passou despercebido aos comentadores Eles falam

do tempo () O combate verbal dizia o ciclo temporal

da vinganccedila o passado da viacutetima foi o de um matador o

futuro do matador seraacute o de uma viacutetima a execuccedilatildeo iria

soldar as mortes passadas agraves mortes futuras dando

sentido ao tempo () O dueto e o duelo entre cativo e

matador associando indissociavelmente as duas fases do

guerreiro que se respondem e se escutam ndash as perguntas

e as respostas satildeo permutaacuteveis ndash eacute aquilo que torna

possiacutevel uma relaccedilatildeo entre passado e futuro Soacute quem

estaacute para matar e quem estaacute para morrer eacute que estaacute

efetivamente presente isto eacute vivo O diaacutelogo cerimonial

era siacutentese transcendental do tempo na sociedade

tupinambaacute361

Diferente de uma instituiccedilatildeo ocidental de reperaccedilatildeo moral e identitaacuteria a

agoniacutestica dos diaacutelogos que antecediam o sacrifiacutecio antropofaacutegico tinha como

resultado ldquoproduzir o tempordquo Para Castro que se afasta tanto da leitura cavalheiresca

de Montaigne quanto do materialismo de Florestan Fernandes ldquoo rito era o grande

Presenterdquo 362 O sacrificado era o refundador da ordem do tempo Mas a sua

administraccedilatildeo para seguir Agostinho residia natildeo na recuperaccedilatildeo da memoacuteria dos

mortos mas na manutenccedilatildeo da agoniacutestica com os inimigos ldquoestes eramrdquo escreveu o

antropoacutelogo brasileiro ldquoos guardiatildees da memoacuteria coletiva pois a memoacuteria do grupo ndash

nomes tatuagens discursos cantos ndash era a memoacuteria dos inimigosrdquo 363

Se a vinganccedila ldquonatildeo era um retorno mas um impulso adianterdquo se com isso ela

produzia o futuro o horizonte desse porvir natildeo poderia como ciclo afastar-se do

espaccedilo de experiecircncia ancestral dos tupinambaacutes Se esse ordenamento do tempo era

baseado na vinganccedila o tempo da vinganccedila seria o grande presente Os povos

indiacutegenas jaacute na percepccedilatildeo de Paulo Frontin natildeo poderiam crer na naccedilatildeo O

ldquoproblegraveme de lrsquoincroyance au seiziegraveme siegraveclerdquo evocado em Lucien Fegravebvre por

Viveiros de Castro poderia ser revisto nas entrelinhas do ciclo dos centenaacuterios Se

crer eacute obedecer ndash ao entregar-se por completo agrave palavra alheia ndash os iacutendios do Brasil

oitocentista continuariam inconstantes Sem aceitar as prerrogativas europeias de

futuro nem a obediecircncia agrave moral dita civilizada eles tornavam sua superaccedilatildeo aos

olhos do oficiante da naccedilatildeo um requisito sine qua non tanto do progresso quanto da

ordem O discurso de Frontin ao expulsar o iacutendio do templo da naccedilatildeo pratica o

361 CASTRO 2005 235-238 362 CASTRO 2005 238 363 CASTRO 2005 240-241

116

sacrifiacutecio metoniacutemico de sua alma de sua moral de seus costumes num movimento

que se imagina indispensaacutevel ao progresso da naccedilatildeo A alma ameriacutendia flanando

selvagem e alimentando ciclos de vinganccedila eacute vituperada em nome de uma alma que

ascende linear e irreversivelmente em direccedilatildeo agrave perfectibilidade junto ao altar da

paacutetria

O Brasil natildeo era o iacutendio Os costumes dos povos autoacutectones natildeo poderiam

fazer parte da memoacuteria federada Simples de traccedilos culturais homogecircneos trocircpegos e

inconstantes frente ao ritmo do progresso spenceriano seus haacutebitos selvagens

formavam algo como a imagem desagradaacutevel de um passado ainda presente Presente

e incapaz de reconhecer-se na federaccedilatildeo o ldquoperspectivismo ameriacutendiordquo ndash anaacutelogo

sem duacutevida as constituiccedilotildees identitaacuterias do povo Hopi estudado por Richard Handler

ndash natildeo pensava como deveria preso aos seus cracircnios364 E nisso atacar os povos

autoacutectones ndash recorrendo quando necessaacuterio ao repertoacuterio racioloacutegico em voga ndash

poderia tambeacutem ser entendido como uma forma de marcar posiccedilatildeo afirmar uma

identidade republicana europeacuteia e progressista afastando-se do indianismo que

pintara com cores romacircnticas certos elementos da tradiccedilatildeo imperial365

Paulo Frontin foi o homem que ao lado de Ramiz Galvatildeo recebeu a gloacuteria de

celebrar a naccedilatildeo Junto ao diretor da Biblioteca Nacional seu semblante ficou

guardado sob a proteccedilatildeo de duas folhas de papel vegetal nas paacuteginas iniciais do IV

volume do Livro do Centenaacuterio Os magistrados morais embora alternassem

momentos de maior ou menor efusividade reverberavam em uacutenissono sua relaccedilatildeo

com o passado ldquoChamou-se Brasil esta maravilhosa terrardquo disse Ramiz Galvatildeo

pouco apoacutes o discurso do colega Frontin ldquopovoada entatildeo de rudes criaturas humanas

que mal conheciam a pedra polidardquo Como apoacutestolos da evanescecircncia do mal

(Spencer) da benevolecircncia necessaacuteria do progresso ldquoos processos colonizadores da

metroacutepole incutiram-lhe a pouco e pouco os beneficios do govecircrno e da disciplina

socialrdquo 366

Logo protegidos pela fortaleza erudita de suas ediccedilotildees comemorativas os dois

magistrados de 1900 demonstravam desde a Sessatildeo Magna do Centenaacuterio que a

364 Sobre o ldquoperspectivismo ameriacutendiordquo inspiro-me tambeacutem em CASTRO Eduardo Viveiros de Os

pronomes cosmoloacutegicos e o perspectivismo ameriacutendio In Mana 2(2)115-144 1996 365 Ver ALONSO op cit p 162 ldquoa dominaccedilatildeo saquarema na poliacutetica tinha sua contraparte numa

tradiccedilatildeo intelectual composta do catolicismo hieraacuterquico o indianismo romacircntico e o liberalismo

poliacuteticordquo 366 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz Sessatildeo Magna do Centenaacuterio no dia 4 de Maio de 1900

Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Vol 4 p 194

117

histoacuteria a ser oficiada jaacute estava escrita em tintas lusitanas Sua versatildeo era proacute-

europeacuteia desprovida do sentimentalismo indianista caro a outras geraccedilotildees orgulhosa

da heranccedila catoacutelica ndash a supracitada ldquomais poderosa focircrccedila civilizadora da epochardquo O

Livro do Centenaacuterio registro de um gecircnero comemorativo didaticamente orientado

unia ainda mais uma vez o uacutetil e o agradaacutevel o moral e o poliacutetico em um grande

manual que tratava o passado como patrimocircnio de uma civilizaccedilatildeo europeacuteia

ultramarina Seu recorte a ordem das questotildees nele proposta natildeo foi apenas resultado

editorial de um livro Nele editou-se uma versatildeo da naccedilatildeo Uma ediccedilatildeo realizada

dentro de uma moldura moral que valorizava as virtudes lusitanas e catoacutelicas

pressuposto do ordenamento de seu tempo Ou a leitura de suas memoacuterias natildeo instrui

nossa relaccedilatildeo com o passado O que elas fazem lembrar O Descobrimento de certo

pelo menos mais de uma vez367 Do catolicismo das belas letras da arte da ciecircncia e

da imprensa mesmo que as uacuteltimas como reconhecem agravequeles que foram atarefados

com a redaccedilatildeo dos respectivos artigos estivessem mais ligadas ao futuro do que

mesmo ao presente da naccedilatildeo368

A eacutegide do pensamento da ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo ficou conhecida como ufanismo

cujo paradigma parece ter sido Porque me ufano de meu paiacutes livro escrito por

Affonso Celso tambeacutem no contexto do jubileu nacional Celso ocupava a cadeira de

nuacutemero 36 da Academia Brasileira de Letras criada por membros da geraccedilatildeo de

1870 instituiccedilatildeo tanto saudosa em seus aspectos formais eacute verdade das tradiccedilotildees e

pompas imperiais Dedicado a seus filhos Porque me ufano tinha como objetivo

garantir que a nova ldquogeraccedilatildeo exceda a minha e as precedentes senatildeo em semelhante

amor [pelas coisas paacutetrias] ao menos nas ocasiotildees de o comprovarrdquo Era preciso

acreditava afastar nosso sentimento de inferioridade e munido dos argumentos

expostos no livro reverberar ldquosomos brasileirosrdquo e a seguir levantar a ldquocabeccedila

367 Afinal ldquoSepultar no exquecimento e no silencio esta data celebre seria exquecer tambem a vida

intellectual e moral da naccedilatildeordquo como escreveu AZEVEDO Moreira de O Descobrimento do Brasil

Intuitos da Viagem de Pedro Alvares Cabral In Livro do Centenaacuterio op cit Vol I p III Memoacuteria que

repete o tema inaugural de Capistrano de Abreu em um estilo mais popular 368 Joseacute Verissimo de Mattos em sua memoria sobre A Instrucccedilatildeo e a Imprensa reconhece que os

perioacutedicos brasileiros em nuacutemero e qualidade ainda estavam em sua infacircncia MATTOS op cit

Coelho Netto chamado a escrever sobre as Bellas Artes diz que ldquoAo Brasileiro natildeo faltam

intelligencia e gosto e com pequeno esforccedilo e perseveranccedila dentro em pouco podemos ver nivelado

com o progresso material da Patria o progresso artistico que seraacute o attestado da sua vitalidade

espiritual A Arte eacute a summa da civilizaccedilatildeo de um povo - urge natildeo exquece-la para que natildeo percamos

o passado e possamos ser dignos do futurordquo NETTO Coelho Bellas Artes in Livro do Centenaacuterio

Vol II p 77

118

transbordantes de nobre ufaniardquo 369 Seu argumento sobre a ldquosuperioridade brasileirardquo

era dividido em onze partes da grandeza territorial agraves riquezas nacionais da ausecircncia

de desastres naturais ao elogio das trecircs raccedilas do nobre mesticcedilo aos grandes homens

da histoacuteria

Grandes homens Sim uma sucessatildeo de nomes seguidos de breves adjetivos

ou curtas descriccedilotildees de caraacuteter (Cap XXXVII) Breves ao menos ateacute aportarem no

seacuteculo XIX tempo de independecircncia era do Impeacuterio Affonso Celso natildeo eacute tiacutemido em

explicitar suas simpatias pela antiga famiacutelia imperial Filho do visconde de Ouro

Preto conde pela Santa Seacute ele jaacute havia publicado vasta obra dentro da qual

destacavam-se elogios aos monarcas Vultos e Fatos (1892) e o Imperador no Exiacutelio

(1893) adiantam a sua maneira a obra de 1900 Obra que presta suas honras a D

Pedro I fundador de ldquoum esperanccediloso impeacuteriordquo libertador de ldquoum antigo reinordquo

homem que havia ldquorenunciado duas coroas servido duas Paacutetrias deixando fama

imortal na Europa e na Ameacutericardquo370 Obra que enfim encontra em D Pedro II ldquoo

grande vulto da histoacuteria brasileirardquo ndash vulto que impera absoluto no capiacutetulo XXXVIII

ldquoEacutepoca viraacute natildeo mui remotardquo profetizava Affonso Celso ldquoem que unanimemente se

lhe reconheceraacute a benemerecircncia proclamando-o a naccedilatildeo inteira o mais eminente dos

brasileiros o mais nobre dos americanos (sem excetuar Washington e Boliacutevar) uma

das figuras mais simpaacuteticas e venerandas da histoacuteria universalrdquo371

Mesmo que agrave margem da grande obra comemorativa ainda que excluiacuteda das

paacuteginas do Livro do Centenaacuterio a memoacuteria monarquista tratava de contar seus votos

no plebiscito-de-todos-os-dias Ou para ele fazia campanha investindo em

ldquoimortalizar a memoacuteriardquo do Imperador Braganccedila que ldquoapeado do trono banido da

Paacutetria ningueacutem acusou natildeo lavrou um protesto natildeo formulou uma queixa no meio

de tamanhas ingratidotildees e iniquidadesrdquo372 Foi-se o tempo no entanto desse

ldquofuncionaacuterio perfeitordquo373 Sem dar nomes aos regimes poliacuteticos sem falar em

monarquia ou repuacuteblica o ufanista por mais positivo que fosse em relaccedilatildeo ao futuro

do Brasil apontava-lhe dois perigos continuar a ter maus governos e continuar a

somar instituiccedilotildees incompatiacuteveis com sua iacutendole Celso jaacute tinha alguns capiacutetulos

atraacutes reeditado antigo argumento ao dizer que ldquorepetirei com Robert Southey que soacute

369 CELSO Affonso Porque me ufano de meu paiacutes 11a ed Rio de Janeiro Briguet amp Cia 1937 p 5 370 Idem p 167 371 Idem p 168 372 Idem p 176 373 Idem p 175

119

a mais extrema e obstinada prevaricaccedilatildeo da parte do governo ou a mais cega e

culpaacutevel impaciecircncia do povo poderatildeo subverter a influecircncia e a prosperidade do

Brasilrdquo374

ldquoO Brasil eacute perfeitamente homogecircneo material e moralmente pelo lado social

e pelo lado etnico pois nele se cruzam e se fundam todas as raccedilasrdquo375 Raccedilas que

excetuando-se a europeacuteia pareciam ter vindo a terra unicamente para completar a

missatildeo heroacuteica da formaccedilatildeo do mesticcedilo Os iacutendios eram apresentados como bons

selvagens acessiacuteveis em geral agrave catequese dos missionaacuterios Foram todos relegados

a um capiacutetulo sobre as ldquocuriosidadesrdquo de seus costumes (XVII) Aos negros o Brasil

deveria ldquoimensa gratidatildeordquo Gratidatildeo por seus serviccedilos prestados agrave paacutetria tatildeo valorosos

e reconhecidos que os filhos da Aacutefrica teriam contribuiacutedo para que ldquono Brasil jamais

houvesse preconceito de corrdquo376

A seleccedilatildeo obliteradora da memoacuteria a respeito dos indiacutegenas ao lado do deliacuterio

para com a condiccedilatildeo social dos afro-brasileiros eram experiecircncia intelectuais

compartilhadas entre diversos membros monarquistas ou republicanos da geraccedilatildeo de

1900 Geraccedilatildeo que se apropriava por um lado do repertoacuterio progressista spenceriano

da lei comteana dos trecircs estaacutegios das teorias racioloacutegicas de Taine e por outro havia

assistido agrave manifestaccedilatildeo do ldquodesejo mais ardenterdquo dos liberais abolicionistas o de que

ldquonatildeo fique sinal de tudo isso e que a anistia do passado elimine ateacute mesmo a

recordaccedilatildeo da luta em que estamos empenhadosrdquo377 Organizar e selecionar separar e

descartar Se a memoacuteria coletiva eacute a forma que um grupo social encontra para ordenar

suas lembranccedilas o resultado loacutegico de sua administraccedilatildeo torna-se expresso no

esquecimento Esquecimento que nas matildeos de uma vontade poliacutetica da memoacuteria eacute

orientado diante dos valores morais de um grupo Grupo que tinha como porta-voz

um personagem ora eleito como lugar-tenente dos grandes homens aclamado

celebrante ou orador oficial Em 1900 um officiant que se julgava apresentado em

toga magistral a toda naccedilatildeo

374 Idem p 48 375 Idem pp 194-195 376 Idem p 74 377 NABUCO O Abolicionista op cit p 206

120

26 Oradores historiadores e magistrados morais

Associaccedilotildees dedicadas agrave comemoraccedilatildeo do descobrimento do Brasil tivemos

vaacuterias378 Uma como vimos seraacute lembrada como a mestra e organizadora dos

eventos Sob a direccedilatildeo de Ramiz Galvatildeo ndash ex-diretor da Biblioteca Nacional baratildeo

por concessatildeo papal professor do Pedro II ndash a Associaccedilatildeo conquistou a cobertura

diaacuteria da imprensa Tendo os periacuteodicos a seu lado os magistrados morais da naccedilatildeo

alcanccedilavam uma projeccedilatildeo impensaacutevel aos oradores claacutessicos adentrar com suas

palavras transcritas em paacuteginas de jornal o proacuteprio lar dos espectadores Diversos de

seus tiacutetulos e peccedilas veiculadas nos perioacutedicos da eacutepoca mais tarde seriam

reproduzidos no uacuteltimo volume do Livro do Centenaacuterio com o claro intuito de

edificar uma memoacuteria da comemoraccedilatildeo De fato lembramos a grande obra coletiva

como a maior contribuiccedilatildeo historiograacutefica do ano de 1900 a qual dentre a escolha de

seus colaboradores parecia aliar-se a nomes ligados a posiccedilotildees chave do saber no

Brasil Eacute esse uacuteltimo tomo do Livro comemorando a comemoraccedilatildeo que vai inventar

definir e divulgar a ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo

Afonso Celso Ramiz Galvatildeo Padre Julio Maria Um elemento unia esses trecircs

personagens de 1900 suas estreitas relaccedilotildees com a Igreja Catoacutelica Os dois primeiros

natildeo eram apenas devotos mas nobres por concessatildeo papal o uacuteltimo em sua memoacuteria

encomendada para o Livro do Centenaacuterio refletia certo clima presente nas polecircmicas

internas do IHGB quais ele proacuteprio foi pivocirc jaacute durante sua admissatildeo como soacutecio da

casa O velho instituto tatildeo desprestigiado durante os turbulentos anos dos marechais

associado de modo inevitaacutevel a uma famiacutelia imperial exilada e a um projeto

centralista de naccedilatildeo assistiu entre 1889 e 1912 a nada menos que 23 sacerdotes

adentrarem seus quadros379 Eram tempos difiacuteceis tambeacutem para a feacute catoacutelica ainda

titubeando entre as consideraccedilotildees do Conciacutelio Vaticano I ndash ldquocontra a moral

lsquocientiacuteficarsquo laica a moral cristatilderdquo ldquocontra a razatildeo a feacuterdquo ndash e as tentativas de

378 ldquoSatildeo exemplo a lsquoSociedade Commemoradora do Quarto Centenariordquo em Satildeo Vicente no Litoral

Paulista a lsquoAssociaccedilatildeo do Centenario do Brasil ndash em honra a Pedro Alavares Cabralrsquo ou o lsquoCentro

beneficiente 4o Centenario da Descoberta do Brasilrdquo Ver WANDERLEY op cit p 61 379 O levantamento foi realizado por HRUBY Hugo O templo das sagradas escrituras o Instituto

Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro e a escrita da histoacuteria do Brasil (1889-1912) In histoacuteria da

historiografia nuacutemero 02 marccedilo 2009 pp 50-66 (o nuacutemero de 23 sacerdotes aparece na paacutegina 52)

121

ldquoreconciliaccedilatildeo com o mundo modernordquo propostas jaacute nos anos finais do seacuteculo XIX

pelo papa Leatildeo XIII380

Tensotildees entre republicanos e monarquistas atingiam a Igreja antigo baluarte

legitimador do poder e da tradiccedilatildeo imperial O teacutermino do regalismo imposto pela

uniatildeo entre Estado e Igreja prevista na constituiccedilatildeo anterior fora no entanto ndash como jaacute

indicava a leitura da memoacuteria escrita por Padre Maria ndash recebido com bons olhos por

boa parte do clero nacional A nova ordem limitava a accedilatildeo dos sacerdotes catoacutelicos na

sociedade brasileira enquanto que por outro lado permitia-lhe maior autonomia uma

relaccedilatildeo menos mediada para com o papado e o coleacutegio dos cardeais O ano de Jubileu

como indicava o colaborar do centenaacuterio era igualmente tempo de luta

Luta que se dava tambeacutem no seio do IHGB opondo soacutecios simpaacuteticos agraves

teorias e filosofias da histoacuteria evolucionistas e secularizadoras de matriz iluminista e

os apoacutestolos de um providencialismo tardio os quais lanccedilavam a histoacuteria em debates

sobre feacute e razatildeo matildeo de Deus e natureza humana glosando o acaso a fortuna e o

contingente sob o invoacutelucro universal e necessaacuterio da Providecircncia381

No IHGB Padre Maria encontrou-se nessa frente de batalha Jaacute durante a

leitura de seu parecer de admissatildeo o relator Baratildeo de Alencar lanccedilou diversos

impropeacuterios agrave ordem republicana a Igreja deveria ser tatildeo importante quanto o Estado

e ganhava todo direito de reclamar quando se sentisse por ele desprestigiada

ldquoTemeraacuteria responsabilidaderdquo essa agora tomada em matildeos pelo governo lanccedilando a

paacutetria aos braccedilos de um patriotismo ateu o qual desconhecia senatildeo ignorava com

propoacutesitos a ldquofaculdade matildee que guia providencialmente o homem em todos os

misteres da vidardquo382 De palavras fortes uma coacutepia do discurso do Baratildeo de Alencar

vazou para a imprensa resultando em sua exoneraccedilatildeo das Comissotildees de Admissatildeo383

380 Respectivamente BARROS R S M de A ilustraccedilatildeo brasileira e a ideacuteia de Universidade Satildeo

Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1986 pp 51-52 e OLIVEIRA L L Terra de Santa Cruz

In A questatildeo nacional na Primeira Repuacuteblica Satildeo Paulo Brasiliense 1990 p 161 381Momigliano jaacute comentara o crescimento do providencialismo entre os historiadores europeus do

iniacutecio do seacuteculo XX MOMIGLIANO Arnaldo As raiacutezes claacutessicas da historiografia moderna Bauru

EDUSC 2004 pp 211-217 Ao estudar o IHGB Hugo Hruby percepeu que ldquoa Histoacuteria ao final do

seacuteculo XIX e limiar do XX encontrava-se em meio aos debates entrea feacute e a razatildeo buscando se

legitimar atraveacutes das leis da Natureza dos homens ou de Deusrdquo HRUBY op cit 59 382 RIHGB Rio de Janeiro Imprensa Nacional t 62 parte 2 1900 p 334-335 383 ldquoA Igreja eacute uma instituiccedilatildeo tatildeo necessaacuteria como o Estado Tem portando o direito de reclamar

quando se vecirc desconhecida por elle Nas Conferecircncias da Assumpcatildeo () parece que o objectivo

principal () eacute o restabelecimento no Brazil das relaccedilotildees do Estado com a Igrejardquo () ldquoFoi sem duacutevida

uma temeraria responsabilidade a que assumiu o Estado no Brazil ndash paiz catholico ndash com a innovaccedilatildeo

do desconhecimento da religiatildeo tradicional do povo brazileirordquo Idem p 335

122

Tudo se passa como se fosse um elogio barafundo Era primeiro de setembro

de 1899 ano anterior ao jubileu nacional Padre Maria futuro colaborador do Livro

do Centenaacuterio membro do seleto grupo do Baratildeo de Ramiz pede passagem ao

IHGB no que eacute recebido por um caloroso discurso em defesa da Igreja e do

providencialismo Mas Julio Maria na condiccedilatildeo de magistrado moral aprendera a

apostar em argumentos conciliatoacuterios como explicaria tambeacutem em sua memoacuteria ele

natildeo se opunha agrave Repuacuteblica via com severas restriccedilotildees o regalismo do Impeacuterio e

acreditava que sua luta se daria na instruccedilatildeo da ldquomocidaderdquo ndash das novas geraccedilotildees ndash

sempre otimista em sua crenccedila na compatibilidade cientiacutefica entre feacute e razatildeo384

A reconciliaccedilatildeo da Igreja com o mundo moderno diretriz leonista aparecia

como caminho para o arrefecimento da crise moral e da dissoluccedilatildeo dos costumes ldquoOs

costumes as tradiccedilotildees o sentimento nacional as famiacutelias () tudo diz tudo exclama

tudo brada o Brasil pertence a Jesus Cristordquo ldquoGlorificar a Paacutetria revelando a sua

histoacuteriardquo ldquointuito supremordquo do IHGB grifado assim no original marcava tambeacutem o

elo providencialista entre uma revelaccedilatildeo sagrada e outra profana385 Mas nem todos

concordavam com a missatildeo divina de elevar o cristianismo ao grau de mais evidente

fato histoacuterico da naccedilatildeo386

Os ldquopositivistasrdquo inimigos mortais do Padre Maria eram para alguns

membros do IHGB o nemesis entrincheirado dentro dos muros do instituto Na

verdade o que Padre Maria e alguns outros soacutecios como Maximiano Marques

Carvalho entendiam por ldquopositivistasrdquo era uma qualquer sorte de posturas que

substituiacuteam a Providecircncia por outras palavras de ordem retiradas do repertoacuterio

intelectual da ciecircncia oitocentista progresso evoluccedilatildeo estaacutegios de desenvolvimento

etc Natildeo parecia ser um ataque endereccedilado unicamente ao apostolado de Miguel

Lemos

Ainda em 1884 Marques Carvalho denunciava essa ldquonova escolardquo que ldquose

levantou na Franccedila propondo-se fazer resuscitar as ideacuteas de democrito e Epicuro

entre os antigos e de Bento Espinosa e de Augusto Comte entre os modernosrdquo Escola

que ldquotomou o nome de positivista sendo na realidade panteiacutestardquo natildeo encontrou eco

em lugar algum mas arregimentou ldquoalguns homens de talento em Portugal que

384 Idem p 375-81 385 Idem p 372-3 386 Padre Julio Maria jaacute afirmava que ldquoO catholicismo que natildeo eacute senatildeo o christianismo integral natildeo eacute

soacute a religiatildeo histoacuterica do povo brazileiro eacute o facto historico por excellencia na histoacuteria da nossa

paacutetriardquo Idem p 371

123

levantaacuteratildeo um facho de revoluccedilatildeo idealista e enviaacuteratildeo suas centelhas ao Brazilrdquo

Homens de talento em Portugal Carvalho refere-se precisamente a ldquoTheophilo

Bragardquo cuja ldquosociologia ou philosophia transcedental () escripta com muito talento

e publicada em Portugal vem chegar ao Brasilrdquo Estudos que continham ldquoideacuteas

esparsas de um monstruoso materialismordquo que natildeo possui outro intuito senatildeo

ldquodestruir as crenccedilas e demonstraccedilotildees da Providencia divinardquo abalando as ldquoideacuteas

fundamentaes das sociedades familiar e nacionalrdquo387

ldquoOs Centenaacuterios disse o muito erudito Theophilo Braga satildeo a coordenaccedilatildeo de

sentimentos existentes que estavam isolados na consciencia de cada individuo ao

primeiro impulso expandem-se em unanimidade e daqui vem a sua gradezardquo388 As

ofensas a Braga autor das siacutenteses afetivas texto tatildeo oportunamente lembrado por

Ramiz Galvatildeo em seus discursos compunham somente uma dimensatildeo das criacuteticas

que seratildeo estampadas nas paacuteginas da Revista do IHGB

Durante a sessatildeo solene do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro o

conselheiro Aquino e Castro fez seus reparos aos organizadores do jubileu nacional

O discurso fora transcrito parcialmente por Max Fleiuss pouco mais tarde publicado

pela revista no momento em que ldquodeliberaram os poderes publicos e associaccedilotildees

particulares commemorarrdquo No entanto escreveu Fleiuss ldquoa data soffreu uma

alteraccedilatildeo que a verdade historica repelerdquo389 O problema todo girava em torno da

escolha do dia 3 de maio ndash em detrimento do 22 de abril ndash pela Associaccedilatildeo do Quarto

Centenaacuterio do Descobrimento do Brasil Os organizadores mantinham uma data que

supostamente corroborava a reforma do calendaacuterio gregoriano e que vinha sendo

celebrada desde a lei de 9 de setembro de 1826390

Aquino e Castro apoacutes reafirmar a tese do 22 de abril baseando-se na ldquoprova

mais convincenterdquo ndash a Carta de Pero Vaz aceita por Ferdinand Denis Varnhagen e

Beaurepaire ndash chama a atenccedilatildeo para a Provisatildeo do rei de Portugal Felippe II datada

de setembro de 1582 O documento mandava cumprimir o Calendaacuterio Gregoriano

nos termos em que seguiria ao dia 4 de outubro daquele ano ldquonatildeo o dia 5 mas o dia

15 sendo o immediato 16rdquo ateacute completar os 31 dias mantendo-se os meses 387 RIHGB Rio de Janeiro Imprensa Nacional T 47 parte 2 p 593 388 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz Sessatildeo Magna do Centenaacuterio no dia 4 de Maio de 1900

Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Vol 4 p 194 389 FLEIUSS Max Centenaacuterios do Brazil In RIHGB Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1901 t 64

p 91 390 Lei de 9 de Setembro de 1826 ndash Marca os dias de festividade nacional em todo o ImperioIn

Colleccedilatildeo das Leis do Impeacuterio do Brasil Parte Primeira Rio de Janeiro Typographia Nacional 1880

p 7

124

anteriores com o nuacutemero original de jornadas A perda dos dias explicava ainda o

documento teria ldquosomente lugar no dito mez de outubro deste anno de 1582rdquo

reduzidos a 21 luas391 Aquino e Castro concluiacutea que ldquonatildeo se pretendeu dar efeito

retroactivo aacute nova disposiccedilatildeo contrariando o passado completa inversatildeo na ordem

das datasrdquo Inversatildeo que abalaria natildeo somente os tempos que jaacute se foram mas

tambeacutem as demandas comemorativas do presente alterando-se com eles igualmente

ldquoantigos factos histoacutericos ateacute hoje e por noacutes mesmos commemoradosrdquo como o

descobrimento da Ameacuterica (12 de outubro de 1492) ou a inauguraccedilatildeo do caminho

mariacutetimo das Iacutendias (20 de maio de 1498)392

Era o problema mero preciosismo antiquaacuterio Para Aquino e Castro tratava-se

de algo como um dever cumprido pelo historiador Para Max Fleiuss essa era a

reparaccedilatildeo da verdade histoacuterica Mas estaria esse regime de verdade excluiacutedo da

reparaccedilatildeo moral sob a forma do julgamento da posteridade Fleiuss propotildee a seguir

um histoacuterico em ldquosummarios traccedilosrdquo do Brasil nos centenaacuterios de 1600 1700 e 1800

cada uma das datas recheadas de histoacuterias da histoacuteria ora sorvidas das fontes ora

atualizadas pelo historiador por fim endereccediladas ao deleite do leitor sem que antes

elencasse uma moral e um sentido

Em seu 1600 lido a partir da leitura de Fernatildeo Cardim e do Tratado

descriptivo de Gabriel Soares de Souza ldquoa prosperidade do Brazil natildeo era simples

fantasiardquo ainda que o conceito laacute natildeo existisse Os francezes jaacute haviam sido em duas

ocasiotildees expulsos da baia do Rio de Janeiro e as capitanias ao longo de nosso

primeiro seacuteculo soacute natildeo produziram mais accedilucar pelo caraacuteter inicialmente titubeante

de seus poderes fragmentados ldquoJaacute nessa longiacutencua eacutera a centralizaccedilatildeo administrativa

se impunha como medida imprescindiacutevel aacute marcha regular dos negoacutecios puacuteblicosrdquo

disse Fleiuss ao que completaria seu paralelo de modo nada sutil ldquooxalaacute que em

tempos muito mais modernos esse exemplo natildeo tivesse sido desprezadordquo393

No centenaacuterio seguinte em 1700 o Brasil estava ldquonovamente dividido em

dois governos e como da primeira vez reunido pouco depois em um soacuterdquo num tempo

em que o paiacutes travou ldquolutas formidaacuteveis tendo que combater os francezesrdquo e

holandeses Natildeo faltaram certos elogios a Mauriacuteciu de Nassau sendo ldquojusto consignar

que natildeo foram infrutiacuteferos os vinte e quatro annos de dominaccedilatildeo hollandezardquo

391 FLEIUSS op cit pp 92-93 392 Idem p 93 393 Idem pp 97-98

125

atribuiacutedos em seus sucessos ao ldquoespiacuterito administrativordquo do governador batavo Mais

edificantes no entanto seriam as consideraccedilotildees a respeito do Quilombo dos

Palmares ldquoa nosso ver a primeira guerra civil de nossa paacutetriardquo e embriatildeo que ldquonatildeo se

exterminou jamaisrdquo ora resultado das ldquopraticas humanasrdquo ldquoora explodindo quando a

tibieza dava a isso ensejo elle viveu sempre a vida horrivel dos parasitas mausrdquo A

escravidatildeo encontrava ainda mais um paralelo com os negros tomando ldquoda natureza o

que ella espalha com profusatildeo pela flora e pela fauna selvagemrdquo a crescer e se

emaranhar no quilombo ldquocomo as arvores das selvasrdquo A raccedila amante parte africana

da naccedilatildeo tem seu desenvolvimento acompanhado da tensatildeo de uma incipiente guerra

civil Isso natildeo impediu Fleiuss ndash como certa vez natildeo impediu Taacutecito de fazer o

mesmo com os baacuterbaros ndash de admirar sua capacidade de obedecer ldquodisposiccedilotildees

verdadeiramente extraordinaacuterias quanto ao ponto dos deveres civicos naquella

eacutepocardquo sob a lideranccedila do Zumbi394

ldquoEntra o seacuteculo XIXrdquo ndash continua Pleiuss em sua jornada pelos centenaacuterios do

Brasil ndash ldquoe desde logo surge a figura de Bonaparte apoacutes o 18 de Brumario como um

ente predestinado a reunir em si os destinos do mundordquo Sua fortuita e inesperada

demonstraccedilatildeo de bonapartismo natildeo vem de uma maacute leitura de Stendhal mas pelo

contraacuterio carrega uma criacutetica imbuiacuteda em outro claro paralelismo poliacutetico com o

presente da repuacuteblica Ora

ldquoextincta a Revoluccedilatildeo que conturbava os povos da

Europa celebrisando lugubremente certos heroacutees dessa

tragedia horriacutevel heroacutees que infelizmente cem annos

depois em outra regiatildeo da terra tiveram imitadores

enthusiastas a Franccedila ia encontrar no Primeiro Consul o

Maicirctre que lhe havia de elevar o nome sob multiplos

prestigios crando a epopeacuteia militar da edade

contemporaneardquo395

Aleacutem do exemplo da Revoluccedilatildeo Francesa aqueles vindos da Ameacuterica do

Norte ndash sob a figura de ldquoJorge Washington modelo impereciacutevel de patriotismo e

abnegaccedilatildeordquo ndash natildeo inspirariam a imitaccedilatildeo dos habitantes do Brasil Fleiuss reconhece

as guerras de emboabas mascates e com certa rapidez que natildeo permite evocar-lhe o

nome de nenhum grande homem a ldquorevoluccedilatildeo em Minas que tatildeo mal interpretada

394 Idem pp 101-102 395 Idem p 106 Grifos meus

126

tem sido exaltando-se o merito diminuido de uns com manifesto prejuizo dos que

verdadeiramente se empenharam nessa tentativa de separaccedilatildeordquo396

Para encerrar o ldquoterceiro seacuteculo de existenciardquo Fleiuss compra outra polecircmica

dessa vez com o autor de o Brasil e as Colocircnias Para Oliveira Martins como se sabe

Portugal teria estabelecido boa parte de seu impeacuterio colonial jaacute sob o signo da

decadecircncia ao que ele acrescentava apresentar o Brasil jaacute em finais do seacuteculo XVIII

ldquoos elementos constitucionae de uma naccedilatildeordquo precipitados dizia pelos desmandos e

corrupccedilotildees da corte de D Joatildeo VI logo aportada no Rio de Janeiro Essa eacute uma

opiniatildeo que Fleiuss natildeo pode achar razoaacutevel lanccedilando-o em uma longa digressatildeo

sobre os feitos econocircmicos de Pombal e as qualidades administrativas do monarca

portuguecircs A nacionalidade afinal tinha data marcada para surgir ldquoO terceiro

centenaacuterio do Brazil terminavardquo retrucou o Fleiuss ldquoem condiccedilotildees que annunciavam

para futuro natildeo remoto a instituicatildeo de uma nova nacionalidade a que o espiacuterito

liberal de muitos brazileiros prestava concurso soberanordquo397

Suas desavenccedilas com Oliveira Martins pareciam no entanto pontuais e em

nome da imparcialidade natildeo se apresentavam sob quaisquer espectros poliacuteticos ldquoA

historia sendo essencialmente uma grande paacutetria de moralrdquo declara Fleiuss ldquonatildeo

deve ficar prejudicada por espirito de seita ou de partidarismordquo ao que completa ser

ldquoseu principal objetivo a analyse serena imparcial e severa dos homens e das

cousasrdquo398 Paacutetria de moral Essa posiccedilatildeo teoacuterica ecoava o proacuteprio Martins a seguir

citado apenas como ldquonotaacutevel publicista contemporacircneordquo chamado a palavra a partir

da introduccedilatildeo de sua Histoacuteria de Portugal

ldquoo desenvolvimento do criteacuterio racional e o predomiacutenio

crescente dos processos proacuteprios das sciencias baniram

os modelos antigos e fizeram da historia um gecircnero

novo Nem os discursos Moraes sobre historia aacute

maneira do XVII seacuteculo nem o doutrinarismo secco do

XVIII que sobre factos e instituiccedilotildees mal conhecidos

construiacutea systemas geraes chimericos nem a opiniatildeo

muito seguida em nossos dias de considerar a historia

unicamente nos seus phenocircmenos exteriores

396 Idem p 106-107 397 Idem p 110 398 Idem p 111 Mais tarde o autor cita Ruy Barbosa dizendo que ldquoo homem () cujo horizonte mental

se confunde com o horizonte visual dos partidos nunca sera capaz das virtudes que assignalam os

grandes regedores de povos menos digno ainda seraacute o homem que se propuzer a tratar de factos

historicos submettendo-os aacute influencia nefasta de suas predilecccedilotildees Idem p 112

127

averiguando eruditamente as eacutepocas e as condiccedilotildees dos

sucessos merecem a nosso ver imitaccedilatildeordquo399

A nova histoacuteria de Oliveira Martins tendo banido primeiro os discursos da

histoacuteria dos costumes depois aqueles que edificavam ldquosistemas gerais quimeacutericosrdquo ndash

sem esquecer de tomar distacircncia do diletantismo antiquaacuterio ndash natildeo parece na verdade

ter mantido um pouco de cada um dos mundos O regime de historicidade moderno

de seu tipo ideal de sabor weberiano ao avatar empiacuterico que a histoacuteria da histoacuteria nos

proporciona ainda operaria dentro de uma circunscriccedilatildeo moral ndash mesmo que

argumentemos que ele natildeo assuma tons moralistas Ou natildeo era ldquoa historia sobretudo

uma liccedilatildeo moralrdquo Eis a conclusatildeo que no entender de Martins ldquosaacutee de todos os

eminentes progressos ultimamente realisados no focircro das sciencias sociaesrdquo400

Apoacutes as breves poreacutem recorrentes desavenccedilas com Oliveira Martins ndash sempre

no que diz respeito ao julgamento moral do caraacuteter dos aristocratas lusitanos ndash Max

Fleiuss volta-se contra seus reais inimigos Eacute o caso agora de enfrentar as posiccedilotildees

republicanas expressas ldquoem um livro de histoacuteria poliacuteticardquo pelo natildeo diretamente

nomeado Felisbello Firmo de Oliveira Freire No capiacutetulo sobre o Departamento de

Instrucccedilatildeo de sua Histoacuteria Constitucional da Republica dos Estados Unidos do

Brasil Freire havia chamado D Joatildeo VI de ldquobraganccedilatildeo imbecil e cynicordquo ao que

completou dizendo que ele ldquonatildeo tinha a perdicularidade decorativa do estylete tinha

bochechas pernas inchadas e como sua esposa Carlota natildeo se lavava nunca

crescendo como os mineraes pela juxtaposiccedilatildeo do ciscordquo401 Trata-se como vemos

da memoacuteria republicana sobre o D Joatildeo VI grotesco e pitoresco ora comendo

coxinhas de galinha retirada dos bolsos ora temendo raios memoacuteria que seraacute pouco

399 Idem Ibidem 400 Ao que ele completa ldquoA realidade eacute a melhor mestra dos costumes a critica a melhor bussola da

intelligencia por isso a historia exige sobretudo observaccedilatildeo directa das fontes primordiaes pintura

verdadeira dos sentimentos descripccedilatildeo fiel dos acontecimentos e ao lado disto a frieza impassivel do

critico para coordenar comparar de um modo impessoal ou objectivo o systema dos sentimentos

geradores e dos actos positivos () Todos estes systemas poreacutem ensaios successivos para determinar

o genero de um modo definitivo teem um lado de verdade aproveitavel Os modelos classicos fizeram

sentir o caracter moral da historia os modelos abstractos a necessidade de comprehender os

phenomenos num systema de leis geraes os modelos eruditos finalmente a condiccedilatildeo imprescriptivel

de um conhecimento real e positivo da chronologia e dos elementos que compotildeem o meio externo ou

phisico das sociedades O intimo e o essencial consiste no systema das instituiccedilotildees e no systema das

ideacuteas collectivas que satildeo para a sociedade como os orgams e os sentimentos satildeo para o indiviacuteduo

consistindo por outro lado no desenho real dos costumes e dos caracteres na pintura animada dos

logares e acessoacuterios que foram o scenario do theatro histoacutericordquo MARTINS Oliveira Histoacuteria de

Portugal 7 ed T 1 Antonio Maria Pereira Lisboa 1908 pp VIII-IX 401 FREIRE Felisbello Firmo de Oliveira Histoacuteria constitucional da Republica dos Estados Unidos do

Brasil Rio de Janeiro Typographia Moreira Maximino amp C 1894-1895 3 Vol

128

mais tarde retrabalhada em um contexto mais calmo pelo claacutessico de Oliveira

Lima402 Fleiuss critica o mau gosto de Freire ndash qual ldquoestampa nitidamente o criterio

dum escriptorrdquo ndash e a seguir tece novos e longos elogios ao Priacutencipe Regente ldquoA

figura portanto grotesca com que alguns escriptores apresentam D Joatildeo VIrdquo

continua Fleiuss ldquodesapparece ante a evidecircncia dos factos Natildeo podia ser mediocre

um homem que tantas provas deu de alto senso administrativo ()rdquo403 Se satildeo os

ldquomotivos moraesrdquo ndash completa reverberando novamente Oliveira Martins ndash que

dominam a histoacuteria a ldquoobra de D Joatildeo VI representa de facto o primeiro capiacutetulo de

formaccedilatildeo social de nossa paacutetriardquo404

Se Fleiuss a seguir reconhece que o governo de D Pedro I foi ldquosem duacutevida

cheio de difficuldades e natildeo raro de vacillaccedilotildees e errosrdquo natildeo deixa de advogar em

nome de sua memoacuteria E natildeo lhe basta listar dentre os feitos do primeiro Imperador

seus ldquoserviccedilos prestados aacute Patriardquo questionaacuteveis do ponto de vista republicano Sua

estrateacutegia eacute associaacute-lo a um personagem que jaacute contava muitos votos no plebiscito-de-

todos-os-dias chamando-o de volta ao palanque Braganccedila Fleiuss faz questatildeo de

transcrever o decreto de nomeaccedilatildeo de Joseacute Bonifaacutecio como tutor dos filhos e irmatildes de

D Pedro I seguido da carta do Imperador ao conselheiro seu ldquoamigo constanterdquo405

ldquoAinda eacute cedordquo declara Fleiuss ldquopara enunciar opiniatildeo minuciosa sobre o

governo de D Pedro IIrdquo No entanto ldquomuitos a sentem mas receiam expendel-ardquo

Diante da carga das investidas republicanas tecer elogios ao ldquocaracter de nossos

patriciosrdquo tornava-se moralmente ilegiacutetimo ldquoha como que um terror de tratar com

respeito e estima os homens do antigo regimenrdquo Eacute com essa consideraccedilatildeo que o

historiador do IHGB declara sem meias palavras que ldquoterminou hontem o cyclo que

por cincoenta annos assegurou ao nosso povo e aacute nossa terra um regimen em que a lei

o progresso e a honra natildeo eram simples ficccedilotildees em que na pessoa do soberano se

402 LIMA Oliveira D Joatildeo VI no Brasil 403 FLEIUSS RIHGB op cit p 118 404 Idem p 119 Essa tese vai ser melhor desenvolvida por Oliveira Lima em 1908 no livro supracitado

Sobre o contexto da citaccedilatildeo original de Martins ldquoO que domina sobretudo a histoacuteria satildeo os motivos

morais e esses motivos parecem verdadeiros ou falsos conforme as eacutepocas e os lugares Assim a

histoacuteria haacute de ser objetiva sob pena de as obras do artista natildeo passarem de criaccedilotildees fantaacutesticas do seu

espiacuterito E haacute de por outro lado assentar sobre a base de um saber solidamente minucioso de um

conhecimento exato e erudito dos fatos e condiccedilotildees reais sob pena de em vez de se escrever histoacuteria

inventarem-se romances Arena ampliacutessima onde o artista e o erudito o pensador e o criacutetico se

encontram e se confundem o jurista para indagar com escruacutepulos o psicoacutelogo para avaliar sua sutileza

a histoacuteria se natildeo eacute a forma culminante das manifestaccedilotildees intelectuais do homem eacute sem duacutevida a mais

complexa e a mais compreensivardquo MARTINS Oliveira Histoacuteria da civilizaccedilatildeo ibeacuterica Lisboa

Guimaratildees amp Cordf Editores 1973 [1879] pp 8-9 405 FLEIUSS RIHGB op cit 122-123

129

concentravam todas as virtudes humanasrdquo406 Era mesmo cedo para emitir opiniotildees

Fleiuss declara sua admiraccedilatildeo pelo monarca mas de resto deixa o elogio a Affonso

Celso transcrevendo-lhe todo o capiacutetulo XXXVIII do Porque me ufano407

Atento agrave ldquoverdade dos factosrdquo e de olhos fixos na ldquojusticcedila histoacutericardquo Max

Fleiuss termina sua contribuiccedilatildeo agrave polecircmica das dataccedilotildees lamentando a incapacidade

de julgar o presente ldquoa calma factor essencial dos estudos histoacutericos natildeo permite a

analyse dos ultimos successosrdquo408 Pode natildeo ter julgado como gostaria mas permetiu-

se trazer um grande nuacutemero de paralelos essa forma especial de comparaccedilatildeo ainda

mais uma vez com claros propoacutesitos morais e poliacuteticos Eacute de fato a coleccedilatildeo de saberes

eruditos sobre os costumes dos povos que tornaratildeo possiacutevel o ldquojulgamento da

posteridaderdquo retomando o instrumento dos antigos retores agora buscando a verdade

natildeo como advogados da mos maiorum divinizada dos ancestrais mas enquanto juiacutezes

que apoiados na subsunccedilatildeo da moral superior de um tempo em progresso

A querela das dataccedilotildees envolvia muito mais do que o preciosismo diletante

dos eruditos Do 3 de maio ao 22 de abril nesse vale de laacutegrimas dos usos do passado

a histoacuteria da naccedilatildeo seria por algum tempo oficiada entre dois trabalhos de memoacuteria

Centenaacuterios do Brasil texto considerado promissor pelos avaliadores do instituto foi

a dissertaccedilatildeo apresentada por Afonso Celso como prova literaacuteria agrave indicaccedilatildeo do jovem

Fleiuss para soacutecio efetivo do IHGB em 25 de maio de 1900 Ela inaugura uma

carreira de raacutepida ascensatildeo nos quadros do instituto trajetoacuteria que o levaria ao cargo

de Secretaacuterio Perpeacutetuo preito que soacute havia sido dado ao cocircnego Januaacuterio da Cunha

Barbosa e a Manuel Ferreira Lagos409 Mais tarde Fleiuss formaria junto a Afonso

Celso e ao baratildeo de Ramiz a ldquotrindade do silogeurdquo de que nos falou Luacutecia Paschoal

Guimaratildees410 Em 1900 no entanto Max Fleiuss via Ramiz Galvatildeo em outra

trincheira A desavenccedila entre a publicaccedilatildeo na revista do IHGB e a data escolhida para

a celebraccedilatildeo do centenaacuterio pela Associaccedilatildeo revelava uma desordem no tempo em sua

expressatildeo talvez em igual medida mais precisa e mais primitiva e cuja resoluccedilatildeo

moral passaraacute como pretendo sublinhar pela comunhatildeo de uma cosmologia

406 Idem p 124 407 Idem pp 124-132 408 ldquoDos tempos actuaes natildeo tratamos a calma fator essencial dos estudos histoacutericos natildeo permite

ainda analyse dos uacuteltimos sucessos que se para uns soacute oferecem aspectos lisonjeiros para outros

representam exatamente o contrario e nos repugna a analyse de factos impossiacuteveis de serem tratados

sem o perigo da acirrada polemicardquo Idem p 132 409 Aqui sigo GUIMARAtildeES Luacutecia Maria Paschoal Da Escola Palatina ao Silogeu Instituto

Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (1889-1938) Rio de Janeiro Ed Museu da Repuacuteblica 2006 p 48 410 GUIMARAtildeES Luacutecia 2006 59

130

Intervalo

Study problems not periods

Lord Acton

131

Almas em movimento

Chamado geracional ao som das estrelas

ldquoO anciatildeo-rei natildeo falava de outra coisa a natildeo ser do Africano quando

recordou as suas gestas e ateacute suas palavrasrdquo Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo Emiliano

Africano (185-129 ac) refere-se pelas letras de Ciacutecero ao Africano Maior seu avocirc

por lei heroacutei romano das Guerras Puacutenicas na Hispacircnia e ancestral que conhecia tatildeo

somente atraveacutes das maacutescaras de cera que adornavam o aacutetrio de sua casa familiar

Naquela noite recebido com banquetes e pompas reais e apoacutes ouvir os elogios do

monarca Massinissa endereccedilados ao seu avocirc o jovem Cipiatildeo seria acometido por um

ldquosono mais pesado do que o de costumerdquo Estamos no inverno de 150-151 antes de

nossa era e o enviado romano buscava apoio na Aacutefrica do poderoso estado da

Numiacutedia411

Matildeos leves pelo cansaccedilo da viagem olhos pesados ouvidos atentos agraves

palavras do velho rei ele adormece ldquoNatildeo temas Cipiatildeo e entregue minhas palavras agrave

vossa memoacuteriardquo Ao ouvir essa voz o jovem se vecirc transportado a um ponto indefinido

do Cosmos entendido em uma percepccedilatildeo natildeo precisamente euclidiana ldquocheio de

estrelas e totalmente iluminado e sonorordquo412 Esferas giram rapidamente em

movimentos perfeitos tatildeo perfeitos que pareciam animados por uma inteligecircncia

divina Estrelas de natureza e magnitude diversa pulsavam em todas as direccedilotildees Dos

inuacutemeros misteacuterios que o cercavam aquele que lhe dirigia a palavra pareceu-o tatildeo

logo se aproximou de suacutebito familiar seu rosto mais do que humano era uma efiacutegie

numinosa que se revelava igual aos bustos patriarcais que conhecia desde o lar (ea

forma quae mihi ex imagine eius quam ex ipso erat notior I 2) Era ele Cipiatildeo o

411 Apresento agora uma leitura do Sonho de Cipiatildeo capiacutetulo final (VI) da Repuacuteblica de Marco Tuacutelio

Ciacutecero feito agrave luz da traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Nougueacute e Ricardo da Costa e do confronto com a

versatildeo franco-latina de NISARD M (dir) Traiteacute de la Reacutepublique Livre Sixiegraveme In Ouvres

complegravetes de Ciceacuteron Paris JJ Dubochet 1841 Tome IV pp 342-348 Para a traduccedilatildeo portuguesa

NOUGUEacute Carlos COSTA Ricardo da O Sonho de Cipiatildeo de Marco Tuacutelio Ciacutecero Notandum Jan-

abr 2010 IJI-Universidade do Porto pp 37-50 412 Incorporo igualmente as notas didaacuteticas de VILLALBA I VARNEDA Pere Nota introductograveria

In MARC TULLI CICEROacute Lrsquoart de governar [DE RE PVBLICA] Barcelona Prohom Edicions

2006 incluiacutedas na supracitada ediccedilatildeo de liacutengua portuguesa do Sonho de Cipiatildeo assim como as notas

organizadas por M Nisard na ediccedilatildeo franco-latina de 1841

132

Africano Maior ancestral ndash ser divinizado por comportamento ciacutevico ndash que lhe faria

diversas revelaccedilotildees desde aquele ldquolugar excelsordquo (X10)413

Primeiro o jovem destruiraacute Cartago celebraraacute triunfos receberaacute o tiacutetulo de

censor e depois por duas vezes o de consul Seraacute enviado como legado ao Egito agrave

Siacuteria agrave Aacutesia e agrave Greacutecia Chamado de volta agraves armas derrotaraacute os celtiacuteberos da

Hispacircnia e conquistaraacute a poderosa Numacircncia ldquoAgora depois que tiverdes sido

conduzido ateacute o Capitoacutelio com carro triunfal encontraraacutes uma Repuacuteblica perturbada

pelas maquinaccedilotildees de meu netordquo (X211) Ao invocar uma metaacutefora que anuncia a

imagem do Sol regente do universo o Africano Maior realiza entatildeo o seu chamado

ldquofaltaraacute oferecer agrave paacutetria o lume de vossa menterdquo Ao 56 anos de idade ndash precisamente

quando o astro rei completar oito vezes sete translaccedilotildees e seus retornos ndash o jovem vai

ser ldquoo uacutenico no qual repousaraacute a salvaccedilatildeordquo Para isso teraacute que ldquocolocar a Repuacuteblica

em ordem com os poderes de ditadorrdquo (XII12)

Gloacuteria efecircmera adulaccedilotildees da plebe ainda os meros prazeres da carne tais

eram algumas das futilidades que deveriam ser postas de lado em nome da harmonia

natural entre o corpo e a alma No Somnium os valores ciacutevicos natildeo cansam de se opor

agraves indulgecircncias corporais Mas existia uma recompensa para uma vida de privaccedilotildees

dedicadas aos deveres para com a Repuacuteblica ldquoTenha sempre em menterdquo explicou o

Africano Maior ldquoque todos aqueles que conservam ajudam e engrandecem a paacutetria

tecircm um lugar determinado no ceacuteu onde fruem felizes uma vida sempiternardquo Os

abenccediloados aqueles que optaram pela alternativa loacutegica da virtude e da retidatildeo

poderiam desfrutar da verdadeira existecircncia libertos do caacutercere de seus corpos e

livres para seguir em um movimento eterno a via da Orbe Laacutectea (XIV14)

O exemplo dos antepassados como meacutedium iacutentimo da mos maiorum

mantinha ligaccedilatildeo com os homens por uma cadeia de virtudes ciacutevicas A famiacutelia era

assim composta por pais carnais e pais espirituais os quais se justificavam para

Ciacutecero natildeo tanto pelos laccedilos consanguiacuteneos mas principalmente pelos valores que

cultivaram em vida Quem aparece ao jovem como evidecircncia disso eacute seu pai

bioloacutegico Aemilius Paulus apresentando-se tambeacutem como exemplo de dignidade 413 Segundo Leonard Koff o guia do jovem Cipiatildeo aparece como um ldquoobjeto esculturado ao louvor

romanordquo Cipiatildeo o Velho eacute o ldquocidadatildeo romano enquanto dever encarnado presenccedila numinosardquo

privilegiado com o direito de aparecer a seu neto adotivo ldquoem um sonho a respeito do futuro porque

em consequecircncia de seu comportamento ciacutevico ele (o Velho) eacute digno de falar sobre issordquo Ao jovem

por sua vez eacute concedido sonhar como se as imagens oniacutericas formassem um ldquoveiacuteculo transcendente

para a transferecircncia do dever ciacutevicordquo KOFF Leonard Michael Dreaming the Dream of Scipio In

DEUSEN Nancy van (org) Cicero refused to die Ciceronian influence through the centuries Brill

Leiden 2013 p 68

133

Emocionado com a visatildeo do ldquopai santiacutessimo e melhor de todosrdquo o jovem pergunta

entre laacutegrimas e demonstraccedilotildees de afeto porque natildeo poderia esquecer a existecircncia

terrena e unir-se logo ao patriarca no templo celestial Como se reprovasse quaisquer

impulsos que abreviassem o destino Paulus explica que ldquonatildeo somente voacutes Puacuteblio

mas tambeacutem todos os homens piedosos devem reter a alma dentro da custoacutedia do

corpordquo e sem a permissatildeo e a recompensa do demiurgo ldquonatildeo podem migrar da vida

humana e se esquivarem da tarefa proacutepria dos humanosrdquo Humanos que virtuosos

teriam uma missatildeo natural a cumprir

Paulo se despede tatildeo raacutepido quanto chegou exortando o filho a manter o

caminho da boa conduta A seguir o Africano Maior toma o jovem pela matildeo e

aponta com a outra para cada uma das nove esferas ldquoa primeira das quais eacute celestial

externa e abraccedila todas as demaisrdquo Sob os cursos fixados a partir dela ndash imagem

dinacircmica do proacuteprio demiurgo platocircnico ndash ldquohaacute outras sete que giram mais lentamente

com um movimento contraacuterio ao da celestialrdquo (XVII417) Satildeo as estrelas errantes ou

os planetas ndash Saturno Juacutepiter Marte Sol Vecircnus Mercuacuterio e Lua ndash apresentados em

sua ordem Caldeacuteia Ordem que natildeo edificava um sentido visiacutevel (relacionado agrave

evidentia) senatildeo um senso expresso por relaccedilotildees numeroloacutegicas analogias agraves

divindades e associaccedilotildees com os humores projetados na Terra esfera cuja posiccedilatildeo era

central mas cujas caracteriacutesticas imoacuteveis cultivavam a morte e a imperfeiccedilatildeo

As tentaccedilotildees eacute claro eram difiacuteceis de serem evitadas em nome de um

propoacutesito ciacutevico Para isso era preciso fechar os olhos ao mundo e paciente escutar

os ditos harmoniosos da alma Mas ldquoque som eacute esserdquo pergunta-se o jovem ldquotatildeo

potente e ao mesmo tempo tatildeo doce que preenche meu ouvidordquo ldquoEste somrdquo

responde-lhe o Africano Maior ldquoeacute aquele que composto por intervalos separados e

diferenciados conforme uma proporccedilatildeo determinada por uma razatildeo nasce de um

impulso e do movimento das proacuteprias esferasrdquo Impulso que ldquoequilibrando

sobriamente agudos com graves produz um concerto harmocircnicordquo 414 As distacircncias

racionais e dessemelhantes entre as oito esferas moacuteveis (com a Terra estaacutetica ao

centro) ldquoproduzem sete tons por seus intervalos desiguais nuacutemero que eacute o laccedilo do

universordquo (XVIII518) Laccedilo do universo Chave de quase tudo (qui numerus rerum

414 ldquoComo Ciacutecero mostra ndash comentou Leonard Koff ndash a muacutesica das esferas a qual cada alma escuta e eacute

capaz de lsquomover-se em sua direccedilatildeorsquo eacute para ele o alinhamento que faz do universo uma uacutenica

comunidade ciacutevicardquo Se aceitarmos essa leitura Ciacutecero teria acreditado em uma ldquoharmonia de

domiacutenios uma harmonia que tem uma dimensatildeo paralela na alma e no corpordquo Tal seria uma ldquoreligiatildeo

ciacutevicardquo a qual corresponde uma ordem ciacutevica que reflete por sua vez uma ordem cosmoloacutegica KOFF

op cit 71

134

omnium fere nodus est) Algo que a dispotildee a amarra e pelo ouvido confere sentido

ordenando a natureza a muacutesica arranjada mais tarde pela tradiccedilatildeo pitagoacuterica ao lado

das matemaacuteticas da geometria e da fiacutesica no quatrivium educativo

Apoacutes uma digressatildeo sobre a pequeneza da Terra e a imensidatildeo do cosmos

(XIX620 e XX21) o jovem eacute chamado a compreender tambeacutem a grandiosidade do

tempo ldquoOs homens calculam corretamente a duraccedilatildeo do ano somente por uma volta

do Sol isto eacute de um soacute planeta mas na realidaderdquo explica o Africano Maior

ldquodeveriam denominar um anordquo apenas ldquoquando todos os planetas tivessem retornado

ao mesmo ponto de onde uma vez saiacuteram e tivessem feito retornar a configuraccedilatildeo

primeira do universordquo A esse magnus annus Ciacutecero atribuiacute 12954 anos de modo

que o Africano Maior acredita que ldquoseratildeo necessaacuterias a contagem de muitiacutessimas

geraccedilotildees humanasrdquo e que ldquodeste ano astronocircmico ainda natildeo transcorreu a vigeacutesima

parterdquo (XXII24)

ldquoCheio de tempo e de espaccedilordquo como certa vez disse Mandelstam sobre

Ulisses o jovem aprendia assim desde aquele templo celestial a natildeo cultuar a gloacuteria

em sua efecircmera e imperfeita existecircncia terrena ldquoPortanto se desejais dirigir vosso

olhar para cima e contemplar este lugar de permanecircncia eternardquo diz-lhe em novo

chamado o Africano Maior ldquodesdenha o que diz o povo (neque te sermonibus vulgi

dedideris) e natildeo coloque a esperanccedila de vossas accedilotildees nas recompensas humanas o

que importa eacute que soacute a virtude por seus proacuteprios atrativos vos conduza agrave verdadeira

honrardquo Ao final as virtudes deveratildeo ser lembradas e seu oposto ldquotoda aquela

tagarelicerdquo natildeo seraacute ldquoperenizada por mais ningueacutemrdquo e se ldquoextinguiraacute no

esquecimento da posteridaderdquo (oblivione posteritatis exstinguitur) (XXIII25)

Aos benemeacuteritos da repuacuteblica estavam abertos os caminhos que conduziriam

agraves portas celestes Cipiatildeo o Africano Maior insistia que ldquoo que eacute mortal natildeo sois voacutes

mas vosso corpo e certamente voacutes natildeo sois aquele que essa atual aparecircncia

manifesta mas a alma de cada um eacute aquele cada um natildeo essa figura que se pode

mostrar com o dedordquo E essa ldquoalma sempiterna move um corpo efecircmerordquo

(XXIV826) ldquoEacute evidenterdquo ensina o velho heroacutei a seu neto ldquoque o que se move eacute por

si eternordquo E quem natildeo poderia entatildeo ldquoassegurar que esta faculdade natildeo tenha sido

atribuiacuteda agraves almasrdquo ldquoAssimrdquo continuou seu diaacutelogo e seu chamado ldquoexercita esta

alma nas atividades elevadas As melhores satildeo os trabalhos para a sauacutede da paacutetria a

alma estimulada e exercitada por eles mais rapidamente alccedilaraacute voo a esta casardquo

Mesmo materialmente aprisionada ela pode se ldquoprojetar na luz puacuteblicardquo e assumindo

135

uma postura contemplativa ao mundo exterior ldquose desembaraccedilar o maacuteximo possiacutevel

do corpordquo Almas viciosas entregues agraves voluacutepias do corpo e da mente assim violando

as ldquoleis divinas e humanasrdquo devem vagar sem rumo ao redor da Terra e ldquouma vez

saiacutedas dos corposrdquo natildeo retornaratildeo ao templo celestial

No sonho refutar a virtude eacute um procedimento iloacutegico e nefasto atitude que

renegaria a proacutepria natureza essa eterna causa de ordem conduzindo o homem agraves

sombras do esquecimento O viacutecio encarceraria a alma na esfera inferior impedindo-a

de se movimentar em harmonia com o cosmos e nesse balanccedilo projetar-se como

exemplo transmissor de seu legado agrave memoacuteria das novas geraccedilotildees O veto agrave

transmigraccedilatildeo das almas eacute em outras palavras uma imagem de morte Apenas

aqueles que forem conhecidos e lembrados pelos seus serviccedilos ao Estado poderiam

ldquoretornar como mentores ciacutevicosrdquo informando os homens das ldquorecompensas do dever

no ceacuteurdquo em consequecircncia da ldquodireccedilatildeo santificada da proacutepria vidardquo 415 Cipiatildeo o velho

faz um chamado traz um alerta mas tambeacutem tece uma ameaccedila e logo apoacutes proferir

palavras que soavam nesse contexto platocircnico tanto amedrontadoras o Africano

Maior parte o jovem Cipiatildeo acorda e Ciacutecero encerra abruptamente a sua Repuacuteblica

O Sonho do Cipiatildeo era conhecido dos medievais e dos modernos apenas

atraveacutes do comentaacuterio de Ambroacutesio Teodoacutesio Macroacutebio filoacutesofo que viveu entre os

seacuteculos IV e V Macroacutebio que por muito tempo chegaria a disputar a paternidade do

Somnium transformou o excerto ciceroniano no texto autoritativo e confirmatoacuterio de

ldquoum neoplatonismo que natildeo possuiacutea fins poliacuteticosrdquo Em sua leitura as recompensas

celestes satildeo destinadas agravequeles que forem ldquometafisicamente saacutebiosrdquo 416 Se em Ciacutecero

o mundo sublunar por vezes natildeo reconhecia as virtudes da alma em Macroacutebio essa

ldquorecusa do mundordquo parece associada ao ldquodesprezo pelo mundordquo topos neoplatocircnico

que cairia bem aos olhos da moral cristatilde417

Com o decliacutenio da vida puacuteblica claacutessica o orador natildeo teria mais accedilotildees (erga) a

realizar e seu logos sua fala em pouco reconheceria a funccedilatildeo original da ldquoconduccedilatildeo

415 KOFF op cit 69 416 KOFF op cit 66 417 KOFF op cit 72

136

da poliacuteticardquo418 Taacutecito jaacute se perguntava sobre a perda de prestiacutegio da eloquecircncia ldquoPara

que serve acumular discursosrdquo refletiu o autor dos Anais ldquovisto que natildeo incumbe aos

incompetentes nem agrave multidatildeo tomar deliberaccedilotildees mas ao mais saacutebio dos homens

sozinhordquo 419 Na eacutepoca de Santo Agostinho o nome de Ciacutecero tornou-se sinocircnimo de

ldquobufatildeo profissionalrdquo ndash algueacutem que ainda deleitava mas que jaacute era inuacutetil um scurra

um cocircmico um bobo ou um palhaccedilo ndash para na alta idade meacutedia beirar o

esquecimento como mostra Michael Herren os autores do periacuteodo nada conheciam a

respeito da vida do arpiniata420 Ciacutecero eacute resgatado ao longo do renascimento do

seacuteculo XII e valorizado como mestre da retoacuterica pelos leitores da Institutio oratoria

de Quintiliano que nessa obra chegou a citaacute-lo 689 vezes421 Tambeacutem era lido em sua

juvenilia atraveacutes do De Inventione e da Rhetorica ad Herennium422 No ano em que

Marciacutelio Ficino nasceu 1433 a maior parte dos trabalhos de Ciacutecero jaacute havia sido

compilada A geraccedilatildeo do autor da Theologia platonica mostrar-se-ia aacutevida leitora das

Epistolae ad familiares cartas que encontraram uma primeira versatildeo impressa em

1467423 No renascimento dos seacuteculos posteriores a imagem do autor como figura

ciacutevica eacute reabilitada A publicaccedilatildeo dos tratados de maturidade elevaria seu status em

meio aos eruditos humanistas ldquoreforccedilando sua reputaccedilatildeo para a eloquecircncia contra

rivais emergentesrdquo fossem Hermogenes e Quintiliano fossem homens do presente

como Guarido de Verona e George de Trebizonda424

Eacute no ldquolongo seacuteculo XVrdquo periacuteodo que se estenderia da maturidade de Petrarca

(1304-1374) agrave deacutecada de 20 do seacuteculo XVI que emerge o problema da ldquoliacutengua latina

e sua utilidade como instrumento de culturardquo 425 Foi por essa eacutepoca que os

humanistas recolhendo evidecircncias em fontes como Aulo Geacutelio Varro e o Brutus de

Ciacutecero comeccedilaram a perceber que o latim romano um dia fora uma liacutengua natural

aprendida e expressada em diferentes graus de refinamento de estilo e de erudiccedilatildeo

418 HARTOG Franccedilois Evidecircncia da Histoacuteria o que os historiadores veem Belo Horizonte

Autecircntica 2011 p 41 419 TAacuteCITO Dialogue des orateurs (Dialogus Oratoribus) Texto estabelecido por Henri Goelzer e

traduzido por Henri Bornecque Paris Les Belles Lettres 1936 p 41 apud HARTOG 2011 p 44 420 HERREN Michael W Cicero redivivus apud scurras some early medieval treatments of the great

orator In DEUSEN Nancy van (org) Cicero refused to die 213 op cit p 39 421 ldquoA mainstream of what the Latin Middle Ages knew of Cicero ndash quite a lot as it turns out ndash was

intermediated through Quintilianrdquo DEUSEN Nancy van Cicero through quintilian eyes in the middle

ages In DEUSEN (org) Cicero refused to die op cit 2013 p 48 422 WARD John O Ciceronian Rhetoric and Oratory from St Augustine to Guarido da Verona In

DEUSEN (org) 2013 p 164 423 REES Valery Ciceronian Echoes in Marcilio Ficino In DEUSEN (org) 2013 p 141-142 424 WARD op cit 164 425 CELENZA Christopher S Coluccio Salutatirsquos View of the History of the Latin Language In

DEUSEN op cit p 5-6

137

ldquoSe olharmos essa questatildeo de outra maneirardquo como sugeriu Christopher Celenza

ldquopodemos dizer que os humanistas assim descobriram que o latim era uma liacutengua

morta estudada em seu tempo apenas por meio de uma educaccedilatildeo formalrdquo 426 Para

acessar esse lugar que em Petrarca (autor no qual jaacute poderiacuteamos ver o iniacutecio das

periodizaccedilotildees modernas) jaacute era claramente um passado o estudante do quattrocento

em geral optaria por dois meacutetodos aprender e escrever o latim em estilo ecleacutetico

nutrindo-se do modelo de diversos autores como o fariam Lorenzo Valla e Angelo

Poliziano ou imitar a prosa ciceroniana427 A autoridade do arpiniata alcanccedilava seu

auge e a todo tempo fazia lembrar o Ciacutecero orador o Ciacutecero das Ad Familiares o

homem puacuteblico e o tratadista embora o Ciacutecero do Somnium estivesse ainda preso a

Macroacutebio Nos seacuteculos seguinte envolto na discussatildeo que transcenderia a mos

gallicus e a mos italicus em nome de um direito natural o De Officis seria lido e

usado a partir de agendas poliacuteticas das mais diversas e contraditoacuterias Mably o teria

em alta conta antes da revoluccedilatildeo e jaacute depois Edmund Burke natildeo guardaria receios

em reeditar-lhe certos argumentos428

Quatro anos apoacutes a Santa Alianccedila Angelo Mai ao deambular pela Biblioteca

Vaticana encontrou um manuscrito contendo comentaacuterios aos Salmos de Santo

Agostinho documento copiado por volta do seacuteculo VIII Naquele dia de 1819 o

estudioso jesuiacuteta percebeu de certo com alguma surpresa que restos de letras e

palavras que natildeo pertenciam nem aos comentaacuterios nem aos Salmos ainda podiam ser

lidas Resolveu raspar o pergaminho e nesse palimpsesto encontrou uma coacutepia da

Repuacuteblica de Ciacutecero Coacutepia incompleta pelo estado de conservaccedilatildeo da fonte mesmo

assim ajudou a formar o corpus documental ciceroniano e atribuir-lhe definitivamente

a autoria do Sonho de Cipiatildeo429

Ciacutecero escreveu sua Republica apoacutes passar o ano de 58 AC exilado na Greacutecia

De volta a Roma continuava longe dos ciacuterculos de poder afastado do Senado e da

vida puacuteblica Ao transcrever discursos e redigir seu tratado sobre o governo o orador

parecia segundo Timothy Shonk responder a duas questotildees como permanecer

influente no Estado romano e como se certificar de que suas palavras e sua reputaccedilatildeo 426 CELEZAN op cit p 6 427 KOFF op cit 66 e tambeacutem TUNBERG Terence Colloquia Familiaria na aspecto of

Ciceronianism reconsidered In DEUSEN (org) op cit 124 428 Sobre os diversos ndash e contraditoacuterios ndash usos de Ciacutecero ao longo do periacuteodo preacute e poacutes-revoluconaacuterio

ver ATKINS Jed W A revoluctionary doctrine Cicerorsquos natural right teaching in Mably and Burke

Classical Receptions Journal 2014 6 (2) pp 177-197 429 COSTA Ricardo da Apresentaccedilatildeo In NOUGUEacute Carlos COSTA Ricardo da O Sonho de Cipiatildeo

de Marco Tuacutelio Ciacutecero op cit p 38-39

138

sobreviveriam ao tempo Segundo essa leitura foi refletindo sobre o primeiro

problema que Ciacutecero elaborou uma conversaccedilatildeo imaginaacuteria um diaacutelogo de sabor

platocircnico modelado na Republica do filoacutesofo grego no qual apartavam personagens

tanto conhecidos do passado romano Manius Manillus Publius Rutilus Rufus e

Quintus Mucius Scaevola O principal interlocutor no entanto era Cipiatildeo o jovem430

Apoacutes discutir o fenocircmeno da apariccedilatildeo de dois soacuteis em um uacutenico dia o conquistador

de Cartago introduz o tema maacuteximo da obra sublinhar o meacuterito de cada um dos

sistemas de governo ndash a democracia popular a repuacuteblica aristocraacutetica e a ditadura ndash

argumentando por fim que Roma conseguia a faccedilanha de unir o melhor dos trecircs

mundos431 Responder a segunda questatildeo no entanto exigia da parte de Ciacutecero uma

reflexatildeo sobre seu futuro e seu nome ldquoVerdaderdquo comentou Shonk ldquosuas

performances puacuteblicas tinham sido memoraacuteveis mas a vibraccedilatildeo do som no ar eacute tatildeo

efecircmera quanto o momento que as conduzrdquo como o eram a memoacuteria daqueles que

escutavam seus discursos Assim ele se dispotildee a reescrevecirc-los e indo aleacutem resolveu

entregar-se a uma obra que fizesse de sua contribuiccedilatildeo poliacutetica algo como uma

aquisiccedilatildeo para sempre432

Algueacutem poderia argumentar que o capiacutetulo final da Republica une

metaforicamente os dois intentos Mas tal apelo agrave commemoratio posteritatis caso

possamos observaacute-lo nas entrelinhas do Sonho de Cipiatildeo natildeo seria de todo obra da

vaidade O pensamento de Ciacutecero de qualquer maneira logo viria insinuar o

contraacuterio No seu mais bem acabado tratado de retoacuterica o De Oratore Ciacutecero fizera a

defesa da arte da persuasatildeo como forma de incitar uma vida puacuteblica moralmente bela

e harmoniosa No De Partitionbus Oratoriae sua obra didaacutetica ele pensaria com

Aristoacuteteles ao dividir a retoacuterica entre os gecircneros judiciaacuterio voltado ao julgamento dos

feitos passados o deliberativo incitado a persuadir a assembleia a tomar decisotildees

relativas ao futuro da urbs e o demonstrativo utilizado para deleitar e instruir as

audiecircncias 433 O uacuteltimo dos gecircneros citados tambeacutem conhecido como epidiacutedico

voltado para o presente poderia igualmente produzir a presenccedila do passado Assim

elaboravam-se ldquoliccedilotildees uacuteteis e honestas onde atraveacutes do encocircmio ou vitupeacuterio de

430 Aqui sigo SHONK Timothy A ldquoFor I Hadde Red of Affrycan Byfornrdquo Cicerorsquos Somnium

Scipionis and Chaucerrsquos Early Dream Visions In DEUSEN (org) op cit pp 85-122 431 Eacute possiacutevel que Ciacutecero tenha retirado essa reflexatildeo de Poliacutebio saudado como teoacuterico da Constituiccedilatildeo

Mista ateacute os dias de Montesquieu Cf HARTOG 2011 p 99 432 Idem p 86 433 Ver CICERO Marcus Tullius A Dialogue Concerning Oratorical Partitions In The Orations of

Marcus Tullius Cicero Volume IV London Bell amp Sons 1921 p 489

139

homens e cidades ficassem claros o caminho da virtude e os perigos do viacuteciordquo

englobando uma lista de gecircneros auxiliares ldquoo panegiacuterico a laudatio funebris a

biografia exemplar a crocircnica a histoacuteriardquo434 O Sonho de Cipiatildeo caso pudermos vecirc-lo

como aqui proponho enquanto um chamado geracional certamente compartilharia de

espaccedilo sob a ampla sombra epidiacutedica relacionando-se com a historia sem

embaralhar-se todavia com ela ao evocar o passado no presente e a seguir

apresentando-o atraveacutes de um estilo ornado Desde aquele ldquolugar excelsordquo Ciacutecero fez

escutar de Cipiatildeo a Cipiatildeo o som da natureza a partir de um ponto de contemplaccedilatildeo

do espaccedilo e do tempo em sua imensidatildeo material e dimensatildeo plural O movimento da

alma faz lembrar os ancestrais desvela o porvir e chama agrave accedilatildeo poliacutetica lembrando e

se apropriando de uma cosmologia de inegaacutevel sabor platocircnico (Timeu 39-40 Fedro

245e-246a Feacutedon 81c) mas que natildeo deixa de ter a muacutesica ldquolaccedilo do universordquo como

chave de harmonia Apostava na faacutebula e sublinhava-se a audiccedilatildeo meacutetodo que ao

menos para um grego acostumado a autoridade de Heraacuteclito era ldquomais agradaacutevel

poreacutem menos vaacutelidordquo435 Diferentemente da histoacuteria a relaccedilatildeo entre fatos e palavras

se daria mais pela fabulaccedilatildeo poeacutetica do que pela autoridade do particular conjurando

uma epifania ciacutevica capaz de transmitir os valores e exemplos de uma era dourada o

periacuteodo imeditamente anterior agraves guerras puacutenicas

O detalhe que traz a descriccedilatildeo dos dias vindouros aparecerem antes do

chamado ciacutevico acredito pode ser significativo A partir dele o Africano Maior vecirc

ldquoum duplo caminho marcado pelos fatosrdquo (XII12) A escolha eacute como uma opccedilatildeo

entre abraccedilar ou afugentar um destino que estaacute a priori escrito nas estrelas

reverberado e enlaccedilado pelo nodus da muacutesica celestial O movimento da alma que a

escolha da virtude proporciona persegue de toda maneira uma trajetoacuteria ciacuteclica e

teleoloacutegica determinado pela ordem da natureza ele alcanccedila os ceacuteus e de laacute retorna

de geraccedilotildees em geraccedilotildees mesmo por meio de sonhos luacutecidos para oficiar a mos

maiorum aos jovens campeotildees da repuacuteblica E os ancestrais conhecidos apenas

atraveacutes de maacutescaras de cera natildeo seriam vistos mas escutados nas estrelas

No capiacutetulo final da Repuacuteblica o movimento circular das almas eacute igualmente

conservador uma vez que sua eloquecircncia instrui uma nova geraccedilatildeo a agir frente agrave

corrupccedilatildeo dos valores ancestrais no intento de restaurar uma ordem moral que deve

434 TEIXEIRA Felipe Charbel Uma Construccedilatildeo de fatos e palavras Ciacutecero e a concepccedilatildeo retoacuterica da

histoacuteria In Varia Historia Belo Horizonte vol 24 n 40 juldez 2008 p 562 435 POLIBIO Histoacuterias XII 27 p 521 apud TEIXEIRA op cit p 555 Sobre as criacuteticas de Poliacutebio a

Timeu de Taormina e a evocaccedilatildeo da autoridade de Heraacuteclito ver igualmente HARTOG 2011 p 102

140

seguir tambeacutem uma ordem coacutesmica natural divina e imutaacutevel ldquoO que eacute passado de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo como afirmou Koff a respeito do Somnium eacute tatildeo somente a

expectativa ndash empiricamente previsiacutevel e por isso imitaacutevel ndash da ldquonobreza ciacutevicardquo 436

Entre os modernos se a metempsicose ou a reencarnaccedilatildeo cristatilde nunca seratildeo

consensualmente metaacuteforas seria possiacutevel que se passasse a oficiar a saga das almas

como um movimento progressivo que elas avanccedilassem de esfera em esfera rumo agrave

perfectibilidade natildeo pelo contato com o mundo das ideias mas pelo encontro e

alianccedila com o Deus uacutenico Como veremos desde cedo esta discussatildeo ndash cuja questatildeo

acima oferece senatildeo um tipo ideal ndash fora apenas mais um dos muitos pontos de

choque entre os dois lados do Reno

Jaacute na primeira modernidade os olhos seratildeo abertos a filologia dos textos

autoritativos unida agraves observaccedilotildees dos ciclos naturais proporcionando a cada nome

ou feito comemorado uma data precisa Eacute aiacute que o desenvolvimento das

comemoraccedilotildees reencontra ao longo da modernidade a elaboraccedilatildeo de outro conceito

conceito paralelo que no Brasil de finais do seacuteculo XIX deixa ele mesmo de resistir

agraves tentaccedilotildees euclidianas e termina por tocar os contornos semacircnticos dos jubileus

nacionais E esse conceito devemos dizer comeccedila a ser lido muitos seacuteculos antes

depois apropriado aos antigos pelos modernos e evidenciado pela observaccedilatildeo natildeo do

mundo sublunar ou das gestas dos homens mas do movimento dos ceacuteus e do retorno

das estrelas

436 KOFF op cit 69

141

II

Efemeacuterides

142

3

Ordem da Natureza

As efemeacuterides e os nuacutemeros da mudanccedila

Em uma dissertaccedilatildeo que nos chega apresentada no volume dezoito de seus

Nouveaux Meacutelanges Voltaire assumia o pseudocircnimo de Soranus meacutedico de Trajano

Sua intenccedilatildeo Debater o problema da metempsicose tema que a sua maneira usaraacute

para discutir um outro nuacutemero de toacutepicos criticar o providencialismo de certos

interlocutores como Malebranche ou ainda perguntar se a alma de todo modo

poderia ser considerada uma faculdade Caso aceitemos seguindo o autor em seu

calculado vocabulaacuterio platocircnico que nosso corpo eacute o ldquoenvelope da almardquo como os

animais fazem seus membros obedecerem as suas vontades Como as ideias das

coisas formam-se neles atraveacutes dos sentidos E logo depois perguntaria Voltaire

realizando o vocirco que embora natildeo tenhamos asas para seguir poderiacuteamos ao menos

tentar acompanhar em seu pouso ldquoem que consiste a memoacuteriardquo 437

Para discutir essas questotildees o filoacutesofo busca a origem do conceito de alma

ldquoSe alguma naccedilatildeo antigardquo escreveu o autor dos Meacutelanges ldquopode reivindicar a honra

de ter inventado aquilo que chamamos de alma eacute provaacutevel que esta foi a casta dos

bracircmanesrdquo Vida doce agraves margens do Ganges frutos a colher por toda parte os

bracircmanes eram dados desde muito cedo na histoacuteria aos estudos e agrave meditaccedilatildeo Eles

chegaram mesmo a ldquoimaginar a metempsicoserdquo que natildeo poderia ser executada senatildeo

por ldquouma alma que muda de corpordquo ldquoA proacutepria palavra metempsicoserdquo explicava

Voltaire ldquoque eacute grega e que pode ter sido a traduccedilatildeo de uma liacutengua oriental significa

expressamente a migraccedilatildeo da almardquo Ora isso indicava que os bracircmanes ldquoacreditavam

na existecircncia de almas de tempos imemoriaisrdquo 438

437 VOLTAIRE De lrsquoAme par Soranus In Ouvres Complegravetes Philosophie Tome I Paris Antoine-

Augustin Renouard 1819 ldquo() qui passa por ecirctre lrsquoenveloppe de cette acircmerdquo p 205 ldquoII Lrsquoacircme est-elle

une faculteacute Comment tout animal fait-il obeacuteir ses membres agrave ses volonteacutes Commente les ideacutees des

choses se forment-elles dans lrsquoanimal par le moyen de ses sens En quoi consiste la meacutemoirerdquo p 207 438Ibid p 209 ldquoSi quelque nation antique put preacutetendre agrave lhonneur davoir inventeacute ce que nous

appelons chez nous une acircme il est agrave croire que ce fut la caste des brachmanes sur les bords du Gange

car elle imagina la meacutetempsycose et cette meacutetempsycose ne peut sexeacutecuter que par une acircme qui

143

Tempos imemoriais Se a sucessatildeo de geraccedilotildees natildeo conseguia guardar a

lembranccedila das eras antigas na leitura de Voltaire as almas fariam vezes de uma

unidade de sentido capaz de transcender toda limitaccedilatildeo da memoacuteria Eacute assim que o

filoacutesofo explicava em seu tempo a perenidade dos costumes e tradiccedilotildees ancestrais

indianas Foi graccedilas agrave crenccedila na migraccedilatildeo das almas afirmou o iluminista ldquoque os

descendentes dos brachmanesrdquo resistiram agrave currupccedilatildeo de seus costumes (mœurs)

arquitetada pelos ldquosalteadores europeus que a avareza transportou ao Gangesrdquo 439

Voltaire lembra a seguir as viagens que muitos filoacutesofos antigos

empreenderam agrave Iacutendia e chega a arriscar a conclusatildeo de que ldquotoda a antiga teologia

diferentemente dissimulada na Aacutesia e na Europa nos chega incontestavelmente dos

bracircmanesrdquo 440 O notaacutevel exagero parece ter como intenccedilatildeo polemizar com

Malebranche esse ldquonovo filoacutesofordquo que ousava acreditar na alma como uma

substacircncia doada pela providecircncia aos homens Natildeo para Voltaire ndash falando pela

boca de Soranus ndash a alma natildeo era uma substacircncia Ela era tatildeo somente uma faculdade

de nosso corpo propriedade capaz de animaacute-lo atraveacutes desse lado intangiacutevel da

existecircncia Deificar a alma assim como um dia divinizou-se a memoacuteria insinuaria

Voltaire era coisa da ldquometafiacutesica do populacho () essa supersticcedilatildeo ridicula e

vergonhosa vinda evidentemente daquele que imaginou no homem uma pequena

substacircncia divinardquo 441 Ainda assim

ldquoOs homens supuseram uma alma pelo mesmo erro que

os fez supor entre noacutes um ser chamado Memoacuteria que a

seguir foi divinizado Eles fizeram dessa Memoacuteria a matildee

das Musas Eles ergueram os diversos talentos da

natureza humana como deusas meninas da Memoacuteriardquo442

change de corps Le mot mecircme de meacutetempsycose qui est grec et qui ne peut ecirctre quune traduction

dapregraves une langue orientale signifie expresseacutement la migration de lacircme Les brachmanes croyaient

donc lexistence des acircmes de temps immeacutemorialrdquo Grifos meus 439Ibid p 209 ldquoIl en est encore ainsi chez tous les brames descendans des anciens brachmanes qui

nont point corrompu leurs mœurs par la freacutequentation des brigands dEurope que lavarice a

transplanteacutes vers le Gangerdquo 440Ibid p 205 ldquoAinsi nous voyons que toute lrsquoancienne theacuteologie diffeacuteremment deacuteguiseacutee en Asie et en

Europe nous vient incontestablement des brachmanesrdquo 441ibid p 214 ldquoCeacutetait la meacutetaphysique de la populace Cette superstition ridicule et honteuse venait

eacutevidemment de celle qui avait imagineacute dans lhomme une petite substance divine autre que lhomme

mecircmerdquo 442 ibid Les hommes nrsquoont supposeacute une acircme que par la mecircme erreur qui leur fit supposer dans nous un

ecirctre nommeacute Meacutemoire lequel ecirctre ils divinisegraverent ensuite Ils firent de cette Meacutemoire la megravere des

Muses Ils eacuterigegraverent les talents divers de la nature humaine en autant de deacuteesses filles de Meacutemoire pp

219-220

144

Alma e memoacuteria se quisermos seguir esse raciociacutenio tornar-se-iam parte de

uma mesma faculdade ordenadora da mente humana A crenccedila na transmigraccedilatildeo

agora serviria como transmissora dos costumes (mœurs) garantindo a comunicaccedilatildeo

geracional e posando de fiadora de uma identidade coletiva ainda que dada por

atribuiccedilotildees morais Tudo se passa como se pudessemos conquistar a imortalidade

pelas letras de uma faacutebula Atraveacutes de um pseudocircnimo que comemora Soranus a

ironia de Voltaire faz a alma dos antigos ler e responder jaacute com um espiacuterito moderno

a Malebranche e ao providencialismo O paralelismo entre alma e memoacuteria enquanto

crenccedilas compartilhadas talvez nos ajudem a traduzir toda uma seacuterie de expressotildees tatildeo

caras ateacute os seacuteculos XVIII e XIX que hoje no entanto podem soar como jargotildees

vazios ao historiador a ldquomeacutemoire eternellerdquo essa ldquomemoacuteria imorredoura dos povosrdquo

ou qualquer outro tipo de variaccedilatildeo inspiradas nos modelos antigos Seriam expressotildees

que tentavam a partir de suas experiecircncias historicamente contingentes dar conta da

ldquomemoacuteria coletivardquo antes que Maurice Halbwachs e as ondas testemunhais do poacutes-

guerra pudessem se fazer ouvir e impor suas autoridades443

Essa faculdade humana entendida pela ldquometafiacutesica do populachordquo por vezes

como alma por outras como memoacuteria ao fim natildeo deixaria de ser lida nas estrelas O

repouso a meditaccedilatildeo em suma toda uma vida voltada a contemplar o cosmos ndash

experiecircncias comuns na visatildeo de Voltaire aos antigos bracircmanes ndash os levaram a

reconhecer tambeacutem certa ordem na natureza Olhos atentos aos ceacuteus ldquoeles satildeo os

primeiros que calcularam para a posteridade a posiccedilatildeo dos planetas visiacuteveisrdquo Aos

bracircmanes ldquodevemos as primeiras efemeacuterides e eles ainda as compotildee com uma aacutegil

facilidade que surpreende ateacute hoje nossos matemaacuteticosrdquo444

A referecircncia agraves efemeacuterides na fala de Soranus ndash fala cujo fio condutor eacute o

debate sobre a metempsicose ndash natildeo parece fortuita Ela acena ao cosmos agrave ordem da

443 Essa questatildeo foi proposta por RUSSEL Nicolas Collective Memory before and after Halbwachs

In The French Review Vol 79 No 4 March 2006 Para o problema ao longo da primeira

modernidade e da renascenccedila ver RUSSEL Nicolas Construction et repreacutesentation de la meacutemoire

collective dans les entreacutees triomphales au XVIe siegravecle In Renaissance et Reacuteforme 322 Printemps

2009 Nos dois textos o autor defende que a definiccedilatildeo de memoacuteria coletiva tal como encampada na

segunda metade do seacuteculo XX pelos estudos sociais possui uma relaccedilatildeo iacutentima com a identidade de

grupos a partir da experiecircncia direta ou das lembranccedilas do vivido No seacuteculo XVI como explica em

Construccedilatildeo Representaccedilatildeo (2009) ldquoo conteuacutedo da memoacuteria coletiva natildeo eacute apresentado como o espelho

da identidade singular de um grupo mas sobretudo como uma coleccedilatildeo de exemplos e de textos que

perduram graccedilas a seu valor eacutetico ou esteacuteticordquo (54-55) 444 VOLTAIRE Idebm Ibidem ldquoCe repos et cette meacuteditation qui furent toujours le partage des

brachmanes leur fit dabord connaicirctre lastronomie Ils sont les premiers qui calculegraverent pour la

posteacuteriteacute les positions des planegravetes visibles On leur doit les premiegraveres eacutepheacutemeacuterides et ils les

composent encore aujourdhui avec une faciliteacute prompte qui eacutetonne nos matheacutematiciensrdquo Grifos meus

145

natureza ao tempo do calendaacuterio e com a ideia de movimento recorrente das esferas

agrave transmigraccedilatildeo das almas Reconhecimento moderno de uma concepccedilatildeo antiga em

alguma medida lida na danccedila dos orbes celestes para o que chamariacuteamos hoje de

memoacuteria e de identidade de um povo A relaccedilatildeo entre a metempsicose e a

transmissatildeo (ou transmigraccedilatildeo) do conhecimento e da virtude jaacute foi reconhecida em

diversos autores gregos ligados agrave astronomia em especial nos astrocircnomos da escola

de Miletos445 Natildeo eacute esse difiacutecil caminho no entanto que vamos tomar Por ora basta

apontar e reconhecer em alguns capiacutetulos da histoacuteria do conceito de efemeacuteride sua

associaccedilatildeo a diversas praacuteticas e dentre elas certa simpatia recorrente pelo topos da

influecircncia celeste Entre antigos e modernos vamos agora comeccedilar a acompanhar a

histoacuteria do conceito e de seus usos Conceito pensado como forma de descrever

gestas ora dos homens ora dos astros as praacuteticas que se associaram a ele natildeo

deixaram de fazecirc-lo transitar da natureza ao tempo da filosofia natural agrave luz puacuteblica

da poliacutetica aos debates histoacutericos O trajeto deve nos levar ao Brasil de finais do

seacuteculo XIX quando jaacute como um subgecircnero historiograacutefico as efemeacuterides

encontraratildeo lugar ao lado das grandes comemoraccedilotildees nacionais

31 Efemeacuterides antigas a ordem do tempo submissa

ldquoMuitas vezes ele gostava de sair agrave caccedila de raposas ou de aves como

podemos ver nas Efemeacuteridesrdquo 446 Plutarco referia-se agraves Efemeacuterides de Alexandre um

jornal de fatos da vida do rei obra redigida por Eumenes de Caacuterdia e que chega ateacute

noacutes senatildeo pelas referecircncias que a ela fez o bioacutegrafo grego ao lado de outros poucos

comentadores447 Semprocircnio Aseacutelio historiador latino da geraccedilatildeo de Poliacutebio chegou

a refletir sobre o gecircnero448 Tribuno militar do jovem Cipiatildeo acompanhou-o durante o

445 Sobre a metempsicose pitagoacuterica como ldquoconstante movimento da alma que eacute o princiacutepio da vida e

do movimento instrumento para a transmissatildeo e transmigraccedilatildeo do conhecimento e da virtuderdquo ligados

a concepccedilatildeo de que o movimento da alma (psyche) define a ordenaccedilatildeo do cosmos ver PEREIRA

Angelo Balbino Soares A Teoria da Metempsicose Pitagoacuterica Dissertaccedilatildeo de mestrado UNB 2010

Sobre Tales e Anaximandro de Mileto (ldquoprofessores de Pitaacutegorasrdquo segundo a tradiccedilatildeo biograacutefica

antiga) principalmente pp 23-24 51-52 70 446 Na traduccedilatildeo francesa de Alexis Pierron ldquoSouvent il srsquoamusait agrave chasser au renard ou aux oiseaux

comme on peut le voir dans les Eacutepheacutemeacuterides (ἐφημερίδων)rdquo PLUTARQUE Les vies des hommes

illustres Tome Troisiegraveme vie drsquoAlexandre Traduc par Alexis Pierron (Bilingue) Paris Charpentier

Libraire-Eacutediteur 1853 [23468] 447 In Plut Vit Alex p 98 Sympos L t op T II p 623 Athen L I p 434 Aelian Var Hist L III

C XXIII 448 Esse eacute tambeacutem o momento no qual aparecem as primeiras manifestaccedilotildees da palavra histoacuteria usada

como sinocircnimo de ldquoacontecimentordquo Segundo Christian Meier ldquoiotopia assumiu o significado de

146

cerco da Numacircncia tendo escrito uma histoacuteria dos Gracos e das Guerras Puacutenicas que

se perdeu Apesar disso conhecemos algumas de suas palavras atraveacutes de escritos

posteriores No capiacutetulo XVIII do quinto livro das Noites Aacuteticas Aulo Geacutelio (circa

125-180 AD) transcreveu uma passagem das histoacuterias de Asellio Antes fez sobre ela

um breve comentaacuterio interessado como estava em compreender e distinguir os

diferentes gecircneros existentes para se registrar os feitos dos homens (res gestas) Em

Roma a tradiccedilatildeo dos Annales era bem conhecida mas ldquoquando () os eventos satildeo

gravados natildeo ano a ano mas dia a dia essa histoacuteria eacute chamada em grego efemeacuteride

(ἐφημερίς) ou um diaacuteriordquo 449 Inspirado em Poliacutebio Asellio natildeo pretendia tatildeo

somente propor anais nem menos ainda confortar-se com diaacuterios Natildeo estava

satisfeito em apenas ldquofazer saber o que aconteceurdquo mas tambeacutem em demonstrar o

propoacutesito (consilio) e a razatildeo (ratione) de um feito (gesta) 450 Operaccedilatildeo que quase

mil anos mais tarde seria saudada em Poliacutebio por Herder ndash interlocutor criacutetico de

Voltaire ndash como um princiacutepio de histoacuteria enquanto ldquodoutrina estruturalrdquo ou uma

ldquofilosofia cheia de exemplosrdquo 451

ldquoHistoacuteriardquo (no sentido de acontecimento) Eacute em Poliacutebio que encontramos pela primeira vez a palavra

utilizada dessa formardquo MEIER Christian Antiguidade In KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito

de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 46 Poderia-se supor portanto que dentre os

historiadores da geraccedilatildeo de Poliacutebio jaacute existia o repertoacuterio necessaacuterio para o reconhecimento de pelo

menos um dos sentidos fundamentais associados ao termo efemeacuteride o das efemeacuterides histoacutericas que

registram os acontecimentos em sua unicidade dispostos em meio a um calendaacuterio de dias recorrentes 449GELLIUS Aulus The Attic Nights John Carew Rolfe (ed) Cambridge London Harvard

University Press 2002 [5187] ldquoCum vero non per annos sed per dies singulos res gestae scribuntur

ea historia Graeco vocabulo ἐφημερὶς dicitur cuius Latinum interpretamentum scriptum est in libro

Semproni Asellionis primo ex quo libro plura verba ascripsimus ut simul ibidem quid ipse inter res

gestas et annales esse dixerit ostenderemusrdquo Na traduccedilatildeo inglesa de Rolfe ldquoWhen however events

are recorded not year by year but day by day such a history is called in Greek ἐφημερίς or a diary a

term of which the Latin interpretation is found in the first book of Sempronius Asellio I have quoted a

passage of some length from that book in order at the same time to show what his opinion is of the

difference between history [res gestas] and chronicle [annales]rdquo Encontrei ainda um comentaacuterio em

francecircs laquo Eacutecrire lrsquohistoire non par anneacutees mais par jour crsquoest ce que les Grecs appellent une

Eacutepheacutemeacuteride mot dont nous trouvons la traduction latine dans le premier livre de Sempronius Asellio

lorsqursquoil eacutetabli ainsi la diffeacuterence entre des annales et une histoire laquo Les annales indiquaient

seulement dit-il le fait et lrsquoanneacutee du fait comme ceux qui eacutecrivaient un journal (diarum) que les

Grecs nomment lsquoEacutepheacutemeacuteridesrsquo raquo DUBIEF Eugeacutene Le Journalisme Bibliothegraveque des Merveilles

Librairie Hachette Paris 1892 p 5 450 GELLIUS 5188 ldquoNobis non modo satis esse video quod factum esset id pronuntiare sed etiam

quo consilio quaque ratione gesta essent demonstrarerdquo Na traduccedilatildeo inglesa de Rolfe ldquoI realize that it

is not enough to make known what has been done but that one should also show with what purpose

and for what reason things were donerdquo 451 ldquoIsso eacute verdade sobre Poliacutebio cuja histoacuteria jaacute foi chamada por outros de uma filosofia cheia de

exemplos E para ser claro isto eacute uma doutrina estruturalrdquo Na traduccedilatildeo inglesa de Michael Forster

ldquoThat is indeed true of Polybius whose history has already been called by others a philosophy full of

examples And to be sure that is a doctrinal structurerdquo HERDER Johann Gottfried Von Older

Critical Forestlet In Philosophical Writings Edited by Michael N Forster Cambridge University

Press Cambridge 2002 p 265

147

Eacute o mesmo sentido de diaacuterio que encontramos como referecircncia em Pro

Quinctio ldquoQuinctius ao sairrdquo escreveu Ciacutecero ldquocomeccedilou a lembrar em que dia ele

deixou Roma em direccedilatildeo agrave Gaacuteliardquo Para isso ldquoele vai ateacute o seu jornal (ad

ephemeridem reuertitur) e encontra o dia de sua saiacuteda 31 de Janeirordquo 452 Cadernos e

registros diaacuterios de financcedilas tambeacutem podiam na Roma republicana ser chamados de

efemeacuterides como vemos em um dos fragmentos da vida de Atticus e em uma das

infames elegias de Oviacutedio453

Durante o principado entretanto as fontes comeccedilam a atribuir outra acepccedilatildeo

mesmo que anaacuteloga agravequele presente nos registros anteriores Na eacutepoca de Nero como

registrou Pliacutenio a medicina de Crinas de Massilia tornou-se popular ldquoCrinas ndash

escreveu o autor da Histoacuteria Natural ndash para parecer precavido e mais religioso juntou

duas artes ele administrava alimentos de acordo com o movimento dos astros

gravados nas efemeacuterides matemaacuteticas observando as horasrdquo 454 Ainda um jornal

diaacuterio natildeo unicamente pessoal e particular mas agora organizado por um nexo

natural455 No ocidente as efemeacuterides comeccedilam a marcar o tempo da natureza e com

os olhos nas estrelas especular sua influecircncia no mundo sublunar unindo por um

punhado de nuacutemeros a razatildeo a um propoacutesito universal456

452 CICERO Pro Quinctio oratio XVIII In NISARD (dir) Ouvres Complegravetes de Ciceacuteron Tome II

Imprimeurs de lrsquoinstitut de France Paris 1869 ldquoDiscedens in memoriam redit Quinctius quo die Roma

in Galliam profectus sit ad ephemeridem reuertitur inuenitur dies profectionis pridie kaL Febr- Nonis

Febrrdquo 453 () non amplius quam terna milia peraeque in singulos menses ex ephemeride eum expensum

sumptui ferre solitum ROLFE John C (Org) CORNELII NEPOTIS Vitae The Lives of Cornelius

Nepos With Notes Exercices and Vocabulary Boston Allyn and bacon 1894 [Att 136] p 129 Em

Oviacutedio XII25 ldquoInter ephemeridas melius tabulasque iacerent in quibus absumptas fleret avarus opesrdquo

Na traduccedilatildeo de Nisard ldquo() elle eacutetait bien plus propre agrave servir drsquoeacutepheacutemeacuterides agrave lrsquoavare qui nrsquoy aurait

qursquoen pleurant noteacute la bregraveche faite agrave son treacutesorrdquo NISARD (dir) Ovide Ouvres complegravetes J-J

Dubochet Eacutediteurs Paris 1838 454 PLINE lrsquoAncien Histoire Naturalle Tome Second Livre XXX Eacutemile Littre (traduction) Paris JJ

Dubochet Eacuteditors 1850 Plin HN 293 Na traduccedilatildeo de Littre ldquoCrinas pour paraicirctre plus preacutecautionneacute

et plus religieux joignait deux arts il donnait les aliments drsquoapregraves le mouvement des astres consigneacute

sur des eacutepheacutemeacuterides matheacutematiques et observait les heuresrdquo No latim ldquocum crinas massiliensis arte

geminata ut cautior religiosiorque ad siderum motus ex ephemeride mathematica cibos dando

horasque observando auctoritate eum praecessitrdquo Grifos meus 455 Caso natildeo unissem o natural (universal) ao particular as efemeacuterides ndash marcando eventos que

ocorrem nos mesmos meses ou dias poreacutem em anos diversos ndash natildeo poderiam ser capazes de distinguir

um ano de outro e consequentemente os fatos em si a soluccedilatildeo romana (no gecircnero das crocircnicas

analiacutesticas) foi no sentido de ritmar o tempo pela alternacircncia dos cocircnsules Ver POMIAN Krzystof

Lrsquoordre du temps Paris Gallimard 1984 p II 456 Sentido paralelo ndash composto pela uniatildeo entre duas artes ndash nutre-se do primeiro (que remete ao dia a

dia humano) e natildeo o anula como percebemos na leitura de certos contemporacircneos de Crinas ldquoYou are

sober when you make your daily appearence in public ()rdquo ldquosic cenas tamquam ephemeridem patri

adprobaturus ()rdquo SENECA Ad Lucilium Epistulae Morales E Capps (org) The Loeb Classical

Library Richard M Gummere (transl) Vol III London William Heinemann 1925 pp 430-431 [Sen

Ep 123-10]

148

A popularidade do topos da influecircncia celeste eacute atestada pela literatura latina

dos primeiros seacuteculos de nossa era Ou em sua mais extensa e famosa saacutetira Juvenal

natildeo fizera pilheacuteria das crenccedilas astroloacutegicas O poeta comeccedila com uma paroacutedia de

Hesiacuteodo e Oviacutedio ilustrando as Idades do Homem a luz da degradaccedilatildeo moral do

tempo dos ceacutesares Na Idade de Ouro natildeo havia necessidade para se temer os ladrotildees

Na Idade de Prata os primeiros adulteacuterios satildeo registrados Na Idade de Ferro todo o

tipo de crime eacute generalizado Sua sexta saacutetira dedicada agraves mulheres eacute na verdade um

esboccedilo misoacutegino e sarcaacutetisco que aponta agrave corrupccedilatildeo dos valores femininos saudando

Corneacutelia Africana filha de Cipiatildeo o jovem como exemplo das virtudes perdidas457

Por sua natureza afetada as mulheres de Juvenal eram propensas a todo o tipo

de ignoracircncia e supersticcedilatildeo Deixavam-se facilmente levar pelos desiacutegnios dos

sacerdotes eunucos de Bellona deusa da guerra ou de Cybele matildee dos deuses

Abriam de grado agraves portas de casa a divindades estrangeiras aos cultistas de Isis aos

sacerdotes judaicos ou armecircnios ainda encontrando tempo para escutar conselhos de

astroacutelogos caldeus Quando dotadas de alguma inteligecircncia tornavam-se ainda mais

perigosas Algumas delas versadas nessas artes orientais chegavam a conquistar um

puacuteblico proacuteprio Ora vestidas agrave moda grega serelepes e libidinosas manuseavam

tabeacutelas de efemeacuterides como quem esfregava pedaccedilos de ambar no proacuteprio corpo

proferindo auguacuterios de aroma perfumado458

Mais tarde jaacute no baixo impeacuterio Ammianus Marcellinus descreveu os

costumes da aristocracia romana do final do seacuteculo IV ldquoAlguns delesrdquo disse o autor

da Rerum Gestarum ldquonatildeo aparecem em puacuteblico nem se banham ou comem sem antes

fazer um exame criacutetico das efemeacuterides e aprender aonde por exemplo o planeta

Mercuacuterio estaacute ou qual grau da constelaccedilatildeo de Cacircncer a lua ocupa em seu curso pelos

ceacuteusrdquo 459 A relaccedilatildeo das elites romanas para com as teorias da influecircncia celeste

457 ldquoSim eu prefiro a ti matildee Corneacuteliardquo ldquoMalo Venusinani quam te Cornelia materrdquo Na traduccedilatildeo de

Jules Lacroix ldquoOui je preacutefegravere agrave toi sublime CorneacutelieUne Veacutenusienne en sa rusticiteacute LACROIX

Jules (trad) Satires de Juveacutenal et Perse Paris Firmin Didot 1846 (JuvenalSat26) 458 ldquoIn cuius manibus ceu pinguia sucina tritas cernis ephemeridasrdquo na leitura de Watson ldquothe woman

carries her almanac tablets around with her thumbing them much as women rubbed lumps of amber

(sucina) which they bore on their person to produce a fragrant scentrdquo WATSON Lindsay (org)

Juvenal Satire VI Cambridge Greek and Latin Classics Cambridge University Press 2014 p 254 459 Rerum Gestarum 28424 ldquoMulti apud eos negantes esse superas potestates in caelo nec in

publicum prodeunt nec prandent nec lavari arbitrantur se cautius posse antequam ephemeride

scrupulose sciscitata didicerint ubi sit verbi gratia signum Mercurii vel quotam Cancri sideris partem

polum discurrens obtineat lunardquo Na traduccedilatildeo inglesa de Rolfe ldquoMany of them who deny that there are

higher powers in heaven neither appear in public nor eat a meal nor think they can with due caution

take a bath until they have critically examined the calendar and learned where for example the planet

Mercury is or what degree of the constellation of the Crab the moon occupies in its course through the

149

parece ter sido utilitaacuteria senatildeo mesmo instrumental passando de bonae artes quando

mantidas na seguranccedila do palaacutecio ou domus patriarcal a externae supertitiones ao

serem professadas em ambientes externos ou rivais de algum ciacuterculo de poder Dion

Caacutessio mais de uma centena de anos antes de Marcellinus jaacute havia mesmo reportado

a apropriaccedilatildeo que os imperadores fizeram dos saberes celestes Na Histoacuteria Romana

Seacuteptimo Severo realiza julgamentos em uma sala cujos limites superiores eram

adornados pelas imagens dos astros sob os quais havia nascido com a notaacutevel

exceccedilatildeo devemos lembrar da ldquoporccedilatildeo do ceacuteu no qual como expressavam os

astroacutelogos lsquoobservava a horarsquo em que ele viu a luz pela primeira vezrdquo 460 A

informaccedilatildeo a respeito de sua efemeacuteride primordial era mantida como segredo de

Estado uma vez que seu potencial ndash diriacuteamos noacutes cronosoacutefico ndash autorizava as

externas supertitiones a realizar prognoacutesticos a respeito da longevidade de sua vida e

de seu principado461 ldquoApenas os astrocircnomos e os astroacutelogosrdquo escreveria Krzystof

Pomian ldquotinham necessidade de uma grande precisatildeo e apenas eles utilizavam

instrumentos que lhes permitiam medir mesmo horas e minutosrdquo 462

heavensrdquo In ROLFE John c Ammianus Marcellinus With An English Translation Cambridge

Cambridge Mass Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1935-1940 460 Dion Caacutessio Histoacuteria Romana LXVII 111 Na traduccedilatildeo inglesa de Cary ldquoHe knew this chiefly

from the stars under which he had been born for he had caused them to be painted on the ceilings of

the rooms in the palace where he was wont to hold court so that they were visible to all with the

exception of that portion of the sky which as astrologers express it lsquoobserved the hourrsquo when he first

saw the light for this portion he had not depicted in the same way in both roomsrdquo HENDERSON

Jeffrey (Ed) Dio Cassius Roman History Volume IX Books 71- LCL119 With an english

translation by Earnet Cary on the basis of the version of Herbert Baldwin Foster Harvard University

Press Cambridge Massachusetts London England 2001 [1927] p 263 Na traduccedilatildeo francesa de Gros

(que curiosamente marca o livro LXVI como referecircncia) ldquoIl le savait surtout dapregraves la connaissance

des astres sous lesquels il eacutetait neacute (il les avait fait peindre sur les plafonds des salles de son palais ougrave il

rendait la justice en sorte quexcepteacute le moment preacutecis qui se rapportait agrave lheure ougrave il eacutetait venu au

jour agrave son horoscope comme on dit tout le monde pouvait les voir car ce moment neacutetait pas figureacute de

mecircme de chaque cocircteacute)rdquo GROS E (dir) Histoire Romaine de Dion Cassius Tome Neuviegraveme Paris

Virmin Didot 1867 461 Sobre as estrateacutegias de consolidaccedilatildeo da dinastia severa ver GONCcedilALVES Ana Teresa Marques

Propaganda no Periacuteodo Severiano A Construccedilatildeo da Imagem Imperial Tese de Doutorado

Universidade de Satildeo Paulo 2002 Sobre o papel das previsotildees astroloacutegico-matemaacuteticas na legitimaccedilatildeo

imperial severiana ver ZERUTUZA Hugo Andreacutes BOTALLA Horacio Centros e Maacutergenes

Simboacutelicos del Imperio Romano Buenos Aires UBA 1998 pp 199-201 e tambeacutem o artigo que

demonstra as caracteriacutesticas estoicas do poema de Manilio GONCcedilALVES Ana Teresa Marques

Astrologia e poder o caso de Marcus Manilius XXIV Simpoacutesio Nacional de Histoacuteria 2007 Textos

que tomo por guia 462 ldquo() seuls les astronomes et les astrologues avaient besoin d`une grande exactitude et seuls ils

utilisaient donc les instruments qui leur permettaient de mesurer les heures et les minutesldquo POMIAN

1984 p IV Logo a seguir Pomian apresenta uma primeira definiccedilatildeo de seu conceito de cronosofia ldquoAgrave

un tel questionnement de l`avenir qui preacutetend aboutir agrave des reacuteponses permettant de s`en repreacutesenter de

faccedilon veacuteridique sinon les menues particulariteacutes du moins les grandes lignes je donnerai le nom de

chronosophierdquo idem p V-VI No capiacutetulo XIV do primeiro livro da Repuacuteblica Ciacutecero descreve um

mecanismo em bronze capaz de simular o movimento das esferas celestes e prever eclipses com

precisatildeo ldquoAssim que Gallus colocou a esfera em movimentordquo relatou Ciacutecero ldquovimos a lua suceder ao

150

As referecircncias zodiacais entre os altos ciacuterculos de poder da repuacuteblica romana

poderiam ser recuadas de fato ao primeiro principado Marcus Manilius dedicou a

Otaacutevio um longo poema didaacutetico-astroloacutegico dotado de um claro vocabulaacuterio estoico

ldquoEu cantareirdquo declamou o poeta ao ldquomonarca silencioso da natureza () pois um

uacutenico sopro (spiritus) reside em todas as suas partes () mestre controlador de tudo

() dirige os seres da Terra pelo curso das estrelasrdquo 463 Leis secretas conhecimentos

divinos sobre os astros simpatia das esferas e da Terra definindo as vicissitudes

humanas por meio de uma uacutenica e fatal vontade Otaacutevio encarnando o genius

ordenador chegaria a assumir a imagem do carneiro estampaacute-la em suas moedas

fazendo alusatildeo ao signo da casa de Capricoacuternio464 A astrologia de Maniacutelio assim

apropriada foi em essecircncia zodiacal tendo por base referecircncias mitoloacutegicas por

exerciacutecio a magia e como ponte de ligaccedilatildeo com o divino (religio) certo

conhecimento revelado465

sol no horizonte terrestre como ela o sucede todos os dias no ceu vimos consequentemente o sol

desparecer no ceu e pouco agrave pouco a lua mergulhou na sombra da terra no momento mesmo em que o

sol no canto opostordquo ldquoHanc sphaeram Gallus quum moveret fiebat ut soli luna todidem

conversionibus in aeumlre illo quot diebus in ipso caelo succederet ex quo et in [caelo] sphaera solis fieret

eadem illa defectio et incideret luna tum in eam metam quae esset umbra terrae quum sol e

regionerdquo Na traduccedilatildeo de Nisard ldquoLorsque Gallus mettait la sphegravere en mouvement on voyait agrave

chaque tour la lune succeacuteder au soleil dans lrsquohorizon terrestre comme elle lui succegravede tous les jours

dans le ciel on voyait par conseacutequent le soleil disparaicirctre comme dans le ciel et peu agrave peu la lune

venir se plonger dans lrsquoombre de la terre au moment mecircme ougrave le soleil du cocircteacute opposeacuterdquo CICEacuteRON

Ouvres Complegravetes Nisard (trad) Tome Quatriegraveme Paris JJ Dubochet 1841 p 286-287 Esse

invento segundo Ciacutecero teria sido trazido a Roma por Marcus Claudius Marcellus conquistador de

Siracusa e sua autoria atribuiacuteda a Arquimedes partindo dos trabalhos de Tales de Miletos e Eudoxe de

Cnide (disciacutepulo de Platatildeo) A descriccedilatildeo do mecanismo guarda semelhanccedilas com os fragmentos da

maacutequina em bronze encontrada na ilha de Anticiacutetera em 1901 e exposta no Museu Nacional de

Arqueologia de Atenas 463 Livro II vers 60-73 ldquonamque canam tacita naturae mente potentem () cum spiritus unus per

cunctas habitet partes atque irriget orbem () tota magistro ac tantum mundi () erraretque vagus

mundus standove rigeret nec sua dispositos servarent sidera cursus noxque alterna diem fugeret

rursumque fugaret ()rdquo MANILIUS Astronomica GOOLD (ed) Cambridge Harvard University

Press 1977 464 Vide Portrait of Octavian Capricorn kerykeion shield dolphin trident altar and the hand holding

a shipboard decoration Sardonyx Twenties of the 1st century BC 25 times 24 cm Inv No Ж 263

Saint-Petersburg The State Hermitage Museum Para uma discussatildeo mais extensa ndash incluindo uma

revisatildeo bibliograacutefica ndash sobre os usos da imagem de Capricoacuternio no contexto da guerra civil romana ver

BARTON Tamsyn S Power and Knowledge Astrology Physiognomics and Medicine under the

Roman Empire Ann Arbor The University of Michigan Press 1994 [2002] Em especial a parte

Astrology Divination and the Fall of the Republic Cap 1 Star Wars in the Greco-Roman World

Principalmente pp 40-42 Cf GOUREVITCH D Tamsyn S BARTON Power and Knowledge In

Lantiquiteacute classique Tome 73 2004 pp 480-481 465 Cicero em seu tratado sobre De divinatione explica as caracteriacutesticas das crenccedilas e prognoacutesticos

(Prognostica) estoicos ldquode iniacutecio [de acordo com a doutrina dos estoicos] o universo foi criado de tal

forma que certos resultados seriam precedidos por alguns sinais que satildeo dados por vezes pelas

entranhas e por paacutessaros algumas vezes por relacircmpagos por portentos e por estrelas algumas vezes

por sonhos () (I III 118) ldquoQuando antes do nascer do Sol a Lua foi eclipsada no signo de Leatildeo isso

151

Seriam os saberes ocultos e as praacuteticas maacutegicas o uacutenico caminho para se

desenvolver uma teoria da influecircncia celeste No seacuteculo II um estudioso da biblioteca

de Alexandria vai propor outra abordagem Claacuteudio Ptolomeu (circa 100-178 AD)

conhecido entre noacutes como astrocircnomo antigo e um dos pais da cartografia propocircs uma

sistematizaccedilatildeo do modelo geocecircntrico na sua obra Almagesto Tambeacutem uma Syntaxis

mathematica o texto oferecia a descriccedilatildeo numeacuterica do movimento das esferas tendo

a Terra eacute claro como centro do universo Tratava-se de uma compilaccedilatildeo bastante

precisa da observaccedilatildeo milenar caldeia egiacutepcia e grega do movimento estelar Em

outro trabalho ndash o chamado ldquoLivro Quadruplordquo ndash Ptolomeu expunha os princiacutepios

daquilo que acreditava ser a aplicaccedilatildeo desse conhecimento ldquoDos meacutetodos de

previsatildeo astronocircmicardquo escreveu Ptolomeu logo no iniacutecio do seu Tetrabiblos ldquodois

satildeo mais importantes e vaacutelidosrdquo O primeiro e segundo o proacuteprio autor mais seguro

eacute aquele pelo qual ldquoapreendemos os aspectos dos movimentos do Sol da Lua e das

estrelas em relaccedilatildeo uns aos outros e a Terra do modo em que eles ocorrem de tempo

em tempordquo O segundo seria o modo que opera ldquoa partir do caraacuteter natural desses

aspectosrdquo investigando ldquoas mudanccedilas que elas trazem naquilo que os cercamrdquo 466

De linguagem seca e desprovida de muitos dos floreios da retoacuterica claacutessica o

primeiro livro do Tetrabiblos disponibilizava a seus leitores uma condensada

reformulaccedilatildeo de conceitos basais a respeito das estrelas errantes e fixas dos signos e

suas relaccedilotildees com os planetas O segundo livro tratava da astrologia geograacutefica da

metereologia e de eventos gerais No terceiro temos uma apreciaccedilatildeo dos horoscopos

individuais para jaacute no quarto lermos uma anaacutelise mais detelhada de suas

especificaccedilotildees Como comentou Ornella Faracovi ldquoo tratado era composto de uma

revisatildeo da tradiccedilatildeo astroloacutegica consolidando seus fundamentos geomeacutetricos e

astronocircmicosrdquo ainda pouco evidentes em escritores populares como Manilius A

autora natildeo deixou de ressaltar que no Livro Quadruplo Ptolomeu conectava-se a

temas da filosofia natural peripateacutetica fechando agraves portas da razatildeo agraves accedilotildees

demoniacuteacas ou supernaturais ldquoOs planetas eram tomados como entidades fiacutesicasrdquo

indicou que Daacuterio e os persas seriam vencidos na batalha pelos macedocircnios dirigidos por Alexandre (I

IV 120-1) NISARD op cit Tome IV pp 184-186 466 ldquoOf the means of prediction through astronomy O Syrus two are the most important and valid

One which is first both in order and in effectiveness is that whereby we apprehend the aspects of the

movement of sun moon and stars in relation to each other and to earth as they occur from time to

time the second is that in which by means of natural character of these aspects themselves we

investigate the changes which they bring about in that which they surroundrdquo Sendo o original em grego

alexandrino utilizei a traduccedilatildeo inglesa de ROBBINS FE Ptolomy Tetrabiblos Loeb Classical

Library No 435 1940 p 3

152

completou Faracovi ldquocujos movimentos e relaccedilotildees de reciprocidade eram dispostos

como efeitos naturais nas mateacuterias do mundo sublunarrdquo Egiacutepcio e alexandrino

Ptolomeu estava familizariado com o corpus hermeacutetico embora soacute lhe rendesse

tributos quando via neles atribuiccedilotildees medicinais em partes bastante especiacuteficas da

obra Quanto ao tema estoico a respeito da infalibilidade das previsotildees tatildeo criticado

por Ciacutecero e Sexto Empiacuterico era posto completamente de lado em nome da

dificuldade imposta pelas causas acidentais467

Em uma eacutepoca na qual astrologia e astronomia eram termos intercambiaacuteveis

Claudio Ptolomeu parecia igualmente expor uma primeira distinccedilatildeo entre aquilo que

em um regime de verdade posterior marcaraacute os limites de duas praacuteticas

essencialmente diversas Antes uma descriccedilatildeo matemaacutetica dos movimentos celestes

com o Almagesto Depois no Tetrabiblos chegamos ao tratado que examina o tipo de

influecircncia entendida sempre por meios fiacutesicos que o deslocamento das esferas vai

exercer no mundo sublunar ldquoEacute muito evidenterdquo declarou o saacutebio de Alexandria ldquoque

a maioria dos fatos de natureza geral retiram suas causas dos ceacuteusrdquo 468 Como na fiacutesica

de Aristoacuteteles filoacutesofo citado logo no prefaacutecio do Almagesto Ptolomeu natildeo aceitaria

causas remotas realizadas a distacircncia e sem contato efetivo Um quinto elemento

contrastando com os quatro usuais ndash terra aacutegua ar e fogo ndash se fazia assim necessaacuterio

ldquoum certo poder emanando da eterna e eteacuteria substacircnciardquo estava disperso da Terra aos

ceacuteus formando o elo fiacutesico capaz de transformar a influecircncia celeste em uma

evidecircncia registravel por exemplos naturais469

Como haacute seacuteculos faziam os egiacutepcios ndash unindo a medicina com as previsotildees

astroloacutegicas ndash Ptolomeu procurava sistematizar um meacutetodo prognoacutestico que reunisse

condiccedilotildees universais a casos particulares em virtude de um ambiente determinado

pela ordem da natureza470 Tanto a abordagem quanto o vocabulaacuterio ptolomaico ao

467 FARACOVI Ornella The Return to Ptolomy In DOOLEY Brandan (org) A companion to

astrology in the Renaissance Introduction Brill 2014 p 90 468 () it is so evident that most events of a general nature draw their causes from the enveloping

heavensrdquo (Tetrabiblos 11) Robbins 1940 p 6 469 Tetrabiblos 12 Robbins 1940 p 7 470 Tetrabiblos 13 Robbins 1940 p 33 Saber cronosoacutefico os prognoacutesticos estritamente astronocircmicos

a respeito do movimento das estrelas (nas taacutebuas de efemeacuterides do Almagesto) jaacute buscavam

transcendendo o presente em direccedilatildeo ao futuro apreender toda uma trajetoacuteria ldquode lrsquohistoire du devenir

ou du tempsrdquo projeto coerentemente concluiacutedo pela substituiccedilatildeo (atraveacutes do meacutetodo do Tetrabiblos) de

um conhecimento ldquoneacutecessairement incomplegravete par un savoir acheveacute suscetible de metre en eacutevidence la

signification ultime de tout ce qui aura eacuteteacute advenurdquo ldquoTelles sont la voyancerdquo explica Pomian

ldquocapaciteacute de voir avec les yeaux de l`acircme les choses cacheacuteesrdquo ldquola divination savoir permettant une

lecture des eacuteveacutenements futurs agrave partir des signesrdquo e finalmente ldquol`interpreacutetation des conjonctions

astrales afin d`eacutetablir les prognostications et les horoscopesrdquo POMIAN 1984 p V-VI Grifos meus

153

passo em que buscam claramente afastar-se do fatalismo estoico que ignorava as

qualidades acidentais aproximam-no do repertoacuterio peripateacutetico471 ldquoEacute verdade que o

movimento dos corpos celestesrdquo anotou ldquoeacute eternamente realizado em acordo com o

divino e imutaacutevel destinordquo ldquoenquanto que as coisas terrenasrdquo por outro lado seriam

ldquosujeitas ao destino natural e mutaacutevel e tomando suas causas primeiras do

firmamento satildeo assim governadas pelo acaso e pela sequecircncia naturalrdquo 472

ldquoA natureza eacute sempre uma causa de ordemrdquo 473 O argumento desenvolvido

pela fiacutesica de Aristoacuteteles foi certamente original contrastando na tradiccedilatildeo claacutessica

com seu predecessor direto Platatildeo que separava a forma do devir imaginava a

mateacuteria como accedilatildeo de um agente extriacutenseco alma ou demiurgo474 Para o filoacutesofo de

Estagira pelo contraacuterio a ordem da natureza possui uma loacutegica imanente sendo

indissociaacutevel de uma teleologia da natureza475 Na Metafiacutesica IX ele jaacute comentava

que a relaccedilatildeo entre potecircncia e ato eacute constituidora do ser e do vir a ser No De Caelo

cada elemento aparece tendo como caracteriacutestica uma potecircncia e na ausecircncia de

qualquer obstaacuteculo nada poderia impedir que ela se realizasse em ato Ato que na

definiccedilatildeo mesma de natureza eacute ligado intimamente ao movimento movimento que se

daacute entre uma potecircncia e a ocupaccedilatildeo do espaccedilo relativo ao ato ou seja tendo como

orientaccedilatildeo seu lugar natural476

Devo fazer notar que em A Ordem do Tempo Pomian natildeo refer-se ao trabalho de Ptolomeu mas

apresenta um argumento geral em relaccedilatildeo agrave divinaccedilatildeo (astroloacutegica ou aruacutespica) e aos prognoacutesticos

antigos 471 Isso ocorre especialmente quando Ptolomeu procura responder agraves criacuteticas agrave astrologia realizadas por

Cicero (De Divinatione I 2) centradas na natildeo factibilidade dos prognoacutesticos zoodiacais Por

qualidades acidentais Ptolomeu entende elementos como nacionalidade pais e criaccedilatildeo Ver

Tetrabiblos 129 472 Tetrabiblos 1312 ROBBINS 1940 p 23 ldquoRather it is true that the movement of the heavenly

bodies to be sure is eternally performed in accordance with divine unchangeable destiny while the

change of earthly things is subject to a natural and mutable fate and in drawing its first causes from

above it is governed by chance and natural sequencerdquo 473 Fiacutesica VIII 1 252a12 17 In ARISTOTE Physique Texte eacutetabli et traduit par Henri Carteron Vol

I 2ed Paris Budeacute 1956 474 Sobre a ordem da natureza na fiacutesica de Aristoacuteteles sigo LANG Helen S The Order of Nature in

Aristotlersquos Physics Place and the elements Cambridge University Press 1998 O estudo parte de uma

rejeiccedilatildeo da visatildeo anacrocircnica (projetada por um meacutetodo natildeo contextual) de que a fiacutesica aristoteacutelica

ldquoadiantariardquo certas concepccedilotildees modernas tornando-se algo como proto-mecacircnica O objetivo de Helen

Lang eacute ldquocompreender a concepccedilatildeo de natureza como sempre uma causa de ordem e a definiccedilatildeo dos

problemas cujas soluccedilotildees exibem essa pressuposiccedilatildeordquo p 5 475 ldquoIndeed there is no difference between the order of nature and the teleology of nature Aristotlersquos

teleology is often identified with his account of ldquofinal causesrdquo as if apart from them the rest of his

physics (or philosophy more generally) were not teleological Such an account is anoter version of the

view that Aristotlersquos philosophy is a proto-mechanistic view with teleology in the guise of final

causes added on But such a view is more than misleading it is falserdquo LANG 1998 274 476 LANG 1998 7-8 Para a autora ldquoAristotle presents a cosmos with the earth stationary at its center

the stars going around eternally and each element ndash earth air fire and water ndash is moved always toward

its natural place Because it is like form place renders this cosmos determinate in respect of direction

154

Se em Platatildeo como num gentil repouso de suas asas o demiurgo impunha a

forma na mateacuteria e na alma em Aristoacuteteles os ceacuteus governam pelo divino e o corpo

deseja a alma como sua primeira enteleacutequia477 A natureza possui o princiacutepio do

movimento e os ceacuteus satildeo o grande modelo para toda accedilatildeo elementar os corpos

celestes estatildeo em contiacutenuo deslocamento rumo a seus lugares naturais em uma danccedila

que eacute a proacutepria relaccedilatildeo entre potecircncia e ato movimento circular perfeito cujas

revoluccedilotildees alguns seacuteculos mais tarde vatildeo ser pontuadas matematicamente nas

efemeacuterides ptolomaicas

Os ciclos tambeacutem poderiam ser entendidos na fiacutesica de Aristoacuteteles como o

espaccedilo entre a vida e a morte entre a luz e a escuridatildeo entre o frio e o calor entre a

Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo Nesse breve tratado ndash situado entre o De Caelo e a

Meteorologica ndash o filoacutesofo faz um exame das ldquocondiccedilotildees e das causas fiacutesicas da

produccedilatildeo e da destruiccedilatildeo das coisas e dos seres individuaisrdquo478 Problema antigo jaacute

havia sido tratado por reflexotildees anteriores como por exemplo aquela desenvolvida

por Empeacutedocles Para Aristoacuteteles no entanto nenhum dos esforccedilos anteriores foi

capaz de sistematizar uma teoria capaz de dar conta tanto da formaccedilatildeo e estrutura do

quadro coacutesmico geral quanto das coisas e seres que o habitam Unir as dimensotildees

macroscoacutepicas e microscoacutepicas do universo mesmo Platatildeo quando direcionou seus

esforccedilos a essa tarefa no Timeu (29b-d) natildeo deixou de lanccedilar matildeo de contos

mitoloacutegicos (eikos muthos) Mas no De geratione et corruptione coisas e seres que

coexistem na esfera sublunar reclamam explicaccedilotildees de ordem fiacutesica da mesma

maneira que o fazem os fenocircmenos celestes Ainda uma investigaccedilatildeo sobre as causas

agora dispostas em um elo comum entre o macro e o micro da archeacute e do telos das

coisas e dos seres

Eacute ao capiacutetulo X do segundo livro que os comentadores costumam remeter

quando buscam respostas para a articulaccedilatildeo ordenadora entre o mundo sublunar e o

cosmos celestial Eacute nele que Aristoacuteteles argumenta que os elementos satildeo criados uns

dos outros em uma geraccedilatildeo que forma um ciclo eterno e contiacutenuo o qual emula a

locomoccedilatildeo circular Eacute tambeacutem nele que o filoacutesofo explica a dinacircmica do gerador

causa de toda transformaccedilatildeo sublunar baseada em ocorrecircncias regulares Na Fiacutesica

ie up down left right front and back and all things within the world are determined in respect of

placerdquo Idem p 9 477 LANG 1998 275 478 MUGLER Charles Introduction In ARISTOTE De la Geacuteneacuteration et de la Corruption Paris

Socieacuteteacute drsquoeacutedition 1966 p VIII

155

(VIII7-9) jaacute tiacutenhamos a demonstraccedilatildeo de que o movimento de revoluccedilatildeo celeste era

eterno e anterior agrave geraccedilatildeo pois seguindo sua loacutegica uma coisa que estaacute para ser natildeo

pode existir ainda Corrupccedilatildeo e geraccedilatildeo sendo contraacuterios natildeo deveriam tambeacutem se

dar ao mesmo tempo como toda investigaccedilatildeo antiga o sistema aristoteacutelico eacute uma

busca por causas O gerador faz esse papel Ele eacute a causa fiacutesica da loacutegica de

transformaccedilatildeo contiacutenua tanto das coisas quanto dos seres

Os fenocircmenos sensiacuteveis satildeo tambeacutem claramente

conformes ao nosso raciociacutenio Noacutes observamos que

quando o sol [gerador] se aproxima temos a geraccedilatildeo e

quando ele se afasta temos a destruiccedilatildeo de modo que

essas duas fases possuem a mesma duraccedilatildeo uma vez

que o tempo da destruiccedilatildeo natural eacute o igual ao da

geraccedilatildeo479

Na concepccedilatildeo aristoteacutelica do cosmos o Sol orbitando ao redor da Terra

aproximava-se da esfera sublunar nos meses quentes afastando-se dela nos meses de

outono e de inverno O astro rei eacute dessa forma a causa das transformaccedilotildees ocorridas

entre noacutes do surgimento das coisas e dos seres a sua corrupccedilatildeo e morte O exemplo

do gerador aponta para o papel solar mas o argumento bastante geral foi extrapolado

por diversos autores ao longo da antiguidade tardia e do medievo Natildeo era apenas o

Sol afinal de contas que na perspectiva geocecircntrica orbitava e influenciava nossa

esfera a lua e as estrelas errantes tambeacutem o faziam Aleacutem de Ptolomeu que aplicou o

argumento teoacuterico aristoteacutelico da influecircncia (no caso do Sol geradora e corruptora)

aos demais corpos celestes poderiacuteamos ainda lembrar de Averroacuteis480 Em seu

comentaacuterio sobre a o tratado de Aristoacuteteles o filoacutesofo cordobenho reafirmava que a

ldquocausa eficiente para a continuidade da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeordquo seria o ldquomovimento

primaacuterio contiacutenuordquo Embora ele reconhecesse que essa relaccedilatildeo de influecircncia fosse

ldquomais aparente no caso do Solrdquo (pelo seu papel de gerador) ela natildeo era limitada a ele

mas tambeacutem se fazia sentir igualmente nos casos ldquoda Lua e de todos os planetasrdquo481

479 ARISTOTE 1966 p 68 Ross em sua traduccedilatildeo inglesa remete ao termo ldquogeradorrdquo no que pese agrave

tradiccedilatildeo de comentadores sempre ter associado esse termo ao Sol (que de fato eacute traduccedilatildeo recorrente na

liacutengua francesa) Ver ARISTOTLE The works of Aristotle translated into English ROSS WD (ed)

Oxford Claredon 1931 Livro II X 480 Ptolomeu discute o problema da influecircncia do Sol e dos planetas em termos jaacute similares aos de

Averroacuteis no capiacutetulo 4 do primeiro livro do Tetrabiblos Ver Tetrabiblos IVI ROBBINS 1940 p

117-121 481 KURLAND S (ed) Averroes on Aristotlesrsquos De generatione et corruptione Middle commentary

and Epitome Translated from the original arabic and the hebrew and latin versions Cambridge MA

The Medieval Academy of America 1958 Apud MARTINS Roberto de Andrade A Influecircncia de

156

No ocidente como vimos jaacute durante o principado as efemeacuterides uniam

exemplos naturais a casos particulares relacionando passado e presente ainda sem se

esquivarem agrave tarefa de perscrutar bases matemaacuteticas para o estabelecimento de

prognoacutesticos racionais De uma modalidade do gecircnero histoacuterico (res gestas) baseada

na narraccedilatildeo dia-a-dia dos feitos dos homens elas tambeacutem comeccedilaram a remeter agraves

gestas estelares ainda assim descrevendo seus movimentos diaacuterios Em Ptolomeu

entretanto natildeo se falava mais em simpatias como entre certos estoicos ou mesmo

alguns neoplatocircnicos mas de influecircncia pelo contato elementar (via eacuteter celestial) e

pelo jogo de contraacuterios que ao menos desde Empeacutedocles fazia parte do repertoacuterio

claacutessico (calor e frio umido e seco) Ao serem assim utilizadas pela filosofia natural

elas tambeacutem edificavam uma ponte racionalizada ndash dentro eacute claro dos criteacuterios de

um regime de evidecircncia antigo ndash para a filosofia moral482 O estudo descritivo da

posiccedilatildeo dos planetas possibilitava o estabelecimento das bases tabulares de uma

praacutetica se assim pudermos dizer cronosoacutefica que lia na regularidade do movimento

das estrelas os meios de prever efeitos futuros Tratava-se de uma teacutecnica que operava

a partir de uma relaccedilatildeo entre ordem do tempo e ordem da natureza na qual a primeira

dependia em uacuteltima instacircncia da essecircncia imutaacutevel e do sentido teleoloacutegico da

uacuteltima

32 Primeiras experiecircncias cristatildes a ordem do tempo comemorada

A relaccedilatildeo entre as teacutecnicas cronosoacuteficas de prediccedilatildeo e as experiecircncias do

tempo tornaram-se uma evidecircncia ao longo do periacuteodo heleniacutestico e da antiguidade

tardia Mas em Santo Agostinho no seacuteculo V essa jaacute era uma associaccedilatildeo indesejaacutevel

Para o bispo de Hipona a histoacuteria deveria limitar-se a narrar o que foi Nisso ela se

diferenciava dos livros de adivinhos e aruacutespices uma vez que tais escritos ensinavam

o que deveria ser feito ou observado aparentando seu gecircnero agrave ousadia de um

conselheiro Caberia a histoacuteria pelo contraacuterio a tarefa inversa a qual definiria sua

utilidade (de historiae utilitate) credenciar-se pela fidelidade de um narrador Afinal

Aristoacuteteles na obra astroloacutegica de Ptolomeu (O Tetrabiblos) TransFormAccedilatildeo Satildeo Paulo 18 1995 p

70 Texto que como o tiacutetulo indica esforccedila-se por demonstrar as caracteriacutesticas aristoteacutelicas do tratado

de Claudio Ptolomeu 482 Apoacutes expor ao longo do livro I uma defesa dos meacutetodos da astrologia e suas caracteriacutesticas gerais

Ptolomeu comeccedila no livro II a descrever os efeitos da influecircncia dos astros celestes no clima e nas

caracteriacutesticas fiacutesicas das populaccedilotildees sublunares Jaacute no livro III (13-14) ele discute respectivamente a

influecircncia dos planetas nas qualidades da alma (determinadas por Mercuacuterio e pela Lua assim como

pelos planetas que se relacionam a ela) e nas doenccedilas que a afligem

157

ela natildeo poderia ter como linha mestra as instituiccedilotildees humanas nem a intenccedilatildeo de

retorno agravequilo que jaacute passou uma vez que o passado ldquopertence a ordem do tempo

cujo fundador e administrador eacute Deusrdquo483

O conhecimento das estrelas ndash que na tradiccedilatildeo astronocircmica claacutessica era

relacionado como vimos agrave ordem da natureza ndash na Doutrina Cristatilde tambeacutem natildeo

aparecia enquanto ldquouma questatildeo de narraccedilatildeo mas de descriccedilatildeordquo Mesmo assim ela

envolve como admite o pai da Igreja ldquoalgo como uma narrativa do passadordquo 484

Pode-se eacute verdade voltar de uma posiccedilatildeo presente e traccedilar o itineraacuterio de um astro

ateacute seus movimentos anteriores Da mesma forma conhecer as estrelas tambeacutem torna

possiacutevel indicar algumas antecipaccedilotildees (futurorum regulares coniecturas) ndash natildeo feitas

a ldquomaneira absurda dos astroacutelogosrdquo (genethliaci) que buscavam com isso prever

accedilotildees e fatos humanos ndash mas tatildeo somente a respeito do translado dos proacuteprios corpos

celestes Entender a danccedila dos orbes havia deixado de ser uacutetil para julgar

compreender ou prognosticar quaisquer dimensotildees temporais relativas ao mundo

sublunar Com a providecircncia assumindo as reacutedeas da ordem do tempo restava aos

cristatildeos orientarem-se pela palavra divina E muito pouco a respeito das estrelas era

comemorado na Biacuteblia (quorum perpauca Scriptura commemorat) Aleacutem da lua

483 AUGUSTINI S Aureii De Doctrina Christiana Libri Quatuor et Enchiridion ad Laurentium

Editio Stereotypa Lipsiae Sumtibus et typis caroli tauchnitii 1838 pp Livro II Cap XXVIII [2844]

pp 64-65 ldquoNarratione autem historica cum praeterita etiam hominum instituta narrantur non inter

humana instituta ipsa historia numeranda est quia iam quae transierunt nec infecta fieri possunt in

ordine temporum habenda sunt quorum est conditor et administrator Deus Aliud est enim facta

narrare aliud docere facienda Historia facta narrat fideliter atque utiliter libri autem aruspicum et

quaeque similes litterae facienda vel observanda intendunt docere monitoris audacia non indicis fiderdquo

Grifos meus Na sua leitura da De Doctrina Christiana Odilo Engels escreveu que ldquoEntre as doctrinae

dos pagatildeos Agostinho distingue duas institutiones as que decorrem da praacutetica humana e que por isso

satildeo dispensaacuteveis ainda que uacuteteis e aquelas que o Criador institui a favor do homem e que por

consequecircncia natildeo satildeo cambiaacuteveis Nesse contexto eacute verdade que os acontecimentos histoacutericos se

devem a accedilotildees humanas mas se concretizam dentro de uma dada ldquo(ordo) temporum quorum est

conditor et administrator Deusrdquo Ver ENGELS Odilo Compreensatildeo do conceito na Idade Meacutedia In

KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 81 484Na Doutrina Cristatilde em capiacutetulos imediatamente sucessivos Agostinho traz a discussatildeo da histoacuteria

da adivinhaccedilatildeo e da astrologia [2844 a 2946] Eacute possiacutevel que ele estivesse respondendo a uma

tradiccedilatildeo que buscava analogias entre a ordem do tempo e o cosmos (ou agrave ordem da natureza) Esse tipo

de relaccedilatildeo natildeo era incomum e poderia ser recuada no ocidente ao menos ateacute o Timeu de Platatildeo senatildeo

mesmo ateacute a Palavra de Anaximandro Jaacute em Posidocircnio existe uma relaccedilatildeo expliacutecita com a escrita da

histoacuteria Para o estoico a tarefa do historiador deveria ser a de ldquoenquadrar toda a humanidade naquilo

que tange a sua parentela bem como a seu distanciamento espacial e temporal sob a uacutenica ordem

representada transformando-a por assim dizer num oacutergatildeo da providecircncia divina Pois da mesma

forma que ela unifica a ordem das estrelas no ceacuteu e as naturezas humanas numa analogia comum

fazendo-as circular numa mesma trajetoacuteria por toda a eternidade atribuindo a cada um aquilo que o

destino lhe reserva aqueles que registram os acontecimentos comuns do mundo como se fossem uma

uacutenica cidade transforam sua representaccedilatildeo numa justificativa unitaacuteria e num ato de administraccedilatildeo

comum do acontecidordquo APUD MEIER Christian Antiguidade In KOSELLECK Reinhart (org) O

Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 56 Grifos meus

158

marcar o aniversaacuterio da paixatildeo quase nada mencionava-se Era o que bastava Ir aleacutem

poderia incitar o ldquopernicioso errordquo das supersticcedilotildees485

Agostinho natildeo era uma voz isolada entre os pensadores cristatildeos da antiguidade

tardia Em obra endereccedilada ao imperador Constantino do qual chegou a ser

conselheiro e segundo a tradiccedilatildeo convencera-lhe a mandar suas legiotildees lutarem a

batalha da ponte Miacutelvia tendo um cristograma pintado em seus escudos Lactacircncio

criticava os adivinhos e os fazedores de horoacutescopos486 No capiacutetulo XVII do segundo

livro de suas Instituiccedilotildees Divinas o ldquoCiacutecero cristatildeordquo dos humanistas eruditos natildeo

apenas afirmava que a ldquoastrologia os auguacuterios os oraacuteculos a necromancia a magiardquo

enfim todo esse repertoacuterio de conhecimentos ocultos pagatildeos eram supersticcedilotildees

Lactacircncio ia aleacutem defendendo que tais procedimentos eram obras incitadas pelo

democircnio487 Viver em uma histoacuteria sacra significaria de igual maneira que ao fieacutel

caberia tatildeo somente comemorar em culto puacuteblico certas datas a partir da leitura ritual

das escrituras enquanto ele espera indefinidamente o retorno do salvador no sabaacute do

seacutetimo dia como explicou-nos Agostinho em outra oportunidade488

485 Ibid Livro II Cap XXIX [2946] Siderum autem cognoscendorum non narratio sed demonstratio

est quorum perpauca Scriptura commemorat Sicut autem plurimis notus est lunae cursus qui etiam ad

passionem Domini anniversarie celebrandam sollemniter adhibetur () Quae per se ipsa cognitio

quamquam superstitione non alliget non multum tamen ac prope nihil adiuvat tractationem divinarum

Scripturarum et infructuosa intentione plus impedit et quia familiaris est perniciosissimo errori fatua

fata cantantium commodius honestiusque contemnitur Habet autem praeter demonstrationem

praesentium etiam praeteritorum narrationi simile aliquid quod a praesenti positione motuque siderum

et in praeterita eorum vestigia regulariter licet recurrere Habet etiam futurorum regulares coniecturas

non suspiciosas et ominosas sed ratas et certas non ut ex eis aliquid trahere in nostra facta et eventa

temptemus qualia genethliacorum deliramenta sunt sed quantum ad ipsa pertinet sidera () 486 Sobre a questatildeo do chi-rho ver LACTANTIUS De la mort des perseacutecuteurs de lrsquoEglise In Choix

des monuments primitfs de lrsquoEacuteglise chreacutetienne Paris Socieacuteteacute du Pantheacuteon Litteacuteraire 1843 No capiacutetulo

445 da ediccedilatildeo francesa ldquoConstantin averti en songe de faire peindre sur les boucliers de ses soldats le

signe adorable de la croix et dengager ensuite le combat obeacuteit et fit peindre sur ses boucliers un X

avec un accent circonflexe qui signifie Jeacutesus-Christrdquo 487 LACTANTIUS Institutions Divines In Choix des monuments primitfs de lrsquoEacuteglise chreacutetienne

Paris Socieacuteteacute du Pantheacuteon Litteacuteraire 1843 Livro II CAP XVII Astrologiam aruspicinam et similes

artes esse daemonum inventa No latim ldquoEorum inventa sunt astrologia et aruspicina et auguratio et

ipsa quae dicuntur oracula et necromantia et ars magica et quiquid praeterea malorum exercent

homines vel palam vel occulte Quae omnia per se falsa sunt ut Sibylla Erythraea testatur Επεὶ πλάνα

πάντα τάδ ἐστίν Ἅπερ ἄφρονες ἀνδρες ἐρευνῶσι κατ ἧμαρ Sed iidem ipsi auctores praesentia sua

faciunt ut vera esse credantur Ita hominum credulitatem mentita divinitate deludunt quod illis verum

aperire non expedit Hi sunt qui imagines et simulacra fingere docueruntrdquo Na ediccedilatildeo francesa

ldquoLastrologie judiciaire les auspices les augures les oracles la neacutecromancie la magie et tous les

mauvais arts que les hommes exercent soit en particulier soit en public sont des inventions des

deacutemons et ces arts-lagrave sont faux comme la sibylle Erythreacutee le teacutemoigne quand elle dit que tout ce que

les hommes deacutepourvus de sagesse cherchent par lexplication des songes nest quillusion et tromperie

Mais bien que ces moyens de parvenir agrave la connaissance de la veacuteriteacute soient faux les deacutemons qui les ont

inventeacutes abusent tellement de la creacuteduliteacute des hommes quils les leur font recevoir comme veacuteritablesrdquo 488 AUGUSTIN La citeacute de Dieu 22 30 5 Apud HARTOG 2013 p 91

159

Astrocircnomos de Miletos como Tales e Anaximandro tambeacutem Platatildeo e

Aristoacuteteles os estoicos e epicuristas ainda Plotino teorias filosoacuteficas sobre o tempo

foram abundantes na antiguidade e constituiram ldquoindubitavelmente saberes adquiridos

sem os quais Santo Agostinhordquo como lembrou Franccedilois Hartog ldquonatildeo teria podido

comeccedilar sua proacutepria reflexatildeordquo 489 ldquoO que eacute o tempordquo perguntava ndash talvez em sua

mais ceacutelebre questatildeo ndash o velho bispo de Hipona Eacute melhor natildeo pressionaacute-lo pois se

ningueacutem o indagar ele saberaacute mas se algueacutem ousar questionar-lhe e ele tiver de

explicar nem o santo poderaacute fazecirc-lo490 Eacute no capiacutetulo XI das Confissotildees que

encontramos sua reflexatildeo sobre o assunto Agostinho acredita que eacute preciso um ser

para conferir realidade ao tempo Para um cristatildeo como comentou Pomian relegar o

tempo ao natildeo-ser tornar-se-ia inaceitaacutevel diferente do que apresentava-se em

Aristoacuteteles ndash quando aparecia como uma intrusatildeo metafiacutesica no mundo fiacutesico ndash nas

Confissotildees o tempo era uma questatildeo gnoseoloacutegica Para o ser portanto existiria um

presente do passado talhado na memoacuteria um presente do presente manifestando-se

pela visatildeo e ainda um presente do futuro antecipando-se em expectativa Assim

Agostinho lanccedilava a tese de que a sensaccedilatildeo da temporalidade natildeo passava de um

alongamento da alma (animo) a qual se articulava a partir dela por meio de uma

experiecircncia intelectual dada entre a ldquodistensatildeordquo (distensio) e a ldquoatenccedilatildeordquo (attentio)491

ldquoA alma (animo) espera (expectat) e estaacute atenta (adtendit) e lembra-se (meminit) de

maneira que o que espera transpondo aquilo ao que estaacute atento passa para o que se

lembrardquo492

489 HARTOG 2013 p 84 Ver tambeacutem PAPACHRISTOU Ioannis Time for Aristotle Physics IV10-

14 by Ursula Coope Oxford Clarendon Press 2005 Book review In Rhizai III2 (2006) pp 63-66

Para quem o ldquotermo lsquoTemporsquo(chronos) aparece desde o periacuteodo preacute-socraacutetico como podemos ver em

um fragmento atribuiacutedo a Tales (frs A1 I 71 13 DK) e em um fragmento atribuiacutedo a Anaximandro

(frs B1 I 89 14 DK) no qual o tempo eacute representado mais como um poder personalizado do que

como uma noccedilatildeo filosoacutefica strictu senso A primeira importante referecircncia agrave noccedilatildeo de tempo eacute

encontrada no Timeu (37c5-38c3) no qual Platatildeo considera o tempo um ingrediente do universo como

um todo de acordo com a cosmologia explicitada em seu trabalho () Depois de Aristoacuteteles e aleacutem

dos fragmentos estoicos e epicuristas a mais importante e sistemaacutetica reflexatildeo sobre o tempo eacute

encontrada no tratado de Plotino (II7[45]) Sobre a Eternidade e o Tempordquo (63) 490 AUGUSTIN Les confessions 11 28 38 In Ouvres de Saint Augustin Paris Descleacutee de Brouwer

1996 Bibliothegraveque Augustinienne 14 utilizei tambeacutem AUGUSTINE Confessions With an English

Translatin by William Watts The Loeb Classical Library London William Heinemann New York

The Macmillan co Vol II 1912 491 Franccedilois Hartog em sua leitura dessa passagem das Confissotildees traduz animo por ldquoespiacuteritordquo

Krzystof Pomian por outro lado prefere traduzir o mesmo termo latino por ldquoalmardquo Ver POMIAN

1984 246-247 Cf HARTOG 2013 84-85 492 AUGUSTINE Confessions 1912 Em latim ldquosed quomodo minuitur aut consumitur futurum quod

nondum est aut quomodo crescit praeteritum quod iam non est nisi quia in animo qui illud agit tria

sunt nam et expectat et attendit et meminit ut id quod expectat per id quod attendit transeat in id quod

meminerit quis igitur negat futura nondum esse sed tamen iam est in animo expectatio futurorum et

160

Esqueccedilamos por ora o chamado de Plutarco que rogava seus leitores a

ldquoaplicar suas curiosidades para o Solrdquo perguntando ldquoaonde ele se potildee e aonde ele

nasce ()rdquo e incentivando o interesse ldquopelas mudanccedilas da Lua como terias sobre as

coisas humanasrdquo (Moralia 6 473-485-507) O questionaacuterio agostiniano sobre o

tempo natildeo mais ancora suas meditaccedilotildees na ordem da natureza natildeo mais olha para o

movimento dos ceacuteus mas para dentro de si abandonando a metafiacutesica aristoteacutelica ao

mesmo passo em que relegava as influecircncias celestes ndash senatildeo agraves obras do democircnio

como o fez antes dele um mais modesto Lactacircncio ndash agraves supersticcedilotildees da plebe Essa

primeira experiecircncia do tempo cristatilde eacute uma percepcatildeo iacutentima tatildeo pertencente ao

acircmago do ser que Pomian viu nela um ldquotempo psicoloacutegicordquo enquanto que Hartog

tendo Ricoeur em mente natildeo deixou de pontuar sua novidade o esboccedilo de uma

fenomenologia do tempo493

Com a emergecircncia vitoriosa do cristianismo no ocidente e o fim do mundo

romano as efemeacuterides retecircm o sentido presente no jornal escrito por Eumenes de

Caacuterdia Em Isidoro de Sevilha ldquohistoriardquo era a maneira de retomar tudo o que fosse

passado ndash historia est narratio rei gestae (Etymologiae 1 41 1) Se a distinccedilatildeo entre

annales como enumeraccedilatildeo de acontecimentos impessoais e historia como experiecircncia

vivida se perdeu isso ocorre em nome de uma moldura narrativa que permita ao

pregador no ato da oraccedilatildeo comemorar junto ao seu auditoacuterio exemplos como modo

de transmitir-lhes valores morais e pedagoacutegicos Essa narraccedilatildeo incluiacuteda no ato

predicante nos sermotildees e nas crocircnicas poderia ser pontuada em anos em meses ou

em dias respectivamente falava-se em annales em kalendas ou em ephemerida

(Etymologiae 1 44)494 Integradas no projeto agostiniano as efemeacuterides contam o

tempo dos homens suas gestas dia-a-dia venerando os exemplos cuja autoridade

(auctoritas) era obra concedida pela matildeo da providecircncia (providentia Dei) Mesmo

em um ambiente cristatildeo os exemplos quando reflexotildees da virtude guardam ainda

quis negat praeterita iam non esse sed tamen adhuc est in animo memoria praeteritorum et quis negat

praesens tempus carere spatio quia in puncto praeterit sed tamen perdurat attentio per quam pergat

abesse quod aderit non igitur longum tempus futurum quod non est sed longum futurum longa

expectatio futuri est neque longum praeteritum tempus quod non est sed longum praeteritum longa

memoria praeteriti estrdquo [112837] pp 276 seguida de uma traduccedilatildeo inglesa na paacutegina 277 que verte

ldquoanimordquo para ldquomindrdquo 493 HARTOG 2013 84 POMIAN 1984 principalmente 245-250 Para o tratamento de Ricoeur a

respeito do problema do tempo em Agostinho ver RICOEUR Paul Tempo e Narrativa Tomo I

Campinas Papirus 1994 pp 19-42 Para uma leitura que dialoga entre Agostinho e Aristoacuteteles ver

RICOEUR Paul Tempo e Narrativa Tomo III Satildeo Paulo Martins Fontes 2010 pp 15-36 494 ENGELS Odilo Compreensatildeo do conceito na Idade Meacutedia In KOSELLECK Reinhart (org) O

Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 64

161

algo de origem divina Era o momento como comentou Hartog de prestar mais

atenccedilatildeo ao passado e menos ao futuro e mantendo os olhos em Cristo diriacuteamos noacutes

deixar seduzir-se pela boa nova comemorando em eucaristia a lembranccedila de seu

modelo vivo ldquoEssa inflexatildeo da ordem cristatilde do tempo em direccedilatildeo ao jaacute a um passado

em verdade continuamente reativado pelo ritual ndash anotou o autor dos Regimes de

historicidade ndash permite agrave Igreja () recuperar retormar habitar os modelos antigos

da mos maiorum e da historia magistrardquo que agora podem operar em seu proveito

Potecircncia temporal a ordem cristatilde ndash guiada pelos signos da palavra de um Deus

narrativo ndash faz o presente o passado e o futuro perdurarem com flexibilidade Atraveacutes

da teologia medieval as trecircs categorias baacutesicas da temporalidade se articulam na

aeternitas da mesma forma que nos seacuteculos anteriores uma Roma Invicta havia sido

oficiada pela lembranccedila dos costumes de seus ancestrais495

33 A escolaacutestica e a via media

Durante a Idade Meacutedia Central o pensamento de Aristoacuteteles ganha nova

acolhida no seio das nascentes universidades A escolaacutestica faz debater e comentar

ainda mais uma vez a fiacutesica aristoteacutelica suas sistematizaccedilotildees sobre o tempo e a

relaccedilatildeo necessaacuteria que ele mantem com a vicissitude Tomaacutes de Aquino retorna a um

problema intimista anaacutelogo agrave ordem das meditaccedilotildees agostinianas pode o tempo

sendo ele nuacutemero e medida da mudanccedila existir alheio a uma alma capaz de contar

sua passagem O argumento tomista reitera a relaccedilatildeo de dependecircncia explicitada na

Fiacutesica (IV10-14) que o tempo possui frente agrave mudanccedila (kinecircsis) asseverando que

ldquose o movimento eacute posicionado entatildeo tambeacutem eacute necessaacuterio posicionar o tempo

porque lsquoantesrsquo e lsquodepoisrsquo existem no movimento e satildeo essas coisas ndash a saber o

lsquoantesrsquo e o lsquodepoisrsquo no movimento uma vez contaacuteveis ndash que satildeo o tempordquo496

495 HARTOG 2013 p 91-92 496 AQUINAS Thomas Commentary on Aristotles Physics Book 4 Richard J Blackwell Richard J

Spath amp W Edmund Thirlkel (trans) Yale University Press 1963 Lecture 23 The Problems are

Solved as to the Existence and Unity of Time (Liber 4 123 n5) 629 For as motion is posited so is it

also necessary to posit time because ldquobeforerdquo and ldquoafterrdquo exist in motion and it is these things

namely the ldquobeforerdquo and ldquoafterrdquo in motion insofar as they are numerable that are time [icut enim

ponitur motus ita necesse est poni tempus quia prius et posterius in motu sunt et haec scilicet prius et

posterius motus inquantum sunt numerabilia sunt ipsum tempus]

162

ldquoEntretantordquo diria Aquino logo a seguir ldquoisso natildeo significa que se natildeo tivermos

quem conte natildeo haveraacute nada contaacutevel que eacute a objeccedilatildeo levantada pelo Filoacutesofordquo497

O comentaacuterio de Tomaacutes de Aquino parece ler uma relaccedilatildeo de imanecircncia entre

tempo e mudanccedila que asseguraria o estatuto ontoloacutegico do primeiro ancorando-o nas

manifestaccedilotildees cineacuteticas do segundo como se um natildeo pudesse existir sem o outro ou

talvez mais precisamente como se o tempo imitasse ou tentasse seguir de perto os

caminhos movimentados pela vicissitude Recentemente Ursula Coope considerou a

interpretaccedilatildeo tomista um erro Na leitura da filoacutesofa de Oxford o tempo em

Aristoacuteteles natildeo eacute apenas dependente do intelecto como tambeacutem o eacute de maneira

diferente que a mudanccedila498 Logo a autora vem propugnar a interpretaccedilatildeo oposta

agravequela desenvolvida no comentaacuterio do monge dominicano Nela o tempo eacute

dependente da existecircncia das almas uma vez que se trata de algo contaacutevel que precisa

da racionalidade dos seres para fazecirc-lo499 A tese de Coope trata dos uacuteltimos cinco

capiacutetulos da Fiacutesica IV Dentre a ordem dos assuntos trecircs toacutepicos destacam-se no

investimento de suas reflexotildees a relaccedilatildeo do tempo com a mudanccedila a condiccedilatildeo do

tempo como uma espeacutecie de nuacutemero a unidade e diversidade dos tempos500

ldquoUm nuacutemero da mudanccedila com relaccedilatildeo ao antes e ao depoisrdquo (219b1-2) Essa

passagem da Fiacutesica inspira comentadores haacute milhares de anos Ela acena para a

relaccedilatildeo entre tempo e movimento mas seu corolaacuterio tambeacutem indica que a

temporalidade soacute pode ser reconhecida atraveacutes da percepccedilatildeo das mudanccedilas (219a22-

9)501 Convertido assim em uma espeacutecie de nuacutemero o desenho do tempo seria o de

um continuum Ao contraacuterio da mudanccedila ndash que pode ser lenta ou raacutepida ndash o tempo eacute

sempre o mesmo Eacute precisamente essa identidade entre o antes e o depois que garante

a sua analogia com uma linha502 imagem que como comentaremos a seguir seraacute

497 AQUINAS Idem Ibidem However it does not follow that if there is no one counting there is

nothing countable which is the objection raised by the Philosopher [non tamen sequitur quod si non

est numerans quod non sit numerabile ut obiectio philosophi procedebat] 498 COOPE Ursula Time for Aristotle Physics IV 10-14 Oxford Aristotle Studies Clarenton Press

Oxford 2008 p 160 ldquoOnce we fully understand Aristotlersquos view about the way in which time is

countable we should be able to see for ourselves not just that it is mind-dependent but also that it is

mind-dependent in a way in which change is notrdquo 499 PAPACHRISTOU 2006 p 65 lembra que Ursula Coope natildeo leva em consideraccedilatildeo ldquoos argumentos

a respeito dos animais que mesmo natildeo sabendo contar possuem uma consciecircncia do tempo que eacute

essencial nas suas habilidades de lembranccedila (De memoria et reminiscentia 450a 15-23)rdquo 500 Sigo tambeacutem a leitura de ROARK Tony Time for Aristotle Physics IV10-14 by Ursula Coope

In Mind Oxford Journals Clarendon Press Vol 118 470 April 2009 501 ibid I-II 502 COOPE op cit p 36

163

recorrente na histoacuteria da cronologia moderna reiterando a unidade da diversidade do

tempo

Em Aristoacuteteles como mostra Coope os ciclos naturais natildeo fazem exatamente

parte da ordem do tempo Sua causa de ordem eacute como jaacute citamos a natureza As

coisas e os seres buscam ndash no processo teleoloacutegico da realizaccedilatildeo da potecircncia em ato ndash

seu lugar natural O movimento emula a locomoccedilatildeo circular pela loacutegica das

revoluccedilotildees E uma revoluccedilatildeo cindida em duas ou mais partes natildeo deixaria de ser

uma revoluccedilatildeo Os ciclos naturais natildeo podiam assim depender da temporalidade

imaginada como uma linha reta a oposiccedilatildeo potencial entre anterior e posterior

percebida na alma do ser eacute o que permite a ele repartir e contar o tempo esse

enigmaacutetico ldquonuacutemero da mudanccedilardquo

Uma mudanccedila que como movimento eacute sempre relativa e contiacutenua mais lenta

ou mais raacutepida portanto desigual na sua diversidade Para medir-la dispotildee-se um

nuacutemero uma racionalizaccedilatildeo que o ser faz perante as vicissitudes ordenando-lhe em

espaccedilos percebidos no agora como tempo de igual passagem que entre o anterior e o

posterior formam uma unidade do diverso Algo como o ldquotempo absolutordquo de que nos

falou Pomian se as mudanccedilas satildeo localizadas o tempo torna-se universal e

simultaneamente o mesmo por todo o cosmos503 Mas a temporalidade como razatildeo

matemaacutetica da mudanccedila natildeo chega a se confundir com o movimento ou a proacutepria

mudanccedila Ela eacute tatildeo somente ldquoalgo da mudanccedilardquo ndash quelque chose du changement504

Teriacuteamos entatildeo uma ordem do tempo na fiacutesica de Aristoacuteteles Ora como

argumenta Coope existe uma ordem temporal pois eacute dentro dela que as mudanccedilas

acontecem relacionam-se entre si satildeo percebidas e contabilizadas pela alma dos seres

racionais505 Eacute calculando a ordem definitiva de ldquoagorasrdquo ou ldquoinstantesrdquo ao longo do

movimento que podemos estabelecer uma uniformidade no entendimento desse

503 Como comentou Pomian ldquoAs mudanccedilas satildeo muacuteltiplas o tempo eacute um A mudanccedila eacute variaacutevel o

tempo uniforme Tudo isso daacute ao tempo um estatuto estranhamente ambivalente ele mesmo invisiacutevel

natildeo fica confinado agraves esfeacuteras celestesrdquo () ldquoNatildeo haacute nem lugar nem vazio nem tempo fora dos ceacuteusrdquo

[De Caello I 9 279 a 12] POMIAN 1984 p 235 504 Cito a paraacutefrase na liacutengua de Voltaire uma vez que a proacutepria Ursula Coope ndash comentando a traduccedilatildeo

da passagem para liacutenguas modernas ndash admite que a francesa eacute a mais inteligiacutevel Ver COOPE op cit p

31 505 Encontramos esse raciociacutenio ndash que opotildee os ciclos naturais da mudanccedila a uma ordem do tempo ndash

tambeacutem no tratado sobre a Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo ldquoLa destruction et la geacuteneacuteration naturelles de plus

srsquoopegraverent en un temps eacutegal C lsquoest lagrave la raison pour laquelle la dureacutee de la vie de chaque ecirctre srsquoexprime

et se deacutetermine par un nombre car il y a un ordre reacutegulier en toutes choses et le temps que dure

chaque vie est mesureacuterdquo ARISTOTE 1966 p 68 Grifos meus

164

nuacutemero da mudanccedila506 ldquoEacute a nossa contagem que cria uma seacuterie ordenada de

instantesrdquo concluiu Coope e ldquosem esses instantes contados natildeo haveria uma simples

ordem de antes e depois na qual todas as mudanccedilas satildeo organizadasrdquo Em outras

palavras ldquosem eles natildeo teriacuteamos tempordquo507 Ordenaacute-lo tarefa de uma alma capaz de

contar eacute um procedimento que realizamos tendo por acircncora fiacutesica o cosmos

organizado pela imutabilidade da natureza508 Logo na obra de Aristoacuteteles natureza e

tempo satildeo sistemaacuteticamente distintos a primeira eacute ldquocausa de ordemrdquo enquanto que

das reflexotildees a respeito do segundo poderiacuteamos intuir um plano racional de

ordenamento das vicissitudes senatildeo mesmo das causas509

No centro dessa reflexatildeo aristoteacutelica como tambeacutem lembrou Pomian estava o

ldquoagorardquo ou o instante ldquoPorque o agora eacute precisamente o movimento no qual a alma

apreendendo o anterior-posterior dentro do movimento viraacute sincronizado com elerdquo

fazendo com que o tempo ateacute esse momento potecircncia virar ato e ldquoo fiacutesico-coacutesmico

psiacutequicordquo510 Entatildeo para que o tempo exista como ato seria necessaacuterio um intelecto

que perceba no movimento da alma o instante do anterior-posterior Eacute preciso no

miacutenimo a alma de um ser racional capaz de contar Parece residir aiacute o motivo que faz

Coope refutar a interpretaccedilatildeo tomista da natildeo dependecircncia do tempo em relaccedilatildeo agraves

almas

Eacute nesse instante em que Coope ndash seguindo a justa tarefa da filosofia ndash

interessou-se por reconhecer um erro que proponho que enxerguemos na bem mais

506 Segundo Pomian 1984 p 236 ldquoO movimento em Aristoacuteteles comporta trecircs princiacutepios os dois

contraacuterios ndash privaccedilatildeo e forma ndash e o sujeito cuja persistecircncia preserva a identidade da coisa atraveacutes das

mudanccedilas a qual foi submetida A privaccedilatildeo eacute o estado passado da coisa a forma eacute o seu futuro o

sujeito corresponde asim ao presente ou melhor ao agora ou ao instante dois termos que tomaremos

aqui por intercambiaacuteveisrdquo 507 COOPE op cit p 172 508 Como explicou Pomian 1984 p 239 ldquo() la reacutevolution ceacuteleste fournissant un eacutetalon naturel de

mesure du temps et donc de tous les mouvements ce qui explique pourquoi le temps est un au lieu

drsquoecirctre deacutemultiplieacute comme lrsquoest le mouvement et pourquoi il est universel partout le mecircme et

uniformerdquo 509 Trata-se de uma loacutegica distinta daquelas operadas pelas tradiccedilotildees que o estagirita teve de dialogar

diretamente 1) para os astrocircnomos de Miletos como na palavra de Anaximandro ldquoas coisas que satildeo

() se fazem justiccedila e reparam suas injusticcedilas conforme a ordem do tempordquo (Fragmento B1) apud

HARTOG 2013 p 17 2) para a academia platocircnica que seguia o Timeu de Platatildeo a origem do tempo

se dava com o movimento dos astros (ver Timeu 39d e 38c tambeacutem Definiccedilotildees 411b) Aristoacuteteles

conseguiu a seu modo sistematizar a dualidade presente nas teorias filosoacuteficas antigas entre imagens

de um ldquotempordquo ciacuteclico e imagens de um tempo linear Para um artigo escrito pelo tradutor de

Aristoacuteteles que trata desse problema geral entre os gregos ver MUGLER Charles Deux thegravemes de la

cosmlogia grecque Devenir cyclique et pluraliteacute des monde Paris 1953 E tambeacutem os comentaacuterios de

MOMIGLIANO Arnaldo Time in Ancient Historiography History And Theory Separate number 6

1966 p 1 e passim Assim como a siacutentese realizada por MEIER Christian Antiguidade In

KOSELLECK Reinhart (org) 2013 p 54 510 POMIAN 1984 p 327

165

modesta incumbecircncia compreensiva da historiografia os filtros de uma praacutetica de

leitura cristatilde Natildeo teriacuteamos aqui uma apropriaccedilatildeo que buscava unir o pensamento

peripateacutetico agrave tradiccedilatildeo patriacutestica comemorando Aristoacuteteles ao lado de Agostinho

unindo razatildeo e feacute submetendo enfim a ordem da natureza aristoteacutelica a uma ordem

cristatilde do tempo Imaginemos um monge dominicano ndash ao qual a auctoritas manda

chamar Aristoacuteteles por ldquoo Filoacutesofordquo ndash sonhando com um universo desprovido de

almas racionais ou de qualquer inteligecircncia capaz de contar Existiraacute o tempo

Deixemos que Tomas de Aquino responda e com os olhos fechados em meditaccedilatildeo

conclua diante da invisibilidade do tempo que ldquoa existecircncia de coisas contaacuteveis natildeo

depende de um intelecto a natildeo ser que se trate do intelecto que eacute a causa das coisas

como o divino intelectordquo511

Se uma alma racional capaz de contar se faz necessaacuteria para o cristatildeo sempre

existira uma na Aeternitas Nesse sentido a leitura de Aquino foi ndash aleacutem de um

possiacutevel erro no entedimento da loacutegica claacutessica de antes do Cristo ndash a resoluccedilatildeo de um

problema teoloacutegico presente em um ano do Senhor A praacutetica de leitura tomista natildeo

poderia deixar de lado todo o repertoacuterio dos pais da Igreja E se em Agostinho o

tempo jaacute dependia do ser quem era essa inteligecircncia fundadora da ordem senatildeo

como vimos a proacutepria providecircncia divina Deus natildeo depende da temporalidade nem

tampouco da natureza Como logos Ele manifesta-se aos homens narrativamente

Faz o tempo na mesma medida em que se determina a partir dele A providecircncia jaacute

no Genesis (11-31) marca o anterior e o posterior antes fez da escuridatildeo a luz do

firmamento o ceacuteu ainda edificando as estrelas a terra e todo mundo natural depois

criou o homem para ouvir contar e soacute entatildeo arrebanhar os auditoacuterios dizendo missa

com a commemoratio dos signos da palavra divina Nessas Escrituras Deus eacute o gecircnio

ordenador fundador e administrador da natureza outrora profana e do tempo agora

sacramentado por suas constantes eucaristias comemorativas

Eacute verdade que desde outro contemporacircneo de Constantino Euseacutebio bispo de

Cesareia jaacute tiacutenhamos um conceito que tentava expressar essa experiecircncia cristatilde do

tempo A sua Histoacuteria Eclesiaacutestica vai da boa nova ateacute o tempo presente narrando o

ritmo da chegada de Cristo em direccedilatildeo agravequilo que Oroacutesio disciacutepulo de Santo

511 AQUINAS Ibidem However the existence of counted things does not depend on an intellect

unless it be an intellect which is the cause of things as is the divine intellect It does not depend on the

intellect of the same [Esse autem rerum numeratarum non dependet ab intellectu nisi sit aliquis

intellectus qui sit causa rerum sicut est intellectus divinus non autem dependet ab intellectu animae]

166

Agostinho mais tarde chamaraacute de pax christiana512 Ao emular Flavius Josephus

Euseacutebio de Cesareacuteia acordou sua Histoacuteria Eclesiaacutestica com uma vida de

Constantino513 Eacute com Euseacutebio que temos tambeacutem aquela que vai ser uma das mais

ceacutelebres cronologias glosada e imitada ao longo da idade meacutedia e da primeira

modernidade O Chronicon dispunha em colunas paralelas taacutebuas cronoloacutegicas de

reis e povos iniciando pelos primeiros reis da Assiacuteria e pela histoacuteria do patriarca

Abraatildeo

Em meio a essa sequecircncia de linhas paralelas temos sua cisatildeo potencial em

grupos de 50 anos loacutegica que parece seguir o Livro dos Jubileus o ldquopequeno genesisrdquo

do povo judeu que baseava todo ordenamento do tempo comemorativo nos muacuteltiplos

do nuacutemero sete sublinhados no Leviacutetico514 Como que guiadas por um ldquoplano secreto

de Deusrdquo todas as colunas paralelas todos os povos que elas representam parecem

sofrer paacutegina a paacutegina uma intervenccedilatildeo milagrosa e natildeo euclidiana convergindo

uma a uma em direccedilatildeo primeiro agrave macedocircnia depois agrave civilizaccedilatildeo romana que enfim

unida a Israel apoacutes as guerras judaicas vem se tornar cristatilde e univeral Essa era a

ldquogigantesca liccedilatildeordquo que Euseacutebio vinha ensinar ao mundo515 Como escreveram

Rosenberg e Grafton a respeito do Chronicon de Euseacutebio ldquoao comparar histoacuterias

individuaisrdquo entre si ldquocom o progresso uniforme dos anos o leitor poderia ver a matildeo

da providecircncia trabalhandordquo 516

As matildeos da providecircncia agora encarnadas no ministeacuterio petrino resolveram

comemorar ao final do seacuteculo XIII o primeiro jubileu cristatildeo fartamente registrado

512 Sobre a identificaccedilatildeo entre pax romana e pax christiana em Oroacutesio ver ENGELS Odilo

Compreensatildeo do conceito na Idade Meacutedia In KOSELLECK Reinhart (org) 2013 p 73 513 GRAFTON Anthony What was history Cambridge University Press New York Kindle Edition

(sem paginaccedilatildeo) 2007 Proacuteximo a nota 72 514 Uma interpretaccedilatildeo corrente do Livro dos Jubileus assevera que ao multiplicar sete anos por sete o

ano seguinte ndash contando a unidade de 50 ndash deveria ser o Sabbath dos Sabbaths Ver VANDERKAM

James The Book of Jubilees Guides to Apocrypha and Pseudepigrapha Sheffield Sheffield Academic

Press 2001 Ver tambeacutem CAMPION Nicholas The Great Year Astrology Millenarism and History

in the Western Tradition London Pinguin Books 1994 p 115 Obra que sigo apenas parcialmente E

ainda VANDERKAM James Textual and Historical Studies in the Book of Jubilees Harvard Semitic

monographs no 14 Scholars Press Missoula 1977 Sobre o debate renascentista a respeito dos grupos

de 50 anos no Chronicon de Euseacutebio ver GRAFTON Anthony Defenders of the Text The traditions

of scholarship in an age of science 1450-1800 Cambridge and London Harvard University Press

1991 p 143 Voltarei brevemente a essa discussatildeo no uacuteltimo capiacutetulo 515ldquo() Enquanto todas as outras listas de governantes sumiam e apenas a romana permanecia

enquanto as muacuteltiplas colunas que estabeleciam a histoacuteria antiga da Greacutecia e do Oriente Proacuteximo

afunilavam-se em uma uacutenica longa e cheia coluna dedicada apenas a Roma a Crocircnica provava atraveacutes

de imagens que a histoacuteria mundial culminava no Impeacuterio Romanordquo GRAFTON Anthony

WILLIAMS Megan Christianity and the Transformation of the Book Origen Eusebius and the

Library of Caesarea Cambridge Harvard University Press 2006 p 141 516 ROSENBERG Daniel GRAFTON Anthony Cartographies of time A history of the timeline

Princenton Architectural Press New York 2010 p 15

167

Em 1300 o papa Bonifaacutecio VIII emite a bula Antiquorum fida relatio exortando os

cristatildeos a peregrinar para Roma Atenta as palavras de Giacomo Gaetani Stefaneschi

cardeal conselheiro papal e autor do De Anno Jubileo a bula reivindicava tradiccedilotildees

ancestrais as quais prometiam perdotildees aos pecados para os visitantes da Basiacutelica do

Priacutencipe dos Apoacutestolos Bonifaacutecio VIII planejava observar esses jubileus a cada cem

anos formando dessa forma jaacute a unidade de um seacuteculo mas questotildees decorrentes do

cisma do ocidente levaram o antipapa Clemente VI residente em Avignon a

antecipar um jubileu para 1350 mantendo a suposta sequumlecircncia leviacutetica517

Unidades de cinquenta ou mesmo de cem anos cisotildees potenciais pelo caacutelculo

das almas nada disso alteraria o estatuto ontoloacutegico do passado conferido pelo

fundador e administrador da ordem cristatilde do tempo Em uma de suas Quaestiones

Quodlibetales (V 2 3) Tomaacutes de Aquino pergunta se uma moccedila perdendo a

virgindade pode ser restituida a seu estado de graccedila (utrum Deus possit virgine

reparare) A resposta de Tomaacutes como afirmou um notoacuterio escritor foi corajosa

ldquoDeus pode perdoar e portanto restaurar a virgem () atraveacutes de um milagrerdquo poreacutem

ldquonem mesmo Deus pode fazer com que aquilo que foi natildeo tenha sidordquo518 Lembrar o

passado ou purgaacute-lo de seus erros natildeo faz os pecados terem deixado de existir o

tempo cristatildeo eacute linear e irreversiacutevel Seria ele completamente alheio aos ciclos

naturais ou celebrativos que no ocidente ao menos desde a Carmen Saeculare de

Horaacutecio jaacute eram vistos como annos orbis ciclos que em um mundo pagatildeo trariam

de volta os cantos e os jogos519

Ora jaacute em Euseacutebio os reinos e os povos parecem ascender e decair seguindo

um fluxo natural Mesmo que paacutegina a paacutegina todos eles convergissem rumo agrave

cristandade universal a cronologia posterior continuava a indicar certa tensatildeo entre

histoacuteria eclesiaacutestica e histoacuteria profana Sim o tempo sagrado da Igreja esse dardo

lanccedilado dos ceacuteus parecia irreversiacutevel Como afirmou Pomian eacute nele que a ldquoIgreja ndash

517 Sobre a bula e as intenccedilotildees do papa Bonifaacutecio VIII ver o claacutessico THURSTON Herbert SJ The

Holy Year of Jubilee An account of the history and ceremonial of the Roman jubilee London Sands amp

Co 1900 principalmente pp 6 13-14 Tambeacutem o comentaacuterio de Jacques Le Goff para quem ldquo() o

seacuteculo (talvez preparado na Idade Meacutedia pelo Jubileu de 1300 celebrado pela primeira vez pelo papa

Bonifaacutecio VIII e que em princiacutepio deveria celebrar-se todos os cinquenta anos) favoreceu todo um

renovar-se de comemoraccedilotildees os centenaacuterios que podem ser muacuteltiplosrdquo LE GOFF Jacques

ldquoCalendaacuteriordquo in Enciclopeacutedia Einaudi Memoacuteria - Histoacuteria (trad) Lisboa Imprensa NacionalCasa da

Moeda 1984 vol1 p 286 518 ECO Umberto Os limites da representaccedilatildeo Perspectiva Satildeo Paulo 1990 p 22 519 HORATIUS Flaccus Q Carmen Saeculare In Horace Odes and Epodes Paul Shorey Boston

Benj H Sanborn amp Co 1898 1 20 p 117 ldquocertus undenos deciens per annos orbis ut cantus

referatque ludos ter die claro totiensque grata nocte frequentisrdquo

168

como o foi Roma ndash eacute eternardquo Por outro lado ainda parecendo resistir agrave loacutegica do

devir celestial temos ldquoo tempo profano dos Estadosrdquo contado em ciclos nos quais os

corpos poliacuteticos ldquose levantam prosperam decaem e desaparecemrdquo 520

Durante o periacuteodo medieval e em especial a partir da retomada dos textos

aristoteacutelicos por volta do seacuteculo XII os saacutebios do ocidente investem no

desenvolvimento de reflexotildees que permitam coadunar o tempo ciacuteclico com o tempo

linear a ordem da natureza profana com a ordem do tempo cristatilde Siger de Brabante e

Boeacutecio da Daacutecia ambos leitores de Aristoacuteteles e Averroacuteis vatildeo defender que o mundo

foi criado fora do tempo e eacute eterno com Deus Verdadeira clivagem ontoloacutegica ela

separa natildeo exatamente o criador das criaturas mas os seres invariaacuteveis perfeitos pela

graccedila daqueles que satildeo submissos aos ciclos sublunares da corrupccedilatildeo e da geraccedilatildeo521

Eacute novamente Tomaacutes de Aquino quem vem responder a essa controveacutersia que

se instaura no seio do ensino universitaacuterio Na Suma Teoloacutegica ele parte como natildeo

poderia deixar de fazecirc-lo da concepccedilatildeo aristoteacutelica de que o tempo nada mais eacute do

que o nuacutemero do movimento de acordo com o antes e o depois (Nihil est aliud quam

numerus motus secundum prius et posterius 1a 10 1) Logo a seguir propotildee aquilo

que vai ser uma medida conciliatoacuteria aceita ao menos ateacute que o antiquariado

humanista demonstre o seu desgaste a distinccedilatildeo entre Tempus Aevum e Aeternitas

O Tempus possui antes e depois Ao aevum natildeo pertencem em si um anterior

e um posterior embora como cisatildeo potencial esses elementos possam ser nele

relacionados A Aeternitas por sua vez natildeo reivindica nem antes nem depois

desprovida de comeccedilo ou de fim constituindo uma temporalidade completamente

avessa a esse raciociacutenio (Tempus habet prius et posterius aevum autem non habet in

se prius et posterius sed ei conjugi possunt aeternitas non habet prius posterius

neque ea compatitur Ia 10 5)522 A grande novidade atendia pela nomenclatura

intermediaacuteria do Aevum Ao longo do seacuteculo XII os processos lineares comeccedilam a ser

acompanhados por essa palavra Palavra que designa um comeccedilo e um final ainda

difere de Tempus uma vez que nela natildeo eacute a substacircncia dos seres que se modifica

sendo as vicissitudes que sofremos apenas mudanccedilas ocasionais

Ao trabalhar a dicotomia entre Aeternitas e Tempus certos aristoteacutelicos da

idade meacutedia central ndash como Siger e Boeacutecio ndash ofereciam soluccedilotildees que ameaccedilavam

520 POMIAN 1984 pp 40-41 521 Ibid p 43 522 AQUINAS Thomas Summa Theologiae Vol 2 (ia 2-11) Existence and Nature of God

McDermott Timothy (ed) Cambridge University Press Oct 26 2006 Ia 10 6 pp 136-148

169

escapar agrave tradiccedilatildeo cristatilde A eternidade agora natildeo pertencia mais unicamente a Deus

mas a todo universo imutaacutevel o que incluiria os corpos celestes e seus movimentos

ciacuteclicos ao passo em que Tempus parece ter sido reduzido ao tempo sublunar dos

seres corporais os quais seguiriam a sua maneira os velhos ciclos de geraccedilatildeo e de

corrupccedilatildeo O Deus aristoteacutelico imaginado como motor imoacutevel que anima atraveacutes do

movimento circular e perfeito dos astros todos os seres da primeira esfera desafiava

a cosmologia cristatilde e sua histoacuteria linear e irreversiacutevel Natildeo restava a Igreja outra

alternativa senatildeo condenar essas perspectivas por duas vezes entre 1270 e 1277523

Grande parte das 219 opiniotildees rejeitadas em 1277 eram astroloacutegicas em algum

sentido da palavra524 Em Satildeo Boaventura temos uma resposta a esse problema

apresentada junto agrave tentativa de demonstrar que a noccedilatildeo mesma de um mundo criado

fora do tempo carrega uma contradiccedilatildeo interna ldquoA linha divisoacuteria passava portanto

entre o criador e o conjunto das criaturasrdquo entre os seres corporais e espirituais

ldquoentre aeternitas e tempusrdquo525 Tomaacutes de Aquino em geral cauteloso preferiu iniciar

na Suma Teoloacutegica por uma suspensatildeo do juiacutezo natildeo poderiacuteamos responder

racionalmente nem demonstrar a tese da eternidade do mundo nem defender seu

contraacuterio embora tenhamos que aceitar a finitude por um ato de feacute Apenas Deus eacute

eterno enquanto que suas criaturas corporais submissas agrave geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo tem

a existecircncia acolhida no Tempus Por sua vez as criaccedilotildees espirituais ndash como a santa

Igreja os anjos os astros e as almas ndash natildeo existiriam no tempo mas no Aevum526 Ao

aceitar o caraacuteter linear e irreversiacutevel da temporalidade como um elemento natildeo

submetido agrave atividade humana mas agrave providecircncia divina ndash sendo os homens

incapazes de produzirem quaisquer modificaccedilotildees substanciais no mundo (omnis

forma artis est accidens et accidentalis) ndash o tomismo autorizou-se a salvar algumas

repercussotildees cosmoloacutegicas da fiacutesica peripateacutetica adaptando-as ao repertoacuterio cristatildeo

elaborado desde os Pais da Igreja

Era uma eacutepoca de popularidade para os saberes astrais Os espiacuteritos cristatildeos da

Idade Meacutedia animavam-se com a ideia de influencia Algumas centenas de anos antes

de Tomaacutes de Aquino por volta do seacuteculo X o Papa Silvestre II chegou a requisitar

523 POMIAN 1984 p 43 524 THORNDIKE Lynn The true place of astrology in the History of Science Isis Vol 46 No 3

Setembro de 1955 pp 273-278 University of Chicago Press p 273 nota 2 525 POMIAN 1984 p 43 526 AQUINAS Summa Theologiae Questatildeo 10 pp 135-151

170

uma coacutepia do poema didaacutetico de Marcus Manilius astroacutelogo de Otaacutevio527 Em 1150 a

tradiccedilatildeo de relacionar as efemeacuterides tambeacutem agraves gestas estelares eacute registrada no

almanaque atribuiacutedo a Solomon Jarchus conhecido de Petrus da Daacutecia e Roger Bacon

nos anos 1300 autores que tambeacutem criaram suas proacuteprias versotildees desse tipo de

trabalho Conhecimento tradicional saber passado de mestre a aluno as teses a

respeito dos astros e suas implicaccedilotildees no mundo sublunar eram mateacuteria para

discussotildees eruditas cujas aplicaccedilotildees dependiam de tabelas descritivas do movimento

dos astros No seacuteculo XIII Alfonso X de Castela o rei saacutebio reuniu um grupo de

tradutores e estudiosos dos ceacuteus com o objetivo de renovar as Taacutebuas de Toledo

compiladas por volta do final do seacuteculo XI Suas sucessoras diretas as Taacutebuas

Alfonsinas como ficaram conhecidas combinavam os dados de Claacuteudio Ptolomeu a

respeito da precessatildeo dos equinoacutecios (revisados por Al-Battani e Al-Souphi) com a

doutrina da oitava esfera e da trepidatio fixarum instruiacuteda por Azarquel Seriam

traduzidas para o latim por volta da deacutecada de 20 do seacuteculo seguinte por Jean de

Lignegraveres e Jean de Murs e difundidas um seacuteculo depois tambeacutem no Canoni de Joatildeo

da Saxocircnia528 Essas tabelas eram utilizadas pelos astroacutelogos para o caacutelculo das

efemeacuterides necessaacuterias agrave feitura dos horoacutescopos

No terceiro livro da Summa Contra Gentiles Tomaacutes de Aquino envolve-se

diretamente no debate a respeito da influencia celeste Estamos entre os capiacutetulos 82 e

87 e neles podemos seguir seus argumentos sobre a relaccedilatildeo entre a ordem natural

(ordine naturae) e a ordem providencial (ordo providentiae) Aquino recupera eacute

claro Aristoacuteteles mas tambeacutem revisa os estoicos lembra os pais da Igreja para por

fim criticar Avicena e Albumasar Nos capiacutetulos anteriores da Summa aprendemos

sobre a diferenccedila entre substacircncias intelectuais (substantiis intelectualibus) inferiores

e superiores de modo que agora assistimos adentrarem o debate as proacuteprias

substacircncias corpoacutereas ldquoSubstacircncias intelectuaisrdquo ndash e de tal maneira comeccedila o capiacutetulo

82 ndash ldquosatildeo governadas pelas superiores uma vez que a disposicatildeo da divina

providecircncia descende proporcionalmente a mais baixardquo 529

527 GONCcedilALVES 2007 p 5 528 Ver POUELLE E Les Tables alfonsines avec les Canons de Jean de Saxe Paris 1984

principalmente p 6 e pp 17-19 Ver tambeacutem HUumlBNER Wolfgang The Culture of Astrology from

Ancient to Renaissance In DOOLEY Brandan (org) A companion to astrology in the Renaissance

Introduction Brill 2014 principalmente pp 126-127 529 AQUINAS Summa Contra Gentiles Livro 3 Providecircncia Vernon J Bouker (trad) New York

Hanover House 1955-57 Caput 82 Quod inferiora corpora reguntur a Deo per corpora caelestia Na

traduccedilatildeo inglesa ldquoBut intellectual substances are ruled by the higher ones since teh disposition of

divine providence descendes proportionally to the lowestrdquo () No latim ldquoSubstantiae autem

171

Atentar aos ceacuteus e conhecer as privaccedilotildees do inferno eram tarefas que pareciam

uacuteteis a muitos como forma de unir a lembranccedila ao desenvolvimento de estrateacutegias

morais diante das fatalidades da ordem natural organizando a experiecircncia passada

com as expectativas nutridas no presente Os antigos que de tudo um pouco sabiam

conheciam o espaccedilo mas tambeacutem dominavam algumas artes do tempo Em 1460

Thomas Swatwell copiou uma Ars oratoria que duas deacutecadas mais tarde seria

impressa em Veneza O monge teve cuidado especial ao transcrever o appendix da

obra o qual continha uma Ars memorativa Nela Jacobus Publicius seu autor

tomava emprestada a concepccedilatildeo dualista do Ad Herennium ciceroniano segundo a

qual existiriam duas formas de memoacuteria ldquouma natural e outra produto da arterdquo530

Essa Arte da Memoacuteria bem estudada por Frances Yates implicava em treinamento e

disciplina baseando associaccedilatildeo de lembranccedilas agrave composiccedilatildeo mental de imagens de

fundo A demanda por lugares de memoacuteria ou ficta loca era suprida por Publicius a

partir de um repertoacuterio imageacutetico que iniciava pelas esferas do universo visualizar os

elementos os planetas as estrelas fixas o ceacuteu e o inferno ndash alegoriais morais dos

viacutecios e das virtudes ndash era a melhor maneira de aliar memoacuteria e prudecircncia Publicius

acreditava que tanto intenccedilotildees simples quanto meditaccedilotildees espirituais escapavam com

facilidade agrave lembranccedila a menos que ingressas compartilhadas e associadas a uma

similitude corporal ndash e nisso natildeo parecia em nada longe de Tomaacutes de Aquino531

De fato os corpos celestes apareciam na Summa Contra Gentiles como

ldquosimilares agraves substacircncias intelectuaisrdquo nos criteacuterios de incorruptibilidade Seus

movimentos aperfeiccediloados pela natureza sem a necessidade de contraacuterios tornam-os

dotados de ldquomais poder universal do que os corpos inferioresrdquo De movimentos

imutaacuteveis regulares e uniformes as estrelas eram dispostas como a causa de todo e

qualquer movimento posterior como se dos ceacuteus fosse ldquopatente que os corpos

inferiores satildeo regidos por Deus atraveacutes dos corpos celestesrdquo 532 No capiacutetulo 83

intellectuales reguntur a superioribus ut dispositio divinae providentiae proportionaliter descendat

usque ad infimardquo 530 CICERO Rhetorica ad Herennium Harry Clapman (transl) London-Cambridge Harvard

University Press 1954 p 205 531 Jacobus Publicius natildeo era eacute claro um caso uacutenico Fazia parte de uma tradiccedilatildeo que alcanccedila pelo

menos Alberto Magno Pedro de Ravenna (Phoenix sive artificiosa memoria 1491) e um pouco mais

tarde o dominicano Johannes Romberch (Congestorium artificiose memorie 1520) que expande e

desenvolve o uso do universo como sistema de memoacuteria Sobre a ars memorativa e os autores citados

sigo YATES Frances The Art of memory London Pimlico 1992 principalmente pp 117-128 532 Ibid C 82 8 Na traduccedilatildeo inglesa ldquoThus it is evident that lower bodies are ruled by God through

the celestial bodiesrdquo No Latim ldquosic ergo patet quod corpora a inferiora a Deo per corpora caelestia

regunturrdquo

172

Tomaacutes recorda-se das palavras de Gregoacuterio ldquoaquele que criou o mundo por Si

Mesmo governa por Si Mesmordquo (Moralia XXIV 20) e Boeacutecio ldquoDeus dispotildee todas as

coisas de si mesmo sozinhordquo (De consolatione Philosophiae III) Tambeacutem comemora

Agostinho com a leitura do terceiro livro do tratado sobre A Trindade quando o bispo

de Hippona reconheceu que as coisas do mundo sublunar satildeo regidas ldquoem uma certa

ordemrdquo pelos corpos superiores533

No capiacutetulo 84 no entanto os argumentos do dominicano mudam de ecircnfase

Mesmo que a ordem da providecircncia deva reger os corpos inferiores pelos superiores

o entendimento (intellectus) ndash que natildeo eacute um poder corporal mas uma substacircncia

proacutexima do divino ndash excede todos os corpos na ordem da natureza534 Sendo os efeitos

dos movimentos celestes sujeitos ao tempo (nuacutemero de sua mudanccedila) eventos que

abstraiam da temporalidade natildeo podem estar submissos a eles Desde as Confissotildees de

Agostinho ndash e agora observamos seu eco embora natildeo citado nominalmente por

Aquino ndash ldquoo intelecto em sua operaccedilatildeo abstrai sim do tempo assim como o faz do

lugarrdquo535 A distinccedilatildeo agostiniana natildeo era dessa forma compatiacutevel com o fatalismo

dos estoicos e dos filoacutesofos mouros ndash ou de tal modo lembrados por Aquino ndash para

quem ldquonoccedilotildees intelectuaisrdquo eram ldquoimpressas em noacutes pelos corpos celestesrdquo536

Mas se o movimento dos astros natildeo poderia influir em nosso entendimento

(intelligentiae) ele conseguiria ainda assim atuar nele de maneira indireta Se a

inteligecircncia humana natildeo eacute uma forma de poder corporal eacute tambeacutem verdade que ela

natildeo pode se fazer sem operar funccedilotildees corporais as quais seriam ldquoa imaginaccedilatildeo

(imaginatio)rdquo e os ldquopoderes da memoacuteria e da cogniccedilatildeordquo (vis memorativa et

533 AUGUSTIN De la Triniteacute Livre Troisiegraveme Comment Dieu a-t-il apparu C IV Empire Souverain

de Dieu sur toute creacuteature In Ouvres Complegravetes de Saint Augustin M Raulx (trad) T 2 Bar-le-Duc

1868 p 392 Na traduccedilatildeo francesa ldquoMais de mecircme que dans lrsquoordre physique les corps lourds et

infeacuterieurs reccediloivent lrsquoinfluence des corps plus leacutegers et supeacuterieurs ainsi dans lrsquoordre moral tous les

corps obeacuteissent agrave lrsquoaction de lrsquoesprit de vierdquo No texto latino ldquoSed quemadmodum corpora crassiora et

inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia corpora spiritum uitae et

spiritus uitae irrationalis per spiritum uitae rationalemrdquo Curiosa traduccedilatildeo oitocentista que verte

ldquospiritum uitaerdquo para ldquolrsquoordre moralrdquo 534 AQUINAS Summa Contra Gentiles Livro 3 Cap 84-8 ldquoBut our sould is united to the intellectual

substances which are superior to the celestial bodies in the order of nature by virtue of the part which

is the understanding In fact our soul cannot understand unless it receives intellectual light from those

substancesrdquo No latim ldquoAnima autem nostra secundum quod intelligit unitur substantiis

intellectualibus quae sunt superiores ordine naturae corporibus caelestibus non enim potest anima

nostra intelligere nisi secundum quod lumen intellectuale inde sortiturrdquo 535Ibid Cap 84 6 Em Inglecircs ldquoBut the intellect in its operation does abstract from time as it does from

placerdquo No Latim ldquoIntellectus autem in sua operatione abstrahit a tempore sicut et a locordquo 536 Ibid 84-10 ldquoAccording to their view it followed that intellectual notions are impressed on us

chiefly by an impression from the celestial bodiesrdquo No latim ldquo() impressione corporum caelestium

intellectuales notiones nobis imprimenturrdquo

173

cogitativa)537 Eacute manobrando nos entornos do problema do livre-arbiacutetrio que Aquino

ndash seguindo observaccedilotildees favoraacuteveis de Agostinho (Cidade de Deus) e Joatildeo Damasceno

(De fide orthodoxa) ndash pocircde credenciar-se a citar o aforisma 38 do Centiloquium uma

falsificaccedilatildeo atribuiacuteda durante a Idade Meacutedia a Ptolomeu ldquoquando no momento do

nascimento de um homem Mercuacuterio estaacute em conjunccedilatildeo com Saturno ()rdquo a geraccedilatildeo

resultaraacute em um ser de inteligecircncia notaacutevel538

A circulaccedilatildeo das esferas portanto atuaria indiretamente no entendimento

humano a partir da capacidade de influenciar corpos inferiores Assim ldquocomo os

meacutedicos podem julgar a sauacutede de um intelecto a partir das condiccedilotildees do corpo ()

tambeacutem um astroacutelogo poderia julgaacute-lo pelos movimentos celestesrdquo sempre como uma

causa remota dessas disposiccedilotildees539 Causa remota ela natildeo conseguiria da forma que

imaginaram Avicenna e Albumasar ser efetiva e ditar os rumos de nossas escolhas

540 Se eles natildeo podem realizar uma impressatildeo direta nos intelectos tambeacutem seratildeo

ineficientes em fazecirc-lo sob a vontade Como na sempre ldquocausa de ordemrdquo aristoteacutelica

a natureza tomista ldquoeacute determinada a um uacutenico resultadordquo mas as ldquoescolhas humanasrdquo

por seu turno ldquotendem a terminar em vaacuterios caminhos tanto na moral quanto na

arterdquo541 Ora seguindo a Eacutetica do Filoacutesofo o par de contraacuterios lembrados como viacutecios

e virtudes natildeo encontram seu iacutendice geral na natureza mas nos costumes A retidatildeo e

o pecado ndash para um cristatildeo os princiacutepios de qualquer ato de escolha ndash natildeo podem ser

537 Ibid 84-14 538 Ibid 84-14 In this way then it is possible that there is some truth in what Ptolomy says in his

Centiloquium ldquoWhen at the time of a manrsquos birth Mercury is in conjunction with Saturn and is itself

in a strong condition is gives inwardly to things the goodness of understandingrdquo () ldquoEt per hunc

modum potest verificari quod Ptolomaeus in Centilogio dicit cum fuerit Mercurius in nativitate

alicuius in aliqua domorum Saturni et ipse fortis in esse suo dat bonitatem intelligentiae medullitus in

rebusrdquo Quanto a falsidade do Centiloacutequio ver DOOLEY 2014 p 4 obra coletiva e que uso como

referecircncia para os recentes estudos sobre a astrologia da primeira modernidade 539 Ibid 84-14 ldquoThus just as physicians may judge the goodness of an intellect from the condition of

its body as from a proximate disposition so also may an astronomer judge from the celestial motions

as the remote cause of such dispositionrdquo ldquoEt sic sicut medici possunt iudicare de bonitate intellectus

ex corporis complexione sicut ex dispositione proxima ita astrologus ex motibus caelestibus sicut ex

causa remota talis dispositionisrdquo 540 Ibid C 87 Quod motus caelestis corporis non sit causa electionum nostrarum ex virtue animae

moventis ut quidam dicunt 1 ldquoHowever we should not that Avicenna maintains that the motions of

the celestial bodies are also the causes of our acts of choice not simply as occasions as was said

above but directly () On this point also he seems to return to the theory of Albumasar in his

Introduction I ldquoEst tamen attendendum quod Avicenna vult quod motus caelestium corporum sint

etiam nostrarum electionum causae non quidem per occasionem tantum sicut supra dictum est sed per

se () Ad quod etiam redire videtur positio Albumasar in primo sui introductoriirdquo 541 Ibid 85-5 () for nature is determined to one result But human choices tend to their end in various

ways both in moral actions and in artistic productions Therefore human choices are not accomplished

by naturerdquo ldquoElectiones autem humanae diversis viis tendunt in finem tam in moralibus quam in

artificialibus Non igitur electiones humanae sunt naturaliterrdquo

174

agraciados ou redimidos explicados ou justificados unicamente atraveacutes dos ceacuteus 542

Novamente lemos o Centiloquium atribuiacutedo a Ptolomeu nos escritos de Aquino ldquoa

alma saacutebia favorece o trabalho das estrelasrdquo ao passo que o ldquoastroacutelogo natildeo pode fazer

julgamento baseado nas estrelas a natildeo ser que ele conheccedila bem o poder da alma e seu

temperamento naturalrdquo543

O topos da influecircncia celeste com as ressalvas feitas agraves tradiccedilotildees estoicas e

mesmo aos interlocutores mouros que eram apresentados a Aquino consegue

sobreviver atraveacutes das palavras de uma farsa amarrada na esteira do prestiacutegio

renovado da fiacutesica peripateacutetica e da reforma dos proacuteprios modelos geocecircntricos

alexandrinos544 A resposta de Tomaacutes de Aquino ao problema da influecircncia celeste

natildeo deixou de ser acompanhada por outros membros da ordem dominicana Em

Alberto Magno os seres vivos satildeo ainda mais sujeitos agraves impressotildees vindas das

estrelas do que os objetos inanimados Lynn Thorndike chegou mesmo a escrever que

ldquoessa lei geral de que o mundo da naturezardquo eacute governado pelos ldquomovimentos das

estrelas eacute expressamente repetidardquo nos estudos de Alberto Magno ldquoe sua verdade

assumida com ainda mais frequecircnciardquo545

Em breve os conhecimentos ocultos e astronocircmicos deixariam de ser

privileacutegio ou monopoacutelio dos debates universitaacuterios e teoloacutegicos Alguns seacuteculos mais

tarde na Mainz de 1472 Gutenberg publicaria o primeiro exemplar impresso de uma

542 Ibid 85-8 ldquo() virtues and vices are the proper principles for acts of choice for virtues and vices

differ in the fact that they choose contraries Now the political virtues and vices are not present in us

from nature but come from custom as the Philosopher proves in Ethics IIrdquo ldquoVirtutes et vitia sunt

electionum principia propria nam virtuosus et vitiosus differunt ex hoc quod contraria eligunt Virtutes

autem politicae et vitia non sunt nobis a natura sed ex assuetudine ut probat philosophus in II Ethicrdquo 543 Ibid 85-22 ldquothe wise soul assists the work of the starsrdquo and that ldquothe astronomer could not give a

judgement based on the stars unless he knew well the power of the sould and the natural

temperamentrdquo No latim ldquoquod anima sapiens adiuvat opus stellarum et quod non poterit astrologus

dare iudicia secundum stellas nisi vim animae et complexionem naturalem bene cognoveritrdquo 544 O cosmos aristoteacutelico e ptolomaico tinha como limite a esfera das estrelas fixas ndash contando a partir

da terra a oitava e uacuteltima em ordem Ao longo da Idade Meacutedia quando os astrocircnomos perceberam que

a oitava esfera movia-se mais lentamente em relaccedilatildeo aos movimento de precessatildeo definiu-se a

existecircncia de uma nona esfera desprovida de estrelas Essa nona esfera imaterial tornou-se na filosofia

escolaacutestica o primum mobile manancial de todo o movimento do universo e usualmente relacionado

ao motor aristoteacutelico imoacutevel e eterno como descrito na Fiacutesica VIII 6 Ver BEZZA Giuseppe

Representation of the Skyes and the Astrological Chart In DOOLEY 2014 pp 73-74 Edward Grant

ressalta no entanto que tais modificaccedilotildees estavam longe de ser consensuais As posiccedilotildees dos

astroacutelogos variavam entre a defesa de oito a onze orbes A avaliaccedilatildeo dependia da contagem (ou natildeo)

dos trecircs tipos diferentes de movimento que se atribuiacuteam agraves estrelas fixas o movimento diaacuterio o

movimento de precessatildeo dos equinoacutecios e o movimento progressivo e regressivo das estrelas Ver

GRANT Edward Planets Stars and Orbs The Medieval Cosmos 1200-1687 Cambridge Cambridge

University Press 1994 545 THORNDIKE Lynn A history of magic and the experimental Science Vol II New York

Columbia University Press 1923 p 583 Sobre a relaccedilatildeo entre magia e experimentalismo em Alberto

Magno ver paacuteginas 720-750

175

efemeacuteride astroloacutegica O livreto inscrevia-se em um gecircnero de faacutecil acesso raacutepida

leitura e barato consumo que ndash como um dos primeiros best-sellers da histoacuteria ndash vai

divulgar ao longo da modernidade toda uma gama de conhecimentos celestes unidos

a ldquoinformaccedilotildees uacuteteisrdquo e mesmo pequenas notas locais Em geral publicadas ano a ano

essas primeiras efemeacuterides modernas (que no mundo anglo-saxatildeo desde o iniacutecio do

seacuteculo XVII vatildeo ser chamadas de almanaques) eram capazes de ndash ao descrever o

movimento diaacuterio dos astros ndash oferecer as tabelas necessaacuterias agrave leitura prognoacutestica dos

ceacuteus ao passo em que raramente deixavam de promover suas proacuteprias previsotildees

anuais546

34 Experiecircncias humanistas brechas na ordem natural

Aportemos no seacuteculo XVI Estamos na eacutepoca das Guerras Italianas e do

conciliaacutebulo gaacutelico de Pisa da eleiccedilatildeo de Carlos V e do pontificado de Adriano VI

das Teses de Lutero e da dieta de Worms momento em que a antes poderosa Milatildeo

dos Sforza dobra seus joelhos diante das disputas francas e imperiais Mas durante o

Renascimento como notou Grafton as cortes e os saacutebios da Europa natildeo se

preocupavam apenas com os problemas sublunares da cristandade No iniacutecio da

deacutecada de 20 do seacuteculo XVI muito se especulava a respeito de pressaacutegios e de sinais

nos ceacuteus Em fevereiro de 1524 seis planetas dentre eles os dois mais lentos (Jupiter

e Saturno) entrariam em Peixes A deacutecima segunda casa conclui o zodiaco e junto a

Escorpiatildeo e Cacircncer tambeacutem a triacuteplice dos signos aquaacuteticos todos representados por

formas estranhas ao corpo humano ndash um iacutectio um aracniacutedeo e um crustaacuteceo ndash

546 Em 1741 Johan Friedrich Wiedler preparou uma extensa lista bibliograacutefica de obras astronocircmico-

astroloacutegicas Dentre elas figuravam diversas efemeacuterides Sobre as informaccedilotildees apresentadas ver

WIEDLER Johan Friedrich Historia astronomiae Vitembergae Sumtibus GH Schwartzii

Bibliopolae 1741 p 265 Mais tarde em 1785 Jean-Sylvain Bailly ndash astrocircnomo primeiro prefeito de

Paris e um dos principais organizadores da Festa da Federaccedilatildeo ndash utiliza a obra de Wiedler ao escrever

sua Histoacuteria da Astronomia Moderna BAILLY Histoire de lrsquoastronomie moderne depuis la fondation

de lrsquoeacutecole drsquoAlexandrie jusqrsquoagrave lrsquoeacutepoque de 1730 Tome 1 De Bure Paris 1785 Pouco mais tarde

reunindo toda a bibliografia levantada por Wiedler e Bailly aparece a obra de La Lande DE LA

LANDE Jeacuterocircme Bibliographie astronomique avec lhistoire de lastronomie depuis 1781 Jusqursquoaagrave

1802 Paris Imprimerie de la Reacutepublique 1803 No mundo medieval anglo-saxatildeo aleacutem dos

almanaques de Jarchus Petrus e Bacon (preservadas no Museu Britacircnico e na Biblioteca de Oxford)

temos tambeacutem um Almanaque para o ano de 1386 publicado no seacuteculo XIX como curious particulars

mas infelizmente omitindo a maiorias de suas tabelas e cronologias HACKNEY Stower (printed for)

Almanac for the Year 1386 Transcribed Verbatin From the Original Antique Illuminated Manuscript

in the Black Letter 1812 Esse almanaque oferecia uma descriccedilatildeo das casas zodiacais dos planetas e

de suas propriedades uma exposiccedilatildeo dos signos tambeacutem uma breve cronologia a partir do nascimento

de Caim (tanto de eventos sagrados quanto naturais e profanos) algumas explicaccedilotildees numeroloacutegicas

sobre nuacutemeros primos e notas em medicina entre outros toacutepicos

176

relacionadas segundo a tradiccedilatildeo astroloacutegica ao elemento aacutegua O prognoacutestico a

respeito do movimento das estrelas errantes e de sua entrada em Peixes era ressaltado

em cores profeacuteticas desde ao menos 1499 data a partir da qual 56 autores em 113

escritos preservados comeccedilaram a prever um grande diluacutevio para 1524547

Nenhum desses genethliaci contava perto de seiscentos anos embora muitos

guardassem como uma aquisiccedilatildeo para sempre algo em torno de seis seacuteculos de

leituras Ao inveacutes de preparar uma arca e convocar animais imprimiram os tipos de

suas previsotildees em folhetos livros e almanaques resultando em um clima de

apreensatildeo generalizada que transbordou para aleacutem das florestas da Germacircnia e jaacute do

outro lado foi bem aleacutem dos ciclos eruditos frequentados por astroacutelogos de prestiacutegio

como Seitz e Carion Copp Reynmann Volmar Virdung e Ranssmar assim como

teoacutelogos interessados nos sinais celestes como Stephan Wacker Balten Wilhelms e

Heinrich Pastoris548

E no mesmo ano entraram na naacuteu dos Hallucinatii catoacutelicos e reformados

seus saacutebios e seus plebeus suas mulheres e suas crianccedilas

Do leste ao oeste do Reno do sul ao norte dos Alpes o ldquogrande medo de

1524rdquo de fato natildeo atormentava apenas os homens de letras Pomian seguindo de perto

o trabalho de Ottavia Niccoli lembra que na Itaacutelia do seacuteculo XVI um ldquomedo real das

inundaccedilotildeesrdquo ndash associado agrave frequecircncia do fenocircmeno na regiatildeo ndash foi indentificado agrave

propagaccedilatildeo do luteranismo Frente a esses perigos os dois glaacutedios uniam-se na

organizaccedilatildeo ou incentivo de rituais de reparaccedilatildeo coletiva ndash fossem eles procissotildees de

penitecircncia fossem eles corrobories vulgares549 Martinho Lutero natildeo demorou para

assumir a defensiva criticando os ldquoastroacutelogos que foram iludidos naquele ano a

anunciar (ou negar) o fim iminente do mundordquo550

547 Aqui sigo POMIAN Krzystof Les sciences les croyances occultes et les niveaux de culture en

Europe (XVIe-XVIIe siegravecle) In History European Ideas Vol 3 no 1 pp 133-139 1982 Reprinted

from Le Deacutebat No 6 Novembro 1980 p 135-136 tambeacutem HUumlBNER Wolfgang The Culture of

Astrology from Ancient to Renaissance In DOOLEY 2014 p 30 BARNES R Prophecy and

Gnosis Stanford Stanford University Press 1988 GRAFTON Anthony Starry Messengers Recent

Work in the History of Western Astrology Perspective on science Volume 8 n 1 spring 2000

principalmente pp 75-77 GRAFTON Anthony Cardanorsquos Cosmos The World and Works of a

Renaissance Astrologer Cambridge MA 1999 pp 38 53-54 e 40 Na paacutegina 53 Grafton lembra que

Stoeffler e Pflaum anunciaram no seu Almanach Nova (1499) a configuraccedilatildeo dos planetas para 1524

Agradeccedilo ao colega Vitor Batalhone pela disponibilizaccedilatildeo do livro 548 ZAMBELLI Paola (org) Introduction In Astrologi Hallucinati Stars and the End of the World

in Luthers Time Berlin New York De Gruyter 1986 p 11 549 POMIAN 1980-1982 p 136 NICCOLI Ottavia Prophecy and People in Renaissance Italy

Cochrane Princenton University Press 1990 550 ldquo() astrologers who had been deluded that year into announcing (or denying) the imminent end of

the world due to a flood brought on by the conjunction of the three upper planets in the sign of Piscesrdquo

177

As factiacuteveis relaccedilotildees entre as crenccedilas astroloacutegicas ndash com seu inegaacutevel tracircnsito

por vaacuterios segmentos da sociedade ndash e o sentimento de medo ou inseguranccedila jaacute foram

exploradas desde pelo menos a histoacuteria das mentalidades francesa551 Mas os efetivos

prognoacutesticos astroloacutegicos natildeo poderiam ser realizados sem o intenso

desenvolvimento acelerado no quattrocento das observaccedilotildees astronocircmicas e do

cocircmputo dos movimentos celestes Grande parte das previsotildees arriscadas ao longo

dos dois seacuteculos seguintes seriam baseadas em tabelas de efemeacuterides sofisticadamente

apuradas primeiro atraveacutes daquelas editadas por Peuerbach e seu disciacutepulo

Regiomontanus depois por outras jaacute incentivadas pela publicaccedilatildeo do De

revolutionibus orbium coelestium de Nicolau Copeacuternico (1543) como as Tabulae

Prutenicae de Rhenold (1551) e as Ephemerides novae de Johannes Stadius

publicadas em Colocircnia no ano de 1556552

Toda essa precisatildeo matemaacutetica natildeo seria suficiente para garantir o sucesso das

previsotildees Aceitemos apenas por um instante a premissa da influecircncia celeste

Hiparco de Niceacuteia (circa 190ndash120 AC) jaacute havia calculado a precessatildeo dos

equinoacutecios e seus resultados apontavam que ndash dado o movimento irregular do eixo

terrestre hoje bem conhecido ndash os signos zodiacais deslocam-se um grau do leste para

o oeste em um intervalo regular de cerca de 72 anos Isso equivale a dizer que as doze

constelaccedilotildees ldquonatildeo mais correspondem aos doze setores geomeacutetricos contados a partir

e adiante dos pontos tropicaisrdquo Como relembrou Wolfgang Huumlbner ldquoos astroacutelogos

prestam atenccedilatildeo aos duodeacutecimos abstrados dos ciacuterculos ecliacutepticos ao inveacutes das

constelaccedilotildees reaisrdquo 553 Choveu um pouco na Itaacutelia eacute verdade Mas o diluacutevio universal

natildeo veio Mesmo assim o episoacutedio natildeo parece ter abalado fatalmente as crenccedilas

astroloacutegicas e o prestiacutegio geral de seus adeptos mesmo que as criacuteticas comuns desde

Ciacutecero e Sexto Empiacuterico continuassem frequentes Se mais tarde para Antocircnio

Vieira como veremos as estrelas falam com autoridade muitos saacutebios celestes do

LUTHER Werke Kritische Ausgame (Henceforth WA) Briedfweschsel (Henceforth Br) III

Weimar 1933 p 260 Nr 724 apud ZAMBELLI 1986 p 1 551 Ver entre outros o claacutessico de DELUMEAU Jean La Peur en Occident Paris Fayard 1978

principalmente pp 90-102 552 BEZZA Giuseppe Representation of the Skyes and the Astrological Chart In A Companion

Astrology in Renaissance Brill Brills Companions to the Christian Tradition Vol 49 Leiden e

Boston 2014 p 94 Na mesma paacutegina Bezza ressalta que ldquoContrary to what a number of historians

have claimed the spread of Copernicus heliocentric theory did not occasion a crisis in astrology

ldquoReformerrdquo astrologers precisely claimed to be disciples of the Ptolomy of the Tetrabiblos but they

took the new astronomy on board without difficulty both in its Copernican and in its Tychonic

versionsrdquo idem ibidem 553 HUumlBNER Wolfgang op cit p 31

178

renascimento natildeo precisavam olhar os ceacuteus Cegos para o cosmos ouvidos bem

atentos ao som celestial codificado nas efemeacuterides os astroacutelogos viviam para

prognosticar alheios aos increacutedulos e agraves chamas da inquisiccedilatildeo

35 Conjunccedilotildees astrais e eventos sublunares

O tipo de previsatildeo praticada a respeito do diluacutevio de 1524 eacute um bom exemplo

da doutrina astroloacutegica do conjuncionismo Pierre drsquoAilly (1351-1420) cardeal

catoacutelico e teoacutelogo com fama de homem saacutebio era tambeacutem um proliacutefico autor de

textos a respeito da filosofia natural Seu famoso Ymago Mundi tratado geral sobre

cosmografia foi lido com atenccedilatildeo e preenchido de anotaccedilotildees por Cristovatildeo Colombo

que tambeacutem preparou algumas tabelas de efemeacuterides mediando o estudo da obra com

suas proacuteprias observaccedilotildees astronocircmicas Leitor de Platatildeo Aristoacuteteles e Pliacutenio DrsquoAilly

natildeo deixava de citar os astrocircnomos aacuterabes e mouros O problema da influecircncia celeste

forma assim uma das premissas fundamentais de toda sua produccedilatildeo Mas havia algo

de singular na maneira pela qual o cardeal abordava o topos

Em 13 de janeiro de 1493 navegando as Antilhas Colombo lamenta em seu

diaacuterio natildeo haver um porto melhor para observar a conjunccedilatildeo da lua com o sol que

deveria ocorrer dia 17 mesma data em que Jupiter entraria em oposiccedilatildeo com nossa

estrela e em conjunccedilatildeo com Mercuacuterio Ele parecia entusiasmado com o espetaacuteculo

celeste que como acreditava era sinal de ldquograndes ventosrdquo554 Aleacutem de ter declarado

que seria possiacutevel alcanccedilar o outro lado da Terra navegando pelo seu oposto ndash sem

esquecer de comentar que a Iacutendia era imensa em tamanho e em maravilhas ndash o Ymago

Mundi trazia tambeacutem entre citaccedilotildees do Centiloquim do pseudo-Ptolomeu a imagem

de um ldquociacuterculo do zoodiacordquo como ldquoo cinto do firmamentordquo555

Mas eacute em outro tratado o ambicionsamente intitulado De concordia

astronomicae veritatis et narrationis historicae que DrsquoAilly vai expor a sua teoria

das conjunccedilotildees organizadas ainda a partir das tabelas de efemeacuterides alfonsinas Na

hierarquia celeste Saturno e Juacutepiter ndash o titatilde Chronos e o deus dos deuses ndash os

554 COLUMBUS Christopher The Diario of Christopher Columbusrsquos First Voyage to America 1492-

1493 Abstracted by Fray Bartolomeacute de las Casas O Dunn JE Kelley Jr (trad) Library of Congress

1989 pp 328-329 Folio 55r 555 DrsquoAILLY Pierre Ymago Mundi Edmond Buron (eacuted) Texte latin et traduction franccedilaise des quatre

traiteacutes cosmographiques de drsquoAilly et des notes marginales de Christophe Colomb Tome I Librarie

Orientale et Ameacutericaine Paris 1930 Tome I p 169 Sobre os usos do Centiloquium ver por exemplo

pp 248-249 para o capiacutetulo sobre as iacutendias ver p 265 e seguintes

179

planetas mais lentos conhecidos ateacute entatildeo ocupam um papel especial A cada 960

anos ocorre entre eles uma grande conjunccedilatildeo Outra intermediaacuteria se passa a cada

240 anos Uma menor eacute observada em 19 intervalos anuais e proacuteximo a cada 30 anos

os dois gigantes entram em oposiccedilatildeo DrsquoAilly propocircs uma narrativa que buscava

relacionar grandes eventos da histoacuteria sagrada e profana com esses fenocircmenos

celestes com a vantagem de que assinalavam uma periodicidade natural que se

aproximava de nuacutemeros redondos 20 30 250 e 1000 anos O tratado sobre A

concordacircncia da verdade astronocircmica e da narraccedilatildeo histoacuterica era com certeza um

dos tipos extremos mais importantes para aquilo que Krysztof Pomian seacuteculos depois

chamaria de astrologia como uma teologia naturalista da histoacuteria556 Foi tambeacutem

bastante lido e comentado ao longo dos seacuteculos XVI e XVII por eruditos e antiquaacuterios

como William Camden557 Natildeo era pouco para um autor que antecipou as ondas

diluvianas um seacuteculo antes de elas varrerem os quatro cantos do Sacro Impeacuterio

Abolindo o ordenamento do tempo enquanto percepccedilatildeo do ser seu modelo eacute o

exemplo mais bem acabado de integraccedilatildeo da histoacuteria humana aos ciclos das

conjunccedilotildees e das luas cheias dos eclipses e das siziacutegias da escuridatildeo e da luz da matildeo

providencial e da ordem da natureza

Mas Pierre drsquoAilly tambeacutem teve criacuteticos ilustres A concordacircncia entre a

verdade astronocircmica e a narraccedilatildeo histoacuterica atraveacutes dos ciclos de conjunccedilotildees

implicaria no avatar milenarista de um regime de historicidade com olhos no futuro

ancorado na ordem da natureza e dado a prognoacutesticos ldquoracionaisrdquo mas encrustrado

em uma experiecircncia do tempo que insistia em ouvir o passado aos exempla e a

auctoritas Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) assim como mais tarde o

cronologista Joseph Scaliger (1540-1609) e mesmo o astrocircnomo Johannes Kepler

(1571-1630) ndash que natildeo deixava de interessar-se pela influecircncia celeste ndash viam a

astrologia horoscoacutepica confrontada com Hiparco como uma antiga ilusatildeo e

perguntavam-se em debates acalorados como uma premissa tatildeo fraacutegil pocircde coexistir

556 POMIAN Krzysztof Astrology as a Naturalistic Theology of History In Astrologi Hallucinati

Stars and the End of the World in Luthers Time Berlin New York De Gruyter 1986 sobre os ciclos

de Pierre D`Ailly ver p 36 Jonathan Dove ndash autor de almanques de efemeacuterides ndash em 1667 jaacute havia

feito uma afirmaccedilatildeo parecida com a de Pomian quando definiu a astrologia como uma forma de natural

theologie ou seja uma ciecircncia que nos aproximaria da providecircncia DOVE Jonathan Dove speculum

anni aacute partu virginis MDCLXVII or an almanack for the year of our Lord God 1667 Cambridge

1667 557 GRAFTON 2000 p 72 SMOLLER Ackerman L History Prophecy and the Stars Princenton

NJ Princenton University Press 1994 E tambeacutem GRAFTON Anthony Joseph Scaliger 2 vol

Oxford Clarendon Press 1983-93 especialmente p 351

180

em um mundo de saacutebios como Claudio Ptolomeu e Hermes Trimegistus558 Muitos

dos participantes do debate a respeito do diluacutevio de 1524 aproveitaram as

circunstacircncias para atacar o modelo conjuncionista do cardeal DrsquoAilly Pico della

Mirandola talvez seu mais jovem e feroz opositor anos antes jaacute havia colocado em

cena toda a sua velha carga de leituras para apontar que se a teoria do Grande Ano

estava mesmo presente na filosofia claacutessica (Timaeus 39d) aquela dos ciclos

baseadas em conjunccedilotildees era completamente ausente A validade de sua tese como

lembrou Paola Zambelli continua sendo corroborada ateacute hoje segundo a

historiografia atual a teoria das conjunccedilotildees veio da Peacutersia Sassacircnida e chegou ao

ocidente atraveacutes dos escritos de Mashallah (740-815) Al-Kindi (801-873) e

Abumasar (787-886) astroacutelogos dentre os quais Tomaacutes de Aquino ainda no seacuteculo

XII encontrava interlocutores criacuteticos559 Os profetas do diluacutevio de 1524 poderiam

natildeo ter os seiscentos anos de Noeacute mas eacute possiacutevel que contassem tempo muito

parecido em erudiccedilatildeo560

558 Vide GRAFTON Anthony Commerce with the Classics Ann Arbor University of Michigan Press

1997 principalmente capiacutetulo 5 559 ZAMBELLI 1986 p 24-25 Tambeacutem GRAFTON 2000 p 73 e HUumlBNER op cit p 29 Sobre a

astrologia no mundo islacircmco ver KENNEDY E S Ramification of the World-year concept in Islamic

Astrology Congress of the History of Science Paris 1962 pp 23-42 Sobre as conjunccedilotildees e seu

impacto nos eventos da histoacuteria humana em Mashallah ver LORCH RP The Astrological History of

Māshāallāh In The British Journal for the History of Science Cambridge Mass Cambridge

University Press 6 (4) novembro de 2013 pp 438-439 Sobre a interface entre a escolaacutestica e a

filosofia natural araacutebico-ptolomaica ver LEMAY Richard Abu Marsquoshar and Latin Aristotelianism in

the Twelfth Century The Recovery of Aristotlersquos Natural Philosophy through Arabic Astrology Beirut

American University of Beirut 1982 Existem indiacutecios que apontam para um claro contrabando de

textos e conceitos matemaacuteticos vindos do oriente nos trabalhos de astroacutelogos matemaacuteticos (genethliaci)

ocidentais Em instigante ensaio Jerky Dobrzycki e Richard Kremer propuseram-se a refazer os

caacutelculos das efemeacuterides de Johannes Angelus mestre de artes na Vienna do seacuteculo XVI Engel como

era igualmente conhecido publicou suas Ephemeris entre 1510 e 1512 Seus almanaques imitavam

ldquoexatamente o formato impresso estabelecido para o gecircnero em 1747 pelas efemeacuterides de Johannes

Regiomonatnus e continuadas por Johan Stoumlffler e Jacob Pflaum em seu Almanach nova de 1499rdquo No

entanto no Almanach novum atque correctum Angelus afirmava que seu trabalho era mais preciso do

que os ldquoalmanaques comunsrdquo pois era computado a partir de ldquonovas taacutebuas de equaccedilotildees planetaacuteriasrdquo

Angelus dizia ter encontrado as novas tabelas em um manuscrito inacabado de Peurbach e ldquocom a

ajuda do todo poderosordquo teria sido capaz de completaacute-las As refazer os caacutelculos das efemeacuterides

comparando-os com Stoumlffler e Pflaum os autores sugerem que as correccedilotildees realizadas por Angelus no

sistema Ptolomaico a partir dos modelos alfonsinos (cujas tabelas foram publicadas em 1483)

empregaram teacutecnicas matemaacuteticas (como os ldquomoderadores harmocircnicosrdquo) desenvolvidas pela escola

persa de Maragha Ver DOBRZYCKI Jerzy KREMER Richard Peurbach and Maragha Astronomy

The Ephemeris of Johannes Angelus and their implications In Journal for the History of Astronomy

Provided by NASA Astrophysics Data System Xxvii 1996 560 Cf SENECA Naturales Quaestiones De Aquis Terrestribus Liber III-291 [291] ldquoQuidam

existimant terram quoque concuti et dirupto solo noua fluminum capita detegere quae amplius ut e

pleno profundant Berosos qui Belum interpretatus est ait ista cursu siderum fieri adeo quidem

affirmat ut conflagrationi atque diluuio tempus assignet arsura enim terrena contendit quandoque

omnia sidera quae nunc diuersos agunt cursus in Cancrum conuenerint sic sub eodem posita

uestigio ut recta linea exire per orbes omnium possit inundationem futuram cum eadem siderum

turba in Capricornum conuenerit Illic solstitium hic bruma conficitur magnae potentiae signa

181

A recepccedilatildeo do conjuncionismo desde cedo levantou polecircmica no ocidente

Suas teses jaacute haviam sido condenadas e proibidas em Paris e Oxford no ano de 1277

e continuavam sendo atacadas no seacuteculo seguinte por Henrich von Langenstein porta

voz da Sorbonne em seu Contra astrologos coniuctionistas de eventibus futurorum

datado de 1371561 Publicada de forma poacutestuma em 1498 as Disputationes adversus

astrologiam divinatricem de Pico defendiam que ldquoo poder dos planetas conjurados

natildeo eacute maior do que o dos planetas divididosrdquo concluindo categoricamente que ldquoessas

grandes conjunccedilotildees satildeo uma nova invenccedilatildeo que deriva do desentendimento de um

locus em Ptolomeurdquo 562

A questatildeo que comeccedilava a surgir na esteira dos estudos humanistas era a de

como justificar a presenccedila na obra ptolomaica dos aforismas que tratavam das

conjunccedilotildees dos planetas superiores Pico della Mirandola apesar de jaacute semear

algumas duacutevidas natildeo chegou ao ponto de questionar nas suas disputationes a autoria

do Centiloquium (Dip III 14)563 No mesmo periacuteodo em que aparece o comentaacuterio de

Ibn al-Daya surgiu tambeacutem a primeira versatildeo latina das 100 pequenas teses atribuiacutedas

a Ptolomeu feita por Joatildeo de Sevilha em 1136 um par de anos antes da traduccedilatildeo do

Tetrabiblos realizada por Platatildeo de Tivoli A divulgaccedilatildeo do texto menor que

circulava em cerca de 150 manuscritos intensificou-se entre os seacuteculos XIII e XIV

depois das universidades rejeitarem a proibiccedilatildeo da leitura e ensino da filosofia natural

de Aristoacuteteles564

No entanto eacute apenas com as sucessivas traduccedilotildees do Tetrabiblos de Ptolomeu

ndash que comeccedilam tambeacutem a ser realizadas diretamente do texto grego ndash que os

humanistas passam pouco a pouco a suspeitar dos aforismas do Centiloquium

George de Trebizonda jaacute na metade do seacuteculo XV iniciou o esforccedilo filoloacutegico ao

quando in ipsa mutatione anni momenta suntrdquo CLARKE John (trans) Physical Science in the Time of

Nero Being a translation of the Quaestiones Naturales of Seneca Macmillan and co Limited

London 1910 ldquoforth from their full source in larger volume Berosus the translator of [the records of]

Belus affirms that the whole issue is brought about by the course of the planets So positive is he on

the point that he assigns a definite date both for the conflagration and the deluge All that the earth

inherits will he assures us be consigned to flame when the planets which now move in different

orbits all assemble in Cancer so arranged in one row that a straight line may pass through their

spheres When the same gathering takes place in Capricorn then we are in danger of the delugerdquo

Grifos meus 561 HUumlBNER op cit p 30 562 apud ZAMBELLI 1986 p 25 563 Agora sigo a introduccedilatildeo e o comentaacuterio agrave traduccedilatildeo do Centiloquium realizada por BEZZA

Giuseppe Commento al primo libro della Tetrabiblos di Claudio Tolemeo Nuovi Orizzonti Milano

sp 19901992 564 LEMAY Richard The Teaching of Astronomy in Medieval Universities principally at Paris in the

Fourteenth Century Manuscripta 1976 XX3 pp 197-217

182

tentar recuperar o texto original do Tetrabiblos tambeacutem vertendo para o latim o

Almagesto compondo-lhe uma versatildeo que renderia criacuteticas de seu adversaacuterio o

cardeal Bessarion565 Versotildees latinas do Tetrabiblos e do Centiloquium foram

publicados juntas em Veneza no ano de 1493 Um pouco antes entre 1477 e 1491

Lorenzo Bonincontri Giorgio Valla Girolamo Cardano e enfim Franciscus Junctius

jaacute haviam tecido seus comentaacuterios agrave obra Pouco menos de meio seacuteculo mais tarde

em 1535 aparece uma ediccedilatildeo dos textos ptolomaicos em grego realizadas por

Joaquim Camerarius e Philipp Melanchthon que em 1553 publicaria uma versatildeo

latina do Tetrabiblos566 Alguns anos antes as casas editoriais de Nurenberg

resolveram reciclar a ediccedilatildeo de Joatildeo de Sevilha publicando-a em 1548 sob o nome de

Epitome totius astrologiae567

Do outro lado do Reno ndash mas compartilhando o espiacuterito da reforma astroloacutegica

levada a cabo pelo ciacuterculo de Melanchthon ndash Cardano natildeo teria mais duacutevidas a

respeito do Centiloquium Ao recuperar o texto grego chamado de Karpos e

confrontar-lhe o estilo a linguagem e a teoria com o Tetrabiblos ele natildeo demorou a

declarar em sua Opera Omnia que aqueles ceacutelebres aforismas natildeo haviam sido

escritos por Ptolomeu apontando Hermes Trimegistus como seu provaacutevel autor568

Tratavam-se de fato de dois escritos muito singulares O tratado em quatro livros

pareceu-lhe de difiacutecil leitura exigindo o estudo de conhecimentos muito especiacuteficos

o que levou Cardano a classificaacute-lo como obscurissimus569 Era de todo diferente da

astrologia ecleacutetica na qual Ptolomeu Hermes e astroacutelogos aacuterabes pareciam coexistir

em uma espeacutecie de harmonia sincreacutetica que natildeo era incomumente defendida pelos

saacutebios medievais570

Algum tipo de uso do corpus Ptolomaico era visiacutevel mesmo nos autores

ligados a Ars Historica renascentista Jean Bodin de fato comeccedila seu Methodus ad

facilem historiarum cognitionem argumentando em favor da distinccedilatildeo entre historia

humana historia naturalis e historia divina No entanto mais adiante no quinto

capiacutetulo ele propotildee que ldquopesquisemos () os fatos regidos pela natureza e natildeo pelas

565 FARACOVI 2014 92 566 HUumlBNER op cit 20 567 FARACOVI 2014 90 568 CARDANO Opera Omnia vol V Astronomica Astrologica Oneirocritica Lugduni 1663 apud

BEZZA 1992 569 Sobre os usos da metodologia de Cardano na criacutetica do Centiloquium para quem seguindo Galeno

primeiro era necessaacuterio realizar perguntas filoloacutegicas e soacute depois lanccedilar as devidas questotildees

filosoacuteficas ver GRAFTON Cardanorsquos Cosmos 1999 p 137 570 FARACOVI op cit pp 90-91

183

instituiccedilotildees humanas os fatos estaacuteveis que nada pode modificarrdquo O autor do Meacutetodo

inicia eacute verdade ldquopor estabelecer que nenhuma influecircncia assim como dos lugares

quanto dos corpos celestes implique em uma necessidade absolutardquo 571 Como notou

Grafton de todo modo Bodin ldquotratou o clima como um fator determinante no

desenvolvimento de cada genius nacionalrdquo 572

Enquanto os humanistas realizavam a criacutetica erudita da obra ptolomaica seus

textos falsos ou natildeo continuavam a ser impressos e ao lado deles seguiam um sem

nuacutemero de almanaques de conteuacutedo astroloacutegico Na Franccedila do seacuteculo XVI a

popularidade das efemeacuterides eacute atestada por um documento conservado na Biblioteca

Nacional Assinado por Oronce Fineacute matemaacutetico cartoacutegrafo e astroacutelogo judiciaacuterio

preso no contexto de 1524 tratava-se de um pequeno manual relativo ao Uso amp

praacutetica dos almanaques a que chamamos de Efemeacuterides As tabelas de movimento

dos astros mais apuradas como aquelas produzidas no ciacuterculo de Peuerbach e Muumlller

eram ainda publicadas em latim e abarrotadas de nuacutemeros o que de certo dificultava o

entendimento do puacuteblico Fineacute organizou assim um manual de leitura astronocircmico

indicando aos interessados natildeo apenas o que deveriam encontrar em cada secccedilatildeo de

uma efemeacuteride cotejando suas partes com os nomes latinos que lhes acompanhavam

mas tambeacutem ensinando a utilizar e adaptar suas tabelas aos mais variados usos que

iam com naturalidade do agriacutecola ao medicinal Dividido em 30 toacutepicos aos quais

preferiu chamar de cacircnones em trecircs deles o manual tocava diretamente a praacutetica

judiciaacuteria oportunidade em que aflorava o vocabulaacuterio conjuncionista573

A crenccedila no poder das conjunccedilotildees enumeradas com a precisatildeo de dias entre as

tabelas publicadas na Europa da eacutepoca natildeo raro antecipavam expectativas ou

quando quase inevitavelmente falhavam contentavam-se a retroalimentar suas

convicccedilotildees celestes na interpretaccedilatildeo de um evento passado agrave luz do conhecimento das

revoluccedilotildees astrais Assim a conquista de Jerusalem por Saladin em 1187 foi anos

571 ldquoCherchons au contraire des faits reacutegis pas la nature et non par les institutions humaines des faits

stables que rien ne puisse modifier si ce nrsquoest une grande force ou une discipline prolongeacutee des faits

que lrsquoon ne saurait deacuteranger snas les voir revenir drsquoeux-mecircmes agrave leur nature primitiverdquo () Mais je

commence par eacutetablir qursquoaucune influence aussi bien des lieux que des corps celestes nrsquoinplique une

necessite absolue () BODIN Jean Agevin Meacutethode pour faciliter la connaissance de lrsquohistoire P

Mesnard (trad) Paris Martin le Jeune 1572 respectivamente pp 313-314 572 GRAFTON 2007 sp cap 1 proacuteximo a nota 61 573 FINEacute Oronce Les canons amp documents tregraves amples touchant l`usage amp practique des communs

almanachz que lrsquoon nomme eacutepheacutemeacuterides Briefve amp isagogique introduction sur la judiciaire

astrologie avc un traicteacute drsquoAlcabice touchant les conjonctions des planegravetes en chascun des 12 signes

et de leur prognostications Impr De R Chadiegravere Paris 1551 BNF Deacutepartemente Reacuteserve des livres

rares V-21376

184

depois interpretada a partir do encontro dos planetas em Libra ocorrida em 16 de

setembro de 1186 Em 1484 uma grande conjunccedilatildeo em Escorpiatildeo ocorrida no dia 25

de novembro foi depois relacionada por alguns astroacutelogos ao surto de siacutefilis na

Europa e por outros ao nascimento de Lutero Algumas decadas mais tarde a uniatildeo

de trecircs planetas exteriores em Cacircncer no ano de 1503 seria cotejada com a morte do

papa Alexandre VI574

Apoacutes o episoacutedio de 1524 a nova geraccedilatildeo de astroacutelogos parece ter aprendido a

ser mais cuidadosa Em 1583 Saturno e Juacutepiter voltaram a se unir ainda uma vez em

Peixes Essa conjunccedilatildeo era agurdada com ansiedade sendo conhecida pelo menos

desde as primeiras tabelas de Johannes Muumlller (depois apelidado por Melanchthon de

Regiomontanus) datadas de 1474 e ampliadas em escopo temporal e precisatildeo pelas

Ephemerides sive almanach perpetuus de 1498 Rumores a respeito de uma previsatildeo

de grandes calamidades para o ano de 1588 atribuiacuteda ao proacuteprio Muumlller ndash um dos

mais respeitados matemaacuteticos da renascenccedila ndash comeccedilaram rapidamente a se espalhar

apoacutes a sua publicaccedilatildeo em 1553 Regiomontanus teria escrevinhado tal prognoacutestico em

alguns versos encontrados em uma folha de papel solta em seu escritoacuterio Em 1564

Cyprien Leowitz no De coniunctionibus magnis endorsa a suposta profecia do

ceacutelebre matemaacutetico lanccedilando expectativas para a segunda chegada do filho de

Deus575

Com esses elementos em mente os saacutebios celestes utilizaram entatildeo um

procedimento que natildeo seria estranho um seacuteculo antes ao cardeal DrsquoAilly Miraram

seus prognoacutesticos natildeo ao momento da conjunccedilatildeo em Peixes de 1583 mas cinco anos

depois dela quando seus efeitos acreditavam eles seriam efetivamente sentidos

Mais comedidos ndash com algum tempo para revisar cada prognoacutestico apoacutes a leitura

atenta da Bula de Sisto V de 1586 ndash natildeo arriscaram suas reputaccedilotildees falando em

diluacutevio fosse particular ou universal mas tatildeo somente e de maneira mais vaga

previram um acidente aquaacutetico E nesse caso puderam observar a profecia realizar-se

na destruiccedilatildeo da Armada Invenciacutevel no annus mirabilis de 1588576

574 HUumlBNER op cit pp 30-31 575 LEOWITZ Cyprien De coniunctionibus magnis insignioribus superiorum planetarum apud

EAMON William Astrology and Society In DOOLEY 2014 p 182 ldquoSince () a new trigon which

is the fiery is now imminent undoubtedly new worlds will follow which will be inaugurated by

sudden and violent changesrdquo Leowitz chegou a dizer que a conjunccedilatildeo ldquosem duacutevida anuncia a segunda

vinda do filho de Deusrdquo 576 Ver EAMON op cit pp 180-181

185

36 Le Roy e o Imperador uma (des)ordem da natureza

Enchentes e conjunccedilotildees foram apenas dois fenocircmenos entre uma seacuterie de

eventos naturais observados com certa mistura de temor e curiosidade pelos homens

do seacuteculo XVI Philip Melanchthon demonstrava preocupaccedilatildeo ao procurar sinais de

cometas nos ceacuteus577 Martinho Lutero que em geral natildeo via a praacutetica astroloacutegica com

bons olhos acreditava que os eclipses eram ldquomaus pressaacutegios assim como os partos

monstruososrdquo O autor das teses de 1517 tambeacutem pensava que esse tipo de evento

estava se tornando cada vez mais comum em um sinal provaacutevel da proximidade do

fim dos tempos578 A reforma fazia bom uso dos evangelhos de Marcos (1320) e

Mateus (2422) os quais asseveravam que Deus administrador do tempo e mestre da

natureza poderia acelerar o teacutermino do mundo em nome do fim do sofrimento dos

fieacuteis E tal natildeo era uma leitura que fosse de todo singular ao leste do Reno Louis Le

Roy (1510-1577) homem erudito dado a devaneios entre infolios pagatildeos professor

de grego no Collegravege Royal tradutor de Platatildeo Isoacutecrates Xenofonte Demoacutestenes e

tambeacutem da Poliacutetica de Aristoacuteteles jaacute na velhice encontrou tempo para publicar um

longo tratado sobre a Vicissitude ou Variedade das Coisas no Universo Datada de

1575 nesta obra seu projeto intelectual e as traduccedilotildees dos claacutessicos para o francecircs

ganhavam sentido ainda sob seus ombros Le Roy vertera os gigantes em liacutengua

moderna na esperanccedila de que seu tempo pudesse ver o nascimento de pensadores e

homens de letras tatildeo grandes quanto os modelos vindos da antiguidade579

577 Sobre o problema dos ceacuteus no pensamento de Melanchthon ver METHUEN Charlotte The Role of

the Heavens in the Thought of Philip Melanchthon Journal of The History of Ideas 57 1996 pp 385-

403 Entre os seacuteculos XVI e XVII surge toda uma seacuterie de tratados de cometografia que buscavam

catalogar registros de atividades de cometas muitos dos quais produzidos no ciacuterculo luterano de

Melanchthon Entre 1532 e 1558 Joaquim Camerarius com o endorso do mestre publica textos nos

quais defende a natureza portentosa dos cometas Milich Jakob entendendo que os corpos celestes satildeo

movidos por uma ldquocerta ordem e lei da naturezardquo (certa lege naturae atque ordine moventur) tambeacutem

via neles sinais divinos Caspar Peucer por sua vez acreditava que os prognoacutesticos astroloacutegicos eram

meios legiacutetimos de ldquose compreender a ordem natural estabelecida por Deusrdquo Sobre os tratados de

cometografia sigo as informaccedilotildees de MOSLEY Adam Past Portents Predict Cometary historiae

and catalogues in the sixteenth and seventeenth centuries In TESSICINI D BONER PJ (org)

Celestial Novelties on the Eve of the Scientific Revolution 1540-1630 Florencia Leo Olschki Museo

Galileo 2013 pp 2-32 para quem os ldquoacadecircmicos luteranos foram condicionados a entender os

cometas tanto como sinais naturais quanto providenciais de um mundo divinamente ordenadordquo (p 6) 578 GRAFTON Anthony Some uses of Eclipses () 2003 p 213 579 Trata-se da opiniatildeo de uma obra que sigo parcialmente em minha leitura da cosmologia de Louis Le

Roy GUNDERSHEIMER Werner L The Life and Works of Louis Le Roy Droz 1966 Genebra p 37

Gundersheimer ao longo de seu estudo pensa as reflexotildees de Louis de Roy como se estivessem

integradas a uma ldquofilosofia da histoacuteriardquo Natildeo eacute uma opiniatildeo incomum entre estudiosos da astrologia

renascentista como Eugenio Garin para quem o saber celeste constituia-se em uma ldquofilosofia da

histoacuteria baseada em uma concepccedilatildeo do universo caracterizada por um consistente naturalismo e um

186

Dividida em doze livros escritos em liacutengua francesa sua obra maacutexima

declarava estudar as ldquomudanccedilas alternativas do universo tanto em sua parte superior

quanto inferiorrdquo e a partir daiacute chegar ao problema das ldquoinsignes mutaccedilotildees do gecircnero

humanordquo Seguia-se a elas jaacute no penuacuteltimo capiacutetulo uma comparaccedilatildeo entre seacuteculos

daquele que lhe era contemporacircneo com os ldquoprecedentes mais ilustresrdquo em suma do

seacuteculo XVI com o mundo antigo580 Os paiacuteses as religiotildees os costumes os povos

todos pareciam em constante mutaccedilatildeo O percurso traccedilado por Le Roy o permitiria se

perguntar no deacutecimo primeiro livro em que o tempo presente era inferior superior

ou igual aos seacuteculos exemplares581 Nada mudava mais do que o homem mas era essa

uma corrente de vicissitudes que seguia alguma ordem

O primeiro livro declarava a premissa fundamental da obra ldquoDa vicissitude ou

variedade observada dos movimentos dos ceacuteus e das esferas celestesrdquo dependiam

segundo Le Roy todas as ldquomudanccedilas advindas neste mundo inferiorrdquo O topos da

influecircncia celeste natildeo era assumido sem fazer concessotildees ao modelo agostiniano o

qual o obrigada a reconhecer ldquomuito humildemente a providecircncia divinardquo como ldquofator

e governador dessa grande obra de excelecircncia e beleza admiraacutevel em variedade

singularidade e perenidaderdquo582

Poucos anos antes em 1571 Girolamo Cardano ndash um dos mais eminentes

doutores a praticar e ensinar a astrologia em solo catoacutelico ndash fora condenado pela

inquisiccedilatildeo583 A alianccedila do autor das Vicissitudes com a via media encontrada anos

riacutegido determinismordquo GARIN Eugenio Astrology in the Renaissance The Zoodiac of Life Routledge

amp Kegan Paul London-Boston 1983 p 16 Nesta tese ao falar na astrologia medieval e renascentista

prefiro a distinccedilatildeo esboccedilada por Pomian (1986) entre duas teologias da histoacuteria uma teocecircntrica e

outra naturalista guardando a filosofia da histoacuteria para o momento em que Voltaire e seus

interlocutores alematildees comeccedilam a relacionar as noccedilotildees de movimento (e mudanccedila) agrave accedilatildeo sublunar

humana 580 ldquoDoncques en toute lrsquooeuure sont representez les changemens alternatifs de lrsquovnivers taacutet em as

partie superieure qursquoinferieurerdquo () ldquorecontres les insignes mutations du genre humainamp comparaison

de ce siecle aux precedes plus ilustres pour ssccedilauoiren en quoy il leur est inferieur ou superieur ou

egalrdquo Sommaire de lrsquoouvre LE ROY Louis De la Vicissitude ou variete des choses en l`univers et

concurrence des armes et des lettres par les premieres et plus illustres nations du monde depuis le

temps ougrave agrave commenceacute la civiliteacute amp memoire humaine jusques agrave present Paris Pierre l`Huilier 1575

Doravante citada apenas como Viciss 581 Keith Thomas em trabalho muito citado natildeo deixou de comentar que durante a renascenccedila italiana

ldquodoutrinas astroloacutegicas a respeito das recorrecircncias de conjunccedilotildees planetares e sua influecircncia no curso

dos assuntos humans ajudaram a formar o conceito de periacuteodo histoacutericordquo Ver THOMAS Keith

Religion and the Decline of Magic Studies in Popular Beliefs in Sixteenth and Seventeenth-Century

England Oxford University Press Oxford 1971 p 386 582 ldquoLa vicissitude amp variete obseruee eacutes mouuemens du ciel amp des spheres celestes dont dependente

les changemens aduenans em ce monde inferieur ()rdquo ldquo() ie recognois treshumblement la prouidance

diuvine estre par dessus croyant certainement que Dieu tout puissant facteur amp gouuerneur de ce grand

ouurage excelleacutet en baeuteacute admirable en varieteacute singulier enduree ()rdquoViciss I1 583 Ver GRAFTON 1999 4-5

187

antes pela escolaacutestica garantia-lhe certamente proteccedilatildeo combinada com o cauteloso

expediente de citar os pensadores pagatildeos mouros e mesmo os astroacutelogos

contemporacircneos sem encampar nominalmente suas teses584 Na praacutetica entretanto o

que o leitor assiste ao longo do primeiro e tambeacutem do uacuteltimo capiacutetulo da obra eacute a uma

grande revisatildeo ecleacutetica da tradiccedilatildeo astroloacutegica de onde deriva a assimilaccedilatildeo

cosmoloacutegica que guia os rumos de sua anaacutelise histoacuterica A causa das modificaccedilotildees

sublunares diria Le Roy eacute dupla uma advem do ldquoprimeiro motor imoacutevel a outra do

motor moacutevel atraveacutes da virtude e da influecircncia do primeirordquo que expressa os

desiacutegnios ldquoda providecircncia divina dominanterdquo restauradora e renovadora de todos os

corpos sensiacuteveis por meio da apropriaccedilatildeo cristatilde do cacircnone aristoteacutelico da geraccedilatildeo e da

corrupccedilatildeo585

Tanto ldquoastroacutelogos quanto meacutedicos afirmam que da parte superior do universo

descendem certas virtudes companhadas de luz e calorrdquo caracteriacutesticas que ldquoalguns

chamam de espiacuterito do universo outros de naturezardquo Mas esse espiacuterito transcende a

ordem da natureza integrando-se no iacutentimo de todas as caracteriacutesticas humanas

influindo nos ldquocostumes (moeurs) das pessoas propriedades das naccedilotildees viacutecios e

virtudes sauacutedes e doenccedilasrdquo e mesmo nas ldquoprosperidades e a adversidadesrdquo Natildeo se

trata entretanto de uma ldquolei fatalrdquo podemos diminuir ou aumentar a accedilatildeo da natureza

atraveacutes da prudecircncia da alimentaccedilatildeo dos costumes e das instituiccedilotildees humanas586

Le Roy compreende a dinacircmica das vicissitudes a partir da influecircncia dos dois

motores embora ressalte que as mudanccedilas eram tambeacutem ldquotemperadasrdquo pelo repertoacuterio

claacutessico dos contraacuterios e desiguais lido atraveacutes de Heraacuteclito Homero e eacute claro

584 Le Roy sabia por exemplo como tambeacutem soubera Pico dela Mirandola que o conjuncionismo

astroloacutegico (tal como praticado no seacuteculo anterior por Pierre Drsquoailly) vinha atraveacutes dos filoacutesofos

naturais mouros ldquoSi ont les Arabes diuseacute ce longe espace de temps par les grandes conionctions des

Planetes signamment des trois Superieures Saturne Iupiter amp Mars que ils maintiennet auoir

meilleur pouuoir sur les alteratios principales de ce mode inferieur ()rdquoViciss I 3 585 ldquoLa cause mouuante est double lvne du premier moteur immobile lautre du moteur mobile par la

vertu amp influence duquel (la diuine prouidence dominant les choses caduques au mode sensible sont

incessamment restaures amp renouuelles moyennant la generation ()rdquoViciss I4 586 ldquoDocques les Astrologiens amp Physiciens afferment de la partie superieure de lvnivers descendre

certaine vertu accompagnee de lumiere amp chaleur quaucuns deux appellent lesprit de lvnivers les

autres nature () Lagrave estre le premier mouuement dont deppendent les autres inferieurs amp toute

essence De lagrave proceder diuerses temperatures des corps inclinations dentedemens moeurs des

personnes proprietez des nations vices amp vertus santeacute amp maladies force amp foiblesse briueteacute amp

longuer de vie mortaliteacute richesse amp pauureteacute prosperitez amp aduersitez () Non pas que tels effects

aduiennent necessairement amp inuiolablement par vne loy fatale ains quils peuuent estre euitez pra

sagesse ou destournez par prieres diuines ou augmentez amp diminuez par prudence ou moderez par

nourriture coustume institutionrdquo Viciss I 2

188

Empeacutedocles587 Para a filosofia natural desenvolvida sob os escombros dos antigos as

efemeacuterides solares produziam divisotildees anuais quadripartidas as quais abarcam dois

solstiacutecios um de inverno outro de veratildeo e dois equinoacutecios um durante a primavera e

outro no outono Assim satildeo lidas as alternacircncias entre o calor e frio geraccedilatildeo e

corrupccedilatildeo Tanto o movimento quanto a luz e a influecircncia eram os agentes da accedilatildeo

celeste Agentes que operacionalizavam o comportamento astral por meio da

produccedilatildeo de quatro qualidades principais a saber o calor o frio a secura e a

humidade Combinadas entre si elas originariam os quatro elementos fundamentais o

fogo a aacutegua o ar e a terra

Entre os ldquocontraacuterios e dissimilaresrdquo Louis le Roy imaginava uma espeacutecie de

dialeacutetica celeste ldquoentendida pela discoacuterdiardquo essa ldquovariedade das coisas que se unemrdquo

devem tender a ldquosuperar a contrariedaderdquo Eacute o que se passa quando Marte e Venus

Jupiter e Saturno equilibram suas caracteriacutesticas naturais E assim ocorre com o

mundo inferior composto pelos elementos com os humores humanos ndash suas paixotildees

e accedilotildees ndash ainda com a poliacutetica e com a economia588 Dessa forma como explica o

humanista ldquohoje se opotildee os escoceses aos ingleses os ingleses aos franceses e os

franceses aos italianosrdquo dentre muitos outros povos citados e comparados em

especiacutefico ao longo dos capiacutetulos restantes Sobra uma linha para comentar a

influecircncia dos contraacuterios ao sul do equador americano ldquoao Brasil dos selvagensrdquo

rudes habitantes que se potildee a ldquocomer uns aos outros quando satildeo pegos em guerrardquo 589

O seacuteculo XVI era de ansiedades e guerras de religiatildeo fez catoacutelicos e

protestantes tremerem diante das incertezas da morte da deterioraccedilatildeo das relaccedilotildees

sociais e da crise da cosmologia medieval Essa apreensatildeo eacute expressa diretamente nas

paacuteginas finais do deacutecimo livro no qual o professor do Collegravege Royal levanta o 587 ldquo() lrsquovnivers nrsquoest seulement conferueacute par la vicissitude des cieux amp des elemens mais aussi

tempere par contraiacuteres ()rdquoViciss I 6 588 ldquoEntendant par discorde la varieteacute des choses qui srsquoassemblent amp par concorde lrsquovnion drsquoiccelles

Mais lrsquovnion en celle assemblee doit surmonter la contrarieteacute Autrement se resouldroit la chose les

priacutencipes se separans Ainsi nous noions au ciel mouuemens contraiacuteres conseruer lrsquovniuers Venus

colloquee au mylieu prez Mars afin de dompter son impetuositeacute qui est de sa nature corruptif amp

Iuppiter prez Saturne pour corriger as malice Le monde inferieur composeacute drsquoElemens contraiacuteres se

maintenir par la proportion qursquoils ont ensemble les natures faittes drsquoeux se conserner par la

temperature de qualitez diferentes Se trouuent au corps de lrsquovniuers terre eua air feu soleil lune amp

autres astres Il y a matiere forme priuation simpliciteacute mixtion substance quantiteacute qualiteacute action

passion Em lrsquohumain sang flegme cholere melancholie chair os nerfs veines arteres () En

lrsquoeconomique Mari femme enfans seigneur serf maistre amp feruiteur Au politique iustice fortitude

prudence temperance religion militie iudicature finance conseil magistrats amp priuez () Lrsquoart

imitant nature em la peinture du noir blanc iaune rouge ()rdquoViciss 15-6 589 ldquoAinsi sont auiordrsquohuy opposez les Escossois aux Anglois les Anglois aux Franccedilois les Franccedilois

aux Italiens () Et au Bresil les Sauluages iusques agrave srsquoentremanger quando sont prins em guerrerdquo

Viciss I 6

189

problema das vicissitudes negativas de seu seacuteculo ldquoPor muito tempo natildeo se viu tanta

maliacutecia no mundo tanta impiedade e felonia ()rdquo a ldquodevoccedilatildeo foi extinta simplicidade

e inocecircncia satildeo zombadas e soacute nos resta sombras da justiccedilardquo 590 Como artifiacutecio para

entender o que toma como modificaccedilotildees radicais na ordem do universo Le Roy vai

buscar em Platatildeo a velha teoria do Grande Ano esse momento em que ldquoos sete

planetas e as outras estrelas fixas retornam a seus postos primitivos representando a

mesma natureza que eles possuiacuteam no comeccedilo dos temposrdquo 591

Como do outro lado do Reno fez Martinho Lutero Louis Le Roy parecia se

perguntar se o fim estava proacuteximo Mas sua impune erudiccedilatildeo ao contraacuterio do que

aconteceu com o austero reformador permitia-lhe uma interface entre a escatologia

cristatilde e os mitos platocircnicos Quando a revoluccedilatildeo do Grande Ano chegar ao fim de um

ciclo dizia o autor das Vicissitudes ldquoapareceratildeo diversos signos na terra e no ceacuteurdquo E

natildeo ldquoparecia a muitos que uma grande mutaccedilatildeordquo estava para ocorrer considerando os

sinais que teimavam em aparecer ldquonos ceacuteus nos astros nos elementos e em toda a

naturezardquo Nunca foram vistos tantos eclipses Nunca foram observados tantos

cometas Nunca se teve tantas notiacutecias de inundaccedilotildees fluviais e mariacutetimas terremotos

violentos e nascimentos de criaturas monstruosas Tambeacutem natildeo havia registros ldquona

memoacuteria humana de tantas mutaccedilotildees frequentes sobrevindas nos paiacuteses nas pessoas

nos costumes (moeurs) nas leis na poliacutetica e na religiatildeordquo

Ao fazer o percurso ptolomaico que pretendia unir em reflexatildeo a ordem do

tempo agrave ordem da natureza Le Roy natildeo se furtava a traccedilar relaccedilotildees diretas entre a

filosofia moral e a filosofia natural o sol e a lua segundo ele natildeo estavam mais na

mesma posiccedilatildeo que ocupavam na eacutepoca do saacutebio de Alexandria Leitor de Hiparco e

conhecedor da precessatildeo dos equinoacutecios ele natildeo parecia outrossim disposto a

abandonar a astrologia horoscoacutepica como a seguir fariam Scaliger e Kepler Pelo

contraacuterio as mudanccedilas na disposiccedilatildeo dos signos eram vistas como um alerta a

respeito de grandes transformaccedilotildees mundanas Chegamos a perceber uma curiosa

leitura das teorias heliocecircntricas que comeccedilavam a animar os espiacuteritos de sua eacutepoca

590 ldquoCari l nrsquoy eut pieccedila plus de malice au monde plus drsquoimpieteacute amp de defloyauteacute Deuotion est

esteinte simpliciteacute amp innocence mocquees ne reste que lrsquoombre de Iusticerdquo Viciss X 102 591 ldquoLe grand an quand les sept planetes amp autres estoilles fixes retornent agrave leurs premiers sieges

representes la mesme nature qui estoit au coacutemencement estans les vies de toute choses amp temps prefix

de leur duree terminez par nombres moindres ou plus grands selon la disposition de la matiere dont

elles sont faittes () sentant chacune sa corruption cause dautre generation Tellement quil semble agrave

Platon que lvniuers se nourisse par sa consomptions amp vieillesse surrogeant touiurs nouuelles

creatures aux vielles amp mettant au lieu des peries autress semblables sans que les especes en defaillent

qui demourent par ce moyen comme immortellesrdquo Viciss I 2

190

ldquoa terra retornourdquo diziam alguns ldquoa sua situaccedilatildeo primeira natildeo estando inteiramente

como ela estaria depois no centro do universordquo 592

Pela tradiccedilatildeo aristoteacutelica como vimos a natureza era sempre uma causa de

ordem Posta em franco movimento ciclos naturais acelerados o que sobraria para

os homens uma vez que neles a ldquovicissitude eacute maior do que em qualquer outra coisardquo

estando seus corpos mortais submetidos a uma constante variaccedilatildeo nos ldquocostumes nas

opiniotildees nos apetites nos prazeres nas doresrdquo mas igualmente nos ldquomedos e nas

esperanccedilasrdquo593 Com a imprensa e os sistemas de comunicaccedilatildeo dinamizando a forma

de transmissatildeo de saberes e informaccedilotildees registros de atividades celestes e cataacutestrofes

naturais tornavam-se disponiacuteveis em maior quantidade e rapidez Se natildeo era ainda o

momento da consciecircncia da aceleraccedilatildeo do tempo jaacute presente nos homens do seacuteculo

XVIII e XIX teriacuteamos a percepccedilatildeo de um desregramento da ordem da natureza

Quase ao final de sua obra no penuacuteltimo paraacutegrafo do livro onze Louis Le Roy

arrisca um prognoacutestico De maneira anaacuteloga ao encerramento da Repuacuteblica de Ciacutecero

o humanista cria uma seacuterie de imagens apocaliacutepticas calculadas como comentou

Gundersheimer para ldquocausar arrepios na espinha dos leitoresrdquo594

Eu prevejo guerras por toda a parte brotando no interior

e no estrangeiro facccedilotildees e heresias levantando-se para

profanar todo o humano e o divino que possam

encontrar fomes e pestes ameaccedilando os mortais a

ordem da natureza a regra dos movimentos celestes e a

harmonia dos elementos rompendo-se enquanto por um

lado enchentes ocorrem e por outro temos calor

excessivo e terremotos violentos Prevejo tambeacutem o 592 ldquoMais que toutes viennent agrave finir leurs cours dedans la reuolutions du grand an Et que quand lvne

vient agrave finir lautre est preste agrave commencer il se face plusieurs signes estranges en la terre amp au ciel

Parquoy il semble a plusieurs quelque mutation grande approcher considerans les signes apparus puis

quelque temps au ciel eacutes astres eacutes elements amp en toute nature Oncques le Soleil amp la Lune

neclipserent plus apparemment Oncques ne furent veues tant de Cometes amp autres impressios en lair

Oncques la mer amp les riuieres ne desborderent si violemment Oncques ne furent ouys tels tremblement

de terre Oncques ne nasquirent tant de monstres amp si hideux () Aussi na lon veu de memoire

humaine tant de mutations amp si frequentes aduenueumls eacutes paiumls gens meurs loix polices religions Le

cours du Soleil nest plus tel quil estoit anciennement ny les poincts mesmes des Solstices amp

Equinocces ains depuis quatorze cens ans que vesquit Ptolomee trasdiligent obseruateur des affaires de

lvnivers il est plus prochain quil nestoit lors de la terre enuiron douze degrez () Dauantage lon dict

que toutes les parties du Zodiaque amp les signes entiers ont change leurs lieux amp que la terre est remuee

de sa premiere situation nestant entierement comme elle estoit parauant le centre de lunivers ()

Aucuns aussy (comme Hipparque Astrologie fort estimeacute entre les Grecs) ont mis en auant que les

mouuements celestes nont quelquefois agrave lopposite amp que les cours des astres changeront deuenant

lOrient Occident amp le Midy Septentrion Cependant la continuation de la vicissitude que voions cy bas

consiste en la cause mouuante amp en la matiere premiererdquo Viciss I 4 593 ldquoOr est la varieteacute amp vicisstude plusgrande en lhomme quen nulle autre chose () que par lame

changeant de meurs coustumes opinions appetis plaisirs douleurs craintes esperancesrdquo Idem I 10 594 GUNDERSHEIMER op cit p 116

191

universo se aproximando do fim por uma ou outra forma

de desregramento trazendo consigo a confusatildeo de todas

as coisas e levando-as de volta ao seu estado anterior de

caos 595

Natildeo estava na pauta da Vicissitude se transformar em um tratado escatoloacutegico

No paraacutegrafo seguinte seu autor lembra que a despeito de tudo que os fiacutesicos da

eacutepoca diziam quanto agraves causas e leis fatais do mundo ldquotodos os eventos dependem

principalmente da providecircncia divina que estaacute acima de toda a naturezardquo e que

apenas ela sozinha sabe o tempo em que tudo isso pode ocorrer ldquoAs pessoas de boa

vontade natildeo deveriam se assustarrdquo conclui ldquomas tomar coragem trabalhando com

cuidado nas vocaccedilotildees a que foram chamadasrdquo 596 Na verdade Louis Le Roy fora

tudo menos um pessimista O suposto Toynbee ou Spengler de seu tempo ndash como

qualificou uma notoacuteria estudiosa do hermetismo renascentista ndash tambeacutem faria no

deacutecimo livro de sua obra maacutexima um balanccedilo fortemente favoraacutevel ao seacuteculo em que

viveu comparando-o com outras eras ilustres597 O voraz leitor dos antigos e haacutebil

feitor de paralelos era em igual medida um defensor dos modernos Uma das

primeiras a falar em progressos a erudiccedilatildeo de Le Roy ldquoencontra sua justificaccedilatildeo

uacuteltima na proacutepria asserccedilatildeo de que amanhatilde ela pode ser superadardquo 598 O progresso

sobre o qual escrevia ndash o movimento que tendia a exonerar a agecircncia humana ndash

dependia ainda dos ciclos de uma natureza que natildeo havia ldquoexaurido sua forccedilardquo e a

qual permitia aos homens ldquodar agrave luz a inovaccedilotildees genuiacutenasrdquo599 Eacute claro que isso natildeo o

595 ldquoIe preuoy guerres de toute pars sourdre intestines amp foraines factioacutes amp heresies srsquoefmouuoir qui

prophaneront tout ce que trouueron de diun amp humain famines amp pestes menasser les mortels lrsquoordre

de nature reiglement des mouuemeacutes celestes amp conuenance des elements se rompant drsquovn costeacute

aduenir deluges de lrsquoautre ardeurs excessius amp tremblemens tref-violents Et lrsquovunivers approchat de

la fin par lrsquovn ou lrsquoautre desreiglement emportant auec foy la confusion de toutes choses amp les

reduisant agrave leur ancient chaosrdquo Viciss XI 114 Grifos meus 596 ldquoParainsi combien que ces choses procedente agrave lrsquoaduis des Phisiciens selon la loy fatale du monde

amp ayent leurs causes naturelles Toutefois les euenemens drsquoicelles dependente principalement de la

prouidence diuine qui est par dessus toute nature amp sccedilait seulle les temps prefix eacutesquels douient

eschoir Parquoy ne srsquoem doiuent esbahir les gens de bonne volonteacute ains plustot prendre courage

trauaillant soigneusement chacun em la vaccation ougrave il est appelleacute ()rdquo Viciss XI 114 597 O paralelo com Toynbee e Spencer foi feito na deacutecada de 60 em uma resenha da obra de

Gundersheimer por YATES Frances A The Life and Works of Louis Le Roy By Werner L

Gundersheimer Librairie Droz Geneva New York Review of Books August 24 1967 598 GUNDERSHEIMER op cit p 121 Franccedilois Hartog viu na Vicissitude um ponto de vista que reflete

mudanccedilas na relaccedilatildeo com o tempo o qual deixaria de ser visto como fundamental ou uniformemente

decadente ldquoHaacute progressosrdquo escreveu Hartog ldquoou mais exatamente haacute progressordquo no tempo

Progressos que formam uma espeacutecie de senoacuteide que natildeo eacute ldquonem naturalmente contiacutenua nem

indefinida nem uniformerdquo embora o graacutefico da decadecircncia tambeacutem natildeo o fosse HARTOG Anciens

Modernes Sauvages 2005 p 36-37 599 Anthony Grafton por sua vez disse que Louis le Roy ldquoargumentou tatildeo cedo quanto em 1542 que a

natureza natildeo havia exaurido sua forccedila e que o homem poderia ainda produzir inovaccedilotildees genuinasrdquo

GRAFTON What was history 2007 cap 3 sp proacuteximo a nota 75

192

impediu ndash ainda que sobre uma tela bem diversa ndash de pintar as partes finais de sua

cosmologia nas mesmas cores do chamado moral com que Cicero encerrou o Sonho

de Cipiatildeo

Ainda no seacuteculo XVI as primeiras escolas foram criadas no Brasil tendo

membros da Companhia de Jesus entre seus primeiros professores Quinze dias depois

de aportarem ao lado de Tomeacute de Souza em 1549 membros da ordem fundaram a

ldquoEscola de ler e Escreverrdquo Em 1556 criaram o coleacutegio de Todos os Santos para um

ano depois construiacuterem outro no Rio de Janeiro e em 1558 mais um em Olinda 600

Nos seus cursos de artes os padres ensinavam matemaacutetica fiacutesica loacutegica eacutetica e

metafiacutesica e entre 1575 e 1578 enquanto Le Roy escrevia seu tratado sobre a

Vicissitude o Coleacutegio da Bahia comeccedila a conferir os primeiros graus de Bacharel e de

Mestre em Artes601 Apesar dos saberes celestes natildeo figurarem em seus curriacuteculos

alguns professores eram versados nessas artes e permaneceram cultivando-as em

terras tropicais 602

Parece ter sido o caso deacutecadas mais tarde de Paulo da Costa professor de

Padre Antocircnio Vieira (1608-1697)603 Vieira estudou filosofia natural no Coleacutegio da

Bahia entre os anos de 1628 e 1631 e segundo suas proacuteprias palavras foi um aluno

bastante aplicado tendo preparado de punho uma suacutemula filosoacutefica604 Aleacutem de

Imperador da liacutengua portuguesa no ceacutelebre dizer de Fernando Pessoa o padre fora

tambeacutem tradutor e diplomata da voz divina Mas ela natildeo vinha lhe fazer menccedilatildeo de

uma sarccedila ardente Em 1695 um cometa foi avistado na Cidade do Salvador Vieira

no incanccedilaacutevel papel de pregador apressa-se para redigir um longo juiacutezo sobre o

fenocircmeno que atento a leitura dos antigos e dos pais da Igreja considerava como um

portento maleacutefico Natildeo queria no entanto reivindicar o estatuto de uma anaacutelise

astronocircmica desinteressado que estava em definir a natureza material do cometa

medir-lhe as distacircncias tomar-lhe os tamanhos e precisar seus formatos Fez tambeacutem

600 LEITE Serafim As Primeiras Escolas do Brasil In Paacuteginas de Histoacuteria do Brasil col ldquoBrasilianardquo

vol 95 Companhia Editora Nacional 1937 p 39 601 ____________ Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil Tomo I Rio de Janeiro Livraria

Civilizaccedilatildeo Brasileira 1938 p 75 602 MORAES Abrahatildeo A Astronomia no Brasil Usp 1984 p 17 603 Sobre Padre Antocircnio Vieira em particular (pp 140-141) assim como a respeito da teoria da

influecircncia celeste portuguesa em geral sigo CAROLINO Luiacutes Miguel Ciecircncia Astrologia e

Sociedade a Teoria da Influecircncia Celeste em Portugal (1593-1755) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian

Porto 2003 604 LEITE Serafim Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil Tomo VII op cit p 222

RODRIGUES Francisco Histoacuteria da Companhia de Jesus na Assitecircncia de Portugal Porto

Apostolado da Imprensa 1931-1950 Tomo III vol I p 134-135

193

uma ressalva aos juiacutezos astroloacutegicos criticando na esteira das sucessivas

condenaccedilotildees papais o caminho judiciaacuterio essa inuacutetil e vatilde parte da nobre arte que

ldquocostuma entreter os discursos e enganar as esperanccedilasrdquo grave crime contra a

providecircncia e mais importante um claro ldquodesprezo pelos seus avisos taotilde manifestosrdquo

605 Sim um aviso Deus a ecoar Agostinho ldquoauthor amp governador do Universordquo

envia-nos sobre as asas de um anjo essa ldquoportentosa figurardquo Motivo pelo qual ldquoao

juizo do cometa interpretadordquo Vieira daria o ldquoSegundo nome de voz de Deosrdquo 606

Muitos em seu tempo jaacute lhe pareciam increacutedulos Entre alguns se notava a

ousadia de observar os cometas meramente atraveacutes de ldquocausas naturaesrdquo sem neles

reconhecer ldquooutro mysterio ou documento mais altordquo607 De fato alguns anos antes

entre marccedilo de 1680 e fevereiro de 1881 a passagem de um cometa inspirou um

combatido represente da Repuacuteblica das Letras a redigir alguns Penseacutees Diverses Em

1682 Pierre Bayle utilizando registros telescoacutepicos como oportunidades editoriais

promovia em paacuteginas impressas a querela dos ceacuteticos contra os superticiosos

Criticava os astroacutelogos chamava agrave palavra os catoacutelicos associando-os ao paganismo

em seus diaacutelogos e de laacute agrave ignoracircncia ancestral608

605ldquoNatildeo se chama este juizo Astronomico porque natildeo he nosso intento examinar ou diffinir a natureza

a materia o nascimento o lugar as distancias os aspectos os movimentos nem algumas das outras

circunstacircncias em que curiosamente se empregravegaotilde as observaccedilotildees da Astronomia (hellip) Tambem se natildeo

chama Astrologico este juizo porque reputando nograves com os mais Sabios amp prudentes professores da

mesma Arte quam inutil instructosa amp vatilde seja aquella parte da Astrologia que com o nome de

Judiciaria costuma entreter os discursos amp enganar as esperanccedilas ou fantasias dos homens naotilde soacute

seria crime cotildentra a Providencia Altissima mas desprezo pelos seus avisos taotilde manifestos (hellip)rdquo

VIEIRA Antonio Voz de Deos ao mundo a Portugal amp aacute Bahia Juizo do cometa que nella foi visto

em 27 de Outubro de 1695 amp continua ateacute hoje 9 do Novembro do mesmo anno In Sermoens e Varios

Discursos () da Companhia de Jesu Pregravegador de Sua Magestade Tomo XIV Obra posthuma

dedicada a purissima Conceyccedilam da Virgem Maria Nossa Senhora Lisboa Valentim da Costa

Deslandes 1710 p 225-226 doravante citada como Voz de Deos 606 Voz de Deos 226 607 A tradiccedilatildeo representada pelos tratados de cometologia da primeira modernidade apresentava os

registros de avistamentos de cometas como documentos ou evidecircncias relacionadas a eventos

sublunares unindo como tambeacutem faratildeo outras formas de de cronologia os meacutetodos da filologia agraves

observaccedilotildees astronocircmicas Com frequecircncia os avistamentos eram organizadas em uma sequecircncia de

datas e associados a algum desastre ou fato traacutegico morte de reis pestes fomes guerras etc As

dificuldades poliacuteticas do seacuteculo XVI asseguravam que a apariccedilatildeo de um cometa pudesse logo ser

associada a algum fato negativo Por sua vez a concepccedilatildeo aristoteacutelica de que os cometas seriam

exalaccedilotildees terrestres na atmosfera facilitava seu uso meacutedico climaacutetico e poliacutetico Como escreveu Adam

Mosley ldquoos cataacutelogos de cometas dos seacuteculos XVI e XVII testemunham ateacute que ponto a historia como

uma forma de investigaccedilatildeo atravessava a fronteira moderna entre os reinos natural e socialrdquo

MOSLEY 2013 p 18 608 BAYLE Pierre Penseacutees Diverses agrave lrsquooccasion drsquoun comegravete In Oeuvres Diverses Tome III parte

I La Haye Compagnie des libraires 1737 John Robertson chegou a ver nesse texto de Bayle a origem

das discussotildees que levariam ao desenvolvimento do iluminismo em Naacutepoles e na Escoacutecia a partir da

asserccedilatildeo de que uma sociedade construiacuteda por ateus era natildeo apenas concebiacutevel como tambeacutem possiacutevel

ROBERTSON John The Case for the Enlightenment Scotland and Naples 1680ndash1740 Cambridge

Cambridge University Press 2005 principalmente p 130 apud POCOCK J G A Historiography and

194

ldquoNos dias que precederagraveotilde o Juizo finalrdquo e nesse tom dirige Vieira a palavra

aos ceacuteticos ldquohaveraacute alguns homens tatildeo increacutedulos que zombem dos sinaesrdquo Mas os

efeitos desses pressaacutegios castigaratildeo toda obstinaccedilatildeo ldquopor natildeo quererem dar credito aos

avisos do ceordquo 609 Na leitura que deveria fazer eco a via media os cometas satildeo

efeitos de uma causa secundaacuteria criados ex nihilo pela vontade da Primeira Causa

como vozes da Providecircncia Igual a muitos de seu tempo o jesuiacuteta estava convencido

de que esses fenocircmenos celestes eram cada vez mais frequentes ldquoporque em nenhua

historia sagrada ou profana se faz memoria ou menccedilatildeo de que fosse visto Cometardquo

excetuando-se o ldquoprimeiro anno da Olympiada setenta amp seterdquo quando os gregos

avistaram hoje sabemos o cometa Halley por volta de 466 AC610

Entatildeo por que os antigos natildeo registravam esses eventos Caso aceitemos

seguir a leitura como o faz o sacerdote de textos atribuiacutedos a Berossus deveriacuteamos

acreditar que os antigos conheciam bem a astrologia essa ciecircncia que receberam ldquoos

Chaldeos de Adamrdquo e o patriarca pessoalmente de Deus Seria negligecircncia ou

ldquodesatenccedilatildeo dos histoacutericosrdquo Falta de ouvidos agrave palavra divina Ora responderia

Vieira natildeo os anotavam porque ldquoem todas aquelas idades natildeo houve Cometasrdquo tendo

o Senhor reservado ldquoeste modo de linguagem para falar por ella ao mundo nos tempos

posteriores destinados a sua Providenciardquo Mas tatildeo logo cessaram os profetas apoacutes a

vinda do Cristo e a ldquomesma Chronologia dos temposrdquo vem confirmar toda conjectura

pontuada pela apariccedilatildeo das ceacutelebres estrelas novas611

As estrelas novas vieram ao mundo oferecer alertas e instigar conselhos

Mundo que poderia ser pensado como natural ldquoou como mundo poliacuteticordquo Enquanto

pressaacutegios da natureza os cometas anunciam pestes fomes secas enchentes

erupccedilotildees de fogo e tremores de terra Os avisos do segundo tipo que parecem lhe

interessar mais diziam respeito aos governos e a sua ruiacutena poliacutetica dividindo-se em

relaccedilatildeo a trecircs questotildees sublunares a guerra a mudanccedila de impeacuterios e a morte de

priacutencipes Atraveacutes da leitura dos historiadores antigos e da era cristatilde Padre Antonio

Enlightenment a view of their History In Modern Intellectual History 51 Cambridge University

Press 2008 p 84 609 Voz de Deos 226-227 610 () porque em nenhuma historia sagrada ou profana se faz memoria ou menccedilatildeo de que fosse visto

Cometa senatildeo no primeiro anno da Olympiada setenta amp sete que responde aos anos quatrocentos amp

oitenta antes do nascimento de Christo E daqui se poacutede formar hum novo amp naotilde vulgar argumento de

que se prova que os Cometas como dizia saotilde liacutengua ou voz de Deos o qual desde aquelle tempo

comeccedilou a falar amp avisar aos homens por meyo destes sinais do Ceo costumando de antes fallarlhes

por outros modos como diz S Paulo muytos amp diversos () Voz de Deos 227 611 Voz de Deos 228-229

195

Vieira relaciona ndash em um esboccedilo cronoloacutegico que lembra os esforccedilos conjuncionistas

de Pierre DrsquoAilly ndash a observaccedilatildeo dos cometas agrave eclosatildeo de conflitos Sua narrativa

comeccedila quatro seacuteculos antes da vinda do Salvador quando um corpo celeste

incandescente anunciaria a guerra de Xerxes contra a Greacutecia Mais tarde as batalhas

de Estilicatildeo entre os Getas tambeacutem seriam anunciadas por um fenocircmeno similar

assim como a luta de Carlos Martel frente aos sarracenos e de Lotaacuterio a seus

irmatildeos612

O segundo tipo de pressaacutegio relativo ao mundo poliacutetico dizia respeito agraves

mudanccedilas de impeacuterios ldquoNatildeo haacute cousa mais vulgar na opiniatildeo commuardquo acreditava o

padre ldquonem mais celebre nas Escriturasrdquo ndash mesmo que fosse essa uma posiccedilatildeo ousada

e francamente contraacuteria como vimos no iniacutecio deste capiacutetulo ao que pensava

Agostinho Alexandre vencendo Dario Otaacutevio derrotando Antocircnio a Peacutersia

conquistada pela Araacutebia sagraccedilatildeo de Carlos Magno levando o impeacuterio agrave Germacircnia

tambeacutem a tomada de Constantinopla pelos Latinos em 1204 todas as grandes

mudanccedilas poliacuteticas teriam sido acompanhadas com precisatildeo pelo avistamento de

cometas613 Vieira encontra espaccedilo para citar as tabelas conjuncionistas de Andrea

Argoli ceacutelebres entre os lusitanos com quem ldquotodos os Mathematicos antigos

concordaratildeordquo referindo-se ao encontro dos dois gigantes no ano de 1683 ldquoAssim

refere Argolo nas suas Efemeridesrdquo fez dizer o jesuiacuteta ldquotendo conjunccedilatildeo superior de

Saturno e Juacutepiter no triacircngulo de fogordquo grandes modificaccedilotildees em questotildees gerais e

nas propriedades ocorreriam facilmente614 Seguindo de muito perto as palavras de

Joatildeo Damasceno sacerdote siacuterio dado a divagaccedilotildees celestes Vieira lembra a uacuteltima

categoria de avisos que seriam trazidos na cauda das estrelas Chrysorrhoas o Boca

de Ouro ldquodistintamente affirma que os Cometas saotilde instituidos por Deos para

significar a morte dos Reysrdquo Unindo como bom jesuiacuteta o estudo dos doutores da

612 Voz de Deos 232-235 613 Voz de Deos 336 614 ldquoE se as Estrellas tem sobre ele algum poder ou significaccedilatildeo todos os Mathematicos antigos

concordaratildeo de Saturno amp Jupiter que soy no anno de oytenta amp trecircs deste seacuteculo haveraacute grande

mudanccedila de domiacutenios Assimo refere Argolo nas suas Efemerides sendo muyto para notar que natildeo faz

outra notaccedilatildeo em todas ellas as palavras com que o diz satildeo as seguintes fol 363 Cur celeretur

conjunctio superiorum Saturni amp Jovis in trigonoigneo antiquorum consensis mutationes magna

contingente amp generales constitutiones ac de facili dominiorum mutationesrdquo Voz de Deos 336 Para o

texto citado ver ARGOLO Andrea Avectore Exactissimae Caelestivm Motvvm Ephemerides Ad

Longitvdinem Almae Vrbis Et Tychonis Brahe Hypotheses AC Deductas Caelo Accurat

Observationes AB Anno 1641 Ad Annum 1700 () Praeter Stellarum Fixarum Catalogum Extat

Tabula Ort Encontrei citaccedilatildeo das efemeacuterides de Argolo tambeacutem em outro autor portuguecircs do seacuteculo

XVII TEIXEIRA Antonio Epitome das noticias Astrologicas para a Medicina Lisboa Officina de

Ioam da Costa 1670 p 340

196

Igreja com observaccedilotildees astronocircmicas eacute a vez de comemorar ldquoKeplero na sua

Philologiardquo Kepler havia comentado o medo que Carlos V sentiu ao avistar a estrela

nova de 1586 O imperador no entanto viveu mais alguns anos O que poderia fazer

o governante pio frente a uma sentenccedila de morte senatildeo arrepender-se e ajoelhar-se

diante de Deus Imitem a Carlos diria Vieira e que nenhum ldquose fie de sua idade nem

se engane com seu poderrdquo Assim poderatildeo sobreviver615

A Voz de Deus tambeacutem clamava seu chamado moral aos reinos ldquoA Primeyra

cousa que diz a Portugal () he que entenda () que este Cometa fala

particularmenterdquo com ela Lembre-se diz o pregador do astro que apareceu nos ceacuteus

em 1580 anunciando uma das maiores trageacutedias de sua histoacuteria ldquomorreo Dom

Henrique amp o Reynordquo fora ldquoherdado sem direyto comprado sem preccedilo amp

conquistado sem Guerrardquo Vieira inteacuterprete da voz de Deus natildeo evoca apenas a

memoacuteria do cativeiro eacutepoca de uniatildeo forccedilada sob o julgo habsburgo e de insatisfaccedilatildeo

da aristocracia lusitana Fala tambeacutem em pressaacutegios de esterilidade de secas de fome

e todo o tipo de ldquoestragos nos poubresrdquo 616 Palavras endereccediladas a Bahia eacute claro

igualmente chegavam na poeira das estrelas Por mais de dez dias avistado na costa

brasileira o portento de 1695 rogava segundo Antonio Vieira pela ldquoreformaccedilatildeo da

justiccedilardquo ldquomelhora dos costumes amp tal emenda nas vidasrdquo O terror causado pelos

avistamentos seria como nos diz um bom pressaacutegio exortando os fieacuteis a largarem os

ldquopecados escandalososrdquo Deus eterno e imutaacutevel ameaccedila os pecadores mas

ldquoentenderdquo conclui Vieira que Ele ldquosoacute te castigaragrave () se te natildeo emendaresrdquo 617

Educado no seio da Companhia de Jesus Padre Antonio Vieira tanto no juiacutezo

do cometa quanto em inuacutemeros sermotildees expressa uma formaccedilatildeo que teve por base os

Commentarii Collegi Conimbrencis apostilhas de filosofia natural aristoteacutelica

615 Voz de Deos 240 616 () herdado sem direyto comprador sem preccedilo amp conquistador sem Guerra por estes tres titulo (ou

por outros no Tribunal Divino mais justos) ficou cativo amp sugeyto ao Rey estranho naotilde por menos

espaccedilo que de sessenta anos inteyros (hellip) As novas q aqui chegaacuteratildeo ultimamente de Portugal saotilde de

esterilidade amp fome mas como a fome faz os seus effeytos amp estragos nos poubres amp nos pequenos

amp a Sybilla falla dos grandes poderosos amp illustres fique a explicaccedilatildeo amp applicaccedilatildeo deste oraculo a

Lisboa () Voz de Deos pp 241-251 617 ldquoEmfin Bahia que se veja em tit al reformaccedilatildeo de justice tal melhora de costumes amp tal emenda

nas vidas que assim como hoje te quadra o nome de Civitas vanitatis assim mereccedilas o de Civitas justi

() E porque a peccados escandalosos amp publicos se deve satisfaccedilatildeo tambem publica veja publicas

penitencias o Ceo em tuas ruas amp publicas deprecaccedilotildees Christo Senhor (hellip) confia em Deos cuja

condiccedilatildeo se natildeo muda que se te ameaccedila peccadora natildeo te castigaraacute penitente Entende que o que

pertende Deos com o terror deste Cometa natildeo he castigarte senatildeo emendarte amp soacute te castigaragrave se te

natildeo emendaresrdquo Voz de Deos pp 263-264

197

preparadas ao longo do seacuteculo XVII618 A comparaccedilatildeo entre Le Roy e o Imperador

natildeo se daacute apenas pelo proselitismo providencialista e moral que ambos os discursos

levam como marca Os dois autores supracitados expressam cada um a seu modo

uma apreensatildeo cosmoloacutegica frente a um desregramento dos ciclos naturais

entendidos ora como sinal do fim dos tempos ora como anuacutencio de desgraccedilas

seculares Ou como deveriacuteamos entender as preocupaccedilotildees do padre jesuiacuteta quando

inspirado por questotildees debatidas nos bancos escolares da ordem imagina tendo a

Corte como auditoacuterio um cosmos desprovido de movimento Valendo um Louis le

Roy agraves avessas contraacuterio e dissimilar natildeo eacute a percepccedilatildeo de uma aceleraccedilatildeo dos

ciclos naturais mas seu exato oposto que inflama a alma racional e a (natildeo) contagem

do tempo

Quando o Sol parou agraves vozes de Josueacute aconteceram no

mundo todas aquelas consequecircncias que parando o

movimento celeste consideram os filoacutesofos As plantas

por todo aquele tempo natildeo cresceram as qualidades dos

elementos e dos mistos natildeo se alteram a geraccedilatildeo e a

corrupccedilatildeo com que se conserva o mundo cessou as

artes e os exerciacutecios humanos de um e outro hemisfeacuterio

estiveram suspensos os antiacutepodas natildeo trabalhavam

porque lhes faltava a luz os de cima cansados de tatildeo

comprimido dia deixavam o trabalho estes pasmados de

verem o Sol que se natildeo movia aqueles tambeacutem

pasmados de esperarem pelo Sol que natildeo chegava

cuidavam que se acabara para eles a luz imaginavam

que se acabava o mundo tudo eram laacutegrimas tudo

assombros tudo horrores tudo confusotildees619

Como notou Luiacutes Miguel Carolino Vieira apropriava-se das teses presentes no

Cursus Philosophicus de Francisco Soares que por sua vez seguiam os Commentari

de Coimbra a respeito do De Caelo Caso o movimento circular dos astros deixasse de

618 Vieira considerou a autoridade dos Comentarii ldquoa mais autorizada e elegante que ateacute agora apareceu

no mundordquo Ver CAROLINO 2003 p 152 Para uma lista dos comentaacuterios ver p 19 Vieira

provavelmente leu o Cursus Philosophicus de Rodrigo de Arriaga publicado na Antueacuterpia em 1632

Sobre essa questatildeo ver LEITE Serafim Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil vol VII p 222 619 VIERA Antonio Sermatildeo do Esposo da Matildee de Deus S Joseacute In Sermotildees XV tomos Porto Lello

amp Irmatildeo 1959 Vol VI pp 389-390 Grifos meus O compromisso poliacutetico de Vieira neste sermatildeo era

legitimar o Duque de Braganccedila frente aos seus rivais ao trono portuguecircs D Joatildeo IV era neto por

linhagem matriarcal de Dona Catarina e Vieira argumentava que a Providecircncia possuiacutea em certos

momentos da histoacuteria predileccedilatildeo pela prole masculina O exemplo era buscado em Jesus que teria

herdado o reino de Davi atraveacutes de Maria e natildeo de Joseacute Sobre essa questatildeo ver BUESCU Ana Isabel

Sentimento e Esperanccedilas de Portugal In A Restauraccedilatildeo e sua eacutepoca Lisboa Cosmos 1993 e

tambeacutem CUNHA Mafalda Soares da A questatildeo juriacutedica na crise dinaacutestica In Histoacuteria de Portugal

No Alvorecer da Modernidade Lisboa Estampa 1997

198

se fazer notar nos ceacuteus os ciclos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seriam suspensos na terra e

com ele o comportamento natural dos corpos sublunares verteria suas regras na mais

pura desordem620 Sem efemeacuterides para marcar a mudanccedila natildeo poderia haver vida e

sem ela almas para contar o tempo Imagens escatoloacutegicas eram lugares comumente

evocados na retoacuterica do Padre Antonio Vieira Mas sua teologia natural da histoacuteria se

pudermos emprestar novamente a concepccedilatildeo de Pomian encontrou senatildeo uma paacutelida

imagem no projeto inacabado que visava reciclar as profecias de Bandarra de

Trancoso e que natildeo poderia existir sem se basear em uma tensatildeo621 Enquanto

profecia suas palavras certamente ultrapassavam o ldquohorizonte de experiecircncia

calculaacutevelrdquo destruindo o tempo ldquode cujo fim ela se alimentardquo 622 Como prognoacutestico

nutria-se da situaccedilatildeo poliacutetica do qual era uma instacircncia de accedilatildeo permitindo-se mirar

para antes do fim dos tempos uma pax lusitana a ordenar a cristandade Como em

Louis le Roy lia nos astros um uso do futuro ainda que em nome de um passado

uma advertecircncia escatoloacutegica pela manutenccedilatildeo dos bons costumes cristatildeos

incentivada agora pela imagem do impeacuterio glorioso

Talvez um dos uacuteltimos resquiacutecios daquilo que o autor de A Ordem do Tempo

viu em Pierre drsquoAilly como um ldquobeco sem saiacutedardquo alguns dos escritos que renderiam

argumentos aos inquisidores contra Vieira portavam consigo a crise das formas

aristoteacutelicas de representaccedilatildeo da natureza delimitando os limites da via media tomista

e com ela da proacutepria cosmologia medieval623 Se com o heliocentrismo e o retorno

aos textos claacutessicos de Ptolomeu a astrologia sofreu propostas de reforma com o

sucesso acadecircmico das teses de Sir Isaac Newton ao longo dos seacuteculos seguintes a

620 ldquo() natildeo hesitava em tomar para si a posiccedilatildeo de Francisco Soares segundo a qual se os astros

cessassem a sua operaccedilatildeo natildeo apenas por intermeacutedio do movimento mas ainda pela influecircncia cessaria

na verdade a reproduccedilatildeo dos seres vivosrdquo [Si Astra non solum cessarent a motu sed etiam ab influxo

cessarent quidem generationes viventium] SOARES Francisco Cursus Philosophicus Tomus

secundus continens universam doctrinam in Libros Aristotelis Physicorum de Coelo Meteoris et

Parvis Naturalibus Eacutevora ex typographia Academia 1668 (1651) Apud CAROLINO 2003 158 621 Sobre o uso das profecias de Bandarra na obra de Padre Antonio Vieira ver MANDUCO

Alessandro Histoacuteria e Quinto Impeacuterio em Antocircnio Vieira In Topoi v 6 n 11 Jul-dez 2005 p 252

Bandarra de Trancoso acusado pela inquisiccedilatildeo teria tomado seu messianismo poliacutetico dos judeus ver

ANTOcircNIO Seacutergio Interpretaccedilatildeo Natildeo Romacircntica do Sebastianismo In Obras Completas Ensaios

Tomo I Ed Claacutessicos Saacute da Costa 2ordf ediccedilatildeo Lisboa pp 239-271 apud NOVISNKY Anita Padre

Antocircnio Vieira a Inquisiccedilatildeo e os Judeus Novos Estudos Cebrap n o 29 Marccedilo de 1991 p 173 Para

quem ldquoa prisatildeo de Vieira pela Inquisiccedilatildeo estaacute ligada agrave sua mensagem poliacutetica agrave sua criacutetica social e aos

seus escritos a favor dos cristatildeos-novosrdquo 622 KOSELLECK Reinhart O Futuro Passado dos Tempos Modernos In Futuro Passado

Contribuiccedilatildeo agrave semacircntica dos tempos histoacutericos Rio de Janeiro Contraponto 2006 p 33 623 Sobre o modelo de Pierre drsquoAilly como um ldquobeco sem saiacutedardquo ver POMIAN Krzysztof Astrology

as a Naturalistic Theology of History 1986 p 43

199

teoria da influecircncia celeste receberia enfim a sua paacute de cal624 A percepccedilatildeo de uma

desordem da natureza deslocou consigo a necessidade de reformular suas formas de

representaccedilatildeo Ela insuflou expectativas olhares aos ceacuteus e ao horizonte

acompanhando a libertaccedilatildeo de toda uma seacuterie de modalidades da experiecircncia do

tempo Em uma de suas obras da mesma fase do Clavis Prophetarum Padre Antonio

Vieira jaacute expressava essa inquietaccedilatildeo

O tempo como o Mundo tem dois hemisfeacuterios um

superior e visiacutevel que eacute o passado outro inferior e

invisiacutevel que eacute o futuro no meio de um e outro

hemisfeacuterio ficariam os horizontes do tempo que satildeo

estes instantes do presente que iamos vivendo onde o

passado se termina e o futuro comeccedila desde este ponto

tendo seu principio a nossa histoacuteria625

Fascinado pelo sol como metaacutefora de Cristo a escrita de Vieira rumou ao

horizonte e esperanccedilosa em se iluminar pelos raios dourados da verdade e da vida

fez o saacutebio observar descendo agraves celas da inquisiccedilatildeo a sua inacapada Histoacuteria do

Futuro ter o mesmo triste fim das asas de Iacutecaro626 O bem aventurado infante faleceu

antes que pudesse contar jubileus e com ele saudou-se em adeus o sonho do Quinto

Impeacuterio A tensatildeo que as interpretaccedilotildees escatoloacutegicas do tempo refletiam ndash abrindo o

horizonte a um porvir mesmo que em nome da restauraccedilatildeo de uma moral passada ndash jaacute

foi observada enquanto parte do processo de ldquodescobertardquo da dimensatildeo histoacuterica

Segundo essa leitura o ldquoencurtamento do tempordquo teve como surpreendente efeito a

aceleraccedilatildeo da proacutepria histoacuteria627

624 Tal eacute a tese claacutessica de THORNDIKE Lynn The true place of astrology in the History of Science

op cit 1955 Thorndike argumenta que um dos efeitos da revoluccedilatildeo cientiacutefica foi a substituiccedilatildeo da

influecircncia celeste como lei geral da natureza pela teoria da gravitaccedilatildeo universal O debate acadecircmico

a respeito da superaccedilatildeo da filosofia natural peripateacutetica eacute no entanto bem mais vasto e sua anaacutelise

foge as minhas pretensotildees Edward Grant dedicou-se a estudar as reaccedilotildees tradicionalistas aos modelos

heliocecircntricos e mecacircnicos Para o estudioso o sistema aristoteacutelico ldquocontinuou a ganhar adesatildeo da

esmagadora maioria das classes educadas do seacuteculo XVII o seu uacuteltimo como um sistema creditaacutevelrdquo

GRANT Edward In Defense Of The Earths Centrality and Immobility Scholastic Reaction To

Copernicanism In The Seventeenth Century American Philosophical Society 1984 p 3 625 VIERA Antonio Histoacuteria do Futuro Livro Ante-Primeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees e Publicaccedilotildees

Brasil 1937 p 37 A seguir Vieira explica o tiacutetulo de sua obra ldquoE porque havemos de distinguir

tempos e annos signalar proviacutencias e cidades nomear naccedilotildees e ainda pessoas quanto o sofrer a

mateacuteria por isso sem ambiccedilatildeo nem injuria de ambos os nomes chamaremos a esta narrativa histoacuterica

histoacuteria do futurordquo Idem p 40 626 Para um alonga lista das imagens que associam o sol a Cristo no sermonaacuterio de Viera ver

CAROLINO 2003 p 154 nota 67 627 () if one observes the topos of the eschatological foreshortening of time in terms of its historical

interpretations one arrives at the astonishing finding that from the initially suprahistorical

foreshortening of time came a gradual acceleration of history itselfrdquo KOSELLECK Reinhardt Some

200

De todas as profecias astroloacutegicas arriscadas ao longo do renascimento e da

primeira modernidade talvez a mais impressionante natildeo seja mesmo a referente ao

fatiacutedico projeto de um Quinto Impeacuterio tema final das previsotildees de Vieira e topos

recorrente nos pregadores da restauraccedilatildeo628 Pierre drsquoAilly em seu tratado sobre a

concordacircncia da verdade astronocircmica e da narraccedilatildeo histoacuterica jaacute havia lanccedilado

palavras muito mais certeiras Ao prognosticar os movimentos combinados entre

Saturno e Jupiter motor de toda a sua teologia natural da histoacuteria o cardeal anotou o

que seria uma derradeira conjunccedilatildeo entre os dois gigantes ldquoDito isto se o mundo

durar ateacute aquele ano o que soacute Deus sabe aconteceraacute grandes enormes e

surpreendentes mudanccedilas () principalmente na lei e na religiatildeordquo 629 O ano para a

previsatildeo 1789

No percurso iluminista a confusatildeo entre efeitos e causas que as profecias

movimentam nos espiacuteritos seria bem delineada ao longo do combate aos ldquoprogressos

das supersticcedilotildeesrdquo Em busca de uma ldquovocaccedilatildeo legiacutetimardquo Pierre Bayle ergueu a

bandeira da ldquoRepuacuteblica das Letrasrdquo levantando com ela a voz da razatildeo contra todo o

tipo de ldquovisotildeesrdquo e ldquocredulidades popularesrdquo Para o filoacutesofo cujo Dicionaacuterio Histoacuterico

e Criacutetico inspirou a Enciclopeacutedia natildeo haveria profissatildeo melhor capacitada do que a

sua a assumir a tarefa de se tenir a la bregraveche contra as ldquoirrupccedilotildees e desordensrdquo

causadas pela credulidade imoral da idolatria dos supersticiosos630 Poderia-se dizer

que esse eacute um processo que culmina natildeo em Voltaire sequer na Revoluccedilatildeo mas nas

suas memoacuterias Mais tarde a data de 1789 seria lembrada por palavras devedoras da

proacutepria ilustraccedilatildeo natildeo como a chegada do anticristo ou o retorno do messias mas

como mais um dos finais possiacuteveis do tempo biacuteblico e dos ldquosistemas antigosrdquo fosse

para o ecircxtase de uns fosse para o lamento de outros As festas revolucionaacuterias que lhe

seguiram de perto junto a todo seu corroborie vulgaire inversotildees e rituais

Questions Regarding the Conceptual History of ldquoCrisesrdquo In KOSELLECK The practice of

conceptual history timing history spacing concepts Stanford University Press 2002 p 245 628 Sobre essa questatildeo ver MARQUES Joatildeo Francisco A utopia do Quinto Impeacuterio em Vieira e nos

pregadores da Restauraccedilatildeo E topia Revista Electroacutenica de Estudos sobre a Utopia nordm 2 2004 629 DrsquoAILLY Pierre De concordantia astronomie cum hystorica narratione cap 1 e 2 Teoria das

conjunccedilotildees de Saturno e Juacutepiter apud BURON Edmond Essai critique t I p 6i 64-70 96-108 t II

In DrsquoAilly Pierre Imago Mundi op cit 1930 Na passagem traduzida por Buron ldquoLa huitiegraveme aura

lieu en 1789 dit-il lsquoCeci dit si le monde dure encore jusquagrave cette anneacutee-lagrave ce que Dieu seul sait il y

aura de grands nombreux et eacutetonnants changementsdans le monde principalement dans la loi et la

religionrsquordquo 630 Je preacutetends avoir une vocation leacutegitime pour mopposer aux progregraves des superstitions des visions et

de la creacuteduliteacute populaire Agrave qui appartient-il mieux quaux personnes de ma profession de se tenir agrave la

bregraveche contre les irruptions de ces deacutesordres () BAYLE Pierre La Cabale Chimeacuterique ou

Refutation de lrsquoHistoire Fabulouse In Oeuvres Diverses La Haye Par la Compagnie des Libraries

1737 Tomo II Lettre XIII p 681

201

comemorativos logo passariam a ser ordenadas por uma vontade poliacutetica cujos

desiacutegnios natildeo ignoravam a ldquotransferecircncia de sacralidaderdquo 631

ldquoPor volta de 1800rdquo como escreveu Reinhardt Koselleck o proacuteprio

ldquoprogresso se transformou em um genuiacuteno conceito histoacutericordquo vertendo ou

esquecendo o ldquopano de fundo naturalrdquo de algo que ldquopercorre um espaccedilordquo As

efemeacuterides tambeacutem deixariam por volta do mesmo periacuteodo revolucionaacuterio de

pontuar tatildeo somente o movimento das estrelas ao longo dos ceacuteus marcando

igualmente o passo dos homens no percurso de suas vidas sublunares Nessa histoacuteria

particular a ordem do tempo parecia superar a ordem da natureza natildeo tivesse com

isso guardado um detalhe que soava desagradaacutevel aos apoacutestolos do progressismo os

conceitos de ldquodecliacuteniordquo e ldquodecadecircnciardquo mostravam-se mais e mais incapazes ldquode

verter seus significados de fundo natural e bioloacutegico da mesma maneirardquo632 As

imagens da decadecircncia continuariam seguindo uma loacutegica agora humanizada da

geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo a assombrar os homens pelo chamado dos magistrados

morais Chamado que jaacute no seacuteculo XIX teraacute hora marcada com o sublime juacutebilo

organizado no ciclo dos centenaacuterios

631 Ver OZOUF Mona 1976 principalmente cap X un transfert de sacraliteacute pp 317-340 632 ldquoProgress became a modern concept when it shed or forgot its natural background meaning of

stepping through space The figurative reference faded Since around 1800 progress has turned into a

genuinely historical concept while ldquodeclinerdquo and ldquodecayrdquo have not been able to shed their natural and

biological background meaning in the same wayrdquo KOSELLECK Reinhardt Progress and Decline In

The practice of conceptual history op cit 2002 p 221

202

4

Ordem do Tempo

O retorno das efemeacuterides agrave histoacuteria

ldquoTalvez nunca tenha existido um espiacuterito mais saacutebio mais metoacutedico um

loacutegico mais exato do que o Sr Lockerdquo633 Entre 1726 e 1728 Voltaire exilou-se na

Inglaterra Dentre os muitos aspectos da vida e da filosofia insular que seriam

incorporados em suas reflexotildees o problema da inexistecircncia das ideias inatas e do

conhecimento relacionado agrave experiecircncia merecia destaque em seu elogio epistolar ao

autor do Ensaio Acerca do Entendimento Humano E esse era um problema que fazia

referecircncia direta agraves aporias sobre a natureza da alma Desde a antiguidade ou como a

lia o iluminista francecircs os filoacutesofos tentavam entender sem sucesso essa questatildeo O

divino Anaxaacutegoras crente que o Sol era maior do que o Peloponeso a neve negra e os

ceacuteus feitos de pedra afirmava que a alma possuiacutea um espiacuterito aeacutereo e imortal

Diogenes o ciacutenico pensava nela como porccedilatildeo da substacircncia divina Aristoacuteteles a

quem Voltaire natildeo mostrava satisfaccedilatildeo em render longos comentaacuterios jaacute havia sido

explicado ldquode mil maneiras porque era ininteligiacutevelrdquo embora parecesse defender que

o ldquoentendimento de todos os homens fosse uma mesma e soacute substacircnciardquo enquanto

que seus mestres Platatildeo e Soacutecrates tinham sem cessar apregoado o caraacuteter corporal e

eterno das almas634

633 ldquoJamais il ne fut peut-ecirctre un esprit plus sage plus methodique un Logicien plus exact que Mr

Locke ()rdquo VOLTAIRE Treisiegraveme Lettre sur Mr Locke In Lettres eacutecrites de Londres sur les

Anglois et autres sujets Bowyer Londres 1734 pp 91-104 A citaccedilatildeo supracitada figura logo no

iniacutecio da carta 634 ldquoDans la Grece berceau des arts amp des erreurs amp ougrave on pussa si loin la grandeur amp la sotise de

l`esprit humain on raisonnoit comme chez nous sur lrsquoAme () Le divin Anaxagoras agrave qui on dressa

un autel pour avoir apris aux hommes que le Soleil eacutetoit plus grand que le Peloponnese que la neige

eacutetoit noire amp que les Cieux eacutetoient de pierre affirma que lrsquoAme eacutetoit un Esprit aeumlrien mais cependeant

immortel Diogene un autre que celui devint Cinique apregraves avoir eacuteteacute faux monnoyeur assuroit que

lrsquoame eacutetoit une portion de la substance mecircme de Dieu amp cette ideacutee au moins eacutetoit brillante Epicure la

composiot de parties comme le corps () Aristote qursquoon a expliqueacute de mille faccedilons parce qursquoil eacutetoit

inintelligible croyot si lrsquoon srsquoen rapporte agrave quelques uns de ses disciples que lrsquoentendement de tous

les hommes eacutetoit une seule amp mecircme substance () Le divin Platon maicirctre du divin Aristote amp le

divin Socrate maicirctre du divin Platon disoient lrsquoame corporelle amp eternelle Le Demon de Socrate lui

avoit apris sans doute ce qui en eacutetoitrdquo Ibidem pp 92-93 A base das posiccedilotildees platocircnicas eacute encontrada

na doutrina da anamnese a qual defende que todo o aprendizado eacute uma recoleccedilatildeo e que tudo o que

203

Os padres da Igreja repetiriam as trilhas da antiguidade Satildeo Bernardo lido

nas palavras de Mabillon ldquoensina a respeito da alma que apoacutes a morte ela natildeo

enxerga Deus nos ceacuteus mas tatildeo somente conversa com a natureza humana de Jesus

Cristordquo Descartes tambeacutem seguiria esse caminho ainda que tenha substituiacutedo os erros

dos antigos pelos seus proacuteprios ao passo que Malebranche ndash o ldquofiloacutesofo ocasionalrdquo

que escrevia comentaacuterios mais obscuros do que os textos neles comentados ndash delirava

entre ilusotildees de grandeza retoacuterica que admitiam as ideias inatas e faziam ver o proacuteprio

Deus na alma dos homens635 Uma multidatildeo de pensadores assim contribuiram para o

ldquoRomance da Almardquo ateacute que um uacutenico saacutebio e modesto resolveu lhe escrever a

histoacuteria Locke desmontou o inatismo das ideias percorrendo ldquopasso a passo os

progressos de seu entendimentordquo consultando ldquoseu proacuteprio testemunhordquo ou a

ldquoconsciecircncia de seu pensamentordquo636 Consultar o proacuteprio testemunho Para o filoacutesofo

inglecircs essa era uma das tarefas da retenccedilatildeo faculdade da mente ldquoatraveacutes da qual se

faz () progresso em direccedilatildeo ao conhecimentordquo Trata-se da capacidade de guardar

ideias recebidas pela sensaccedilatildeo ou pela reflexatildeo637 A habilidade de retenccedilatildeo eacute

sabemos ou podemos apreender do mundo jaacute existe em noacutes Ver Mecircnon 80a-86c Feacutedon 73c-78b

PLATAtildeO Meno Warminster Aris amp Phillips 1991 PLATAtildeO Phaedrus Cambridge Cambridge

University Press 2011 A opiniatildeo de Voltaire sobre as posicotildees aristoteacutelicas parece controversa Cf De

Anima III 4-7 ARISTOacuteTELES De lrsquoame J Vrin (dir) Paris Organon Librarie Philosophique 1947

ARISTOacuteTELES De Anima In The Complete Works of Aristotle Barnes J (ed) Princeton Princeton

University Press 1984 Segundo Jean Pierre-Vernant em Platatildeo a memoacuteria natildeo visa elaborar uma

histoacuteria individual onde se afirmaria a unicidade do eurdquo mas ldquorealizar a uniatildeo da alma com o divinordquo

enquanto que em Aristoacuteteles ldquonada mais lembra a Mnemosyne miacutetica nem os exerciacutecios de

rememoraccedilatildeo destinados a liberar do tempo e a abrir o caminho para a imortalidaderdquo VERNANT

Jean-Pierre Aspectos miacuteticos da memoacuteria In Mito e pensamento entre os gregos Paz e Terra 2002

Satildeo Paulo pp 162 e 166 635 ldquoSt Bernard selon lrsquoavis du Pere Mabillon enseigna agrave propos de lrsquoame qursquoapregraves la mort elle ne

voyoit pas Dieu dans le Ciel mais qursquoelle conservoit seulement avec lrsquohumaniteacute de Jesus Christ ()

Nocirctre Descartes neacute non pour deacutecouvrir les erreurs de lrsquoAntiquiteacute mais pour y substituer les siennes amp

entraineacute par cet Esprit systematique qui aveugle les plus grands hommes srsquoimagina avoir deacutemontreacute que

lrsquoame eacutetoit la matiere selon lui est la mecircme chose que lrsquoeacutetendueuml () Mr Mallebranche de lrsquoOratoire

dans ses illusions sublimes non seulement admit les ideacutees inneacutees mais il ne doutoit pas que nous ne

vissions tout en Dieu amp que Dieu pour ainsi dire ne fut nocirctre amerdquo Ibidem pp 93-95 ldquo() quand il a

voulu deacutevelopper cette grand veacuteriteacute que Tout est en Dieu tous les lectuers ont dit que le comentaire est

plus obscur que le texterdquo TOLLADET Abbeacute de (pseud) Tout en Dieu commentaire sur

Malechanche 1769 In VOLTAIRE Oeuvres complegravetes T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie

de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes biographiquesGarnier Fregraveres Paris 1877-1885 636 ldquoTant de raisonneurs ayant fait le Roman de lrsquoAme un Sage est venu qui en a fait modestement

lrsquohistoire Mr Locke a deacutevelopeacute agrave lrsquohomme la raison humaine comme un excellent Anatomiste

explique les ressorts du corps humain il srsquoaide par tout du flambeau de la Physique il ose quelquefois

parler affirmativemente () il fut pas agrave pas les progreacutes de son entendement () Il consulte sur tout son

propre temoignage la conscience de sa penseacutee ()rdquo Ibidem p 95 637 ldquoThe next Faculty of the Mind whereby it makes a farther Progress towards Knowledge is that

which I call Retention or the keeping of those simples Ideas which from Sensation or Reflection it

hath received This is done two ways First by keeping the Idea which is brought into it for some time

actually in view which is called Contemplationrdquo LOCKE John An Essay Concerning Human

Understanding Peter Nidditch (org) Oxford Clarendon Press 1975 (1690) p 149

204

susceptiacutevel de operar pequenos milagres como por exemplo aquele conjurado por

meio do ldquopoder de reviver novamente em nossas mentes essas ideiasrdquo

E assim noacutes fazemos () ao conceber o Calor ou a Luz

o Amarelo ou o Doce Esta eacute a memoacuteria algo como o

armazem de nossas ideias Uma vez sendo a Mente do

Homem incapaz de manter muitas ideias em vista e em

consideraccedilatildeo era necessaacuterio possuir tal repositoacuterio638

Guardas e acessar as ideias na perspectiva do empirismo a utilidade da

memoacuteria residiria na funccedilatildeo de resgatar aquilo que de fato ldquonatildeo estaacute em nenhum

lugar mas apenas ali residindo em uma habilidade da mente que com sua vontade

pode fazecirc-la reviver de novordquo639 Mnemosine se cala o mundo das ideias torna-se

mais difiacutecil de imitar a existecircncia sempiterna na via-laacutectea e a identificaccedilatildeo de vida

nas das esferas de Publicius e Romberch metaacuteforas morais Se com a metempsicose o

cristinismo havia encontrado ldquoa cama feitardquo o Voltaire leitor de Locke como lrsquoenfant

terrible veio pular sobre suas molas e bagunccedilaacute-la640 A vontade humana de lembrar

sugere ser mais importante do que as formas inatas de percepccedilatildeo e valoraccedilatildeo doadas

pela ordem natural e providencial641

Assim como aquele que os criou os personagens de Voltaire gostavam de

viajar Sua alma escondia-se entre pseudocircnimos e heterocircnimos que natildeo cansavam de

migrar impunes no tempo e no espaccedilo Natildeo seria esse o caso dos interlocutores dos

Entretiens Chinois Xain um mandarim que passou a juventude perambulando pela

Europa retorna a China e encontra em Pequim um amigo que ingressara na

Companhia de Jesus Dividido em trecircs conferecircncias o diaacutelogo se passa como uma

638 LOCKE op cit 149-150 639 ldquoAnd in this Sense it is that our Ideas are said to be in our Memories when indeed they are

actually no where but only there is an ability of the Mind when it will to revive it againrdquo Idem

Ibidem 640 Acima reflito sobre as seguintes palavras ldquoFoi precisamente o mito platocircnico da alma que teve a

capacidade de resistir ao processo de racionalizaccedilatildeo integral do ser e ateacute de se infiltrar novamente e

dominar progressivamente () o cosmos racionalizado Foi aqui que se inseriu a possibilidade da sua

aceitaccedilatildeo por parte da religiatildeo cristatilde que nele encontrou por assim dizer a cama feitardquo JAEGER

Werner Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Martins Fontes Satildeo Paulo 1995 p 192 641 Em sua resposta a Locke Lebniz no Novo Ensaio sobre o Entendimento Humano enxergava a

criacutetica empirista ao inatismo como um ataque velado ao princiacutepio da imortalidade da alma Para

Leibniz a ideia inata de substacircncia era fornecida pelo fato de que somos substacircncias e de que podemos

realizar uma reflexatildeo sistemaacutetica a respeito de nossa natureza Nesse sentido seriacuteamos ldquoinatos a noacutes

mesmosrdquo LEIBNIZ GW New Essays on Human Understanding P Remnant e J Bennett (trans)

Cambridge Cambridge University Press 1981 (1704) 51-52 Sobre o debate setecentista que opotildee

inatismo racionalista e anti-nativismo empirista ver HARRIS John Leibniz and Locke on Innate

Ideas In Ratio n 16 1974 pp 226-242 e WALL G Lockes Attack on Innate Knowledge In

Philosophy 49 1974 pp 414

205

polecircmica de alteridades sobre o tema maacuteximo da criacutetica agraves supersticcedilotildees O jesuiacuteta

reclama do irracionalismo das crenccedilas locais com o mandarim retrucando a respeito

das incoerecircncias de um ocidente que afastava o misticismo oriental na mesma medida

em que abraccedilava com forccedila de verdade os relatos maravilhosos do avistamento de

santos Incomodado com os maus tratos aos missionaacuterios o padre pede ao mandarim

jaacute na segunda parte que intervenha junto ao governo chinecircs recebendo como resposta

que toda pregaccedilatildeo estrangeira fosse cristatilde fosse maometana era proibida por uma lei

que tinha como justificativa os crimes cometidos contra o vizinho Japatildeo642

Na terceira conferecircncia no entanto os dois personagens encontram um

denominador comum no que o mandarim propotildee vinte teses ao espiacuterito de uma

ldquoprofissatildeo de feacuterdquo Contra a supersticcedilatildeo e o sectarismo religioso as teses tocam ao

longo da deacutecima primeira e da deacutecima segunda o tema dos almanaques ldquoCaso se decirc

a um charlatatildeo o privileacutegio exclusivo de fazer almanaquesrdquo redigiu Voltaire ldquoele faraacute

um calendaacuterio de supersticcedilotildees para todos os dias do anordquo intimidando povos e

magistrados ldquopelas conjunccedilotildees e influecircncias dos astrosrdquo Mas se forem vinte

charlatotildees ldquoeles vatildeo prever fatos diferentesrdquo contradizendo-se uns aos outros ldquoum

tempo viraacuterdquo concordariam os amigos entre dois mundos ldquoquando todo o povo teraacute

descoberto a patifaria de todos os astroacutelogosrdquo643 Neste dia natildeo teremos almanaques

que natildeo sejam feitos por ldquoastrocircnomos de verdade que calculam tatildeo somente o

movimento dos globos sem atribuir influecircncia a nenhumrdquo nem render previsotildees

fossem boas fossem maacutes644

642 Em outra oportunidade Voltaire esclaresceu essa questatildeo com o tom de chacota que lhe era proacuteprio

ldquoLes jeacutesuites avaient obtenu de lrsquoempereur de la Chine Kang-hi la permission drsquoenseigner le

catholicisme () Cependant lrsquoempereur Kang-hi mourut agrave la fin de 1722 Il laissa lrsquoempire agrave son

quatriegraveme fils Yong-Tching qui a eacuteteacute si ceacutelebre dans le monde entier par la justice et par la sagesse de

son gouvernement par lrsquoamour de ses sujets et par lrsquoexpulsion des jeacutesuitesrdquo VOLTAIRE Oeuvres

complegravetes de Voltaire Dictionnaire philosophique I Jean-Antoine-Nicolas de Caritat marquis de

Condorcet Furne 1835 p 331 643 ldquo11o Si vous donnez agrave un charlatan le privilegravege exclusif de faire des almanachs il fera un calendrier

de superstition pour tous les jours de lrsquoanneacutee il intimidera les peuples et les magistrats par les

conjonctions et les influences des astres Si vous laissez vingt charlatans faire des almanachs ils

preacutediront des eacuteveacutenements diffeacuterents ils se deacutecreacutediteront tous les uns les autres un temps viendra ougrave

tout le peuple aura deacutecouvert la friponnerie de tous les astrologuesrdquo VOLTAIRE Entretiens Chinois

In Dialogues et anecdotes philosophiques avec introduction notes et rapprochements Raymond

Naves (org) Garnier Paris 1939 p 250 644ldquo12o Alors il nrsquoy aura plus drsquoalmanachs que ceux des veacuteritables astronomes qui calculent juste les

mouvements des globes qui nrsquoattribuent drsquoinfluence agrave aucun et qui ne preacutedisent ni la bonne ni la

mauvaise fortune Le peuple insensiblement ne croira que ces sages il adorera drsquoun culte plus pur le

creacuteateur et le guide de tous les globes et notre petit globe en sera plus heureux rdquo VOLTAIRE 1939 p

251

206

Educado no coleacutegio dos jesuitas de Louis-le-Grand Voltaire natildeo apenas

atacava os saacutebios que buscavam prever futuro mas igualmente os eruditos que

julgavam organizar o passado A demanda por trabalhos de cronologia aumentou ao

longo da primeira modernidade unindo meacutetodos da filologia claacutessica vindos da

hermenecircutica medieval com observaccedilotildees astronocircmicas Seus objetivos manifestos

supunham conciliar a narrativa biacuteblica com os registros celestes feitos desde a

antiguidade ordenando a temporalidade em um momento em que os tradicionais

sistemas cosmoloacutegicos pareciam ndash literalmente para alguns como vimos ndash fazer aacutegua

Era tambeacutem o periacuteodo em que o tempo passava a ser visto como mesuraacutevel uniforme

ditado pela voz de Deus e pelo movimento das estrelas em uma linguagem acessiacutevel agrave

engenhosidade humana Era igualmente o periacuteodo em que o literalismo biacuteblico

encampado por movimentos que buscavam ir aos fundamentos do Velho Testamento

logo seria tambeacutem seguido pelas contrapartes romanas Natildeo poderia haver

contradiccedilatildeo entre o tempo do Livro e o tempo das estrelas mas seria essa uma

possibilidade viaacutevel

ldquoEu recebi hoje meu querido dia 27 de marccedilo a sua carta de 27 de fevereirordquo

escreveu Voltaire ao conde de Argental ldquoe ela eacute tatildeo difiacutecil de conciliar quanto a

cronologia da Vulgata e a da Septuagintardquo645 Seacuteculos antes ateacute pelo menos o final do

XVI as contradiccedilotildees entre as versotildees koineacute e latina da Biacuteblia natildeo eram dignas de

muitos percalccedilos fariacuteamos como o monge cartuxo Werner Rolevink que em seu

Fasciculus Temporum contava o tempo tambeacutem de frente para traz do apocalipse agrave

criaccedilatildeo conciliando judeus e cristatildeos e deixando que Deus ao cair dos tempos

decida quem estava certo e quem estava errado646 Em 1498 no entanto como um

profiacutecuo historiador da cronologia jaacute demonstrou em diversas oportunidades esse

quadro comeccedilaria a se alterar Naquele ano o dominicano Giovanni Nanni de Viterbo

publicou um livro que seria notado por todos os eruditos da Europa Annius seu

cognome latino apresentava pela primeira vez ao puacuteblico letrado uma seacuterie de autores

citados por Euseacutebio de Cesareia mas que ateacute o momento eram desconhecidos do

ocidente Os textos chegavam a desacreditar Heroacutedoto ndash o que desde ao menos

Luciano de Samoacutesata era um lugar comum ndash e dentre os nomes publicados dois se

645 ldquoJe reccedilois mon cher ange aujourdrsquohui 17 de mars votre lettre du 27 feacutevrier Cela est aussi difficile

agrave concilier que la chronologie de la Vulgate et des septanterdquo VOLTAIRE Ouvres complegravetes Tome

61 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-Typographique 1785 Recueil des lettres Lettre CLIII A

M Le Comte DrsquoArgental p 280 646 Sobre Werner Rolevink vide ROSENBERGGRAFTON 2010 pp 39 48

207

destacariam entre os interesses do puacuteblico Maneto historiador egiacutepcio da era

ptolomaica e Beroso autor de uma Histoacuteria da Babilocircnia

O livro de Nanni de Viterbo fechava inuacutemeras lacunas historiograacuteficas

partindo de um celebrado modelo que unia os criteacuterios de verdade (fides) da filologia

e do antiquariado647 Carregado de insights autores antes indiretamente conhecidos

como Metastenes Fabio Pictor e Catatildeo confirmavam-se uns aos outros em quarenta e

nove histoacuterias conectadas que com a exceccedilatildeo daquela de Propertio eram

absolutamente falsas Juan Luis Vives Pietro Crinito e Beatus Rhenanus jaacute haviam

notado a farsa648 Mais tarde em 1602 Joseph Scaliger intrigado pelos escritos de

Annius e ansioso por encontrar os textos reais recebe alguns fragmentos de uma

crocircnica bizantina Nela o cronologista encontra uma sequecircncia dos reis do Egito

atribuiacuteda ao verdadeiro Maneto Trata-se de um fragmento cujos registros podem ser

hoje confirmados na leitura dos papiros presentes em Turim Preservados pelo proacuteprio

Euseacutebio em uma espeacutecie de primeira nota de rodapeacute da histoacuteria aqueles textos

originais trariam problemas para o tempo biacuteblico

Joseph Scaliger natildeo soube como tambeacutem natildeo soubera o bispo de Cesareia o

que fazer com os textos transcritos por Euseacutebio e cuidadosamente esquecidos por Satildeo

Jerocircnimo em sua traduccedilatildeo latina Neles Beroso narrava como uma criatura chamada

Oannes corpo humano e cabeccedila de peixe emergiu do Mar Vermelho para fundar a

civilizaccedilatildeo Maneto era ainda mais ousado Sua lista de dinastias ia muito aleacutem do

diluacutevio universal Na verdade comeccedilava antes da criaccedilatildeo Diante do dilema moral a

eacutetica de Scaliger ditou que ele deveria publicar os documentos jogando as datas

egiacutepcias em direccedilatildeo ao vago lugar de um ldquotempo proleacutepticordquo649

647 ldquoWhen Annius argued that Berosus and his friends deserved credibility he did more than describe

them as Josephus had as priests with access to ancient records () Only those historians who met this

standard he argued deserved trust () Annius was steeped in a formal theology and he drew on his

training to offer the first formal principles of historical criticism ever elaborated in print For a century

to come anyone who hoped to formulate rules for assessing historical fides had to come to terms with

these influential precedentsrdquo GRAFTON 2007 sp cap 2 perto da nota 60Sobre o modelo de criacutetica

documental jaacute presente em finais da idade meacutedia ver GINZBURG Carlo Lorenzo Valla e a Doaccedilatildeo

de Constantino In Relaccedilotildees de Forccedila Histoacuteria Retoacuterica Prova Compania das Letras Satildeo Paulo

2000 pp 64-69 648 GRAFTON What was History 2007 sp perto da nota 60 649 Sigo GRAFTON 2007 cap 4 proacuteximo a nota 97 Ver tambeacutem GRAFTON Anthony MOST

Glenn SETTIS Salvatore The Classical Tradition Harvard University Press 2010 p 866 Paacutegina na

qual o autor explica que ldquoScaligerrsquos books provoked criticism from Johannes Kepler and refutation

from the erudite Jesuit Danys Petau It also indirectly helped inspire another Jesuit Martino Martini to

believe that Chinese history like Egyptian could have begun before the Flood By the end of the

century many scholars acknowledge that Scaligerrsquos hoped-for synthesis of biblical and secular history

could not be carried out without undermining the authority of the Bible ndash a paradoxical conclusion that

208

Athanasius Kircher o jesuita que a tudo sabia natildeo deixou de ler o calvinista

Scaliger Entre 1640 e 1650 Martino Martini um de seus pupilos do Collegio

Romano viaja a China com o objetivo de escrever a primeira cronologia baseada em

fontes e observaccedilotildees astronocircmicas orientais Para a infelicidade do literalismo biacuteblico

as datas da tradiccedilatildeo analiacutestica chinesa ndash acompanhadas de registros de eclipses ndash

tambeacutem iniciavam muito antes do diluacutevio universal650 Sobre essas ldquoprodigiosas

provas da antiguidade chinesardquo Voltaire homem de formaccedilatildeo jesuita lanccedilou nas

palavras do Essai sur les moeurs et lesprit des nations mais uma de suas costumeiras

e deliciosas ironias

Nossos viajantes missionaacuterios relatam com franqueza

que assim que conversaram com o imperador Cam-hi a

respeito das consideraacuteveis variaccedilotildees da cronologia da

Vulgata da Septuaginta e dos Samaritanos Cam-hi

lhes respondeu Seria possiacutevel que os livros nos quais

vocecircs acreditam se contradigam651

Voltaire realmente natildeo tinha a cronologia em alta conta No Dictionnaire

philosophique o verbete relativo ao tema aparece com o subtiacutetulo ldquoda vaidade dos

sistemasrdquo Para o iluminista a mateacuteria tratava da fuacutetil tarefa de instituir dataccedilotildees

precisas a respeito de personagens e eventos sem precisatildeo de modo que bastaria que

ldquoapenas um chinecircs a contradigardquo para que fosse universalmente comprometida652 O

que afinal importa perguntaria em De la Chine ldquoque esses livros nem sempre contecircm

uma cronologia confiaacutevelrdquo ldquoEu quero que natildeo saibamos em que tempo precisamente

viveu Carlos Magnordquo disparou o filoacutesofo desde que lembremos que o imperador

subjugou vaacuterios povos pela forccedila de seus exeacutercitos e que principalmente era filho de

Scaliger himself glimpsed as he confessed to his pupils though he also told them that he lsquodid not darersquo

to publish on such issuesrdquo 650 FINDLEN Paula (org) Athanasius Kircher The Last Man Who Knew Everything Routledge New

York 2004 p 184 651 ldquoNos voyageurs missionnaires rapportent avec candeur que lorsqursquoils parlegraverent au sage empereur

Cam-hi des variations consideacuterables de la chronologie de la Vulgate des Septante des Samaritains

Cam-hi leur reacutepondit Est-il possible que les livres em qui vous croyez se combattentrdquo VOLTAIRE

Essai sur les moeurs et lesprit des nations In Oeuvres complegravetes de Voltaire T 16 1785 de

lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-Typographique p 85 652 ldquoSrsquoil avait menti srsquoil avait fait une fausse chronologie srsquoil avait parleacute drsquoempereurs qui nrsquoeussent

point existeacute ne se serait-il trouveacute personne dans une nation savante qui eucirct reacuteformeacute la chronologie de

Confutzeacutee Un seul Chinois a voulu le contredire et il a eacuteteacute universellement basoueacuterdquo VOLTAIRE

Oeuvres complegravetes de Voltaire Dictionnaire philosophique I Jean-Antoine-Nicolas de Caritat

marquis de Condorcet Furne 1835 p 331

209

ldquouma naccedilatildeo numerosa formada por um grupo de pessoas em uma longa duraccedilatildeo de

seacuteculosrdquo653

As criacuteticas de Locke ao inatismo teriam levado-o a valorizar a ldquoimportacircncia da

memoacuteria em ancorar um senso de continuidade individual ao longo do tempordquo654 Eu

me pergunto se em Voltaire natildeo assistiriacuteamos a elevaccedilatildeo desse juizo de sucessatildeo a

esferas coletivas em um momento em que noccedilotildees de movimento encontram-se em

franco processo de singularizaccedilatildeo A tarefa de libertar o mundo do inatismo poderia

de todo modo ser entendida como uma tentativa de livrar os indiviacuteduos de ldquoter de

repetir as mesmas accedilotildees continuamenterdquo introduzindo-os a uma ldquovisatildeo de seus

proacuteprios progressos e desenvolvimentos possiacuteveisrdquo655 E quanto aos povos ldquoDepois

de ter lido quatro mil descriccedilotildees de batalhas e o teor de algumas centenas de

tratadosrdquo reconheceria Voltaire ldquoeu natildeo aprendi senatildeo os fatosrdquo Nas geraccedilotildees

anteriores a Voltaire os cronologistas buscavam contar o tempo cotejando as

narrativas biacuteblicas com os fatos duros da natureza como se deixassem na esteira do

projeto agostiniano a ordem do tempo nas matildeos da providecircncia Talvez em breve

rogava o iluminista francecircs novas descobertas que ldquofizeram banir os sistemas

antigosrdquo sejam realizadas tambeacutem ldquona maneira de escrever a histoacuteriardquo Afinal

ldquoqueremos conhecer o gecircnero humano em seu detalhe interessante que eacute hoje a base

da filosofia naturalrdquo656

Mas com a queda dos ldquosistemas antigosrdquo esse ldquodetalhe interessanterdquo natildeo se

apresentaria apenas por meio da descriccedilatildeo taxonocircmica dos povos humanos Natildeo cabia

apenas encontrar sentidos inatos no mundo mas tambeacutem fazer dele algum sentido Jaacute

em suas Novas Consideraccedilotildees a verdadeira histoacuteria aparece como histoacuteria do

ldquoespiacuterito humano cujo progresso se manifesta natildeo na poliacutetica mas nas artes e na

653 ldquoQursquoimporte apregraves tout que ces livres renferment ou non une chronologie toujours sucircre Je veux que

nous ne sachions pas em quel temps preacuteciseacutement veacutecut Charlemagne degraves qursquoil est certain qursquoil fait de

vastes conquecirctes avec des grandes armeacutees il est clair qursquoil est neacute chez une nation nombreuse formeacutee

en corps de peuple par une longue suite de siegraveclesrdquo VOLTAIRE De la Chine Chapitre Premier De la

Chine de son antiquiteacute de ses forces de ses lois de ses usages amp de ses sciences InOeuvres

complegravetes de Voltaire T 16 1785 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-Typographique pp 257-258

Grifos meus 654 FERGUSON Frances Romantic Memory In Studies in Romantism 1996 35 p 506 655 Ibidem p 509 656 ldquoMais apreacutes avoir lu trois ou quatre mille descriptions de batailles et la teneur de quelque centaines

de traiteacutes j`ai trouveacute que je n`eacutetais guegravere plus instruir au fond Je n`apprenais lagrave que des eacuteveacutenements

() Peut-ecirctre arrivera-t-il bientocirct dans la maniegravere d`eacutecrire l`histoire ce qui est arriveacute dans la physique

Les nouvelles deacutecouvertes ont fait proscrire les anciens systegravemes On voudra connaicirctre le genre humain

dans le deacutetail inteacuteressant qui fait aujourd`hui la base dela philosophie naturellerdquo VOLTAIRE

Nouvelles Consideacuterations sur l`histoire 1744 In Ouvres historiques Paris Bibliothegraveque de la Pleacuteiade

1957 pp 46-49

210

ciecircncia no comeacutercio e nas manufaturas nas leis e nos costumesrdquo657 Apaga-se a

providecircncia descartam-se os caracteres inatos da natureza e como em uma ironia ndash

dessa vez acreditamos involuntaacuteria ndash recorre-se ao uso libertaacuterio de um princiacutepio

ordenador (spiritus) antes tatildeo caro ao fatalismo dos estoicos ldquoVoltaire transforma o

objeto de pesquisa histoacuterica ndash como um singular coletivo ndash lsquolrsquohistoire de lrsquoesprit

humainrsquo () e numa analogia coacutesmicardquo corresponde como escreveu Hans Guumlnther

ldquoa ordem do universo que antigamente soacute podia ser imaginadardquo mas que agora a

ciecircncia teria dado a conhecer658

Se a crenccedila na metempsicose era saudada nos bracircmanes como forma

encontrada para manter vivos seus costumes frente agrave cobiccedila dos invasores europeus

para um saacutebio iluminista por outro lado esse tipo de instrumento mental jaacute

expressaria uma crenccedila na histoacuteria O curto circuito entre alma e memoacuteria

possibilitava o desenvolvimento de outro gecircnio ordenador de outro ser racional capaz

de contar e conferir sentido ao tempo O espiacuterito jaacute se manifestava no entanto bem

longe do aevum ou da aeternitas mas no tempus contado agora por seacuteculos Na

filosofia da histoacuteria a laacute Voltaire as vicissitudes satildeo ritmadas pelos progressos do

proacuteprio homem por meio da arte dos costumes da ciecircncia e da induacutestria659

Se vozes como as de Leibniz jaacute se levantavam contra o empirismo sugerindo

que ele ao fundo atacava a crenccedila na migraccedilatildeo das almas e por consequecircncia a moral

e a religiatildeo da parte de Voltaire essa seria uma culpa confessa No elogio a Locke o

filoacutesofo da histoacuteria tratava de acalmar seus leitores ldquojamais os filoacutesofos formaratildeo um

secto religiosordquo uma vez que ldquoeles natildeo escrevem para o povo e satildeo desprovidos de

entusiasmordquo660 Consciente de que os valores ancestrais podem ser lembrados ou

esquecidos selecionados ou descartados essa eacute uma regra que Voltaire ndash escrevendo

para o puacuteblico e com muito entusiasmo ndash iria jaacute com certa idade quebrar Para fazer

657 VOLTAIRE Nouvelles Consideacuterations sur l`histoire 1744 op cit pp 46-49 658 Portanto como disse Voltaire ldquoCrsquoest donc lrsquohistoire de lrsquoopinion qursquoil fallut eacutecrire et par lagrave ce

chaos drsquoeacuteveacutenements de factions de reacutevolutions et de crimes devenait digne drsquoecirctre presente aux

regards des sagesrdquo Apud GUumlNTHER Hans Pensamento histoacuterico no iniacutecio da Idade Moderna In

KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 109 659 A proacutepria expressatildeo ldquola philosophie de lrsquohistoirerdquo veio de Voltaire que em 1765 publicou sob o

pseudocircnimo de Abbeacute Bazin uma obra com esse tiacutetulo que logo veria diversas ediccedilotildees e reimpressotildees

BAZIN Abbeacute La Philosphie de lrsquohistoire Amsterdam 1765 660 ldquoJamais les Philosophes ne feront une secte de Reacuteligion pourquoi Crsquoest qursquoils nrsquoeacutecrivent point

pour le peuple amp qursquoils sont sans Entousiasme Divisez le Genre humain en vingt parts il y en a dix

neuf composeacutees de ceux qui travaillent de leurs mains amp qui ne sccedilauront jamais srsquoil y a eu un Mr

Locke au monde dans la vingtieacuteme partie qui reste combien trouve t-on peu drsquohommes qui lisent amp

parmi ceux qui lisent il y a vingt qui lisent des Romans contre un qui eacutetudie en Philosophie Le

nombre de ceux qui pensent est excessivement petir amp ceux-lagrave ne srsquoavisent pas de troubler le mondeldquo

VOLTAIRE Treisiegraveme Lettre sur Mr Locke 1734 op cit p 103-104

211

isso no entanto o filoacutesofo deveria se tornar um pouco como o pregador (mesmo que

agraves avessas da supersticatildeo) repudiando os fazedores de horoacutescopos que aparvalhariam

o povo com almanaques de prognoacutesticos e assumindo uma voz puacuteblica capaz de fazer

notar suas proacuteprias efemeacuterides histoacutericas por meio da autoconsciecircncia historiograacutefica

de que os signos do passado podem ser modificados E essa seria a defesa da sua

ldquoIgrejardquo

Haacute muito que deixara de ser vaacutelido perscrutar para os mais esclarecidos

sacedotes dessa repuacuteblica das letras a experiecircncia e a esperanccedila a partir da

observaccedilatildeo de regularidades nos ciclos naturais Da mesma forma entender a

memoacuteria a partir do inato daquilo que eacute dado por uma ordem providencial da

natureza apenas transformou a lembranccedila e a experiecircncia humana em um misteacuterio do

tamanho do cosmos Insuflar as expectativas por meio de prognoacutesticos celestes tatildeo

somente expunha seus feitores agrave ridicularizaccedilatildeo do choque entre as evidecircncias e suas

praacuteticas charlatatildes Mas essa mudanccedila de postura natildeo eacute percebida nas fontes como

resultado de uma estrondosa revoluccedilatildeo racional Nos seacuteculos imediatamente

anteriores os mestres da Ars Historica debatiam em um sintoma da ldquocompulsatildeo de

repeticcedilatildeordquo que marcaria a coerecircncia interna do gecircnero questotildees que derivavam da

filosofia natural peripateacutetica661 Com meacutetodos e livros gramaacuteticas e alguns preceitos

a passagem dos lunaacuterios e almanaques celestes agraves efemeacuterides histoacutericas a despeito de

toda mise-en-scegravene voltariana aconteceria quase ldquosem chicote e sem laacutegrimasrdquo662

Com a permissatildeo de Anthony Grafton que afirmara algo parecido a respeito dos usos

dos eclipses pretendo observar essa modificaccedilatildeo de princiacutepio tatildeo somente como uma

lenta mudanccedila de praacutetica663 As efemeacuterides como tabelas de movimentos diaacuterios dos

astros comeccedilam a ter seus conteuacutedos vistos mais como repositoacuterio de fatos do que

como anuacutencios de pressaacutegios e seguindo essa loacutegica interna vatildeo reinvestir-se

tambeacutem dos sentidos atribuiacutedos por Semprocircnio Aseacutelio e reeditados por Isidoro de

661 A imagem algo freudiana de uma ldquocompulsatildeo por repeticcedilatildeordquo nos debates da Ars Historica eacute trazida

por Grafton em alguns momentos de sua obra Ver por exemplo ldquo() the discussions of speeches in

the artes historicae illustrate the repetition compulsion that is one of the salient and stranger

characteristics of the genre as a wholerdquo GRAFTON Anthony 2007 Parte II entre as notas 96 e 97 662 Aqui parafraseio a bela passagem de Montaigne a respeito de sua instruccedilatildeo na liacutengua latina ldquosem

meacutetodo sem livro sem gramaacutetica ou preceito sem chicote e sem laacutegrimas tinha aprendido o latimrdquo

MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Cap XXV Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas Pinguin Books Satildeo

Paulo 2010 p 125 663 A mudanccedila de postura frente aos eclipses que passam de pressaacutegios a fatos como demonstra o

autor acontece como uma lenta mudanccedila de praacutetica Ver GRAFTON Anthony Some uses of Eclipses

() 2003 p 229 Embora o autor natildeo use o termo os meacutetodos de previsatildeo dos eclipses satildeo tambeacutem ndash e

isso ateacute os dias da astronomia que nos eacute contemporacircnea ndash baseados em caacutelculos de efemeacuterides

212

Sevilha Nesse longo processo que perpassa vaacuterios seacuteculos da modernidade a

astrologia seraacute superada ainda que algo guardados no interior das efemeacuterides

histoacutericas percebam-se instrumentos mentais anaacutelogos agravequeles presentes nas teacutecnicas

cronosoacuteficas dos sistemas antigos Nesse momento seria conveniente escutar o

conselho de Reinhardt Koselleck e ldquoprestar atenccedilatildeo ao conteuacutedo metafoacuterico de nossos

conceitos de modo a capacitarmos a avaliaccedilatildeo do poder de suas expressividades

histoacutericasrdquo664 Natildeo seraacute mais a hora eacute claro de completar o passado e o presente pela

antecipaccedilatildeo de um futuro lido nas conjunccedilotildees e influecircncias astrais mas de ndash jaacute sob a

aurora de uma ldquociecircncia causal sublunarrdquo ndash observar no choque entre vontades

poliacuteticas da memoacuteria as armas empregadas no impasse e na resoluccedilatildeo de batalhas

entre manifestaccedilotildees puacuteblicas e divergentes da experiecircncia do tempo 665

41 Conhecer os ciclos preluacutedio de um eclipse da natureza

Johannes Muumlller astrocircnomo e matemaacutetico natildeo era em nada avesso agraves teorias

da influecircncia celeste como natildeo o foram a maioria absoluta de seus contemporacircneos

Talvez no seu caso o interesse pelo tema fosse bem aleacutem Se as Efemeacuterides

Perpeacutetuas publicadas em Veneza em 1498 combinavam o calendaacuterio com certas

datas comemorativas oferecendo tambeacutem uma tabela de ciclos lunares e solares as

Tabulae directionum parecem ter sido projetadas para o uso astroloacutegico ndash embora

fossem criacuteticas ao modo judiciaacuterio dos saberes celestes condenado por tantos papas

Em suma essas Taacutebuas propunham uma reformulaccedilatildeo do velho sistema de casas

zodiacais apresentando um modelo que alcanccedilou alguma popularidade na Europa da

renascenccedila666 Mas natildeo seriam apenas esses elementos da astronomia de Muumlller hoje

664 KOSELLECK Reinhardt ldquoProgressrdquo and ldquoDeclinerdquo An Appendix to the History of Two Concepts

In The practice of conceptual history timing history spacing concepts Stanford University Press

Cultural Memory in the Presente Stanford 2002 p 221 665 Devo a imagem da histoacuteria enquanto ldquociecircncia causal sublunarrdquo a VEYNE Paul Como se escreve a

histoacuteria Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 p 43 Para aleacutem da esfera terrestre temos ldquoa regiatildeo do

determinismo da lei da ciecircncia os astros natildeo nascem natildeo mudam e natildeo morrem e o seu movimento

tem a periodicidade e a perfeiccedilatildeo de um mecanismo de relojoaria ()rdquo No mundo sublunar ldquosituado

abaixo da lua reina o devir e tudo aiacute eacute acontecimento () O homem eacute livre o acaso existe os

acontecimentos tecircm causas cujo efeito permanece duvidoso o futuro eacute incerto e o devir eacute contingente

()rdquo 666 REGIOMONTANUS Ioannis de Monteregio Tabulae Directionum Profectionumque non tam

astrologiae iudiciariae quam tabulis instrumentisque innumeris fabricandis utiles ac necessariae

eiusdem Regiomontani tabula sinuum per singula minuta extensa universam sphaericorum

triangulorum scientiam complectens accesserunt his tabulae ascensionum obliquarum a 60 gradu

elevationis poli usque ad finem quadrantis per Erasmum Reinholdum () Supputae-Imprimebantur in

officina typographica Matthei Welack 1584 REGIOMONTANUS Ioannis de Monteregio

Ephemerides sive almanach perpetuus Impr Petri Liechtenstein Venetiis 1498 Para uma discussatildeo

213

associadas a uma pseudociecircncia que alimentariam com seus prognoacutesticos alguns

episoacutedios periclitantes do renascimento

Aparentemente menos dramaacuteticas do que seus usos judiciaacuterios a leitura

natural das efemeacuterides faria tremer diante da sofisticada arte europeacuteia alguns nativos

do novo mundo Com apenas duas naacuteus que jaacute deviam fazer aacutegua sem mantimentos e

rogando por um resgate Cristovatildeo Colombo faria de tudo para reaver o suporte

logiacutestico dos habitantes da Jamaica Entre uma coleccedilatildeo de tratados cosmoloacutegicos e

tabelas de movimento dos astros as matildeos do navegador logo tocariam as efemeacuterides

de Regiomontanus e perscrutando suas paacuteginas com os olhos de um filoacutesofo natural

fizeram-no encontrar a data e o horaacuterio previsto para um evento coacutesmico Mandou

chamar os caciques taiacutenos Era 29 de fevereiro de 1504 noite que assistiria agrave ascensatildeo

de uma lua cheia Colombo disse aos iacutendios que seu Deus estava furioso com o

tratamento dado aos aventureiros e prometeu que como sinal de sua insatisfaccedilatildeo Ele

pintaria o sateacutelite terrestre com as cores do sangue antes de extingui-lo para sempre

Foi seu filho Fernando Colombo quem registrou o ocorrido

Assim que na verdade um pouco depois de nascer a

lua comeccedilou a aparecer terna e avermelhada os iacutendios

foram tomados de terror e () se apressaram levando

consigo grandes quantidades de viveres proferindo

lamentaccedilotildees e assegurando ao Almirante que caso ele

intercedesse para desarmar a coacutelera de seu Deus eles se

comprometeriam a nunca mais deixar faltar nada aos

cristatildeos667

ldquoVocecirc vecirc isso foi um eclipserdquo disse o Yankee na corte do rei Arthur

ldquoOcorreu-me no calor da hora como Colombo Cortez ou uma dessas pessoasrdquo

usaram um fato celeste ldquopara alardear alguns selvagensrdquo E assim baseado em fatos

recente MOSLEY Adam Regiomontanus and Astrology Cambridge University History and

Philosophy of Science Department 1999 Sobre a popularidade do sistema de Regiomontanos ver

LEWIS James R The Astrology Book The Encyclopedia of Heavenly Influences Visible Ink Press

2013 p 574 667 COLOMB Fernand Histoire de la vie et des deacutecouvertes de Christophe Colomb Muller Eugecircne

(trad) Paris Maurice Dreyfous 1879 p 283 Na traduccedilatildeo de Muller ldquoLorsque en effet un peu apregraves

son lever la lune commenccedila drsquoapparaitre voileacutee et rougeacirctre les Indient furent saisis drsquoune veacuteritable

terreur et comme agrave mesure que lrsquoasire montait le pheacutenomecircne devenait plus sensible ils se haacutetegraverent de

prendre avec eux de grandes quantiteacutes de vivres et drsquoaccourir aux navires en poussant des lamentations

et en assurant lrsquoAmiral que srsquoil voulait bien interceacuteder pour deacutesarmer la colegravere de son Dieu ils

srsquoengageraient agrave ne jamais laisser les chreacutetiens manquer de rien agrave lrsquoavenirrdquo Para uma narrativa recente

a respeito desse episoacutedio das viagens de Colombo ver HEAT-MOON William Least Columbus in the

Americas John Wiley amp Sons New Jersey 2010 pp 175-176

214

semeando terror com o sarcasmo do Deus razatildeo o Sr Morgan viu a chance de escapar

da fogueira medieval salvo pelos astros como de volta a um futuro jaacute passado

aconteceria com o almirante genovecircs668 Mas natildeo deixemos nossas almas se perderem

entre o anterior e o posterior Comemoremos brevemente a ciecircncia renascentista que

se preocupava em pintar com precisatildeo alguns pontos (a partir dos quais poderiacuteamos

entre eles contar a mudanccedila) nas linhas irreversiacuteveis do tempo sagrado e profano

Quatro seacuteculos antes de Mark Twain e uma centena de anos apoacutes Colombo Henrich

Buumlnting presenteou o bispo luterano de Halberstadt com um trabalho descrito por ele

mesmo como uma ldquocerta cronologia e narrativa do tempo do iniacutecio do mundo ao

presenterdquo 669

Dos muitos estudos e propostas cronoloacutegicas que pululavam no periacuteodo o

texto de Buumlnting diferenciava-se pela arrojada proposta de estabelecer dataccedilotildees a

partir de registros de eclipses sem no entanto interessar-se por vecirc-los como sinais ou

relacionaacute-los pela premissa da influecircncia celeste com grandes eventos sublunares Ou

seraacute que natildeo poderiacuteamos ler em Buumlnting alguma pitada de sarcasmo quando ele

claramente parafraseia e corrige Ptolomeu ao dizer que ldquoduas formas de caacutelculo satildeo as

mais certas de todas aquela que eacute empreendida com a sagrada escritura e aquela que

eacute realizada a partir do intervalo dos eclipsesrdquo670

Buumlnting jaacute natildeo devia seu modelo cosmoloacutegico ao grande saacutebio de Alexandria

mas ao Copeacuternico do sistema heliocecircntrico cujas Revoluccedilotildees das Orbes Celestes

foram pontuados por Erasmus Reinhold nas ceacutelebres Taacutebuas Prutecircnicas de 1551

Como escreveu Anthony Grafton ldquoBuumlnting tratava eclipses enquanto fatosrdquo e fatos

como quaisquer outros ldquocom a exceccedilatildeo de que eram mais precisosrdquo Ao unir uma

abordagem filoloacutegica das crocircnicas de diversos povos com observaccedilotildees astronocircmicas

o cronologista tambeacutem fez questatildeo de ressaltar que sua ecircnfase nos eclipses nada tinha

a ver com quaisquer importacircncias simboacutelicas ou cosmoloacutegicas mas com as certezas

quantitativas que eles traziam671

668 TWAIN Mark A Connecticut Yankee in King Arthurrsquos Court Digireadscom Publishing Stilwell

2004 p 18 Interessante precisar que o eclipse de Twain datado de 21 de junho de 528 natildeo encontra

registro em outro lugar senatildeo no romance de 1889 669 Sobre os usos dos eclipses nas cronologias da primeira modernidade sigo GRAFTON Anthony

Some uses of Eclipses () 2003 A frase acima citada encontra-se na paacutegina 214 do artigo 670 Buumlnting dedicatory letter to Henrich Julius apud GRAFTON 2003 p 215 Peccedilo ao leitor que

compare essa afirmaccedilatildeo com a frase inicial ainda que traduzida para o inglecircs do Tetrabiblos ldquoOf the

means of prediction through astronomy O Syrus two are the most important and validrdquo ROBBINS

FE Ptolomy Tetrabiblos 1940 p 3 671 GRAFTON 2003 p 214-115

215

Quase todo almanaque publicado na Europa da primeira modernidade

apresentava algum tipo de tabela de efemeacuterides associadas ao calendaacuterio Nisso essas

publicaccedilotildees compartilhavam a obsessatildeo pela contagem do tempo que os trabalhos de

cronologia expressavam em ciacuterculos mais refinados Na Inglaterra reformada essa

reuniatildeo de informaccedilotildees astronocircmicas e festas religiosas natildeo escapou a usos poliacuteticos

Ao lado de ldquopreces e sermotildees estatutos e proclamaccedilotildeesrdquo crocircnicas e almanaques

expunham um padratildeo providencial que atuava como lembranccedila constante da boa

fortuna dinaacutestica e religiosa de uma naccedilatildeo eleita672

Juacutepiter e Saturno em Peixes natildeo foram alardes suficientes para Felipe II Com

as velas levantadas cruz catoacutelica amostra a Armada Espanhola rumou ao mar do

norte aonde para absoluto terror dos castelhanos ldquoDeus soprou e eles foram

dissipadosrdquo A vitoacuteria decisiva da monarquia elisabetana sobre a Armada Espanhola

em 1588 seria rapidamente trabalhada como um sinal conferido ao novo povo

escolhido (Godrsquos Englishmen) Mesmo sem estabelecer um ldquoano da Armadardquo o

evento foi comemorado em ldquomedalhas e tapeccedilarias pinturas e poemas sermotildees e

precesrdquo enquanto que o aniversaacuterio da rainha ofereceu um instante a cada novembro

para se relembrar a vitoacuteria e maldizer os catoacutelicos673 William Leigh (1550-1639)

cleacuterigo tutor real e orador escolhido para dirigir-se agraves tropas reunidas em Tilbury

diria sem deixar de lado as imagens astronocircmicas que ldquoo mirabilis annus de 88

jamais seraacute esquecido enquanto o sol e a lua existiremrdquo 674

A vitoacuteria assim foi naturalizada e com ela o proacuteprio inimigo Dezessete anos

mais tarde um grupo de conspiradores catoacutelicos liderados por Robert Catesby e Guy

Fawkes ensaiaram um atentado contra James I e seu governo sediado nas Casas do

Parlamento A Conjuraccedilatildeo da Poacutelvora permitiu aos pregadores protestantes

estabelecerem uma conexatildeo imediata entre os eventos de 1588 e os de 1605 Os

almanaques impressos no periacuteodo natildeo cansavam de relembrar e relacionar as duas

datas comemorando-as entre os poucos aniversaacuterios duradouros e marcando-os com

frequecircncia entre versos brutos e letras vermelhas O almanaque de Richard Allestree

para 1629 um dos perioacutedicos mais populares da Inglaterra contava os anos

672 Aqui sigo CRESSY David National Memory in Early Modern England In In GILLIS John R

(org) Commemorations the politics os national identity Princeton University Press New Jersey

1994 p 62 673 CRESSY 1994 p 63-64 674 ldquo() that mirabilis annus of rsquo88 will never be forgotten so long as the sun and moon durethrdquo

LEIGH William Queen Elizabeth Paraleld in her Princely Vertues with David Isosua and Hezekia

London 1589 p 36 Apud CRESSY 1994 p 63

216

retroativamente ldquodesde a criaccedilatildeo do mundo () a destruiccedilatildeo de Sodoma pelo fogo e

pelo enxofre () o iniacutecio do abenccediloado reinado de Elizabeterdquo e tambeacutem desde a

destruiccedilatildeo da ldquoArmada Espanholardquo e ldquoa maldita Traiccedilatildeo da Poacutelvorardquo675 Geraccedilotildees

mais tarde essa lista de efemeacuterides continuava a animar as almas leitoras do Poor

Robinrsquos Almanac ldquoa memoacuteria da Conspiraccedilatildeo da Poacutelvora dificilmente morreraacuterdquo 676

Entre as datas de 1588 1605 e 1666 teriacuteamos trecircs momentos em que a

histoacuteria da Inglaterra foi ldquofatalmente determinadardquo677 Ora se os almanaques ingleses

como que oficiando avant la lettre uma sorte de ldquomemoacuteria nacionalrdquo assim

construiacuteam uma identidade reformada em oposiccedilatildeo ao catolicismo romano o que

restava para as paacuteginas que lidavam com os horaacuterios da aurora e do crepuacutesculo as

fases da lua o translado das estrelas errantes a posiccedilatildeo dos horoacutescopos e todo o tipo

de prognoacutestico que munidos dessas informaccedilotildees esses pequenos textos populares

publicavam Curiosidades ou supersticcedilotildees de mero ldquointeresse histoacutericordquo Newmann e

Grafton jaacute chamaram a atenccedilatildeo para o perigo que correm alguns estudos quando ao

ligar a renascenccedila ao surgimento do nacionalismo ignoram ou desvalorizam o papel

da astrologia no periacuteodo678 Respeitar a dualidade entre as praacuteticas astroloacutegicas e uma

nascente memoacuteria coletiva eacute igualmente reconhecer a tensatildeo entre centro e periferia

Krzysztof Pomian explicou de que maneira duas teologias concorrentes da

histoacuteria coexistiram entre o final da idade meacutedia e os primoacuterdios da modernidade A

675 ALLESTREE Richard A New Almanach for Prognostication for the yeere of our Lord God 1629

and from the creation 5591 being the first frō leap-yeere calculated and properly referred to the

longitude amp sublimity of the pole articke of 52 amp 53 deg London Printed for the Company of

Stationers 1628 676 ldquoWhat erersquos forgot the memory orsquo the Powder Plot will hardly dierdquo Poor Robin An Almanac After

the Old and New Fashion London 1695 Segundo CRESSY op cit pp 65-71 ldquoO governo de Jaime I

respondeu a Conjuraccedilatildeo da Poacutelvora legislando uma comemoraccedilatildeo anual unindo prerrogativas

seculares e religiosas () [tratou-se de] An Act for Public Thanksgiving to Almighty God Every Year on

the Fifith Day of November () to the End this Unfained Thankfulness May Never be Forgotten but he

had in Perpetual Remembrance () Toda crianccedila inglesa conhece a rima remember remember the

fifth of November The Gunpowder Treason and Plot I see no reason why Gunpowder Treason

Should ever be Forgot () [Com Charles I casado com uma catoacutelica] A cultura da memoacuteria

fragmentou-se em linhas partisatildes e competitivas como rivais pelo controle do passado () Depois do

Grande Fogo de Londres em 1666 o Parlamento inaugurou um monumento () [uma] coluna Doacuterica

de 202 peacutes de altura () monumento ao desastre e a confiante reconstruccedilatildeo da cidade Mas logo ele

ganhou novos significados Rumores persistiram alegando que o fogo natildeo havia sido acidental mas

obra de papistas incendiaacuterios () Em 1681 quinze anos apoacutes o fogo () poliacuteticos Whig adicionaram

uma nova inscriccedilatildeo em maacutermore como um novo apelo agrave memoacuteria lsquoEste pilar foi erguido em

lembranccedila perpeacutetua do mais terriacutevel incecircndio desta cidade Protestante iniciado e levado a cabo pela

traiccedilatildeo e maliacutecia da facccedilatildeo papistarsquo () Sem surpresa James II mandou remover a inscriccedilatildeo mas ela

foi restaurada apoacutes o triunfo protestante na Revoluccedilatildeo gloriosa Eacute apenas em 1830 apoacutes a emancipaccedilatildeo

catoacutelica que a incrisccedilatildeo memorial seria permanentemente removidardquo 677 CRESSY op cit 65 678 NEWMANN William R GRAFTON Anthony (org) Secrets of Nature Astrology and Alchemy in

Early Modern Europe Cambridge MA 2001 principalmente pp 1-11

217

primeira delas representada pela astrologia oferecia inteligibilidade agrave histoacuteria

ldquoprocurando pela razatildeo suficiente de seu curso fora do mundo humanordquo Ao olhar

para os ceacuteus e tentar a partir do invisiacutevel traccedilar relaccedilotildees de influecircncia de uma regiatildeo

diferente do ser para com a esfera sublunar ldquoa razatildeo suficiente do curso da histoacuteria eacute

identificada com a sucessatildeo de eventos celestes resultando necessariamente da

locomoccedilatildeo circular dos astros dotados de poderes peculiaresrdquo Natildeo por acaso no

entanto com as bulas papais do seacuteculo XIII e a via media encontrada por Satildeo Tomaacutes

toda e qualquer doutrina natural da histoacuteria deveria ser subordinada agrave teologia

teocecircntrica ldquoIsso significardquo concluiu Pomian ldquoque se uma contradiccedilatildeo aparecer entre

as duas seraacute a segunda que vai ter a palavra decisivardquo 679

Formas de integrar todas as temporalidades de um dado objeto estudado

ambas as cronosofias projetavam descriccedilotildees de futuro de modo a tornar a histoacuteria do

passado e do presente inteligiacuteveis e completas680 Mas elas o fariam por caminhos

diferentes Uma das discrepacircncias mais significativas entre os pontos de vista

teocecircntrico-cristatildeo e astroloacutegico-natural da histoacuteria encontrava-se nos tratamentos

singulares dados aos problemas do espaccedilo e do tempo O sistema teocecircntrico vecirc as

relaccedilotildees espaciais com desinteresse tendo olhos ldquoapenas para a sucessatildeo temporalrdquo

ao passo que a astrologia reitera com forccedila o papel do espaccedilo da geografia em suma

do lugar como agente historicamente determinante681

Ao estudar as correspondecircncias entre o processo de secularizaccedilatildeo e a

emergecircncia do protestantismo na Inglaterra da primeira modernidade John

Sommerville argumentou que a feacute reformada levava a um entendimento diferente do

espaccedilo no qual capelas monasteacuterios e altares perdiam muitas das suas qualidades

sagradas Por sua vez as experiecircncias do tempo tambeacutem se modificavam com as

alteraccedilotildees nos calendaacuterios eclesiaacutesticos retirando a significaccedilatildeo dos santos682 Eacute

partindo de uma interface entre Pomian e Sommerville que Alison Chapman propotildee

679 POMIAN 1986 p 38-40 A via media estabelecida no seacuteculo XIII por Tomaacutes de Aquino continuou

pautando posiccedilotildees mesmo dentre as religiotildees reformadas John Booker (1602-1667) pregador puritano

tambeacutem foi um astroacutelogo profissional e escritor de almanaques Certamente natildeo dizia nada de

incomum quando escreveu que ldquoas estrelas satildeo letras e os ceacuteus o livro de Deusrdquo ldquoThe stars are letters

and the Heavenrsquos Godrsquos book which day and night we may at pleasure look and thereby learn

uprightly how to liverdquo apud CAPP Bernard English almanacs astrology and the popular press

1500-1800 Londres Farber amp Fauber 1979 p 143 680 Sobre a distinccedilatildeo entre cronometria cronologia e cronosofia ver pp 25-30 Tambeacutem POMIAN

1984 pp V-VI 681 POMIAN 1986 p 38-39 682 SOMMERVILLE John C The secularization of Early Modern England from religious culture to

religious faith Oxford 1992 p 8

218

uma leitura alternativa dos almanaques de efemeacuterides ingleses da primeira

modernidade Aonde autores como David Cressy enxergam o reflexo de um conjunto

nascente de poliacuteticas de memoacuteria e identidade nacional Chapman propotildee observar

tambeacutem uma miriacuteade de reaccedilotildees regionais ndash encabeccediladas por uma teologia natural de

tipo astroloacutegico ndash agraves mudanccedilas ocorridas nos calendaacuterios e nos lugares sagrados Com

a reforma carregando suas tintas no papel de um Deus onipresente a guiar o destino de

um novo povo eleito ndash relativizando assim o sentido do tempo e dos lugares

terrestres ndash os almanaques de efemeacuterides iriam contra a ldquotendecircncia geral do

pensamento protestanterdquo 683

Um almanaque que se proponha a oferecer por exemplo os horaacuterios precisos

para a aurora e o crepuacutesculo ao longo de todo um ano deveraacute fazecirc-lo tendo por base

uma regiatildeo bastante limitada como uma cidade ou um condado Era comum que

essas publicaccedilotildees anuais oferecerem indicaccedilotildees matemaacuteticas para que seus leitores

pudessem converter o valor dos horaacuterios para o uso em outras regiotildees Certos

almanaques eram vendidos com a promessa de possuiacuterem informaccedilotildees vaacutelidas ldquode

modo geral para toda a Inglaterrardquo enquanto outros de maneira provavelmente mais

sincera propagandeavam sua utilidade ldquopara as partes do Sul da Gratilde Bretanhardquo 684

William Lilly (1602-1681) astroacutelogo que se tornou popular com seus

almanaques de prognoacutesticos natildeo deixou de se preocupar com o problema das

aplicaccedilotildees regionais ldquoO mais abusado e celebrado astroacutelogo do seacuteculo XVIIrdquo

realmente construiu uma reputaccedilatildeo para si685 Lilly montou uma teia de contatos na

Inglaterra atraveacutes da qual impunemente praticava o contrabando de dados e profecias

astrais Ele quebrou a tradiccedilatildeo ao publicar textos que deixavam claro ao leitor

exatamente o que deveria saber para interpretar um caso astroloacutegico686 Lilly seguindo

o padratildeo dos dados astronocircmicos publicados nos almanaques do periacuteodo igualmente

683 CHAPMAN Alison A Marking time Astrology Almanacs and English Protestantism In

Renaissance Quaterly Volume 60 Number 4 Winter 2007 p 1260 ldquoI rehearse these broad shifts as

the necessary background to my primary subject the rise of the astrological almanach and the

consequent expansion of an astrologically informed awareness of the significance of time and spacerdquo p

1258 A tese do autor eacute certamente engenhosa Ela oferece um quadro explicativo bastante singular

para o sucesso editorial das efemeacuterides da primeira modernidade na Inglaterra Essa explicaccedilatildeo no

entanto natildeo da conta do igual sucesso desse tipo de publicaccedilatildeo em territoacuterios catoacutelicos como a Franccedila

a Itaacutelia e mesmo a Peniacutensula Ibeacuterica 684 CHAPMAN 2007 1264 685 CAPP 1979 p 57 686 GRAFTON Starry Messengers 2000 p 80

219

propocircs um sistema horoscoacutepico que subordinava suas leituras agraves diferentes

localizaccedilotildees geograacuteficas687

Estima-se que apenas entre os anos de 1664 e 1666 mais de um milhatildeo de

coacutepias desses almanaques foram impressas na Inglaterra Isso fez do gecircnero o maior

best-seller do periacuteodo excetuando-se eacute claro as diversas ediccedilotildees do Livro Sagrado688

Com a baixa nos preccedilos dos livros decorrente da invenccedilatildeo e proliferaccedilatildeo da imprensa

todo o tipo de calendaacuterio textual tornou-se mais e mais acessiacutevel689 Com as

efemeacuterides natildeo seria diferente Desde o seacuteculo XV segundo o dicionaacuterio de Oxford

ldquoos almanaques ou ephemerides comeccedilaram a ser preparados para periacuteodos definidos

como 30 ou 10 anosrdquo e a partir do seacuteculo seguinte jaacute eram editados ano a ano690

Tais publicaccedilotildees tambeacutem podem ser observadas como herdeiras de um tipo

de relaccedilatildeo com o tempo visiacutevel em algumas praacuteticas astroloacutegicas renascentistas que a

sua maneira valorizavam a dimensatildeo do instante Por anos a horoscopia cataacutertica

procurava a partir da observaccedilatildeo do movimento dos astros o momento mais oportuno

para a realizaccedilatildeo de eventos puacuteblicos e privados Popular nos territoacuterios germacircnicos a

teacutecnica foi utilizada para a escolha da data de fundaccedilatildeo da Universidade de

Wittenberg e da inauguraccedilatildeo de uma nova torre na abadia beneditina de Niederaltaich

que ateacute hoje conserva a inscriccedilatildeo de um horoacutescopo datado de 24 de julho de 1514691

Na Inglaterra o dramaturgo e poeta Thomas Middleton (1580-1627) expressou com

ironia essa experiecircncia do tempo ldquoEsposas satildeo como almanaquesrdquo escreveu em uma

687 CHAPMAN 2007 1265 688 Esses nuacutemeros foram estimados por BOSANQUET Eustace F English seventeenth century

almanacks In The Lybrary 10 1930 p 365 Bernard Capp trouxe mais recentemente outros nuacutemeros

ldquoNa deacutecada de 60 do seacuteculo XVII da qual evidencias detalhadas sobreviveram as vendas de

almanaques contaram em meacutedia 400000 coacutepias anuais () CAPP op cit p 23 Robert Houston por

sua vez referiu-se aos almanaques como ldquoo patildeo e mantega dos editores comunsrdquo HOUSTON Robert

Literacy in Early Modern Europe Culture and Education 1500-1800 London New York Longman

1988 p 169 Nuacutemeros para Portugal do seacuteculo XVIII foram trazidos ainda no seacuteculo XIX por

GUIMARAtildeES Ribeiro J Summaacuterio de Varia Histoacuteria Narrativas Lendas Biographias Descripccedilotildees

de Templos e Mommentos Estatiacutesticas Costumes Civis Poliacuteticos e Religiosos de outras eras Lisboa

Rolland amp Semiond 1873 para quem ldquoimprimiam-se por anno 15000 a 17500 folhinhas de algibeira

e 35500 de porta () antes o nuacutemero das de algibeira eta de 20000 e das de porta 40000rdquo p 196 Eacute

possiacutevel inferir que esse tipo de publicaccedilotildees fosse ao lado do livro sagrado o uacutenico tipo de leitura a

que muitas famiacutelias da primeira modernidade tinham acesso 689 Sobre essa questatildeo ver por exemplo os ensaios de CHARTIER Roger LrsquoOrdre des livres

Lecteurs Auteurs Bibliothegraveques en Europe entre XVI et XVIII siegravecle Alineacutea Aix-en-provence 1992

Para um tratamento a respeito de como o advento da imprensa criou as condiccedilotildees de possibilidade para

a revoluccedilatildeo cientiacutefica ndash tornando disponivel todo o corpus claacutessico ao escrutiacutenio criacutetico ver

EISENSTEIN Elizabeth The printing press as an agent of change 2 vol Cambridge 1979 Volume

II 573-575 690 SIMPSON John WEINER Edmund (org) The Oxford English Dictionary Clarendon Press

Oxford 1989 Entrada ldquoalmanachrdquo 691 HUumlBNER op cit p 25

220

de suas tragicomeacutedias ldquonoacutes podemos ter uma nova a cada anordquo Com tais escritos

diria Chapman o tempo comeccedilou a ser experenciado ele mesmo como algo

temporaacuterio692

O tempo efecircmero das efemeacuterides eacute demonstrado pela acircnsia dos letrados da

primeira modernidade em registraacute-lo e ordenaacute-lo Ateacute hoje somos pegos invejando se

surpreendendo ou mesmo fazendo chacotas com a pontualidade praticada nos paiacuteses

de feacute reformada Max Engammare dedicou-se a estudar como o renascimento e a

reforma calvinista produziram uma nova relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo A partir de

um diaacutelogo com autores como Max Weber Michel Foucault e Norbert Elias o autor

persegue a invenccedilatildeo da pontualidade ateacute a eacutetica calvinista segundo a qual todos os

instantes da vida humana deveriam ser consagrados agrave alianccedila com o fundador e

administrador da ordem do tempo Deveriacuteamos entatildeo circunscrever espacialmente as

noccedilotildees de um tempo renascentista ldquoflutuanterdquo ndash como expressaram as palavras

claacutessicas de Lucien Febvre ndash aos paiacuteses de religiatildeo romana693 Na Genebra do seacuteculo

XVI o tempo natildeo poderia se dar ao luxo de flutuar ou perder-se em sono improfiacutecuo

a ideia de aproveitar cada instante de produzir a cada minuto toma uma amplitude

que ndash somada agrave culpa protestante ndash adentra o proacuteprio vocabulaacuterio da eacutepoca A partir

da Formula Vivendi de Martin Bucer da Ratio Studiorum de Bullinger e tambeacutem das

Ephemerides de Cauzabon entre outras fontes o autor propotildee-se a analisar o medo da

perda de tempo cujos loci communes encontrariam siacutentese em uma nova economia

temporal voltada agrave caccedila das ociosidades694

Era uma eacutepoca em que reloacutegios espalhavam-se por todas as cidades da Europa

e encimando-se nos campanaacuterios ritmavam a vida comum do alto dos espaccedilos como

que zelando pela moral puacuteblica das praccedilas e mercados ao lembrar natildeo apenas da

passagem do tempo mas da iminecircncia da morte Michaeumll Beuther jurista e

historiador em nada estranho ao ciacuterculo de Lutero Melanchthon e Erasmus Reinhold

natildeo deixou de escrever uma Ephemeris Historica A obra surge em 1551 para logo

ganhar popularidade com sua experimentaccedilatildeo editorial As paacuteginas da publicaccedilatildeo

692 ldquowives are like almanacs we may have every year a new onerdquo MIDDLETON Thomas No wit no

help like a womanrsquos Lowell Johnson (ed) Lincoln 1976 (1611) 51324-325 CHAPMAN 2007

1270 693 ldquoTemps flottant temps dormantrdquo Lucien Febvre Le problegraveme de lrsquoincroyance au XVIe siegravecle La

religion de Rabelais Eacutedition revue Collection Lrsquoeacutevolution de lrsquohumaniteacute synthegravese collective Albin

Michel Paris 1947 Ver capiacutetulo III do segundo livro Les limites de lrsquoincroyance au XVIe siegravecle Les

appuis de lrsquoirreacuteligion les sciences Toacutepico 4 694 ENGAMMARE Max Lrsquoordre du temps Lrsquoinvention de la poncutualiteacute au XVIe siegravecle Droz Les

seuils de la moderniteacute Vol 8 Genebra 2004

221

ofereciam uma entrada geral para cada mecircs seguida de um artigo especiacutefico para cada

dia concordando a cronologia de latinos de gregos e de hebreus695 Mas sua real

inovaccedilatildeo tipograacutefica consistia em deixar a metade de cada paacutegina em branco

reservando espaccedilo aos leitores de modo que pudessem anotar suas proacuteprias

efemeacuterides Em 1551 o livro eacute publicado na Franccedila696 Franccedilois Rassius cirurgiatildeo

parisiense utilizou essa espeacutecie de cronologia interativa Entre os espaccedilos vazios

precisou informaccedilotildees sobre um evento marcante de sua vida ldquono ano do Senhor de

1551 casei-me com Maria la Prestre depois da meia noite entre a primeira e a

segunda horardquo697

O mais famoso exemplar da Ephemeris Historica de Beuther como um

resquiacutecio dessa era dos diaacuterios estaacute preservado na Biblioteca Municipal de Bordeaux

Nele lemos na entrada para o dia primeiro de agosto que em ldquo1581 quando estava

em Luca fui eleito prefeito de Bordeaux no lugar do senhor Marechal de Bironrdquo Na

entrada do dia 19 de dezembro descobrimos que ldquoem 1584 o rei de Navarra veio me

verrdquo Henrique III ndash que logo a seguir em 1589 seria tambeacutem o IV de seu nome em

Franccedila ndash ldquodormiu na minha camardquo e sequer se serviu de um essai esse teste de

prevenccedilatildeo de envenenamento realizado pela prova do manjar real por um ldquooficial de

bocardquo (officier de bouche) Jaacute para o dia 28 de outubro entendemos que ldquono ano de

1571 () fui feito cavaleiro da ordem de Satildeo Michelrdquo Por fim em uma entrada mais

precisa dia 5 de julho estaacute escrito que ldquono ano de 1573 por volta das cinco horas da

manhatilde em Montaigne nasceu de minha esposa Franccediloise de La Chassaigne e de mim

uma menina que foi o terceiro filho de nosso casamentordquo 698 Natildeo era apenas a respeito

695 BEVTHERI Michaelis Ephemeris historica Eivsdem de annorum mundi concinna dispositione

libellus Ex officina Michealis Fezandat et Roberti Grandion Taberna Graphyana Paris 1551 696 A foacutermula tipograacutefica de Beuther seria tambeacutem reeditada por casas editoriais inglesas Com o

Almanack de Thomas Hill publicado em 1571 e pensado na forma de um Livro da Memoacuteria oferecia

aos leitores uma coluna vazia na margem inferior de cada paacutegina Com Thomas Bretor Jonathan Dove

Daniel Browne e Richard Allestree uma geraccedilatildeo mais tarde os almanaques comeccedilaram a deixar

grandes colunas vazias bem no meio das paacuteginas de calendaacuterios Alison Chapman lembra o caso do

escritor John Evelyn (1620-1706) que ldquoresumiu essa preocupaccedilatildeo em recordar e precisar o tempo de

um evento Ele escreve que lsquocomecei a observar as coisas mais pontualmente das quais escrevi na

parte em branco do Almanaquersquo e suas notas satildeo cada vez mais precisas em relaccedilatildeo ao tempo e ao

espaccedilordquo EVELYN John The Diary of John Evelyn De Beer (ed) Oxford 1955 176 ver

CHAPMAN 2007 1282-1284 697 ldquoAnno D 1551 uxorem duxi Mariam la Prestre inter primam et 2am a media nocterdquo Citado por

LAUROUSSE Pierre Grand dictionnaire universel du xix siecle Paris Grand Dictionnaire Universel

Verbete Eacutepheacutemeacuteride p 689-6 698 O documento encontra-se na Bibliothegraveque municipale de Bordeaux Fonds patrimoniaux Ms 1922

e tambeacutem foi disponibilizado online recentemente em trecircs versotildees diplomaacutetica regularizada e

modernizada LEGROS Allan (org) Beuther annoteacute par Montaigne Bibliothegraveques Virtuelles

Humanistes Eacutedition selon trois modes successifs 20022014 Disponiacutevel em httpwwwbvhuniv-

toursfrMONLOEBeutherasp Acesso em 09072014 Refencio aqui os trechos supracitados em

222

de seu cursus honorum que Michel de Montaigne escrevia nas Efemeacuterides Histoacutericas

Em duas entradas dias 10 e 20 de julho ambas relativas ao ano de 1588 ele reclama

de dores no peacute esquerdo causadas por ldquouma espeacutecie de gotardquo 699

Tempo da moral privada as efemeacuterides tambeacutem poderiam contar o tempo da

moral puacuteblica quiccedilaacute em toda sua emaranhada trama poliacutetica caso o autor dos ensaios

ou outro membro da famiacutelia eacute claro tivesse interesse em registraacute-las para a

posteridade O supracitado Henrique de Bourdon chefe do partido protestante logo

se faria amigo e protetor Jean Lacouture pergunta onde estava Montaigne na fatiacutedica

noite de 24 de agosto de 1572 Ainda mais importante o que ele estaria fazendo nos

dias 3 4 e 5 de outubro quando trecircs centenas de huguenotes foram massacrados a dez

leacuteguas de sua casa em Bordeaux ldquoTeria sido faacutecil para ele manifestar sua reprovaccedilatildeo

ou simplesmente sua tristeza no lsquoBeutherrsquo a efemeacuteride familiar longe dos olhos do

puacuteblico das autoridades e dos fanaacuteticos armadosrdquo Mas Montaigne preferiu o silecircncio

As paacuteginas que contavam os primeiros dias do mecircs de outubro foram arrancadas ldquoPor

quem Por ele proacuteprio temeroso do julgamento que havia proferido sobre o ato de

seus concidadatildeosrdquo 700 Natildeo temos como saber Mas natildeo seria difiacutecil visualizar um

Montaigne consciente dos usos poliacuteticos que poderiam ser feitos do seu passado a

partir das efemeacuterides Ou quem sabe outro membro da famiacutelia Talvez sua esposa

Franccediloise quem sabe Leacuteonor sua filha ainda Marie a neta ou Claude-Madeleine

bisneta mulheres que se sucederam na tarefa de manter viva ateacute o seacuteculo XVIII a

tradiccedilatildeo de lembrar ou esquecer dos eventos marcantes da famiacutelia nos espaccedilos em

branco de seu exemplar da Ephemeris Historica de Beuther701

ldquoEmbora seja datado da antiguidaderdquo escreveu Eileen Reeves ldquoo almanaque

floresceu na revoluccedilatildeo impressa do final do seacuteculo XVrdquo Uacutetil ao uso imediato em

ordem a partir da versatildeo regularizada ldquo1581 estant a Lucques ie fus esleu maire de bourdeaus en la

place de mōsieur le mareschal de Biron ()rdquo(p 19) ldquo1584 le roy de nauarre me uint uoir a mōtaigne ou

il nrsquoauoit iamais este et y fut deus iours serui de mes ians sans aucun de ses officiers il nrsquoy souffrit ny

essai ny couuert et dormit dans mon()rdquo (p 26) ldquoLrsquoan 1571 suiuant le comādemāt du roy amp la

despesche que sa maiestegrave mrsquoen auoeumlt faicte ie fu faict chaeualier de lordre s michel ()rdquo (p 23) Lan

1573 enuiron les cinq heures du matin naquit de frāccediloise de la chassaigne ma fame et de moy a

montaigne une fille qui fut le troisiesme ēfant de nostre mariage ()(p 15) Sobre o essai ver a nota

lateral na ediccedilatildeo modernizada p 26 699 Ibidem ediccedilatildeo regularizada 10 de julho ldquo1588 entre trois et quatre apres midi estant logegrave aus faus

bours saint germein a Paris et malade drsquoun espece de goutte () 20 de julho 1588 entre trois et

quatre apres midi estant a Paris et au lit a cause drsquoune dolur qui mrsquoauoit pris au pied gauche trois iours

dauant qui sera a laduanture unrsquoespece de goutte () p 17 700LACOUTURE Jean Montaigne a Cavalo Record Rio de Janeiro 1998 p 161 701 Sobre a linhagem matriarcal das efemeacuterides da famiacutelia Montaigne ver LEGROS Allan (org)

Introduction In Beuther annoteacute par Montaigne op cit sp O texto natildeo faz menccedilatildeo ao silecircncio a

respeito da noite de Satildeo Bartolomeu

223

diversos aspectos da vida civil e domeacutestica suas paacuteginas traziam toda espeacutecie de

informaccedilatildeo a respeito do futuro proacuteximo ldquoquando eclipses solares e lunares

ocorreriam quando eram esperadas mudanccedilas nos padrotildees climaacuteticos quando

grandes feriados religiosos e datas festivas deveriam ser celebradasrdquo e mesmo

ldquoquando sangrias banhos e cortes de cabelo seriam melhor realizadosrdquo Na Itaacutelia para

oferecer dados astronocircmicos precisos assim como no resto da Europa esses panfletos

precisavam se especializar em uma determinada regiatildeo Pouco a pouco comeccedilavam a

publicar pequenas notas locais rumores e novidades Matteo Franzesi secretaacuterio na

Cuacuteria Romana entre a deacutecada de 30 e 40 do seacuteculo XVI relacionou prognoacutesticos com

a sede por notiacutecias ldquoDeixe que o adivinho com base em conjecturas e discussotildees

astrologizerdquo702

No final do seacuteculo XVI sucessivas bulas papais tentavam lidar condenar ou

censurar panfletos de notiacutecias que mesmo natildeo necessariamente astroloacutegicos em

origem costumavam arriscar seus prognoacutesticos A arte nuova dos publicistas

preocupava tanto a atenccedilatildeo dos pontiacutefices de Satildeo Pedro quanto as velhas tradiccedilotildees

secretas Como mostra Eileen Reeves o contrabando entre notiacutecias e almanaques

parece ter se intensificado a partir das primeiras deacutecadas do seacuteculo XVII com o

raacutepido desenvolvimento da astronomia e o aumento das tiragens impressas A

historiadora estudou aquilo que Franccedilois Hartog chamou em sua investigaccedilatildeo sobre a

evidecircncia da histoacuteria de ldquodescoberta ocular do mundo a partir da Renascenccedilardquo703 Os

astrocircnomos natildeo apenas abriam os olhos mas ampliavam sua visatildeo pela arte com a

invenccedilatildeo do telescoacutepio por Galileo e seu posterior aprimoramento com Kepler

A observaccedilatildeo dos ceacuteus alimentava o impresso que tratava de se fazer ouvir

como Mensageiro das estrelas a respeito da descoberta das luas mediceas do

surgimento de estrelas novas e da constataccedilatildeo que lua natildeo era como muitos

defensores do texto pensavam uma esfera lisa e perfeita mas possuidora de

irregularidades similares agraves presentes no mundo sujeito agrave geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo Em

1613 Adriano Politi publicou o seu Dicionaacuterio Toscano Nesse resumo do Dicionaacuterio

de Linguagem Italiana ndash lanccedilado em 1612 por uma academia florentina ligada a

Galileo ndash Politi adicionou uma nova entrada gazetta termo talvez derivado de uma

pequena moeda cunhada em Veneza ldquolsquoUma gazettardquo diz o verbete ldquoeacute composta de

702 FRANZESI Sopra le nouve 207-8 apud REEVES Eileen Evening News Optics Astronomy and

Journalism in Early Modern Europe University of Pennsylvania Press Philadelphia Kindle version

sp 2014 Texto que agora sigo 703 HARTOG 2011 p 143

224

paacuteginas de informaccedilotildees trazidas por mexeriqueirosrdquo que em latim poderiam ser

chamadas de ldquobreve comentaacuterio a respeito de eventos puacuteblicos ou lsquoephemeridesrsquordquo 704

Em Portugal os almanaques astroloacutegicos eram chamados de prognoacutesticos

sarrabais ou lunaacuterios dos tempos Pequenas e de largas tiragens essas peccedilas de

periodicidade anual seguiam os padrotildees editoriais comuns ao gecircnero trazendo a um

puacuteblico semiletrado todo o tipo de informaccedilotildees utilitaacuterias associadas a prognoacutesticos

celestes e indicaccedilotildees das fases da lua assim como eventuais eclipses e conjunccedilotildees

planetares As efemeacuterides lusitanas configuraram uma grande padronizaccedilatildeo embora

pouco a pouco a essa estrutura homogecircnea fossem incluiacutedos outros conteuacutedos

informativos O valenciano Francisco de Gusman jaacute trazia em seu Prognostico y

Lunario de los Tiempos para ano de 1610 listagens das famiacutelias nobres de Espanha

no que foi seguido no seacuteculo seguinte pelas contrapartes portuguesas representadas

pelos almanaques de Rodrigo de Sousa Alcaforado e Leonardo Vaz de Brito Era

igualmente recorrente a divulgaccedilatildeo de aspectos e descriccedilotildees das proviacutencias reais ao

longo dos periacuteodos filipino e brigantino705

Durante o seacuteculo XVII seguindo uma tendecircncia perceptiacutevel por toda a Europa

continental e insular os almanaques portugueses em conteuacutedo e em vocabulaacuterio

igualmente comeccedilam a oferecer avisos e novidades aos seus leitores Mas elas nem

sempre tratavam dos ceacuteus Notiacutecias a respeito das guerras com a Espanha ou ainda

com os holandeses que ocupavam o nordeste brasileiro satildeo publicadas nos lunaacuterios

dos tempos por vezes em secccedilotildees jaacute indicadas com essa finalidade nos proacutelogos Eacute o

que se pode observar nos escritos de Antocircnio Pais Ferraz que em seu Prognostico e

Lunario do ano de 1656 trazia a notiacutecia da libertaccedilatildeo de Pernambuco706

E quanto agrave credibilidade desses perioacutedicos e seus conteuacutedos ldquoEste ano os

cegos veratildeo muito pouco os surdos ouviratildeo bastante mal os mudos quase natildeo

704 Na traduccedilatildeo de Reeves ldquoa gazetta is composed of sheets of reports from newsmongers in Latin one

might phrase it lsquobrief commentary on public eventsrsquo or lsquoephemeridesrsquordquo POLITI Adriano Dittionario

toscano compendio del Vocabolario della Crusca Compilato dal sign Aggiuntoui assaissime voci e

auertimenti necessarij per il scriuere perfettamente toscano Venetia appresso Gio Guerigli amp

Francesco Bolzetta MDCXV p 359 Apud REEVES op cit sd 705 Continuo seguindo CAROLINO Luiacutes Miguel Ciecircncia Astrologia e Sociedade a Teoria da

Influecircncia Celeste em Portugal (1593-1755) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian Porto 2003

principalmente cap 6 p 204 E tambeacutem CAROLINO Luiacutes Miguel A escrita celeste almanaques

astroloacutegicos em Portugal nos seacuteculos XVII e XVIII Rio de Janeiro Access 2002 706 FERRAZ Antoacutenio Pais Prognostico e Lunario do anno de 1656 com as conjunccedilotildees e mais

aspectos da Lua com o Sol e mudanccedilas de tempo E alguns avisos muy importantes para os

Lavradores Calculando ao meridiano de Lisboa cabeccedila da Lusitana Composto por Filosofo e

Mathematico natural desta corte e Cidade de Lisboa Lisboa por Joatildeo Alvarez de Leatildeo 1655 fl1v

apud CAROLINO 2003 p 206

225

falaratildeo os ricos se sentiratildeo um pouco melhor do que os pobres e os que gozarem de

boa saacuteude melhor do que os doentesrdquo707 O prognoacutestico como saacutetira andava de par

como se vecirc com os primoacuterdios da imprensa efecircmera Mais tarde no entanto esse

topos chegaraacute a dominar o gecircnero Com a crescente perda de legitimidade da

cosmologia aristoteacutelica ao longo dos seacuteculo XVII e XVIII a ascensatildeo da astronomia e

o estatuto ambiacuteguo atribuiacutedo agraves teorias da influecircncia celeste ndash ora usadas pelos

priacutencipes ora condenadas agrave astrologia ldquopopularrdquo ndash o escaacuternio e o burlesco tomam

conta dos almanaques de efemeacuterides

Mais ao norte o Poor Robinrsquos previa chuvas para a Inglaterra e mortes para os

mais velhos Em Portugal os feitores de almanaques como uma primeira medida

defensiva tambeacutem esconderiam-se por meio de pseudocircnimos que sussuravam o

oacutebvio A descrenccedila na influecircncia dos ceacuteus mesmo por parte dos que se diziam saacutebios

no assunto jaacute natildeo parecia um problema ldquoQuem se quizer divirtir fale comigordquo

escreveu um astroacutelogo saacutetiro ldquoquem quizer instruir-se em Astrologias leya por

outrosrdquo708 Os prognoacutesticos propriamente ditos ndash que nos sarrabais lusitanos

raramente ousavam versar sobre a vida dos reis ndash tornam-se mais compaacutectos

resumindo-se a descrever os ciclos naturais e a prever aspectos climaacuteticos e utilitaacuterios

como a menccedilatildeo dos horaacuterios da aurora e do crepuacutesculo e a indicaccedilatildeo das fases da lua

e das estaccedilotildees do ano

Em Portugal a crise de legitimidade dos prognoacutesticos levava os feitores de

almanaques natildeo sem ironia a declarar seus leitores como inimigos lanccedilando

vitupeacuterios contra colegas e apresentando-se ndash ao sabor de uma tradiccedilatildeo satiacuterica que

707 RABELAIS Franccedilois Prognoacutesticos Pantagrueacutelicos In ROSSI Paolo (org) Visotildees do fim do

mundo Renata Cordeiro (trad) Satildeo Paulo Landy Editora 2006 p 86 No que continua o prognoacutestico

ao longo da paacutegina seguinte ldquoVaacuterios carneiros bois porcos aves frangos patos morreratildeo mas tatildeo

cruel mortandade natildeo se abateraacute sobre os macacos e os dromedaacuterios Neste ano a velhice seraacute

incuraacutevel por causa dos anos passados Os lacrimosos sentiratildeo grandes dores nos lados do corpo Os

que tiverem diarreacuteia montaratildeo sempre em selas furadas Neste ano os catarros desceratildeo do ceacuterebro ateacute

os membros inferiores A dor drsquoolhos seraacute muito contraacuteria agrave boa visatildeo Na Gasconha as orelhas seratildeo

curtas e mais raras do que de costume E quase universalmente reinaraacute uma doenccedila muito horriacutevel e

temida maligna perversa assustadora e de dar medo que deixaraacute o mundo muito aterrorizado sob a

sua influecircncia muitas pessoas natildeo saberatildeo de que maneira fazer as flechas e muito amiuacutede tentaratildeo

resolver esses problemas com fantasias fazendo planos sobre a pedra filosofal e as orelhas de Midas

Tremo de medo quando penso nisso pois eu lhes digo que essa doenccedila seraacute epidecircmica e Averrois a

chama de falta de dinheiro E devido ao cometa do ano passado e da retraccedilatildeo de Saturno no hospital

morreraacute um grande patife cheio de catarros e bexigas e por ocasiatildeo de sua morte haveraacute uma sediccedilatildeo

horriacutevel entre os gatos e os ratos entre os catildees e as lebres entre os falcotildees e os patos entre as focas e

os ovosrdquo 708 FIALHO (psued) Fuas Feio Sarrabal cidadaotilde Astrologo Casquilho Desenfado do Povo Remedio

dos Cegos e Palito dos Criticos ou Lunaacuterio verdadeiro (ou para cada hum chamar como quizer)

para o anno de 1745 p 5 Apud CAROLINO 2003 p 229 que fala em uma ldquototal descrenccedila no juiacutezo

dos astroacutelogosrdquo

226

poderia ser recuada agrave Histoacuteria Verdadeira de Luciano de Samoacutesata ndash como falsaacuterios

sem credibilidade Se havia alguma hesitaccedilatildeo em condenar a influecircncia celeste para

fora dos regimes de verdade do esclarescimento o terremoto de 1755 jaacute observado

por seus contemporacircneos como fenocircmeno meramente natural veio sepultar a

pretensatildeo dos astroacutelogos e sedimentar sobre eles os signos da mentira e da

inutilidade709 O seacuteculo XVIII foi o momento em que como afirmou Luiacutes Miguel

Carolino ao emular as fontes os almanaques entram pelo ldquobeco da astrologiardquo

ldquoSegurem-me agarraem-merdquo como certa feita escrevera um pobre cego ldquoprendaotilde-

me esse novelleiro esse cambaio esse embusteiro esse tomba lobos esse

historiadorrdquo homem que agora ldquoentra pelo becco da Astrologiardquo710

Como jaacute demonstravam os cacircnones para o leitura e uso das efemeacuterides ndash

publicados na metade do seacuteculo XVI por Oronce Fineacute ndash o saacutebio celeste era um

defensor do texto da tradiccedilatildeo e da autoridade escrita Com a observaccedilatildeo dos ceacuteus

intensificada no iniacutecio do seacuteculo seguinte por Galileo e Kepler essa realidade iria se

inverter Eacute sobre esse problema que Herveacute Dreacutevillon investigando a Astrologia na

Franccedila do Grande Seacuteculo (1610-1715) inicia o seu inqueacuterito ldquoAstrocircnomo ou

astroacutelogordquo escreveria o historiador ldquoesse homem eacute antes de mais nada um leitorrdquo

Abandonando por um momento a leitura dos claacutessicos como Ptolomeu ele passaria agrave

autoacutepsia do cosmos No entanto o que ele enxerga perguntaria Dreacutevillon senatildeo um

ldquoconjunto de signos de uma linguagem celeste na qual a astrologia forma o alfabeto e

a gramaacuteticardquo Na tarefa de decifrar a voz das esferas os Hallucinati voltam-se

novamente agrave leitura no que poderiacuteamos acrescentar que natildeo deixam de escutar

estrelas ldquoEsse eacute o universo dos astroacutelogos leitores de livros e leitores do mundordquo711

709 Sobre a relaccedilatildeo entre o terremoto e a descrenccedila na astrologia em Portugal Ver CAROLINO 2003

p 333-343 710 PEQUENO Antocircnio (pseud) O Cego astrologo Antonio Pequeno filho bastardo do Sarrabal

Saloyo offerece A todos os cegos cegonhas e tortos este grande Prognostico para o anno de 1739

terceiro depois do Bissexto Calculado em Cataluna e ajustado nas Lunaccediloens agraves duas Lisboas Pela

altura so seu Polo 38 graus e 42 minutos de curiosa elevaccedilatildeo ampc Lisboa Officina de Miguel

Rodrigues 1738 pp 2-3 apud CAROLINO 2003 p 199 e 201 Grifos meus 711 DREacuteVILLON Herveacute Lire et eacutecrire lrsquoavenir Lrsquoastrologie dans la France du Grand Siegravecle (1610-

1715) Seysell Champ Vallon 1996 p 10 Grifos meus Entre os seacuteculos XVI e XVII momento da

descoberta ocular do cosmos o autor opotildee duas fontes a primeira as Tableaux accomplis de tous les

arts libeacuteraux publicadas por Christophe de Savigny em 1587 que afiliam a astrologia agrave fiacutesica dos

corpos simples ignorando a astronomia a segunda o Dictionnaire Universel de Furetiegravere publicado

em 1690 que vai opor a astronomia agrave astrologia com a primeira expressando ldquoo maior alcance do

espiacuterito humanordquo e a segunda qualificada como ldquociecircncia vatilde e incertardquo Como um meio termo

publicado na metade do seacuteculo XVII encontramos no Traiteacute des supertitions de Jean-Baptiste Thiers

a astrologia simplesmente definida como uma arte que lecirc signos nos ceacuteus Idem ibidem pp 11-13

227

Na Praga do seacuteculo XVII como mostrou mais recentemente Eileen Reeves as

novidades encontradas nos ceacuteus eram acompanhadas de notiacutecias terrestres relaccedilotildees

tanto confusas entre as duas e disputas publicistas entre jesuiacutetas e protestantes712

Dreacutevillon escrevendo sobre a Franccedila atacou o problema em duas frentes a partir de

um exame da recepccedilatildeo da astrologia ao longo do Grande Seacuteculo e igualmente de um

estudo a respeito dos motivos que levaram os monarcas franceses a condenar e enfim

lanccedilar agrave oacuterbita das ldquosuperticcedilotildees do populachordquo um tipo de saber que nos anos

imediatamente anteriores natildeo haviam cansado de utilizar713

Uma das contribuiccedilotildees do trabalho de Dreacutevillon reside precisamente em

demonstrar que a perda de prestiacutegio da astrologia natildeo se resume agraves criacuteticas de uma

Repuacuteblica das Letras Se Reeves destacou que as bulas papais de 1586 e 1631 natildeo

voltavam suas vozes apenas contra os conhecimentos astroloacutegicos mas igualmente a

todo tipo de publicismo relacionado a elas o historiador francecircs ressaltou que em se

tratando de condenar os saberes celestes os documentos pontificais natildeo iam muito

aleacutem das criacuteticas agraves abordagens judiciaacuterias e divinatoacuterias714 Manobrando entre os

ldquoexcessosrdquo de suas praacuteticas sensiacuteveis ao problema do livre arbiacutetrio os apoacutestolos da

influecircncia celeste mantiveram-se ativos Natildeo se tratava ainda de condenar a validade

de seus pressupostos mas certo uso de seu repertoacuterio Com as ordonnaces de 1560 e

1576 reforccediladas pela declaraccedilatildeo real de 1628 os almanaques de efemeacuterides contendo

prognoacutesticos de natureza poliacutetica foram condenados e proibidos o que natildeo impediu

no entanto que consultas inviduais a astroacutelogos fossem realizadas715

Dreacutevillon mostra por outro lado como essa foi a era da paulatina

marginalizaccedilatildeo social e intelectual da astrologia popular Com os almanaques de

Troye as efemeacuterides manteacutem as mesmas rubricas o mesmo tipo de previsotildees

metereoloacutegicas e tambeacutem a mesma linguagem por vezes hermeacutetica que

712 Ver REEVES 2014 principalmente cap 1 e 2 713 Acompanho tambeacutem a leitura de GUERY Alain Herveacute Dreacutevillon Lire et eacutecrire lrsquoavenir

Lrsquoastrologie dans la France du Grand Siegravecle Resenha Annales Histoire Sciences Sociales 1999

Volume 54 Numero 2 pp 415-117 714 A bula papal de 1586 ndash Contra exercedentes artem Astrologiae judicariae ndash baseava-se na oposiccedilatildeo

entre astrologia natural e astrologia judiciaacuteria A primeira era a arte de prever os efeitos naturais da

influecircncia celeste (clima ventos tempestades trovotildees cometas eclipses etc) a segunda tratava de

prever eventos humanos (guerras queda de Estados morte de reis e papas etc) DREacuteVILLON op cit

p 33 e 79 O historiador francecircs debate essa distinccedilatildeo no ldquoDiscours sur lrsquoastrologie judiciairerdquo que

Richelieu encomendou ao orador Gondren sublinhando que as criacuteticas agrave astrologia natildeo se resumem

pelo seu confronto com a racionalidade cientiacutefica Tratava-se no entanto de uma distinccedilatildeo recorrente

utilizada por autores tatildeo diacutespares quanto Hobbes e Calvino Ver WEBER Dominique Hobbes et les

deacutesir des fous rationaliteacute preacutevisions et politique Presses de la Sorbonne Paris 2007 p 117 715 Segundo CAPP 1979 45 na Inglaterra em alguns casos os almanaques serviam para divulgar os

serviccedilos individuais dos astroacutelogos

228

caracterizava o gecircnero na Franccedila A diferenccedila Ela residia tatildeo somente na

apresentaccedilatildeo papel ruim caracteres borrados xilogravuras grosseiras Tais eram as

caracteriacutesticas das publicaccedilotildees de Pierre I de Larivey o Claude Morel de Troyes que

fez escola desde seu Almanaque para o ano da graccedila de mil seiscentos e onze ateacute a

morte de seu sobrinho e continuador Pierre II de Larivey em 1634716 Como algumas

deacutecadas antes havia sublinhado Geneviegraveve Bollegraveme esse tipo de publicaccedilatildeo era

popular no interior da Franccedila natildeo tanto pelo seus conteuacutedos astroloacutegicos mas

principalmente pelas informaccedilotildees uacuteteis relativas ao cotidiano camponecircs717

Seguindo a tensatildeo antiga entre bonae artes e externae supertitiones Richelieu

natildeo deixaria de chamar a Paris o autor da Citeacute du soleil obra publicada em diversas

versotildees entre 1602 e 1643 Tommaso Campanella imaginou em um diaacutelogo de estilo

platocircnico entre um cavaleiro hospitalaacuterio e um genovecircs uma sociedade utoacutepica

localizada na ilha de Taprobana regida pela ldquoordem da naturezardquo e governada por um

ldquoMetafiacutesicordquo Seus habitantes adoravam o gerador uma vez que ldquono Sol eacute a imagem

do todo poderoso que eles reconhecem sauacutedam nele o Criador sua figura sua estaacutetua

viva eacute ele quem distribui a luz o calor e a vidardquo 718 Dreacutevillon faz uma leitura dos

termos ldquofigurardquo e ldquoestaacutetua vivardquo a partir do sentido que a filosofia hermeacutetica de

Campanella os conferiria ldquoDessa formardquo defendeu o historiador ldquoo sol natildeo faz agraves

vezes de criador ele eacute o criadorrdquo ligando-se por uma relaccedilatildeo de similitude na qual o

ldquoMetafiacutesicordquo sacerdote-rei ocuparia o terceiro niacutevel da representaccedilatildeo719

Representaccedilatildeo que como se pode ver em duas fontes apresentadas pelo autor

corresponderia a certa visatildeo de Luiacutes XIII

Em 1614 surge um panfleto condenando Morgard autor que dava seu nome a

uma popular efemeacuteride astroloacutegica As Memoacuterias de Richelieu chegam a lembrar o

caso quando comentam que ldquoos almanaques desde o comeccedilo do ano soacute falavam da

guerrardquo O Anti-Morgan atacava pessoalmente o astroacutelogo homem que natildeo tinha

ldquooutra estima perante o mundo senatildeo a de um fazedor de almanaquesrdquo Mas natildeo se

716 DREacuteVILLON op cit 145 717 ver BOLLEgraveME Geneviegraveve Les Almanachs Populaires aux XVIIe et XVIII siegravecles Essai d`histoire

sociale Paris Mouton 1969 pp 14-16 718 ldquodans le Soleil crsquoest lrsquoimage du tout puissant qursquoils reconnaissent ils saluent en lui le Creacuteateur sa

figure sa statue vivante crsquoest lui qui distribue la lumiegravere la chaleur et la vierdquoCAMPANELLA T La

Citeacute du Soleil In Voyages aux pays de nulle part Paris Robert Laffront 1990 (1623) p 269 apud

DREacuteVILLON op cit p 110 719 ldquoMais ce systegraveme drsquoeacutequivalence symbolique entre le Soleil et le Creacuteateur ne srsquoarrecircte pas lagrave puisque

le grand precirctre de la Citeacute du soleil srsquoappelle le ldquoMeacutetaphysicienrdquo ou encore le ldquoSoleilrdquo Ainsi le

monarque lrsquoimage et le creacuteateur ne font qursquoun ne sont qursquoun dans cette relation de similitude agrave trois

niveauxrdquo Idem Ibidem

229

tratava de uma criacutetica ao saber celeste Para Dreacutevillon ldquoa acusaccedilatildeo de uso iliacutecito da

astrologia foi apenas um pretextordquo Ou natildeo vemos o autor anocircnimo do panfleto de

1614 ensaiando uma tentativa de ldquorestauraccedilatildeo do prestiacutegio da monarquia pela

exploraccedilatildeo da metaacutefora solar e das trecircs propriedades do solrdquo em uma cena que

contempla os raios da estrela sua circularidade e sua luz ldquoaos quais satildeo associadas

lsquotrecircs virtudes particulares anexas agrave pessoa real () a Majestade o Poder e a

Justiccedilarsquordquo720 Quatro anos antes no contexto do assassinato de Henrique IV conforme

Reeves muitos haviam visto na publicaccedilatildeo do Mensageiro das Estrelas mediceas de

Galileo o prenuacutencio de uma regecircncia italiana na Franccedila721 No conturbado ano dos

Estados Gerais imagens inspiradas no hermetismo de Campanella disputavam espaccedilo

com as previsotildees dos almanaques e ldquoenunciando as propriedades do solrdquo afirmava-

se como declarou Dreacutevillon ldquouma definiccedilatildeo da monarquiardquo 722

Assim como aconteceria na Inglaterra da Guerra Civil aonde os almanaques

de efemeacuterides chegaram a ser vistos como ldquolsquopropaganda de guerrarsquordquo utilizada por

ldquoambos os lados do conflitordquo e seus autores ldquoformadores de opiniatildeordquo esse tipo de

primeiro publicismo emaranhava-se entre as disputas e quimeras poliacuteticas francesas

do seacuteculo XVII723 Logo no entanto o rei sol que refletia as imagens do Metafiacutesico

de Campanella declararia natildeo precisar mais da influecircncia de outros astros para

governar na Terra Afinal natildeo era apenas o ldquoavenir radieuxrdquo da Cidadela do Sol que

reluzia em certos usos das efemeacuterides Em 1631 e mesmo antes em 1614 astroacutelogos

foram acusados de crime lesa-majestade Jaacute na metade do seacuteculo a Previsatildeo

Maravilhosa de Sieur Andreas atribuiacuteda ao ldquogrande astroacutelogo Eistadius nas suas

Efemeacuteridesrdquo prognosticava com precisatildeo o eclipse total de 1654 E indicando uma

ldquopavorosa escuridatildeordquo de trecircs horas na verdade alardeava a proximidade do fim dos

tempos que seria antecedida pela conflagraccedilatildeo de todos os poderes pela a subversatildeo

720 RICHELIEU Meacutemoires In Michaud et Poujoulat Nouvelles Collections des meacutemoires pour servir

agrave lrsquohistoire de France Paris 1838 2 seacuterie vol 7 p 65 LrsquoAnti-Morgard (anocircnimo) Sur ses preacutedictions

de la presente anneacutee mil six cens quatorze Paris Anthoine de Breuil 1614 p 4 apud DREacuteVILLON op

cit p 102 Na mesma paacutegina o autor lembra que Pierre de lrsquoEstoile jaacute descrevia a censura de Maria de

Meacutedicis sobre o Almanaque Morgar para 1611 com a justificativa de que aquela publicaccedilatildeo ldquopreacutedisait

toutes choses funestes et malencontreuses comme pestes guerres renversements drsquoeacutetats avec morts

de rois et de reinesrdquo Pierre de lrsquoEstoile Journal pour la regravegne de Henri IV (1610-1611) Vol 3 Paris

Gallimard 1960 p 198 721 Para a recepccedilatildeo do Sidereus Nuncius na Praga e na Florenccedila de comeccedilos do seacuteculo XVII ver

REEVES op cit principalmente cap 2 722 No que ele completa ldquoLrsquoastrologie ne constitue pas une repreacutesentation neutre elle participe agrave la

deacutefinition du pouvoir et de sa missionrdquo DREacuteVILLON op cit 110 723 As expressotildees satildeo de FERREIRA Juliana Mesquita Hidalgo Propaganda e criacutetica social nas

cronologias dos almanaques astroloacutegicos durante a Guerra Civil inglesa no seacuteculo XVII In Revista

Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo Dezembro de 2007 V 27 N 54 pp 199 e 200

230

de todas as autoridades seguidas por discoacuterdias guerras querelas e divisotildees724 Natildeo

poderiam haver notiacutecias mais indesejaacuteveis aos ciacuterculos de poder

Cleacuterigos literatos da corte e homens proacuteximos agrave Academia Real de Ciecircncias

eram os principais grupos de adversaacuterios da astrologia Se durante o reino de Luiacutes

XIII a luta do Estado se deu no sentido de controlar a imprensa fazendo prevalecer as

prerrogativas celestes oficiais com Luiacutes XIV o exemplo do rei cederaacute aos argumentos

de Port-Royal suprimindo a proacutepria gramaacutetica dos genethliaci A astrologia superior

ou inferior no que era tambeacutem chamada de alquimia lia na ordem dos signos certas

virtudes ndash acompanhadas de luz e calor ndash capazes de modificar o mundo material Ao

aceitar-se a Loacutegica ou a arte de pensar de Arnauld e Nicole publicada em 1662 natildeo

seria mais possiacutevel no entanto confundir substacircncia e representaccedilatildeo palavras e

coisas Com o eacutedito de 1682 realizado sob a eacutegide da Academia de Ciecircncias as

especulaccedilotildees astroloacutegicas a respeito da analogia rei-sol vatildeo ser banidas por Luiacutes XIV

que passa a defender uma concepccedilatildeo binaacuteria da representaccedilatildeo abandonando a trama

hermeacutetica que o emaranhava a outros dois signos Como sol o monarca agora fulgura

por si soacute sob os auspiacutecios da razatildeo Esse eacute precisamente o periacuteodo em que cresce

publica-se e repete-se a importacircncia da noccedilatildeo de supersticcedilatildeo na polecircmica contra os

apoacutestolos da influecircncia celeste725 Em 1699 Pierre Bayle perguntava-se por que esses

saberes continuavam a seduzir todo um seacutequito lamentando que ldquoas grandes luzes 724 ldquoToutes les puissances seront presque aneanties em sorte que toute authoriteacute amp superioriteacute seront

rejetteacutees par les Subjets Les dissentions guerres quereles amp diuisions srsquoeschauferont amp

srsquoenflammeront em sorte que tout Empire Chrestien sera em danger ()rdquo ANDREAS Prediction

merveillevse Du Sieur Andreas Astrologue amp Mathematicien de Padouumle Sur lrsquoEclipse de Soleil qui se

ser ale douziesme iour drsquoAoust MDCLIV Avec son explication amp lrsquoapprobation drsquoEistadius Grand

Astrologue A Paris Par Iacques Beslay 1654 p 4-5 725 Sobre os grupos da Repuacuteblica das Letras que detratavam a astrologia ver DREacuteVILLON op cit p

211 Sobre a Loacutegica de Port-Royal ver pp 179 190-191 195 251 Sobre a polecircmica contra a

astrologia e as noccedilotildees de supersticcedilatildeo e credulidade ver 242 A tese do autor eacute na verdade bem mais

ambiciosa do que julguei necessaacuterio incorporar defendendo que Luiacutes XIV ao banir a leitura

astroloacutegica afetava a eficaacutecia de seu sistema de representaccedilatildeo o qual seria ldquofundado nos mesmos

coacutedigos simboacutelicosrdquo ldquoEn deacutefendant une conception purement meacutecaniste de la convention de

repreacutesentation le roi introduit une faille dans le systegraveme des similitudes et des eacutequivalences

symboliques Or ce systegraveme cette coheacutesion entre toutes les parties du monde fonde aussi le mystegravere de

la preacutesence reacuteelle du roi dans ses repreacutesentations Si le roi nrsquoest pas le soleil alors lrsquoimage du roi nrsquoest

pas le roi Toute se passe en fait comme si Louis XIV demandait agrave ses sujets de croire en ce que lui-

mecircme ne croit pas lrsquoanalogie entre le roi et le soleil doit srsquoimposer aux sujets mais pas au roi Ce

paradoxe est aux origines drsquoune profonde crise de la repreacutesentation royale Car les savants et

lrsquoAcadeacutemie des Sciences contribuent eux aussi agrave briser le systegraveme des analogies par la promotion

drsquoun nouveau statut du signe et du langage que nous avons vu inaugureacute par ces ldquoMessieursrdquo de Porto-

Royalrdquo idem p 242 Cf GUERY 1999 416-417 para quem ldquoLes travaux de Jean-Marie Goumelot

sur lsquoLe regravegne de lrsquohistoirersquo() auraient permis agrave H Dreacutevillon de voir un problegraveme lagrave ougrave il pense avoir

apporteacute une solution Louis XIV peut reacutegner sans fou et sans astrologue aupregraves de lui selon un projet

ougrave peu agrave peu il fait entrer les travaux des savants de ses Acadeacutemies parce qursquoapregraves 1662 date de

publication de la ldquoLogiquerdquo de Port-Royal il nrsquoest plus possible de confondre substance et

repreacutesentation ordre des choses et ordre des motsrdquo

231

filosoacuteficas do seacuteculo XVII natildeo puderam arruinar a astrologiardquo 726 Abandonado pelas

musas com a autoridade de seu corpus e a representaccedilatildeo de seu cosmos na defensiva

o cego que lia as estrelas natildeo poderia mais ao menos para os correspondentes da

Repuacuteblica das Letras fazer delas sentido como se as escutasse Para os philosophes a

crenccedila na gramaacutetica dos astros jaacute estava identificada afinal de contas como

supersticcedilatildeo Supersticcedilatildeo que perdeu-se no ldquobeco da astrologiardquo

Loacutegica jansenista como causa remota ndash e Agostinho tanto mais remoto ndash os

paralelos do rei mudam de direccedilatildeo Eles natildeo vem mais de uma ilha distante governada

por um Metafiacutesico em nome da ordem da natureza mas da ordem do tempo na qual

como fez o Racine de 1666 busca-se o exemplo de Alexandre727 Assim ao rei sol de

Campanella sobrepotildee-se o Ludovico Magno do arco triunfal da porta de Saint-Denis

Apoacutes 1680 como lembra Hartog os proacuteprios paralelos seratildeo postos em duacutevida A

monarquia absoluta que natildeo mais sabia trabalhar com modelos do passado faz do rei

sua proacutepria medida de virtude Louis le Grand cantara Perrault era o ldquomais perfeito

modelordquo 728 ldquoA semelhanccedila deixou de formar no interior do saber uma figura

estaacutevel suficiente e autocircnomardquo completaria um recente filoacutesofo O monarca natildeo era a

imagem mas o proacuteprio centro do sistema poliacutetico como se viesse consolidar ldquouma

ordem de conhecimentos em que a similitude pode ter apenas um lugar precaacuterio e

provisoacuterio no limite da ilusatildeordquo729 Da superaccedilatildeo dos exemplos do passado rumo agrave

gloacuteria literaacuteria do presente o grande homem estava pronto para dar nome ao espiacuterito

de um seacuteculo e capitanea-lo rumo ao futuro

Os ldquofazedores de almanaquesrdquo com suas relaccedilotildees de influecircncia e semelhanccedila

foram condenados pelos censores da Repuacuteblica das Letras ao mais baixo degrau da

literatura A leitura das efemeacuterides do cruzamento de seus nuacutemeros e signos da 726 ldquo() les grandes lumiegraveres philosophiques du XVIIe siegravecle nrsquoont pu ruiner lrsquoastrologierdquo BAYLE

Pierre Continuations des Penseacutees diverses Rotterdam Reinier Leers 1705 [1699] p 180 727 Luiacutes XIV escreveu em suas memoacuterias ldquoJe consideacuterai () que lrsquoexemple de ces hommes ilustres et

de ces actions singuliegraveres que nous fournit lrsquoAntiquiteacute pouvait donner au besoin des ouvertures trecircs

utiles soit aux affaires de la guerre ou de la paix ()rdquo GRELL Chantal MICHEL Christian LrsquoEacutecole

des princes ou Alexandre disgracieacute Paris Gallimardm 2000 p 155 apud HARTOG 2005 p 155

Sobre o paralelo entre o Luiacutes XIV e o rei da macedocircnia na dedicatoacuteria do Alexandre de Racine ver

paacutegina anterior 728 PERRAULT Charles Le Siegravecle de Louis le Grand 1687 apud HARTOG 2005 p 156 ldquoLouis le

Grandrdquo PERRAULT Charles Paralelle des Anciens et des Modernes En ce qui regard les arts et les

sciences Nouvelle Edition augmenteacutee de quelques Dialogues Tome I Paris Coignard 1663 p 7 729 ldquoEis que haacute mais de dois seacuteculos no nossa cultura a semelhanccedila deixou de formar no interior do

saber uma figura estaacutevel suficiente e autocircnoma A eacutepoca claacutessica a mandou embora Bacon de iniacutecio

depois Descartes instauraram para um tempo do qual natildeo saiacutemos uma ordem de conhecimentos em

que a similitude pode ter apenas um lugar precaacuterio e provisoacuterio no limite da ilusatildeordquo FOUCAULT

Michel Arqueologia das Ciecircncias e Histoacuteria dos Sistemas de Pensamento Manoel Barros da Motta

(org) Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2000 p 10

232

mudanccedila natildeo poderia mais influenciar a ordem da mateacuteria atraveacutes de conjunccedilotildees

cometas e eclipses associados agraves qualidades acidentais doadas pelas casas zodiacais

em que se manifestavam Mas a sua escrita assentada nas praacuteticas da geraccedilatildeo de

Poliacutebio como uma narrativa dia-a-dia dos feitos natildeo das estrelas mas dos homens ndash

ainda acompanhada de ldquocomentaacuterios a respeito de eventos puacuteblicosrdquo ndash poderia influir

no mundo a partir da associada consciecircncia secular de que os signos do passado

podem ser debatidos reescritos e de que a dureza dos fatos eacute apenas uma saacutetira

imprecisa do desenvolvimento do espiacuterito dos homens Nos afastamos

progressivamente de um ldquopseudo-conhecimentordquo ndash jaacute intelectualmente excluiacutedo

quando da fundaccedilatildeo da Academia de Colbert em 1666 ndash para aproximar-nos dos

novos saberes da moda das sciences morales et politiques que no Larousse de 1876

teraacute a histoacuteria como ldquoo foco e o controlerdquo730 Em Portugal talvez natildeo por acaso eacute a

partir de 1 de novembro de 1755 ndash dia do terremoto de Lisboa e data selecionada por

Carolino para o sepultamento simboacutelico das crenccedilas astroloacutegicas ndash que narram as

Rerum Luisitanarum Ephemerides compilaccedilatildeo de eventos humanos e sublunares que

segue ateacute a expulsatildeo dos jesuiacutetas em 3 de setembro de 1760731 Passamos ao lado do

Seacuteculo de Luiacutes XIV e rumo agrave esfera puacuteblica as efemeacuterides sauacutedam sua influecircncia nas

ldquohistoacuteriasrdquo e nas ldquonotiacuteciasrdquo

42 As Diatribes das Efemeacuterides

Em 1765 o abade Nicolas Baudeau funda as Efemeacuterides do Cidadatildeo folheto

que de iniacutecio circularia duas vezes por semana levando o sugestivo subtiacutetulo de

crocircnica do espiacuterito nacional A ambiccedilatildeo do projeto era bem maior do que indicava o

peso de sua brochura No editorial de lanccedilamento Baudeau economista e teoacutelogo

refletia sobre as feuilles periodiques e imaginava a funccedilatildeo do novo perioacutedico

Eacute preciso ir mais longe Examinem na Cidadatildeo qual eacute e

qual pode ser a influecircncia dos Escritos puacuteblicos sobre o

Espiacuterito Nacional como eles podem corrigir os erros do 730 ldquoLe mouvement historique inaugure au XVIIe par Bossuet continue au XVIII par Vico Herder

Condorcet et deacuteveloppeacute par tant drsquoesprits remarquables de notre XIXe siegravecle ne peut manquer de

srsquoaccentuer encore davantage pour ainsi dire une religion universelle Elle remplace dans toutes les

acircmes les croyances eacuteteintes et eacutebranleacutee ele est devenue le foyer et le controle des sciences morales agrave

lrsquoabsence desquelles ele suppleacuteerdquo LAUROUSSE Pierre Grand dictionnaire universel du XIXe siegravecle

Vol XII article Histoire p 301 apud HARTOG Croire em lrsquohistoire 2013 op cit p 10 731 FIGUEIREDIO Antonio Rerum Lusitanarum Ephemerides Ab Olisiponensi Terraemotu ad

jesuitarum expulsionem Olisipone Typis Regiis Sylvianes 1762

233

povo ressucitar as antigas verdades () obrigaacute-los a

abrir os olhos agrave luz desmascarar o interesse pessoal

forccedilando-o a seu uacuteltimo refuacutegio ()732

Nos anos seguintes o folheto torna-se a publicaccedilatildeo dos ldquofiloacutesofos

economistasrdquo termo que o editor das Eacutepheacutemeacuterides utilizava para designar os

fisiocratas grupo ao qual tinha se aproximado733 ldquoFisiocraciardquo explicava uma ediccedilatildeo

da revista ldquosignifica governo da naturezardquoTratava-se de defender que eacute a ldquoNatureza

e natildeo os homens () o direito a ordem e as leisrdquo e que nosso ldquodever e interesserdquo era

de ldquoconhecer e de seguir o Governo natural uacutenico invariaacutevelrdquo 734 Para os adeptos da

doutrina as leis da natureza apareciam como as ldquocondiccedilotildees essenciaisrdquo da execuccedilatildeo e

manutenccedilatildeo da ldquoordem instituiacuteda pelo Autor da Naturezardquo735

O vocabulaacuterio fazia eco a uma obra que apareceu no ano anterior publicada

na Londres de 1767 A Ordem Natural e Essencial das Sociedades Poliacuteticas escrita

por Le Mercier de La Riviegravere aparecia como bibliografia fundamental para as

discussotildees e combates que figuravam como Efemeacuterides736 Natildeo se tratava mais eacute

732 BAUDEAU Nicolas Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen ou Chronique de lrsquoEsprit National T 1 4 de

Novembro de 1765 Paris Augustin Delalain p 15 ldquoIl faut aller encore plus loin Examinez en Citoyen

quelle est amp quelle peut ecirctre lrsquoinfluence des Ecrits publics sur lrsquoEsprit national comment ils peuvent

corriger les erreurs du peuple ressusciter les antiques veacuteriteacutes investir lrsquoignorance aveugle amp

preacutesomptuese lrsquoobliger drsquoouvrir les yeux agrave la lumiere deacutemasquer lrsquointeacuteret personell amp le forcer dans

son dernier retranchement vous verrez que les maximes les plus utiles seront toujours enseacutervelies pour

le Public Franccedilois tant qursquoelles demeureront dans les Livres didactiques du petit nombre qui les lit

une moitieacute les oublie lrsquoautre les retient em silencerdquo Baudeau ao publicar as Efemeacuterides teria se

inspirado no The Spectator fundado por Joseph Addison e Richard Steele em 1711 com a ambiccedilatildeo de

ldquotocar todos os puacuteblicosrdquo Sobre os periacuteodos editoriais das Efemeacuterides seguidos de uma longa

compilaccedilatildeo de suas tables de matiegravere ver o recente trabalho de HERENCIA Bernard Les

Eacutepheacutemeacuterides du citoyen et les Nouvelles Eacutepheacutemeacuterides eacuteconomiques (1765-1788) Documents et table

complegravete Centre international drsquoeacutetude du XVIIIe siegravecle Ferney-Voltaire 2014 principalmente pp ix-x 733 Veja-se por exemplo Correspondance entre M Graslin de lrsquoAcadeacutemie eacuteconomique de S

Peacutetesbourg Auteur de lrsquoEssai Analytique sur la Richesse amp sur lrsquoImpocirct et M LrsquoAbbeacute Baudeau Auteur

des Epheacutemeacuterides du Citoyen Sur un des Principes fondamentaux de la Doctrine des soi-disants

Philosophes Eacuteconomistes Londres 1777 734 BADEAU Nicolas NEMOURS Dupont (et all) Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou Chronique de lrsquoesprit

national 1768 Tome Troisieme Seconde Partie Critiques Raisonneacutees N Premier ldquoPhysiocratie

signifie Gouvernement de la nature comme Monarchie veut dire Gouvernement drsquoun seul homme

Oligarchie le Gouvernement drsquoun petit nombre Deacutemocratie le Gouvernement de tout le Peuple La

Doctrine dont tous les priacutencipes sont renfermeacutes dans ce Recueil preacutecieux consiste agrave soutenir que crsquoest

la Nature amp non pas les hommes qui sont le droit lrsquoordre amp les loix que le devoir amp lrsquointeacuterecirct des

hommes est de connaicirctre amp de suivre le Gouvernement naturel unique invariable simple amp le plus

avantageux quirsquoil soit possible agrave notre especerdquo p 165 735 Ibidem ldquoLes Loix Naturelles consideacutereacutees en general sont les conditions essentielles selon

lesquelles tout srsquoexeacutecute dans lrsquoordre institueacute par lrsquoAuteur de la Nature Elles diferente de lrsquoordre

comme la partie difere du toutrdquo p 174 736 Eacute em uma resenha publicada nas Efemeacuterides do Cidadatildeo em 1767 que encontramos a primeira

referecircncia ao termo ldquofisiocraciardquo Nous lui devons avant tout cette justice quil a plutocirct ignoreacute que

combattu les Princies de la Physiocratie cest-agrave-dire de lordre naturel amp social fondeacute sur la neacutecessiteacute

physique amp sur la force irreacutesistible de leacutevidence pp 121-122 Principes de tout gouvernement In

234

claro da ordem natural dos astroacutelogos renascentistas Se a geraccedilatildeo anterior jaacute havia

clamado por uma philosophie nouvelle Le Mercier veio revelar com clareza e

distinccedilatildeo uma nova ordem da natureza ldquoPensei que devia examinar se as leis naturais

da sociedade satildeo as verdadeiras causas de seus proacuteprios malesrdquo explicava sua

enquecircte ldquoou se elas natildeo satildeo nada mais do que os frutos necessaacuterios de nossa

ignoracircncia sobre as disposiccedilotildees dessas leisrdquo Suas pesquisas como vemos logo

fizeram-no passar ldquoda duacutevida agrave evidecircnciardquo convencendo-o da existecircncia de uma

ldquoordem naturalrdquo que governava os homens em sociedade737 Como escreveu o autor

logo no iniacutecio do capiacutetulo VI

Natildeo se pode confundir a ordem sobrenatural com a

ordem natural a primeira eacute a ordem das vontades de

Deus conhecidas pela revelaccedilatildeo e ela natildeo eacute sensiacutevel

senatildeo agravequeles para os quais decidiu manifestar-se A

segunda pelo contraacuterio eacute dada a conhecer por todos os

homens por meio das luzes da razatildeo A autoridade desta

ordem encontra-se em sua evidecircncia assim como na

forccedila irresistiacutevel atraveacutes da qual a evidecircncia domina e

submete nossas vontades738

Superando a duacutevida meacutetodica o que vinha evidenciar a nova ordem da

natureza esse todo fiacutesico a partir do qual as sociedades cresciam como meros ramos

de uma aacutervore divina La Riviegravere acreditava que a relaccedilatildeo de ldquonecessidade fiacutesicardquo

entre as trecircs formas de propriedade ndash pessoal (personelle) moacutevel (mobiliegravere) e

imoacutevel (fonciegravere) ndash era a base da ordem natural e essencial das sociedades

Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou Chronique de lesprit national Lacombe Paris 1767 T4 Parte 2 pp 121-

122 737 LE MERCIER Pierre Paul de La Riviegravere Lrsquoordre naturel et essentiel des socieacuteteacutes politiques T 1

Desaint ndash J Nourse Londres 1767 pp xiii-xv ldquojrsquoai cru devoir examiner si les loix naturelles de la

socieacuteteacute sont les veacuteritables causes de ces mecircmes maux ou srsquoils ne sont point plutocirct les fruits neacutecessaires

de noitre ignorance sur les dispositions de ces loix ()Mecircs recherches sur ce point mrsquoont fait passer du

doute agrave lrsquoeacutevidence elles mrsquoont convaincu qursquoil existe un ordre naturel pour le gouvernement des

hommes reacuteunis en socieacuteteacute un ordre qui nous assure neacutecessairement toute la feacuteliciteacute temporelle agrave

laquelle nous sommes appelleacutes pendant notre seacutejour sur la terre toutes les jouiumlssances que nous

pouvons raisonnablement y deacutecirer amp auxquelles nous ne pouvons rien ajouter qursquoagrave notre preacutejudice

um ordre pour la connoissance duquel la nature nous agrave donneacute une portion suffisante de lumieres amp qui

nrsquoai besoin que drsquoecirctre connu pour ecirctre observeacute un ordre ougrave tout est bien amp neacutecessairement bien ougrave

tout les inteacuterecircts sont si parfaitement combineacutes si inseacuteparablement unis entre eux ()rdquo 738 LE MERCIER 1767 p 60 ldquoIl ne faut pas confondre lrsquoordre surnaturel avec lrsquoordre naturel le

premier est lrsquoordre des volonteacutes de Dieu connues par la reacutevelation amp il nrsquoest sensible aursquoagrave ceux

auxquels il a bien voulu le manifester Le scond au-contraire se fait connoicirctre agrave tous les hommes par le

secours des seules lumieres de la raison Lrsquoautoriteacute de cet ordre est dans son eacutevidence amp dans la force

irreacutesistible avec laquelle lrsquoeacutevidence domine amp assujettit nos volonteacutesrdquo

235

humanas739 Nascida com a agricultura a propriedade imoacutevel era o divisor de aacuteguas

para com a ordem primitiva da natureza Os ldquotrecircs tipos de propriedadesrdquo explicava o

fisiocrata ldquosatildeo tatildeo unidas que devemos observaacute-las como um uacutenico todo do qual natildeo

se pode separar nenhuma parte sem que se resulte na destruiccedilatildeo de todas as outrasrdquo740

Poderiacuteamos sem grandes dificuldades aiacute ler a maacutexima de Malebranche presente eacute

verdade como epiacutegrafe do estudo ldquoa ordem eacute a lei inviolaacutevel dos espiacuteritosrdquo741

Natildeo faltaram criacuteticos a esse ideaacuterio ldquoAs duas primeiras partes da obra natildeo

produziram sob meu espiacuterito o mesmo efeito que a terceirardquo diria Gabriel Bonnot

referindo-se aos capiacutetulos da Ordem Natural que lidavam com o problema da

imanecircncia entre as formas de propriedade ldquoVejo que falamos muito sobre evidecircncia

e me parece que nada ali eacute evidenterdquo continuava o abade de Mably Insatisfeito ele

arregaccedila as mangas e prepara duas sinceras cartas remetendo-as aos cuidados do

editor das Efemeacuterides do Cidadatildeo sob o tiacutetulo de Duacutevidas propostas aos filoacutesofos

economistas742 Para Mably tudo se passa como se uma anaacutelise da ordem da natureza

natildeo devesse partir da deduccedilatildeo cartesiana indo do geral para o particular mas pela

induccedilatildeo histoacuterica que vai do particular para o geral a partir da experiecircncia do passado

ou mesmo da visatildeo do presente Ele jaacute havia explicitado seu meacutetodo no proacutelogo de

uma obra anterior Nas Observaccedilotildees sobre a Histoacuteria da Franccedila o historiador se

propunha a investigar as ldquodiferentes formas de governo que os franceses obedeceram

depois de seu estabelecimento nas Gaacuteliasrdquo e descobrir ldquoas causas que ao impedir que

nada fosse estaacutevel entre eles os entregaram durante uma longa sequecircncia de seacuteculos

a revoluccedilotildees contiacutenuasrdquo Essa parte da histoacuteria da Franccedila como acreditava Mably

seria ainda desconhecida

tanto dos analistas antigos quanto dos historiadores

modernos Eu a aprovei por mim mesmo desde que

remontei agraves verdadeiras fontes de nossa histoacuteria ou seja

a nossas leis aos capitulares agraves foacutermulas antigas agraves

cartas aos diplomas aos tratados de paz e de alianccedila

739 LE MERCIER 1767 p 27 740 Ibidem p 46 ldquoCes trois sortes de proprieacuteteacutes sont ainsi tellement unies ensemble qursquoon doit les

regarder comme ne formant qursquoum seul tout dont aucune partie ne peut ecirctre deacutetacheacutee qursquoil nrsquoem

reacutesalte la destruction des deux autresrdquo 741 ldquoIl est vrai qursquoon demeure assez drsquoaccord que lrsquoordre est la loi inviolable des esprits et que rien

nrsquoest reacutegleacute srsquoil nrsquoy est conformerdquo MALEBRANCHE Traiteacute de Morale IIIX In Ouvres Complegravetes

Paris De Sapia 1837 p 405 742 MABLY Gabriel Bonnot abade de Doutes proposeacutes aux Philosophes Eacuteconomistes sur lrsquoOrdre

Naturel et Essentiel des Socieacuteteacutes Politiques In Ouvres Complegravetes de Lrsquoabbeacute de Mably Tome 11

Lyon Delamolliere 1792 p 3

236

Descobri um sem nuacutemero de erros grosseiros os quais

havia me deparado em meio ao meu Parallegravele des

Romains et des Franccedilois Vi aparecer em frente aos

meus olhos uma naccedilatildeo em tudo diferente daquela que

acreditava conhecer743

Quem natildeo sabia afinal que ldquoa moral e os costumes dos povosrdquo estatildeo sempre

em movimento mudam adaptam-se natildeo ldquotendo nada de estaacutevelrdquo744 Era essa

prerrogativa que impedia Mably de aceitar as ldquoevidecircnciasrdquo de uma ordem da natureza

que manteria a dita relaccedilatildeo de necessidade fiacutesica entre as trecircs formas de propriedade

Exemplos particulares que indicavam o contraacuterio natildeo faltavam ao abade Iroqueses e

hurotildees natildeo conheciam a partilha de terras o que em nada significava que natildeo

possuiacutessem propriedades pessoais Entre os espartanos para quem o Estado doava as

terreas necessaacuterias agrave subsistecircncia ocorreria fenocircmeno parecido Mesmo os iacutendios do

Paraguai habitantes das Missotildees e instruiacutedos no usufruto coletivo das terras pelos

jesuiacutetas pareciam lutar ldquoimpunementerdquo contra a tal ldquolei essencialrdquo da ordem da

natureza745 ldquoTalvez esteja enganado mas me parece que as coisas que natildeo podem ser

separadas sem que causem suas proacuteprias destruiccedilotildees deveriam estar sempre unidasrdquo

provocou Gabriel Bonnot746

Os fisiocratas em sua resposta publicada nas Efemeacuterides pareciam

escandalizados Como seria possiacutevel a um homem que visse ldquocom admiraccedilatildeo a ordem

que rege o universordquo atribuiacutendo toda multiplicidade de efeitos a ldquouma causa superior

e inteligenterdquo acreditar que a ordem da natureza ndash a instacircncia cujo conhecimento nos

743 MABLY Gabriel Bonnot abade de Observations sur lrsquoHistoire de France In Ouvres Complegravetes

de LrsquoAbbeacute de Mably op cit T 1 pp 121-122 ldquoJe me propose dans cet ouvrage de faire connoicirctre les

diferentes formes du gouvernement auxquelles les Franccedilois ont obeacutei depuis leur eacutetablissement dans les

Gaules et de deacutecouvrir les causes qui en empecircchant que rien nrsquoait eacuteteacute stable chez eux les ont livres

pendant une longue suiacutete de siegravecles agrave de continuelles reacutevolutions Cette partir interessante de notre

histoire est entiegraverement inconnue des lecteurs qui se bornent agrave eacutetudier nos annalistes anciens et nos

historiens modernes Je lrsquoai eacuteporouveacute par moi-mecircme degraves que je remontai aux veacuteritables sources de

notre histoire crsquoest-agrave-dire agrave nos lois aux capitulaires aux formules anciennes aux chartes aux

diplomes aux traiteacutes de paix et drsquoaliance etc Je deacutecouvris les erreurs grossiegraveres et sans nombre ougrave

jrsquoeacutetois tombeacute dans mon Parallegravele des Romains et des Franccedilois Je vis paroicirctre devant mecircs yeux une

nation toute diffeacuterent de celle que je croyois connoicirctrerdquo 744 Ibidem p 125 ldquoQui ne sait pas que les lois les moeurs et les coutumes des peuples nrsquoont rien de

stablerdquo 745 MABLY Doutes proposeacutes op cit p 7-8 746 Idem p 5 ldquoJe me trompe peut-ecirctre mais il me semble que des choses qursquoon ne peut seacuteparer sans

causer leur destruction doivent toujours avoir eacuteteacute unies parce qursquoelles le sont essentiellement et par

leur naturerdquo

237

traria o justo absoluto ndash natildeo fosse imutaacutevel com o criador747 O abade certamente natildeo

aceitava que as instituiccedilotildees sociais resultavam de uma necessidade fiacutesica pelo

contraacuterio chocava seus interlocutores ao demonstrar simpatias pelas formas

comunitaacuterias de propriedade Os fisiocratas como se devia esperar tinham boas

respostas ao autor das Duacutevidas Hurotildees Iroqueses e Taacutertaros natildeo eram mais do que

povos selvagens presos agrave ordem primitiva e desprovidos de senso de comunidade

Comparar os ldquoiacutendios que vivem no Paraguai com nossos trabalhadores manuaisrdquo por

outro lado lhes parecia ldquopouco justordquo uma vez que os indiacutegenas desprovidos da

liberdade fiacutesica ldquonatildeo gozavam de sua propriedade pessoalrdquo748

No mesmo ano de 1767 a defesa do ldquodespotismo legalrdquo aparecia em

Despotisme de la Chine assinada por Franccedilois Quesnay nas Efemeacuterides do Cidadatildeo

entre os meses de marccedilo e junho evento que antecipa para o primeiro semestre os

determinismos da Ordem da Natureza de Le Mercier publicada no meio daquele ano

Em sua polecircmica contra os fisiocratas Mably guardaria palavras pouco carinhosas

para Quesnay ldquoVemos que nossos filoacutesofosrdquo escreveu o abade ldquopossuem uma

espeacutecie de desprezo contra os povos aos quais estamos acostumados a respeitarrdquo Ora

por que outro motivo senatildeo a de uma vontade poliacutetica teriam eles falado em

despotismo legal reivindicando o governo da China ldquoNatildeo sabemos como conciliarrdquo

tal admiraccedilatildeo ldquocom os princiacutepios de uma boa filosofiardquo mas acrescentaria M

Bonnot ldquotemendo blasfemar contra verdades desconhecidas esperamos em silecircncio o

oraacuteculo falar com menos misteacuteriordquo749 Natildeo era preciso citar Quesnay diretamente a

imagem de Eudoxo ndash ldquoda boa doutrinardquo que levou o ano solar do Egito agrave Greacutecia ndash

dava conta de transmitir a mensagem de ironia750

Jaacute a partir das ediccedilotildees de 1769 Du Pont mais tarde chamado de Nemours

assume a direccedilatildeo das Efemeacuterides que passa a ter peridocidade semanal modificando

o subtiacutetulo para bibliothegraveque raisonneacutee des sciences morales et politiques Entre

correspondentes e colaboradores aparecem com regularidade os nomes de Mirabeau

Turgot Roubaud e Vauvilliers751 Incitado pelo controlador geral Maynon dInvaut

Du Pont coordena uma ruidosa campanha contra o monopoacutelio da Companhia das 747 MD Les doutes eacuteclaircis ou reacuteponse a m lrsquoabbeacute de Mably In Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou

Chronique de lrsquoesprit national 1768 Tome Troisieme Seconde Partie Critiques Raisonneacutees p 195

Sobre o justo e o injusto absolutos no pensamento fisiocraacutetico ver LE MERCIER 1767 cap 2 748 Idem p 206-208 749 MABLY Doutes proposeacutes op cit p 3 750 Idem ibidem 751 Sigo tambeacutem em minha leitura da revista as informaccedilotildees apresentadas no claacutessico de SCHELLE

Gustav Du Pont de Nemours et lrsquoEcole physiocratique Paris Guillaumin 1888 principalmente 124

238

Iacutendias e pela liberdade do comeacutercio colonial A imagem liberal do grupo fisiocrata

como recentemente lembrou Florence Gauthier natildeo era entretanto compartilhada por

seus contemporacircneos No seacuteculo XVIII Galiani se referia agraves teorias do grupo como

eacutecomystification Linguet falava em eacuteconomisme enquanto que Adam Smith preferia

descrevecirc-los como um ldquosectordquo de linhagem francesa752

Na deacutecada de 70 do seacuteculo das luzes os fisiocratas com sua ldquoboa doutrinardquo

orbitando a esfera do despotismo legal aproximariam-se efetivamente da corte solar

A atuaccedilatildeo do ministeacuterio Turgot ligado a Du Pont e colaborador da revista ao lado de

suas tentativas de reforma fiscal e liberaccedilatildeo da exportaccedilatildeo de gratildeos ndash assuntos

tambeacutem muito debatidos nas paacuteginas das Efemeacuterides ndash estatildeo bem documentadas

desde o trabalho pioneiro de Georges Weulersse753 Mas isso natildeo significa que os

editores natildeo tivessem alguns anos antes rendido suas criacuteticas agrave memoacuteria dos

Bourbon

ldquoHoje estaacute na moda degradar os grandes homensrdquo escreveu um indignado

Voltaire no que ele completaria algumas paacuteginas depois protestando contra diversas

ldquohistoacuterias modernasrdquo que foram ldquocompiladas sob esses jornais preenchidos de novas

impertinecircncias parecidas com essas mentiras impressas das quais eu falordquo754

Mentiras em jornais impertinentes No final de 1769 as Efemeacuterides do Cidadatildeo

haviam publicado o esboccedilo de uma histoacuteria da Companhia das Iacutendias A parte

dedicada agrave apreciaccedilatildeo do reinado de Luiacutes XIV era lotada de pesadas criacuteticas Quanto agrave

ldquogloacuteria desse grande seacuteculordquo dizia o texto ela teria passado ldquocomo as estopas que

752 Ver GAUTHIER Florence Agrave lrsquoorigine de la theacuteorie physiocrate du capitalisme la plantation

esclavagiste lrsquoexpeacuterience de Le Mercier de La Riviegravere Intendant de la Martinique Presses

Universitaires de France Actuel Marx 20022 ndash no 32 p 51-52 Para quem ldquoLa physiocratie fut ainsi

interpreacuteteacutee successivement au XXe siegravecle comme appartenant aux courants libeacuteraux puis marxistes

enfin totalitaires La confusion est donc agrave son comble Notons que les reacutefeacuterents interpreacutetatifs se

rattachent aux trois couleurs politiques qui dominegraverent ce siegraveclerdquo Sobre a leitura ldquomarxistardquo dos

fisiocratas em seu apego ldquomaterialistardquo ver QUESNAY Physiocratie Introduction et textes choisis

par J Cartelier Garnier-Flammarion 1991 apud GAUTHIER op cit para a leitura de uma ldquodoutrina

totalitaacuteriardquo entre os fisiocratas ver tambeacutem REVIGLIO Madame Marie-Claire Laval In Revue

franccedilaise de science politique 37e anneacutee ndeg2 1987 pp 181-213 753 WEULERSSE Georges La Physiocratie sous les ministeres de Turgot et de Necker (I774-I781)

Paris Presses Universitaires de France I950 [Tese defendida em 1910] 754 VOLTAIRE Deacutefense de Louis XIV [13 de outubro de 1769] In Ouvres Complegravetes de Voltaire T

287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes biographiques

Garnier Fregraveres Paris 1877-1885 ldquoCrsquoest la mode aujourdrsquohui de deacutegrader les grands hommesrdquo p 334

ldquoPlus de cent histoires modernes ont eacuteteacute compileacutees sur des journaux remplis de nouvelles

impertinences semblables agrave ces mensonges imprimeacutes dont je parle Peut-ecirctre um jour ces histoires

passeront pour authentiques Celui qui consacrerait son travail son travail agrave preacutevenir le public contre

cette foule drsquoimpostures eacutelegraveverait um monument utilerdquo p 339

239

queimamos em frente ao papa durante sua entronizaccedilatildeordquo755 O autor do Seacuteculo de Luiacutes

XIV como parece lia nas palavras empregadas nas Efemeacuterides uma criacutetica indireta a

seu trabalho Contra a visatildeo negativa que sublinhava no periacuteodo do rei sol o pior mais

regulamentado avesso agrave natureza metoacutedico e imperioso dos regimes fiscais com

resultados funestos ao espiacuterito dos homens Voltaire reeditava os argumentos de sua

obra ldquoSim eu me veria como um baacuterbaro como um espiacuterito falso e baixo sem

cultura sem gostordquo caso pudesse esquecer de Corneille Racine La Fontaine

Quinault Moliegravere ainda Bossuet e mesmo Descartes malgreacute les chimegraveres absurdes

de sua fiacutesica as quais inspiraram o gecircnio preceptor da natureza fisiocrata o maldito

Malebranche756 A Defesa de Luiacutes XIV sugeria que apenas seguindo o Tratado dos

erros dos sentidos e da imaginaccedilatildeo esse ldquoexcelente comeccedilo de um sistema que

termina tatildeo malrdquo conceberia-se dar de ombros a seguinte questatildeo

Como foi ele [o seacuteculo de Luiacutes XIV] capaz de poder

fazer tantos homens superiores em tantos gecircneros

diferentes florescerem todos juntos em uma mesma era

Esse prodiacutegio aconteceu trecircs vezes na histoacuteria do

mundo e talvez natildeo reapareccedila mais757

Eacute em uma polecircmica um pouco posterior que o problema dos trecircs grandes

homens aflora novamente Jaacute natildeo eram as Efemeacuterides do Cidadatildeo mas as Novas

Efemeacuterides perioacutedico que sucedeu o folheto original o qual naufragou em 1772 A

publicaccedilatildeo foi retomada a partir de 1774 durando um biecircnio e apoacutes novo hiato

ressurge durante dois outros anos no final da deacutecada seguinte (1787 e 1788) Em

agosto de 1775 aperece no Mercure de France um texto escrito em 20 de maio no

calor da ldquoguerra da farinhardquo758 Era o auge do ministeacuterio Turgot e o eacutedito de 13 de

755 ldquoLa gloire de ce grand siegravecle si cher agrave nos beaux esprits eacutetait passeacutee comme les eacutetoupes qursquoon brucircle

devant le pape agrave son exaltationrdquo Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen De La Compagnie des Indes Capiacutetulo II Ce

que devint la Compagnie des Indes depuis la mort de Louis XIV jusqursquoem 1725 p 236 756 VOLTAIRE Deacutefense de Louis XIV p 328-329 757 ldquoComment srsquoest-il pu faire que tant drsquohommes supeacuterieurs dans tant de genres diffeacuterents aient fleuri

tous ensemble dans le mecircme acircge Ce prodige eacutetait arriveacute trois fois dans lrsquohistoire du monde et peut-

ecirctre ne reparaicirctra plusrdquo Idem p 330 758 Sobre a ldquoguerra da farinhardquo caberia lembrar a ceacutelebre passagem ldquoVers lrsquona 1750 la nation

rassasieacutee de vers de trageacutedies de comeacutedies drsquoopeacuteras de romans drsquohistoires romanesques de

reacuteflexions morales plus romanesques encore et disputes theacuteologiques sur la gracircce et sur les

convulsions se mit enfim agrave raisonner sur les bleacutesrdquo VOLTAIRE Bleacute ou bled In In Ouvres

Complegravetes T 18 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes

biographiques Garnier Fregraveres Paris 1877-1885 p 41

240

setembro que revogava o droit de hallage e instituia o livre comeacutercio de gratildeos

sofreria oposiccedilatildeo tanto nas ruas quanto no alto conselho real

ldquoUma pequena sociedade de cultivadores nas profundezas de uma proviacutencia

ignorada lecirc assiduamente vossas efemeacuterides e tenta tirar proveito delasrdquo O desprezo

tanto esnobe de Voltaire pelo perioacutedico visto algo como um libello de economistas

aparece desde as primeiras linhas de sua Diatribe ao autor das Efemeacuterides Ora seu

editor natildeo era digno de ser retratado como um homme du monde embora lhe coubesse

bem a pecha de ldquocidadatildeo do universordquo universo que nos Diaacutelogos de Evemeacuterio

aparecera como sinocircnimo de natureza759 O philosophe inicia concordando com a

premissa fundamental da revista pois de fato ldquoa agricultura eacute a base de tudordquo

embora inclua igualmente em sua conta os fundamentos das primeiras festas

religiosas Ora os ritos e faacutebulas da antiguidade base do que viria a se chamar

paganismo eram sumariamente ligados agrave fertilidade e agrave colheita agrave ldquocelebraccedilatildeo dos

trabalhos campestresrdquo e agrave ldquoproteccedilatildeo de um Deus supremordquo760

Para um grupo de adoradores da evidecircncia a sutileza da ironia de Voltaire

logo deveria se fazer visiacutevel Do campo o paganismo ensinou ldquoa venerar Deus nos

astros cujo curso restitui as estaccedilotildeesrdquo marcando-as com festivais que ofereciam ao

ldquogrande demiurgo () os frutos cuja providecircncia havia enriquecido a terrardquo761

Outrossim a classe sacerdotal jamais poderia ser vista como uma amiga dos

agricultores Na Babilocircnia e em Mecircnfis dacircndis de saltos vermelhos (petits-maicirctres agrave

talons rouges) tratavam de abocanhar toda produccedilatildeo dos camponeses julgando que

com isso lhes fazia uma grande honra Na idade meacutedia os trabalhadores rurais da

Europa teriam suas terras pilhadas por monges e falsaacuterios Na Franccedila de 1775 o eacutedito

759 ldquoUne petite socieacuteteacute de cultivateurs dans le fond drsquoune province ignoreacutee lit assidument vos

eacutepheacutemeacuterides amp tacircche drsquoem profiter () Mais vous nous paroissez par vos eacutecrits le citoyen de

lrsquouniversrdquo VOLTAIRE Diatribe a lrsquoauteur des Eacutepheacutemeacuterides BNF Tolbiac - Rez-de-jardin ndash

magasin Cote RZ- 3182 p 3 Sobre os diaacutelogos acompanho PUJOL Steacutephane O jogo do erro e da

verdade nos diaacutelogos filosoacuteficos de Voltaire In Doispontos Curitiba-Satildeo Carlos Vol 9 n3 dezembro

de 2012 p 183 ldquoA palavra natureza eacute uma palavra usada para dizer universo uma palavra de acordo

com a foacutermula de Evheacutemegravere para significar ldquoa universalidade das coisasrdquo 760 ldquoLa religion mecircme nrsquoeacutetoit fondeacutee que sur lrsquoagriculture Tout eles fecirctes tous les rites nrsquoeacutetoient que

des emblemes de cet art le premier des arts qui rassemble les hommes qui pourvoit agrave leur nourriture

agrave leur logements agrave leurs vecirctements les trois seules choses qui sufissesent agrave la nature humaine () Les

premiers mysteres inventeacutes dans la plus haute antiquiteacute eacutetoient la ceacuteleacutebration des travaux champecirctres

sous la protection drsquoum Dieu suprecircmerdquo As faacutebulas natildeo deixavam de ser vistas para algueacutem que seguia

de perto os escritos de Evemeacuterio como ridiacuteculas ldquoCe nrsquoest point sur les fables ridicules amp amusantes

recueillies par Ovide que la religion nommeacutee depuis paganisme fut originairement eacutetablierdquo

VOLTAIRE Diatribe p 4 761 ldquoOn enseignoit agrave reacuteveacuterer Dieu dans les astres dont le cours ramene les saisons amp on offroit le au

grand Demiurgos sous le nom de Ceacuteregraves amp de Bacchus les fruits dont as providence avoit enrichi la

terrerdquo Ibidem p 5

241

do controlador geral ndash homem que ldquoconhece as leis divinas e as leis humanasrdquo ndash

obrigava em nome da ordem natural a que todos os suacuteditos comprassem patildeo a vinte

leacuteguas bem longe da sombra de suas figueiras afastando-os para o bem da alta dos

preccedilos do fruto proibido do monopoacutelio 762

Voltaire insinuava que os fisiocratas eram um secto religioso como o foram

antes deles outros grupos de padres adoradores da natureza Filosofavam com voz

oracular enquanto solapavam a economia domeacutestica levando fome ao campo e agrave

cidade Franccedilois-Marie chegou a publicar ndash aventurando-se em perigoso decorum ndash

um discurso imaginaacuterio de Luiacutes XVI no qual o rei condenava Turgot O objetivo da

Diatribe era questionar as soluccedilotildees agrave crise orgamentaacuteria do reino propostas e

defendidas com paixatildeo nas Efemeacuterides contenccedilatildeo de gastos e cortes nos impostos

como forma de arrecadar mais contribuiccedilotildees ao lado eacute claro do polecircmico problema

da farinha763 Mas natildeo seriam os argumentos de filosofia econocircmica que serviriam de

justificativa legal agrave condenaccedilatildeo de sua pequena diatribe

O texto publicado no Mercure perioacutedico de fama semi-oficial durante o

Antigo Regime natildeo trazia a assinatura do Priacutencipe dos Filoacutesofos764 A Diatribe teria

sido escrita por um celta de alma pagatilde pretensotildees pequenas e famiacutelia grande algo em

torno de vinte e quatro bocas a alimentar O simploacuterio cidadatildeo acreditava no entanto

que existiram trecircs grandes homens na histoacuteria de seu paiacutes O uacuteltimo tinha sido Luiacutes

XIV que ndash reinando sozinho com o auxiacutelio de outro grande homem Corbin ndash havia

assistido a Franccedila nascer765 O segundo fora ldquonosso grande Henrique IVrdquo morto por

um fanaacutetico catoacutelico O primeiro seria ningueacutem menos do que ldquoJuliano o filoacutesofo

que hospedou-se na Cruz-de-ferro na rua de la Harperdquo governando os gauleses com

equidade e clemecircncia diminuindo impostos e vingando a pilhagem dos

germacircnicos766

762 Ibidem ldquoAllez-vous-em plaindre au controcircleur-geacuteneacuteral crsquoest um homme drsquoeacuteglife amp um

jurisconsulte il connoicirct les loix divines amp les loix humaines vous aurez double satisfactionrdquo p 19 ()

ldquo() que la loi naturelle ordonne agrave tous les hommes drsquoaller acheter leur pain agrave vingt lieuesrdquo p 21 763 Como ele mesmo explica em nota Voltaire refere-se aos texto publicados no tomo IV das

Efemeacuterides de 1775 764 Sobre as relaccedilotildees entre a editoria do Mercure e os privileacutegios reais ver DARNTON Robert

Boemia Literaacuteria e Revoluccedilatildeo O submundo das letras no Antigo regime Satildeo Paulo Companhia das

Letras 1987 principalmente p 22 765 VOLTAIRE Diatribe p 12 ldquoEnfin Louis XIV reacutegna par lui-mecircme amp la France naquitrdquo 766 ldquoLa nation fut cruellement eacutecraseacutee depuis Jules-Ceacutesar jusqursquoau grand Julien le philosophe qui

logeoit agrave la Croix-de-fer dans la rue de la Harperdquo ibidem p 6 Voltaire chegara a publicar discursos

suplementos comentaacuterios e perfis literaacuterios de Juliano o apoacutestata figura que parece ter lhe fascinado

em sua fase mais pagatilde Ver VOLTAIRE Discours de lrsquoEmpereur Julian contre les Chretiens In

242

Com a controladoria geral em matildeos fisiocratas as cortes natildeo conseguiriam rir

dos gracejos publicados em um dos jornais que patrocinava Sem um nome para

cravar acabaram julgando Jean-Franccedilois de la Harpe redator do Mercure e notoacuterio

protegido de Voltaire culpado pela divulgaccedilatildeo das nouveauteacutes Talvez pela menccedilatildeo

supracitada como nome de rua talvez porque ele tenha mesmo diretamente ldquotomado a

precauccedilatildeo de anunciar que o artigo era obra suardquo de la Harpe ganhou a desonra de

tornar-se autor de uma ldquosaacutetira tatildeo despreziacutevel quanto fanaacuteticardquo767 O parlamento

preocupava-se com essa nova safra de escritores que insatisfeitos em poetar ou

filosofar dirigiam ldquoa opiniatildeo puacuteblica a respeito de mateacuterias importantesrdquo

Quais satildeo entretanto os pontos sobre os quais desejamos

dirigir a opiniatildeo geral Eacute a ldquomiseacuteria na qual a Naccedilatildeo

estava oprimida depois de Juacutelio Ceacutesar ateacute o grande

Juliano o filoacutesofordquo Priacutencipe que de iniacutecio cristatildeo

depois apoacutestata ldquotratou-nos com clemecircnciardquo ele fez

tudo o que quizera fazer depois nosso grande Henrique

IV amp logo em uma comparaccedilatildeo odiosa de um rei que

estaraacute sempre entre as deliacutecias da Franccedila fingindo

esquecer que Henrique () elevado na religiatildeo

pretensamente reformada abjurou os erros para adentrar

o seio da religiatildeo catoacutelica o autor procura esboccedilar o

mais impressionante contraste oponto Juliano apoacutes sua

apostasia a Henrique antes de sua conversatildeo e escreve

que ldquoeacute a um pagatildeo e a um huguenote que devemos os

mais belos dias que jamais teriacuteamos ateacute o seacuteculo de Luiacutes

XIVrdquo768

Nessa significativa passagem a memoacuteria jaacute natildeo aparece como vontade

poliacutetica ordenando pelo peso da lei o que natildeo se pode esquecer e como se deve

Ouvres Complegravetes T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres

eacutetudes biographiques Garnier Fregraveres Paris 1877-1885 pp 1-64 767 ldquoLrsquoauteur de cet article le sieur de la Harpe (car il a pris la preacutecaution drsquoannoncer que cet article

est son ouvrage) ()rdquo PARLEMENT DE PARIS Arrecirct du parlement (qui enjoit agrave de La Harpe

auteur de lrsquoarticle intitule Diatribe agrave lrsquoauteur des eacutepheacutemeacuterides paru dans le Mercure de France du

moins drsquoaoucirct 1775 agrave Louvel censeur et agrave La Combe imprimeur drsquoecirctre plus circonspects agrave lrsquoavenir

Paris Imprimeur du Parlement 1775 p 1 768 Ibidem p 2 Grifos meus ldquoQuels sont cependant les points sur lesquels on veut diriger lrsquoopinion

geacuteneacuterale Crsquoest la misere dont la Nation a eacuteteacute accableacutee depuis Jules Cesar jusqursquoau grand Julien le

Philosophe Ce Prince drsquoabord Chreacutetien ensuite Apostat nous traita avec cleacutemence il fit tout ce qursquoa

voulu faire depuis notre grand Henri IV amp bientocirct dans une comparaison odieuse pour un Roi quis

era toujours les deacutelices de la France seignant drsquooublier que Henri le grand eacuteleveacute dans la Religion

preacutetendue reacuteformeacutee en avoit abjureacute les erreurs pour rentrer dans le sein de la Religion catholique

lrsquoAuteur cherche agrave rendre le constraste plus frappant em opposant Julien apregraves son apostasie agrave Henri

avant as conversion amp srsquoeacutecrie crsquoest agrave um Payen amp agrave um Huguenot que nous devons les seuls beaux

jours dont nous ayons jamais joui jusqursquoau siecle de Louis XIVrdquo Grifos originais

243

lembrar Caso respondamos positivamente deveriacuteamos reconhecer que no momento

em que a ldquoidentidaderdquo parecia correr o risco de ser desnaturalizada pelas luzes do

seacuteculo XVIII a memoacuteria veio cumprir-lhe um papel reificador Eacute claro que os

advogados do rei sabiam reconhecer um texto de Voltaire quando o liam769 De la

Harpe no entanto mais ligado aos cafeacutes do que aos salotildees vivendo com cerca de 600

livres do Mercure protegia seu protetor servindo de escudo moral ao patrono770

Aliaacutes a moral catoacutelica compartilhava com a poliacutetica o papel de maicirctre na escola que

os historiographes de lrsquoOrdre julgavam ensinar ldquoA religiatildeordquo escreveram os

censores ldquoeacute um dos principais lugares da sociedade natildeo podemos aviltar-la sem

alterar o motivo primordial da obediecircncia dos povosrdquo771 E se era preciso atentar aos

ldquoOraacuteculos da Justiccedilardquo como se fossem ldquouma porccedilatildeo da justiccedila divinardquo essa ldquomultidatildeo

de escritos imoderados de brochuras escandalosas de libellos iacutempiosrdquo ndash os quais

atacavam a ldquoMajestade divinardquo e a ldquoMajestade realrdquo ndash apenas conspiravam contra a

harmonia entre o ceacuteu e a terra base da cosmologia do absoluto solar

Voltaire jaacute entendia que a histoacuteria natildeo deveria ser ldquonem um panegiacuterico nem

uma saacutetira nem uma obra de partido nem um sermatildeo ou um romancerdquo Alegava ter

percebido essa regra quando lanccedilou seu olhar sinoacuteptico ndash que um dia existiu na

geraccedilatildeo de Poliacutebio ndash por toda a terra Outrossim natildeo deixaria de quebrar esse estatuto

proacuteprio Ao cair de seus sessenta anos de combate por ldquojusticcedila aos grandes homensrdquo

o philosophe talvez em nada acreditasse em supersticcedilotildees pagatildes como a metempsicose

Mas ao saudar essa crendice entre os bracircmanes ele igualmente esboccedilava uma crenccedila

primeiro na sua Igreja a Repuacuteblica das Letras depois na histoacuteria natildeo que ela fosse

sempre verdadeira mas ainda assim existente e capaz de produzir verdades ao fazer

justiccedila aos tempos e aos grandes homens que foram em suas paacuteginas eleitos a

representaacute-los Como escreveu durante a Defesa do rei sol ldquovejo ainda o seacuteculo de

Luiacutes XIV como aquele do gecircnio e o seacuteculo presente como aquele que racionaliza

sobre o gecircniordquo772 O seacuteculo da razatildeo eacute tambeacutem lembrado como o seacuteculo da aceleraccedilatildeo

769 ldquoNous ne revelons ici cette citation que pour vous faire mieux sentir amp la mauvaise foi de lrsquohomme

ceacuteleacutebre agrave qui ont attribue cette Diatribe amp la partialiteacute de lrsquoEacutediteur qui en a rendu compte dans le

Mercurerdquo Idem Ibidem 770 Sobre o salaacuterio de La Harpe ver DARNTON 1987 p 19 771 ldquoLa Religion est un des principaux liens de la socieacuteteacute on ne peut lrsquoavilir sans alteacuterer le premier

motif de lrsquoobeacuteissance des Peuplesrdquo PARLEMENT DE PARIS 1775 p 3 772 ldquoOn sait assez que lrsquohistoire ne doit ecirctre ni un paneacutegyrique ni une satire ni un ouvrage de parti ni

um sermon ni un roman Jrsquoai eu cette regravegle devant les yeux quan jrsquoai oseacute jeter um oeil philosophique

sur la terre entiegravere Jrsquoenvisage encore le siegravecle de Louis XIV comme celui du geacutenie et le siegravecle preacutesent

comme celui qui raisonne sur le geacutenie Jrsquoai travailleacute soixante ans agrave rendre exactement justice aux

grands hommes de ma patrierdquo VOLTAIRE Deacutefense p 388

244

do tempo de sua desordem da falecircncia dos sistemas antigos e da Grande Revoluccedilatildeo

Nisso as Efemeacuterides desempenharam o papel de uma ldquoobra digna de seu nomerdquo

contando mesmo a revelia das vozes que ecoam em suas paacuteginas um dos capiacutetulos

da mudanccedila773 O parlamento declarava a improbidade dos excertos que atacavam a

ldquoReligiatildeo o Governo amp a memoacuteria de nossos Reisrdquo774 La Harpe escudeiro de um

enfant terrible eacute quem receberia uma repreensatildeo junto a promessa de que seria mais

cuidadoso no futuro A Voltaire mesmo que na seguranccedila dos piacutencaros do le monde

sobrava continuar a tarefa de senatildeo demolir o tempo cristatildeo ao menos desorientar

suas bases providenciais ao projetar um futuro no qual os homens seriam senhores de

seus proacuteprios destinos E para dialogar com as almas e esferas puacuteblicas como em

outro contexto alegava o editorial de abertura das Efemeacuterides do Cidadatildeo precisaria-

se ldquodas Brochuras amp dos folhetosrdquo775

43 As efemeacuterides na escola de moral e de poliacutetica

Apoacutes a leitura da Chronoligia de Abraham Bucholzer publicada no final do

seacuteculo XVI Joseph Scaliger pegou-se refletindo sobre uma velha questatildeo O texto

seguia Euseacutebio de Cesareacuteia ao pontuar a histoacuteria por jubileus de 50 anos alegando

reconhecer ali uma ldquoanalogia secretardquo Em seu De emendatione o cronologista

huguenote jaacute havia explicado esse ordenamento tatildeo singular o qual atribuia agrave grande

semana judaica ndash uma periodizaccedilatildeo que contava sete anos para guardar o uacuteltimo como

sabaacute ldquoNo ano sabaacutetico caso dividirmosrdquo o nuacutemero de ldquoanos do mundo por 7 o

restanterdquo eacute a posiccedilatildeo do ldquoano na atual semanardquo escreveu Scaliger 776 O que o

intrigava no trabalho de Bucholzer era o fato de que ele teria cometido

() um bom nuacutemero de erros no momento em que fez o

Jubileu consistir em 50 anos completos algo que

contradiz tanto a autoridade da escritura quanto a razatildeo

De que modo 50 pode ser dividido por 7 Natildeo se

poderia levar a seacuterio algueacutem simplesmente por acreditar

nisso pois os gregos tambeacutem tinham essa opiniatildeo ndash pelo

menos lembro de ter encontrado essa fantasia em um 773 ldquoJrsquoai lu les Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ouvrage digne de son titrerdquo Idem p 327 774 PARLEMENT DE PARIS 1775 p 4 775 ldquoLe mal a gagneacute les hommes amp fait de grands progregraves ce nrsquoest pas la seule deacutelicatesse de ce genre

qui se soit comunique drsquoun fexe agrave lrsquoautre il faut donc des Brochures amp des Feuilles agrave notre Sieclerdquo

BAUDEAU Nicolas Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen op cit novembro de 1765 p 16 776 SCALIGER De emendatione 429 apud GRAFTON Defenders of the Text op cit 1991 p 142

245

dos antigos escritores eclesiaacutesticos gregos Isso seria

toleraacutevel se ao menos ele natildeo tivesse baseado alegorias

dignas de um Oriacutegenes nesses Jubileus de 50 anos777

Bem pouca astrologia e numerologia como comenta Grafton pode ser

encontrada nas obras de Scaliger Mas ao criticar o jogo dos nuacutemero por Bucholzer

homem que parecia julgar ter encontrado ali o ldquoplano secreto de Deusrdquo o autor do De

emendatione ldquorevelava a verdadeira novidade de sua atituderdquo no que ldquoas datas que

ele estabelecia eram datas natildeo liccedilotildeesrdquo Algo pouco usual para a eacutepoca segundo o

historiador americano ao menos para um leitor acostumado agraves cronologias

tradicionais778

Seria tambeacutem pouco comum para um leitor familiarizado com as efemeacuterides

histoacutericas Na Franccedila tabelas de fatos de diversos periacuteodos precisando suas datas em

um calendaacuterio anual comeccedilam a aparecer desde o ano 10 da Revoluccedilatildeo Em 1796

surgem as Efemeacuterides de Noeumll obra que alegava preencher um lacuna que ldquofaltava agrave

literatura francesa e estrangeirardquo Ningueacutem havia antes elaborado ldquouma tabela de

eventos notaacuteveis datados de um mesmo dia ao longo da sequecircncia dos seacuteculosrdquo

Considerar a histoacuteria dessa maneira dizia Noumlel seria uma forma tatildeo ldquocuriosa quanto

instrutivardquo fazendo desfilar aos olhos do leitor ldquorevoluccedilotildees conspiraccedilotildees batalhas

tomada de cidades tratados de paz fenocircmenos fiacutesicos nascimento e morte de homens

celebres de todos os gecircnerosrdquo e mesmo a estreacuteia de peccedilas de teatro e cerimocircnias

religiosas Nessas Efemeacuterides publicadas no periacuteodo revolucionaacuterio ldquoa histoacuteria de

todos os seacuteculos e de todos os paiacuteses encontra-se dessa forma fechada no ciclo de um

uacutenico ano ao mesmo tempo em que ela eacute reduzida aos fatos singularesrdquo que

importariam lembrar referenciados a partir dos ldquomais fieacuteis historiadoresrdquo779

777 SCALIGER para BEZA 7 de dezembro de 1584 (calendaacuterio Juliano) Leiden University Library

MS Perizonianus Q 5 fols II recto ndash 14 apud GRAFTON ibidem p 143 Na traduccedilatildeo de Grafton ldquoHe

has made a good many mistakes as when he makes the Jubilee consist of 50 complete years a thing

which constradicts both the authority of Scripture and reason For how can 50 be divisible by 7 It

would not be a serious matter simply to have believed this for the old Greeks also held this view ndash at

least I remember coming across this fantasy in one of the old Greek ecclesiastical writers That would

be tolerable if only he did not base allegories worthy of Origen on these 50-year Jubileesrdquo Cf

Leviacutetico 258-10 ldquoContaraacutes sete anos sabaacuteticos sete vezes sete anos dos quais a duraccedilatildeo faraacute um

periacuteodo de quarenta e nove anos Faraacutes entatildeo soar a trombeta no deacutecimo dia do seacutetimo mecircs ()

Santificareis o quinquageacutesimo ano e publicareis a liberdade na terra para todos os habitantes Seraacute o

vosso jubileurdquo 778 GRAFTON Idem Ibidem 779 NOEumlL Franccedilois-Joseph-Michel Eacutepheacutemeacuterides politiques litteraires et religieuses preacutesentant pou

chacun des jours de lrsquoanneacutee un tableau des eacuteveacutenements remarquables qui datent de ce mecircme jour dans

lrsquohistoire de tous les siegravecles et de tous les pays et commencant au I septembre 1796 pour finir au I

septembre 1797 Paris 1796 De limprimerie de Le Normant 1796 p III Dada a autodeclarada

246

Eacute no periacuteodo da restauraccedilatildeo no entanto que aparece uma Efemeacuteride

proclamadamente dada a oferecer liccedilotildees Jaacute em 1825 Cyprien Desmarais um

publicista habituado a ldquoestudar a poliacutetica atraveacutes dos jornaisrdquo escreve suas

Efemeacuterides do reino de Luiacutes XVIII780 No Prospectus pequeno sumaacuterio das propostas

do projeto os editores adiantavam que o livro seria seguido por novos volumes

publicados ano a ano contendo as ldquoEfemeacuterides histoacutericas poliacuteticas e universais do

ano precedenterdquo A obra completaria uma tabela cronoloacutegica da histoacuteria universal ldquoe

particularmente da Histoacuteria da Franccedila depois da restauraccedilatildeordquo 781

Os editores natildeo deixariam de tomar o cuidado de elucidar a foacutermula da nova

publicaccedilatildeo Mas ela natildeo seguia a ordem do ldquogrande anordquo de Noeumll ldquoAs Efemeacuteridesrdquo

eram como diziam aos leitores ldquoas tabelas histoacutericas nas quais os fatos e eventos

politicos notaacuteveis satildeo classificados pela ordem da data em que aconteceramrdquo782

Tratava-se de uma sucessatildeo de anos dentro deles meses os uacuteltimos pautados por

dias dias nos quais assinalavam-se eventos politicos e notiacutecias gerais referentes ao

reinado de Luiacutes XVIII Sua utilidade era justificada como uma primeira seleccedilatildeo de

fragmentos que serviriam a uma geraccedilatildeo futura a tarefa de raisonneacuter perscrutar

refletir analisar fontes e compor uma histoacuteria ainda sob um terreno previamente

ordenado pela boa memoacuteria do rei ldquoAs Efemeacuterides de uma eacutepocardquo e assim escreveu

novidade da foacutermula os editores tomaram cuidados didaacuteticos ao explicaacute-la ldquoNous ne parlons pas des

rapprochemens singuliers que le lecteur aura souvent occasion de remarquer en voici un que nous

offre le tableau historique du 14 mai agrave lrsquoarticle France Lrsquoan 1554 le 14 mai le roi Henri II ordonne

drsquoeacutelargir la rue de la Feacuteronnerie (ce qursquoon neacutegligea drsquoexeacutecuter) Lrsquoan 1610 le 14 mai Henri IV est

assassineacute dans la rue de la Feacuteronnerie son carosse ayant eacuteteacute arrecircteacute par un embarras de voitures Lrsquoan

1643 le 14 mai mort du fils drsquoHenri IV (Louis XIII) Lrsquoan 1771 le 14 mai Monsieur fregravere de Louis

XVI srsquoeacutetant marieacute avec la fille aicircneacutee du roi de Sardaigne les faiseurs drsquohoroscopes auguregraverent mal de

ce mariage ceacuteleacutebre dans un pareil jour (hellip) Lrsquoexposeacute de chaque fait est suivi drsquoun deacuteveloppement tireacute

des historiens les plus fidegraveles eu auquel on donne plus ou moins drsquoeacutetendue suivant que le fait est plus

ou moins inteacuteressant Nous citons avec soin les sources ougrave nous avons puiseacute dans toutes les choses qui

peuvent sembler extraordinair esau lecteur mais nous omettons les citations qual il srsquoagit

drsquoeacuteveacutenemens trop connus et dont les circonstances sont avoueacutees de tout le monde Enfin nous nrsquoavons

rien neacutegligeacute pour qursquoau meacuterite de lrsquoinvention se joignicirct encore celui de lrsquoexeacutecutionrdquo pp III-IV As

Efemeacuterides de Noumlel conheceriam reimpressotildees NOEumlL Franccedilois-Joseph-Michel Eacutepheacutemeacuterides

politiques litteacuteraires et religieuses preacutesentant pour chacun des jours de lanneacutee un tableau des

eacuteveacutenemens ()Seconde eacutedition revue corrigeacutee et augmenteacutee Paris Le Normant 1803 780 ldquoHabitueacutes depuis quelque temps () agrave eacutetudier la politique dans les journaux ()rdquo DESMARAIS

Cyprien Voyage Pittoresque dans lrsquointeacuterieur de la chambre des deputes suivi Du Temps Present ou

essai sur lrsquohistoire de la civilization au dix-neuviegraveme siegravecle Deuxiegraveme eacutedition Paris Ponthieu

Librarie 1827 p 1 781 DESMARAIS Cyprien Eacutepheacutemeacuterides Historiques et Politiques du Regravegne de Louis XVIII depuis la

restauration FM Maurice Librarie-Eacutediteur 1825 Prospectus sp ldquoCet ouvrage formera um tableu

chronologique et complet de lrsquoHistoire politique de tous les peuples et particuliegraverement de lrsquoHistoire

de France depuis la restauration (1814) Chaque volume qui suivra celui intitule Eacutepheacutemeacuterides du regravegne

de Louis XVIII sera publieacute anneacutee par anneacutee dans le courant du mois de janvier il contiendra les

Eacutepheacutemeacuterides historiques politiques et universelles de lrsquoanneacutee preacuteceacutedenterdquo 782 Idem Ibidem

247

Desmarais ldquosatildeo como o material que o obreiro extrai da pedreira e que transporta ao

local da construccedilatildeo aonde ele deve servir para elevar um edifiacutecio majestosordquo

Continham natildeo apenas os fatos mas a indicaccedilatildeo de suas circunstacircncias783 Imerso na

curta duraccedilatildeo o publicista chegaria alguns anos mais tarde a escrever um conjunto de

ensaios sobre o tempo presente784 Mesmo ele entretanto reconhecia a necessidade

historiograacutefica de ldquofechar os olhosrdquo e algo paciente esperar o teacutermino dos relatoacuterios

de trabalho do arquiteto-tempo785 Esse era um expediente que de todo modo natildeo

deixava de expressar uma tensatildeo

Poderiacutea-se fazer notar que o modelo assumido por Desmarais praticava uma

inversatildeo na ordem das efemeacuterides astronocircmicas as quais publicavam os movimentos

celestes do proacuteximo ano ou das astroloacutegicas que o faziam rendendo prognoacutesticos

que variavam de previsotildees metereoloacutegicas a profecias sobre a morte de reis

Concentrar-se no passado recente no entanto natildeo significava ignorar o futuro e de

certo modo essa mudanccedila de praacutetica ainda guardava as mesmas pretensotildees vaticinais

ainda que submetidas a uma nova experiecircncia do tempo ldquoO reino de Luiacutes XVIII

ainda natildeo tombou ao domiacutenio da Histoacuteriardquo como defendia o escritor ldquomas a era da

revoluccedilatildeo o pertence a posteridade jaacute se levantou por elardquo786 O monarca da

restauraccedilatildeo predizia Desmarais ldquoseraacute nomeado grande pela histoacuteriardquo pois se ele natildeo

pocircde mais convocar a ldquoexperiecircncia do passadordquo foi outrossim saacutebio o suficiente para

dominar o presente antecipando e adivinhando o futuro787 ldquoQualquer que seja o

lugarrdquo que ocuparaacute na ldquoHistoacuteria a revoluccedilatildeo e a usurpaccedilatildeo o retorno a monarquiardquo

completava o prognoacutestico ldquoseraacute o fato dominante nos anais do seacuteculo XIXrdquo788

783 Ibidem p I ldquoLes Epheacutemeacuterides sont de tableaux historiques ougrave les eacuteveacutenement et les fait politiques et

remarquables sont classes dans lrsquoordre de date ougrave ils sont arriveacutes On trouve agrave cocircteacute de chaque fait

lrsquoexplication succinte de as cause et de ses conseacutequences des notes attacheacutes agrave chaque article eacutetablissent

les correacutelations que peuvent avoir entre eux des eacuteveacutenements arriveacutes dans la mecircme anneacutee sous les

mecircmes regravegnes et sous lrsquoinfluence des mecircmes circonstancesrdquo 784 DESMARAIS 1827 op cit 785 ldquoLes Ephemeacuterides drsquoune eacutepoque sont comme ces mateacuterieux que lrsquoouvrier extrait de la carrier et

qursquoil transporte sur le lieu meme ougrave ils doivent server agrave eacutelever un majestueux edifice lrsquoarchitecte qui

doit dresser et executer le plan de ce monument nrsquoa point encore paru cet architecte crsquoest le tempsrdquo

DESMARAIS Eacutephemeacuterides 1825 p I 786 Idem Ibidem ldquoLe regravegne de Louis XVIII nrsquoest pas encore tombeacute dans le domaine de lrsquoHistoire mais

lrsquoegravere de la revolution lui appartient la posteacuteriteacute srsquoest deacutejagrave levee pour ellerdquo 787 Ibidem p XIX ldquoIl sera nommeacute Grand par lrsquohistoire parce qursquoappeleacute agrave regir um ordre de choses

entiegraverement nouveau il nrsquoa eacuteteacute aideacute que par as propre sagesse par la force de son caractegravere et par la

supeacuterioriteacute de ses lumiegraveres ne pouvant invoquer agrave son aide lrsquoexpeacuterience du passeacute qui avoit ignoreacute cette

politique pour ainsi dire impreacutevue il a maicirctriseacute le preacutesent en pressentant et comme en devinant

lrsquoavenirrdquo 788 Idem p XII-XIII ldquoQuelle que soit la place que demandent agrave occuper dans lrsquoHistoire la reacutevolution et

lrsquousurpation le retour de la monarchie sera le fait dominant dans les annales du 19e siegraveclerdquo

248

As Efemeacuterides elogiavam o priacutencipe registravam seus feitos mecircs por mecircs

dia-a-dia como uma vez imaginamos fizera Eumenes de Caacuterdia em relaccedilatildeo a

Alexandre Cyprien Desmarais devemos mencionar fora tambeacutem o curioso autor de

uma Histoacuteria das Histoacuterias da Revoluccedilatildeo Francesa retrato ciacutenico e criacutetico da

primeira geraccedilatildeo liberal de historiadores do movimento de 1789 Poreacutem como os

historiadores liberais que detratava ele natildeo era um ldquoobservador desligado fora do

campo ou da histoacuteria que na proacutepria distacircncia apreende em uma visatildeo sinoacuteptica a

verdade de seu objetordquo789 Publicada em 1834 a Histoire des Histoires acompanhava

um ldquomomento poliacutetico () graverdquo caracterizado segundo um escritor bem mais

ceacutelebre ldquopela repercussatildeo perpeacutetua da tribuna sobre a imprensa e da imprensa sobre a

tribunardquo790 Observador atento ao presente Desmarais eacute engajado escreve para ser

lido por seus contemporacircneos e natildeo se furta a fazer as efemeacuterides transitarem de um

uso do futuro em nome do passado a um uso do passado em nome do futuro Para tal

era preciso refletir sobre a revoluccedilatildeo e mais do que isso julgaacute-la a comeccedilar pelo

escrutiacutenio de seus historiadores liberais ou natildeo como o Thiers da Histoacuteria da

Revoluccedilatildeo o Thierry das Lettres sur lrsquohistoire de France ainda Rabaut do Resumo ou

Bouchez e Roux da Histoacuteria Parlamentar

Tal lembranccedila da revoluccedilatildeo natildeo deixava de dever algo agrave tradiccedilatildeo das

efemeacuterides celestes talvez mesmo a pregadores como Antocircnio Vieira embora as

expectativas centradas na voz de Deus fossem substituiacutedas pelas depositadas nos

feitos dos homens sorvendo da influecircncia celeste senatildeo um conjunto de metaacuteforas

luminosas A imagem dos eventos iniciados em 1789 era a mesma de um ldquometeoro

tenebroso que ilumina o horizonte como um incecircndiordquo para depois ldquose perder e sumir

nos abismos dos ceacuteus sem que os astrocircnomos tivessem sido capazes de prever sua

apariccedilatildeo nem explicar sua trajetoacuteriardquo791 Escutar as vozes dessa estrela cadente

prenuacutencio do assassinato dos reis era natildeo mais a tarefa da filosofia natural mas de

um jornalismo moralista Se ldquoa luta de opiniotildees suspendida durante a passagem da

789 HARTOG 2011 p 145 790 ldquoLe moment politique est grave personne ne le conteste () le retentissement perpeacutetuel de la

tribune sur la presse et de la presse sur la tribunerdquo HUGO Victor Les feuilles drsquoautomne J Hetzel amp

cia Paris 1831 prefaacutecio p 1 791 DESMARAIS Cyprien Histoire des Histoires de la Reacutevolution Franccedilaise Pour servir de

compleacutement agrave tous les eacutecrits sur la mecircme eacutepoque Paris Paul Meacutequignon 1834 pp 3-4 ldquoMeacuteteacuteore

effrayant qui eacuteclaire lhorizon comme un incendie et puis va se perdre et srsquoeacuteteindre dans les abicircmes des

cieux sans que les astronomes aient pu ni deviner son apparition ni expliquer son coursrdquo

249

anarquia e do despotismordquo voltava agora com ldquouma nova energiardquo Desmarais jaacute

havia escolhido o seu lado792

A era da revoluccedilatildeo era vista como um tempo de esquecimento ldquoToda a

Franccedilardquo portava-se como se medo ou receio tivesse de ao olhar para o passado

declinar em direccedilatildeo ldquoao abismordquo do qual havia ldquoacabado de sairrdquo793 Nada muito

distante deveria-se dizer da distinccedilatildeo de Tocqueville entre sociedades aristocraacuteticas

suas casas e costumes resistindo ao tempo pela memoacuteria dos ancestrais e sociedades

democraacuteticas com famiacutelias emergindo enquanto outras envoltas pelas neacutevoas do

esquecimento sumiam sem sequer conhecer seus pais 794 Tampouco das opiniotildees de

Edmond Burke que via na memoacuteria e na tradiccedilatildeo as bases de toda ordem social autor

que mereceu uma longa compilaccedilatildeo de citaccedilotildees que dominam o capiacutetulo XXIV da

Histoacuteria das Histoacuterias795

Interessado em fazer conhecer o ldquoespiacuterito da histoacuteria e dos historiadores da

revoluccedilatildeo francesardquo natildeo era a perspectiva criacutetica de Burke e Tocqueville que

Desmarais encontrava nos escritos de homens como Thiers ou Thierry Ao grande

caos iniciado em 1789 eles em geral eram simpaacuteticos fechando os olhos para

quaisquer abusos e dizendo em alta voz que foram todos inevitaacuteveis e eacute

precisamente ldquoa isso que chamamos de escola histoacuterica fatalistardquo796 Avesso a dita

abordagem seu ldquoestudo comparado dos principais historiadores da revoluccedilatildeordquo foi

levado a cabo preferindo associar-se ao lado oposto ldquoa esse trabalho geral de reaccedilatildeo

contra-revolucionaacuteria que se opera nos espiacuteritosrdquo797

Se Thiers era lembrado como aquele que viu no espiacuterito republicano a

representaccedilatildeo da vontade geral da naccedilatildeo Desmarais pergunta-se como ldquocomo uma

revoluccedilatildeo que no desenrolar de seus fatos foi conduzida pelos homens mais perversos

792 DESMARAIS Fragments In Eacutepheacutemeacuterides Historiques 1825 op cit p XXVI 793 Idem ldquoToute la France agrave cette eacutepoque se portoit en avant et dans lrsquoavenir on nrsquoosoit pas regarder

em arriegravere de peur de reculer dans lrsquoabicircme dont on venoit de sortirrdquo p XVIII-IX 794 TOCQUEVILLE Alexis de De la deacutemocratie en Ameacuterique Les classiques des sciences sociales

version numeacuterique par Jean-Marie Tremblay principalmente parte I capiacutetulos XX-XXI e parte II

capiacutetulo I e II pp 84-101 795 ldquoThe very idea of the fabrication of a new government is enough to fill us with disgust and horror

We wished at the period of the Revolution and do now wish to derive all we possess as an inheritance

from our forefathersrdquo BURKE Edmund Reflection of the Revolution in France London John Sharpe

1820 p 49-50 Desmarais chegou a descrever as reflexotildees de Burke como ldquo() ce qui a eacuteteacute eacutecrit de

ramarquable sur la reacutevolution franccedilaiserdquo DESMARAIS Histoire des Histoires 1834 pp 129-156 796 ldquoEm geacuteneacuteral () les historiens de la reacutevolution sont loin de lui ecirctre hostiles () ce qursquoon appeleacute

lrsquoeacutecole historique fataliste () ils ont vu le crime mais ao lieu de dire il est hideux ils ont dit il eacutetait

ineacutevitablerdquo DESMARAIS Histoire des Histoires 1834 p 7 797 ldquoNous avons preacutefeacutereacute nous associer agrave ce travail geacuteneacuteral de reacuteaction contre-reacutevolutionnaire qui srsquoopegravere

dans les espritsrdquo Idem p 8

250

da sociedade poderia produzir efeitos vantajosos a essa proacutepria sociedaderdquo O

publicista via a usurpaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo do rei como um ldquoprinciacutepio anti-socialrdquo o

qual teria sido passado de Mirabeau a ala radical da Assembleia da esquerda aos

girondinos deles agrave montanha os quais por sua vez o abandonaram aos

ldquoterroristasrdquo798 Eacute na transferecircncia desse princiacutepio maligno o qual reside nos coraccedilotildees

dos maus homens que assenta-se a analogia moral preenchida nas paacuteginas da Histoacuteria

das Histoacuterias Desmarais via na revoluccedilatildeo de julho de 1830 ndash na sua nova charte

baseada no princiacutepio da ldquosoberania popularrdquo ndash uma ldquovia difiacutecil e perigosardquo799 Uma

armadilha na qual o girondinos agrave eacutepoca da grande revoluccedilatildeo terminaram por tombar

A historiografia liberal com suas atenccedilotildees voltadas exclusivamente ao futuro seria

incapaz de perceber os sinais da tirania Simpaacuteticos ao espiacuterito da revoluccedilatildeo agraves

sociedades de esquecimento a geraccedilatildeo de Thiers e Thierry terminaria por justificar

seus levantes e usurpaccedilotildees

O sistema da fatalidade (se ele for um sistema) eacute muito

comodo aos historiadores que natildeo querem admitir o

curso loacutegico dos acontecimentos Este sistema natildeo tem

sentido para um seacuteculo que racionaliza e que busca na

histoacuteria liccedilotildees Cordeiros natildeo geram tigres e a

civilizaccedilatildeo uma vez em progresso natildeo deve e natildeo

sabera gerar a barbaacuterie800

Cyprien Desmarais natildeo era exatamente um passadista Mais do que acessar o

topos da histoacuteria mestra da vida ao qual ele natildeo se presta a tecer comentaacuterios

cuidava-se de submetecirc-lo a uma praacutetica historiograacutefica circunscrita ao ldquotempo e a

experiecircncia do tempordquo uacutenicas instacircncias capazes de determinar o ponto de vista

verdadeirordquo801 Isso o permite falar para o presente manter olhos nas liccedilotildees do

passado e as expectativas no futuro Sua escrita reacionaacuteria reconhece a vicissitude

dos costumes a evidecircncia da aceleraccedilatildeo do tempo a falecircncia mesmo que algo

lamentaacutevel dos ldquosistemas antigosrdquo da velha ldquoordem intelectual e moralrdquo como antes

dele reconheceram igualmente os nomes bem menos modestos de Tocqueville e

Chateaubriand

798 Idem pp 39-40 799 Idem p 29 800 ldquoLe systegraveme de la fataliteacute (si crsquoest un systegraveme) est fort commode pour les historiens qui ne veulent

point avouer la marche logique des eacuteveacutenements Ce systegraveme nrsquoest point fait pour un siegravecle qui raisonne

et qui veut chercher des leccedilos dans lrsquohistoire Les agneaux nrsquoengendrent pas les tigres et la civilization

tant qursquoelle est en progregraves ne doit et ne saurait engendrer la barbarierdquo Idem p 49 801 ldquoEm effet crsquoest le temps et lrsquoexperience du temps qui seuls peuvent deacuteterminer la vrai point de

vuerdquo Idem p 5

251

Jaacute nas Efemeacuterides o publicista criticava natildeo o progresso mas a vilania

daqueles que ao longo da revoluccedilatildeo e principalmente do impeacuterio o conduziram em

nome de uma efecircmera gloacuteria militar desprovida de virtude As efemeacuterides histoacutericas

de Desmarais empreendiam um discurso moral o qual seria desenvolvido mais tarde

nas Histoacuteria das Histoacuterias Editando a memoacuteria objetizava naturalizar um tempo

antes desordenado pela revoluccedilatildeo Tempo novo a comeccedilar em 1814 seguindo o

projeto que lhe entregaria novas efemeacuterides em todos os anos subsequentes agrave

restauraccedilatildeo Sua defesa era a defesa do ldquoprinciacutepio eternordquo da monarquia Como

restauraccedilatildeo natildeo apenas da instituiccedilatildeo monaacuterquica mas da proacutepria ordem o espiacuterito de

1814 encontrava pelas matildeos de um grande homem em processo de construccedilatildeo uma

Charte que natildeo era ldquooutra coisa senatildeo a explicaccedilatildeo da sociedade do seacuteculo XIXrdquo

Uma espeacutecie de balanccedilo siacutentese selecionada ou composiccedilatildeo virtuosa das conquistas

que restaram de uma era de sangue e horror802 A referecircncia agrave carta constitucional de

4 de junho de 1814 repete-se nada menos do que 20 vezes ndash associadas portanto a 20

diferentes dias ndash nas Efemeacuterides do reinado de Luiacutes XVIII Jaacute anunciada pela gravura

que abre o livro a densidade memorial impressa sobre a Charte torna-a ldquouma muralha

elevada em frente a legitimidaderdquo o que significa dizer que seu ldquofundadorrdquo

permaneceu ldquoalto e imoacutevel acima dos diversos sistemasrdquo 803 Luiacutes XVIII eacute um

exemplo Exemplo retirado do passado imediato senatildeo mesmo do presente ele

pretende-se um grande homem Como grande homem tornaria-se um modelo capaz

de orientar as accedilotildees futuras oferecendo liccedilotildees Liccedilotildees que natildeo seratildeo escutadas no

entanto pela historiografia liberal E nisso o prognoacutestico reacionaacuterio de Cyprien

Desmarais subscrito ao longo da Histoacuteria das Histoacuterias ia encontrar realizaccedilatildeo no

retorno ao poder apoacutes a Revoluccedilatildeo de 1848 do maior dos inimigos de sua vontade

poliacutetica a tirania usurpadora do partido bonapartista

44 Uma moral e uma cosmologia

Dez anos antes em outubro de 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico

Brasileiro tendo como modelo o Institut Historique de Paris eacute fundado com a tarefa

802 ldquo() la Charte qui nrsquoest autre chose que lrsquoexplication de la socieacuteteacute au 19e siegraveclerdquo DESMARAIS

Eacutepheacutemeacuterides Historiques 1825 op cit p XXI 803 Idem respectivamente p XX ldquoLa Charte est comme um rempart eacuteleveacute em avant de la leacutegimiteacuterdquo P

XIX ldquo() le fondateur de la Charte est resteacute placeacute plus haut et comme immobile au-dessus de ces

divers systegravemes jugeant leurs avantages et leurs inconveacuteniens et arrecirctant leur deacuteveloppement lorsqursquoil

auroit pu devenir funesterdquo

252

de ldquoreunir e organisar os elementos para a historia e geographia do Brazilrdquo804 Coletar

de proviacutencia em proviacutencia as fontes necessaacuterias para a manutenccedilatildeo da memoacuteria das

geraccedilotildees passadas natildeo seria no entanto sua uacutenica atribuiccedilatildeo fundamental Em 1849

o IHGB muda-se para o ldquoPaccedilo da Cidaderdquo local de trabalho do monarca e D Pedro

II aproveita a ocasiatildeo para dirigir-se de modo programaacutetico aos soacutecios O Imperador

natildeo estava satisfeito em ver os historiadores de seu reino debruccedilando-se ldquoquase que

unicamenterdquo sobre os ldquotrabalhos de geraccedilotildees passadasrdquo Era ldquomisterrdquo natildeo apenas ir ao

arquivo escutar a voz da histoacuteria sugeria o soberano mas igualmente tornar sua

proacutepria geraccedilatildeo ldquodigna realmente dos elogios da posteridaderdquo805 O Impeacuterio procurava

seu Tuciacutedides como lembrou Armelle Enders ldquoum historiador agrave antiga que

celebrasse sua gloacuteria e seu seacuteculordquo 806 Mas ele encontraria dificuldades para achar

sequer seu Eumenes de Caacuterdia

Cunha Barbosa fundador do instituto maccedilom e coeditor da gazeta Reveacuterbero

era ldquofigura da linha de frente na luta por um regime constitucionalrdquo partidaacuterio da

submissatildeo dos abusos do poder moderador ao controle da assembleia807 Talvez por

isso natildeo tivesse grandes entraves em abrir os olhos e instigar a reflexatildeo sobre o

presente Problema poliacutetico duacutebio certamente no que a conduccedilatildeo de quaisquer

projetos relativos agrave histoacuteria recente de um jovem Estado assolado por revoltas

provinciais poderia incorrer antecipando a maacutexima de Ernest Renan em lembranccedilas

indesejaacuteveis a um projeto centralizador808 Zona cinzenta da produccedilatildeo historiograacutefica

ela natildeo deixaria de abrir espaccedilo ainda em 1841 a

804 BARBOSA Januaacuterio da Cunha Discurso Revista do IHGB Rio de Janeiro 1 (1) Jan-Mar 1939 p

9 Sobre o modelo das academias francesas ecoando na fundaccedilatildeo do IHGB ver GUIMARAtildeES Manoel

Luis Salgado Historiografia e Naccedilatildeo no Brasil (1838-1857) Rio de Janeiro Eduerj 2011 pp 99-114

para quem o Instituto de Paris representava o ldquoparadigma generalizado do pensamento do seacuteculo XIXrdquo

quer seja aquele que visse a histoacuteria como uma necessidade dos tempos condiccedilatildeo uacuteltima para o

progresso como forma de recolher liccedilotildees para o presente e o futuro 805 Revista do IHGB Discurso de D Pedro II Rio de Janeiro 12 (16) Out-dez 1849 p 551 806 ENDERS 2014 p 216 807 GUIMARAtildeES MLS 2011 p 71 808 As soluccedilotildees apresentadas variavam do engavetamento ou recusa dos projetos ateacute a acomodaccedilatildeo de

fontes em uma ldquoArca do Sigilordquo Sobre o problema do tempo presente no IHGB do seacuteculo XIX ver

CEZAR Temistocles Presentismo memoacuteria e poesia Noccedilotildees da escrita da Histoacuteria no Brasil

oitocentista In Sandra Jatahy Pesavento (Org) Escrita Linguagem objetos Leituras de Histoacuteria

cultural Bauru Edusc 2004 v 1 p 43-80 Para uma perspectiva que trabalha a imagem de um

ldquotribunal da posteridaderdquo associado ao distanciamento temporal necessaacuterio aos juiacutezos de verdade ver

GUIMARAtildeES Lucia Paschoal O Tribunal da Posteridade In PRADO Maria Emiacutelia O Estado

como vocaccedilatildeo Rio de Janeiro Acess 1999 pp 33-57 Ver tambeacutem o recente trabalho de TIBURSKI

Eliete Lucia Escrita da histoacuteria e tempo presente no Brasil oitocentista Dissertaccedilatildeo de Mestrado

UFRGS 2011 p 138 que demonstra a existecircncia de um ldquoespaccedilo possiacutevel e legiacutetimo para a histoacuteria

recente ao mesmo tempo que sua publicaccedilatildeo esteve sempre condicionada ao exame dos seus pares que

natildeo soacute podiam como vetavam muitos dos trabalhos apresentados ()rdquo

253

Outro trabalho natildeo menos importante e cujo valor sera

bem apreciado nas geraccedilotildees futuras [o qual] tem

emprehendido o Instituto desde a sua fundaccedilatildeo sobre a

proposta de seu Secretaacuterio Perpetuo e o continua com a

patriotica perseveranccedila aperfeiccediloando-o de mais em

mais e enriquecendo-o dia por dia com os

acontecimentos ocorrentes segundo a ordem em que se

succedem Fallo Srs das nossas Ephemerides

historico-politicas escriptas com promptidatildeo e

fidelidade no primeiro e no Segundo anno de nossa

existencia academica (hellip)809

Da mesma forma que imaginara Desmarais do outro lado do Atlacircntico o

secretaacuterio perpeacutetuo via nas Efemeacuterides Histoacuterica e Poliacuteticas uma compilaccedilatildeo de fatos

nos quais ldquoencontraraacuteotilde os escriptores da historia do Brasil sufficiente material sobre

que possam trabalharrdquo O edifiacutecio majestoso no caso deveria se tornar um

monumento agrave ldquomarcha gloriosardquo do governo imperial810 Assim tatildeo cedo quanto em

1839 Cunha Barbosa encarregou dois soacutecios de formar um comitecirc para a elaboraccedilatildeo

da narrativa dia-a-dia dos fatos e feitos do Impeacuterio do Brasil Attaiacutede Moncorvo e

Mariz Sarmento em breve receberiam a companhia de Joseacute Clemente Pereira homem

da geraccedilatildeo da independecircncia e articulador do golpe de 1840 que propos ao Instituto

voltar os olhos aos ldquofatos memoacuteraveisrdquo do reinado de Pedro II811 ldquoAo que tudo

indicardquo ponderou Lucia Paschoal Guimaratildees ldquoas duas iniciativas se fundiram e a

escrituraccedilatildeo das lsquoEfemeacuteridesrsquo ganhou maior notoriedaderdquo sendo repassada agrave

responsabilidade do orador do IHGB Diogo Soares da Silva Bivar De iniacutecio suas

efemeacuterides recolhiam fatos de naturezas diversas e pequenas notiacutecias sobre o dia-a-dia

carioca acompanhando a pouca clareza de um gecircnero que histoacuterico carecia de uma

autoridade modelar antiga que natildeo houvesse se perdido A saiacuteda encontrada por Bivar

foi transformar as efemeacuterides em Crocircnica com os informes de relatos puacuteblicos fuga

de escravos e translado de corpos diplomaacuteticos dando lugar paulatinamente aos

ldquorelatos da trajetoacuteria das tropas imperiais empenhadas no combate aos insurretos de

Satildeo Paulo e Minas Geraisrdquo Seu trabalho outrossim jamais fora publicado O acesso

aos documentos das proviacutencias mostrava-se difiacutecil os informes eram incompletos ou

809 BARBOSA Januaacuterio da Cunha Relatoacuterio do Secretaacuterio Perpeacutetuo Revista do IHGB Rio de

Janeiro 3 (Suplemento) 1841 p 529 Grifos meus 810 Idem Ibidem 811 Revista do IHGB Rio de Janeiro 2 (8) 1840 p 401

254

defasados os atrasos frequentes e a atenccedilatildeo dos colegas cada vez mais rara812

Mais tarde jaacute no segundo reinado a relaccedilatildeo entre as efemeacuterides e a imprensa

diaacuteria se faria notar entre as vastas publicaccedilotildees do entatildeo orador do IHGB Joaquim

Manoel de Macedo Sua Efemeacuteride Histoacuterica do Brasil apareceu no diaacuterio O Globo

entre 1874 e 1876 para depois ser editada em volume uacutenico no ano seguinte Ela

comentava diariamente um fato notaacutevel do passado brasileiro relacionado agrave data de

publicaccedilatildeo do jornal impressa em uma coluna da primeira paacutegina813 Pouco mais

tarde seria precisamente a relaccedilatildeo entre as efemeacuterides e o jornalismo uma das

desculpas utilizadas pelos pareceristas do IHGB para a negativa de fomento agrave

publicaccedilatildeo da obra O Ano Histoacuterico Rio-Grandense Em 1885 Pereira Coruja enviou

ao instituto sua compilaccedilatildeo de 2700 efemeacuterides relativas agrave histoacuteria da provincial do

Rio Grande do Sul Alegando falta de recursos o autor requisitou auxiacutelio financeiro

para a impressatildeo do escrito No parecer original apesar de elogiarem o trabalho de

arquivo e o levantamento das fontes utilizadas por Coruja os avaliadores do IHGB jaacute

indicavam que as efemeacuterides ldquodatas comemorativas de grandes acontecimentosrdquo

eram ldquomais proacuteprias para as folhas diaacuterias pela recordaccedilatildeo dos fatos dados em igual

dia mas em diferentes anos trazendo assim agrave lembranccedila sucessivos aniversaacuteriosrdquo O

modelo que seguia estrutura similar ao ldquogrande anordquo das Efemeacuterides de Noeumll

parecia-lhes tambeacutem muito vasto e difiacutecil de julgar814

Luciana Fernandes Boeira jaacute demonstrou como em uma seacuterie de pareceres

tensos e tanto confusos as Comissotildees de Redaccedilatildeo e Orccedilamento do IHGB resolveram

negar apoacutes um silecircncio de dois anos o auxiacutelio agrave publicaccedilatildeo de Pereira Coruja815 A

justificativa que indefiria o pedido era dada pela natureza extensa do trabalho o qual

ocuparia ldquoum tomo inteiro da Revista se for publicado uma vezrdquo ou levaria ldquoalguns

812 GUIMARAtildeES Luacutecia Maria Paschoal Debaixo da imediata proteccedilatildeo de Sua Majestade Imperial O

Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (1838-1889) Revista do IHGB Rio de Janeiro a 156 nordm

388 p 459-613 jul-set 1995 pp 532-533 O manuscrito de Diogo Bivar consultado pela historiadora

estaacute preservado no arquivo do IHGB nas suas duas versotildees BIVAR Diogo Soares da Silva de

Efemeacuterides brasileiras Ms IHGB lata 45 pasta 5 Marccedilo de 1839 a marccedilo de 1841 e BIVAR

Crocircnica de 1842 Ms IHGB D 13321 p 78 e verso 813 MACEDO Joaquim Manuel de Efemeacuteride Histoacuterica do Brasil O Globo ndash Oacutergatildeo dedicado aos

interesses do comeacutercio lavoura e induacutestria In STRZODA Michelle O Rio de Janeiro de Joaquim

Manuel de Macedo jornalismo e literatura no seacuteculo XIX Antologia de Crocircnicas Casa da PalavraRio

de Janeiro 2010 pp 697-716 814 Revista do IHGB 1885 (2) pp 394-395 815 BOEIRA Luciana Fernandes Como salvar do esquecimento os atos bravos do passado rio-

grandense a Proviacutencia de Satildeo Pedro como um problema poliacutetico-historiograacutefico no Brasil Imperial

Tese de Doutorado UFRGS 2013 pp 109-112

255

anos a publicar-se se for em partes o que natildeo pode convir ao autor da obrardquo816 Fosse

pela prudecircncia dos pareceristas em incluir na revista do instituto um rol de fatos

comemorativos de uma proviacutencia beligerante fosse por questotildees materiais e

financeiras a negativa do IHGB natildeo deve ter desanimado totalmente o autor Com o

auxiacutelio da querecircncia gauacutecha acampada na corte Coruja natildeo encontraria dificuldades

para publicar apenas um ano depois o primeiro folheto de uma

ldquoobra cujo titulo indica que deve constar dos factos e

noticias mais notaacuteveis do Continente do Rio Grande do

Sul [e que] comemora tambem muitos acontecimentos

da proviacutencia de Santa Catharina dos territoacuterios drsquoaacutequem

e drsquoaacutelem do Prata e do Paraguai relativos aacute proviacutencia

aleacutem de muitos factos e leis geraes que convecircm serem

sabidos pelos rio-grandeses curiosos das letras

paacutetriasrdquo817

Essa natildeo foi a uacutenica efemeacuteride regional a ser publicada no Brasil de fins do

seacuteculo XIX Poderiacuteamos destacar tambeacutem as Efemeacuterides Mineiras de Joseacute Pedro

Xavier da Veiga Nelas como Noeumll fizera com a Franccedila a histoacuteria de todas as Minas

Gerais aparece fechada em um ciclo de um uacutenico ano Alias eacute no volume II referente

aos meses de abril a junho ndash que aparece natildeo apenas o supliacutecio de Tiradentes esse

acontecimento ldquosombrio e traacutegico epiacutelogo da gloriosa Inconfidencia Mineirardquo

seguido de um longo elogio do movimento ndash como tambeacutem um comentaacuterio simpaacutetico

a Bernardo Pereira de Vasconcelos o liberal arrependido e apoacutestolo do ldquoretrocesso

conservadorrdquo 818 Se pudermos confiar nos testemunhos registrados na Carta aos

Senhores Eleitores da Proviacutencia de Minas Gerais veremos na transcriccedilatildeo do discurso

do deputado Souza Franccedila um trabalho de memoacuteria objetivado no dia 3 de maio que

foge ao ldquoJuacutebilo Nacionalrdquo do Descobrimento

816 Revista do IHGB 1887 (2) p 357 817 CORUJA Antonio Alvares Pereira Anno Historico Sul-Rio-Grandense em Forma de Ephemerides

Editado por uma associaccedilatildeo de rio-grandenses do sul Rio de Janeiro Typ De Joseacute Dias de Oliveira

1888 Primeiro Folheto 1 de Janeiro a 31 de Marccedilo Proacutelogo sp 818 VEIGA Joseacute Pedro Xavier da Ephemerides Mineiras (1664-1897) Volume II (Abril a Junho)

Ouro Preto Imprensa Official do Estado de Minas 1897 respectivamente pp 103 e 209 Sobre

Bernardo Pereira de Vasconcelos sigo tambeacutem CARVALHO Joseacute Murilo de (org) Bernardo Pereira

de Vasconcelos Editora 34 Satildeo Paulo 1999 pp 9-34 Segundo Carvalho na fase liberal de sua

carreira que compreende o periacuteodo da Carta a ldquopreocupaccedilatildeo centralrdquo de Vasconcelos ldquofoi colocar em

funcionamento a monarquia representativa acabar com os resiacuteduos do absolutismo ainda vigente na

cabeccedila e nas praacuteticas do imperador de seus ministros e ateacute mesmo nas leis Rio Branco diria mais tarde

que ele fora ldquoo verdadeiro mestre do parlamentarismo no Brasilrdquo Joaquim Nabuco jaacute dissera antes que

sua palavra e a pena de Evaristo tinham sido ldquoa ferramenta simples mas poderosa que esculpe o

primeiro esboccedilo do sistema parlamentar no Brasilrdquo idem p 17

256

() sempre se festejaratildeo certos dias () Poreacutem porque

razatildeo o natildeo seraacute tambem o dia 3 de maio (apoiado

geralmente) Dia da instalaccedilatildeo do Corpo Legislativo

Hum dia que afianccedila a todos noacutes a nossa Liberdade a

nossa verdadeira felicidade natildeo seraacute taatildeo grande para o

Brasil como os especificados neste Projecto819

A lei de 1826 que estabelecia como dias de festividade nacional ldquoem todo o

Impeacuterio os dias 9 de Janeiro 25 de Marccedilo 3 de Maio 7 de Setembro e 12 de

Outubrordquo entretanto se absteve de fazer quaisquer menccedilotildees ao significado dessas

efemeacuterides Legalmente vazias as datas estavam assim abertas ao ofiacutecio de qualquer

valor820 Celebrar a instalaccedilatildeo da primeira legislatura do paiacutes dois anos apoacutes a

traumaacutetica dissoluccedilatildeo da Constituinte que levou Bonifaacutecio ao exiacutelio talvez soasse

como uma criacutetica ao Imperador senatildeo mesmo agrave monarquia Como lembrou Joseacute

Murilo de Carvalho ldquoo ambiente poliacutetico era de tensa expectativardquo a liberdade de

imprensa estava ameaccedilada jornalistas estavam sendo perseguidos e claramente ldquoa

lua-de-mel do paiacutes com d Pedro I jaacute acabarardquo 821

Natildeo seria estranho para dizer o miacutenimo que um homem com as credenciais

eruditas de Ramiz Galvatildeo ndash ele mesmo soacutecio do IHGB desde 1872 ndash caiacutesse em uma

armadilha centenaacuteria deixando-se confundir em virtude da reforma do calendaacuterio

gregoriano822 Ainda mais bizarro seria aceitarmos que um jornalista advogado e

aspirante a historiador jaacute em sua juvenilia tivesse desmontado o edifiacutecio magestoso

de um Centenaacuterio alicerccedilado nos peacutes de barro de uma efemeacuteride tatildeo incorreta quanto

aquelas publicadas por Nostradamos Faccedilamos entatildeo ouvir o que dizia o baratildeo de

Ramiz jaacute no discurso de abertura da primeira Sessatildeo Magna da Associaccedilatildeo realizada

precisamente no dia 3 de maio de 1899 contando com a presenccedila do presidente

Campos Salles e do poeta Olavo Bilac

819 VASCONCELLOS Bernardo Pereira de Carta aos Senhores Eleitores da Proviacutencia de Minas

Gerais Francisco Rodrigues de Paiva Rio de Janeiro 1899 cap III Lei que fixa os dias de festividade

Nacional p 24 820 Lei de 9 de Setembro de 1826 ndash Marca os dias de festividade nacional em todo o ImperioIn

Colleccedilatildeo das Leis do Impeacuterio do Brasil Parte Primeira Rio de Janeiro Typographia Nacional 1880

p 7 821 CARVALHO 1999 p 13 822 Sobre a relaccedilatildeo de Ramiz Galvatildeo com o IHGB veja-se GUIMARAtildeES 2007 especialmente pp 60-

61 quando a autora comenta que soacutecio desde 1872 o baratildeo de Ramiz voltaria agrave atividade no instituto

por volta de 1907 embora natildeo possa precisar os motivos de seu retorno

257

Vecircde agora o centenaacuterio do descobrimento do Brasil Do

venturoso achado de 1500 surge uma naccedilatildeo da viagem de

Cabral rebenta a constuiccedilatildeo de um povo unificado pela

raccedila pela religiatildeo pela liacutengua e pelos costumes ndash um

povo que nasceu portuguez mas eacute hoje profundamente

radicalmente autonomo livre () Da aurora de Porto-

Seguro levantou-se altivo e radioso um sol que as brumas

do passado puderam por algum tempo annuviar mas que

accediloitou os nevoeiros rasgou impavido as sombras da

escravidatildeo e caminha hoje em sua derrota ndash augusto

soberano no ceacuteu da Histoacuteria Este povo brasileiro feitura

graciosa de matildeos portuguezas este coraccedilatildeo que palpita

agora em 16 milhotildees de homens por muito as influencias

do meio cosmico e o cruzamento de raccedilas o tenham

modificado eacute portanto ndash obra drsquoaquelle feliz

acontecimento maritimo de 22 de Abril de 1500 que

celebramos823

Teria sido essa uacuteltima diatribe das efemeacuterides causada pelo oportunismo de

um jovem cheio de ambiccedilotildees acadecircmicas a escalar uma torre de marfim com o

auxiacutelio de palavras bem escolhidas jogando com a autoestima abalada de um IHGB

financeira e intelectualmente deprimido pela nascente repuacuteblica A confusatildeo em

torno do 3 de maio sobre a qual Fleiuss levantava a voz ndash seguindo de perto faria

bem frisar de muito perto as palavras de Aquino e Castro ndash poderia ter tido ainda

outras repercussotildees824 Victor Meirelles havia se comprometido com a pintura de um

quadro comemorativo do Descobrimento do Brasil ldquoExtraordinaacuterios embarccedilosrdquo no

entanto retardaram a inauguraccedilatildeo da ldquogrande tela que devia ser feita nos dias festivos

de Maio por ocasiatildeo das outras sollenidades commemorativasrdquo Apenas no dia 11 de

Junho no entanto o Panorama do Descobrimento do Brasil estaria pronto para a

exibiccedilatildeo825 O jornalista e poeta Carlos de Laet registrou suas primeiras impressotildees a

respeito da obra

Ao entrar na platafoacuterma do Panorama poacutede o espectador

considerar-se orientado no local do desembarque e

nesta hypothese fica-lhe aacute frente a Leacuteste o olheacuteu da

823 ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro do

Centenaacuterio 1500-1900 Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1900-1910 Volume 4 pp 91-92 Grifos

meus 824 Alguns historiadores jaacute se depararam com a disputa oitocentista em torno do significado histoacuterico do

trecircs de maio dos quais destaco CARVALHO Joseacute Murilo de (org) Bernardo Pereira de Vasconcelos

Satildeo Paulo Editora 34 1999p 73 SOUZA Iara Lins de Carvalho Paacutetria coroada O Brasil como

corpo poliacutetico autocircnomo 1790-1831 Satildeo Paulo Unesp 1999 pp 252-255 e mais recentemente

ENDERS Armelle 2014 p 61 825 ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro do

Centenaacuterio 1500-1900 Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1900-1910 Volume 4 pp 286

258

Coroa Vermelha Na terra firme fronteira a Oeste foi

que frei Henrique por ordem e com assistencia de

Cabral e bem assim da luzida comitiva celebrou a

famosa missa de 3 de Maio de 1500826

Uma missa De fato temos agora um trio de acontecimentos que poderiam ser

associados ao trecircs de maio o descobrimento amarrado agrave data por um suposto erro de

caacutelculo relativo agrave reforma do calendaacuterio gregoriano a instalaccedilatildeo do Corpo Legislativo

e ainda a ldquofamosa missardquo que ao menos desde Varnhagen pensaacutevamos ter ocorrido

no dia 26 de abril827 De todo modo a relaccedilatildeo dos organizadores dos festejos e do

Livro do Centenaacuterio com a Igreja Catoacutelica tem passado despercebida pelos

comentadores do grande ldquoJubileu Nacionalrdquo A proacutepria escolha do nome do evento

carrega um significado religioso que remete ao ano de 1300 senatildeo mesmo a uma

praacutetica recorrente do papado Em 1900 as festas nacionais desenrolaram-se ao longo

de quatro jornadas do chuvoso 3 de maio ateacute o dia 6 daquele mecircs O ldquoprograma do

festival que inaugura o centenaacuteriordquo previa em sua ordem a apresentaccedilatildeo do hino

nacional seguido do Hino portuguecircs e por uacuteltimo do hino do centenaacuterio828 Mas natildeo

era apenas a heranccedila lusitana que deveria ser afirmada No primeiro dia agrave

inauguraccedilatildeo do monumento do Descobridor de autoria de Rodolfo Bernardeli e

sitiado no paccedilo da Gloacuteria antecedeu-se uma missa campal bem registrada por uma

fotografia na qual se contam inuacutemeras almas apinhadas de guarda-chuvas em matildeos

No dia 6 jaacute agraves 11hrs da manhatilde sob um clima mais cristatildeo cantaria-se o Te Deum

Apoacutes a profissatildeo de feacute padre Juacutelio Maria toma a palavra da qual retiro o seguinte

excerto

() este Te Deum natildeo eacute sinatildeo um reconhecimento da

origem divina da nossa nacionalidade uma affirmaccedilatildeo

da vocaccedilatildeo do Brasil () Glorificae a Deus porque eacute

Deus quem domina as naccedilotildees Regnabit Deus super-

gentes A Religiatildeo que comprehende a falsa sciencia

tentando explicar o mundo e a falsa sociologia tentando

explicar os povos sem Deus comprehende tambem o

826 Idem pp 286-287 Grifos meus 827 Robert Southey indicava a data de 1 de maio ainda argumentando que ldquo() subiu Fr Henrique a

um puacutelpito donde pregou como era costume naqueles tempos sobre o evangelho do dia e as vidas de

S Felipe e S Tiago que a Igreja comemora no 1ordm de maiordquo SOUTHEY Robert Histoacuteria do Brasil

Primeiro Volume Ediccedilotildees do Senado Federal Vol 133-A Brasiacutelia 2010 p 41 Cf VARNHAGEN

Francisco Adolfo Histoacuteria Geral do Brazil Rio de Janeiro Laemmert 1854 p 16 ldquoNo dia 16 do

mencionado Abril que era o domingo de Paschoela foram todos os da armada assistir aacute missa que foi

celebrada em um ilheo ou restinga que se acha aacute entrada do dito Porto Segurordquo 828 ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro do

Centenaacuterio 1500-1900 Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1900-1910 Volume 4 p 161

259

naturalismo que nega a Providencia Divina no govecircrno

das naccedilotildees Na ordem natural ndash Deus natildeo eacute somente

creador do mundo eacute tambeacutem senhor do mundo de que

o homem eacute apenas o usufructario829

Para o padre Maria como explicaria a seguir natildeo era ao progresso que a

comemoraccedilatildeo nacional deveria prestar tributos mas agrave perfeiccedilatildeo ao elo da alma com o

absoluto celestial O progresso em seu aspecto teacutecnico e material era visto como

produtor da crise ou da decadecircncia moral um topos comum como vimos a diversos

pensadores oitocentistas Entendido como um processo no qual o agente empiacuterico da

accedilatildeo eacute exonerado e ldquoas experiecircncias satildeo superadas com uma velocidade

surpreendenterdquo o progresso compartilha com a decadecircncia o fato de ldquoconceitualizar

transformaccedilotildees no tempo histoacutericordquo 830 O caraacuteter ciacuteclico dos centenaacuterios poderia

indicar a Julio Maria a oportunidade de oficiar uma ordem natural na qual as

mudanccedilas se ocorrerem deveriam servir antes a providecircncia do que aos homens As

criacuteticas ao ideaacuterio do progresso imagem muito associada ao longo do fenocircmeno dos

centenaacuterios natildeo precisariam ser feitas a partir de loacutegicas providenciais Em um ensaio

que reflete sobre uma das grandes Exposiccedilotildees Universais do seacuteculo XIX Ernest

Renan marcava o tom das cobranccedilas afirmando que alguns

() natildeo compreendem nada atingidos pelos grandes

progressos industriais de nosso tempo a imaginar que

tal progresso sinaliza uma revoluccedilatildeo no espiacuterito

humano Essas pessoas tomam o que eacute acessoacuterio a uma

revoluccedilatildeo como principal se a filosofia da histoacuteria lhes

fosse mais familiar eles veriam que a perfeiccedilatildeo das artes

mecacircnicas pode se aliar a uma grande depressatildeo moral e

intelectual831

A mais famosa das ldquofeiras do progressordquo no entanto seria aquela sediada por

ocasiatildeo do centenaacuterio da revoluccedilatildeo O ano de 1889 eacute vaacutelido dizer seria inclusive ao

menos na Franccedila mais lembrado por muitos como a data de construccedilatildeo da Torre

829 Ibidem p 236-237 830 KOSELLECK Reinhardt The practice of conceptual history timing history spacing concepts

Stanford University Press Cultural Memory in the Presente Stanford 2002 p 220 831 ldquoVoilagrave ce que ne comprennent point assez les personnes qui frappeacutees des grands progregraves industriels

de notre temps srsquoimaginent que de tels progregraves signalent une reacutevolution dans lrsquoesprit humain Ces

personnes prennent lrsquoaccessoire de la civilisation pour le principal si la philosophie de lrsquohistoire leur

eacutetait plus familiegravere elles verraient que la perfections des arts meacutecaniques peut srsquoallier agrave une grande

deacutepression morale et intellectuellerdquo RENAN Ernest La poeacutesie de lrsquoexposition In Essais de morale et

de critique Paris Calman Leacutevy 1859 p 370

260

Eiffel da grande Exposiccedilatildeo Universal Internacional revelando algo como uma face

apoliacutetica da comemoraccedilatildeo revolucionaacuteria832 O Brasil natildeo deixou de participar do

gigantesco evento comercial daquele ano Como monarquia o governo sentia-se

impedido de juntar-se oficialmente a uma festa que visava celebrar um processo que

levou a decapitar reis e nobres ndash um dos projetos apresentados ao edital puacuteblico

encarregado de escolher o monumento comemorativo previa a construccedilatildeo de uma

guilhotina de 300 metros Pedro II no entanto entuasiasta da Franccedila e do progresso

acolheu bem a proposta de formaccedilatildeo de um comitecirc franco-brasileiro para a

exposiccedilatildeo O visconde de Cavalcanti chega a Paris em 1888 com a missatildeo de

organizaacute-lo junto ao senador Eduardo da Silva Prado e segundo a ata de fundaccedilatildeo da

entidade deveriam ser expostos apenas produtos que refletissem o progresso da

naccedilatildeo833 ldquoO Brasil a despeito de sua chegada tardia pocircde encontrar no Campo de

Marte uma localizaccedilatildeordquo agrave margem do lago situado logo aos peacutes da grande torre834

Anos antes Renan natildeo deixou de fazer pilheacuteria dessas ldquofeiras do progressordquo

Chegou a escrever que ldquoo profeta de nossa era Fournier previu que um diardquo ao inveacutes

de celebrar grandes feitos da histoacuteria ldquoas porccedilotildees rivais da humanidade disputaratildeo a

excelecircncia na confecccedilatildeo de petits gacircteuxrdquo 835 Alguns anos mais tarde e do outro lado

do atlacircntico o Imperador no entanto parecia feliz No dia ldquo11 de dezembro de 1888

SMI abriu pessoalmente a exposiccedilatildeo preparatoacuteria no Rio de Janeirordquo e como registra

o documento oficial do evento ldquodemonstrou seu prazer em constatar nessa exposiccedilatildeo

o progresso da induacutestria brasileirardquo 836 O avanccedilo da induacutestria local certamente

impressionou os visitantes do mundo inteiro que aleacutem de vislumbrar todo o tipo de

madeira exoacutetica tabacos diversos e oacuteleos de oititica poderiam levar de presente para

a seguranccedila do lar amostras graacutetis (echantillons) do melhor amianto da terra837

832 AGENOT Marc Le centenaire de la reacutevolution 1989 La documentation franccedilaise 1989 Direction

de la documentation franccedilaise Collection ldquoLes meacutedias et lrsquoeacuteveacutenementrsquo BNF Paris [8-g-23517] p 1 833 EXPOSITION UNIVERSELLE DE PARIS 1889 Empire du Bregravesil Catalogue Officiel 6 mai

1889 BNF 8-v-21701-L 333-A 834 Ibidem p 54 835 ldquoLe prophegravete de notre acircge Fournier avait preacutedit qursquoun jour au lieu de se rencontrer dans des

batailles ou des conciles oecumeacuteniques les portions rivales de lrsquohumaniteacute se disputeraient lrsquoexcellence

dans la confection des petits gacircteaux Sans doute ce grand progregraves nrsquoest pas encore pleinement

accompli mais bien des pas ont eacuteteacute faits en ce sens il y a quelques jours les plus fortes tecirctes de

lrsquoEurope eacutetaient occupeacutees agrave deacutecider quelle nation fabrique le mieux la soie ou le cotonrdquo RENAN

1859 357 836 ldquoLe 11 deacutecembre 1888 as magesteacute lrsquoempereur ouvrait em personne lrsquoexposition preacuteparatoire agrave Rio-

de-Janeiro et reacutepondant agrave um discours de M le Viscomte de Cavalcanti as majesteacute exprima son plaisir

de constater dans cette exposition les progregraves de lrsquoindustrie breacutesiliennerdquo EXPOSITION

UNIVERSELLE DE PARIS op cit p 5 837 Ibidem pp 58-79

261

Pouco mais tarde no contexto dos quatrocentos anos do Brasil o cacircncer do

paiacutes atenderia pelo nome de ldquocriserdquo ou ldquodecadecircnciardquo moral Koselleck lembra bem

que mesmo o conceito de revoluccedilatildeo ndash como tivemos a oportunidade de acompanhar

em Aristoacuteteles e na tradiccedilatildeo peripateacutetica ndash tinha um ldquosentido espacialrdquo encontrado na

ldquooacuterbita das estrelas antes que o termo fosse aplicado a tendecircncias sociais e poliacuteticasrdquo

838 O conceito de progresso segundo o historiador alematildeo por sua vez tornaria-se

moderno quando ldquoverteu ou esqueceu seu sentido de fundo natural de marchar ao

longo do espaccedilordquo A referecircncia figurativa teria desaparecido ao passo que por volta

de 1800 ldquoprogresso tornou-se um conceito genuinamente histoacuterico enquanto que

lsquodecliacuteniorsquo (decline) ou lsquodecadecircnciarsquo (decay) natildeo foram capazes de verter seu pano de

fundo natural e bioloacutegico da mesma maneirardquo 839

Ainda outro conceito ndash muito utilizado pelo uacuteltimo Spencer como vimos no

segundo capiacutetulo ndash faria parte mesmo do vocabulaacuterio dos personagens mais ufanistas

De origem propriamente astronocircmica empregado para representar o movimento

aparente irregular do planeta Marte o termo apareceria no alerta de Afonso Celso em

1914 a respeito da ldquocataacutestrofe que assoberta o Velho Mundo e vai obedecendo agraves leis

abscocircnditas da Providecircncia fazer talvez retrogradar a civilizaccedilatildeordquo 840 Como

mostram os trabalhos de Hugu Hrugy e Luacutecia Paschoal Guimaratildees entre o final do

seacuteculo XIX e o iniacutecio do XX natildeo apenas a memoacuteria monarquista parece ter se

encastelado no IHGB como tambeacutem assistimos ao ingresso nos quadros do instituto

de uma legiatildeo de padres de alto posto encabeccedilando discussotildees sobre a matildeo de Deus e

retomando a providecircncia como princiacutepio explicativo da histoacuteria universal841 Como

escreveu Paschoal Guimaratildees ldquotal qual um oraacuteculordquo ou como as sibilinas de Antonio

Vieira ldquoAfonso Celso arriscava perpretar previsotildees sobre o devirrdquo 842

Em 1900 algo uniria para aleacutem dos tiacutetulos por concessatildeo papal e os cargos

eclesiaacutesticos os organizadores do Jubileu Nacional e a Igreja de Roma A tarefa

comemorativa guardadas suas vicissitudes natildeo era em nada estranha aos princiacutepios

do cristianismo como natildeo seria dois milecircnios mais tarde aos princiacutepios da

identidade nacional oficiados pela liturgia ciacutevica Por volta de 63 dC Satildeo Paulo da

838 KOSELLECK 2002 220 839 Idem p 221 840 CELSO Afonso Discurso de abertura proferido em 07 de setembro de 1914 In Anais do

Primeiro Congresso de Histoacuteria Nacional Rio de Janeiro IHGB 1915 Tomo I p 85 apud

GUIMARAtildeES LMS 2007 p 67 Grifos meus 841 HRUBY Hugo op cit 52 842 GUIMARAtildeES LMP 2007 67

262

Roma de Nero teria escrito uma dramaacutetica carta endereccedilada aos judeus receacutem

conversos da Palestina Mais tarde Jacques-Beacutenigne Bossuet Eacuteveacuteque de Meaux e da

histoacuteria providencial que reanimaria as almas do IHGB de padre Maria descrevia a

epiacutestola aos Hebreus como ldquoa mais eloquente apologia do Novo Testamentordquo

incitando os protestantes a aceitaacute-la843 Como o autor do Discours sur lrsquohistoire

universelle gostava de lembrar a autoridade do texto era reconhecida como ldquocanocircnica

desde os tempos de S Jerocircnimo em dianterdquo844

A epiacutestola aos hebreus preocupava-se com a reminiscecircncia de praacuteticas

judaizantes temendo desde aquela eacutepoca pela universalidade do cristianismo ldquoNova

alianccedilardquo no entanto ela natildeo era em nada parecida agravequela feita muitos anos antes com

os pais de Israel (Hebraeus VIII9) O menino de Beleacutem era superior ao transpositor

do Mar Vermelho Como havia profetizado Davi no milecircnio anterior a Palavra

declarava que o Salvador seria tambeacutem ldquoSacerdote eternamente (in aeternum)

segundo a ordem de Melchisedechrdquo (Salmos 1107 Hebraeus V6)

A nova Lei abolia a velha pois ldquose a perfeiccedilatildeordquo (consummatio) fosse criada

ldquopelo Sacerdoacutecio Leviticordquo por que haveria necessidade que se levantasse um novo

(Hebraeus VII11) Nenhuma Lei levou os homes agrave perfeiccedilatildeo embora tenha

introduzido-os na esperanccedila de alcanccedilaacute-la (Hebraeus VI19) Paulo teria em mente

expurgar os maus costumes dos ancestrais que acreditavam ldquopurificar a consciencia

do que sacrificava por meio somente de manjares e bebidasrdquo (Hebraeus IX9)

Pensava diretamente nas oblaccedilotildees e holocaustos oferendas praticadas durante a velha

alianccedila ndash patildees e oacuteleos farinha e animais ldquosem defeitordquo ndash prescritas e glosadas em

pormenores no Velho Testamento (Leviticus XVI-XXVIII) Testamento que natildeo teria

nenhum valor na visatildeo do santo como aliaacutes nenhum outro tem sem a morte de quem

o realizou (HebraeusIX16-17)

Natildeo havia mais necessidade dos sacerdotes oferecerem imolaccedilotildees diaacuterias

esclarecia a epiacutestola uma vez que o Salvador jaacute entregara a si mesmo em holocausto

(Hebraeus VII27) E ldquonos mesmos sacrifiacutecios se faz memoria dos peccados todos os

annosrdquo (sed in ipsis commemoratio peccatorum per singulos annos fit) A remissatildeo

dos pecados natildeo poderia mais ser alcanccedilada pela velha lei mas sim atraveacutes da Nova

843 apud A BIBLIA SAGRADA Introducccedilatildeo [agrave Epiacutestola de Satildeo Paulo aos Hebreus] Contento o Velho

e o Novo testamento Traduccedilatildeo da Vulgata pelo Padre Antonio Pereira de Figueiredo (1725-1797)

Lisboa Empreza da Historia de Portugal 1902 3 volumes p 502 844 ldquoLe torrent des Peres Latins comme des Grecs cite lrsquoEpicirctre aux Heacutebreux comme caninique degraves le

temps de S Jeacuterocircmerdquo BOSSUET JB Projet de reacuteunion entre les Cathololiques amp les Protestants In

Oeuvres de Messire J Benigne Bossuet Tome Quatrorzieme Libraires Associeacutes Liege 1767 p 563

263

Alianccedila A commemoratio do sacerdoacutecio de Melchisedech superava enfim a ordem

leviacutetica845

O tempo biacuteblico voltaria agrave pauta de discussotildees do IHGB de finais do seacuteculo

XIX Com a proclamaccedilatildeo da repuacuteblica o padroado e o regalismo ndash a uniatildeo do Estado

e da Igreja ndash chegariam ao teacutermino no Brasil Apesar de em tese ldquolimitar a esfera de

accedilatildeordquo da feacute catoacutelica ldquoe dos religiosos na sociedaderdquo a medida republicana permitiria

por outro lado ldquouma maior liberdaderdquo de agir ldquoante o poder temporalrdquo846 Retirando-

se do claustro poliacutetico os padres estavam livres para adentrar a ldquoesferardquo puacuteblica

posto que alguns resolvessem celebrar uma velha ordem natural Essa era certamente

a ldquolutardquo de padre Juacutelio Maria Mas encontrava respaldo parcial naquela de Joaquim

Nabuco o homem que julgava honesto esquecer em nome de uma ideia de naccedilatildeo a

memoacuteria do proacuteprio movimento que havia liderado

Jaacute em seu discurso de posse o ex-abolicionista lamentava como se a crise

moral tivesse adentrado a proacutepria histoacuteria Histoacuteria que estaria ldquoatravessando uma

grave criserdquo vociferava da tribuna Crise causada por ldquouma escola religiosardquo algo

bizarra ldquomais poliacutetica em todo caso que religiosardquo a qual pretendia ldquoreduzir a histoacuteria

nacional a trecircs nomes ldquoA ideiardquo ndash continuava o discurso dirigido aos positivistas e

materialistas ndash ldquoeacute que entre Tiradentes e Joseacute Bonifaacutecio de um lado e Benjamin

Constant de outro isto eacute entre a Independecircncia e a Republica estende-se um longo

deserto de quasi setenta annos a que posso dar o nome de deserto do esquecimentordquo

847

Eacute nesse deserto do esquecimento mesmo que de maneira por vezes natildeo

declarada que se estabelecia o teatro da guerra entre uma memoacuteria monarquista e

uma memoacuteria republicana sobre o qual a juvenilia de Fleiuss e o discurso de Nabuco

satildeo dois dos registros mais bem acabados Digo apenas em seu texto de juventude

pois nada incorrigiacutevel ndash senatildeo uma data ndash separava-o de junto a Afonso Celso

formar com o presidente do grupo do centenaacuterio a nova ldquotrindade do silogeurdquo Apesar

de essencial como ponto de uniatildeo entre a ordem do tempo e a ordem da natureza o

845 Eacute provaacutevel que dadas as diferenccedilas de estilo e vocabulaacuterio a carta aos hebreus natildeo tenha sido

escrita por Paulo embora os estudiosos mantenham-na dentro da ldquoescola paulinardquo Sobre os debates a

respeito da obra de Paulo ver MEEKS Wayne The Writings of St Paul Norton amp Company Inc New

York and London Second Edition 2007 Principalmente a introduccedilatildeo pp XIV-XV 846 HRUGBY 2009 51 847 NABUCO Joaquim Discurso de posse como soacutecio efetivo do IHGB na sessatildeo ordinaacuteria de 25 de

outubro de 1896 RIHGB 1896 Tomo LIX II p 310-311 Veja tambeacutem GUIMARAtildeES LMP 2007

79-94 que parte da percepccedilatildeo de Nabuco para comentar o ldquodeserto do esquecimento imposto pela

Repuacuteblica em relaccedilatildeo agrave histoacuteria do Segundo Reinadordquo p 80

264

estabelecimento de dataccedilotildees era uma questatildeo jaacute humanizada e portanto sujeita agrave

geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo Bastaria natildeo que ldquoapenas um chinecircs a contradigardquo mas a um

baratildeo e ela seria nacionalmente comprometida Originalmente publicadas no Jornal

do Brasil a partir de 1891 as Efemeacuterides Brasileiras foram escritas por Rio Branco a

pedido de Rodolfo Dantas Tratavam-se segundo o autor de ldquoum pequeno diaacuterio

comemorando ou indicando os nossos principais acontecimentos histoacutericos isto eacute

uma espeacutecie de Efemeacuteridesrdquo848

As efemeacuterides do Baratildeo do Rio Branco seguiam a ordem do ldquogrande anordquo de

Noeumll trazendo o 22 de abril como dia do descobrimento e reservando ao dia 3 de

maio duas datas relativas ao Primeiro Reinado a abertura da Assembleia Constituinte

em 1823 e o juramento da Constituiccedilatildeo do Impeacuterio no ano seguinte849 Se houve o

ofiacutecio de um ldquotempo novordquo como observou Bronislaw Baczko ao comentar o

calendaacuterio revolucionaacuterio francecircs esse seria no Brasil uma contribuiccedilatildeo da erudiccedilatildeo

historiograacutefica monarquista de Varnhagen a Aquino e Castro dos dois ao baratildeo e de

laacute agrave chancela autorizadora de Rodolfo Garcia850 Jaacute ao cair de um Estado Novo o 22

de abril como tempo novo seria oficializado

Anos antes contada como ciclo e celebrada por uma liturgia ciacutevica a

comemoraccedilatildeo de 1900 foi em certa medida um eclipse do tempo ndash bem representado

na confusa polecircmica do 3 de maio ndash no qual a ldquoordem da naturezardquo de que falava

padre Maria emerge vitoriosa para sacramentar e reificar a identidade nacional Um

rito ndash se nos permitirmos usar termo caro a Pascal Ory ndash no Brasil ele exigiria ainda

sacrifiacutecios metoniacutemicos executados no passado dos negros e no futuro dos iacutendios

preccedilo da transferecircncia de sacralidade perpetrada por uma nova alianccedila capaz de

aperfeiccediloar em consummatio uma ideia de naccedilatildeo Se com o sangue de ldquotouros e

bodesrdquo natildeo se podia expiar os pecados (Hebraeus X4) uma oblaccedilatildeo quiccedilaacute tanto

pagatilde senatildeo guardando algo de leviacutetica embora certamente ainda natildeo antropofaacutegica

seria oferecida no altar da naccedilatildeo

Em 1900 o futuro era naturalmente europeu e republicano Os antepassados

escutados nos ceacuteus eram Cabral Camotildees D Henrique ainda Pedro II mesmo que

em oposiccedilatildeo astronocircmica a Tiradentes ambas sineacutedoques de uma suposta consciecircncia

moral A comemoraccedilatildeo soava como um chamado a amar os vultos fundadores e com

848 apud CORREcircA Luiz Felipe De Seixas Apresentaccedilatildeo In RIO BRANCO Baratildeo do Efemeacuterides

Brasileiras Rodolfo Garcia (org) Senado Federal Brasiacutelia 1999 p VII 849 RIO BRANCO op cit respectivamente pp 212 e 226-227 850 Sobre o ldquotempo novordquo relacionado agrave repuacuteblica ver BACZKO Bronislaw 1984 passim

265

eles o Brasil Paiacutes de populares impaacutevidos diante do mau tempo mas mais uma vez ndash

mesmo sem enxergaacute-las entre pesadas nuvens ou ofuscadas por forte sol ndash capazes

com os olhos bem fechados de ldquoouvir e de entender estrelasrdquo 851

851 BILAC Olavo Antologia Poesias Satildeo Paulo Martin Claret 2002 Via Laacutectea Soneto XIII ouvir

estrelas p 37-55

266

Da perfeiccedilatildeo da alma e do progresso da naccedilatildeo

Mensagem geracional de uma naccedilatildeo quase eterna

Costor che fan si gran disputazione

Dellarsquoanima ondrsquo ellrsquo entre e dondrsquo ellrsquoesca

O come il nocciol si stia nella pesca

Hanno studiato in su nrsquoun gran mellone

Luigi Pulci Sonetti

Alguns discursos antes de criticar os versos acima Cesar Cantugrave em sua

Reforma na Itaacutelia pergunta-se a respeito das origens do protestantismo Membro da

triacuteade referencial de Padre Juacutelio Maria lembrado por ele junto a Taine e Bossuet o

catoacutelico italiano natildeo se limitava a mapear os reformadores do seacuteculo XVI Chega na

verdade ateacute Joaquim de Fiori o mesmo homem que seacuteculos antes havia dissertado

sobre as idades do mundo Na leitura do historiador providencial o hereacutetico de

Consenza chocava-se contra os princiacutepios escolaacutesticos do aevum do tempus e da

aeternitas Afinal a religiatildeo natildeo pareceria a Fiori ldquoinalteraacutevel em sua essecircnciardquo

eterna mesmo que existindo no aevum para a reta doutrina sua ldquoforma contingenterdquo

ndash ao tocar ldquoas coisas humanasrdquo ndash estivesse exposta aos ldquointeresses e paixotildees da

terrardquo852 Indo aleacutem Hugues de Montpellier e Rodolfo de Saxe declarariam que ldquoo

novo testamento natildeo pocircde conduzir as almas agrave perfeiccedilatildeordquo e que a imitaccedilatildeo de Cristo

nisso era inuacutetil em especial se o pregador carregasse consigo dinheiro e propriedades

Tais asserccedilotildees ldquomiacutesticasrdquo e ldquocomunistasrdquo doariam bases agravequilo que alguns seacuteculos

depois jaacute na primeira modernidade ganharia o nome de protestantismo853

852 ldquoNotre religion est inalteacuterable dans son essence mais dans sa forme contingente elle touche aux

choses humaines et elle est exposeacutee agrave la souillure des inteacuterecircts et des passions de la terrerdquo CANTUgrave

Ceacutesar La Reacuteforme en Italie Les preacutecurseurs Discours historiques Ancinet Digard et Edond Martin

(trad) Paris Adrien Le Clere 1867 p 77 Discurso III a Era de ferro do Papado Cantugrave repete a

foacutermula escolaacutestica da trindade temporal em mais algumas oportunidades No Discurso VII sobre

Bonifaacutecio VIII e Dante chega a escrever que ldquoLrsquoEacuteglise dans son essence avait un caractegravere absolu et

immuable comme la foi sur laquelle elle eacutetait fondeacutee mais en tant que reunion visible des fidegraveles elle

eacutetait reacutegie par un pouvoir visible lequel si lrsquoon considegravere son existence formelle ne pouvait ecirctre que

potentiel et progressifrdquo Ibidem pp 259-260 853 ldquoHugues de Montepellier et Rodolphe de Saxe [iriam mais longe] on alla mecircme jusqursquoagrave deacuteclarer

que le Nouveau Testament nrsquoavait pu conduire les acircmes agrave la perfection qursquoon ne devait pas imiter

Jeacutesus-Christ quand il prit la fuite ou quand il se cacha quand il posseacuteda de lrsquoargent enfin que le

premier devoir de lrsquohomme spirituel eacutetait de pratiquer la pauvreteacute volontairerdquo Ibidem p 226 Na

mesma paacutegina a tese de Fiori a respeito das idades do mundo eacute sintetizada como a seguir ldquoDieu a

diviseacute le monde en trois eacutepoques successives dans la premiegravere lrsquoaction du Pegravere se manifeste par

267

Esse ldquoespeacutecime antigo do comunismordquo encontrava refuacutegio em todos os

seacutequitos mais odiosos os quais teriam por regra comum o Evangelium Aeternum

texto de autoria disputada mas de inspiraccedilatildeo consensualmente atribuiacuteda a Joaquim de

Fiori Nele como no pregador de Consenza encontrar-se-ia a tal ldquopretensatildeo agrave

perfectibilidade sucessivardquo essa ideia que liga a consumatio ao tempus

transformando-a em um conceito de movimento submetido aos processos senoidais de

progresso e decadecircncia854 Como Cantugrave jaacute havia explicado na teologia dogmaacutetica

deveriamos ldquodistinguir o elemento imutaacutevel e substancialrdquo ndash entendido como a

ldquoverdade revelada e agravequilo que ela faz referecircnciardquo ndash e o ldquoelemento variaacutevel por assim

dizer acessoacuteriordquo

O primeiro natildeo estaacute sujeito nem agrave lei de decadecircncia

nem agrave lei de progresso o segundo varia com o tempo e

com os homens Aquele [o imutaacutevel e substancial] eacute

hoje o que foi nos tempos de Cristo e dos apoacutestolos de

quem recebeu a perfeiccedilatildeo e a consagraccedilatildeo este [o

variaacutevel] se modifica e se modificaraacute pela accedilatildeo

permanente do Espiacuterito Santo e por causas diversas855

A tentativa de filiaccedilatildeo intelectual de Cesar Cantugrave faz-se clara ao longo do

Discurso IV Tomaacutes de Aquino eacute saudado natildeo apenas como ldquoo maior filoacutesofo da

idade meacutediardquo como possivelmente tambeacutem dos ldquotempos modernosrdquo ldquoTriunfo da

lrsquoentremise des patriarches et des prophegravetes dans la seconde celle du Fills srsquoexerce par lrsquointermeacutediaire

des apocirctres et des disciples dans la troisiegraveme le Saint-Esprit exercera son influence au moyen des

ordres religieuxrdquo 854 ldquoTous ces sectaires les Beacuteguins les Begghards ou Bigots les Zeacuteleacutes et les Enfants de lrsquoEacutevangile

rentrent dans la secte des Fraticelles de la pauvre vie ou Fregraveres spirituels qui eut pour regravegle lrsquoEacutevangile

eacuteternel et qui consideacuterait pour son fondateur lrsquoabbeacute de Flora Joachim Ils eacutelurent mecircme un pape et il

nrsquoy eut pas de sceleacuteratesse qursquoon ne leur ait imputeacutee Ils attaquegraverent en faint les bases fondamentales de

la foi et de la justice ils nous offrent un speacutecimen antique du communismerdquo Ibidem p 233 ()rdquo On a

voulu lrsquoattribuer agrave lrsquoabbeacute Joachim par ce motif qursquoon y rencontre ainsi que nous lrsquoavons dit en parlant

de lui cette preacutetention agrave la perfectibiliteacute successive et cette assertion agrave savoir que lrsquoEvangile eacuteternel

est supeacuterieur agrave lrsquoAncient et au Nouveau Testament Suivant ce livre le Nouveau Testament devait finir

en 1260 pour ecirctre remplaceacute par le nouvel Eacutevangile qui serait tout esprit le pape nrsquoeacutetait pas chargeacute

drsquoexposer le commentaire spirituel de lrsquoEacutecriture sainte mais seulement drsquoen expliquer la lettrerdquo

Ibidem p 242 () ldquoQuel fut lrsquoauteur de lrsquoEvangelium aeternum Personne ne le sait pas mecircme le

reacutedacteur du bref de censure Fregravere Slimbene de Parme lrsquoattribue agrave fregravere Geacuterard de Borgo San Donnino

Mineur lecteur de theacuteologie agrave Paris et amateur passionneacute des doctrine de lrsquoabbeacute Joachim de Calabrerdquo

Ibidem 244 855 ldquoDans la theacuteologie dogmatique on doit distinguer lrsquoeacuteleacutement immuable et substantiel crsquoest-agrave-dire la

veacuteriteacute reacuteveacuteleacutee et ce qui srsquoy rapporte et lrsquoeacuteleacutement variable pour ainsi dire accessoire qui est le

deacuteveloppement scientifique de cette veacuteriteacute reacuteveacuteleacutee sa forme mecircme Le premier nrsquoest sujet ni agrave la loi de

deacutecadence ni agrave la loi de progregraves le second varie avec le temps et avec les hommes Celui-lagrave est

aujourdrsquohui ce qursquoil fut au temps du Christ et des apocirctres de qui il a reccedilu la perfection et la

conseacutecration celui-ci se modifie et se modifiera sous lrsquoaction permanente du Saint-Esprit et pour des

causes diversesrdquo Idem Discurso IV Les Patarins p 175 Grifos originais

268

razatildeo aplicada agrave revelaccedilatildeordquo a escolaacutestica ao menos em parte era uma doutrina

ldquoainda vivardquo856 Para essa perspectiva digamos noacutes neoescolaacutestica rebaixar a alma ao

estatuto de um elemento variaacutevel por consequecircncia acessoacuterio era insultar a obra de

Deus Natildeo foi o que certa vez cantou Luigi Pulci com o favor e o aplauso dos Meacutedici

ao comparar os debates sobre a imortalidade e transmigraccedilatildeo a disputas em torno de

um grande melatildeo Problema cosmoloacutegico ele certamente tambeacutem era poliacutetico e

moral negar a perfeiccedilatildeo da alma com o sacerdoacutecio de Melchizedeck ndash ignorando a

carta de Paulo aos Hebreus ndash era o mesmo que recusar a sacralidade do ministeacuterio

petrino reduzido-o ao tempus ao passo que corria-se igualmente o risco de lanccedilar os

homens devolta agrave ordem leviacutetica Tratava-se da negaccedilatildeo da doutrina do sacrifiacutecio

transubstanciado em memoacuteria (a commemoratio da vulgata) levado agrave cabo pela

ldquofalsificaccedilatildeordquo protestante das epiacutestolas de Paulo857

Na visatildeo neoescolaacutestica o movimento progressivo da alma tinha como

pressuposto a negaccedilatildeo da atemporalidade da consumatio do sacramente no altar

ldquocentro de todo o cultordquo e ldquocomunhatildeo iacutentima do homem com Deusrdquo no qual o

ldquomisteacuterio da feacute completa a razatildeordquo sendo ainda o instante em que ldquoa ordem

sobrenatural doa seu complemento inteiro agrave ordem naturalrdquo858 A perfeiccedilatildeo em outras

palavras jaacute estava dada no sacrifiacutecio da cruz cabia aos homens tatildeo somente praticar a

sua comemoraccedilatildeo reafirmando em ritual os benefiacutecios da Nova Alianccedila Pensar uma

alma que progrida de esfera em esfera como jaacute imaginavam Palmieri Rinuccini e

outros ldquopagatildeosrdquo do renascimento seria portanto uma heresia Cantugrave dessa forma

insinuava que o protestantismo teria origem na Academia Platocircnica no mundo de

elegacircncia cortesatilde e magia ritual sediado na Florenccedila dos Meacutedici e que o progresso da

856 ldquoEn somme la Scolastique dans la partie qui est encore vivante fut le triomphe de la raison

appliqueacutee agrave la reacuteveacutelation () Le plus grand honneur de cette entreprise revient de droit agrave celui qursquoon

peut appeler le plus grand philosophe du moyen acircge et peut-ecirctre mecircme des temps modernes agrave saint

Thomas (1227-74)rdquo Ibidem p 175 857 Ibidem p 628 Discours XVI ndash Progregraves et subdivisions des protestants ldquoDans cette derniegravere

[Hebraeus] lrsquoApocirctre entend nous enseigner que les peacutecheurs ne pouvaient eacuteviter la mort qursquoen offrant

agrave leur place une victime qui serait immoleacutee pour eux Tant qursquoils la remplacegraverent par des sacrifices

drsquoanimaux ils ne faisaient qursquoattester par lagrave qursquoils meacuteritaient la mort et comme la justice divine ne

pouvait pas y tromper une satisfaction deacutefinitive et complegravete on recommenccedilait chaque jour agrave immoler

un holocauste qui nrsquoeacutetait pas proporcionneacute agrave la reacuteparation Lorsque Jeacutesus-Christ fut mort pour nos

peacutecheacutes Dieu satisfait nrsquoeut plus agrave exiger drsquoautre prix pour notre rachat Il nrsquoeacutetait donc pas besoin de

sacrifier drsquoautres victimes apregraves le Christ et le Christ lui-mecircme ne devait ecirctre sacrifieacute qursquoune seule

foisrdquo Ibidem pp 628-629 858 ldquoOr le sacrament de lrsquoautel crsquoest le centre de tout le culte crsquoest la communion intime de lrsquohomme

avec Dieu drsquoougrave il suit que le mystegravere de la foi complegravete la raison et que lrsquoordre surnaturel donne son

entier compleacutemenet agrave lrsquoordre naturelrdquo Ibidem 630

269

alma era no final das contas nada mais do que uma versatildeo moderna da metempsicose

dos antigos 859

Eacute bem verdade que o mundo anglo-saxatildeo do seacuteculo XIX empilhava autores

teoacutelogos ou natildeo que mostravam-se fascinados com aquilo que Catherine Albanese

referindo-se aos ldquotranscedentalistas da Nova Inglaterrardquo chamou de ldquorevoluccedilatildeo

cineacuteticardquo860 Muito diferente do ceacuteu estaacutetico dos escolaacutesticos que imaginavam uma

Jerusalem Celeste poacutes-histoacuterica na qual os homens e os santos miravam a imagem

divina em imoacutevel concentraccedilatildeo o paraiacuteso agora era um lugar de trabalho mudanccedila e

aperfeiccediloamento Ralph Waldo Emerson que no Brasil encontrou em Ruy Barbosa

um ceacutelebre leitor parecia mesmo obcecado com todo siacutembolo de movimento

admirador dos antigos sem duacutevida ecoava ao longo de seus devaneios poeacuteticos o

Heraacuteclito da metaacutefora de um rio que nunca mais seria o mesmo Em 1840 chegou a

escrever a um amigo dizendo que ldquonatildeo em seus fins mas em sua transiccedilatildeo eacute grande o

homem e o mais verdadeiro estado mental em repouso converte-se em falsidaderdquo861

As imagens de um ceacuteu perfeito em sua imobilidade fixo como as estrelas mais

distantes alheio a toda loacutegica de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo e consumado pela evidecircncia

divina vinha chocar-se com a obsessatildeo protestante pela contagem do tempo Mas

para eles nuacutemeros positivos de mudanccedila soacute poderiam ser enunciados por uma alma

racional em eterno movimento o ceacuteu reformado natildeo era mais um ambiente de

descanso mas o espelho de uma eacutetica do trabalho endereccedilada ao aperfeccediloamento

constante A historicizacatildeo do cosmos natildeo se dava tampouco atraveacutes de um

movimento ciacuteclico e moralizador como um dia sonhara Cipiatildeo mas de um vetor

capaz de transcender a experiecircncia sublunar exonerando o agente empiacuterico da accedilatildeo e

assim produzindo progresso

No seacuteculo XVIII como vimos temos uma resposta catoacutelica ainda

conciliatoacuteria Bossuet exortava os protestantes a aceitarem a carta de Paulo aos

Hebraeus como ponte de inteligibilidade entre as duas margens do Reno No seacuteculo

XIX no entanto essas esperanccedilas pareciam um sonho distante e jaacute pouco nobre

859 Cantugrave retoma o ldquopaganismo renascentistardquo no Discours IX ndash Heacutereacutesie Scientifique et Litteacuteraire

principalmente pp 349-376 860 CATHERINE Albanese Corresponding Motion Transcedental Religion and the New America

Philadelphia Temple University Press 1977 principalmente pp 56-97 Citado por MCDANNELL

Collen LANG Bernhard Historia del Cielo De los autores biacuteblicos hasta nustros dias Taurus

Madrid 2001 p 504 obra da qual retiro agora algumas referecircncias 861 EMERSON RW Letters from Ralph Waldo Emerson to a Friend [Samuel G Ward c 1840]

1838-1853 Norton Charles Elliot Boston Haughton Mifflin 1899 p 30 apud MCDANNELL op cit

p 504

270

Cesar Cantugrave partiria para o ataque indo agravequilo que acreditava ser as raiacutezes do

protestantismo desbastando-as em meio aos pagos renascentistas Nesse sentido a

ldquolutardquo de Cantugrave relida no Brasil por Padre Maria poderia ser entendida como uma

tentativa de reafirmar a maacutexima medieval perfectio non in annis sed in animis862

Ora a perfeiccedilatildeo natildeo poderia ser contada pela passagem dos anos mas sentida no

movimento interior da alma que lembrava os pecados e ansiava pela salvaccedilatildeo Natildeo

havia contradiccedilatildeo portanto no fato de a Igreja Catoacutelica de finais do seacuteculo XIX

declarar-se ao mesmo tempo defensora dos progressos (tecnoloacutegicos) e campeatilde dos

costumes Como jaacute indicava o Borges da Histoacuteria da Eternidade conservar e criar

antagocircnicos na Terra podem muito bem ser sinocircnimos nos ceacuteus entre a Cidade dos

Homens e a Cidade de Deus o progresso e a conservaccedilatildeo deixavam de ser conceitos

antiteacuteticos ou assimeacutetricos

Franccedila 1794 No auge da revoluccedilatildeo o terror contava algumas dezenas de

milhares de viacutetimas Mas o assobio das guilhotinas natildeo era entretanto dirigido

apenas aos vivos o passado materializado em monumentos referentes ao Antigo

Regime reunia a fuacuteria de setores revolucionaacuterios Um ano antes a Assembleia

Nacional havia declarado natildeo ser mais crime destruiacute-los e incitados por grupos

jacobinos sans-cullottes saiacuteam agraves ruas dilapidando o bronze o maacutermore e todo tipo

de obras produzidas no uacuteltimo milhar de anos No 14 Fructidor do ano II da

ldquorepuacuteblica una e indivisiacutevelrdquo ndash lema jacobino que afirmava sua vitoacuteria frente ao

federalismo da gironda ndash aparece uma reaccedilatildeo a esse conjunto de eventos863 Era o 31

de outubro de 1794 e o abade Henri Greacutegoire (1750-1831) escreve um relato

endereccedilado agrave Convenccedilatildeo contendo um inventaacuterio da destruiccedilatildeo operada por aqueles

grupos

Junto ao documento o abade descrevia um conjunto de medidas relativas aos

ldquomeios de reprimiacute-losrdquo Tratava-se basicamente de uma defesa apaixonada dos

costumes ancestrais legado que cidadatildeos gostando ou natildeo era a memoacuteria de seus

pais de seus patriacutecios ainda uma heranccedila comum o ldquopatrimocircniordquo Greacutegoire

862 apud KOSELLECK 2002 p 224 863 Sobre o lema jacobino ver FOUCAULT Michel Microfiacutesica do Poder Graal Rio de Janeiro

1989 p 145

271

certamente natildeo vivia em um momento que desconhecesse a teacutecnica dos paralelos Ou

natildeo houve haacute mais de mil anos diria o abade um povo que cometeu esse tipo de

atrocidades contra a Cidade Eterna Esses eram os vacircndalos baacuterbaros germacircnicos

originaacuterios da fronteira norte do Impeacuterio que empurrados por outros povos

invadiram saquearam e pilharam a antes poderosa Roma864 Paralelo luminoso agrave

eacutepoca da revoluccedilatildeo evento que jaacute foi visto como uma uacuteltima querela ele no entanto

atribui agrave irracionalidade baacuterbara um ato que poderia ser lido como poliacutetico Atacar

monumentos obras de arte e mesmo bibliotecas como grifava o inventaacuterio de

Greacutegoire natildeo era um atentado contra agrave memoacuteria do antigo regime Natildeo seria demais

dizer que no relatoacuterio de 1794 o patrimocircnio ndash esse alterego da lembranccedila nos

dizeres de Hartog865 ndash estaacute para o vandalismo assim como a memoacuteria estaacute para o

esquecimento

O primeiro capiacutetulo desta tese conclui com os debates a respeito da elevaccedilatildeo

de personagens histoacutericos ao estatuto de patriacutecios da naccedilatildeo Mas apenas no ofiacutecio

comemorativo instacircncia de enunciaccedilatildeo da identidade nacional seria esperado que o

totem ciacutevico na expressatildeo de Carvalho natildeo antagonizasse ningueacutem Como veriacuteamos

mais tarde a proacutepria triacuteade ciacutevica que reuniria nos dizeres de Nabuco Tiradentes

Joseacute Bonifaacutecio e Benjamin Constant chegou a ser questionada Se refletindo a partir

de Maurice Halbwachs chegamos agrave compreensatildeo de que os grandes homens fazem as

vezes de deputados da identidade de quadros sociais da polecircmica com Marc Bloch

deveriacuteamos reter a comemoraccedilatildeo como momento de comunicaccedilatildeo geracional

Comunicaccedilatildeo pedagoacutegica de certo seu problema maior natildeo eram os maus alunos

mas o professor ao lado Inspirado por Renan que via na naccedilatildeo um ldquoplebiscito de

todos os diasrdquo pensei a agoniacutestica da memoacuteria coletiva a partir da candidatura e

eleiccedilatildeo dos grandes homens figuras que entre Carlyle Cousin e Emerson poderiam

ser entendidas como representantes de uma consciecircncia comum

Natildeo por acaso Eacutemile Durkheim viu nos ritos positivos dos selvagens da

Austraacutelia a oportunidade de reparaccedilatildeo moral de unir mais uma vez o indiviacuteduo agrave

coletividade Quem os oficiava ao imitar um totem natildeo era mais do que um bobo

864 GREacuteGOIRE Henri Rapport sur les destructions opeacutereacutees par le vandalisme et sur les moyens de le

reacuteprimer seacuteance du 14 fructidor lan second de la Reacutepublique une et indivisible suivi du Deacutecret de

la Convention nationale ([Reprod]) Convention nationale [reacuted] par Greacutegoire -[de lImpr nationale]

(Paris)-1794 Sobre o vandalismo revolucionaacuterio ver tambeacutem Baczko Bronislaw Vandalim In Furet

and Ozouf (eds) A Critical Dictionary of the French Revolution Cambridge Harvard University

Press 1989 pp 860-868 865 HARTOG 2013 passim

272

natildeo o mesmo Bobo de Herculano ainda assim uma testemunha de identidade e

alteridade Confiando nos ouvidos Durkheim ao escrever sobre costumes de povos

que jamais visitou antes que pudesse desagradar antropoacutelogos de geraccedilotildees posteriores

parecia irritar a alma de Poliacutebio Tanto Heroacutedoto ele natildeo teria encontrado um espelho

do ocidente em meio aos Warramunga e aos Arunta Algo como as formas

elementares do rito da eucaristia a partir do qual desde as cartas de Paulo o homem

consuma-se com a divindade Jaacute foi dito que eacute no ato da reparaccedilatildeo no tratamento da

doenccedila que ldquoo pensamento moral encontra-se com o projeto cientiacuteficordquo de Durkheim

Se a memoacuteria poderia ldquoconsertar a sociedaderdquo atraveacutes da commemoratio serviria ela

como fato social ldquotambeacutem para fazer ciecircnciardquo866 Isso natildeo seria exatamente comprar

o discurso do selvagem sobre a tribo mas do pastor sobre o rebanho

Eacutemile Durkheim recopilava bem o valor moral que a ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo

atribuiacutea em repertoacuterio compartilhado ao conceito de comemoraccedilatildeo Momento

reparador ele era tambeacutem um apelo agrave conciliaccedilatildeo coletiva O autor que procurava

Formas Elementares chegou a se perguntar se os chefes miacuteticos dos povos da

australia natildeo eram seres reencarnados Como heranccedila do espiritualismo republicano

francecircs jaacute tiacutenhamos a imagem que mais tarde uniraacute a velha commemoratio a outra

noccedilatildeo bem mais nova ideia que era pauta de discussotildees no Brasil de um projeto ou

concepccedilatildeo que objetivava oferecer ao paiacutes ldquouma identidade e uma imagem dele

mesmo () a ideia de naccedilatildeordquo 867

Do outro lado do Atlacircntico ldquoa revoluccedilatildeo natildeo era nada sem a revoluccedilatildeo

religiosardquo como diria Michelet em um momento dramaacutetico de sua obra Era hora

afinal de afirmar ldquouma lei da vidardquo dizer com pesar que ldquoela baixa caso natildeo

aumenterdquo E a revoluccedilatildeo natildeo havia aumentado ldquoo patrimocircnio de ideias vitaisrdquo legadas

pela filosofia iluminista Realizara alguma coisa aqui institucionalizara uma ideia laacute

mas no fundo acrescentara pouco de original E se natildeo contribuiu como deveria

866 ldquoNa ausecircncia da normalidade por exemplo quando ocorre a doenccedila deve intervir a ciecircncia afirma

Durkheim lsquoE aqui o pensamento moral se encontra com o projeto cientiacuteficorsquo Fica demonstrado em

consequecircncia que o conceito de fato social poderia bem servir para consertar a sociedade Mas serviria

tambeacutem para fazer ciecircnciardquo OLIVEIRA Maacutercio O conceito de representaccedilotildees coletivas uma

trajetoacuteria da Divisatildeo do Trabalho agraves Formas Elementares Debates do NER Porto Alegre Ano 13 n

22 JulDez 2012 p 75 A primeira citaccedilatildeo deve-se a COENEN-HUTHER Jacques Durkheim et

lacuteimpeacuteratif de reacuteduction de complexiteacute In CUIN Charles-Henry (sous la dirc) Durkheim dacuteun siegravecle

agrave lacuteautre PUF Paris 1997 p 125 867 CEZAR Temiacutestocles Lrsquoeacutecriture de lrsquohistoire au Breacutesil au XIX siegravecle Essai sur une rheacutetorique de

la nacionaliteacute Le cas Varnhagen Paris EHESS Tese de Doutorado 2002 pp 12-13

273

encontrava-se fadada agrave suspensatildeo e imoacutevel deixava transparecer possiacuteveis sinal de

corrupccedilatildeo

ldquoFecunda em leis esteacuteril em dogmas ela [a revoluccedilatildeo]

natildeo conteve a eterna fome da alma humana sempre

insaciada debilitada de Deus () Eh Bien Esses

terriacuteveis dramas esse horror esse sangue derramado

tudo aquilo natildeo satisfez o vazio infinito da alma

nacional Tudo a entediava igualmente ndash e ela

esperourdquo868

A alma nacional esperava entre olhares de teacutedio que as feridas da

conflagraccedilatildeo civil do sangue das guerras e das guilhotinas impingisse nos homens

algo aleacutem da discoacuterdia naturalizando-a enfim natildeo mais do que como uma cicatriz no

corpo da histoacuteria Eacute nesse instante que anseia pela conciliaccedilatildeo senatildeo jaacute pela

reparaccedilatildeo que uma revoluccedilatildeo religiosa remeteria agrave consumaccedilatildeo divina ao encontro

com o sublime na esperanccedila de salvar a ldquosubstacircncia francesardquo das memoacuterias do

terror A naccedilatildeo como alma seraacute uma imagem resgatada por Ernest Renan e como

vimos relacionada a um princiacutepio espiritual cindido entre um rico legado de

lembranccedilas e o desejo de viver junto Abaixo da lua como consciecircncia moral no

entanto a naccedilatildeo precisaria esquecer e do conflito entre memoacuterias coletivas nasce a

tarefa de harmonizaccedilatildeo ela mesmo conflituosa na reparaccedilatildeo identitaacuteria de uma

essecircncia originaacuteria de comeccedilos ficcionais que pinta a comemoraccedilatildeo nas cores

escolhidas no presente por uma geraccedilatildeo em luta contra o que considerava

corrompido869 Entre a coerecircncia do legado de lembranccedilas e o desejo de viver junto

entre passado e presente opta-se pelo segundo A comemoraccedilatildeo em seu imperativo

moral rogava pelo dever de esquecimento

Como vimos no segundo capiacutetulo no entanto antes que as vozes de Joaquim

Nabuco ou Ruy Barbosa pudessem calar diante da memoacuteria de suas proacuteprias lutas

868 ldquoCrsquoest une loi de la vie elle baisse si elle nrsquoaugmente () La Reacutevolution nrsquoaugmentait pas le

patrimoine drsquoideacutees vitales que lui avait leacutegueacutees la philosophie du siegravecle Elle reacutealisait en institutions

une partie de ces ideacutees mais elle y ajoutait peu Feacuteconde en lois steacuterile em dogmes elle ne contenait

pas lrsquoeacuteternelle faim de lrsquoacircme humaine toujours affameacutee alteacutereacutee de Dieu () Eh bien Ces drames

terribles cette horreur ce sang verseacute tout cela ne remplissait pas le vide infini de lrsquoacircme nationale

Tout lrsquoennuyait eacutegalement ndash et elle attendaitrdquo MICHELET Jules Histoire de la Reacutevolution Franccedilaise

T 7 Paris Abel Pilon 1869 p 168-169 Grifos meus 869 Sobre a ideia de naccedilatildeo como ficccedilatildeo oitocentista ver THIESSE Anne-Marie Ficccedilotildees criadoras as

identidades nacionais Anos 90 Porto Alegre n 15 p7-23 20012002 THIESSE Anne-Marie 1999

Tambeacutem CARVALHO Joseacute Murilo de Brasil naccedilotildees imaginadas In Pontos e Bordados Escritos

de Histoacuteria e Poliacutetica Belo Horizonte Editora da Universidade Federal de Minas Gerais 1998

principalmente pp 232-236

274

elas fariam escutar em alto tom a catalizaccedilatildeo de discursos morais Todas as

proviacutencias afinal chegavam a trazer oblaccedilotildees agrave memoacuteria dos abolicionistas

transubstanciando seu acircmago no ldquocoraccedilatildeo impessoal da paacutetriardquo A imagem da

decadecircncia moral encontra no repertoacuterio da geraccedilatildeo de 1870 aquelas relacionadas agraves

criacuteticas da escravidatildeo Da Alemanha de Mommsen agrave Ameacuterica de Goldwin passando

pela Franccedila de Condorcet o trabalho servir era visto da mesma forma que um dia

pensara o primeiro Bonifaacutecio como um misto de crime e de doenccedila A lei da alforria

no entanto natildeo parece ter abolido o diagnoacutestico de uma crise moral nem sequer o

tracircnsito ndash via geraccedilatildeo de 1870 lusitana ou mesmo da obra de um uacuteltimo e influente

Spencer ndash das noccedilotildees de decadecircncia e retrogradaccedilatildeo O mesticcedilo moral de Silvio

Romero certamente de tudo um pouco absorvia e se teriacuteamos que esperar o espaccedilo de

uma nova geraccedilatildeo em 22 para uma resposta antropofaacutegica seu caraacuteter oitocentista jaacute

mostrava-se fascinado pela dialeacutetica celeste que tambeacutem pensava em corrupccedilatildeo Seraacute

que o Brasil como que emulando o movimento aparente do planeta marte poderia

em um periacuteodo de ldquoluctas sangrentas e de desvarios lamentaacuteveisrdquo andar para traacutes

Pretendi ler essa questatildeo nas entrelinhas do ofiacutecio ldquootimistardquo proposto pela

autoproclamada geraccedilatildeo de 1900 para as comemoraccedilotildees daquele ano No palanque

muito se falava em progresso Nos bastidores sussuravam as vozes de toda uma

toacutepica decadentista Agrave consciecircncia da aceleraccedilatildeo do tempo somava-se uma leitura do

mundo que percebia resultados do progresso no filtro de uma desordem moral Era o

fim do regalismo e padres de alta hierarquia corriam para a tribuna do IHGB e do

grupo do Centenaacuterio Se espiacuteritas e protestantes pareciam mais preparados para

acreditar no ldquoprogresso da natureza humanardquo o repertoacuterio de padre Juacutelio Maria dava

outras respostas para o misteacuterio da perfeiccedilatildeo consumando-a como acordavam

Bossuet e Cantugrave ainda na Nova Alianccedila Era preciso reparar esse elo quebrado nos

anos do Impeacuterio pela submissatildeo da Igreja ao Estado periacuteodo da ldquodecadecircncia da

religiatildeordquo E se em Tayne a moral era um produto como o sulfato e o accedilucar ela

poderia muito bem ser recolocada no rumo de seu lugar natural

Paulo Frontin em um relato mais modesto sintetizaria as aspiraccedilotildees e temores

do projeto de 3 de maio que tambeacutem era uma concepccedilatildeo de naccedilatildeo Em seu discurso

registrado no Livro do Centenaacuterio incapaz de ver o Brasil no iacutendio ndash em uma tradiccedilatildeo

que os lia como inconstantes e por isso de certo desqualificados para marchar no

ritmo do progresso ndash o engenheiro exortava sua assimilaccedilatildeo pelo Estado Se natildeo

puder fazecirc-lo caberia em nome da evanescecircncia do mal exterminaacute-los Somada agrave

275

heranccedila liberal que julgava vaacutelido esquecer natildeo apenas a escravidatildeo mas a proacutepria

luta abolicionista poderia-se ler o ofiacutecio de um sacrifiacutecio ciacutevico isso caso aceitemos

as evidecircncias de que sua praacutetica enunciava uma representaccedilatildeo de um processo jaacute em

andamento como se a acelaraccedilatildeo do tempo fizesse as accedilotildees antecipar palavras A

ldquoraccedila amanterdquo e a ldquoraccedila nativardquo soacute poderiam ser brasileiras a partir da celebraccedilatildeo de

uma memoacuteria branca e europeacuteia

Enquanto isso o IHGB mantinha suas vozes independentes da organizaccedilatildeo do

Centenaacuterio pouco isoladas em debates acalorados sobre a matildeo de Deus guiando

Cabral timidas defesas do indianismo saquarema e querelas internas dos padres

contra tudo que chamavam de ldquomaterialismordquo Contribuiacutendo ao debate a respeito do

Jubileu Nacional um novato pocircde compilar as opiniotildees de um velho mestre lanccedilando

municcedilatildeo contra a data escolhida para o ofiacutecio do quadricentenaacuterio O tempo novo o

22 de abril seria a contribuiccedilatildeo da memoacuteria disciplinar de uma historiografia

monarquista da erudiccedilatildeo dos expoentes do IHGB que desacreditaria o polissecircmico 3

de maio em nome das normas do ofiacutecio do dever do historiador ou da reparaccedilatildeo da

verdade de seu objeto

A polecircmica do 3 de maio remete-nos ao problema do calendaacuterio ao tempo

novo da repuacuteblica mas tambeacutem agrave velha ordem lida nas estrelas Eacute na onda dos

centenaacuterios do final do seacuteculo XIX que conceitos de efemeacuterides e comemoraccedilotildees

tornam-se sinocircnimos imperfeitos No terceiro capiacutetulo vimos como as efemeacuterides na

geraccedilatildeo de Poliacutebio jaacute inscritas como um subgecircnero da histoacuteria designavam tambeacutem

em seu sentido grego narrativas dia-a-dia Eram registros diaacuterios dos feitos dos

homens mas tambeacutem do curso das estrelas Seria possiacutevel unir as duas praacuteticas de

certa maneira oferecendo uma saiacuteda indireta para o claustro particular ao qual o

capiacutetulo 9 da poeacutetica de Aristoacuteteles havia relegado a histoacuteria

Caso se respondesse positivamente no entanto essa seria uma histoacuteria que ao

se tornar superior escaparia para fora de si mesma refugiando-se em um mundo de

eternas revoluccedilotildees e de conjecturas de futuro lidas nos ceacuteus Os genethliaci dos quais

nos falava Agostinho unindo a filosofia moral agrave filosofia natural tornavam-se

conselheiros Para o saacutebio de Hipona no entanto essa natildeo era uma credencial

aceitaacutevel uma vez que o historiador deveria se pautar pela fidelidade de sua narraccedilatildeo

E como aceitar uma arte tatildeo incerta e aleacutem de tudo parcamente comemorada na

biacuteblia

276

Entre profecias e periodizaccedilotildees no entanto o cocircmputo astroloacutegico do

movimento das estrelas oferecia uma cronologia Com a escolaacutestica a fiacutesica de

Aristoacuteteles eacute retomada e a noccedilatildeo de que a natureza eacute sempre causa de ordem vai ler

nas efemeacuterides a medida numeacuterica da mudanccedila As vicissitudes podem ser lentas ou

raacutepidas e o tempo ajustado pelo grande reloacutegio celestial seraacute sempre o mesmo

servindo de reacutegua e controle A novidade em Satildeo Tomaacutes relacionava-se precisamente

ao problema de sua contagem mesmo que natildeo houvesse uma soacute alma humana na

Terra para medir a mudanccedila sempre existiraacute agravequela do fundador a administrador da

ordem do tempo Assim ao tempo submisso aos ciclos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo

sobrepunha-se a eternidade reino divino da perfeiccedilatildeo existindo ainda uma categoria

intermediaacuteria o aevum no qual Igreja e mesmo Estados ndash ideias consumadas em

Deus mas executadas em um plano inferior ndash modificam-se sem contudo alterar suas

substacircncias

Teacutecnicas cronosoacuteficas como o cocircmputo astroloacutegico das efemeacuterides

desenvolveram-se e se fizeram divulgar na esteira do retorno aos textos de Ptolomeu

no intercacircmbio com bizacircncio do desenvolvimento das observaccedilotildees celestes e da

popularizaccedilatildeo da imprensa O seacuteculo XVI tambeacutem a era da reforma e das guerras

religiosas foi marcado como vimos por episoacutedios de comoccedilatildeo causados pelos

prognoacutesticos e asserccedilotildees calculados atraveacutes das tabelas de movimentos estelares

Quando o diluacutevio natildeo veio o proacuteprio cosmos peripateacutetico jaacute parecia fazer aacutegua Uma

lenta mudanccedila de praacutetica no entanto deveria dar conta da crise de suas

representaccedilotildees O descompasso entre as esferas perfeitas da filosofia antiga e um

corpo celeste selenografaacutevel evidenciada pela arte telescoacutepica e transmitido ao

mundo letrado como se fosse uma mensagem das estrelas foi ainda seguido por

leituras prognoacutesticas do anuacutencio de uma dinastia italiana na Franccedila junto agrave descoberta

das luas mediacuteceas

A palavra impressa fazia circular novidades sobre a terra e sobre os ceacuteus Era

como se logo abaixo das esferas celestes uma esfera puacuteblica tendesse a se agitar em

resposta agrave influecircncia superior A disponibilidade de registros de atividades celestes

unia-se nos primeiros almanaques agraves fabulas aos fait divers agraves notiacutecias locais e aos

progoacutesticos Como indiquei ao final do terceiro capiacutetulo entre Louis Le Roy e Padre

Antocircnio Vieira a percepccedilatildeo de uma aceleraccedilatildeo dos ciclos naturais era acompanhada

de leituras que decodificavam nos astros sinais inscritos em textos autoritativos e

como um ldquobeco sem saiacutedardquo essa praacutetica chegou ao insight de uma possiacutevel desordem

277

na ordem natural peripateacutetica A escatologia daiacute derivada como modelo retoacuterico para a

soluccedilatildeo do impasse descreve os limites de um futuro que natildeo pocircde ser mais do que

uma antecipaccedilatildeo traacutegica de expectativas ancestrais malograda a tentativa de Vieira

em anunciar um Quinto Impeacuterio

Entre as rachaduras da antiga ordem natural observamos todo um conjunto de

praacuteticas que retomando modelos antigos criando pela imitaccedilatildeo e jogando com suas

foacutermulas editoriais vinham evidenciar no conflito de suas experiecircncias uma nova

relaccedilatildeo com o tempo A emergecircncia ainda tiacutemida mas presente em Louis le Roy da

ideia de que podem haver progressos acompanha no seacuteculo XVI de Montaigne a

elevaccedilatildeo da periodizaccedilatildeo por seacuteculos Incentivado pela cronologia da primeira

modernidade o bloco de cem anos comemorado nos jubileus catoacutelicos desde 1300

assumiriam caraacuteter explicativo jaacute no Seacuteculo de Luiacutes XIV com as primeiras filosofias

da histoacuteria

Se do outro lado do Reno a teologia protestante ignorando as epiacutestolas de

Paulo natildeo possuiria grandes entraves agraves imagens de uma alma que progride entre os

dois lados do canal percebemos no pragmatismo de Locke e Voltaire sua associaccedilatildeo

direta agrave memoacuteria Esse curto-circuito permitiria que o priacutencipe das letras saudasse a

crenccedila na doutrina da transmigraccedilatildeo como princiacutepio da manutenccedilatildeo dos costumes

como se os povos e suas plebes que precisam acreditar em algo para se manter em

ordem pudessem conquistar a identidade pelas vias de uma faacutebula

No quarto capiacutetulo vimos como nesse meio tempo as efemeacuterides retomam seu

sentido de diaacuterio ou narrativa dia-a-dia recolhendo experiecircncias individuais e mesmo

coletivas logo dicionarizando-se por vezes como sinocircnimos de um novo publicismo

Esse primeiro jornalismo das gazetas e almanaques que nos conflitos internos

ingleses natildeo deixavam de flertar com o uso de prognoacutesticos astroloacutegicos vatildeo no

periacuteodo preacute-revolucionaacuterio francecircs interferir em uma esfera puacuteblica atraveacutes da crenccedila

no poder da influecircncia de seus escriacutetos sobre o ldquoespiacuterito nacionalrdquo Era o momento em

que a percepccedilatildeo anterior de uma crise natural daacute lugar agrave evidecircncia da aceleraccedilatildeo do

tempo Os correspondentes da repuacuteblica das letras relegariam as efemeacuterides

astroloacutegicas os sarrabais e almanaques ao uacuteltimo degrau do gecircnio literaacuterio A

evidecircncia eacute clara tanto na Cyclopedia inglesa quanto Encyclopeacutedie de Diderot e

drsquoAlembert que fazem menccedilatildeo apenas agraves praacuteticas astronocircmicas associadas a elas870

870 Veja-se CHAMBERS Ephraim Cyclopaeligdia or An universal dictionary of arts and sciences

containing the definitions of the terms and accounts of the things signifyd thereby in the several arts

278

No seacuteculo das luzes Condorcet jaacute poderia redigir que considerando-se o

desenvolvimento das faculdades humanas seguidas ldquode geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo seria

possiacutevel apresentar ldquoum quadro do progresso do espiacuterito humanordquo Progresso

submetido agraves ldquomesmas leis gerais que observamos no desenvolvimento individual de

nossas faculdadesrdquo esse seria um ldquoquadro histoacutericordquo formado a partir da ldquoobservaccedilatildeo

sucessiva das sociedades humanas entre as diferentes eacutepocas que elas percorreramrdquo871

O otimismo de Condorcet que natildeo deixava espaccedilos para a retrogradaccedilatildeo era em certa

medida compartilhado pelo abade de Mably Para Gabriel Bonnot como vimos os

costumes e mesmo as raccedilas jaacute estavam submetidos agrave ordem do tempo de modo que

na Assembleia Nacional argumentos reacionaacuterios de que a nobreza francesa

antecedia o sistema feudal eram silenciados com um breve bordatildeo revolucionaacuterio

ldquoLeia Mablyrdquo872

Junto a Voltaire com seus proacuteprios repertoacuterios de questotildees e criacuteticas eacute

precisamente Mably quem vai polemizar com os fisiocratas reunidos em torno da

sugestivamente intitulada revista Efemeacuterides do Cidadatildeo Contra uma nova ordem da

natureza apregoada em obras referenciais tanto o pai da expressatildeo ldquofilosofia da

histoacuteriardquo quanto o historiador dos paralelos entre romanos e franceses abriram

both liberal and mechanical and the several sciences human and divine the figures kinds

properties productions preparations and uses of things natural and artificial the rise progress

and state of things ecclesiastical civil military and commercial with the several systems sects

opinions ampc among philosophers divines mathematicians physicians antiquaries criticks ampc the

whole intended as a course of antient and modern learning1728 Entrada ldquoEphemeridesrdquo ou

ldquoEphemerisrdquo pp 320 DIDEROT Denis Encyclopeacutedie ou Dictionnaire raisonneacute des sciences des arts

et des meacutetiers recueilli des meilleurs auteurs et particuliegraverement des dictionnaires anglois de

Chambers dHarris de Dyche etc par une socieacuteteacute de gens de lettres mis en ordre et publieacute par M

Diderot et quant agrave la partie matheacutematique par M dAlembert Dix volumes in-folio dont deux de

planches () Paris 1751 Bibliothegraveque nationale de France deacutepartement Litteacuterature et art FOL-Q-559

Entrada ldquoEacutepheacutemeacuteridesrdquo 871 Mais si lrsquoon considegravere ce mecircme deacuteveloppement das ses reacutesultats relativement agrave la masse des

individus qui co-exitent dans le mecircme temps sur um espace donneacute et si on le suit de geacuteneacuterations em

geacuteneacuterations il preacutesente alors le tableau des progregraves de lrsquoesprit humain Ce progregraves est soumis aux

mecircmes lois geacuteneacuterales qui srsquoobservent dans le deacuteveloppement individuel de nos faculteacutes () Ce tableu

est donc historique puisque assujeacuteti agrave de perpeacutetuelles variations il se forme par lrsquoobservation

successive des socieacuteteacutes humaines aux diffeacuterentes eacutepoques qursquoelles ont parcourues Il doit preacutesenter

lrsquoordre des changements exposer lrsquoinfluence qursquoexerce chaque instant sur celui qui le remplace () Tel

est le but de lrsquoouvrage que jrsquoai entrepris et dont le reacutesultat sera de montrer par le raisonnement et par

les faits qursquoil nrsquoa eacuteteacute marqueacute aucun terme au perfectionnement des faculteacutes humaines que la

perfectibiliteacute de lrsquohomme est reacuteelement indeacutefinie que le progregraves de cette perfectibiliteacute deacutesormais

indeacutependante de toute puissance qui voudroit les arrecircter nrsquoont drsquoautre terme que la dureacutee du globe ougrave

la nature nous a jeteacutes Sans doute ces progregraves pourrons suivre une marche plus ou moins rapide mais

jamais elle ne sera reacutetrograde du-moins tant que la terre occupera la mecircme place dans le systecircme de

lrsquounivers () CONDORCET Esquisse drsquoun tableau historique des progregraves de lrsquoesprit humain Suivie

de reacuteflexions sur lrsquoesclavage des negravegres Paris Masson et fils 1822 p 2-4 872 BAKER K M A Script for a French Revolution The Political Consciousness of the abbeacute Mably

In Inventing the French Revolution Essays on French Political Culture in the Eighteenth Century

Cambridge Cambridge University Press 1990 p 105

279

combate contra um grupo que em opiniatildeo ecoada por Adam Smith natildeo era mais do

que um seacutequito religioso A diatribe das efemeacuterides tambeacutem evidencia jaacute na resposta

das cortes uma tentativa de naturalizaccedilatildeo do passado nacional atraveacutes da vontade

poliacutetica de uma memoacuteria absolutista ao lado dos protestos da erudiccedilatildeo histoacuterica e dos

anseios de um sentido filosoacutefico e sinoacuteptico do tempo Dessa forma a polecircmica

representou em todos os planos uma batalha de memoacuteria

No periacuteodo revolucionaacuterio as fontes encontram nas Efemeacuterides de Noumlel um

modelo que seraacute bastante influente Fechado no ciacuterculo de um grande ano nelas a

histoacuteria universal desenrola-se pontuada por episoacutedios organizados pelos meses e dias

em que ocorreram Com a restauraccedilatildeo eacute no publicismo reacionaacuterio de Cyprien

Desmarais que constatamos a uniatildeo das efemeacuterides com o ofiacutecio dos grandes homens

Luiacutes XVIII eacute apresentado solenemente agrave histoacuteria como que predestinado a tornar-se o

capiacutetulo inicial e iacutendice balizador de toda a marcha de um seacuteculo nascente Derrotado

pela historiografia liberal contra a qual declarava guerra o moralismo de Desmarais eacute

tambeacutem um relato mais modesto das percepccedilotildees de uma geraccedilatildeo de derrotados como

Chateaubriand e Tocqueville a qual enunciava os sintomas de uma crise do tempo

marcada pela dissoluccedilatildeo dos sistemas antigos

No Brasil do IHGB a tarefa de redigir efemeacuterides encontra os obstaacuteculos da

escrita do tempo presente tiacutepicos de uma historiografia que amarrada pela monarquia

a um projeto de naccedilatildeo reluta em aceitar da mesma maneira esse misto de profecia e

periodizaccedilatildeo esboccedilado nas teacutecnicas cronosoacuteficas Falar do futuro da memoacuteria era um

expediente arriscado sobretudo em um paiacutes de proporccedilotildees continentais em risco

constante de secessatildeo No segundo reinado periacuteodo de maior estabilidade poliacutetica

aparecem algumas efemeacuterides regionais no que pese a resistecircncia do Instituto em

financiar algo que nesse preciso momento comeccedila a ser visto como o ofiacutecio

comemorativo de proviacutencias antes revoltosas Natildeo sem argumentos os mestres do

IHGB associam o gecircnero agraves folhas diaacuterias sentido presente com clareza nos

repertoacuterios do conceito de efemeacuteride ao menos desde a primeira modernidade

Certa atribuiccedilatildeo de prestiacutegio agraves efemeacuterides como ldquomateacuteria bruta da histoacuteriardquo

poderia ser lida na obra do Baratildeo de Rio Branco Originalmente publicadas na

imprensa as Efemeacuterides Brasileiras viriam chancelar o 22 de abril afastando a

cacofonia de significados presentes na escolha do 3 de maio como comemoraccedilatildeo

nacional pelo grupo do Centenaacuterio Elevado agrave presidecircncia do IHGB o maior

diplomatada brasileiro permitiria a conciliaccedilatildeo de personagens como Ramiz Galvatildeo e

280

Max Fleiuss que se durante o Jubileu Nacional pareciam ocupar trincheiras opostas

ao celebrar memoacuterias coletivas em conflito poderiam como narrou Luacutecia Paschoal

Guimaratildees apenas um pouco mais tarde formar junto a Afonso Celso a nova trindade

do silogeu De todo modo reunindo nobres por concessatildeo papal junto agrave catoacutelicos

convictos no papel da providecircncia o IHGB apoacutes 1907 jaacute seria nas palavras de Ramiz

Galvatildeo o ldquoAreoacutepago ilustrerdquo referecircncia agraves colina de Ares no qual por volta da

metade do seacuteculo I Satildeo Paulo debatia a boa nova e a promessa de ressurreiccedilatildeo dos

mortos com os filosofos atenienses873

Uma moral e uma cosmologia a traduccedilatildeo dos conceitos de comemoraccedilatildeo e

efemeacuteride em sinocircnimos imperfeitos acompanha o impacto dos centenaacuterios em praias

brasileiras O ofiacutecio comemorativo tarefa de uma ldquogeraccedilatildeordquo viria encontrar respaldo

em experiecircncias intelectuais compartilhadas Wilhelm Dilthey jaacute desnaturalizava o

conceito relacionando-a agraves eras e agraves eacutepocas que seguindo uma regra geral eram

caracterizadas por ldquotendecircncias que as permeiamrdquo874 Mais tarde Karl Mannheim vai

falar em geraccedilotildees como ldquogrupos concretosrdquo constituiacutedos pela memoacuteria de eventos

histoacutericos vivenciados ao longo de periacuteodos de formaccedilatildeo lembranccedilas que

possibilitam esses grupos a natildeo apenas aceitar valores caracteriacutesticos comuns mas

igualmente responder a novas situaccedilotildees e impressotildees a partir de seus filtros875 Por

sua vez Yves Renouard falaria em geraccedilotildees enquanto ldquogrupo de homens e mulheres

cujas ideias sentimentos e modos de vidardquo mostrariam-se os mesmos em termos

873 Sobre o providencialismo no IHGB de iniacutecios do seacuteculo XX assim como as menccedilotildees de Ramiz

Galvatildeo ao ldquoAreoacutepago ilustrerdquo retomo GUIMARAtildeES LMP 2007 principalmente cap 1 pp 61-63

Para os debates de Satildeo Paulo ver Atos 1724 874 DILTHEY W The Formation of the Historical World in the Human Sciences Vol 3 Selected

Works Princeton Princeton University Press 2002 p 198 Michel Winock lembra ao ler outra obra de

Dilthey que para o historiador alematildeo ldquoa geraccedilatildeo existe apenas para um pequeno nuacutemerordquo de pessoas

ligadas em um ldquotodo homogecircneordquo e dependentes de uma mesma cadeia de eventos e modificaccedilotildees que

ocorrem em um espaccedilo de tempo comum WINOCK Michel Les geacuteneacuterations intellectuelles In

Vingtiegraveme Siegravecle Revue dhistoire Ndeg22 avril-juin 1989 p 17 875 MANNHEIM Karl The sociological problem of generations in Essays on the sociology of

knowledge New York Oxford Universi8ty Press 1952 [1928] Principalmente pp 286-320

281

fiacutesicos intelectuais e morais 876 Natildeo seria um grande salto para Pierre Nora

retomando a uacuteltima definiccedilatildeo incluiacute-la no acircmbito dos ldquolugares de memoacuteriardquo877

Uma geraccedilatildeo pode ser entatildeo entendida como um grupo dotado de um espaccedilo

de experiecircncias formadoras comuns compartilhando repertoacuterios intelectuais e morais

Nesse caso ela seria tambeacutem um lugar de enunciaccedilatildeo da memoacuteria coletiva de um

quadro social Mesmo que diferentes ldquopontos de vistardquo para usar a expressatildeo de

Halbwachs aflorem nas memoacuterias individuais individuais a coerecircncia dos discursos

deveria manter-se perceptiacutevel No caso do grupo do Centenaacuterio ndash a autoproclamada

ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo ndash a correlaccedilatildeo de valores relacionava-se a um projeto editorial que

era ao mesmo tempo um projeto de naccedilatildeo Ideia que era devedora de ao menos todo

um seacuteculo de debates e querelas e que possuia em sua pauta como heranccedila particular

o esquecimento dos negros e a assimilaccedilatildeo ou extermiacutenio dos iacutendios

Se natildeo tivemos como lembra Temiacutestocles Cezar uma querela entre antigos e

modernos no Brasil Rodrigo Turin pocircde recentemente falar na existecircncia de uma

ldquoquerela sobre o selvagemrdquo878 O historiador refere-se com essa expressatildeo a toda

uma seacuterie de debates ocorridos por volta das deacutecadas de 1840 e de 1860 entre os

defensores da catequese preocupados com a dinacircmica da ldquodecadecircnciardquo de uma

civilizaccedilatildeo que consideravam algo como antiga e os que negavam sua validade ao

representar os selvagens como povos incapazes de abandonar o estado de natureza

Turin retoma a polecircmica entre Varnhagen ndash o qual nunca demonstrou apreccedilo pelos

nativos ndash e Gonccedilalves de Magalhatildees interessado com seus Indiacutegenas do Brasil

perante a Histoacuteria no tracejo de paralelos entre antigos e selvagens Para o uacuteltimo o

estado dos gentios da terra natildeo era resultado de uma natureza inferior ou inconstante

mas da ldquodecadecircncia a que se acham reduzidos os que por esses sertotildees se

refugiaramrdquo879

O debate nos remete ao pequeno tratado de Von Martius Como se deve

escrever a histoacuteria do Brasil o qual nas palavras de Manoel Salgado Guimaratildees

876 RENOUARD Yves La notion de geacuteneacuteration en histoire Revue historique ndeg 1 1953 apud

BURGUIEgraveRE Andreacute Les rapports entre geacuteneacuterations un problegraveme pour lhistorien In

Communications 59 1994 Geacuteneacuterations et filiation p 15 877 NORA Pierre La Geacuteneacuteration In Les Lieux de Meacutemoire Tomo III Paris Gallimard 1984 p 938 878 CEZAR Temiacutestocles Anciens Modernes Sauvages et lrsquoeacutecriture de lrsquohistoire au Breacutesil au xixe

siegravecle Le cas de lrsquoorigine des Tupis Anabases 8 2008 pp 43-65 TURIN Rodrigo Os antigos e a

naccedilatildeo algumas reflexotildees sobre os usos da antiguidade claacutessica no IHGB (1840-1860) In LrsquoAtelier du

Centre de recherches historiques 07 | 2011 URL disponiacutevel em httpacrhrevuesorg3748 Acesso

em 5 de maio de 2014 879 MAGALHAtildeES D J Gonccedilalves Os indiacutegenas do Brasil perante a Histoacuteria RIHGB Tomo XXIII

1860 p 51 apud TURIN op cit p 25

282

parecia ldquofornecer as pistas que permitiratildeo a elaboraccedilatildeo de uma narrativa dotada de um

enredo delineando com isso uma fisionomia da proacutepria naccedilatildeordquo880 Fisionomia cuja

geneacutetica era classificada por raccedilas e como vimos raccedilas que jaacute possuiam cor Como

escreveu Cezar Martius foi ldquoum dos primeiros talvez ateacute o principal precursor a

tentar resolver antes do movimento abolicionista de 1870 o lsquoproblema

epistemoloacutegicorsquo que representava o escravismo no Brasil ()rdquo881 O amaacutelgama das

trecircs raccedilas mesmo que moderados pela supremacia da cor ldquointeligenterdquo era celebrado

como positivo Quanto agrave perfecibilidade dos iacutendios no entanto seu ponto de vista

ainda eacute alvo de controveacutesias Se no relato de sua viagem Martius e Spix afirmavam

lastimavelmente natildeo concordarem com ldquoa opiniatildeo geral acerca da perfectibilidade da

raccedila dos Pele Vermelhasrdquo em Como se deve escrever a histoacuteria o naturalista dizia

que ldquoum historiador que mostra desconfiar da perfectibilidade de uma parte do gecircnero

humano autoriza o leitor a desconfiar que ecircle natildeo sabe colocar-se acima de vistas

parciais ou odiosasrdquo882

Em uma correspondecircncia endereccedilada a um cleacuterigo protestante cogitado como

tutor de seu uacutenico filho Martius no ano de 1848 deixava transparecer como a

questatildeo da perfectibilidade ndash esse movimento de aprimoraccedilatildeo da alma ndash o havia

atormentado ao longo dos anos O jovem declarava-se espiritualmente comprometido

com a elevaccedilatildeo constante de sua alma postura que o naturalista elogiava afinal

quem aos 23 ou 24 anos natildeo deveria buscar ainda o caminho da retidatildeo Quem

naquela tenra idade seria capaz de declarar-se ldquotatildeo consumado que poderia prometer

nada mais mudar em suas opiniotildees a respeito da essecircncia de nossa natureza e de nosso

propoacutesito espiritualrdquo Era necessaacuterio ponderava Martius que um jovem protestante

possuiacutesse um contrapeso ldquoum ponto de equiliacutebrio contra a inquieta e centriacutefuga

atividade espiritualrdquo ldquoNatildeo apenasrdquo continuava ldquouma crenccedila geral e filosoacutefica em

Deus mas uma feacute cristatilde mais especiacuteficardquo Ao final o cientista admitiria que ldquoo

testemunhordquo da carta ldquolembrou-me de minhas proacuteprias batalhas e levou-me agraves

laacutegrimas mas nesse quesito natildeo deixou minha mente descansarrdquo883

880 GUIMARAtildeES M L S Histoacuteria e natureza em Von Martius esquadrinhando o Brasil aacutera

construir a naccedilatildeo Histoacuteria Ciecircncias Sauacutede v 7 n 2 Jul-out- 2000 p 406-407 881 CEZAR Temiacutestocles Como deveria ser escrita a histoacuteria do Brasil no seacuteculo XIX Ensaio de

histoacuteria intelectual In Histoacuteria cultural experiecircncias de pesquisa PESAVENTO Sandra Jatahy (org)

Porto Alegre Editora da UFRGS 2003 p 184 882 Ver CEZAR 2003 nota 56 pp 191-193 para as referecircncias completas acerca dessa discussatildeo 883 ldquoYou manifest the fermentative elements of a youthfully zealous spirit interested in reform In and

of itself I can find no criterion by which this would prove unsuitable for that which I am seeking For

who is to say that a young man of 23 or 24 years should not still rank among the seekers Indeed who

283

Anos mais tarde ao falar sobre os iacutendios o discurso de Paulo Frontin no 3 de

maio parecia ecoar as longas querelas do seacuteculo que terminava Entre uma tradiccedilatildeo

que via os selvagens como inconstantes ndash algo incapazes de sair de seu estado de

natureza e assumirem a cadecircncia do progresso da naccedilatildeo ndash e outra que os percebia

como decadentes ndash sujeitos agrave reparaccedilatildeo moral ndash o engenheiro oferecia duas soluccedilotildees

Caso fossem eles fragmentos de uma civilizaccedilatildeo perdida oacuterfatildeos em situaccedilatildeo de

dissoluccedilatildeo moral e civil poderiam ser assimilados Estivessem fora da histoacuteria

eternamente envoltos em seus ciclos de vinganccedila caberia eliminaacute-los Em todos os

casos em 1900 o iacutendio natildeo fazia parte do projeto de naccedilatildeo

No repertoacuterio da segunda escolaacutestica o problema da perfectibilidade era

indissociaacutevel do debate teoloacutegico a respeito do destino das almas Cesar Cantugrave como

vimos chegava a atribuir agrave noccedilatildeo o estatuto de uma heresia No Brasil imaginado por

Padre Maria a comemoraccedilatildeo deveria prestar tributos natildeo a conceitos de movimento

como progresso mas em primeiro lugar agrave consumaccedilatildeo das almas com Deus

Deliberando pela reparaccedilatildeo de uma ordem natural cristatilde era possiacutevel alimentar a ideia

de uma naccedilatildeo que mesmo sujeita aos ciclos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo fosse dotada de

uma substacircncia perfeita Como se natildeo possuiacutesse em sua essecircncia um anterior e um

posterior e como se as mudanccedilas sentidas em seu corpo fossem tatildeo somente

modificaccedilotildees ocasionais essa seria uma naccedilatildeo quase eterna Flutuando no tempo

intermediaacuterio do aevum ela estaria sempre pronta ao primeiro sinal de corrupccedilatildeo a

atender o chamado comemorativo e reparador de uma nova geraccedilatildeo Uma naccedilatildeo

assim mudaria apenas para se manter a mesma criando no compasso da conservaccedilatildeo

at that age has already declared himself to be so consummate that he could promise to change nothing

more in his views on the essence of our nature and our spiritual purpose And yet there is one thing

from the description that you present me of your spiritual life dear Sir which must be clear between us

before I could entrust my only son to you with confidence A certain exuberant striving - a general

inclination to that which is far away the unknown probably for the most part the unknowable - is

found in all highly gifted pure masculine temperaments But it must - at least I think so of a young

protestant clergyman - have a counterweight a balance against that restless centrifugal spiritual

activity not simply in a general philosophical belief in God but in a quite specific Christian faith I

will not conceal it from you the testimony of your letter reminded me of my own battles and brought

me to tears but on that one matter it has not yet set my mind at restrdquo MARTIUS Karl Friedrich von

Autograph letter signed Editorial Munich 1848 4 paacuteginas Traduccedilatildeo para o inglecircs disponiacutevel em

httpwwwiberlibrocomAutograph-letter-signed-4pp-Martius-Karl55864117bd

284

Referecircncias bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

AGENOT Marc Le centenaire de la reacutevolution 1989 La documentation

franccedilaise 1989 Direction de la documentation franccedilaise Collection ldquoLes meacutedias et

lrsquoeacuteveacutenementrsquo BNF Paris [8-g-23517]

ALLESTREE Richard A New Almanach for Prognostication for the yeere of

our Lord God 1629 and from the creation 5591 being the first frō leap-yeere

calculated and properly referred to the longitude amp sublimity of the pole articke of 52

amp 53 deg London Printed for the Company of Stationers 1628

ANDREAS Prediction merveillevse Du Sieur Andreas Astrologue amp

Mathematicien de Padouumle Sur lrsquoEclipse de Soleil qui se ser ale douziesme iour

drsquoAoust MDCLIV Avec son explication amp lrsquoapprobation drsquoEistadius Grand

Astrologue A Paris Par Iacques Beslay 1654

ARGOLO Andrea Avectore Exactissimae Caelestivm Motvvm Ephemerides

Ad Longitvdinem Almae Vrbis Et Tychonis Brahe Hypotheses AC Deductas Caelo

Accurat Observationes AB Anno 1641 Ad Annum 1700

ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO

BRASIL O Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Imprensa Nacional Rio de Janeiro

1900-1904 IV volumes

BAILLY LA FAYETTE Ordre de marche pour la confeacutederation qui aura

lieu le 14 juillet amp dispositions dans le Champ-de-Mars Paris 1790

BAYLE Pierre Penseacutees Diverses agrave lrsquooccasion drsquoun comegravete In Oeuvres

Diverses Tome III parte I La Haye Compagnie des libraires 1737

BAYLE Pierre La Cabale Chimeacuterique ou Refutation de lrsquoHistoire Fabulouse

In Oeuvres Diverses La Haye Par la Compagnie des Libraries 1737 Tomo II

BERNE Paul Souvenir du 14 Juillet 1880 Trois dates Fecircte nationale du 14

juillet 1880 Le 14 juillet 1789 Le 14 juillet 1790 Imp De Menaboeuf-Genin

Lyon 1880 Monographie imprimeacutee

Bulletin municipal officiel Paris 16 juillet 1891

285

BEVTHERI Michaelis Ephemeris historica Eivsdem de annorum mundi

concinna dispositione libellus Ex officina Michealis Fezandat et Roberti Grandion

Taberna Graphyana Paris 1551

CHASSIN Charles-Louis Les eacutelections et les cahiers de Paris Preacuteface tome

I

DOVE Jonathan Dove speculum anni aacute partu virginis MDCLXVII or an

almanack for the year of our Lord God 1667 Cambridge 1667

EXPOSITION UNIVERSELLE DE PARIS 1889 Empire du Bregravesil

Catalogue Officiel 6 mai 1889 BNF 8-v-21701-L 333-A

FERRIEgraveRES Meacutemoires du Marquis de Ferriegraveres Paris Baudouin Fils 1822

GOIS Projet de monumento et fecircte patriotique Paris 1790

GREacuteGOIRE Henri Rapport sur les destructions opeacutereacutees par le vandalisme

et sur les moyens de le reacuteprimer seacuteance du 14 fructidor lan second de la

Reacutepublique une et indivisible suivi du Deacutecret de la Convention nationale ([Reprod])

Convention nationale [reacuted] par Greacutegoire -[de lImpr nationale] (Paris)-1794

LINGUET Simon Adresse au peuple franccedilais concernant ce qursquoil faut faire

amp ce qursquoi faut pas faire pour fecircter la fecircte meacutemorable et nationale du 14 juillet 1790

Et sur-tout la neacuteceacutessiteacute de nrsquoy admettre aucun cheval Paris 1790

MARTIUS Karl Friedrich von Autograph letter signed Editorial Munich

1848 paacuteginas Traduccedilatildeo para o inglecircs disponiacutevel em

httpwwwiberlibrocomAutograph-letter-signed-4pp-Martius-Karl55864117bd

MD Les doutes eacuteclaircis ou reacuteponse a m lrsquoabbeacute de Mably In Eacutepheacutemeacuterides

du citoyen ou Chronique de lrsquoesprit national 1768 Tome Troisieme Seconde Partie

Critiques Raisonneacutees

NOEumlL Franccedilois-Joseph-Michel Eacutepheacutemeacuterides politiques litteraires et

religieuses preacutesentant pou chacun des jours de lrsquoanneacutee un tableau des eacuteveacutenements

remarquables qui datent de ce mecircme jour dans lrsquohistoire de tous les siegravecles et de tous

les pays et commencant au I septembre 1796 pour finir au I septembre 1797 Paris

1796 De limprimerie de Le Normant 1796

NOEumlL Franccedilois-Joseph-Michel Eacutepheacutemeacuterides politiques litteacuteraires et

religieuses preacutesentant pour chacun des jours de lanneacutee un tableau des eacuteveacutenemens

()Seconde eacutedition revue corrigeacutee et augmenteacutee Paris Le Normant 1803

PARLEMENT DE PARIS Arrecirct du parlement (qui enjoit agrave de La Harpe

auteur de lrsquoarticle intitule Diatribe agrave lrsquoauteur des eacutepheacutemeacuterides paru dans le

286

Mercure de France du moins drsquoaoucirct 1775 agrave Louvel censeur et agrave La Combe

imprimeur drsquoecirctre plus circonspects agrave lrsquoavenir Paris Imprimeur du Parlement 1775

HACKNEY Stower (printed for) Almanac for the Year 1386 Transcribed

Verbatin From the Original Antique Illuminated Manuscript in the Black Letter

1812

FINEacute Oronce Les canons amp documents tregraves amples touchant l`usage amp

practique des communs almanachz que lrsquoon nomme eacutepheacutemeacuterides Briefve amp

isagogique introduction sur la judiciaire astrologie avc un traicteacute drsquoAlcabice

touchant les conjonctions des planegravetes en chascun des 12 signes et de leur

prognostications Impr De R Chadiegravere Paris 1551 BNF Deacutepartemente Reacuteserve

des livres rares V-21376

REGIOMONTANUS Ioannis de Monteregio Tabulae Directionum

Profectionumque non tam astrologiae iudiciariae quam tabulis instrumentisque

innumeris fabricandis utiles ac necessariae eiusdem Regiomontani tabula sinuum

per singula minuta extensa universam sphaericorum triangulorum scientiam

complectens accesserunt his tabulae ascensionum obliquarum a 60 gradu elevationis

poli usque ad finem quadrantis per Erasmum Reinholdum () Supputae-

Imprimebantur in officina typographica Matthei Welack 1584

REGIOMONTANUS Ioannis de Monteregio Ephemerides sive almanach

perpetuus Impr Petri Liechtenstein Venetiis 1498

Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva

Realisada em noite de 8 de Dezembro de 1886 no Theatro S Joseacute Satildeo Paulo

Publicaccedilatildeo em favor da libertaccedilatildeo dos captivos Typographia King 1887

Perioacutedicos

BAUDEAU Nicolas Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen ou Chronique de lrsquoEsprit

National T 1 4 de Novembro de 1765 Paris Augustin Delalain p 15

BADEAU Nicolas NEMOURS Dupont (et all) Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou

Chronique de lrsquoesprit national 1768 Tome Troisieme Seconde Partie Critiques

Raisonneacutees

Chronique de Paris 5 de Julho de 1790

Chronique de Paris 6 de julho de 1790

287

Frasersrsquos Magazine for Town And Country London John W Parker West

Strand Jan-Jun 1848 Vol XXXVII

Principes de tout gouvernement In Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou Chronique de

lesprit national Lacombe Paris 1767 T4 Parte 2

Reacutevolutions de Paris 17900703 (T4N52)-17900710

Mercure de France 8 Julliet 1790

Revista do IHGB t40 v2 1877

Revista do IHGB t 1 1839

Revista do IHGB t 19 1856

Revista do IHGB T6 v2 1865

Revista do IHGB T 64 v 1 e 2 1901

Revista do IHGB 3 (Suplemento) 1841

Revista do IHGB 2 (8) 1840

Revista do IHGB 1887 (2)

Revista do IHGB 1896 T 59 v II

Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutephico de Satildeo Paulo Tomo VI 1900-

1901

Instrumentos de pesquisa

BIBLIA SACRA Vulgatae Editionis Ex Officina Plantiniana Balthasaris

Moreti Antueacuterpia 1631

BIBLIA SAGRADA Contento o Velho e o Novo testamento Traduccedilatildeo da

Vulgata pelo Padre Antonio Pereira de Figueiredo (1725-1797) Lisboa Empreza da

Historia de Portugal 1902 3 volumes

BAILLY Histoire de lrsquoastronomie moderne depuis la fondation de lrsquoeacutecole

drsquoAlexandrie jusqrsquoagrave lrsquoeacutepoque de 1730 Tome 1 De Bure Paris 1785

CHAMBERS Ephraim Cyclopaeligdia or An universal dictionary of arts and

sciences containing the definitions of the terms and accounts of the things signifyd

thereby in the several arts both liberal and mechanical and the several sciences

human and divine the figures kinds properties productions preparations and

uses of things natural and artificial the rise progress and state of things

ecclesiastical civil military and commercial with the several systems sects

288

opinions ampc among philosophers divines mathematicians physicians antiquaries

criticks ampc the whole intended as a course of antient and modern learning1728

CUNHA Antocircnio Geraldo da Dicionaacuterio etimoloacutegico Nova Fronteira da

Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986

Colleccedilatildeo das Leis do Impeacuterio do Brasil Parte Primeira Rio de Janeiro

Typographia Nacional 1880

DE LA LANDE Jeacuterocircme Bibliographie astronomique avec lhistoire de

lastronomie depuis 1781 Jusqursquoaagrave 1802 Paris Imprimerie de la Reacutepublique 1803

DIDEROT Denis Encyclopeacutedie ou Dictionnaire raisonneacute des sciences des

arts et des meacutetiers recueilli des meilleurs auteurs et particuliegraverement des

dictionnaires anglois de Chambers dHarris de Dyche etc par une socieacuteteacute de gens

de lettres mis en ordre et publieacute par M Diderot et quant agrave la partie matheacutematique

par M dAlembert Dix volumes in-folio dont deux de planches () Paris 1751

Bibliothegraveque nationale de France deacutepartement Litteacuterature et art FOL-Q-559

GUIMARAtildeES Manuel Luiz Salgado Livro de Fontes de Historiografia

Brasileira Rio de Janeiro Eduerj 2010

HERENCIA Bernard Les Eacutepheacutemeacuterides du citoyen et les Nouvelles

Eacutepheacutemeacuterides eacuteconomiques (1765-1788) Documents et table complegravete Centre

international drsquoeacutetude du XVIIIe siegravecle Ferney-Voltaire 2014

HOUAISS Antocircnio VILLAR Mauro de Salles FRANCO Francisco Manoel

de Mello Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Riod e Janeiro Objetivo 2001

LAUROUSSE Pierre Grand dictionnaire universel du xix siecle Paris

Grand Dictionnaire Universel Verbete Eacutepheacutemeacuteride

MACHADO Joseacute Pedro Dicionaacuterio etimoloacutegico da liacutengua portuguesa com a

mais antiga documentaccedilatildeo escrita e conhecida de muitos dos vocaacutebulos estudados 2

ed Lisboa Confluecircncia 1967 3 v

PESSOA R C A ideia republicana no Brasil atraveacutes de documentos Satildeo

Paulo Alfa-Ocircmega 1973

SERRAtildeO Joel Dicionaacuterio de Histoacuteria de Portugal Vol 1 V

SILVA E (org) Ideacuteias poliacuteticas de Quintino Bocaiuacuteva BrasiacuteliaRio de

Janeiro Senado FederalCasa Rui Barbosa 1986

SIMPSON John WEINER Edmund (org) The Oxford English Dictionary

Clarendon Press Oxford 1989

289

WIEDLER Johan Friedrich Historia astronomiae Vitembergae Sumtibus

GH Schwartzii Bibliopolae 1741

Bibliografia geral

AGOSTINHO S Aureii De Doctrina Christiana Libri Quatuor et Enchiridion ad

Laurentium Editio Stereotypa Lipsiae Sumtibus et typis caroli tauchnitii

1838

___________ Confessions With an English Translatin by William Watts The Loeb

Classical Library London William Heinemann New York The

Macmillan co Vol II 1912

___________ Ouvres de Saint Augustin Paris Descleacutee de Brouwer 1996

Bibliothegraveque Augustinienne _________ Ouvres Complegravetes de Saint

Augustin M Raulx (trad) T 2 Bar-le-Duc 1868

AQUINAS Thomas Commentary on Aristotles Physics Book 4 Richard J

Blackwell Richard J Spath amp W Edmund Thirlkel (trans) Yale

University Press 1963

________________ Summa Theologiae Vol 2 (ia 2-11) Existence and Nature of

God McDermott Timothy (ed) Cambridge University Press Oct 26

2006

________________ Summa Contra Gentiles Vernon J Bouker (trad) New York

Hanover House 1955-57

ALONSO Acircngela Ideacuteias em movimento a geraccedilatildeo 1870 na crise do Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Paz e Terra 2002

ANDERSON Benedict Imagined Communities Reflections on the Origin and

Spread of Nationalism ver Ed New York Verso 1991

ANDRADA E SILVA Joseacute Bonifaacutecio de Representaccedilatildeo aacute Assemblea Geral

Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil sobre a Escravatura

Paris Firmin Didot 1825

ARISTOacuteTELES Physique Texte eacutetabli et traduit par Henri Carteron Vol I 2ed

Paris Budeacute 1956

____________ De la Geacuteneacuteration et de la Corruption Paris Socieacuteteacute drsquoeacutedition 1966

____________ The works of Aristotle translated into English ROSS WD (ed)

Oxford Claredon 1931

290

____________ De lrsquoame J Vrin (dir) Paris Organon Librarie Philosophique 1947

____________ De Anima In The Complete Works of Aristotle Barnes J (ed)

Princeton Princeton University Press 1984

ATKINS Jed W A revoluctionary doctrine Cicerorsquos natural right teaching in

Mably and Burke Classical Receptions Journal 2014 6 (2)

Baczko Bronislaw Vandalim In Furet and Ozouf (eds) A Critical Dictionary of the

French Revolution Cambridge Harvard University Press 1989

BAKER K M A Script for a French Revolution The Political Consciousness of the

abbeacute Mably In Inventing the French Revolution Essays on French

Political Culture in the Eighteenth Century Cambridge Cambridge

University Press 1990 pp 86-106

BARBOSA Januaacuterio da Cunha ldquoDiscurso do Primeiro Secretaacuterio Perpeacutetuo do

Institutordquo Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro IHGB

1839 t1

BARNES R Prophecy and Gnosis Stanford Stanford University Press 1988

BECQUEMONT Daniel Herbert Spencer progregraves et deacutecadence In Mil neuf cent

No 14 1996

BEZZA Giuseppe Commento al primo libro della Tetrabiblos di Claudio Tolemeo

Nuovi Orizzonti Milano sp 19901992

BODIN Jean Agevin Meacutethode pour faciliter la connaissance de lrsquohistoire P

Mesnard (trad) Paris Martin le Jeune 1572

BOEIRA Luciana Fernandes Como salvar do esquecimento os atos bravos do

passado rio-grandense a Proviacutencia de Satildeo Pedro como um problema

poliacutetico-historiograacutefico no Brasil Imperial Tese de Doutorado UFRGS

2013

BOSSUET JB Projet de reacuteunion entre les Cathololiques amp les Protestants In

Oeuvres de Messire J Benigne Bossuet Tome Quatrorzieme Libraires

Associeacutes Liege 1767

BURGUIEgraveRE Andreacute Les rapports entre geacuteneacuterations un problegraveme pour lhistorien

In Communications 59 1994 Geacuteneacuterations et filiation

BILAC Olavo Antologia Poesias Satildeo Paulo Martin Claret 2002

BRAGA Teoacutefilo Os Centenaacuterios como synthese affectiva nas sociedades modernas

Porto Typographia de AJ da Silva Teixeira 1884

291

_____________ Plutarco Portuguez collecccedilatildeo de retratos e biographias dos

principaes vultos histoacutericos da civilizaccedilatildeo portugueza Desenhos de Julio

Costa e phototypias Emilio Biel amp Cia collaboradores drsquoeste volume

Theophilo Braga Oliveira Martins Joaquim Vasconcellos Julio de

Mattos e Paiva e Pona Pocircrto J Costa E Biel amp Cia 1881

BACZKO Bronislaw 1984 Le calendrier reacutepublicain In NORA Pierre (org) Les

lieux de meacutemoire Paris Gallimard

BAKHTIN M Rabelais and His World Bloomington 1984

BARBOSA Januaacuterio da Cunha Relatoacuterio do Secretaacuterio Perpeacutetuo Revista do IHGB

Rio de Janeiro 3 (Suplemento) 1841

BARBOSA Rui Elogio ao Poeta (1881) In Trabalhos diversos Rio de Janeiro

Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Cultura 1957 (Obras Completas de Rui

Barbosa v 8 1881 t 1)

BARTON Tamsyn S Power and Knowledge Astrology Physiognomics and

Medicine under the Roman Empire Ann Arbor The University of

Michigan Press 1994 [2002

BLOCH Marc Meacutemoire Collective Tradition et Coutume In Revue de synthegravese

historique T40 N14 Paris 1925 (12)

BLUMENBACH Friedrich Johan The Elements of Physiology Elliotson John

(trans) 4 ed London Longman Rees Orme Brown and Green

Paternoster-Row 1828

BERRINI Beatriz Brasil e Portugal A Geraccedilatildeo de 70 Campo das Letras Porto

2003

BOCAIUacuteVA Quintino A crise da lavoura In SILVA E (org) Ideacuteias poliacuteticas de

Quintino Bocaiuacuteva BrasiacuteliaRio de Janeiro Senado FederalCasa Rui

Barbosa 1986

BOLLEgraveME Geneviegraveve Les Almanachs Populaires aux XVIIe et XVIII siegravecles Essai

d`histoire sociale Paris Mouton 1969

BONNET Jean-Claude Naissance du Pantheacuteon Paris Fayar 1998

BOSSUET Discours sur lrsquoHistoire Universelle Garnier Fregraveres Paris

BOSANQUET Eustace F English seventeenth century almanacks In The Lybrary

10 1930

BUARQUE DE HOLANDA Seacutergio Raiacutezes do Brasil Rio de Janeiro Joseacute Olympio

1956 [1936]

292

BUESCU Ana Isabel Sentimento e Esperanccedilas de Portugal In A Restauraccedilatildeo e sua

eacutepoca Lisboa Cosmos 1993

BURKE Aedanus Considerations on the Society or Order of Cincinnati proving that

it creates a Race of Hereditary Patricians or Nobility Philadelphia

Robert Bell 1793

BURKE Edmund Reflection of the Revolution in France London John Sharpe

1820

CABRAL Alexandre Luiacutes de Camotildees Poeta do Povo e da Paacutetria Notas

oitocentistas ndash I Lisboa Horizonte 1980

CASSIO Dio GROS E (dir) Histoire Romaine de Dion Cassius Tome Neuviegraveme

Paris Virmin Didot 1867

CAMPION Nicholas The Great Year Astrology Millenarism and History in the

Western Tradition London Pinguin Books 1994

CANTUgrave Cesar Histoire universelle Lacombe Paris 1883

____________ La Reacuteforme en Italie Les preacutecurseurs Discours historiques Ancinet

Digard et Edond Martin (trad) Paris Adrien Le Clere 1867

CAPP Bernard English almanacs astrology and the popular press 1500-1800

Londres Farber amp Fauber 1979

CATROGA Fernando O culto dos mortos como uma poeacutetica da ausecircncia In

ArtCultura Uberlacircndia v 12 n 20 jan-jul 2010

___________________ Paacutetria naccedilatildeo e nacionalismo In SOBRAL Joseacute Manoel

VALA Jorge (Org) Identidades nacionais inclusatildeo e exclusatildeo Lisboa

ICS 2010

CARLYLE Thomas On Heroes Hero-Worship and the Heroic in History Reprint

of the Sterling Edition Echo Library 2007

________________ Romance of Portuguese Revolution March 1848 In Frasersrsquos

Magazine for Town And Country January to June 1848 London John W

Parker West Strand Vol XXXVII p 274

CAROLINO Luiacutes Miguel Ciecircncia Astrologia e Sociedade a Teoria da Influecircncia

Celeste em Portugal (1593-1755) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian Porto

2003

______________________ Astrologia e Sociedade a Teoria da Influecircncia Celeste

em Portugal (1593-1755) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian Porto 2003

293

_____________________ A escrita celeste almanaques astroloacutegicos em Portugal

nos seacuteculos XVII e XVIII Rio de Janeiro Access 2002

CARVALHO Joseacute Murilo de A formaccedilatildeo das almas o imaginaacuterio da Repuacuteblica no

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993

_____________________ (org) Bernardo Pereira de Vasconcelos Editora 34 Satildeo

Paulo 1999

_____________________ Brasil naccedilotildees imaginadas In Pontos e Bordados

Escritos de Histoacuteria e Poliacutetica Belo Horizonte Editora da Universidade

Federal de Minas Gerais 1998

CASTRO ALVES Gonzaga ou a revoluccedilatildeo de minas Drama histoacuterico brazileiro

Rio de Janeiro Livraria Coutinho 1975

CASTRO Eduardo Viveiros de O maacutermore e a murta In A Inconstacircncia da Alma

Selvagem Cosacnaify Satildeo Paulo 2005

_________________________ Os pronomes cosmoloacutegicos e o perspectivismo

ameriacutendio In Mana 2(2)115-144 1996

CELSO Affonso Porque me ufano de meu paiacutes 11a ed Rio de Janeiro Briguet amp

Cia 1937

CEZAR Temiacutestocles Lrsquoeacutecriture de lrsquohistoire au Breacutesil au XIX siegravecle Essai sur une

rheacutetorique de la nacionaliteacute Le cas Varnhagen Paris EHESS Tese de

Doutorado 2002

_______________ Presentismo memoacuteria e poesia Noccedilotildees da escrita da Histoacuteria no

Brasil oitocentista In Sandra Jatahy Pesavento (Org) Escrita

Linguagem objetos Leituras de Histoacuteria cultural Bauru Edusc 2004

_______________ Anciens Modernes Sauvages et lrsquoeacutecriture de lrsquohistoire au Breacutesil

au xixe siegravecle Le cas de lrsquoorigine des Tupis Anabases 8 2008

_______________ Como deveria ser escrita a histoacuteria do Brasil no seacuteculo XIX

Ensaio de histoacuteria intelectual In Histoacuteria cultural experiecircncias de

pesquisa PESAVENTO Sandra Jatahy (org) Porto Alegre Editora da

UFRGS 2003

CHAPMAN Alison A Marking time Astrology Almanacs and English

Protestantism In Renaissance Quaterly Volume 60 Number 4 Winter

2007

CIacuteCERO Marco Tuacutelio Ouvres complegravetes de Ciceacuteron NISARD M (dir) Paris JJ

Dubochet 1841

294

___________ The Orations of Marcus Tullius Cicero Volume IV London Bell amp

Sons 1921

___________ Rhetorica ad Herennium Harry Clapman (transl) London-Cambridge

Harvard University Press 1954

COOPE Ursula Time for Aristotle Physics IV 10-14 Oxford Aristotle Studies

Clarenton Press Oxford 2008

COLOMB Fernand Histoire de la vie et des deacutecouvertes de Christophe Colomb

Muller Eugecircne (trad) Paris Maurice Dreyfous 1879

COLUMBUS Christopher The Diario of Christopher Columbusrsquos First Voyage to

America 1492-1493 Abstracted by Fray Bartolomeacute de las Casas O

Dunn JE Kelley Jr (trad) Library of Congress 1989

COMTE Auguste Sommaire exposition de la religion universelle en treize entreacutetiens

sistemaacutetiques entre une Femme et um Precirctre de lrsquohumaniteacute Paris Place

de lacuteEstrape 1891 (1845)

______________ Systegraveme de politique positive ou traiteacute de sociologie instituant la

reacuteligion de lrsquohumaniteacute Tome 3 Contenant la Dynamique Sociale ou le

traiteacute geacuteneacuteral du progregraves humain Paris 1853

CONDORCET A escravidatildeo dos negros (reflexotildees) Traduccedilatildeo do engenheiro civil

Aaratildeo Reis Rio de Janeiro Typ De Serafim Joseacute Alves 1881

__________ Esquisse drsquoun tableau historique des progregraves de lrsquoesprit humain Suivie

de reacuteflexions sur lrsquoesclavage des negravegres Paris Masson et fils 1822

CORUJA Antonio Alvares Pereira Anno Historico Sul-Rio-Grandense em Forma de

Ephemerides Editado por uma associaccedilatildeo de rio-grandenses do sul Rio

de Janeiro Typ De Joseacute Dias de Oliveira 1888 Primeiro Folheto 1 de

Janeiro a 31 de Marccedilo Proacutelogo sp

COUTINHO Afracircnio (Org) A polecircmica Alencar-Nabuco Rio de Janeiro Tempo

Brasileiro 1978

COTTRET Bernard HENNETON Lauric (org) Du bon usade des commeacutemorations

Histoire meacutemoire et identiteacute XVIe-XXIe siegravecle Rennes Presses

Universitaires 2010

CHIAPPETTA Angeacutelica Natildeo Diferem o Historiador e o Poeta O Texto Histoacuterico

como Instrumento e Objeto de Trabalho Liacutengua e Literatura 2 1996

Departamentos de Letras USP

295

CHARTIER Roger LrsquoOrdre des livres Lecteurs Auteurs Bibliothegraveques en Europe

entre XVI et XVIII siegravecle Alineacutea Aix-en-provence 1992

COUSIN Victor Introduction a lrsquohistoire de la philosophie Paris Imp Pillet Fils

Aineacute Librarie Acadeacutemique 1872

CUNHA Mafalda Soares da A questatildeo juriacutedica na crise dinaacutestica In Histoacuteria de

Portugal No Alvorecer da Modernidade Lisboa Estampa 1997

DARNTON Robert Boemia Literaacuteria e Revoluccedilatildeo O submundo das letras no

Antigo regime Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

DrsquoAILLY Pierre Ymago Mundi Edmond Buron (eacuted) Texte latin et traduction

franccedilaise des quatre traiteacutes cosmographiques de drsquoAilly et des notes

marginales de Christophe Colomb Tome I Librarie Orientale et

Ameacutericaine Paris 1930 Tome I

DELUMEAU Jean La Peur en Occident Paris Fayard 1978

______________ Voyage Pittoresque dans lrsquointeacuterieur de la chambre des deputes

suivi Du Temps Present ou essai sur lrsquohistoire de la civilization au dix-

neuviegraveme siegravecle Deuxiegraveme eacutedition Paris Ponthieu Librarie 1827

______________ Eacutepheacutemeacuterides Historiques et Politiques du Regravegne de Louis XVIII

depuis la restauration FM Maurice Librarie-Eacutediteur 1825

______________ Histoire des Histoires de la Reacutevolution Franccedilaise Pour servir de

compleacutement agrave tous les eacutecrits sur la mecircme eacutepoque Paris Paul Meacutequignon

1834

DILTHEY W The Formation of the Historical World in the Human Sciences Vol 3

Selected Works Princeton Princeton University Press 2002

DEUSEN Nancy van (org) Cicero refused to die Ciceronian influence through the

centuries Brill Leiden 2013

DOYLE W Aristocracy and its Enimies in the Age of Revolution Oxford Oxford

University Press 2009

DOOLEY Brandan (org) A companion to astrology in the Renaissance Brill 2014

DOBRZYCKI Jerzy KREMER Richard Peurbach and Maragha Astronomy The

Ephemeris of Johannes Angelus and their implications In Journal for the

History of Astronomy Provided by NASA Astrophysics Data System

Xxvii 1996

296

DRESCHER Seymour Capitalism and Antislavery British Mobilization in

Comparative Perspective New York amp Oxford Oxford University Press

1987

______________ Les formes eacuteleacutementaires de la vie religieuse Le systegraveme toteacutemique

en Australie Paris Les Presses universitaires de France 1968 (1921)

______________ Le suicide Paris Presses Universitaires de France 2007

______________ De la division du travail social Livre I Paris Les Presses

universitaires de France 1967 (1893)

DUBIEF Eugeacutene Le Journalisme Bibliothegraveque des Merveilles Librairie Hachette

Paris 1892

DREacuteVILLON Herveacute Lire et eacutecrire lrsquoavenir Lrsquoastrologie dans la France du Grand

Siegravecle (1610-1715) Seysell Champ Vallon 1996

ECO Umberto Os limites da representaccedilatildeo Perspectiva Satildeo Paulo 1990

ELIADE Mircea O mito do eterno retorno Satildeo Paulo Mercuryo 1992

EMERSON Ralph Waldo History In The Complete Works Vol II Essays First

SeriesBoston and New York Houghton Mifflin and Company 1904

______________ The Complete Works Uses of Great Men In Representative men

Vol IV Boston and New York Houghton Mifflin and Company 1904

______________ Character In Essays Second Series The Complete WorksVol

III Boston and New York Houghton Mifflin and Company 1904

ENDERS Armelle ldquoO Plutarco Brasileirordquo A Produccedilatildeo dos Vultos Nacionais no

Segundo Reinado In Estudos Histoacutericos 2000 25

______________ Os Vultos da Naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e formaccedilatildeo de brasileiros

Rio de Janeiro FGV Editora 2014

ENGAMMARE Max Lrsquoordre du temps Lrsquoinvention de la poncutualiteacute au XVIe

siegravecle Droz Les seuils de la moderniteacute Vol 8 Genebra 2004

EISENSTEIN Elizabeth The printing press as an agent of change 2 vol Cambridge

1979

FARIA Julio Cezar de Joseacute Bonifaacutecio o moccedilo Companhia editora nacional Satildeo

Paulo 1944

FERREIRA Juliana Mesquita Hidalgo Propaganda e criacutetica social nas cronologias

dos almanaques astroloacutegicos durante a Guerra Civil inglesa no seacuteculo

XVII In Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo Dezembro de 2007 V

27 N 54

297

FOUCAULT Michel Arqueologia das Ciecircncias e Histoacuteria dos Sistemas de

Pensamento Manoel Barros da Motta (org) Rio de Janeiro Forense

Universitaacuteria 2000

_________________ Microfiacutesica do Poder Graal Rio de Janeiro 1989

FREDRICKSON George M Racism A Short History Princeton University Press

2002

FREEMAN Douglas Southall George Washington a Biography Volume Five

Victory with the help of France New York Charles Scribnerrsquos Sons

1952

FREYRE Gilberto Casa-grande e senzala (formaccedilatildeo da famiacutelia brasileiro sob o

regime de economia patriarcal) Rio de Janeiro Joseacute Olympo 1954

[1933]

FINDLEN Paula (org) Athanasius Kircher The Last Man Who Knew Everything

Routledge New York 2004

FLEIUSS Max Centenaacuterios do Brazil In RIHGB Rio de Janeiro Imprensa

Nacional 1901

FREIRE Felisbello Firmo de Oliveira Histoacuteria constitucional da Republica dos

Estados Unidos do Brasil Rio de Janeiro Typographia Moreira

Maximino amp C 1894-1895 3 Vol

GARIN Eugenio Astrology in the Renaissance The Zoodiac of Life Routledge amp

Kegan Paul London-Boston 1983

GAUTHIER Florence Agrave lrsquoorigine de la theacuteorie physiocrate du capitalisme la

plantation esclavagiste lrsquoexpeacuterience de Le Mercier de La Riviegravere

Intendant de la Martinique Presses Universitaires de France Actuel

Marx 20022 ndash no 32

GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz O Centenaacuterio do Brasil Gazeta de Notiacutecias 27

de Maio de 1898

GICQUIAUD Greacutegory La balance de Clio reacuteflexions sur la poeacutetique et la

rheacutetorique du parallegravele In Marc Andreacute Bernier (org) Parallegravele des

anciens et des modernes Rheacutetorique histoire et estheacutetique au siegravecle des

Lumiegraveres Presses Universitaires Laval 2007

GILLIS John R (org) Commemorations the politics os national identity Princeton

University Press New Jersey 1994

298

GUIMARAtildeES Manoel Luis Salgado Historiografia e Naccedilatildeo no Brasil (1838-1857)

Rio de Janeiro Eduerj 2011

_________________ A disputa pelo passado na cultura histoacuterica oitocentista no

Brasil In CARVALHO Joseacute Murilo (Org) Naccedilatildeo e cidadania no

Impeacuterio novos horizontes Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo brasileira 2007

_________________ Histoacuteria e natureza em Von Martius esquadrinhando o Brasil

aacutera construir a naccedilatildeo Histoacuteria Ciecircncias Sauacutede v 7 n 2 Jul-out- 2000

GUIMARAtildeES Luacutecia Maria Paschoal Debaixo da imediata proteccedilatildeo de Sua

Majestade Imperial O Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (1838-

1889) Revista do IHGB Rio de Janeiro a 156 nordm 388 p 459-613 jul-

set 1995

_________________________ O Tribunal da Posteridade In PRADO Maria

Emiacutelia O Estado como vocaccedilatildeo Rio de Janeiro Acess 1999

_________________________Da Escola Palatina ao Silogeu Instituto Histoacuterico e

Geograacutefico Brasileiro (1889-1938) Rio de Janeiro Ed Museu da

Repuacuteblica 2007

GUIMARAtildeES Ribeiro J Summaacuterio de Varia Histoacuteria Narrativas Lendas

Biographias Descripccedilotildees de Templos e Mommentos Estatiacutesticas

Costumes Civis Poliacuteticos e Religiosos de outras eras Lisboa Rolland amp

Semiond 1873

GUIZOT Vie de Washington Correspondence et eacutecrits de Washington pub Drsquoapregraves

lrsquoeacutedition ameacutericaine et preacuteceacutedeacutes drsquoune introduction Paris Charles

Gosselin 1870

GELLIUS Aulus The Attic Nights John Carew Rolfe (ed) Cambridge London

Harvard University Press 2002

GONCcedilALVES Ana Teresa Marques Propaganda no Periacuteodo Severiano A

Construccedilatildeo da Imagem Imperial Tese de Doutorado Universidade de

Satildeo Paulo 2002

GONCcedilALVES Ana Teresa Marques Astrologia e poder o caso de Marcus

Manilius XXIV Simpoacutesio Nacional de Histoacuteria 2007

GINZBURG Carlo Relaccedilotildees de Forccedila Histoacuteria Retoacuterica Prova Compania das

Letras Satildeo Paulo 2000

GRAFTON Anthony What was history Cambridge University Press New York

Kindle Edition (sem paginaccedilatildeo) 2007

299

______________ Defenders of the Text The traditions of scholarship in an age of

science 1450-1800 Cambridge and London Harvard University Press

1991

______________ Starry Messengers Recent Work in the History of Western

Astrology Perspective on science Volume 8 n 1 spring 2000

______________ Cardanorsquos Cosmos The World and Works of a Renaissance

Astrologer Cambridge MA 1999

______________ WILLIAMS Megan Christianity and the Transformation of the

Book Origen Eusebius and the Library of Caesarea Cambridge Harvard

University Press 2006

______________ Joseph Scaliger 2 vol Oxford Clarendon Press

______________ Commerce with the Classics Ann Arbor University of Michigan

Press 1997

GRAFTON Anthony MOST Glenn SETTIS Salvatore The Classical Tradition

Harvard University Press 2010

GRANT Edward Planets Stars and Orbs The Medieval Cosmos 1200-1687

Cambridge Cambridge University Press 1994

______________ In Defense Of The Earths Centrality and Immobility Scholastic

Reaction To Copernicanism In The Seventeenth Century American

Philosophical Society 1984

GUNDERSHEIMER Werner L The Life and Works of Louis Le Roy Droz 1966

Genebra

HANDLER Richard Is ldquoIdentityrdquo a Useful Cross-Cultural Concept In GILLIS

John R (org) Commemorations the politics os national identity

Princeton University Press New Jersey 1994

HALBWACHS Maurice Les cadres sociaux de la meacutemoire Paris Feacutelix Alcan

1925 Collection Les Travaux de lrsquoAnneacutee sociologique

______________ La Memoacuteire Collective Paris Albin 1997 [1950]

HALL John Cicero to Lucceius (Fam512) In its Social Context Valde Bella In

Classical Philology 93 1998

______________ Regimes de historicidade presentismo e experiecircncias do tempo

Autecircntica Belo Horizonte

______________ Evidecircncia da Histoacuteria o que os historiadores veem Belo

Horizonte Autecircntica 2011

300

______________ Les Anciens les Modernes les Sauvages ou le Temps des

Sauvages In Chateaubriand le Tremblement du Temps Berchet Presses

Universitaires du Mirail Toulouse 1994

______________ Du parallegravele agrave la comparaison In Entretiens drsquoarcheacuteologie et

drsquohistoire Plutarque Grecs et Romans em questions 1998

______________ Anciens modernes sauvages Paris Galaade Eacuteditions 2005

______________ Plutarque entre les anciens et les modernes In PLUTARQUE

Vies Parallegraveles Paris Gallimard 2001

______________ Croire en lacuteHistoire Flammarion Paris 2013 Progregraves et

Reacutevolution

HARRIS John Leibniz and Locke on Innate Ideas In Ratio n 16 1974 pp 226-242

e WALL G Lockes Attack on Innate Knowledge In Philosophy 49

1974

HEGEL GWF Leccedilons sur la philosophie de lrsquohistoire Traduccedilatildeo francesa Paris

Vrin 1963

HERCULANO Alexandre Lendas e Narrativas II 1851

____________ Alexandre O Bobo Satildeo Paulo Saraiva 1959 Documento

digitalizado por Antonio de Padua Danesi Disponiacutevel em

httpwwwdominiopublicogovbr Acesso em 14 de Dezembro de 2013

p 2

HERDER Johann Gottfried Von Philosophical Writings Edited by Michael N

Forster Cambridge University Press Cambridge 2002

HERVEacute Dumez Sur les eacutepaules des geacuteants Quasi nanos gigantium humeris

insidentes) Le Libellio dAegis volume 5 2009 ndeg 2 eacuteteacute pp 1-3

Diversos autores da primeira modernidade a utilizaram glosaram

imitaram e parafrasearam Sobre essa questatildeo ver tambeacutem CIBOIS

Philippe ldquoSur les eacutepaules des geacuteantsrdquo La question du latin 25 novembre

2012 Disponiacutevel em httpenseignement-latinhypothesesorg6359

acesso em 18102013

HEAT-MOON William Least Columbus in the Americas John Wiley amp Sons New

Jersey 2010

HRUBY Hugo O templo das sagradas escrituras o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico

Brasileiro e a escrita da histoacuteria do Brasil (1889-1912) In histoacuteria da

historiografia nuacutemero 02 marccedilo 2009

301

HORATIUS Flaccus Q Carmen Saeculare In Horace Odes and Epodes Paul

Shorey Boston Benj H Sanborn amp Co 1898

HOUSTON Robert Literacy in Early Modern Europe Culture and Education 1500-

1800 London New York Longman 1988

HUGO Victor Les feuilles drsquoautomne J Hetzel amp cia Paris 1831

JAEGER Werner Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Martins Fontes Satildeo Paulo

1995

JUVENAL Satires de Juveacutenal et Perse LACROIX Jules (trad) Paris Firmin Didot

1846

_________ Satire VI WATSON Lindsay (org) Cambridge Greek and Latin

Classics Cambridge University Press 2014

JOHNSON J H Versailles mette les Halles masks carnival and the French

Revolution In Representations 73 2001

JOAtildeO Maria Isabel Percursos da memoacuteria centenaacuterios portugueses no seacuteculo XIX

In Revista de Letras e Culturas Lusoacutefonas Camotildees Nuacutemero 8 Janeiro-

Marccedilo de 2000

JEFFERSON Thomas The Writings of Thomas Jefferson 1892 ed Paul L Ford

vol 1

KENNEDY E S Ramification of the World-year concept in Islamic Astrology

Congress of the History of Science Paris 1962

KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica

2013

______________ O Futuro Passado dos Tempos Modernos In Futuro Passado

Contribuiccedilatildeo agrave semacircntica dos tempos histoacutericos Rio de Janeiro

Contraponto 2006

______________ The practice of conceptual history timing history spacing

concepts Stanford University Press 2002

KNAUSS Paulo A festa da imagem a afirmaccedilatildeo da escultura puacuteblica no Brasil do

seacuteculo XIX 19amp20 Rio de Janeiro v V n 4 outdez 2010 Disponiacutevel

em lthttpwwwdezenovevintenetobraspknausshtmgt

KRAAY Hendrik Alferes Gamboa e a Sociedade Comemorativa da Independecircncia

do Impeacuterio 1869-1889 Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo v 31 n

61 2011

302

LACTANTIUS De la mort des perseacutecuteurs de lrsquoEglise In Choix des monuments

primitfs de lrsquoEacuteglise chreacutetienne Paris Socieacuteteacute du Pantheacuteon Litteacuteraire 1843

____________ Institutions Divines In Choix des monuments primitfs de lrsquoEacuteglise

chreacutetienne Paris Socieacuteteacute du Pantheacuteon Litteacuteraire 1843

LAFFITTE Pierre Les grands types drsquohumaniteacute Appreacuteciation systeacutematique des

principaux agents de lrsquoeacutevolution humaine Paris E Leroux 1875

LANG Helen S The Order of Nature in Aristotlersquos Physics Place and the elements

Cambridge University Press 1998

LEIBNIZ GW New Essays on Human Understanding P Remnant e J Bennett

(trans) Cambridge Cambridge University Press 1981 (1704)

LEGROS Allan (org) Beuther annoteacute par Montaigne Bibliothegraveques Virtuelles

Humanistes Eacutedition selon trois modes successifs 20022014 Disponiacutevel

em httpwwwbvhuniv-toursfrMONLOEBeutherasp Acesso em

09072014

LACOUTURE Jean Montaigne a Cavalo Record Rio de Janeiro 1998

LE MERCIER Pierre Paul de La Riviegravere Lrsquoordre naturel et essentiel des socieacuteteacutes

politiques T 1 Desaint ndash J Nourse Londres 1767

LE ROY Louis De la Vicissitude ou variete des choses en l`univers et concurrence

des armes et des lettres par les premieres et plus illustres nations du

monde depuis le temps ougrave agrave commenceacute la civiliteacute amp memoire humaine

jusques agrave present Paris Pierre l`Huilier 1575

LEITE Serafim As Primeiras Escolas do Brasil In Paacuteginas de Histoacuteria do Brasil col

ldquoBrasilianardquo vol 95 Companhia Editora Nacional 1937

____________ Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil Tomo I Rio de Janeiro

Livraria Civilizaccedilatildeo Brasileira 1938

LEMAY Richard Abu Marsquoshar and Latin Aristotelianism in the Twelfth Century

The Recovery of Aristotlersquos Natural Philosophy through Arabic

Astrology Beirut American University of Beirut 1982

______________The Teaching of Astronomy in Medieval Universities principally at

Paris in the Fourteenth Century Manuscripta 1976

LEMOS Miguel (Org) O positivismo e a escravidatildeo moderna Rio de Janeiro Igreja

Positivista do Brasil 1884

LEWIS James R The Astrology Book The Encyclopedia of Heavenly Influences

Visible Ink Press 2013

303

LOURENCcedilO Eduardo Revisitaccedilatildeo da mitologia anteriana Prefaacutecio agraves Causas da

decadecircncia dos povos peninsulares nos uacuteltimos trecircs seacuteculos In

QUENTAL Antero Lisboa Tinta-da-china 2008

LOURENCcedilO Eduardo Mitologia da Saudade Cia das Letras Satildeo Paulo 1999

LORCH RP The Astrological History of Māshāallāh In The British Journal for the

History of Science Cambridge Mass Cambridge University Press 6 (4)

novembro de 2013

LOCKE John An Essay Concerning Human Understanding Peter Nidditch (org)

Oxford Clarendon Press 1975 (1690)

LOumlWITH Karl Meaning in History The University of Chicago Press Chicago

1949

LIVIUS Titus Histoire romaine de Tite Live Paris Panckoucke 1830-1833

MABLY Gabriel Bonnot abade de De l`eacutetude de l`histoire Paris Fayard 1988

_____________________________ Doutes proposeacutes aux Philosophes Eacuteconomistes

sur lrsquoOrdre Naturel et Essentiel des Socieacuteteacutes Politiques In Ouvres

Complegravetes de Lrsquoabbeacute de Mably Tome 11 Lyon Delamolliere 1792

_____________________________ Observations sur lrsquoHistoire de France In

Ouvres Complegravetes de LrsquoAbbeacute de Mably T 1

MACEDO Joaquim Manuel de Efemeacuteride Histoacuterica do Brasil O Globo ndash Oacutergatildeo

dedicado aos interesses do comeacutercio lavoura e induacutestria In STRZODA

Michelle O Rio de Janeiro de Joaquim Manuel de Macedo jornalismo e

literatura no seacuteculo XIX Antologia de Crocircnicas Casa da PalavraRio de

Janeiro 2010

MANNHEIM Karl The sociological problem of generations in Essays on the

sociology of knowledge New York Oxford Universi8ty Press 1952

[1928]

MANILIUS Astronomica GOOLD (ed) Cambridge Harvard University Press

1977

MANDUCO Alessandro Histoacuteria e Quinto Impeacuterio em Antocircnio Vieira In Topoi v

6 n 11 Jul-dez 2005

MALEBRANCHE Traiteacute de Morale IIIX In Ouvres Complegravetes Paris De Sapia

1837

304

MARSHALL John Vie de George Washington geacuteneacuteral en chef des armeacutees

ameacutericaines durant la guerre de lrsquoindependance et preacutesident des Eacutetats-

Unis drsquoAmeacuterique Paris Dentu 1807 Vol 5

________________ Camotildees Os Lusiacuteadas e a Renascenccedila em Portugal 4ordf ed

Lisboa Guimaratildees Ed 1986 (2ordf ed1891)

________________ Portugal Contemporacircneo 3ordf Ediccedilatildeo Lisboa Antocircnio Maria

Pereira 1895

________________ Histoacuteria de Portugal 7 ed T 1 Antonio Maria Pereira Lisboa

1908

________________ Histoacuteria da civilizaccedilatildeo ibeacuterica Lisboa Guimaratildees amp Cordf

Editores 1973 [1879]

MARTINS Roberto de Andrade A Influecircncia de Aristoacuteteles na obra astroloacutegica de

Ptolomeu (O Tetrabiblos) TransFormAccedilatildeo Satildeo Paulo 18 1995

MATTOS Joseacute Verissimo de A Instrucccedilatildeo e a Imprensa In ASSOCIACcedilAtildeO DO

QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro

do Centenaacuterio (1500-1900) Imprensa Nacional Rio de Janeiro 1900 Vol

1

MAYEUR Jean-Marie ldquoLa Reacutevolution Franccedilaise est un blocrdquo Commentaire 45

primavera de 1989

MCDANNELL Collen LANG Bernhard Historia del Cielo De los autores biacuteblicos

hasta nustros dias Taurus Madrid 2001

MEEKS Wayne The Writings of St Paul Norton amp Company Inc New York and

London Second Edition 2007

METHUEN Charlotte The Role of the Heavens in the Thought of Philip

Melanchthon Journal of The History of Ideas 57 1996 pp 385-403

MICHELET Jules Histoacuteria da Revoluccedilatildeo Francesa da queda da Bastilha agrave Festa da

Federaccedilatildeo Trad Maria Luacutecia Machado Cia das Letras Satildeo Paulo 1989

____________ Histoire de la Reacutevolution Franccedilaise T 7 Paris Abel Pilon 1869

____________ Introduction a lrsquoHistoire Universelle Suivi du discours drsquoouverture

3a ed Paris L Hachette 1843

MIRABEAU Consideacuterations sur lrsquoOrdre de Cincinnatus ou Imitation drsquoun pamphlet

Anglo-Ameacutericain J Johnson Londres 1784

MOMIGLIANO Arnaldo As raiacutezes claacutessicas da historiografia moderna Bauru

EDUSC 2004

305

__________________ Time in Ancient Historiography History And Theory

Separate number 6 1966

MONTAIGNE Os Ensaios Pinguin Books Satildeo Paulo 2010

MORAES Abrahatildeo A Astronomia no Brasil Usp 1984

MOSLEY Adam Past Portents Predict Cometary historiae and catalogues in the

sixteenth and seventeenth centuries In TESSICINI D BONER PJ

(org) Celestial Novelties on the Eve of the Scientific Revolution 1540-

1630 Florencia Leo Olschki Museo Galileo 2013

MOSLEY Adam Regiomontanus and Astrology Cambridge University History and

Philosophy of Science Department 1999

MOTTA Marly Silva da A naccedilatildeo faz cem anos o centenaacuterio da independecircncia e a

questatildeo nacional no iniacutecio dos anos 20 Rio de Janeiro CPDOCFGV

1992

MUGLER Charles Deux thegravemes de la cosmlogia grecque Devenir cyclique et

pluraliteacute des monde Paris 1953

MURARI PIRES A Clio Tucideana entre Maquiavel e Hobbes (as figuraccedilotildees

heroicas do historiador) In Anos 90 Porto Alegre v 21 n 39 jul 2014

NABUCO Joaquim Camotildees Discurso pronunciado aacute 10 de junho de 1880 Rio de

Janeiro G Leuzinger amp Filhos 1880

________________ Camotildees e os Lusiacuteadas Rio de Janeiro Tipographia Imperial do

Instituto Artiacutestico 1872

________________ O Abolicionismo Ediccedilotildees do Senado Federal Vol 7 Brasiacutelia

2003

________________ Discurso de posse como soacutecio efetivo do IHGB na sessatildeo

ordinaacuteria de 25 de outubro de 1896 RIHGB 1896 Tomo LIX II

Namer Geacuterard La commeacutemoraton en France de 1945 agrave nos jours Logiques

Sociales lrsquoHarmattan Paris 1987

NICCOLI Ottavia Prophecy and People in Renaissance Italy Cochrane Princenton

University Press 1990

NOacuteBREGA Padre Manuel da Dialogo sobre a conversatildeo do Gentio MetaLibri Satildeo

Paulo 2006 [1556-1557]

NOVISNKY Anita Padre Antocircnio Vieira a Inquisiccedilatildeo e os Judeus Novos Estudos

Cebrap n o 29 Marccedilo de 1991

306

NETO Edgar Leite Ferreira O improviso da civilizaccedilatildeo a Naccedilatildeo Republicana e a

construccedilatildeo da ordem social no final do seacuteculo XIX Niteroacutei UFF 1989

(diss mestrado ndash mimeo)

NEWMANN William R GRAFTON Anthony (org) Secrets of Nature Astrology

and Alchemy in Early Modern Europe Cambridge MA 2001

NETTO Coelho Fagulhas Gazeta de Notiacutecias 25 de maio de 1898

NOUGUEacute Carlos COSTA Ricardo da O Sonho de Cipiatildeo de Marco Tuacutelio Ciacutecero

Notandum Jan-abr 2010 IJI-Universidade do Porto

NORA Pierre Lrsquoegravere de la commeacutemoraison In Les lieux de meacutemoire III Paris

Gallimard 1984 v 3

OLIVEIRA Luacutecia Lippi As festas que a Repuacuteblica manda guardar Estudos

Histoacutericos 2 1989

OLIVEIRA Maria da Gloacuteria de Escrever vidas narrar a histoacuteria a biografia como

problema historiograacutefico no Brasil oitocentista FGV Editora Rio de

Janeiro 2011

_________________________ Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade

biografia memoacuteria e experiecircncia da histoacuteria no Brasil oitocentista Varia

Histoacuteria Belo Horizonte vol 26 no 43

OLIVEIRA Maacutercio O conceito de representaccedilotildees coletivas uma trajetoacuteria da

Divisatildeo do Trabalho agraves Formas Elementares Debates do NER Porto

Alegre Ano 13 n 22 JulDez 2012

OLSTER Lester C Benjamin Franklins Vision of American Community A Study in

Rhetorical Iconology (Studies in RhetoricCommunication) University of

South Caroline 2004

OZOUF Mona La fecircte reacutevolutionnaire 1789-1799 Paris Gallimard 1976

____________ Le Pantheacuteon lrsquoEacutecole Normale des morts In Nora Pierre Lieux de

meacutemoire Vol 1 La Reacutepublique Paris Gallimard 1984

ORY Pascal Une Nation pour meacutemoire 1889 1939 1989 Trois jubileacutes

reacutevolutionnaires Presses de la Fondation Nationale des Sciences

Politiques Paris 1992

OVIacuteDIOOuvres complegravetes NISARD (dir) J-J Dubochet Eacutediteurs Paris 1838

PAVES Leonardo Acquaviva Historia Magistra Vitae Histoacuteria e Oratoacuteria em

Ciacutecero Satildeo Paulo USP 2011 Dissertaccedilatildeo de Mestrado

307

PEREIRA DE JESUS Ronaldo Cultura Associativa no seacuteculo XIX atualizaccedilatildeo do

repertoacuterio criacutetico dos registros de sociedades na cidade do Rio de

Janeiro (1841-1889) In Anais do XXVII Simpoacutesio Nacional de Histoacuteria

Conhecimento histoacuterico e diaacutelogo social Natal RN 22 a 26 de Julho de

2013

PEREIRA Angelo Balbino Soares A Teoria da Metempsicose Pitagoacuterica

Dissertaccedilatildeo de mestrado UNB 2010

PERRAULT Charles Paralelle des Anciens et des Modernes En ce qui regard les

arts et les sciences Nouvelle Edition augmenteacutee de quelques Dialogues

Tome I Paris Coignard 1663

PLATAtildeO Meno Warminster Aris amp Phillips 1991

________Phaedrus Cambridge Cambridge University Press 2011

PLUTARCO Les vies des hommes illustres Tome Troisiegraveme vie drsquoAlexandre

Traduc par Alexis Pierron (Bilingue) Paris Charpentier Libraire-Eacutediteur

1853

PLIacuteNIO o Velho Histoire Naturalle Tome Second Livre XXX Eacutemile Littre

(traduction) Paris JJ Dubochet Eacuteditors 1850

PIRES Antoacutenio Machado A Ideia de Decadecircncia na Geraccedilatildeo de 70 2 ed Lisboa

Vega 1992

POMIAN Krzystof Lrsquoordre du temps Paris Gallimard 1984

_______________ Les sciences les croyances occultes et les niveaux de culture en

Europe (XVIe-XVIIe siegravecle) In History European Ideas Vol 3 no 1

POUELLE E Les Tables alfonsines avec les Canons de Jean de Saxe Paris 1984

POCOCK J G A Historiography and Enlightenment a view of their History In

Modern Intellectual History 51 Cambridge University Press 2008

PUJOL Steacutephane O jogo do erro e da verdade nos diaacutelogos filosoacuteficos de Voltaire

In Doispontos Curitiba-Satildeo Carlos Vol 9 n3 dezembro de 2012

POLLAK Michael Memoacuteria e identidade social In Estudos Histoacutericos Rio de

Janeiro vol 5 n 10 1992

POLLAK Michael Memoacuteria esquecimento silecircncio In Estudos Histoacutericos Rio de

Janeiro vol 2 n 3 1989

PORTO ALEGRE Manuel de Arauacutejo Iconografia Brasileira RIHGB t 19 p 349-

350 1856

308

PTOLOMEU Ptolomy Tetrabiblos ROBBINS FE Loeb Classical Library No

435 1940

QUINTILIANO Inst Oratoire Paris CLF Panckoucke 1829-1840 V 3

QUENTAL Antero Causas da decadecircncia dos povos peninsulares nos uacuteltimos trecircs

seacuteculos Prefaacutecio de Eduardo Lourenccedilo Lisboa Tinta-da-china 2008

RABELAIS Franccedilois Prognoacutesticos Pantagrueacutelicos In ROSSI Paolo (org) Visotildees

do fim do mundo Renata Cordeiro (trad) Satildeo Paulo Landy Editora 2006

REEVES Eileen Evening News Optics Astronomy and Journalism in Early

Modern Europe University of Pennsylvania Press Philadelphia Kindle

version sp 2014

REVIGLIO Madame Marie-Claire Laval In Revue franccedilaise de science politique

37e anneacutee ndeg2 1987

RODRIGUES Vitor Luis Gaspar A decadecircncia da monarquia constitucional

portuguesa factores de afirmaccedilatildeo do ideaacuterio republicano Ponta Delgada

Universidade dos Accedilores 1986

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio Introduccedilatildeo In Cataacutelogo da Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do

Brasil Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1981 v1

RODRIGUES Francisco Histoacuteria da Companhia de Jesus na Assitecircncia de Portugal

Porto Apostolado da Imprensa 1931-1950 Tomo III vol I

ROSENBERG Daniel GRAFTON Anthony Cartographies of time A history of the

timeline Princenton Architectural Press New York 2010

RIBEIRO Maria Eurydice de Barros Memoacuteria em bronze ndash estaacutetua equestre de D

Pedro I In KNAUSS Paulo (Coord) Cidade vaidosa imagens urbanas

do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Sette Letras 1999

RIO BRANCO Baratildeo do Efemeacuterides Brasileiras Rodolfo Garcia (org) Senado

Federal Brasiacutelia 1999

RENAN Ernest Essais de morale et de critique Paris Calman Leacutevy 1859

____________ Correspondance 1846-1871 Paris 1926 Calmann-Leacutevy Eacutediteurs

____________ Reacuteponse au discours de reacuteception de Jules Claretie Discours

prononceacute dans la seacuteance publique le jeudi 21 feacutevrier 1889 Paris Palais de

lrsquoinstitut

RICOEUR Paul Entre meacutemoire et histoire In Projet no 248 1996-1997

_____________ Tempo e Narrativa Satildeo Paulo Martins Fontes 2010 Tomo I II e

III

309

RUSSEL Nicolas Collective Memory before and after Halbwachs In The French

Review Vol 79 No 4 March 2006

______________ Construction et repreacutesentation de la meacutemoire collective dans les

entreacutees triomphales au XVIe siegravecle In Renaissance et Reacuteforme 322

Printemps 2009

ROLFE John c Ammianus Marcellinus With An English Translation Cambridge

Cambridge Mass Harvard University Press London William

Heinemann Ltd

SANTOS Gisele Cunha dos amp MONTEIRO Fernanda Fonseca ldquoCelebrando a

fundaccedilatildeo do Brasil a inauguraccedilatildeo da Estaacutetua Equestre de D Pedro Irdquo

Revista Eletrocircnica de Histoacuteria do Brasil Juiz de Fora UFJF v 4 nordm 1

Juiz de Fora UFJF janjun 2000

SAWYER Joseph Dillaway George Washington 1732-1799 Bi-centennial ed

Boston Thomas W Best 1927 v 2

SENECA Ad Lucilium Epistulae Morales E Capps (org) The Loeb Classical

Library Richard M Gummere (transl) Vol III London William

Heinemann 1925

SENECA Naturales Quaestiones De Aquis Terrestribus Liber III-291 CLARKE

John (trans) Physical Science in the Time of Nero Being a translation of

the Quaestiones Naturales of Seneca Macmillan and co Limited

London 1910

SOMMERVILLE John C The secularization of Early Modern England from

religious culture to religious faith Oxford 1992

SOUTHEY Robert Histoacuteria do Brasil Primeiro Volume Ediccedilotildees do Senado

Federal Vol 133-A Brasiacutelia 2010

SOUZA Iara Lins de Carvalho Paacutetria coroada O Brasil como corpo poliacutetico

autocircnomo 1790-1831 Satildeo Paulo Unesp 1999

SOUSA E SILVA Joaquim Norberto de Discurso ao Instituto Histoacuterico e Geograacutefico

Brasileiro 23 de Novembro de 1860 In Histoacuteria da Conjuraccedilatildeo Mineira

Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Domiacutenio publico Original de 1873

SMITH Goldwin Does the Biblie Sanction American Slavery Oxford amp London

John Henry and James Parker 1863

SCHELLE Gustav Du Pont de Nemours et lrsquoEcole physiocratique Paris

Guillaumin 1888

310

SMOLLER Ackerman L History Prophecy and the Stars Princenton NJ

Princenton University Press 1994

SPILLMAN Lyn Nation and commemoration Creating national identities in the

United States and Australia Cambridge University Press New York

1997

SPENCER Herbert Progess Its Law and Causes In The Westminster Review Vol

67 (April 1857)

______________ Principles of Sociology Williams and Norgate London 1877

______________ The Man Versus the State Caxton Printers Idaho 1960 [1884]

SEIXAS Jacy Alves de Halbwachs e a memoacuteria-reconstruccedilatildeo do passado In

Histoacuteria Satildeo Paulo 20 2001

SILVA MAIA Emiacutelio Joaquim Elogio histoacuterico do conselheiro Joseacute Bonifaacutecio de

Andrada e Silva Revista do IHGB VIII 1846

SIQUEIRA Carla A Imprensa comemora a Repuacuteblica memoacuterias em luta no 15 de

novembro de 1890 Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro vol 7 n 14 1994

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

TAINE H Histoire de la litteacuterature anglaise T 1 Paris Librarie de L Hachette

1866

TEIXEIRA Felipe Charbel Uma Construccedilatildeo de fatos e palavras Ciacutecero e a

concepccedilatildeo retoacuterica da histoacuteria In Varia Historia Belo Horizonte vol 24

n 40 juldez 2008

TEIXEIRA Antonio Epitome das noticias Astrologicas para a Medicina Lisboa

Officina de Ioam da Costa 1670

TIBURSKI Eliete Lucia Escrita da histoacuteria e tempo presente no Brasil oitocentista

Dissertaccedilatildeo de Mestrado UFRGS 2011

THOMAS Keith Religion and the Decline of Magic Studies in Popular Beliefs in

Sixteenth and Seventeenth-Century England Oxford University Press

Oxford 1971

THORNDIKE Lynn The true place of astrology in the History of Science Isis Vol

46 No 3 Setembro de 1955 pp 273-278 University of Chicago Press

________________ A history of magic and the experimental Science Vol II New

York Columbia University Press 1923

THURSTON Herbert SJ The Holy Year of Jubilee An account of the history and

ceremonial of the Roman jubilee London Sands amp Co 1900

311

THIESSE Anne-Marie La creacuteation des identiteacutes nationales Europe XVIII-XIX

siegravecles Paris Seuil 1999

__________________ Ficccedilotildees criadoras as identidades nacionais Anos 90 Porto

Alegre n 15 p7-23 20012002

TOCQUEVILLE Alexis de De la deacutemocratie en Ameacuterique I (deuxiegraveme partie) Les

classiques des sciences sociales version numeacuterique par Jean-Marie

Tremblay Disponiacutevel em httpclassiquesuqaccaclassiques Acesso em

Janeiro de 2014

TORNER Carles Shoah une pedagogie de la meacutemoire Les Eacuteditions de lrsquoAtelier

Paris 2001

TREacuteVIEN Claire Le Monde agrave lrsquoenvers the carnivalesque in prints of the

construction of the fecircte de la feacutedeacuteration of 1790 In French History Vol

26 No 1 2012

TURIN Rodrigo Os antigos e a naccedilatildeo algumas reflexotildees sobre os usos da

antiguidade claacutessica no IHGB (1840-1860) In LrsquoAtelier du Centre de

recherches historiques 07 | 2011 URL disponiacutevel em

httpacrhrevuesorg3748 Acesso em 5 de maio de 2014

TWAIN Mark A Connecticut Yankee in King Arthurrsquos Court Digireadscom

Publishing Stilwell 2004

VASCONCELLOS Bernardo Pereira de Carta aos Senhores Eleitores da Proviacutencia

de Minas Gerais Francisco Rodrigues de Paiva Rio de Janeiro 1899

VANDERKAM James The Book of Jubilees Guides to Apocrypha and

Pseudepigrapha Sheffield Sheffield Academic Press 2001

_______________ Textual and Historical Studies in the Book of Jubilees Harvard

Semitic monographs no 14 Scholars Press Missoula 1977

VAMPREacute Joatildeo Festas Tradicionais Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutephico de

Satildeo Paulo Tomo VI 1900-1901

VARNHAGEN Francisco Adolfo de Histoacuteria geral do Brasil antes de sua separaccedilatildeo

e independecircncia de Portugal Satildeo Paulo Melhoramentos Tomo I 1959

[1854]

____________ Francisco Adolfo Histoacuteria Geral do Brazil Rio de Janeiro

Laemmert 1854

VEIGA Joseacute Pedro Xavier da Ephemerides Mineiras (1664-1897) Volume II (Abril

a Junho) Ouro Preto Imprensa Official do Estado de Minas 1897

312

VEYNE Paul Como se escreve a histoacuteria Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

VENAYRE Sylvain Les Origines de la France quand les historiens racontaient la

nation LrsquoUnivers historique Paris Seuil 2013

VERNANT Jean-Pierre Aspectos miacuteticos da memoacuteria In Mito e pensamento entre

os gregos Paz e Terra 2002 Satildeo Paulo

VIEIRA Antonio Voz de Deos ao mundo a Portugal amp aacute Bahia Juizo do cometa

que nella foi visto em 27 de Outubro de 1695 amp continua ateacute hoje 9 do

Novembro do mesmo anno In Sermoens e Varios Discursos () da

Companhia de Jesu Pregravegador de Sua Magestade Tomo XIV Obra

posthuma dedicada a purissima Conceyccedilam da Virgem Maria Nossa

Senhora Lisboa Valentim da Costa Deslandes 1710

______________ Sermatildeo do Esposo da Matildee de Deus S Joseacute In Sermotildees XV

tomos Porto Lello amp Irmatildeo 1959 Vol VI

______________ Histoacuteria do Futuro Livro Ante-Primeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees e

Publicaccedilotildees Brasil 1937

VOLTAIRE Ouvres Complegravetes Philosophie Tome I Paris Antoine-Augustin

Renouard 1819

_________ Bleacute ou bled In In Ouvres Complegravetes T 18 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee

de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes biographiques

Garnier Fregraveres Paris 1877-1885

_________Oeuvres complegravetes T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de

Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes biographiquesGarnier Fregraveres

Paris 1877-1885

_________ Ouvres complegravetes Tome 61 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-

Typographique 1785 Recueil des lettres Lettre CLIII A M Le Comte

DrsquoArgental

_________ Essai sur les moeurs et lesprit des nations In Oeuvres complegravetes de

Voltaire T 16 1785 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-

Typographique

_________ Diatribe a lrsquoauteur des Eacutepheacutemeacuterides BNF Tolbiac - Rez-de-jardin ndash

magasin Cote RZ- 3182

_________ Deacutefense de Louis XIV [13 de outubro de 1769] In Ouvres Complegravetes de

Voltaire T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par

313

Condorcet et dautres eacutetudes biographiques Garnier Fregraveres Paris 1877-

1885

_________ Oeuvres complegravetes de Voltaire Dictionnaire philosophique I Jean-

Antoine-Nicolas de Caritat marquis de Condorcet Furne 1835

_________ De la Chine Chapitre Premier De la Chine de son antiquiteacute de ses

forces de ses lois de ses usages amp de ses sciences InOeuvres complegravetes

de Voltaire T 16 1785 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-

Typographique

_________ Nouvelles Consideacuterations sur l`histoire 1744 In Ouvres historiques

Paris Bibliothegraveque de la Pleacuteiade 1957

_________ Treisiegraveme Lettre sur Mr Locke In Lettres eacutecrites de Londres sur les

Anglois et autres sujets Bowyer Londres 1734

_________ Oeuvres complegravetes de Voltaire Dictionnaire philosophique I Jean-

Antoine-Nicolas de Caritat marquis de Condorcet Furne 1835

_________ Entretiens Chinois In Dialogues et anecdotes philosophiques avec

introduction notes et rapprochements Raymond Naves (org) Garnier

Paris 1939

_________ Discours de lrsquoEmpereur Julian contre les Chretiens In Ouvres

Complegravetes T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par

Condorcet et dautres eacutetudes biographiques Garnier Fregraveres Paris 1877-

1885

VOLTAIRE-BAZIN (pseud) Abbeacute La Philosophie de lrsquohistoire Amsterdam 1765

YATES Frances The Art of memory London Pimlico 1992

_____________ A The Life and Works of Louis Le Roy By Werner L

Gundersheimer Librairie Droz Geneva New York Review of Books

August 24 1967

WANDERLEY Marcelo da Rocha Jubileu Nacional A comemoraccedilatildeo do

Quadricentenaacuterio do Descobrimento do Brasil e a Refundaccedilatildeo da

Identidade Nacional (1900) UFRJ 1998

WARD Harry M The War for Independence and the Transformation of American

Society UCL Press London 1999

WEBSTER Noah Effects of slavery on morals and industry Cornell University

Library 1793

314

WILSON Woodrow George Washington fondateur des Eacutetats-Unis Paris Payot

1927 (1893)

WINOCK Michel Les geacuteneacuterations intellectuelles In Vingtiegraveme Siegravecle Revue

dhistoire Ndeg22 avril-juin 1989

ZAMBELLI Paola (org) Astrologi Hallucinati Stars and the End of the World in

Luthers Time Berlin New York De Gruyter 1986

ZANGARA Adriana Voir lrsquohistoire Theacuteories anciennes du reacutecit historique Paris

EHESS 2007

ZERUBAVEL Eviatar Time Maps Collective Memory and the Social Shape of the

Past The University of Chicago Press 2003 ChicagoLondres

ZERUBAVEL Eviatar Social Mindscapes An Invitation to Cognitive Sociology

Cambridge Mass Harvard University Press 1997

ZERUTUZA Hugo Andreacutes BOTALLA Horacio Centros e Maacutergenes Simboacutelicos

del Imperio Romano Buenos Aires UBA 1998

Page 2: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a

2

RODRIGO BRAGIO BONALDO

Comemoraccedilotildees e efemeacuterides ensaio episoacutedico sobre a

histoacuteria de dois paralelos

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Histoacuteria

Orientador Temiacutestocles Cezar

BANCA EXAMINADORA

Dr Francisco Murari Pires (USP)

Dr Felipe Charbel Teixeira (UFRJ)

Dr Fernando Nicolazzi (UFRGS)

Dr Benito Bisso Schmidt (UFRGS)

Orientador Dr Temiacutestocles Cezar (UFRGS)

PORTO ALEGRE

Dezembro 2014

3

There is no great and no small

To the Soul that maketh all

And where it cometh all things are

And it cometh everywhere

I am the owner of the sphere

Of the seven stars and the solar year

Of Caesarrsquos hand and Platorsquos brain

Of Lord Christrsquos heart and

Shakespearersquos strain

RW Emerson History (Essays)

4

Agradecimentos

Esta tese representa o fim de um longo percurso geograacutefico e intelectual que

iniciou na periferia de antigas preocupaccedilotildees e que parece encerrar-se no centro de

novos interesses Devo admitir que escrever algumas linhas de agradecimentos eacute

tarefa aacuterdua para quem apenas consegue pensar atraveacutes de diaacutelogos imaginaacuterios

extrapolados de sentenccedilas ditadas pelos mais diferentes interlocutores Contato ocular

ou soslaio tiacutemido de minha parte pouco importaraacute

Apoacutes doze anos de formaccedilatildeo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

gostaria de comeccedilar agradecendo agrave instituiccedilatildeo que sempre me acolheu personificada

em seus professores funcionaacuterios e alunos Agravequeles com quem pude conviver com

maior intensidade em geral ligados como eacute de se esperar ao Departamento de

Histoacuteria ficam meus agradecimentos especiais A Temiacutestocles Cezar pela orientaccedilatildeo

amizade confianccedila e respeito intelectual Aos colegas de linha de pesquisa Lucas La

Bella Costa Evandro Santos Renata Dal Sasso Eliete Tiburski Pedro Silveira e

Vitor Batalhone pela constante interlocuccedilatildeo e eventual empreacutestimo de livros e fontes

A Luciana Boeira por tudo isso somado ao companheirismo fraternal do outro lado

do Atlacircntico Ainda ao trio de amigos que desde a graduaccedilatildeo satildeo meu elo mais forte

com a dimensatildeo materialista do pensamento histoacuterico Nauber Gavski da Silva

Guinter Tlaija Leipnitz e Fernando Cauduro Pureza No miacutetico apartamento da Lopo

Gonccedilalves 498 habitado pela alma de Custoacutedio natildeo haacute como se esquecer dos anos de

convivecircncia e conversas com Gabriel Focking A Tiago Ribeiro e Caacutessia Silveira

pequenos grandes personagens de minha vida intelectual

Tambeacutem devo render meus cumprimentos agrave famiacutelia Bonaldo que sempre me

apoiou Edison e Marise Alexandre e Ana igualmente a Vera Braggio

Ao governo brasileiro por ndash atraveacutes da CAPES ndash possibilitar natildeo apenas o

financiamento dessa pesquisa mas igualmente a experiecircncia de estaacutegio doutoral na

Franccedila Na Franccedila a Franccedilois Hartog professor que me acolheu durante um ano na

Escola de Altos Estudos em Ciecircncias Sociais de Paris e que me incentivou a estudar

5

as efemeacuterides Somado ao periacuteodo no exterior agrave co-orientaccedilatildeo e ao tempo na

Biblioteca Nacional francesa devo lembrar dos professores Benito Bisso Schmidt e

Fernando Nicolazzi participantes de minha banca de qualificaccedilatildeo durante a qual

realizaram criacuteticas cujo teor ndash mesmo que natildeo endereccedilado a isso ndash terminou por

modificar os rumos da pesquisa Agradeccedilo tambeacutem aos professores Francisco Murari

Pires e Felipe Charbel Teixeira membros da banca de doutorado e leitores criteriosos

de meu texto Embora natildeo tenha conseguido incorporar todas as suas contribuiccedilotildees

gostaria que soubessem que elas estaratildeo na pauta de minhas futuras reflexotildees

Por fim agradeccedilo a Bruna Vargas natildeo apenas pela correccedilatildeo de partes do

manuscrito mas pela paciecircncia mundana a minha eventual desatenccedilatildeo pelas questotildees

sublunares nos uacuteltimos dois anos Ainda devo algumas palavras a Michael

Uwemedimo pela ediccedilatildeo do resumo em liacutengua inglesa

Rodrigo Bonaldo

Florianoacutepolis Janeiro de 2015

6

Resumo

ldquoComemorar efemeacuteridesrdquo natildeo eacute apenas uma expressatildeo legiacutetima utilizada para

fazer referecircncia agrave celebraccedilatildeo de uma festa nacional Desde o final do seacuteculo XIX ao

menos em liacutengua portuguesa os dois termos tecircm sido associados como sinocircnimos A

presente tese representa um esforccedilo em compreender o desenvolvimento de dois

conceitos ndash comemoraccedilotildees e efemeacuterides ndash na longa duraccedilatildeo Os encontros e desvios

entre as praacuteticas associadas a um e a outro seratildeo pontuados atraveacutes da seleccedilatildeo de

episoacutedios intelectuais seguidos pelo exame de debates que os tocavam na periferia de

suas articulaccedilotildees

Na primeira parte dedicada agraves comemoraccedilotildees montei uma revisatildeo desse bem

conhecido toacutepico de estudos endereccedilada a uma uacutenica hipoacutetese a saber o ldquoofiacuteciordquo

comemorativo pode ser entendido como uma forma de comunicaccedilatildeo e transmissatildeo

geracional de valores Inspirado pelas fontes argumento que os eventuais pontos de

encontro entre o par de objetos propostos nesta tese satildeo anaacutelogos agraves interrelaccedilotildees

entre a ldquoordem do tempordquo e a ldquoordem da naturezardquo entre o tempo dos homens e o

movimento das estrelas

Neste drama conceitual se pudermos assim chamaacute-lo fariacuteamos perceber como

a superaccedilatildeo dos antigos modelos cosmoloacutegicos natildeo se esquivou em guardar para

assumir termo caro a Pomian uma loacutegica cronosoacutefica Se eu for bem sucedido esse

argumento deveraacute se expressar na segunda parte As efemeacuterides como taacutebuas do

movimento dos corpos celestes vieram sofrer uma lenta transiccedilatildeo rumo ao registro

dos feitos humanos Bebendo em fontes antigas e nas praacuteticas de emulaccedilatildeo

personagens bem conhecidos da primeira modernidade associaram o termo primeiro

aos diaacuterios pessoais depois ao jornalismo e nos seacuteculos seguintes agrave histoacuteria literaacuteria

religiosa e poliacutetica Na Franccedila as eacutepheacutemeacuterides emergem da revoluccedilatildeo jaacute como um

subgecircnero historiograacutefico No Brasil da segunda metade do seacuteculo XIX listas de

efemeacuterides encontram lugar comum junto agraves comemoraccedilotildees dentro dos debates do

7

IHGB Eacute no horizonte do projeto de naccedilatildeo que busco observar a uniatildeo dos paralelos

Esse horizonte ndash como um ponto de chegada ndash vai aparecer ao final de cada secccedilatildeo da

tese observado a partir da celebraccedilatildeo do quadricentenaacuterio da descoberta de Cabral

Palavras-Chave Comemoraccedilotildees Efemeacuterides Antigos e Modernos Histoacuteria da

Historiografia Projeto de Naccedilatildeo

8

Abstract

ldquoComemorar efemeacuteridesrdquo is a Portuguese phrase that despite its academic

ring is often used in the mainstream press It translates roughly as the

commemoration of an auspicious occasionrsquo and is used in reference to the public

marking of nationally significant events

By the end of the nineteenth century the two terms of this phrase came to be

synonymous in Portuguese This thesis represents an effort to understand the

development of these two terms ndash efemeacuterides and comemoraccedilotildees ndash over the longue

dureacutee The long-term similarities in the practical and public uses of these terms are

explored by tracing their discursive deployments and examining the debates that

surrounded such public uses

The first section dedicated to commemorations frames the analysis of this

much discussed topic with the following hypothesis the act of commemoration is a

form of moral utterance between generations it is the rehearsal and transmission of

collective values

Drawing on historical sources I argue that the eventual points of contact

between these terms can be seen as analogs to the discursive exchange and conflict

between the classical and peripatetic notions of the ldquoorder of timerdquo and the ldquoorder of

naturerdquo

In this conceptual drama one sees how the sublation of old cosmological

perspectives nevertheless still contains what I shall call ndash following Pomian ndash a

chronosophy This analysis leads to the second part of the thesis Efemeacuterides

originally tables of the movements of the celestial bodies ndash also known as almanacs ndash

underwent a slow transition from the celestial to the earthly from the charting of the

stars to the recording of human deeds Drawing on classical texts well-informed

readers of early modernity would have associated those writings in the first instance

with diaries then with journalism and in the following centuries with political

9

history Emerging from the French Revolution as a historiographical subgenre lists of

Efemeacuterides shared a common function with commemorations as nation-building

practices that described the horizon of a project to create national identity This

horizon as a meeting point of moral utterance and political project is explored at the

end of both sections of the thesis as it is observed in the quadricentenial celebration

of Cabralrsquos Discovery of Brazil It is at this horizon that the parallel developments of

comemoraccedilotildees and efemeacuterides promise to meet

Keywords Commemorations Ephemerides Ancients and Moderns History of

Historiography Nation-Building Process

10

SUMAacuteRIO

Agradecimentos_____________________________________________________4

Resumo____________________________________________________________6

Abstract____________________________________________________________8

Introduccedilatildeo A naccedilatildeo e o cosmos_______________________________________12

Da festa da federaccedilatildeo agrave federaccedilatildeo da memoacuteria _____________________________23

Parte I Comemoraccedilotildees

1 Entre a memoacuteria e a moral as comemoraccedilotildees como reparaccedilatildeo identitaacuteria

11 A grande forccedila___________________________________________________ 29

12 Entre a memoacuteria coletiva e os costumes_______________________________ 35

13 Comemoraccedilatildeo como dever de esquecimento____________________________41

14 Era das comemoraccedilotildees 10__________________________________________45

15 Dos homens ceacutelebres aos grandes homens______________________________46

16 Oficiar a moral dos grandes homens da naccedilatildeo___________________________63

2 Celebrar os mortos e editar a naccedilatildeo Poliacuteticas de memoacuteria e esquecimento

21 O espelho perfeito de Bonifaacutecio a Bonifaacutecio___________________________72

22 A lembranccedila como ato moral________________________________________76

23 Catalisadores do discurso moralista___________________________________88

24 Da crise moral ao grande jubileu_____________________________________94

25 A naccedilatildeo editada ou o Livro do Centenaacuterio_____________________________102

26 Oradores historiadores e magistrados morais___________________________120

Almas em movimento Chamado geracional ao som das estrelas_______________131

11

Parte II Efemeacuterides

3 Ordem da Natureza As efemeacuterides e os nuacutemeros da mudanccedila

31 Efemeacuterides antigas a ordem do tempo submissa________________________ 145

32 Primeiras experiecircncias cristatildes a ordem do tempo comemorada_____________156

33 A escolaacutestica e a via media_________________________________________161

34 Experiecircncias humanistas brechas na ordem natural______________________175

35 Conjunccedilotildees astrais e eventos sublunares_______________________________178

36 Le Roy e o Imperador uma (des)ordem da natureza____________________185

4 Ordem do Tempo O retorno das efemeacuterides agrave histoacuteria

41 Conhecer os ciclos preluacutedio de um eclipse da natureza _________________212

42 As Diatribes das Efemeacuterides________________________________________232

43 As efemeacuterides na escola de moral e de poliacutetica _________________________244

44 Uma moral e uma cosmologia ______________________________________251

Conclusatildeo Da perfeiccedilatildeo da alma e do progresso da naccedilatildeo________________266

Referecircncias bibliograacuteficas ____________________________________________284

12

A naccedilatildeo e o cosmos

O universo requer a eternidade Os teoacutelogos

natildeo ignoram que se a atenccedilatildeo do Senhor se

desviasse um uacutenico segundo de minha matildeo

destra que escreve esta tornaria a cair no

nada () Por isso afirmam que a

conservaccedilatildeo deste mundo eacute uma perpeacutetua

criaccedilatildeo e que os verbos conservar e criar

tatildeo antagocircnicos aqui satildeo sinocircnimos no Ceacuteu

Borges Histoacuteria da Eternidade

O tempo ainda estaacute na base de nosso problema como um dia esteve para

Borges Ciacuteclico linear senoidal progressivo ou decadente natildeo se trataraacute no entanto

de classificaacute-lo entre essas categorias mas de entender a forma como expressotildees

contingentes de sua experiecircncia julgaram fazecirc-lo em um longo caminho que natildeo

deixa de seguir a proacutepria temporalidade Mesmo o par de objetos propostos por esta

tese jaacute levanta a poeira que se esconde debaixo das claacutessicas formidaacuteveis e influentes

teses de Mircea Eliade ou Karl Loumlwith As efemeacuterides por mais que antecipem a

expectativa do retorno de uma configuraccedilatildeo astral natildeo poderiam senatildeo no sonho dos

profetas anular a constante revoluccedilatildeo das estrelas intervalos naturais sob os quais

dias e anos como em uma linha reta inexoravelmente continuam a passar As

comemoraccedilotildees por mais que sejam anunciadas pelos signos do progresso projetam a

lembranccedila atraveacutes dos muacuteltiplos de 7 lidos no livro do Jubileus ndash ou dos ciclos

avultados pelo nuacutemero 5 em sua versatildeo poacutes-leviacutetica do centenaacuterio Pareceria muito

sedutor periodizar ndash como se pudeacutessemos lhes encontrar o ritmo ideal ndash a histoacuteria de

dois conceitos paralelos entre uma era ciacuteclica dos annos orbis pagatildeos e uma era

linear e irreversiacutevel apregoada com clareza desde ao menos a escolaacutestica e

chancelada pela filosofia da histoacuteria iluminista e pela historiografia do seacuteculo XIX

Esse trajeto diria Eliade seria o capiacutetulo de uma filosofia da histoacuteria1

O que proponho no entanto eacute bem mais modesto e de todo particular Se

Krzysztof Pomian jaacute assinalava o caminho Franccedilois Hartog retomando o problema

da Ordem a partir da histoacuteria da historiografia cunhou o termo que norteia minha

reflexatildeo temporalizaccedilatildeo do tempo Tanto as efemeacuterides ndash humanas ou celestes ndash

1 ELIADE Mircea O mito do eterno retorno Satildeo Paulo Mercuryo 1992 p 5

13

quanto as comemoraccedilotildees ndash sagradas ou profanas ndash propotildee um tipo de cronologia ldquoA

esse primeiro e poderoso instrumento de temporalizaccedilatildeo do tempordquo escreveu Hartog

ldquosoma-se aquele que nomearei de domesticaccedilatildeo da simultaneidade do natildeo-

simultacircneordquo dentro do qual entre as muitas imagens que poderiacuteamos lhe associar

encontramos a necessidade de nos manter atentos agrave coexistecircncia da diversidade das

formas de configuraccedilatildeo temporais2 Que relaccedilatildeo efemeacuterides e comemoraccedilotildees na

marcha da longa duraccedilatildeo manteacutem com a ordem do tempo e aquilo que inspirado

pelas fontes chamarei de ordem da natureza De que maneira e sob qual contexto se

daacute no caso brasileiro o encontro semacircntico ndash pouco evidente em outras liacutenguas ndash

entre os dois conceitos que busco esclarecer

A celebraccedilatildeo do quadricentenaacuterio da naccedilatildeo brasileira a reafirmaccedilatildeo e

reificaccedilatildeo de uma identidade geral aqui faz as vezes natildeo de um estudo de caso ou de

um laboratoacuterio particular mas de um ponto de chegada Inicialmente imaginei esta

tese como um estudo do desenvolvimento das comemoraccedilotildees nacionais de 1900

talvez de 1908 e de 1922 ao lado daquela do ano 2000 Mais do que isso o objetivo

de meu projeto era dar conta do que imaginava ndash hoje acredito superestimando as

fontes ndash ser o gecircnero comemorativo por excelecircncia do tempo presente as narrativas

jornaliacutesticas da histoacuteria esses best-sellers contemporacircneos que me ocuparam por dois

anos durante o mestrado A experiecircncia de pesquisa na longa duraccedilatildeo outrossim me

fez logo tomar conhecimento da antiguidade da contingecircncia e da diversidade dos

topoi que poderiam ser lidos como comemorativos

O encontro mais iacutentimo que tive com o conceito de efemeacuteride em minha

experiecircncia de intercacircmbio doutoral na Franccedila terminou salvando-me de abraccedilar uma

tarefa inexequiacutevel Eacute por volta do ano do grande jubileu nacional quando os saacutebios

os publicistas e os oradores da naccedilatildeo sentem-se banhados pelas ondas comemorativas

do fin de siegravecle que debates realizados no ciacuterculo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico

Brasileiro comeccedilam a sinalizar o improvaacutevel choque dos paralelos Pouco depois os

conceitos tornariam-se algo como sinocircnimos imperfeitos e diversos oacutergatildeos oficiais ou

associaccedilotildees privadas poderiam enunciar a frase ldquocomemorar efemeacuteridesrdquo Essa uniatildeo

semacircntica parcial e original natildeo seria possiacutevel de todo modo sem o diaacutelogo e o

intercacircmbio de textos e ideias entre o Brasil e outras naccedilotildees entre as comemoraccedilotildees

2 HARTOG Franccedilois La temporalisation du temps une longue marche Texto apresentado em

conferecircncia ministrada por Franccedilois Hartog no dia 10 de outubro de 2011 como participaccedilatildeo no

Programa Caacutetedras IEATFUNDEP p 1

14

revolucionaacuterias europeacuteias e americanas o centenaacuterio lusitano de Camotildees e os

modelos literaacuterios franceses lidos nas populares eacutepheacutemeacuterides Entretanto seria preciso

esperar ateacute o seacuteculo seguinte no arrebentar de outras ondas comemorativas para

observarmos jaacute tanto mareados a dicionarizaccedilatildeo dos dois termos finalmente como

sinocircnimos3

ldquoEntatildeo o seu trabalho pretende usar um meacutetodo comparativordquo perguntou-me

o entatildeo presidente da EHESS Apenas o fato de desfilar pelos corredores do oitavo

andar do novo preacutedio da instituiccedilatildeo perfilado por nomes para mim quase miacuteticos a

cada porta ndash nomes que eu conhecia e admirava desde a graduaccedilatildeo ndash jaacute era motivo

para certo nervosismo Mas ouvir o professor Hartog explicar meu proacuteprio trabalho

apoacutes uma breve exposiccedilatildeo feita em um confuso e balbuciante francecircs teve ares de

epifania Felizmente ele natildeo era o tipo de erudito que se deixava impressionar com a

ingenuidade e a ignoracircncia dos alunos mensagem que escutei em sua tiacutemida e sincera

risada ao me ouvir insinuar uma possiacutevel relaccedilatildeo entre o termo efemeacuteride e o filoacutesofo

Evecircmero Com um bom inventaacuterio de fontes e indicaccedilotildees bibliograacuteficas apoacutes

acompanhar ao longo do ano letivo de 2011-2012 um seminaacuterio intitulado

precisamente Temporalisation du Temps tentei dar conta de integraacute-los em uma

contribuiccedilatildeo original Descobri que minhas suspeitas natildeo eram de todo desbaratadas

e que a relaccedilatildeo entre o tempo coacutesmico das efemeacuterides e os ancestrais divinizados pela

memoacuteria das geraccedilotildees posteriores ndash se natildeo falha minha primitiva leitura de Evecircmero ndash

tornava-se clara (ainda que em meados da modernidade jaacute por distinccedilotildees

metafoacutericas) nos ofiacutecios comemorativos mesmo que eu tenha de bom grado

abandonado a busca de um elo semacircntico que nem o mais alucinado dos filoacutelogos

oitocentistas teria coragem de traccedilar

Escrever sobre comemoraccedilotildees nacionais natildeo deveria representar um grande

desafio A literatura a respeito como se deveria imaginar cresceu junto agraves vagas

celebrativas do final do seacuteculo XX Graccedilas a esses ciclos pude ter acesso a um grande

nuacutemero de trabalhos publicados na Franccedila e na Inglaterra nos Estados Unidos e no

Brasil Quem seguir o raciociacutenio de Pierre Nora referecircncia unacircnime no campo

tenderaacute a ver as comemoraccedilotildees articuladas em torno de duas palavras de ordem a

3 O primeiro dicionaacuterio a fazecirc-lo incluindo a passagem ldquo3 comemoraccedilatildeo de um fato importante de

uma data etcrdquo foi tardiamente HOUAISS Antocircnio VILLAR Mauro de Salles FRANCO Francisco

Manoel de Mello Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Riod e Janeiro Objetivo 2001 p 1102

entrada Efemeacuteride

15

geraccedilatildeo e os centenaacuterios4 O desafio aqui seria o de pensar esses fenocircmenos na longa

duraccedilatildeo ou seja suas praacuteticas antes das grandes ondas do final do milecircnio ndash as

comemoraccedilotildees antes de Nora ndash deslocadas portanto daquilo que Hartog diagnosticou

como um presente presentista e agora reunidas ao lado do patrimocircnio e da memoacuteria

no refuacutegio comum da identidade5

Dividido em duas partes o estudo que apresento eacute ainda intercalado entre dois

outros textos No proacutelogo uma breve leitura da festa da federaccedilatildeo ndash feita sobre os

despojos da majestade de Michelet ndash tenta lanccedilar um luminar propedecircutico a respeito

natildeo das comemoraccedilotildees antes de Nora mas propriamente da memoacuteria coletiva antes

de Halbwachs Ao longo da primeira comemoraccedilatildeo moderna natildeo se trata de buscar

uma origem algo grandiosa do fenocircmeno jaacute descrito nos Quadros Sociais mas tatildeo

somente um iniacutecio possiacutevel lido pelo espiritualismo republicano francecircs atraveacutes de

estampas coloridas por expressotildees como ldquounanimidade dos espiacuteritosrdquo ou ldquosubstacircnciardquo

nacional expressotildees que apontam ndash em uma perspectiva quiccedilaacute ligada agrave ideia de

Benjamin Constant sobre a liberdade representativa dos modernos ndash ao paralelo com

o problema da alma entre os antigos

De Ciacutecero a Durkheim dele a seu seguidor Halbwachs e de laacute ateacute a polecircmica

com Marc Bloch inicio o primeiro capiacutetulo indicando os aspectos de uma religiatildeo

ciacutevica sob os quais se revestem os chamados ldquocultos positivosrdquo dentre os quais

Alexandre Herculano jaacute na Portugal do seacuteculo XIX parecia designar um papel

especial ao historiador Comeccedilo a falar igualmente dos centenaacuterios do fin de siegravecle

dando atenccedilatildeo especial ndash interessado no sacerdoacutecio moral ndash ao cerimonial de seus

supostos representantes os grandes homens Conceito que acompanho em Victor

4 NORA Pierre Lrsquoegravere de la commeacutemoraison In Les lieux de meacutemoire III Paris Gallimard 1984 v 3

p 982-983 5 ldquoAssim esse presente que reina aparentemente absoluto ldquodilatadordquo suficiente evidente mostra-se

inquieto Ele queria ser seu proacuteprio ponto de vista sobre si mesmo e descobre a impossibilidade de se

fiar nisso mesmo na transparecircncia das grandes plataformas de Beaubourg Ele se mostra incapaz de

preencher a lacuna no limite da ruptura que ele proacuteprio natildeo cessou de aprofundar entre o campo de

experiecircncia e o horizonte de expectativa Escondido na sua bolha o presente descobre que o solo

desmorona sob seus peacutes Reneacute Magritte poderia ter pintado isso Trecircs palavras chave resumiram e

fixaram esses deslizamentos de terreno memoacuteria mas trata-se na verdade de uma memoacuteria

voluntaacuteria provocada (a da histoacuteria oral) recontruiacuteda (da histoacuteria portanto para que se possa contra

sua histoacuteria) patrimocircnio ndash 1980 foi decretado o ano do Patrimocircnio ndash o sucesso da palavra e do tema (a

defesa a valorizaccedilatildeo a promoccedilatildeo do patrimocircnio) acompanha a crise da proacutepria noccedilatildeo de ldquopatrimocircnio

nacionalrdquo comemoraccedilatildeo de uma comemoraccedilatildeo agrave outra poderia ser o tiacutetulo de uma crocircnica dos uacuteltimos

vinte anos Esses trecircs termos apontam para um outro que eacute como seu lar a identidaderdquo HARTOG

Franccedilois Regimes de historicidade presentismo e experiecircncias do tempo Autecircntica Belo Horizonte p

156 e passim

16

Cousin e Thomas Carlyle ainda em RW Emerson e Augusto Comte atento a

identificar seus leitores em Portugal e no Brasil

Eacute essa relaccedilatildeo do Brasil com outras naccedilotildees da geraccedilatildeo portuguesa de 1870

com a sua contraparte brasileira que marca o tom do segundo capiacutetulo Nele entro

mais propriamente no que chamarei de ldquoofiacutecios comemorativosrdquo retomados no

contexto dos diaacutelogos intelectuais que refaziam ao ritmo dos navios a vapor a

aventura de Cabral embora tambeacutem singrando o caribe rumo agrave Ameacuterica do Norte Se

no capiacutetulo anterior tento escrevinhar algumas linhas a respeito das comemoraccedilotildees

nacionais durante o Impeacuterio agora iremos nos aproximar dos ciclos dos centenaacuterios

O objetivo primordial eacute deixar que as ondas de memoacuteria nos carreguem ateacute as praias

do Rio de Janeiro do ano de 1900 Quanto mais o fizermos mais sentiremos a

necessidade de entendermos o sentido que as fontes naquele momento atribuiam agrave

ordem do tempo Falava-se muito em progresso eacute verdade e nisso o trabalho pioneiro

de Wanderley da Rocha em dissertaccedilatildeo defendida dois anos antes dos 500 de Cabral

torna-se uma referecircncia incontornaacutevel Mas falava-se em igual medida de decadecircncia

e o descompasso sentido entre desenvolvimento teacutecnico e a crise moral seraacute lido a

partir das referecircncias citadas pelos proacuteprios colaboradores do Livro do Centenaacuterio

Dentro desse contexto qual seria o valor atribuiacutedo agraves comemoraccedilotildees Eacute na dinacircmica

entre progresso e decadecircncia verdadeira agoniacutestica da memoacuteria coletiva subscrita nas

entrelinhas do ldquootimismordquo da imprensa e dos oradores oficiais que proponho

observarmos as propostas de reafirmaccedilatildeo e reificaccedilatildeo daquilo que seraacute chamado mais

tarde de identidade nacional

O intervalo que segue a primeira parte eacute destinado natildeo apenas ao sonho dos

leitores mas igualmente a defender a necessaacuteria tarefa de escutar mais do que de

evidenciar os nexos que ligavam no intervalo das vidas humanas o espaccedilo da

geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo ciacutevicas presentes ao menos desde as anacicloses da geraccedilatildeo de

Poliacutebio Recortei senatildeo uma uacutenica fonte parte final da Repuacuteblica de Ciacutecero essa

imitaccedilatildeo do trabalho homocircnimo do filoacutesofo da academia ateniense Com certa

liberdade que a distacircncia dos seacuteculos delega agrave imaginaccedilatildeo histoacuterica no melhor sentido

collingwoodiano planejo prestar tributo ao Sonho de Cipiatildeo lendo-o como um

chamado geracional Busco fazer ouvi-lo como um apelo em nome da virtude ciacutevica

o qual antecipava as expectativas dos optimus e campeotildees da coisa puacuteblica

modestamente mantendo-o em paralelo ao repertoacuterio das vozes puacuteblicas que jaacute se

fizeram ouvir no capiacutetulo anterior A relaccedilatildeo de alteridade forma fundamental de

17

comunicaccedilatildeo que ilumina pela diferenccedila os mais variados povos humanos quer no

espaccedilo quer no tempo deixa escapar ainda assim questotildees sobre a trajetoacuteria da alma

a transmissatildeo dos valores a memoacuteria e o esquecimento da posteridade temperadas

mais de milecircnio e meio mais tarde pelas metaacuteforas celestes na exaltaccedilatildeo moderna dos

grandes homens e da naccedilatildeo

Tal imagem dos paralelos aliaacutes expediente fundamental da historia magistra

inspirou por muito tempo os modernos leitores de Plutarco e de suas vidas

encontrando seu auge ndash tanto no sentido de zecircnite ndash com os Romanos e Franceses de

Mably ndash quanto na acepccedilatildeo dos iniacutecios da decadecircncia ndash dado jaacute o impasse registrado

por Hartog da Revoluccedilatildeo Antiga e Moderna de Chateaubriand6 O paralelo era entatildeo

um tipo especial de comparaccedilatildeo entre gregos e romanos nos tempos de Plutarco

entre antigos e modernos agrave eacutepoca das querelas7 Em meu trabalho a figura encontra

esse sentido embora muito menos enquanto um instrumento balizador de accedilotildees

devendo a uma ordem coacutesmica o princiacutepio da imutabilidade humana como algueacutem

poderia ler nos gregos nem tampouco eacute claro pela vocaccedilatildeo retoacuterica de modelos de

virtude como poderia-se fazer notar em Perrault Devo ao topos antigo senatildeo a

possibilidade do exerciacutecio de um ldquoolhar distanciadordquo Nesse vetor horizontal os

paralelos correriam distanciados pelos seacuteculos protegidos pela integridade de suas

contingecircncias8

Mas natildeo se trata de uma busca da origem dos conceitos nem dos arqueacutetipos de

suas praacuteticas A linha de Ariadne que se movimenta por vezes agrave busca de analogias

entre antigos e modernos eacute na verdade uma caccediladora de seus debates e para isso

segue o desenvolvimento das fontes Se escrever sobre comemoraccedilotildees eacute em grande

parte revisitar um fenocircmeno que ganha atenccedilatildeo crescente escrever sobre efemeacuterides

por sua vez demonstrou-se uma tarefa mais complexa Desconheccedilo trabalhos que

tenham se interessado em refazer mesmo ao sabor do esboccedilo episoacutedico e incompleto

6 Chauteaubriand imaginava-se como um nadador entre dois seacuteculos preso a tarefa siacutesifica de alcanccedilar

a outra margem do rio da histoacuteria incapacitado de fazecirc-lo como sentia-se pelo peso de suas

experiecircncias Ver a instigante anaacutelise de HARTOG Franccedilois Les Anciens les Modernes les Sauvages

ou le Temps des Sauvages In Chateaubriand le Tremblement du Temps Berchet Presses

Universitaires du Mirail Toulouse 1994 p 177-200 7 HARTOG Franccedilois Du parallegravele agrave la comparaison In Entretiens drsquoarcheacuteologie et drsquohistoire

Plutarque Grecs et Romans em questions 1998 pp 161-171 8 Estou longe portanto do paralelo como ldquoconcursordquo entre povos tal como descrito em uma leitura

retoacuterica ligada ao gecircnero demonstrativo por GICQUIAUD Greacutegory La balance de Clio reacuteflexions

sur la poeacutetique et la rheacutetorique du parallegravele In Marc Andreacute Bernier (org) Parallegravele des anciens et des

modernes Rheacutetorique histoire et estheacutetique au siegravecle des Lumiegraveres Presses Universitaires Laval

2007

18

que apresento o caminho de seu conceito Tampouco encontrei um estudo comparado

entre seus usos afinal natildeo seria um conceito deslocado das praacuteticas meramente uma

palavra Existem no entanto toda uma seacuterie de estudos que senatildeo as citam de

passagem resolveram dissertar sobre a especificidade de algumas de suas

manifestaccedilotildees As efemeacuterides ndash como veremos a partir do terceiro capiacutetulo ndash correm

tambeacutem paralelamente agraves comemoraccedilotildees Como dois conceitos de movimento

compartilham o ritmo da ordem do tempo ainda que as tarefas a eles associadas os

distanciem interditando-os de confundirem suas representaccedilotildees antes que as praacuteticas

natildeo o faccedilam Momentos de aproximaccedilatildeo no entanto nunca deixaram de ser comuns

embora suas circunstacircncias tenham oscilado no arranjo das imitaccedilotildees e na editoraccedilatildeo

criativa de modelos

Tomei conhecimento desde cedo das Efemeacuterides de Alexandre escritas

provavelmente pelo secretaacuterio do rei e futuro diaacutedoco do reino do Ponto Eumenes de

Caacuterdia mas perdidas para sempre envolta nos misteacuterios da morte do monarca ou

consumidas pelas chamas da biblioteca de Alexandria Ignorar o grego seria um

desafio ainda maior natildeo fosse eacute claro o cuidado da geraccedilatildeo de Poliacutebio em

transcerver-lhe em latim o significado dos modelos Aleacutem do precircambulo representado

por obras esquecidas essa eacute em todos os efeitos uma histoacuteria que comeccedila na Roma de

Cipiatildeo embora seus sonhos eacute claro possam nos transportar para a Atenas do seacuteculo

V ou um pouco aleacutem Das efemeacuterides histoacutericas narrativa dia-a-dia dos feitos dos

homens ndash em Isiodoro jaacute um subgecircnero de narratio rei gestae ndash fui obrigado a

aventurar-me no solo movediccedilo de praacuteticas que seriam desde os primoacuterdios do

iluminismo de Bayle o pinaacuteculo das supersticcedilotildees travestidas de arte

Natildeo julguei necessaacuterio como um dia o fez Thorndyke incluir uma nota de

rodapeacute desculpando-me frente ao leitor por colocar um saber maldito em seu

ldquoverdadeiro lugar na histoacuteria da ciecircnciardquo Apenas registro que estudar os saberes

celestes entre antigos e modernos faz-me sentir tatildeo astroacutelogo quanto meu irmatildeo

aracnoacutelogo desejaria se tornar um animal de oito patas Tampouco por outro lado

planejei travestir esta tese em alguma espeacutecie de oficializaccedilatildeo da memoacuteria disciplinar

das ciecircncias naturais Galileu encomendara horoacutescopos a seus filhos papas e reis

mantinham astroacutelogos em suas cortes e mesmo Newton nutria conhecido interesse

pela astrologia inferior Muitos antepassados da ciecircncia moderna foram bruxos

dotados de racionalidade defensores do texto e leitores do cosmos E para decodificaacute-

lo eles necessitavam do caacutelculo das efemeacuterides celestes

19

A ordem natural peripateacutetico-ptolomaica encontrou seus limites na medida em

que incetivava olhares aos ceacuteus fazendo que alguns entrevessem entre as rachaduras

constatadas pela autoacutepsia no edifiacutecio das autoridades a proximidade do fim dos

tempos O uso do princiacutepio da influecircncia celeste previa mas o diluacutevio e a

conflagraccedilatildeo natildeo vieram Olhando mais de perto com ajuda da arte telescoacutepica a lua

dos esboccedilos de Galileu parecia muito pouco com as esferas perfeitas dos autores

claacutessicos dotada de picos mares e imperfeiccedilotildees como se a esfera superior estivesse

tambeacutem sujeita agrave geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo Natildeo pretendo no entanto evocar a faacutecil

vitoacuteria de uma ldquorevoluccedilatildeo cientiacuteficardquo Lenta mudanccedila de praacutetica como veremos a

transiccedilatildeo do ouvido agrave visatildeo que fez os fenocircmenos celestes passarem de sinais

catastroacuteficos e morais a meros fatos naturais natildeo parece ter sido sempre linear e

progressiva Caso fosse possiacutevel deduzir certa ldquoaceleraccedilatildeo do tempordquo com o advento

da imprensa teremos que admitir tanto constrangidos que as fontes natildeo liam os

fenocircmenos registrados por elas sequer como tiacutemidos ldquoexcessos de informaccedilatildeordquo Os

limites da ordem natural do cosmos medieval esbarrariam em formas de representaccedilatildeo

que se apontavam para o futuro esse seria um porvir que insistiria em ser lido nos

textos autoritativos do Livro Sagrado envoltos em escatologia milenarismo ou ainda

expressos pelos signos do ldquogrande medordquo A evidecircncia de um ldquobeco sem saiacutedardquo para

usar expressatildeo cara a Pomian eacute o papel da pequena comparaccedilatildeo que ofereccedilo entre as

leituras de Louis Le Roy e Padre Antocircnio Vieira a respeito da correspondecircncia entre

os fenocircmenos celestes e o destino dos homens e dos Estados

A crise dos modelos alexandrinos foi cercada pelo desenvolvimento da oacutetica

da filologia e do descaso pelas supersticcedilotildees Mas se no seacuteculo XVII Spinoza jaacute

acreditava que o tempo biacuteblico havia chegado ao fim natildeo seria demais lembrar que

como fatalidade linear ele insistiu em retornar atraveacutes dos ciclos dos jubileus O

mesmo acontecera com a ordem da natureza natildeo mais propagada apenas por um

intransigente seacutequito de aristoteacutelicos nem menos ainda por grupos de astroacutelogos e

miacutesticos relegados ao uacuteltimo degrau da repuacuteblica das letras Palavras muito bem

vindas poderiam ser enunciadas a respeito do direito natural ateacute hoje debatido

embora deva advertir desde jaacute natildeo eacute esse o caminho ao qual as fontes me levaram Jaacute

no capiacutetulo quatro ao se aproximarem do seacuteculo das luzes as efemeacuterides reafirmam

seu sentido claacutessico de narrativa dia-a-dia aproximando-se natildeo da luz advinda das

esferas celestes mas daquela produzida pela reuniatildeo dos homens na esfera puacuteblica Eacute

no publicismo preacute-revolucionaacuterio que retomarei os debates encabeccedilados por nomes

20

bem conhecidos da histoacuteria da histoacuteria contra um inimigo comum os ldquofiloacutesofos

economistasrdquo esse seacutequito religioso que insistia em incluir a ordem natural na pauta

dos direitos inalienaacuteveis da propriedade privada e do livre comeacutercio Se a aceleraccedilatildeo

dos ciclos naturais sentida pelos renascentistas parecia apressar a histoacuteria a seu fim

biacuteblico os debates protagonizados nas efemeacuterides puacuteblicas poucos anos antes de

1789 foram um dos muitos agentes testemunhais do progresso revolucionaacuterio

Agrave eacutepoca da revoluccedilatildeo assistiremos a reemergecircncia das efemeacuterides histoacutericas

modelos que seratildeo glosados imitados e divulgados pelos quatro cantos do globo

Parte delas ainda parecia guardar entretanto algo dos sarrabais dos lunaacuterios dos

almanaques e das ephemeris dos seacuteculos anteriores Na Franccedila da restauraccedilatildeo uma

dessas fontes como veremos aparentava nutrir esperanccedilas no retorno da esfera

puacuteblica ao seu lugar natural Sua acircnsia em projetar o futuro como se apenas dessa

maneira pudessem completar o passado significando o presente manteacutem entre as

efemeacuterides como vou propor inspirado ainda em Pomian uma potencialidade

cronosoacutefica a qual escreve o porvir em linhas gerais a partir de um discurso de

verdade ldquomisto de profecias e periodizaccedilotildeesrdquo9 Trata-se de um tipo especial de

prognoacutestico pois sua fortaleza eacute construiacuteda como o resultado loacutegico de um sistema

baseado em um conjunto de fatos previamente ordenados no tempo com precisatildeo de

dias apresentando-os como a mateacuteria bruta da histoacuteria Populares no seacuteculo XIX as

eacutepheacutemeacuterides anunciavam natildeo mais a influecircncia das conjunccedilotildees e eclipses das esferas

celestes no mundo sublunar mas julgavam influenciar a esfera puacuteblica rumo agrave tarefa

de naturalizar a grandeza moral de certos personagens poliacuteticos atraveacutes de um

trabalho de memoacuteria

A proximidade do centenaacuterio da grande comemoraccedilatildeo ndash momento em que a

fala do orador faz os paralelos se tocarem ndash ocasionou no caso brasileiro uma seacuterie

de discussotildees no IHGB que terminaram por chancelar as efemeacuterides como um gecircnero

comemorativo ndash e frente ao julgamento da vontade poliacutetica dos pareceristas ora

aceitas pelo Instituto ora vistas como mais proacuteprias para as folhas diaacuterias

Relacionadas a datas natildeo escapariam a polecircmicas em especial durante um momento

em que a transiccedilatildeo para a repuacuteblica fazia o IHGB perder grande parte de seu prestiacutegio

anterior Tanto alheias ao Instituto vozes de uma autoproclamada ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo

com forte suporte publicista acreditariam anunciar o futuro da naccedilatildeo sob a imagem

9 HARTOG 2013 p 31

21

de uma velha ordem natural A investiccedilatildeo a respeito dos valores atribuiacutedos aos

conceitos de comemoraccedilatildeo e efemeacuteride encontraria agora um ponto de equiliacutebrio no

movimento de um tempo nacional como se seu projeto ndash o horizonte da naccedilatildeo ndash

fizesse igualmente as vezes de uma intersecccedilatildeo entre duas linhas paralelas

22

Proacutelogo

23

Da festa da federaccedilatildeo agrave federaccedilatildeo da memoacuteria

Comemorar a tomada da Bastilha festejar a revoluccedilatildeo ou projetar a naccedilatildeo Na

ordem das questotildees passado presente ou futuro Em julho de 1790 Paris com uma

Assembleia Nacional sua proacutepria federaccedilatildeo um prefeito seus comissaacuterios

municipais sua guarda nacional ainda assim estava atrasada estupefata agrave espera dos

ldquo26000 delegados vindos de todos os cantos da Franccedilardquo10

Frente agrave hesitaccedilatildeo e agrave calculada lentidatildeo das autoridades um perioacutedico local o

Chronique de Paris publica uma carta assinada pelo granadeiro Cartheri na qual o

simples ldquosoldado-cidadatildeordquo exortava seus compatriotas a auxiliarem nos preparativos

para a grande festa

Quereis caros compatriotas tornar completo vosso fermento

ciacutevico () Aquela que foi tatildeo bem sucedida aquela que nos

eacute hoje familiar a reuniatildeo de nossas vontades a vontade

nacional E qual eacute a circunstacircncia mais favoraacutevel a essa

empresa que aquela que se prepara para o 14 de julho11

A repercussatildeo dessa pequena carta publicada dia 5 sob a cartola das

ldquovariedadesrdquo teria sido acompanhada por uma intensa movimentaccedilatildeo popular a partir

do iniacutecio do mecircs milhares de parisienses de todos os gecircneros e classes atenderiam ao

chamado revolucionaacuterio como se representassem enfim a tal vontade nacional

Os aristocratas com a aboliccedilatildeo de seus privileacutegios datando de poucos dias eacute

claro tinham todos os motivos do mundo para se preocupar12 Em suas memoacuterias o

marquecircs de Ferriegraveres traria relatos do clima de hostilidade e sarcasmo que as

multidotildees do Champ-de-Mars armavam contra a jaacute antiga classe dominante Mesmo a

imprensa revolucionaacuteria com seus interesses em jogo tentava acalmar os acircnimos

10 BERNE Paul Souvenir du 14 Juillet 1880 Trois dates Fecircte nationale du 14 juillet 1880 Le 14

juillet 1789 Le 14 juillet 1790 Imp De Menaboeuf-Genin Lyon 1880 Monographie imprimeacutee p

26 11 Voulez-vous chers compatriotes rendre complet votre ferment civique () Celle qui nous a si bien

reacuteussi celle que nos est aujourdrsquohui familiegravere la reacuteunion geacuteneacuterale de nos volonteacutes la volonteacute nationale

Et quelrsquoe circonstance plus favorable agrave cette enterprise que celle qui se preacutepare pour le 14 julliet

Chronique de Paris T2 Paris monographie imprimeacutee 5 de Julho de 1790 p 742-743 12 Sobre a aboliccedilatildeo da nobreza em 19 de junho de 1790 e a reaccedilatildeo da aristocracia ver DOYLE W

Aristocracy and its Enimies in the Age of Revolution Oxford Oxford University Press 2009 p 239

24

Uma coisa uma soacute coisa pode infligir um observador

patriota nesses belos dias As paacutes de muitos cidadatildeos foram

decoradas com divisas ameaccediladoras contra os aristocratas

() O caraacuteter de um povo livre eacute subjugar o orgulho e

perdoar os vencidos Os aristocratas natildeo satildeo mais dignos de

sua ira13

Ferriegraveres chega a mencionar como o faria mais tarde Michelet que tanto os

aristocratas quanto os revolucionaacuterios suspeitavam de uma grande conspiraccedilatildeo A

nobreza temia um massacre jaacute no dia 14 enquanto que os revolucionaacuterios

suspeitavam de um plano para distrair os manifestantes e com a cidade entregue agraves

moscas saqueaacute-la queimaacute-la e assassinar seus habitantes14

Afinal ldquoconduzir essas massas indisciplinadas a Paris ao centro da agitaccedilatildeordquo

seria mesmo desejaacutevel Ainda teriacuteamos que esperar alguns anos como veremos mais

tarde nesta tese para a invenccedilatildeo do termo vandalisme (impossiacutevel pensaacute-lo sem a

ideia de patrimocircnio) mas outras palavras deviam fazer sua vez ldquoe o rei o que

aconteceraacute a elerdquo ldquoEis o que os realistas se diziam com terrorrdquo ldquoO reirdquo diriam os

jacobinos tambeacutem pela boca de Michelet ldquoo rei vai fazer a conquista de todo esse

povo creacutedulo que nos chegaraacute das proviacutencias Essa perigosa reuniatildeo vai amortecer o

espiacuterito puacuteblico () Ela vai monarquizar a Franccedilardquo15

Na Assembleia Nacional tanto aqueles que sentavam agrave esquerda do

presidente quanto os que se posicionavam a sua direita pareciam natildeo conseguir

compreender a dimensatildeo do fenocircmeno popular Natildeo sabiam o que ele era embora

soubessem que natildeo o queriam ali Seu temor natildeo era por conta dos delegados que jaacute

se instalavam no Hocirctel de Ville Seu temor era por conta dos milhares de cidadatildeos

que de todos os lados do paiacutes prometiam um conjunto de grandes peregrinaccedilotildees

rumo agrave capital era o temor de que muitos mais do que a ordem poderia admitir

fossem integrados pela naccedilatildeo no novo pacto federativo

Em 6 de julho de 1790 o Chronique de Paris escreve que a poliacutecia e os

funcionaacuterios puacuteblicos haviam rejeitado a proposta de apoio popular agraves obras da festa

13 ldquoUne chose une seule chose pouvoit affliger un observateur patriote dans ces beaux jours Les

pelles de beaucoup de citoyens eacutetoient orneacutees de devises menaccedilantes contre les aristocrates () le

caractegravere drsquoun peuple libre est de dompter les superbes et de pardonner aux vaincus Les aristocrates

ne sont plus dignes de votre courrouxrdquo Reacutevolutions de Paris 17900703 (T4N52)-17900710 p 755 14 FERRIEgraveRES Meacutemoires du Marquis de Ferriegraveres Paris Baudouin Fils 1822 pp 88-89 15 MICHELET Jules Histoacuteria da Revoluccedilatildeo Francesa da queda da Bastilha agrave Festa da Federaccedilatildeo

Trad Maria Luacutecia Machado Cia das Letras Satildeo Paulo 1989 p 413

25

ldquoEacute faacutecil de conceberrdquo dizia o perioacutedico ldquoqual desordem nascera do concurso de todos

que desejarem trabalhar no Campo de Marterdquo16 incluindo mulheres crianccedilas

monges prostitutas e becircbados17 Natildeo foi o bastante Na tarde seguinte alheias agraves

autoridades mais e mais pessoas natildeo parariam de chegar

Dia 11 Jean-Sylvain Bailly ndash o primeiro prefeito de Paris ndash vem a puacuteblico

agradecer o entusiasmo dos moradores da capital mas tambeacutem pedir que parem de se

dirigir ao Champ-de-Mars pois seu trabalho natildeo era de modo algum necessaacuterio18

Enquanto isso e ao menos desde o dia 7 comissaacuterios municipais espalhavam cartazes

solicitando aos cidadatildeos que natildeo ajudassem os trabalhadores19

A Assembleia tambeacutem fez o que pocircde para esvaziar o evento decidiu tudo

muito tarde pocircs as despesas de deslocamento a cargo dos poderes locais dificultando

as condiccedilotildees de translado dos moradores das regiotildees mais pobres do paiacutes

Mas boa parte deles jaacute estava a caminho

ldquoE ao atravessar em bandos as aldeias e as cidadesrdquo rumo ao grande burgo

ldquoeles cantavam com todas as forccedilas com uma alegria heroacuteica um canto que os

habitantes agraves suas portas repetiamrdquo20 Cantavam a mesma canccedilatildeo que os parisienses

no ritmo da enxada e da picareta entoavam ao remexer como camponeses a terra do

Campo da Federaccedilatildeo

Le peuple en ce jour sans cesse reacutepegravete

Ah Ccedila ira Ccedila ira Ccedila ira

Suivant les maximes de lrsquoEacutevangile

(Ah Ccedila ira Ccedila ira)

Du leacutegislateur tout srsquoaccomplira

Celui qui srsquoeacutelegraveve on lrsquoabaissera

Et qui srsquoabaisse on lrsquoeacutelegravevera

A gazeta literaacuteria Mercure de France comentou a popularidade desses cacircnticos

revolucionaacuterios dizendo que sua sonoridade ldquomisturava-se aos lugares comuns contra

os aristocratasrdquo 21 A Festa da Federaccedilatildeo afinal exigia um pacto federativo Uma

federaccedilatildeo poliacutetica uma nova ordem que integrasse todas as aldeias vilas e cidadelas

que vinham se armando desde o veratildeo passado um acordo que levaria de certa

16 ldquoil est facile de concevoir quel deacutesordre naicirctroit du concours de tous ceux qui deacutesiroient travailler au

Champ-de-Marsrdquo Chronique de Paris 6 Julliet 1790 743 17 Reacutevolutions de Paris 17900703 (T4N52)-17900710 p 753-5 18 Chronique de Paris 11 Julliet 1790 p 765 19 Reacutevolutions de Paris ibidem p 755 20 Ibidem p 414 21 Mercure de France 8 Julliet 1790 p 214-5

26

maneira ao famoso mote mais tarde publicado em todos os textos oficiais de uma

repuacuteblica ndash e de uma Franccedila ndash ldquouna e indivisiacutevelrdquo Como se aquela que era ldquoa ordem

mais profunda a unanimidade dos espiacuteritosrdquo ndash da qual nos fala Michelet a respeito do

dia da tomada da Bastilha ndash pudesse ser reeditada impressa e revivida na alma de

todos os cidadatildeos22

A ideia para uma celebraccedilatildeo desse tipo em uma provaacutevel expressatildeo de um

tempo cada vez mais ceacutelere apareceria poucos dias apoacutes a queda da fortaleza O

marquecircs de Villete em 18 de julho de 1789 jaacute falava em realizar uma festa por uma

revoluccedilatildeo que ldquonrsquoa point drsquoexemple dans lrsquoHistoirerdquo 23 Sua manifestaccedilatildeo natildeo foi eacute

claro uacutenica Segundo Simon Linguet o primeiro a sugerir a festa revolucionaacuteria fora

Caillegravere de lacuteEacutetang24 De todo modo propostas para o grande jubileu natildeo faltaram

embora certos monarquistas mais temerosos sugerissem datas diferentes Gois

professor de pintura e escultura na Academia Real chegou a indicar uma data em

julho argumentando que ateacute aquele mecircs a Assembleia Nacional jaacute teria terminado ldquole

grand oeuvre de la Constituitionrdquo25

Linguet por sua vez parecia mesmo preocupado em evitar uma festa que

desenvolvesse ldquoessa sensibilidade desastrosardquo que faz a plebe revender o patildeo que

ganha e se bater por uma nova caneca de vinho ldquocrsquoest la Discorde qui semble y

preacutefiler plutocirct que Bacchusrdquo Era preciso ao contraacuterio estimular a comodidade e a

seguranccedila puacuteblica26 E natildeo foi essa a opccedilatildeo escolhida pelos organizadores assinada

pelo prefeito e ordenada por um desfile Desfile durante o qual trotearam as

companhias de cavaleiros vendo marchar a seguir os granadeiros os eleitores da

cidade de Paris seus voluntaacuterios os representantes da comuna o Comitecirc Militar os

presidentes distritais os deputados para o Pacto Federativo os guarda-bandeiras ndash

saindo da rua Saint-Denis encontrando a Assembleia Nacional na praccedila Louis XV

22 MICHELET Jules op cit p 153 23 VILLETTE Charles Lettres choisies du marquis de Villete Paris 1792 apud TREacuteVIEN Claire Le

Monde agrave lrsquoenvers the carnivalesque in prints of the construction of the fecircte de la feacutedeacuteration of 1790

In French History Vol 26 No 1 2012 p 38 24 LINGUET Simon Adresse au peuple franccedilais concernant ce qursquoil faut faire amp ce qursquoi faut pas faire

pour fecircter la fecircte meacutemorable et nationale du 14 juillet 1790 Et sur-tout la neacuteceacutessiteacute de nrsquoy admettre

aucun cheval Paris 1790 p 4 25 Ele tambeacutem sugeria ldquoun Monument agrave Gloire du Roi et de la Nationrdquo no qual poder-se-ia ler a

inscriccedilatildeo ldquoLOUIS XVI PEgraveRE DES FRANCcedilOIS RESTAURATEUR DES LOIX ET DE LA

LIBERTEacuterdquo GOIS Projet de monumento et fecircte patriotique Paris 1790 p 3 26 ldquocette sensibiliteacute funeste () crsquoest la Discorde qui semble y preacutefiler plutocirct que Bacchusrdquo Idem

respectivamente pp 12 14 e 15

27

tomando o caminho do Champ-de-Mars para em frente agrave Escola Militar saudar o rei

e a rainha cantando o Te Deum27

A austeridade da procissatildeo de fato jaacute foi ressaltada por Mona Ozouf28 Seu

projeto e sua execuccedilatildeo marcados pelos temores bem expressos por Simon Linguet

poderiam ignorar ndash mas natildeo simplesmente excluir ndash a memoacuteria de todos aqueles que

responderam ao chamado patrioacutetico do pacto federativo mesmo que esse viesse a ser

por uma contradiccedilatildeo de origem realizado por uma vocaccedilatildeo unitaacuteria ldquoAs proacuteprias

Federaccedilotildeesrdquo como fez questatildeo de lembrar Michelet ldquocontaram a sua histoacuteriardquo Elas a

diziam da forma como podiam desde que muitos mal sabiam escrever e as

endereccedilavam ldquoagrave sua matildee a Assembleia Nacional fielmente ingenuamente em uma

forma com muita frequecircncia grosseira infantilrdquo Eacute claro que ldquonem sempre se

encontrava nos campos escriba haacutebil que fosse digno de consignar essas coisas na

memoacuteriardquo 29

Quatorze de Julho de 1789 foi o dia em que Paris tomou a Bastilha Quatorze

de julho de 1790 foi o dia em que a Franccedila tomou Paris Os federados atendendo ao

badalar dos sinos de um novo culto ciacutevico dirigiram-se agrave capital de certo carregando

o pouco que tinham suas experiecircncias seus ldquohomens memoacuteriardquo eles de matildeos dadas

agrave juventude esperanccedilosa do ccedila ira Com seus filhos casando-se no altar da paacutetria

teriacuteamos uma origem possiacutevel para a ldquosubstacircncia francesardquo em Michelet Ou caso

pensemos com Mona Ozouf um ritual de batismo ciacutevico coletivo de transferecircncia de

sacralidade no qual suacuteditos do rei satildeo convertidos em cidadatildeos De todos os usos e

interpretaccedilotildees que podemos alccedilar sobre o episoacutedio para noacutes a Festa da Federaccedilatildeo natildeo

eacute mais do que um iniacutecio ndash mesmo um dos muitos possiacuteveis ndash natildeo da harmonia mas do

conflito entre diferentes experiecircncias comemorativas as quais produzem e demandam

diferentes expectativas traduzidas em formas diversas de lembrar e de esquecer o

iniacutecio do encaixe de uma moldura nacional sobre um grande painel de lembranccedilas

coletivas retrato polissecircmico de um passado ainda assim como veremos sempre

conflituoso e ndash embora natildeo uno e indivisiacutevel ndash organizado dentro dos limites morais e

poliacuteticos de uma federaccedilatildeo da memoacuteria

27 BAILLY LA FAYETTE Ordre de marche pour la confeacutederation qui aura lieu le 14 juillet amp

dispositions dans le Champ-de-Mars Paris 1790 28 OZOUF Mona La fecircte reacutevolutionnaire 1789-1799 Paris Gallimard 1976 p 82 29 MICHELET op cit p 402

28

I

Comemoraccedilotildees

29

1

Entre a memoacuteria e a moral

As comemoraccedilotildees como reparaccedilatildeo identitaacuteria

11 A grande forccedila

A mais bela das cartas Ciacutecero parecia feliz com sua pequena mensagem de 55

ac hoje conhecida como Ad Familiares V 12 Endereccedilada a Lucceius amigo que

havia demonstrado interesse em escrever sobre seu consulado ela era na verdade um

pedido muito particular O patriacutecio solicitava ao historiador que suspendesse as leges

historiae rompendo com a cronologia analiacutestica pulando para o presente e como se

natildeo bastasse narrasse os tempos de sua magistratura em um estilo ornamentado Era

em outras palavras o requerimento de um elogio feito por algueacutem que alegava natildeo

receber o reconhecimento que merecia Em uma passagem dessa correspondecircncia

Ciacutecero afirmava que suas esperanccedilas de imortalidade natildeo eram depositadas

unicamente na commemoratio posteritatis (V121) na recordaccedilatildeo que o futuro lhe

renderaacute mas que esperava tambeacutem poder fruir da gloacuteria ainda em vida (ut vivi

perfruamur) Como se o salvador da repuacuteblica demandasse em poucas palavras ser

reconhecido como o paralelo vivo dos costumes ancestrais30

Mencionar remeter ou a accedilatildeo de lembrar A palavra latina commemoratio em

Ciacutecero e Quintiliano natildeo foge a um uso retoacuterico e utilitaacuterio como antiquitatis

exemplorum prolatio tratava-se de uma citaccedilatildeo ou seja o evocar de uma lembranccedila

antiga e um suporte em sua autoridade exemplar Utilitaacuterio sim em um sentido

30 Cicero em outro documento sugere que Atticus adquira uma coacutepia dessa carta para suas leituras

(Att 464) Nessa mesma passagem ele descreve sua Ad Familiares V 12 como ldquoValde Bellardquo A

carta aqui citada jaacute foi alvo de vaacuterias interpretaccedilotildees a mais corrente aponta para o egotismo o cinismo

e o oportunismo de Ciacutecero outra tenta justificar seu pedido de elogio a partir das regras do gecircnero

demonstrativo uma terceira e bem menos ortodoxa tenta identificar sinais de ironia no texto lendo-o

como uma brincadeira entre amigos Sobre a primeira e a terceira interpretaccedilotildees ver HALL John

Cicero to Lucceius (Fam512) In its Social Context Valde Bella In Classical Philology 93 1998

308 nota 1 Sobre a segunda interpretaccedilatildeo ver CHIAPPETTA Angeacutelica Natildeo Diferem o Historiador e

o Poeta O Texto Histoacuterico como Instrumento e Objeto de Trabalho Liacutengua e Literatura 2 1996

Departamentos de Letras USP p 15-34 e tambeacutem PAVES Leonardo Acquaviva Historia Magistra

Vitae Histoacuteria e Oratoacuteria em Ciacutecero Satildeo Paulo USP 2011 Dissertaccedilatildeo de Mestrado Principalmente

pp 55-58

30

poliacutetico e moral O exemplo a recordaccedilatildeo de um feito verdadeiro ou dado como tal

de toda maneira tinha como missatildeo ser ldquouacutetil para persuadirrdquo precisamente o que se

queria entatildeo comemorar31

Como o episoacutedio da Ad Familiares faz supor commemoratio era anaacuteloga

ainda a monumentum a qual expressa uma das tarefas do espiacuterito (mens) a memoacuteria

ldquoCom a antiguidade Romanardquo escreve Fernando Catroga monumentum ldquotinha dois

significados denotava uma obra comemorativa de arquitetura e de escultura () e

aplicava-se a edificaccedilotildees funeraacuterias destinadas a perpetuar a lembranccedila de algueacutemrdquo 32

Gloacuteria em vida gloacuteria em morte

Eacute verdade que com o cristianismo anuncia-se o tempo da espera mas da

mesma maneira celebra-se a lembranccedila do exemplo salvador O culto da Eucaristia

centra a esperanccedila do religare no milagre da recordaccedilatildeo ao comer o corpo e beber o

sangue do Salvador ldquoFazei isto em memoacuteria de mimrdquo (et gratias agens fregit et dixit

hoc est corpus meum pro vobis hoc facite in meam commemorationem 1 Coriacutentios

XI24 e 25 similiter et calicem postquam cenavit dicens hic calix novum testamentum

est in meo sanguine hoc facite quotienscumque bibetis in meam commemorationem

tambeacutem em Lucas XXII19) Se Santo Agostinho ainda utilizava a palavra

commemoratio em um sentido muito parecido com o dos claacutessicos latinos ndash fazendo

diga-se logo remissotildees agrave necessidade dos fieacuteis comemorarem certas festas sagradas ndash

ao longo da Idade Meacutedia a comemoraccedilatildeo torna-se ldquoum ato religioso atraveacutes do qual

pedimos aos vivos que se lembrem ou seja de agir em oraccedilatildeo pelos mortosrdquo 33 Na

vulgata talvez a fonte mais importante o termo aparece mais uma vez em uma das

cartas da tradiccedilatildeo paulina dessa vez indicando a obrigaccedilatildeo de comemorar todos os

anos os pecados ao lado do sacrifiacutecio do messias (Hebraeos X3)

Em portuguecircs o termo comemorazones ainda no plural surge por volta do

seacuteculo XIII provavelmente acompanhando a popularizaccedilatildeo dos sermotildees em liacutengua

vulgar Nos dois seacuteculos seguintes a expressatildeo evolui para cotildememoraccedilotilde e

31 ldquo() quod proprie vocamus Exemplum id est rei gestae aut ut gestae utilis ad persuadendum id

quod intenderis commemoratiordquo QUINTILIANO Inst Oratoire LIV V 11 6 Na traduccedilatildeo francesa

de Ouizille ldquo() celle que jrsquoappelle proprement lrsquoexemple crsquoest-agrave-dire la citation drsquoun fait vrai ou

censeacute tel ameneacutee dans le dessein de persuader ce qursquoon a en vuerdquo Paris CLF Panckoucke 1829-

1840 V 3 p 7 32 CATROGA Fernando O culto dos mortos como uma poeacutetica da ausecircncia In ArtCultura

Uberlacircndia v 12 n 20 jan-jul 2010 p 170 33 ldquo() un acte religieux par lequel on demande aux vivants de se souvenir crsquoest-agrave-dire drsquoagir par la

priegravere pour les mortsrdquo Namer Geacuterard La commeacutemoraton en France de 1945 agrave nos jours Logiques

Sociales lrsquoHarmattan Paris 1987 pp 143-144

31

finalmente conmemoraccedilon34 Sua relaccedilatildeo estreita com os ritos catoacutelicos eacute evidente ao

menos ateacute a primeira metade do seacuteculo XIX35 Alexandre Herculano em suas Lendas

e Narrativas ironiza a palavra no hilariante Alhos e Bugalhos no qual conta a

histoacuteria de Satildeo Pantaleatildeo Bispo de Nicomeacutedia Convertido por Hermolau o santo

passa a praticar curas ldquomais baratas e mais rapidas ao mesmo tempo que as offertas

dos doentes escaceavam nos templos pagatildeosrdquo Atraiu a fuacuteria do imperador

Maximiano o qual decidiu lanccedilaacute-lo agraves feras que por milagre resolveram tatildeo somente

limpar-lhe os peacutes Ceacutesar coleacuterico pediu sua cabeccedila e ldquoo sancto segundo parece

estava jaacute saciado de prodigios ao golpe do algoz a cabeccedila voou-lhe dos hombrosrdquo

Neste dia natildeo somente Satildeo Panteleatildeo entrou no rol dos maacutertires sagrados como

tambeacutem ganhou a gloacuteria da lembranccedila ldquoMas ndash acudiratildeo os leitores ndash que nos importa

a noacutes que essa commemoraccedilatildeo seja a vinte-sete ou a vinte-oito seja em julho ou em

dezembro Vamos a festa e deixemo-nos de historiasrdquo escreveu Herculano36

O cristianismo como uma religiatildeo em si comemorativa acentua o fenocircmeno

ao frisar o sacrifiacutecio do messias agrave eucaristia segue-se a anamnese processo que

permite no coraccedilatildeo do fiel reviver a memoacuteria do Cristo Com a emergecircncia do

Estado Naccedilatildeo e a desestruturaccedilatildeo da cristandade ocidental catoacutelica (dita universal) as

comemoraccedilotildees se particularizam e passam a ser dotadas de sentidos seculares

associados pouco a pouco ao que chamamos hoje de identidade nacional Sob o elo

providencial que unia o universal e o particular os seacuteculos XVIII e XIX assistem agrave

emergecircncia vitoriosa ndash na esteira do que seraacute chamado ldquociecircncia positivardquo ndash de uma

categoria geral Em suma se segundo Paul Ricoeur recordar eacute em si mesmo um ato

de alteridade a comemoraccedilatildeo moderna como sentenciou Bernard Cottret eacute fruto de

uma relativa fragmentaccedilatildeo37

34 Aqui sigo CUNHA Antocircnio Geraldo da Dicionaacuterio etimoloacutegico Nova Fronteira da Liacutengua

Portuguesa Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 Trabalho que deve muitos de seus verbetes ao

claacutessico MACHADO Joseacute Pedro Dicionaacuterio etimoloacutegico da liacutengua portuguesa com a mais antiga

documentaccedilatildeo escrita e conhecida de muitos dos vocaacutebulos estudados 2 ed Lisboa Confluecircncia

1967 3 v 35 Ao comentar as poliacuteticas comemorativas do regime liberal portuguecircs dos anos 20 do seacuteculo XIX

Maria Isabel Joatildeo afirma que ldquoApesar das caracteriacutesticas laicas de que se procuraram revestir as festas

liberais a tradiccedilatildeo religiosa manteve-se presente nestas comemoraccedilotildees que comeccedilavam com

frequecircncia pela celebraccedilatildeo de missa solene e Te Deum Laudamusrdquo JOAtildeO Maria Isabel Percursos da

memoacuteria centenaacuterios portugueses no seacuteculo XIX In Revista de Letras e Culturas Lusoacutefonas Camotildees

Nuacutemero 8 Janeiro-Marccedilo de 2000 p 2 36 HERCULANO Alexandre Lendas e Narrativas II 1851 cap 4 p 177 37 Respectivamente RICOEUR Paul Entre meacutemoire et histoire In Projet no 248 1996-1997 e

COTTRET Bernard HENNETON Lauric Du bon usade des commeacutemorations Histoire meacutemoire et

identiteacute XVIe-XXIe siegravecle Rennes Presses Universitaires 2010 p 9 O termo francecircs commeacutemoratio

32

Embora fragmentadas as comemoraccedilotildees como noacutes as conhecemos hoje

guardam algo de religioso ndash fato demonstrado pelo proacuteprio vocabulaacuterio presente na

documentaccedilatildeo que nos restou das festas revolucionaacuterias francesas ldquoReligio a

lsquoescrupulosa atenccedilatildeorsquo no exerciacutecio de um rito no qual ligamos a origem agrave

introspecccedilatildeo de uma lsquore-leiturarsquo (relegere) ou mais provavelmente agrave renovaccedilatildeo de

um viacutenculo (religare)rdquo 38 Por sinal os fenocircmenos comemorativos seculares

dificilmente escapam a uma funccedilatildeo lituacutergica Eles organizam independente das cores

de suas hostes um rito de comunhatildeo com o abstrato seja ele uma deidade seja ele

uma naccedilatildeo divinizada imagens construiacutedas tendo como modelo ou referecircncia uma

essecircncia ancestral ou originaacuteria

Eacute a moldura de uma religiatildeo civil ndash cuja Franccedila oferece uma forma exemplar ndash

que permite a comparaccedilatildeo e o artifiacutecio de analogias entre os fenocircmenos

comemorativos ocidentais contemporacircneos e outros ritos representativos antigos

modernos e mesmo selvagens Eacute nesse sentido que a anaacutelise e o vocabulaacuterio de Eacutemile

Durkheim continuam populares entre os estudiosos das comemoraccedilotildees No capiacutetulo

IV das formas elementares da vida religiosa o socioacutelogo definiu a forma e a funccedilatildeo

do que chamou de Culto Positivo Realizou na verdade um estudo sobre a

representaccedilatildeo totecircmica entre duas tribos aboriacutegenes australianas os Warramunga e os

Arunta Entre esses grupos o rito consistia em relembrar o passado tornando-o

presente por meio de uma representaccedilatildeo dramaacutetica da mitologia do clatilde Mitologia que

natildeo eacute mais do que o conjunto de crenccedilas comuns ao grupo uma maneira de manter a

lembranccedila de suas tradiccedilotildees viva a partir do estabelecimento de uma relaccedilatildeo

dramatuacutergica entre o ancestral comum e um totem

() o celebrante neste caso natildeo eacute de forma alguma

considerado como encarnaccedilatildeo do ancestral que

representa este eacute um ator interpretando um papel () o

caraacuteter dessas cerimocircnias eacute dramaacutetico contracenado por

uma espeacutecie muito especial de bobos eles agem ou pelo

menos acredita-se que eles agem sobre o curso da

natureza 39

aparece tambeacutem no seacuteculo XIII ao passo que o verbo commeacutemorer do qual deriva o substantivo

commeacutemoraison surge no seacuteculo seguinte 38 ldquoReligio cette lsquoattention scrupuleusersquo agrave lrsquoexercice drsquoun rite qursquoon rattache lrsquoorigine au recueillement

drsquoune lsquore-lecturersquo (relegere) ou plus vraisemblablement au renouvellement drsquoum lien (religare)rdquo

ORY Pascal Une Nation pour meacutemoire 1889 1939 1989 Trois jubileacutes reacutevolutionnaires Presses de

la Fondation Nationale des Sciences Politiques Paris 1992 p 17 39 ldquoLe mot est drsquoautant plus de circonstance que lrsquoofficiant en ce cas nrsquoest aucunement consideacutereacute

comme une incarnation de lrsquoancecirctre qursquoil repreacutesente crsquoest un acteur qui joue un rocircle () Les exemples

33

O celebrante (lrsquoofficiant) encena o ancestral em uma representaccedilatildeo cerimonial

pontuada pelo curso da natureza Trata-se em linguagem moderna de um evento

marcado no calendaacuterio e assim conforme veremos anaacutelogo a um ponto de encontro

entre a ordem do tempo e a ordem da natureza Cada um desses clatildes alega descender

de um uacutenico ancestral comum correspondente a um soacute totem ao redor do qual a

histoacuteria lendaacuteria a identidade e o proacuteprio nome do grupo encontram seu eixo

fundamental ldquoPoderiacuteamos mesmo nos perguntar se esses chefes miacuteticos espeacutecie de

semideuses satildeo submetidos agrave reencarnaccedilatildeordquo chega a questionar Durkheim40 Com

seus liacutederes reencarnados ou natildeo (nessa forma elementar que seria crenccedila paralela agrave

metempsicose dos antigos) o objetivo de todos os ritos positivos para o socioacutelogo

francecircs eacute bastante claro eles servem agrave reparaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos e dos grupos

Do ponto de vista dos celebrantes ligar o passado do ancestral agrave identidade do

presente eacute o mesmo afinal de contas que unir o indiviacuteduo agrave coletividade41

Como os alimentos para nossa vida fiacutesica ndash diria Durkheim em mais uma de

suas ceacutelebres metaacuteforas naturalistas ndash os ritos representativos satildeo necessaacuterios para o

ldquobom funcionamento de nossa vida moralrdquo 42 E eles se expressam de uma forma

simples atraveacutes de um aspecto exterior bastante familiar agraves sociedades seculares o da

recreaccedilatildeo Durkheim parece mesmo insinuar que todas as festas que todo o aparato

de entretenimento possuem em si uma origem religiosa embora ressalte que os ritos

representativos (ou o culto positivo) e as recreaccedilotildees coletivas natildeo formem

necessariamente o mesmo fenocircmeno Em uma passagem que natildeo seria nada estranha

ao supracitado Simon Linguet Durkheim alega que a recreaccedilatildeo laica faz o rito passar

do comemorativo ao ldquocorrobbori vulgaire simples regozijo puacuteblico que natildeo tem mais

nada de religioso e ao qual todo mundo pode participar indistintamenterdquo43 Ou seja

sem um officiant ndash sem uma direccedilatildeo que aponte ao passado do ancestral ndash o rito deixa

de produzir identidade e alteridade de reparar moralmente um grupo a partir da

qui preacutecegravedent suffisent agrave montrer quel est le caractegravere de ces ceacutereacutemonies ce sont des drames niais drsquoun

genre tout particulier ils agissent ou du moins on croit qursquoils agissent sur le cours de la naturerdquo

DURKHEIM Eacutemile Les formes eacuteleacutementaires de la vie religieuse Le systegraveme toteacutemique en Australie

Paris Les Presses universitaires de France 1968 (1921) cinquiegraveme eacutedition 647 pages Collection

Bibliothegraveque de philosophie contemporaine p 355 Grifos meus 40 ldquoOn peut mecircme se demander si ces chefs mythiques sorte de demi-dieux sont soumis agrave la

reacuteincarnationrdquo Idem p 357 41 Idem respectivamente p 353 361 42 ldquobon functionnement de notre vie moralerdquo Idem p 364 43 ldquocorrobbori vulgaire simple reacutejouissance publique qui nrsquoa plus rien de religieux et agrave laquelle tout le

monde peut indiffeacuteremment prendre partrdquo Ibidem 363

34

segregaccedilatildeo e da agregaccedilatildeo Estariacuteamos agora em um ponto no qual ldquotodos participam

porque sua proacutepria ideia contempla todas as pessoasrdquo44 Seria esse um dos motivos

pelos quais uma Ordonnace du comiteacute de police de lrsquoHotel-de-ville ainda em janeiro

de 1790 proibiu o uso de maacutescaras e fantasias45

Celebraccedilatildeo fuacutetil carnavalesca ou anocircmala essa palavra persiste a relaccedilatildeo

entre comemoraccedilatildeo e entretenimento eacute documentada por qualquer dicionaacuterio Passar

de um a outro da comemoraccedilatildeo identitaacuteria ao jubilo popular eacute um processo

recorrente ldquoVamos aacute festa e deixemo-nos de historiasrdquo dizia Herculano46 A funccedilatildeo

do celebrante (officiant) que para os aboriacutegenes era a de admitir a solidariedade entre

o homem e o animal para a reproduccedilatildeo da espeacutecie totecircmica continuaria sendo a de

organizar os diferentes grupos pela orientaccedilatildeo do passado comum de representar a

continuidade a partir de uma origem miacutetica em uma festa presente com data marcada

Natildeo deixemos as histoacuterias pois neste valle de lagrymas elas satildeo ao mesmo tempo

uma moral e uma cosmologia47 Para os nativos da Austraacutelia tratava-se de um

movimento no qual o homem imita o animal no qual ele se identifica Essa ldquogrande

forccedila moralrdquo capaz de produzir a coesatildeo por um sistema prescritivo e reproduzir com

ela a proacutepria sociedade eacute para Durkheim a proacutepria ldquoforccedila coletivardquo 48 Em um culto

ciacutevico recheado por vezes pelas accedilotildees de reenactement os homens imitam ndash diriam

os celebrantes ndash outros ldquograndes homensrdquo Essa forccedila coletiva de objetivo moral

poderia ser relacionada jaacute em termos contemporacircneos ao que chamamos de memoacuteria

coletiva

44 ldquo() everyone participates because its very idea embraces all peoplerdquo BAKHTIN M Rabelais and

His World Bloomington 1984 p 5 45 ldquoFauxrdquo MARAT LrsquoAmi du peuple ou le Publiciste parisien jornal politique er impartial 70 3 Fev

1790 8 apud TREacuteVIEN op cit p 36 Treacutevien estuda a Festa da Federaccedilatildeo como um ritual

carnavalesco Para uma abordagem mais ampla que vecirc toda a Revoluccedilatildeo Francesa como um grande

carnaval conferir JOHNSON J H Versailles mette les Halles masks carnival and the French

Revolution In Representations 73 2001 46 Ao qual ele completa Devagar devagar Eacute justamente porque isto eacute uma historia grave sisuda

erudita que eu natildeo me havia de metter abrutadamente na narraccedilatildeo sem deixar averiguada esmiuccedilada e

fixada a data precisa e irrecusavel do meu recontamento Sabem o que eacute uma data Uma data eacute depois

de uma questatildeo de orthographia do talho e feitura de uma judia a que os nossos velhos chamavam

uma aljuba e depois de um phalansterio a que os dictos velhos chamariam uma sandice a cousa mais

importante que conheccedilo neste valle de lagrymasrdquo HERCULANO op cit Idem 47 ldquo() crsquoest une morale et une cosmologie em mecircme temps qursquoune histoirerdquo DURKHEIM op cit p

357 Sobre o ldquovalle de lagrymasrdquo ver a uacuteltima expressatildeo na nota imediatamente supracitada 48 Idem p 368

35

12 Entre a memoacuteria coletiva e os costumes

Em 1925 Maurice Halbwachs ex-aluno de Henri Bergson publicou seus

Cadres Sociaux de la Meacutemoire A premissa baacutesica desse estudo jaacute demonstrando o

quatildeo proacuteximo o autor havia se tornado de Eacutemile Durkheim alegava ser dentro da

sociedade que ldquoo homem adquire suas lembranccedilas as lembra e como dizemos as

reconhece e as localizardquo 49 Eacute nesse sentido argumenta Halbwachs que existe uma

ldquomemoacuteria coletivardquo e em sua base grupos que a organizam transmitem e tornam

possiacuteveis as suas lembranccedilas Mais interessado na bios do que na histoacuteria ndash na

experiecircncia vivida em detrimento da experiecircncia passada ndash os Quadros Sociais

receberiam criacuteticas ainda em 1925 vindas de um colega da universidade de

Estrasburgo Marc Bloch

O ponto principal das observaccedilotildees de Bloch centrava-se no problema da

transmissatildeo da memoacuteria coletiva O fundador dos Annales lamentava o fato de

Halbwachs ter abordado senatildeo de forma muito geneacuterica o problema da tradiccedilatildeo e dos

costumes centrais em especial quando do estudo das formas de reproduccedilatildeo e

reorientaccedilatildeo dos valores presentes nas sociedades preacute-modernas europeias ldquoComo o

indiviacuteduordquo indagava Bloch ldquoconserva e encontra suas lembranccedilasrdquo ldquoComo a

sociedade conserva e encontra as suasrdquo tal era o tom de suas cobranccedilas50

Tome-se por exemplo a sociedade religiosa cristatilde a

penitecircncia do fiel se alimenta tanto dos ritos

constantemente renovados quanto de memoacuterias

particularmente daquelas que falam da vida do Salvador

mas a maioria dos ritos seratildeo apenas formas vazias

caso eles natildeo comemorem ou natildeo simbolizem o

percurso de Deus ou paralelamente o de seus santos O

tesouro histoacuterico ou lendaacuterio do cristianismo se

transmite de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo sobretudo por

intermeacutedio dos ritos 51

49 ldquo() cest dans la socieacuteteacute que normalement lhomme acquiert ses souvenirs quil se les rappelle et

comme on dit quil les reconnaicirct et les localiserdquo HALBWACHS Maurice Les cadres sociaux de la

meacutemoire Paris Feacutelix Alcan 1925 Collection Les Travaux de lrsquoAnneacutee sociologique p 7 ldquordquo 50 BLOCH Marc Meacutemoire Collective Tradition et Coutume In Revue de synthegravese historique T40

N14 Paris 1925 (12) p 78 51 ldquoPrenons par example la socieacuteteacute religieuse chreacutetienne la pieacuteteacute du fidegravele se nourrit agrave la fois de rites

sans cesse renouveleacutes et de souvenirs particuliegraverement de ceux qui portent sur la vie du Sauveur mais

la plupart des rites ne seraient que des formes vides srsquoils ne commeacutemoraient ou ne symbolisaient la

carriegravere du Dieu ou accessoirement celle de ses saints et par ailleurs le treacutesor historique ou leacutegendaire

du christianisme se transmet de geacuteneacuteration en geacuteneacuteration surtout par lrsquointermeacutediaire des ritesrdquo Idem p

76 Grifos meus

36

O autor de Os Reis Taumaturgos ndash livro publicado aliaacutes um ano antes ndash

conhecia melhor do que ningueacutem o papel dos ritos na transmissatildeo das memoacuterias

cristatildes se eles natildeo comemorarem o Cristo natildeo relembrarem seu exemplo seja dos

evangelhos seja da via-cruacutecis sua funcionalidade reprodutora ndash e mais ainda

ressignificadora ndash estaria ameaccedilada Tanto a memoacuteria individual quanto a memoacuteria

coletiva natildeo pareciam para Marc Bloch conservar o passado como insinuava a sua

leitura dos Quadros Natildeo ldquoela se encontra e se reconstroacutei sem cessar sempre falando

do presente Toda memoacuteria eacuterdquo afinal ldquoum esforccedilo52rdquo Halbwachs pelo contraacuterio

havia afirmado quando de sua distinccedilatildeo entre rito e crenccedila que embora os primeiros

pudessem ser do ponto de vista formal ldquoos elementos mais estaacuteveis da religiatildeordquo com

os anos foram deslocados de seus significados originais53 Estaria o socioacutelogo

desconsiderando a dimensatildeo criativa de seus quadros sociais em favor de uma visatildeo

por demais secular das representaccedilotildees coletivas contemporacircneas

Sem duacutevida que hoje em dia e desde muito tempo o fiel

israelita que come o cordeiro pascal natildeo pensa celebrar

as memoacuterias dos ancestrais que escaparam do Faraoacute que

o catoacutelico tatildeo pouco familiarizado com os misteacuterios de

sua religiatildeo ao ver o padre levantar a hoacutestia natildeo reflete

sobre a palavra do Evangelho ldquoEste eacute meu corpo tomai

e comei () este eacute meu sanguerdquo Essa eacute

incontestavelmente a interpretaccedilatildeo presente e hoje

tradicional desses ritos Mas ela se confunde de fato

com seu significado primordial54

Para Bloch eacute claro essas consideraccedilotildees natildeo invalidavam a ldquohipoacutetese diretivardquo

que Halbwachs havia proposto aos historiadores Tratava-se apenas de reorientar a

problemaacutetica a partir do ponto de vista da erudiccedilatildeo histoacuterica de cobrar que a

sociologia estude tambeacutem as incoerecircncias ou mesmo os ldquoerros da memoacuteria coletivardquo

52 Idem p 77 53 ldquoLe rite est peut-ecirctre leacuteleacutement le plus stable de la religion puisquil se ramegravene agrave des opeacuterations

mateacuterielles constamment reproduites et dont les rituels et les corps de precirctres assurent luniformiteacute

dans le temps et dans lespace A lorigine les rites reacutepondirent sans doute au besoin de commeacutemorer

un souvenir religieux par exemple chez les Juifs la fecircte pascale et chez les chreacutetiens la communion

rdquo HALBWACHS 1925 p 180 54 ldquoEst-ce bien vrai Nul doute que de nos jours et depuis longtemps lrsquoIsraeacutelite pieux qui mange

lrsquoagneau pascal ne pense ceacuteleacutebrer le souvenir des ancecirctres qui fuirent devant Pharaon ou que le

catholique tant soit peu instruit des mystegraveres de sa religion en voyant le precirctre eacutelever lrsquohostile ne

songe agrave la parole eacutevangeacutelique lsquoPrenez ceci est mon corps ceci est mon sangrsquo Telle est

inconstablement lrsquointerpretation preacutesente et aujourdrsquohui traditionelle de ces rites mais se condond-

elle en effet avec leur signification premiegravererdquo BLOCH 1925 p 80

37

55 Acaso as fontes natildeo mostravam ao medievalista que na Europa ocidental ldquodurante

muitos seacuteculos a vida juriacutedica natildeo encontrou outra acolhida senatildeo nas fundaccedilotildees dos

costumesrdquo56 E que se essas sociedades ldquosonharam viver de sua memoacuteriardquo essa

memoacuteria agrave revelia de todo esforccedilo natildeo era mais do que um ldquoespelho infielrdquo virado

para o presente57

A resposta de Halbwachs foi tanto sutil quanto sectaacuteria Em sua mais famosa

obra poacutestuma ele fez questatildeo de distinguir a histoacuteria da memoacuteria ldquoA histoacuteria pode se

representar como a memoacuteria universal do gecircnero humanordquo escreveu ldquomas tal coisa

natildeo existerdquo A verdadeira musa da histoacuteria para o socioacutelogo natildeo era Clio mas outra

filha de Mnemosine Poliacutemnia em referecircncia a sua multiplicidade narrativa ldquoNatildeo

existe memoacuteria universalrdquo completa Halbwachs ldquotoda memoacuteria coletiva tem por

suporte um grupo limitado no tempo e no espaccedilordquo 58 A histoacuteria por sua vez aparece

como um quadro de mudanccedilas incessantes com o olhar do historiador no todo

observando de regiatildeo em regiatildeo todas as reaccedilotildees que se produzem e interagem

dentro do corpo social Os historiadores ldquocompreendem que () eacute preciso que se

desenvolva uma seacuterie de transformaccedilotildees no qual a histoacuteria se apresenta como a soma

(no sentido do caacutelculo integral) ou o resultado finalrdquo 59 Trata-se de uma visatildeo

exterior aos grupos ldquoA memoacuteria coletivardquo pelo contraacuterio ldquoeacute o grupo visto de

dentrordquo em uma curta duraccedilatildeo em um espaccedilo natildeo muito maior do que o de uma vida

humana em geral transcorrido em um percurso carente de grandes modificaccedilotildees Ela

apresenta aos grupos uma visatildeo de si mesmos que vai se alterar ao longo do tempo

mas ainda assim de uma forma que os quadros se reconheccedilam nas suas ldquoimagens

sucessivasrdquo 60

55 ldquoM Halbwachs nrsquoeacutetudiera-t-il pas un jour les erreurs de la meacutemoire collective rdquo Ibidem p 80 56 BLOCH 1925 p 81 57 ldquoEssenciallement traditionnalistes les socieacuteteacutes du moyen acircge ont fait le recircve de vivre de leur

meacutemoire mais cette meacutemoire nrsquoa eacuteteacute des eacutegards qursquoun miroir infideacutelerdquo BLOCH 1925 p 81 58ldquoCertes la muse et lhistoire est Polymnie Lhistoire peut se repreacutesenter comme la meacutemoire

universelle du genre humain Mais il ny a pas de meacutemoire universelle Toute meacutemoire collective a

pour support un groupe limiteacute dans lespace et dans le tempsrdquo HALBWACHS Maurice La Memoacuteire

Collective 1950 p 57 Ateacute onde pude conferir Halbwachs natildeo cita nominalmente as consideraccedilotildees de

Marc Bloch 59ldquo() ceux qui eacutecrivent lhistoire et qui remarquent surtout les changements les diffeacuterennotces

comprennent que pour passer de lun agrave lautre il faut quil se deacuteveloppe une seacuterie de transforma-tions

dont lhistoire naperccediloit que la somme (au sens du calcul inteacutegral) ou le reacutesultat final Tel est le point

de vue de lhistoire parce quelle examine les groupes du dehors et quelle embrasse une dureacutee assez

longuerdquo HALBWACHS 1950 p 59 60 ldquoLa meacutemoire collective au contraire cest le groupe vu du dedans et pendant une peacuteriode qui ne

deacutepasse pas la dureacutee moyenne de la vie humaine qui lui est le plus souvent bien infeacuterieure Elle

38

Em ldquoum quadro de si mesmordquo o grupo visto de dentro esse espelho antes

imperfeito para Bloch torna-se bastante fiel em Halbwachs Mesmo alheio aos

protestos da erudiccedilatildeo o raciociacutenio intuitivo encontra em seu diaacutelogo com Marc

Bloch um dos contornos arquetiacutepicos que vatildeo marcar os estudos culturais do poacutes-

guerra o problema da identidade ldquoO grupo no momento em que vislumbra seu

passado sente-se o mesmo e toma consciecircncia de sua identidade atraveacutes do tempordquo 61

Perguntar-se se essa natildeo seria uma ldquofalsa consciecircnciardquo natildeo parece uma questatildeo

relevante para Halbwachs como percebemos em sua obra poacutestuma ele nunca se

mostrou interessado em ouvir os apelos de seu colega em relaccedilatildeo aos ldquoerros da

memoacuteria coletivardquo Afinal sendo um quadro sempre o mesmo as mudanccedilas tecircm de

ser apenas aparentes ldquoas transformaccedilotildees ou seja os fatos que satildeo produzidos dentro

do grupo se resolvem eles mesmo em similitudesrdquo 62 O passado da memoacuteria coletiva

definitivamente natildeo eacute um paiacutes estrangeiro

A diferenccedila fundamental nas posiccedilotildees de Maurice Halbwachs para aquelas que

vatildeo pulular na segunda metade do seacuteculo XX portanto natildeo era exatamente marcada

pela ausecircncia de centralidade da questatildeo identitaacuteria Geacuterard Namer em 1994

prefaciando a reeditaccedilatildeo dos Quadros Sociais da Memoacuteria para a Albin Michel jaacute

comentava a relaccedilatildeo entre a postura antinazista de Halbwachs com seus insigths sobre

memoacuteria e identidade espeacutecie de remeacutedio contra a propaganda antisionista (que

maltratava o passado do povo judeu ao mesmo tempo justificando a eliminaccedilatildeo de

seu futuro) o investimento na experiecircncia sensiacutevel tornou-se ndash para um quadro cuja

tradiccedilatildeo ditava ser ldquoo povo da memoacuteriardquo ndash um dos caminhos para garantir seu

presente63 A diferenccedila fundamental entre a postura de Halbwachs para digamos a de

Michel Pollack eacute que ndash embora o socioacutelogo membro do Instituto de Histoacuteria do

preacutesente au groupe un tableau de lui-mecircme qui sans doute se deacuteroule dans le temps puisquil sagit de

son passeacute mais de telle maniegravere quil se reconnaisse toujours dans ces images successivesrdquo Idem p 60 61 Idem p 59 62ldquoPuisque le groupe est toujours le mecircme il faut bien que les changements soient apparents les

changements cest-agrave-dire les eacuteveacutenements qui se sont produits dans le groupe se reacutesolvent eux-mecircmes

en similitudes puisquils semblent avoir pour rocircle de deacutevelopper sous divers aspects un contenu

identique cest-agrave-dire les divers traits fondamentaux du groupe lui-mecircmerdquo HALBWACHS 1950 p

60 63 ldquoLembrem-se [Zakhor] dos dias do passado considerem as geraccedilotildees haacute muito passadas Perguntem

aos seus pais e estes lhes contaratildeo aos seus liacutederes e eles lhes explicaratildeordquo (Deuteronocircmio 327)

NAMER Geacuterard Postface In HALBWACHS Maurice Les Cadres sociaux de la meacutemoire 1994

Para uma perspectiva que trabalha o holocausto como plano de trabalho pedagoacutegico para a memoacuteria

ver TORNER Carles Shoah une pedagogie de la meacutemoire Les Eacuteditions de lrsquoAtelier Paris 2001

Principalmente cap 2

39

Tempo Presente parta de premissas em nada estranhas agraves da Memoacuteria Coletiva ndash os

resultados de seus estudos apontam para os esquecimentos e conflitos memoriais

Sim ldquoa memoacuteria colabora para o sentimento de continuidade e de coerecircncia de

uma pessoa ou de um grupo em sua reconstruccedilatildeo de sirdquo 64 Mas seu resultado dentro

do corpo social natildeo tende necessariamente para a harmonia A memoacuteria natildeo eacute um

objeto esculpido passivamente pelo esquecimento como uma rocha erodida pela brisa

e pelas aacuteguas marinhas Sua forma eacute resultado de debates tensotildees e batalhas nessa

imagem endossada por Beatriz Sarlo de um ldquopassado sempre conflituosordquo 65 A

superaccedilatildeo do funcionalismo ou ao menos de sua crenccedila na tendecircncia agrave

harmonizaccedilatildeo foi bem explicitada por Pollak ldquonatildeo se trata mais de lidar com os fatos

sociais como coisasrdquo escreveu o socioacutelogo ldquomas de analisar como os fatos sociais se

tornam coisas como e por quem eles satildeo solidificados e dotados de duraccedilatildeo e

estabilidaderdquo 66

Hoje mais do que nunca tornou-se uma espeacutecie de consenso afirmar que

relembrar o passado eacute elemento crucial para qualquer senso de identidade Maurice

Halbwachs no entanto interessado no caraacuteter muacuteltiplo das memoacuterias coletivas jaacute

havia se apercebido que modos diferentes de lembranccedilas criavam uma tendecircncia agrave

fragmentaccedilatildeo das identidades Para ele a multiplicidade dos grupos era tambeacutem uma

multiplicidade de duraccedilotildees coletivas67 Esse insight saudado por Seixas como uma

intuiccedilatildeo halbwachiana sobre o problema da diversidade tatildeo caro em nosso mundo

contemporacircneo permite-nos pensar o conjunto de memoacuterias coletivas como uma

federaccedilatildeo de grupos especiacuteficos que produzem (ou demandam a produccedilatildeo de) seus

passados68 Grupos que por vezes em episoacutedios de secessatildeo podem entrar em

conflito e protagonizar ldquoverdadeiras batalhasrdquo de memoacuteria como nos ensinou

Michael Pollak

Mas de que maneira Halbwachs perceberia essas batalhas Se natildeo vejamos A

memoacuteria coletiva no singular encamparia todo o espaccedilo de experiecircncias de uma

64 POLLAK Michael Memoacuteria e identidade social In Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro vol 5 n

10 1992 p 5 65 SARLO Beatriz Tempo passado cultura da memoacuteria e guinada subjetiva Satildeo Paulo Companhia

das Letras Belo Horizonte UFMG 2007 p 9 66 POLLAK Michael Memoacuteria esquecimento silecircncio In Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro vol 2

n 3 1989 p 2 67 Ver HALBWACHS 1950 p 78 68 Nas palavras da autora ldquoEssa fragmentaccedilatildeo essa verdadeira lsquotendecircncia federativa da memoacuteriarsquo

delineia justamente um dos fenocircmenos maiores de nossa atualidade base de formaccedilatildeo das

subjetividades muacuteltiplas e diferenciadasrdquo SEIXAS Jacy Alves de Halbwachs e a memoacuteria-

reconstruccedilatildeo do passado In Histoacuteria Satildeo Paulo 20 2001 p 107

40

geraccedilatildeo Se os grupos sociais satildeo diversos e com eles os meios de lembrar

precisamos responder francamente pela negativa Por isso desde muito cedo o

socioacutelogo percebeu a instrumentalidade de se utilizar o conceito no plural

reconhecendo a multiplicidade dos quadros sociais da memoacuteria Sendo assim

qualquer processo identitaacuterio individual passaria por pelo menos um punhado de

grupos famiacutelia ambiente educacional trabalho religiatildeo etc determinando uma

dezena de olhares ndash ou ldquopontos de vistardquo ndash sobre a memoacuteria coletiva Seu resultado

natural deveria ser (caso acessemos a mesma premissa que Durkheim utilizou para a

divisatildeo social do trabalho) a produccedilatildeo da solidariedade social No entanto um

conflito entre por exemplo trabalho e religiatildeo levaria sob a loacutegica funcionalista natildeo

apenas a um entrecruzamento de pontos de vista mas a um sentimento de perda de

identidade esfacelamento de valores ciacutevicos religiosos morais causas enfim

relacionadas por Eacutemile Durkheim a certos episoacutedios de suiciacutedio69 Trata-se de um

ponto realmente natildeo explorado por Maurice Halbwachs Como jaacute havia apontado

Marc Bloch havia pouco espaccedilo para recriaccedilatildeo ressignificaccedilatildeo ndash e diriacuteamos noacutes

para conflitos ndash dentro dos Quadros Sociais da Memoacuteria Pela loacutegica funcionalista

batalhas de memoacuteria natildeo eram mais do que sintomas de uma patologia social trataacutevel

como explicou Durkheim em A Divisatildeo do Trabalho Social atraveacutes de

regulamentaccedilotildees morais e juriacutedicas sobre o trabalho70

Regrar o mundo do trabalho pela lei e pela moral encontraria uma soluccedilatildeo

moderna e corporativa derivada ndash ou reinventada ndash na longa duraccedilatildeo do problema dos

costumes base do rito positivo do reencontro da coletividade no ancestral divinizado

pela performance do officiant cujo princiacutepio e fim era a reparaccedilatildeo moral da

sociedade Se o exemplum romano aparecia por vezes como um meio de transmissatildeo

dos costumes dos ancestrais (mos maiorum) ndash reparados pelo bom uso dos paralelos

instrumentalizados pelo ergon do orador ndash poderiacuteamos entender as comemoraccedilotildees

modernas como formas de comunicaccedilatildeo geracional da memoacuteria coletiva Mais do que

simples transmissatildeo como indicava Marc Bloch em que medida a comemoraccedilatildeo

69 Mais especificamente ao tipo de ldquosuicide anomiquerdquo Ver DURKHEIM Eacutemile Le suicide Paris

Presses Universitaires de France 2007 p 288 70 ldquoUne reacuteglementation morale ou juridique exprime donc essentiellement des besoins sociaux que la

socieacuteteacute seule peut connaicirctre elle repose sur un eacutetat dopinion et toute opinion est chose collective

produit dune eacutelaboration collective Pour que lanomie prenne fin il faut donc quil existe ou quil se

forme un groupe ougrave se puisse constituer le systegraveme de regravegles qui fait actuellement deacutefautrdquo

DURKHEIM Eacutemile De la division du travail social Livre I Paris Les Presses universitaires de

France 1967 (1893) p 18

41

insinua a reproduccedilatildeo a subversatildeo ou o consentimento dos valores identitaacuterios

estabelecidos Como elas ajudaram ou ajudam a nos pensar como naccedilatildeo

13 Comemoraccedilatildeo como dever de esquecimento

Nem religiatildeo nem raccedila sequer a liacutengua menos ainda a geografia O que

definiria a naccedilatildeo ndash ou diriacuteamos noacutes a identidade nacional ndash era para Ernest Renan

algo de uma ordem muito mais sublime O autor da famosa conferecircncia de 11 de

marccedilo de 1882 entusiasta da filologia admitiria que a liacutengua sim convida agrave uniatildeo

Mas existe algo bem mais forte do que ela trata-se da vontade71 Ora a raccedila ndash

qualquer coisa que se faz e se desfaz ndash natildeo parecia possuir aplicaccedilatildeo poliacutetica A

geografia por sua vez forneceria tatildeo somente um substrato apresentando um campo

de luta e de trabalho As religiotildees mesmo elas natildeo se mostravam mais de impossiacutevel

convivecircncia dentro de uma mesma unidade poliacutetica Para Renan herdeiro intelectual

de Jules Michelet a naccedilatildeo era uma alma72 Como alma funda-se em um princiacutepio

espiritual Princiacutepio dividido entre passado e presente em duas partes ldquouma eacute a

posse comum de um rico legado de lembranccedilas a outra uma concessatildeo atual o

desejo de viver em conjunto a vontade de continuar a fazer valer a heranccedila que

recebemos indivisiacutevelrdquo 73 Indivisiacutevel eacute claro caso o horizonte ainda seja observado

pelas lentes da experiecircncia ldquoO culto dos ancestraisrdquo declara sem tardar ldquoeacute dentre

todos o mais legiacutetimordquo 74 Convocado o ldquoplebiscito de todos os diasrdquo ainda histoacuteria e

cosmologia uniam-se para que ldquouma grande agregaccedilatildeo de homens espiacuteritos sadios e

coraccedilotildees caacutelidos criassem uma consciecircncia moral que chamamos de naccedilatildeordquo 75

Moral do latim mores plural de mos de onde os antigos romanos derivavam

sua mos maiorum significa em sentido estrito algo ldquorelativo aos costumesrdquo Ora

mesmo a ideia de ldquonaccedilatildeo-contratordquo por mais propositalmente contraposta que

estivesse ao chamado historicismo romacircntico alematildeo ndash com sua insistecircncia na heranccedila

71ldquoIl y a dans lrsquohomme quelque chose de supeacuterieur agrave la langue crsquoest la volonteacuterdquo RENAN Ernest

Qursquoest-ce qursquoune nation Confeacuterence fait en Sorbonne le 11 mars 1882 Calman Leacutevy 1882 pp 7 72O jovem Renan escreveu a Michelet ldquo() personne nrsquooccupe dans ma penseacutee autant de place que

vous personne ne me repreacutesente drsquoune maniegravere plus intime les reacuteflexions qui forment ma nourriture

habituellerdquo RENAN Ernest Carta a Jules Michelet(Paris 12 de Junho de 1848) In Correspondance

1846-1871 Paris 1926 Calmann-Leacutevy Eacutediteurs 3 p 8 73 RENAN Idem p 9 74 RENAN Idem Ibidem 75 ldquoUne grande agreacutegation drsquohommes saine drsquoesprit et chaude de coeur creacutee une conscience morale

qui srsquoappelle une nation RENAN Idem p 10 Grifos meus

42

da raccedila no territoacuterio e na liacutengua ndash natildeo parecia conseguir fugir do problema dos

costumes Ou devemos ignorar que mesmo Renan insinuava uma espeacutecie de religiatildeo

ciacutevica com base no culto dos ancestrais Insistir na questatildeo dos costumes para definir

as caracteriacutesticas comuns de um povo natildeo era em nada eacute claro incomum ainda no

seacuteculo XIX Alexis de Tocqueville em suas reflexotildees sobre a Ameacuterica e os Estados

Unidos jaacute se perguntava ldquoo que satildeo todos esses haacutebitos essas opiniotildees esses usos

essas crenccedilas senatildeo aquilo que eu chamei de costumesrdquo Comparando o

desenvolvimento do leste e do oeste sua conclusatildeo natildeo era menos moralista ldquosatildeo

particularmente os costumes portanto que fazem os americanos dos Estados Unidos

() capazes de suportar o impeacuterio da democraciardquo O uso de criteacuterios morais para a

definiccedilatildeo das caracteriacutesticas de um povo tambeacutem era promissor como criacutetica aos

determinismos naturais e geograacuteficos Como o faria mais tarde e a seu modo Renan

Tocqueville lamentava que na Europa ldquoexageramos a influecircncia que exerce a posiccedilatildeo

geograacutefica do paiacutes sobre a duraccedilatildeo das instituiccedilotildees democraacuteticas Atribuiacutemos muita

importacircncia agraves leis muito pouca aos costumesrdquo76

Mas o moderno impeacuterio dos costumes enquanto consciecircncia moral natildeo

dependeria tatildeo somente da lembranccedila Seu criteacuterio natildeo era tatildeo soacutelido como foi para

os antigos com uma moral superior divinizada nos exemplos de virtude natildeo o

caminho moderno era cada vez menos fabuloso e por isso mesmo mais vago ao

menos no que diz respeito aos criteacuterios de unidade nacional ldquoO progresso dos estudos

histoacutericosrdquo escreveu Renan ldquoeacute com frequecircncia um perigo para a nacionalidaderdquo As

investigaccedilotildees historiograacuteficas narravam descreviam lembravam a todo instante os

pormenores ndash sem raridade violentos e imorais ndash da formaccedilatildeo poliacutetica de todas as

naccedilotildees Por isso a consciecircncia moral de que nos falava Renan envolvia algo mais do

que a commemoratio dos ancestrais ldquoa essecircncia de uma naccedilatildeordquo escreveu ldquoeacute que

todos os indiviacuteduos tenham muitas coisas em comum e tambeacutem que todos tenham

esquecido de certas coisasrdquo77 Afinal bem esquecer algumas coisas ou ldquomesmo o erro

histoacuterico eacute um fator essencial na criaccedilatildeo de uma naccedilatildeordquo Assim podemos entender

76 ldquoQursquoest-ce que toutes ces habitudes ces opinions ces usages ces croyances sinon ce que jrsquoappeleacute

des moeurs () Ce sont donc particuliegraverement les moeurs qui rendent les Ameacutericains des Eacutetats-Unis

seuls entre tous les Ameacutericains capables de supporter lrsquoempire de la deacutemocratie () Ainsi lrsquoon

exagegravere en Europe lrsquoinfluence qursquoexerce la position geacuteographique du pays sur la dureacutee des instituitions

deacutemocratiques On attribue trop drsquoimportance aux lois trop peu aux moeursrdquo TOCQUEVILLE Alexis

de De la deacutemocratie en Ameacuterique I (deuxiegraveme partie) Les classiques des sciences sociales version

numeacuterique par Jean-Marie Tremblay pp 132-133 77 ldquoOr lrsquoessence drsquoune nation est que tous les individus aient beaucoup de choses en commun et aussi

que tous aient oublieacute bien de chosesrdquo RENAN Idem p 4

43

essa ceacutelebre frase em Renan aquilo que chamamos de identidade nacional pertence agrave

ordem da memoacuteria sujeita ao esquecimento ndash ou mesmo a adulteraccedilatildeo ndash de acordo

com os princiacutepios morais de sua vontade poliacutetica Em outras palavras a consciecircncia

moral advoga quando necessaacuterio por um dever de esquecimento

A proacutepria noccedilatildeo contemporacircnea de ldquoidentidaderdquo de uso recorrente desde o

mundo do poacutes-guerra jaacute foi questionada em seus usos e abusos78 Para Richard

Handler o conceito refere-se a trecircs aspectos da experiecircncia humana primeiro aos

indiviacuteduos tambeacutem aos grupos ou coletividades imaginadas de modo individualizado

e por fim ao relacionamento entre os dois ou seja agraves maneiras pelas quais as

pessoas satildeo imaginadas a assimilar elementos identitaacuterios coletivos em suas

identidades pessoais (de onde podemos deduzir a identidade nacional) Cada cultura

no entanto tende a lidar com esses problemas a seu proacuteprio modo Handler

antropoacutelogo ligado agrave Universidade da Virgiacutenia cita o exemplo do povo Hopi que

diferentemente dos ocidentais ldquonatildeo imaginam pensamentos presos no espaccedilo interior

de seus cracircniosrdquo Ao contraacuterio esses nativos do sudoeste dos Estados Unidos

consideram que os ldquopensamentos humanos agem rotineiramente como uma forccedila no

mundo exteriorrdquo Se um Hopi prestar atenccedilatildeo a uma queda d`aacutegua um arbusto ou um

milharal ele vai naturalmente supor que seu pensamento ndash ou ele mesmo ndash navega

dentro desses espaccedilos de seus olhos agrave agravegua de sua mente ao peacute de milho Definir o

ser pelo fluxo de consciecircncia significa em outras palavras que em certas culturas a

individualidade natildeo eacute definida em termos de barreiras fiacutesicas ou corporais79 Em outro

exemplo Handler chega a mencionar os balineses descritos por Geertz para quem os

detalhes idiossincraacuteticos de uma biografia ao menos na acepccedilatildeo ocidental natildeo seriam

compreensiacuteveis Afinal dentre eles natildeo existe a ideia de um sentido essencial

contiacutenuo do nascimento agrave morte para a personalidade de um indiviacuteduo

Mesmo a Europa do iniacutecio do seacuteculo XIX como vimos era estranha ao

conceito de identidade presente nos estudos sociais poacutes-halbwachianos Handler

propotildee demonstrar isso atraveacutes da obra de Jane Austen todos os seis romances da

autora comeccedilam por uma narraccedilatildeo extensa das conexotildees familiares dos personagens

78 Aqui sigo HANDLER Richard Is ldquoIdentityrdquo a Useful Cross-Cultural Concept In GILLIS John

R (org) Commemorations the politics os national identity Princeton University Press New Jersey

1994 79 ldquo() unlike Westerners who imagined their thoughts to be enclosed in an inner space contained

within their skulls the Hopi (southwestern United States) consider that human thought acts routinely as

a force in the outer world ()ldquoA Hopi would naturally suppose that his thought (or he himself) trafficts

with the () corn plant () that he is thinking aboutrdquo Idem p 31

44

de onde deriva a seguir a relaccedilatildeo entre senhores e servos Na ausecircncia do conceito de

identidade as caracteriacutesticas morais dos personagens seus trejeitos e idiossincrasias

eram definidas a partir do relacionamento com outros seres humanos80 Em

Tocqueville no que diz respeito agrave constituiccedilatildeo ldquoidentitaacuteriardquo do povo norte-americano

observamos uma certa dualidade ndash senatildeo mesmo um diaacutelogo ou uma contradiccedilatildeo ndash

entre os costumes (mœurs) historicamente construiacutedos e a imagem do ldquocoraccedilatildeo

humanordquo (cœur humain) de caraacuteter aparentemente universal e natural81

Natildeo eacute a toa que em Ernest Renan a naccedilatildeo era ainda um projeto Criado por

uma consciecircncia moral pelo anseio de viver junto o futuro era exposto por uma

vontade poliacutetica alicerccedilada no ideal do progresso e defendido pelas armas da retoacuterica

deliberativa em um plebiscito-de-todos-os-dias Hoje os conceitos de identidade ndash e

por extensatildeo de identidade nacional ndash teriam se tornado evidecircncias Ainda uma vez

a ordem do tempo parecia sentenciar sua justiccedila Clara e distinta a identidade

nacional por vezes parece o resultado de um equiliacutebrio entre a memoacuteria coletiva tal

como descrita por Maurice Halbwachs e a amneacutesia coletiva de que nos falou

Benedict Anderson82 De todo modo temos um resultado que foi tambeacutem uma

invenccedilatildeo a passagem entre simples costumes em comum a uma nacionalidade

compartilhada exigiu o reagrupamento de toda uma sorte de experiecircncias tarefa que

soacute se tornou possiacutevel atraveacutes de um investimento do Estado e de grupos da sociedade

civil organizada em politicas puacuteblicas de memoacuteria e de esquecimento Pois se uma

naccedilatildeo ndash mais do que um territoacuterio uma liacutengua uma religiatildeo um regime ndash ldquoeacute uma

memoacuteriardquo como afirmou Pascal Ory deveriacuteamos acrescentar que ela tambeacutem parece

ser um conjunto de diversos esquecimentos83

80 HANDLER op cit p 35-36 81 Cito duas passagens ldquo() tous les proceacutedeacutes qui se deacutecouvrent tous les besoins qui viennent agrave naicirctre

tous les deacutesirs qui demandent agrave se satisfaire sont des progregraves vers le nivellement universel Le goucirct du

luxe lamour de la guerre lempire de la mode les passions les plus superficielles du cœur humain

comme les plus profondes semblent travailler de concert agrave appauvrir les riches et agrave enrichir les

pauvres TOCQUEVILLE op cit Introduction E a seguir ldquoIl y a en effet une passion macircle et leacutegitime

pour leacutegaliteacute qui excite les hommes agrave vouloir ecirctre tous forts et estimeacutes Cette passion tend agrave eacutelever les

petits au rang des grands mais il se rencontre aussi dans le cœur humain un goucirct deacutepraveacute pour leacutegaliteacute

qui porte les faibles agrave vouloir attirer les forts agrave leur niveau et qui reacuteduit les hommes agrave preacutefeacuterer leacutegaliteacute

dans la servitude agrave lineacutegaliteacute dans la liberteacuterdquo Idem p 49 Grifos meus 82 ANDERSON Benedict Imagined Communities Reflections on the Origin and Spread of

Nationalism ver Ed New York Verso 1991 Principalmente capiacutetulo 11 83 ORY Pascal 1992 p 8 ldquo() il apparaicirct clairement que plus encore qursquoun territoire une langue une

religion ou un reacutegime une nation crsquoest une meacutemoirerdquo

45

14 Era das comemoraccedilotildees 10

No final do seacuteculo XIX a onda dos centenaacuterios banhou praias dos dois lados

do Atlacircntico Na Ameacuterica do Norte em 1876 comemorou-se a declaraccedilatildeo da

independecircncia Na Franccedila em 1889 foi a vez do centenaacuterio da revoluccedilatildeo francesa

Seguiram-se os festejos do descobrimento da Ameacuterica em 1892 e depois as do

proacuteprio seacuteculo jaacute no ano de 1900 Essa onda na verdade ganhou aspecto de um

verdadeiro tsunami nem a longiacutenqua Austraacutelia sequer um paiacutes independente deixou

de comemorar em 1888 o aniversaacuterio de sua colonizaccedilatildeo

Em Portugal ainda em 1880 assistimos agrave celebraccedilatildeo promovida por uma

comissatildeo de imprensa do tricentenaacuterio de Camotildees Naquele ano Teoacutefilo Braga

incitava o clamor popular nas paacuteginas do Commercio de Portugal enquanto que

Luciano Cordeiro atraveacutes da Sociedade de Geografia de Lisboa planejava os

festejos84 Tendo em matildeos o Catheacutecisme positiviste ndash que seria traduzido para o

portuguecircs por Miguel Lemos um pouco mais tarde em 1888 ndash os intelectuais

lusitanos entendiam que atualizar a densidade mneumocircnica definindo explicitamente

o que se deve lembrar e implicitamente o que se deve esquecer era afinar o espiacuterito

nacional com o ldquoprogresso da humanidaderdquo 85 Sua via era didaacutetica e jaacute tinha sido

expressa pelo mestre ldquomoralizer la puissance mateacuterielle agrave laquelle le monde reacuteel est

neacutecessairement soumisrdquo86 Com a doutrina em seus braccedilos os mais notoacuterios

disciacutepulos de Augusto Comte conspiravam para ldquoatravessar a histoacuteria e imprimir com

convicccedilatildeo o tiacutetulo de Grande na fronte dos que fizeram por merececirc-lordquo87

Como officiant do culto positivo o intelectual por meio da imprensa ou de

comissotildees extraordinaacuterias encarnaria os ancestrais da naccedilatildeo evocaria seus siacutembolos

seus valores morais definindo a identidade e apresentando-a agraves novas geraccedilotildees a

partir do caraacuteter dos grandes homens da histoacuteria nacional Afinal ldquoSempre que uma

forccedila extranha e desconhecida agitar e suspender a nacionalidade Portuguezardquo

84 Conferir JOAtildeO Maria Isabel op cit p 3 85 Sobre o progresso relacionado agraves comemoraccedilotildees ver O Positivismo Revista de Philosophia II vol

Porto Livraria Universal 1880 p 517 apud JOAtildeO op cit p 11 86 ldquo() moralizer la puissance mateacuterielle agrave laquelle le monde reacuteel est neacutecessairement soumisrdquo COMTE

Auguste Sommaire exposition de la religion universelle en treize entreacutetiens sistemaacutetiques entre une

Femme et um Precirctre de lrsquohumaniteacute Paris Place de lacuteEstrape 1891 (ediccedilatildeo original de 1845) p 21

Cartilha baacutesica da religiatildeo da humanidade esse texto define datas comemorativas e as associa aos

grandes homens da histoacuteria Eacute apresentado na forma de um diaacutelogo entre um padre e uma mulher os

dois ldquopoderes moderadoresrdquo da sociedade 87 LAFFITTE Pierre Les grands types drsquohumaniteacute Appreacuteciation systeacutematique des principaux agents

de lrsquoeacutevolution humaine Paris E Leroux 1875 p 70

46

escreveu Joaquim Nabuco sobre Camotildees ldquoa attraccedilatildeo viraacute do teo genio satellite que se

desprendeo della e que resplandece como a lua no firmamento da terra para agitar e

revolver os oceanosrdquo88

15 Dos homens ceacutelebres aos grandes homens

Em novembro de 1783 com o fim da Guerra de Independecircncia o general

Washington escreve seu farewell to the Nation Sem aceitar soldo algum durante os

oito anos de serviccedilos ao exeacutercito tendo gasto sua proacutepria fortuna no esforccedilo

revolucionaacuterio o comandante continental entrega o posto ao primeiro sinal de paz No

ano anterior ele jaacute havia ldquocom uma mistura de grande surpresa e assombrordquo lido

recusado e prometido repreender com severidade qualquer insinuaccedilatildeo a respeito de

sua permanecircncia no poder Sim haviam aqueles que dentre as fileiras do proacuteprio

exeacutercito sonhavam em vecirc-lo rei89

Mas a imagem do bom homem aposentado senhor de Mont-Vernon a lavrar

os campos e escrever cartas agrave sombra de sua figueira natildeo apenas afastaria da

hagiografia civil georgiana qualquer cor tiracircnica como tambeacutem tornaria Washington

ndash pai fundador da naccedilatildeo ndash exemplo de democracia Ou acaso antes de se tornar o

primeiro presidente ele jaacute natildeo havia sido eleito o primeiro Cincinnatus do novo

mundo90 Mesmo agrave revelia sem sequer ter estado em nenhuma reuniatildeo antes disso

ele foi feito presidente da reacutecem instituiacuteda Ordem de Cincinnatus Logo dentro da

cosmologia republicana e atraveacutes de uma verdadeira tradiccedilatildeo biograacutefica ele deveria

88 NABUCO Joaquim Camotildees Discurso pronunciado aacute 10 de junho de 1880 Rio de Janeiro G

Leuzinger amp Filhos 1880 p 29 89 ldquo() acredito que podemos logo dizer que existem fortes argumentos para admitirmos o tiacutetulo de rei

()rdquo GUIZOT Vie de Washington Correspondence et eacutecrits de Washington pub Drsquoapregraves lrsquoeacutedition

ameacutericaine et preacuteceacutedeacutes drsquoune introduction Paris Charles Gosselin 1870 p179 A correspondecircncia

entre George Washington e o Col Nichola na qual o coronel propotildee o reinado ao general foi

publicada jaacute por John Marshal em sua obra escrita entre 1804 e 1807 Ela eacute referecircncia unacircnime em toda

a hagiografia civil georgiana Ver MARSHALL John Vie de George Washington geacuteneacuteral en chef des

armeacutees ameacutericaines durant la guerre de lrsquoindependance et preacutesident des Eacutetats-Unis drsquoAmeacuterique

Paris Dentu 1807 Vol 5 p 8 SAWYER Joseph Dillaway George Washington 1732-1799 Bi-

centennial ed Boston Thomas W Best 1927 v 2 p 86-87 WILSON Woodrow George Washington

fondateur des Eacutetats-Unis Paris Payot 1927 (1893) 90 ldquoPor testemunhar respeito agrave memoacuteria desse ceacutelebre romano querdquo escreveu seu primeiro bioacutegrafo

ldquoretirando-se do comando de seus exeacutercitos entregou-se aos trabalhos da agriculturardquo a nata do

oficialato revolucionaacuterio ndash sob a lideranccedila do general Knox ndash fundou a Sociedade de Cincinnatus

MARSHALL John op cit p 13-14 Sobre Cincinnatus a fonte claacutessica eacute LIVIUS Titus Histoire

romaine de Tite Live Paris Panckoucke 1830-1833 Ver principalmente Vol I I30 e Vol II III20-29

47

se tornar aos olhos de muitos a personificaccedilatildeo do sistema poliacutetico norte-americano91

O culto dos founding fathers eacute particularmente importante na histoacuteria das

comemoraccedilotildees norte-americanas George Washington como escreveu Lyn Spillman

foi ldquoconsistentemente reverenciado como heroacutei nacional desde a deacutecada de 1780rdquo

ldquoRetratos celebraccedilatildeo de aniversaacuterios capelas reliacutequias livros artigosrdquo eram tatildeo

comuns que como dizia-se agrave eacutepoca o primeiro presidente americano ldquonatildeo era um

homem mas um Deusrdquo92

E o que fazer com um Deus senatildeo reservar-lhe espaccedilo de adoraccedilatildeo em solo

sagrado Natildeo deveria ser necessaacuterio insistir nos laccedilos entre os pais fundadores e a

Franccedila ldquoPergunte ao habitante de qualquer naccedilatildeo em qual paiacutes da terra ele gostaria de

viverrdquo refletiu Thomas Jefferson e ele responderaacute certamente em sua proacutepria ndash mas

ldquoqual seria a sua secunda opccedilatildeo A Franccedilardquo93 Em 2 de Abril de 1791 na sequecircncia

da morte do Conde de Mirabeau a Assembleia Nacional Constituinte decretou que a

Igreja de Sainte Geneviegraveve patrono de Paris fosse convertida em um Panteatildeo de

divindades civis Os primeiros corpos a chegar foram de santos seculares como

Voltaire e Rousseau cujos restos mortais cruzaram o poacutertico sob o qual hoje se pode

ler a inscriccedilatildeo ldquoaos grandes homens o reconhecimento da paacutetriardquo 94

ldquoChamo de grandes homensrdquo escreveu Voltaire em carta a Thieacuteriot ldquotodos

aqueles que se destacaram no uacutetil e no agradaacutevelrdquo 95 Na Franccedila ainda em 1758 a

academia jaacute tinha mesmo decidido trocar o curso de eloquecircncia pelo curso de elogio

dos homens ceacutelebres da naccedilatildeo fato que segundo Jean-Claude Bonnet lavrou ldquoa ata

de nascimento oficial do culto dos grandes homensrdquo 96 Pouco mais tarde Marat

anotaria em diaacuterio um esboccedilo de sua proacutepria tipologia entre os ilustres registrou os

papeacuteis do filoacutesofo do legislador do orador do guerreiro do negociante e do

91 Sobre Washington natildeo ter participado das reuniotildees da sociedade antes de sua nomeaccedilatildeo para presidi-

la ver FREEMAN Douglas Southall George Washington a Biography Volume Five Victory with

the help of France New York Charles Scribnerrsquos Sons 1952 p 453 92 SPILLMAN Lyn Nation and commemoration Creating national identities in the United States and

Australia Cambridge University Press New York 1997 p 23 93 ldquoAsk the travelled inhabitant of any nation in what country on earth would you rather livemdash

Certainly in my own where all my friends my relations and the earliest and sweetest affections and

recollections of my life Which would be your second choice Francerdquo JEFFERSON Thomas The

Writings of Thomas Jefferson 1892 ed Paul L Ford vol 1 p 149 94 Sobre o Pantheacuteon ver OZOUF Mona Le Pantheacuteon lrsquoEacutecole Normale des morts In Nora Pierre

Lieux de meacutemoire Vol 1 La Reacutepublique Paris Gallimard 1984 pp 139-166 E tambeacutem BONNET

Jean-Claude Naissance du Pantheacuteon Paris Fayar 1998 95 ldquoJrsquoappelle grands hommesrdquo resumiraacute Voltaire ldquotous ceux qui ont excelleacute dans lrsquoutile ou dans

lrsquoagreableacuterdquo VOLTAIRE Lettre agrave Thieacuteriot Juillet 1735 apud HARTOG Franccedilois Anciens modernes

sauvages Paris Galaade Eacuteditions 2005 p 158 96 BONNET op cit p 10

48

magistrado97 Mas esse culto natildeo foi revelado dos ceacuteus Ele eacute terreno secular e sua

genealogia poderia ser traccedilada pelo menos ateacute os primeiros seacuteculos de nossa era

atraveacutes da obra de Plutarco mesmo que a ldquonaturezardquo dos homens comemorados tenha

se modificado substancialmente desde entatildeo

Plutarco escrevera vidas Seu projeto de biografias paralelas um romano na

sequecircncia de um grego ao lado de suas Obras Morais compunha um corpus uacutenico na

antiguidade98 Natildeo as Vidas plutarquianas natildeo eram exatamente histoacuteria mas uma

espeacutecie de filosofia moral aplicada ldquoporque a narraccedilatildeo dos fatos aticcedila no espectador a

vontade de agirrdquo Elas funcionavam como uma pintura ou talvez uma escultura de

todo modo compondo ldquoo retrato de uma almardquo 99 Retrato que deveria ser fiel

captando a condiccedilatildeo humana atraveacutes de seu sempre peculiar conjunto de elementos

nobres e imperfeitos lembrando com Platatildeo que ldquoas grandes naturezas satildeo capazes

de grandes viacutecios e de grandes virtudesrdquo

Nem toda palavra presente nas Vidas era no entanto traccedilada pela natureza

humana A Fortuna o imponderaacutevel divinizado mostrava-se uma protagonista

inevitaacutevel necessaacuteria e ativa Como bem resumiu Franccedilois Hartog as biografias

plutarquianas se interessam muito particularmente ldquopelas estrateacutegias face agrave Fortunardquo

afinal ldquoquem se opotildee a ela quem a acompanha e quem por ela eacute abandonadordquo 100 A

beleza moral acaba se tornando o resultado indireto da vontade dos homens ilustres

satildeo as suas respostas face ao imponderaacutevel que determinam o tipo de caraacuteter que vai

imortalizaacute-los Seguindo esse raciociacutenio ainda estamos no terreno da moral mas

tambeacutem no do poliacutetico ndash com seu habitual cadinho de anedotas conselhos frases de

efeito as Vidas Paralelas tornam-se um tipo particular de dieta uma espeacutecie de

coleccedilatildeo de exemplos que a seu tempo ajudaram a formular uma memoacuteria comum

grego-romana Uma memoacuteria e uma moral Mesmo que sua atenccedilatildeo agrave bios faccedila da

tarefa de classificar Plutarco como historiador uma empresa tanto difiacutecil em nada

impediu Adriana Zangara de ver no bioacutegrafo do mundo antigo a expressatildeo maacutexima da

historia magistra vitae Atrair a atenccedilatildeo dos leitores por meio da emoccedilatildeo causada

pelas imagens exemplos e paralelos dos e entre os nomes ilustres do passado realizar

97 Citado por OZOUF Mona 1984 pp 149-166 98 Sobre Plutarco tomo por guia HARTOG 2005 principalmente pp 127-160 99 Respectivamente ldquola narration des faits (historia tou ergou) entraicircne chez le spectateur la volonteacute

drsquoagirrdquo PEacuteRICLES 1224 A seguir ldquoEacutecrire une vie crsquoest faire ldquole portrait drsquoune acircmerdquo CATAtildeO o

Jovem 24 1 apud HARTOG 2005 p 133 Ver notas 15 e 17 pp 301 100 HARTOG 2005 p 137

49

o julgamento impliacutecito de seus viacutecios e de suas virtudes e erigir um edifiacutecio moral

comum a gregos e romanos ndash natildeo era esse o seu trabalho101

O objetivo das Vidas natildeo era tatildeo somente falar do passado mas aconselhar

fazer refletir sobre os costumes e corrigi-los quando necessaacuterio Ao lado das Obras

Morais do mesmo autor as biografias plutarquianas foram especialmente valorizadas

no final da Idade Meacutedia Plutarco era lembrado como o preceptor de Trajano

conquistador da Daacutecia e seus escritos formularam a base de um sem nuacutemero de

cartilhas pedagoacutegicas conhecidas hoje como espelhos dos priacutencipes Ainda no seacuteculo

XIII o monge bizantino Maxime Planude jaacute tinha transcrito glosado e divulgado a

obra de Plutarco102 Sua redescoberta no ocidente deu-se durante o pontificado de

Avignon quando em 1373 Simone Atumano realizou a primeira traduccedilatildeo latina do

tratado Do controle da coacutelera texto que vinte anos depois seria reescrito em um latim

mais pomposo por Coluccio Salutati Para Erasmo ldquose Soacutecrates trouxe a filosofia do

ceacuteu para a terra Plutarco eacute aquele que a introduziu no coraccedilatildeo das casas ateacute o quarto

de dormirrdquo103 Afinal essas cartilhas morais ndash como escreveu Jacques Amyot em sua

traduccedilatildeo das Obras dedicada a Charles IX ndash ldquotendem a conduzir ao mesmo fim que os

livros dos santosrdquo Uma leitura cristatilde de Plutarco natildeo era apenas improvaacutevel mas

loacutegica haacute muito que a vida dos homens canonizados tornou-se exemplo ndash segui-los

era o caminho da virtude104

Talvez o melhor caso dos usos de Plutarco durante a primeira modernidade

venha da obra de Michel de Montaigne Nascido em uma rica famiacutelia de comerciantes

de Bordeaux ele seria educado e alfabetizado segundo os preceitos humanistas caros

agraves elites renascentistas europeias Seu pai Pierre Eyquem fez questatildeo que aprendesse

o latim como primeira liacutengua ldquoquanto a mimrdquo escreveu Montaigne em um de seus

Ensaios ldquoeu tinha seis anos antes de compreender o francecircs mais que o perigordin ou

o aacuterabe e sem meacutetodo sem livro sem gramaacutetica ou preceito sem chicote e sem

laacutegrimas tinha aprendido o latimrdquo 105 A educaccedilatildeo claacutessica rendeu-lhe natildeo apenas um

101 ZANGARA Adriana Voir lrsquohistoire Theacuteories anciennes du reacutecit historique Paris EHESS 2007 p

13 102 HARTOG 2005 p 146 103 Idem p 147 104 Hartog percebe uma leitura cristatilde de Plutarco em Racine lida a partir das anotaccedilotildees escritas agraves

margens de seu exemplar das Vidas ldquoas notas mais precisas vem propor uma leitura-traduccedilatildeo cristatilde de

uma frase ou uma expressatildeo eacute assim que tuchecirc (Fortuna) daimocircn (democircnio) ou pronoia

(clarividecircncia) podem em todo caso serem glosados em ldquoProvidecircnciardquo HARTOG 2005 p 156 105 MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Cap XXV Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 125 Pinguin

Books Satildeo Paulo 2010

50

profundo apreccedilo pelos antigos como tambeacutem a vocaccedilatildeo aos estudos humanistas

Parafraseando e respondendo agrave famosa imagem de Beacuternard de Chartres ndash ldquosomos

como anotildees apoiados nos ombros de gigantesrdquo ndash Montaigne diria que ldquoeacute preciso ter

costados bem firmes para decidir andar ombro a ombro com essas pessoasrdquo 106 E que

largas costas natildeo foram cultivadas desde a infacircncia a suportar a carga do latim

Especialmente dado agrave leitura dos moralistas romanos chegou a admitir que natildeo havia

travado relaccedilotildees ldquocom nenhum outro livro soacutelido a natildeo ser Plutarco e Secircneca em que

me abasteccedilo como as Danaidesrdquo107 Seus ensaios aliaacutes formariam um corpus

ldquoconstruiacutedo com os despojosrdquo desses dois autores108

Entre Secircneca e Plutarco entretanto o mais estimado era com certeza o uacuteltimo

o ldquonosso Plutarcordquo como ele com frequecircncia o chama era o seu homem Para

Montaigne ldquoPlutarco eacute um filoacutesofo que nos ensina a virtuderdquo109 ldquoDe todos os autores

que conheccedilordquo o autor das Vidas seria ldquoaquele que melhor misturou a arte e a

natureza o julgamento e a erudiccedilatildeordquo Esse ldquotatildeo perfeito juiz das accedilotildees humanasrdquo110 E

como julgar os feitos dos homens senatildeo conhecendo suas histoacuterias e frequentando

por meio delas as ldquograndes almas dos melhores seacuteculosrdquo111 Mas a riqueza do

trabalho de Plutarco era vista pelo autor dos Ensaios natildeo tanto como conclusatildeo

poreacutem mais como ferramenta ndash uacutetil e agradaacutevel ndash que nos convida a continuar seu

trabalho de embelezamento moral do mundo ldquoHaacute em Plutarcordquo escreveu Montaigne

ldquomuitos discursos extensos digniacutessimos de serem conhecidosrdquo poreacutem existem

tambeacutem ldquomil outros que ele simplesmente aflorou sinaliza soacute com o dedo por onde

106 MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Cap XXV Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 86 lsquoNous sommes

comme de nains jucheacutes sur des eacutepaules de geacuteantrsquo eacute expressatildeo atribuiacuteda a Bernard de Chartres poreacutem

fixada por Jean de Salisbury em seu Le Metalogicon preacutesentation et traduction par Franccedilois Lejeune

Laval Presses de lrsquouniversiteacute de Laval Paris 2009 (1159) (III 4) No original ldquoDicebat Bernardus

Carnotensis nos esse quasi nanos gigantium humeris insidentes ut possimus plura eis et remotiora

videre non utique proprii visus acumine aut eminentia corporis sed quia in altum subvenimur et

extollimur magnitudine giganteardquo Na traduccedilatildeo francesa de Dumez Herveacute ldquo Bernard de Chartres disait

que nous sommes comme des nains jucheacutes sur les eacutepaules de geacuteants de sorte que nous pouvons voir

plus de choses qursquoeux et des choses plus eacuteloigneacutees qursquoils ne le pouvaient non pas que nous jouissions

drsquoune acuiteacute particuliegravere ou par notre propre taille mais parce que nous sommes porteacutes vers le haut et

exhausseacutes par leur taille gigantesque ldquo HERVEacute Dumez Sur les eacutepaules des geacuteants Quasi nanos

gigantium humeris insidentes) Le Libellio dAegis volume 5 2009 ndeg 2 eacuteteacute pp 1-3 Diversos

autores da primeira modernidade a utilizaram glosaram imitaram e parafrasearam Sobre essa questatildeo

ver tambeacutem CIBOIS Philippe laquo Sur les eacutepaules des geacuteants raquo La question du latin 25 novembre 2012

Disponiacutevel em httpenseignement-latinhypothesesorg6359 acesso em 18102013 107 Idem Ibidem 108 MONTAIGNE Os Ensaios Livro II Cap XXXII Defesa de Secircneca e Plutarco p 284 109 MONTAIGNE op cit p 280 110 Respectivamente MONTAIGNE op cit Livro III Sobre os coxos pp 467 e Livro II Sobre a

embriaguez pp 223 111 MONTAIGNE op cit Livro I Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 100

51

iremos se isso nos agrada e por vezes se contenta em dar apenas um toque no ponto

mais vivo de um assuntordquo Diante da breviedade marca do estilo plutarquiano

ldquoprecisamos arrancaacute-los dali e pocirc-los na vitrinerdquo112

Tomar para si uma menccedilatildeo casual uma passagem que sentiu tatildeo somente um

leve toque da autoridade do artista e colocaacute-la em evidecircncia ndash aqui temos um

procedimento caro agrave constituiccedilatildeo das memoacuterias exemplares Um exemplo como

interpretou Jean Starobinski eacute a ldquofigura que colocado agrave parte (ex-emplum) mas

chamando agrave imitaccedilatildeo e agrave generalizaccedilatildeo pode confortar o indiviacuteduo dentro de sua

singularidade virtuosardquo Mais do que isso ele torna-se um instrumento criador de

identidades ldquofazendo esforccedilo para manter em estado de semelhanccedila face agravequeles que

fizeram os milagres da constacircnciardquo conclui Starobinski ldquoele se exerceraacute e se tornaraacute

identico a si mesmordquo 113

Figura que obteacutem sucesso em unir passado e futuro a escolha de um exemplo

a ser conjurado eacute tarefa medida e levada a cabo eacute claro pelos interesses dos dias de

hoje como escreveu Louis Marin a arte do historiador agrave la Plutarco consistiria em

saber ldquodeslocar o epidiacutectico dentro do narrativordquo ndash ou trazer o uacutetil ao presente no

sentido da retoacuterica demonstrativa114 Encontrar elementos proveitosos no passado era

a tarefa primordial da erudiccedilatildeo Seu corolaacuterio era o estabelecimento de paralelos natildeo

mais entre gregos e romanos mas entre antigos e modernos

A praacutetica de erigir paralelos entre vidas ilustres comeccedilaraacute entretanto a ser

questionada ao menos na Europa apoacutes 1680 Os reis absolutos os mais dignos

candidatos a terem suas vidas cantadas e comparadas natildeo poderiam por sua proacutepria

natureza possuir exemplos Louis XIV para Charles Perrault transformou-se dentre

todos os reis sejam os de hoje sejam os do passado no ldquomais perfeito modelordquo115 A

impossibilidade de paralelismos exemplares foi acompanhada pela elevaccedilatildeo de uma

nova categoria a qual viria a substituir em certos contextos os homens ilustres ou

mesmo os heroacuteis ldquoO grande homemrdquo ou o homem que encarna o espiacuterito de seu

tempo natildeo precisaria mais sair nem de Plutarco nem da antiguidade sequer do

passado recente ele pode ser um contemporacircneo

Categoria poliacutetica voltada para o presente os grandes homens ainda insistiam

outrossim em marchar no ritmo da moral Gabriel Bonnot abade de Mably fez

112 Idem p 101 113 STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982 p 29 114 MARIN Louis Le Portrait du Roi Paris Minuit 1981 p 46-51 apud HARTOG 2005 p 152 115 PERRAULT Charles Le Siegravecle de Louis le Grand 1687 apud HARTOG 2005 p 156

52

questatildeo de ressaltar em seus ensinamentos ao priacutencipe de Parma que a histoacuteria ainda

deveria ldquoser uma escola de moral e de poliacuteticardquo 116 Mably em outra ocasiatildeo jaacute nos

falou muito de Plutarco ldquomodelo perfeito quando a questatildeo eacute escrever a vida de um

homem ilustrerdquo 117 Ele continuava sendo o nosso homem mesmo que o uacutetil e o

agradaacutevel do topos antigo junto a seus exemplos estivessem desestabilizados por

uma nova relaccedilatildeo com o tempo que reconhecia a aceleraccedilatildeo e valorizava o presente

em nome de projetos de futuro A forccedila moral das biografias plutarquianas como

criteacuterio da perfectibilidade mantinha-se viva no coraccedilatildeo das casas e no quarto de

dormir

Tatildeo tarde quanto em 1847 Joatildeo Manuel Pereira da Silva rendia suas

referecircncias a Plutarco Sua sequecircncia de biografias de brasileiros ilustres teve como

tiacutetulo original justamente O Plutarco brazileiro A criacutetica literaacuteria nacional natildeo

tardou por defender seu projeto por mais que tenha sido considerado por muitos

deveras ambicioso ldquoos costumes os fatos histoacutericos a cronologia as ideacuteias morais e

filosoacuteficas da eacutepoca a influecircncia dos homens ceacutelebres tudo isso Plutarco estudou

sobre ()rdquo118 Na Franccedila de Volney e Acher dentre muitos outros interessados na

educaccedilatildeo infantil ndash nessa dimensatildeo privada da utilidade dos exemplos ndash natildeo

cansavam de reafirmar o programa da histoacuteria mestra da vida mesmo que no caso do

autor das Liccedilotildees de histoacuteria ela pudesse ser desvirtuada a partir do mal uso dos

paralelos Afinal a imitaccedilatildeo quando baseada em comparaccedilotildees viciosas teria tornado

possiacutevel o terror Retirar a moral da histoacuteria ainda estava para muitos fora de

cogitaccedilatildeo119

Entre os dias 5 e 22 de maio de 1840 Thomas Carlyle historiador escocecircs

realiza meia duacutezia de conferecircncias dedicadas uma a uma agraves seis categorias de

grandes homens que ele havia classificado o heroacutei como divindade como profeta

como poeta como sacerdote como homem de letras e ao final como rei ou

revolucionaacuterio120 Sua visatildeo sobre o heroacutei (sinocircnimo para ele de Great Men) estava

116 MABLY Gabriel Bonnot de De l`eacutetude de l`histoire Paris Fayard 1988 pp 12-13 117 ldquoJe vous parlerai plus affirmativement de Plutarque qui est un modegravele parfait quand ilnest que

question que deacutecrire la vie dun homme illustrerdquo MABLY Gabriel Bonnot Abbeacute de De la maniegravere de

eacutecrire l`histoire Alexandre Jombert Jeune Paris 1786 p 14 118 Gazeta Oficial do Brasil 1811847 Citada por Pereira da Silva Ver ENDERS Armelle ldquoO

Plutarco Brasileirordquo A Produccedilatildeo dos Vultos Nacionais no Segundo Reinado In Estudos Histoacutericos

2000 25 p 46 nota 8 p 60 119 VOLNEY CF Leccedilons d`histoire Gaulmier Paris Garnier 1980 p 71-115 apud HARTOG 2005

p 163 120 CARLYLE Thomas On Heroes Hero-Worship and the Heroic in History Reprint of the Sterling

Edition Echo Library 2007

53

intrinsicamente relacionada agrave histoacuteria ou melhor dizendo agrave ldquoHistoacuteria Universalrdquo a

histoacuteria ldquodo que o homem alcanccedilou neste mundordquo que eacute no fundo ldquoa Histoacuteria do

Grande Homem que aqui trabalhourdquo Sem o grande homem pois natildeo temos histoacuteria

universal ndash sem seus pensamentos seus sentimentos natildeo haveriam feitos ou eventos a

serem lembrados121

Dentre todos os seis tipos de grandes homens descritos e comentados por

Carlyle o uacuteltimo deles o heroacutei como rei tem sua importacircncia ressaltada Ele eacute o

ldquocomandante entre os homensrdquo e por isso pode ser reconhecido como ldquoo mais

importante dos grandes homensrdquo Categoria final de heroacutei o liacuteder eacute ldquopraticamente o

sumaacuterio de todas as vaacuterias figuras do heroiacutesmordquo122 Ele eacute poeta sacaredote homem de

letras e possui em si algo de divino Polecircmico em seu tempo O historiador

certamente sabia disso pois ldquocoisas muito lamentaacuteveis escritas cerca de cem anos

atraacutes ou mais sobre o lsquoDireito divino dos Reisrsquo adornam hoje sem leitores as

bibliotecas puacuteblicas deste paiacutesrdquo Natildeo era aliaacutes a esse tipo de argumento que Carlyle

se referia Pois escolher um homem descanccedilar um pedaccedilo redondo de metal em sua

cabeccedila chamaacute-lo de rei ndash nada disso vai conjurar a virtude divina Sua postura apesar

de religiosa era tanto mais secular ldquoExiste um Deus neste mundo e o consentimento

divino () olha por toda regra e obediecircncia dos atos morais do homemrdquo ldquoNatildeo existe

ato mais moral entre os homensrdquo ndash conclui Carlyle ecoando o De Officis de Ciacutecero ndash

ldquodo que a regra e a obediecircnciardquo Dessa maneira o ldquoverdadeiro rei como guia do

praacutetico sempre guarda algo de Pontiacutefice de guia espiritual do qual se levanta toda

praacuteticardquo 123 Enquanto os heroacuteis miacuteticos e os antigos profetas eram registros de uma

121 Respectivamente ldquoFor as I take it Universal History the history of what man has accomplished in

this world is at bottom the History of the Great Men who have worked hererdquo E a seguir ldquoThe

thoughts they had were the parents of the actions they didrdquo CARLYLE Thomas op cit Lecture I The

Hero as Divinity Odin Paganism Scandinavian Mythology 122 ldquoThe Commander over Men he to whose will our wills are to be subordinated and loyally

surrender themselves and find their welfare in doing so may be reckoned the most important of Great

Men He is practically the summary for us of all the various figures of Heroism Priest Teacherrdquo

Idem Lecture VI The Hero As King Cromwell Napoleon Modern Revolutionism 123 Respectivamente ldquoMuch sorry stuff written some hundred years ago or more about the Divine

right of Kings moulders unread now in the Public Libraries of this countryrdquo () ldquoTo assert that in

whatever man you chose to lay hold of (by this or the other plan of clutching at him) and claps a round

piece of metal on the head of and called Kingmdashthere straightway came to reside a divine virtue so

that he became a kind of god and a Divinity inspired him with faculty and right to rule over you to all

lengths thismdashwhat can we do with this but leave it to rot silently in the Public Librariesrdquo () ldquoThere

is a God in this world and a Gods-sanction or else the violation of such does look out from all ruling

and obedience from all moral acts of men There is no act more moral between men than that of rule

and obediencerdquo () ldquoThe true King as guide of the practical has ever something of the Pontiff in

himmdashguide of the spiritual from which all practice has its rise This too is a true saying That the

King is head of the ChurchmdashBut we will leave the Polemic stuff of a dead century to lie quiet on its

bookshelvesrdquo Idem Lecture VI The Hero As King Cromwell Napoleon Modern Revolutionism

54

era longiacutencua o grande homem de Carlyle saudado pelo canto dos poetas e homens

de letras guiava seus comandados em direccedilatildeo ao futuro Ponta-de-lanccedila da aceleraccedilatildeo

do tempo essa expressatildeo jaacute tinha encontrado alguns anos antes eacute verdade debate

diverso do outro lado do Canal

Em 1828 a imagem dos grandes homens tomava forma na segunda liccedilatildeo do

curso de histoacuteria da filosofia ministrado por Victor Cousin Inspirado pelo idealismo

hegeliano Cousin acreditava que a condiccedilatildeo histoacuterica de um povo repousava na

siacutentese de todos os elementos que compotildee sua ldquovida interiorrdquo ldquoem sua liacutengua em sua

religiatildeo em seus costumes (moeurs) em suas artes em suas leis em sua filosofiardquo124

Essa siacutentese era tambeacutem uma representaccedilatildeo de si mesma a ldquoideiardquo diria Cousin

manifesta a existecircncia histoacuterica de um povo Assim como carrega as marcas da

ldquounidade do espiacuteritordquo sua expressatildeo material individualiza-se em um personagem

especiacutefico O grande homem de Cousin natildeo existe sem uma dupla condiccedilatildeo ser

perpassado pelo ldquoespiacuterito geral de seu povordquo e ao mesmo tempo expressar esse

espiacuterito de uma forma profundamente individual Hegel jaacute havia ensinado que a

relaccedilatildeo entre o geral e o particular ndash entre o desenvolvimento da ideia e a accedilatildeo

individual ndash seria moderada pela ldquoastuacutecia da razatildeordquo125 O grande homem entra em

cena acreditando ser o autor e o ator de si mesmo mas como espeacutecie de encarnaccedilatildeo

da ideia ele natildeo eacute mais do que a manifestaccedilatildeo de uma determinada etapa de

desenvolvimento do espiacuterito

Fazem a histoacuteria por certo mas a vontade dos grandes homens natildeo pode na

leitura de Cousin ser fixada como uacutenica dimensatildeo da agecircncia Ora ldquoo grande

homemrdquo lido no Cours ldquonatildeo eacute uma criatura arbitraacuteria que poderia ser ou natildeo ser eacute o

representante mais ou menos realizado que todo grande povo suscitardquo Nessa leitura

oitocentista natildeo satildeo mais as consequecircncias morais das estrateacutegias maquinadas diante

do imponderaacutevel que determinam portanto o caraacuteter do personagem ilustre Eacute a

unidade da diversidade do espiacuterito (a siacutentese de uma ldquovida interiorrdquo) que manifesta e

determina o desenvolvimento de um povo entendido como uma ideia a qual o grande

homem representa A beleza moral eacute claro continua presente embora natildeo deva

obediecircncia ao Deus cristatildeo mas agrave razatildeo divinizada Presos ainda ao mundo sublunar

124 ldquo() un peuple n`est un veacuteritable peuple qursquoagrave la condition d`exprimer une ideacutee qui passant dans

tous les eacuteleacutements dont se compose la vie inteacuterieure de ce peuple dans sa langue dans sa religion dans

ses moeurs dans ses arts dans ses lois dans sa philosophie lui donne une physionomie particuliegravererdquo

COUSIN Victor Introduction a lrsquohistoire de la philosophie Paris Imp Pillet Fils Aineacute Librarie

Acadeacutemique 1872 p 202 125 HEGEL GWF Leccedilons sur la philosophie de lrsquohistoire Traduccedilatildeo francesa Paris Vrin 1963 p 37

55

dos costumes ao ldquosentimento da necessidaderdquo ndash a consciecircncia de que o universo eacute um

sistema racional ldquoou seja a evidecircncia de sua missatildeordquo ndash escapa aos grandes homens

Eles parecem compreendecirc-lo senatildeo confusamente como se fizessem a histoacuteria

soubessem disso mas no fundo fossem peccedilas articuladas em um grande tabuleiro

pelos artifiacutecios da razatildeo126 Satildeo bobos como seriam para Durkheim aqueles que

julgassem encarnaacute-los em um rito positivo

Ainda assim esses personagens formavam como o fariam mais tarde para

Carlyle todo o conjunto de experiecircncias que temos a relatar ldquodai-me a seacuterie dos

grandes homens todos os grandes homens conhecidos e eu vos farei a histoacuteria do

gecircnero humanordquo 127 Hegel em 1806 refletiu sobre sua visatildeo de Napoleatildeo em uma

Iena ocupada ldquoeu vi o Imperador ndash essa alma do mundo ndash sair da cidade () Eacute

efetivamente uma sensaccedilatildeo maravilhosa ver tal indiviacuteduo que concentrado em um

ponto sob a cela do cavalo estende-se sobre o mundo e o dominardquo 128 Pouco importa

se ele o sabe pois no instante em que passava pelos olhos de Hegel o grande homem

era imagem do Absoluto

Para aleacutem da grandiloquecircncia do vocabulaacuterio hegeliano compartilhado pelo

ecletismo de Cousin a contribuiccedilatildeo do Cours para o debate sobre os grandes homens

eacute clara Ela marca uma ruptura uma passagem entre o topos antigo plutarquiano para

a dimensatildeo formadora da liberdade dos modernos a representaccedilatildeo O grande homem

natildeo eacute nada sem o seu povo natildeo pode ser nada sem representar sua liacutengua seus

costumes sua religiatildeo suas leis As marcas de identidade entre as massas descritas

por Cousin e os liacutederes que as representam poderiam ainda inspirar a imitaccedilatildeo de um

Julien Sorel Mas as experiecircncias comemorativas apontam para especificidades bem

mais conflituosas na formulaccedilatildeo de um panteatildeo nacional Os grandes homens quiccedilaacute

nas entrelinhas como figuras puacuteblicas do plebiscito-de-todos-os-dias contam votos

diferentes em cada parcela da populaccedilatildeo Desse ponto de vista desprovido da filosofia

da histoacuteria os grandes homens tornariam-se os deputados da federaccedilatildeo da memoacuteria

representantes plurais ancestrais ou natildeo de respectivos quadros sociais De exemplos

virtusos do passado a homens puacuteblicos do presente sua tarefa comemorativa

126 ldquoIl faut que le sentiment de la neacutecessiteacute c`est-agrave-dire l`eacutevidence de leur mission les frappe ils

semble comprendre confuseacutement sans cela ils agiraient comme de simples individus et qu`ils

n`auraient pas toute la puissance qui leur est neacutecessairerdquo COUSIN op cit p 209 127 ldquoDonnez-moi la seacuterie des grands hommes tous les grands hommes connus et je vous ferai l`histoire

du genre humainrdquo Idem p 207 128 GWFHegel Correspondance Paris Gallimard 1990 ti p 113-115 apud HARTOG 2005 p

165 Grifos meus

56

continuaria sendo a correccedilatildeo dos valores e a afirmaccedilatildeo da identidade mesmo que ndash

unindo passado presente e futuro ndash o faccedilam mediados pelo discurso do progresso da

civilizaccedilatildeo ou em uma expressatildeo por um projeto nacional

Antes de poderem legislar a memoacuteria de quaisquer grupos reivindicar seu

passado e servir de manancial identitaacuterio os grandes homens precisariam ser eleitos

No seacuteculo XIX o processo de canonizaccedilatildeo ciacutevica tem como etapa fundamental o

julgamento histoacuterico realizado pelo sacerdote secular De inegaacutevel sabor plutarquiano

as biografias no Brasil do IHGB possuiacuteam a funccedilatildeo do ldquoguia praacuteticordquo (natildeo muito

longe do sentido atribuiacutedo a eles por Carlyle) de servir como exemplo de

comportamento e estiacutemulo agrave emulaccedilatildeo129 Mas o seu reconhecimento estava longe de

ser uma imposiccedilatildeo do saber erudito ou da interpolaccedilatildeo puacuteblica do homem de letras

essas natildeo eram mais do que instacircncias cujas deliberaccedilotildees seriam comumente medidas

entre um determinado uso do passado e uma soluccedilatildeo de compromisso para com os

demais mecanismos poliacutetico-morais de enquadramento da memoacuteria Aniversaacuterios

centenaacuterios demais datas redondas a naturalizaccedilatildeo do calendaacuterio a partir do tempo

das efemeacuterides jaacute carrega em si o caraacuteter seletivo e a inevitabilidade do esquecimento

Em 4 de julho de 1889 os cem anos da morte de Claacuteudio Manuel da Costa ndash

jurista poeta e inconfidente ndash foram comemorados pelo Instituto Histoacuterico e

Geograacutefico Brasileiro Natildeo seria faacutecil integrar tal personagem dentro do panteatildeo de

papel nacional mas a reorientaccedilatildeo da revolta como precursora da liberdade nacional

fez por retiraacute-lo do acircmbito excusivamente republicano e entregaacute-lo agrave famiacutelia imperial

ldquoPara tantordquo escreveu Enders referindo-se ao discurso do historiador Joaquim

Norberto de Sousa Silva ldquoa alocuccedilatildeo que pronuncia na cerimocircnia transforma o

suiciacutedio de Claacutedio Manuel da Costa num ato poliacutetico na melhor tradiccedilatildeo romanardquo

Como maacutertir nacional o lugar de Claacuteudio Manuel da Costa no passado da naccedilatildeo ldquonatildeo

lhe rouba ningueacutem natildeo lhe pode ser disputado entre a cronologia dos fatos A

posteridade eacute a justiccedila da histoacuteria que julga em uacuteltima instacircncia e essa o sagra como o

129 Essa tese jaacute foi defendida por GUIMARAtildeES Manoel Luiz Salgado A disputa pelo passado na

cultura histoacuterica oitocentista no Brasil In CARVALHO Joseacute Murilo (Org) Naccedilatildeo e cidadania no

Impeacuterio novos horizontes Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo brasileira 2007 p 109 Maria da Gloacuteria de

Oliveira ndash em tese de doutorado dedicada precisamente ao problema biograacutefico na historiografia do

Brasil oitocentista ndash chega a afirmar que ldquo() em meio agraves vicissitudes da atmosfera poliacutetica brasileira

no uacuteltimo dececircnio dos oitocentos os pressupostos da historia magistra vitae continuavam vaacutelidos e

convenientesrdquo OLIVEIRA Maria da Gloacuteria de Escrever vidas narrar a histoacuteria a biografia como

problema historiograacutefico no Brasil oitocentista FGV Editora Rio de Janeiro 2011 p 60

57

nosso protomaacutertirrdquo130

A crise do Impeacuterio encontrou um ponto criacutetico na onda dos centenaacuterios Como

se sabe 1889 marca os cem anos da tomada da Bastilha Sob a eacutegide da vitoacuteria

decisiva de 1877 seguida dois anos depois pela queda dos uacuteltimos bastiotildees

conservadores ndash no senado e no Eliseu ndash os republicanos viram-se livres para

organizar o centenaacuterio da revoluccedilatildeo O regime de Sadi Carnot eleito em 1887 era

entretanto ainda muito jovem fraacutegil isolado e cercado por monarquias no concerto

das naccedilotildees europeias No cenaacuterio nacional teria que lidar tanto com escacircndalos de

corrupccedilatildeo quanto com a ameaccedila boulangista ndash o ldquogeneral revancherdquo promoveria uma

espetacular ascensatildeo atraindo votos de parcela consideraacutevel do eleitorado

republicano ao mesmo tempo em que conspirava em segredo com os monarquistas A

revoluccedilatildeo natildeo era ldquoum blocordquo senatildeo aos olhos daqueles que se consideravam seus

herdeiros legiacutetimos reverberando identidade a partir dela131 Comemoraacute-la era um

assunto sensiacutevel e transformaacute-la em consenso um mero projeto Projeto que

comeccedilaria ndash com a aposta no simbolismo do retorno da representaccedilatildeo nacional a Paris

ndash jaacute nos primeiros meses apoacutes a conquista do poder Agrave oficializaccedilatildeo da Marseillaise e

do 14 de julho segue-se a reabertura do Panteatildeo para a inumaccedilatildeo solene de Victor

Hugo eventos que ocorrem respectivamente entre o iniacutecio de 1879 maio de 1880 e

1o de junho de 1885132 A esquerda em 1889 ansiosa por sediar uma grande festa de

afirmaccedilatildeo nacional em torno de iacutecones republicanos era no entanto ldquouma esquerda

moderada engajada sobretudo em um processo de moderaccedilatildeo por razotildees

independentes das circunstacircncias comemorativasrdquo Pierre Tirard ndash nomeado primeiro

ministro pela segunda vez em fevereiro de 1889 ndash prometeu ao suceder Floquet uma

poliacutetica comemorativa ldquosaacutebia tolerante e liberalrdquo 133 Isso natildeo significou tatildeo somente

continuar pautando a efemeacuteride pelos mesmos criteacuterios despolizatiados que marcaram

a Exposicatildeo Universal mas quando do encontro inevitaacutevel com assuntos sensiacuteveis agrave

memoacuteria da naccedilatildeo tocaacute-los de forma prudente e quase defensiva

130 ENDERS Armelle op cit p 50 O discurso de Joaquim Norberto de Sousa Silva se encontra na

RIHGB T 53 1890 21 131 A imagem da revoluccedilatildeo como ldquoum blocordquo eacute invocada com frequecircncia na histoacuteria dos usos poliacuteticos

do passado francecircs George Clemenceau primeiro ministro durante a Grande Guerra era

particularmente adepto da expressatildeo Segundo Jean-Marie Mayeur no entanto seu uso remonta a 29

de janeiro de 1891 quando no contexto das agitaccedilotildees da IIIa Repuacuteblica os republicanos promovem

intenso debate em torno de uma peccedila de teatro intitulada Thermidor de Victorien Sardou a qual

consideraram ofensiva agrave memoacuteria nacional Ver MAYEUR Jean-Marie ldquoLa Reacutevolution Franccedilaise est

un blocrdquo Commentaire 45 primavera de 1989 pp 145-152 132 Ver ORY Pascal 1992 p 30 133 Idem p 35

58

O grande homem do centenaacuterio celebrado em 1889 precisaria ser uma figura

enquanto ainda natildeo consensual ao menos pouco polecircmica Em 4 de dezembro de

1886 o governo francecircs institui uma comissatildeo encarregada de reunir e divulgar

documentos ineacuteditos relativos agrave revoluccedilatildeo Dentre as duas primeiras ediccedilotildees

realizadas pelo oacutergatildeo encontram-se as cartas trocadas entre Lazare Carnot e Danton

Em 26 de janeiro de 1887 Charles-Louis Chassin homem de letras e fervoroso

republicano declara frente agrave comissatildeo histoacuterica da cidade de Paris

ldquoO Centenaacuterio nacional de 1789 natildeo seraacute celebrado com

uma convicccedilatildeo saacutebia e natildeo serviraacute agrave educaccedilatildeo ciacutevica e

patrioacutetica das novas geraccedilotildees se ele natildeo for precedido

por uma vasta enquete provando atraveacutes dos fatos

coletados pelo meacutetodo positivo a legitimidade das

reivindicaccedilotildees de nossos paisrdquo134

Instruir a comemoraccedilatildeo como forma de transmissatildeo de valores entre geraccedilotildees

como viria a sugerir algumas deacutecadas mais tarde Marc Bloch Uma comissatildeo

mesmo atraveacutes de um meacutetodo positivo a julgar o passado em ldquouacuteltima instacircnciardquo

como disse do outro lado do Atlacircntico um Sousa Silva De todo modo cientista ou

juiacuteza a corte acadecircmica republicana teria de contar os votos de um juacuteri popular e

sensiacutevel a ele escolher uma figura como Danton para ldquovedeterdquo do centenaacuterio Menos

de um ano depois os frutos da comissatildeo jaacute estavam maduros o monumento a Danton

foi decidido por deliberaccedilatildeo em novembro de 1887 A inauguraccedilatildeo no entanto sofreu

com atrasos e natildeo foi realizada antes de 14 de julho de 1891 ndash embora o projeto de

Auguste Paris jaacute tivesse sido escolhido haacute quase dois anos em maio de 1889 O

problema natildeo parece ter sido a oposiccedilatildeo monarquista mas seu exato oposto alas

radicais republicanas insatisfeitas vilipendiaram a obra como um ldquocontra-

monumento agrave revoluccedilatildeo francesardquo135

A imagem de Danton um repuacuteblicano anticlerical natildeo conduz o terror agraves

sombras do esquecimento Ela o esculpe em sua estaacutetua cujo pedestal faz menccedilatildeo ao

martiacuterio de 1793 Essa soluccedilatildeo conciliatoacuteria amortece o impacto ofensivo de 1789

retira a revoluccedilatildeo das matildeos dos radicais e ndash ao menos acreditavam os moderados ndash a

134 ldquoLe Centenaire national de 1789 ne sera ceacuteleacutebreacute avec une conviction raisonneacutee et ne servira agrave

lrsquoeacuteducation civique et patriotique des geacuteneacuterations nouvelles que srsquoil est preacuteceacutedeacute drsquoune vaste enquecircte

prouvant par les faits recueillis selon la meacutethode positive la leacutegitimiteacute des revendications de nos

pegraveresrdquo CHASSIN Charles-Louis Les eacutelections et les cahiers de Paris Preacuteface tome I p XIX 135 Bulletin municipal officiel 16 juillet 1891 Ver tambeacutem ORY op cit p 99

59

entrega agraves matildeos da naccedilatildeo Talvez natildeo fosse esse um antigo sonho republicano

endossado pela historiografia positiva ndash de Alphonse Aulard ou Gabriel Bonnot ndash

comemorar ldquoo uacutenico homem de Estado que o ocidente deve honrar depois de

Fredericordquo136 Natildeo se tratava afinal de uma manobra da extrema esquerda ou da

necessidade de demolir a monarquia ldquoA revoluccedilatildeo estaacute condenadardquo disse Ernest

Renan em fevereiro de 1889 ldquose depois de cem anos ela estiver ainda por

recomeccedilarrdquo137 Como resultado a personagem de Danton imaginaria um officiant eacute

eleita por conquistar ldquoo maior nuacutemerordquo de coraccedilotildees e mentes138

Enquanto isso de volta ao outro lado do Atlacircntico a jovem repuacuteblica

brasileira ensaiava suas primeiras poliacuteticas comemorativas Seus modelos eacute claro

viriam da Franccedila e de Portugal e sua inspiraccedilatildeo no catecismo positivista ia bem aleacutem

do lema na bandeira nacional talhado entre as estrelas que representam os Estados da

federaccedilatildeo139 Em 14 de janeiro de 1890 um decreto leva a reforma do espaccedilo ao

tempo (DEC 155-B1890 ndash DECRETO DO EXECUTIVO ndash 14011890) O novo

calendaacuterio ciacutevico do regime deveria lembrar fatos relacionados agrave fraternidade

universal mas principalmente outros tantos associados agrave solidariedade nacional Era

a vez da repuacuteblica ldquocomemoraccedilatildeo dos precursores da independecircncia reunidos em

136 ldquoLe grand Danton le seul homme drsquoEacutetat dont lrsquoOccident doive srsquohonorer depuis Freacutedeacutericrdquo COMTE

Auguste Systegraveme de politique positive ou traiteacute de sociologie instituant la reacuteligion de lrsquohumaniteacute

Tome 3 Contenant la Dynamique Sociale ou le traiteacute geacuteneacuteral du progregraves humain Paris 1853 p 596 137 ldquoLa Reacutevolution est condamneacutee srsquoil est prouveacute qursquoau bout de cent ans elle en est encore agrave

recommencer ()rdquo RENAN Ernest Reacuteponse au discours de reacuteception de Jules Claretie Discours

prononceacute dans la seacuteance publique le jeudi 21 feacutevrier 1889 Paris Palais de lrsquoinstitut p 6 138 ldquo() dans lrsquoembellie le personnage rallie le plus grand nombrerdquo ORY Pascal op cit p 157 As

tentativas de canonizaccedilatildeo ciacutevica eacute claro natildeo terminaram em Danton A ala mais a esquerda da

comemoraccedilatildeo segundo Pascal Ory entende usar a excepcionalidade da efemeacuteride para ldquoir mais longe

na reabilitaccedilatildeo histoacutericardquo No aniversaacuterio da aboliccedilatildeo dos privileacutegios em 4 de agosto de 1889 quatro

heroacuteis republicanos satildeo elevados ao estatuto de grandes homens ldquotrecircs siacutembolos patrioacuteticos

encarregados de demonstrar a identificaccedilatildeo entre a Naccedilatildeo e a Repuacuteblica (Lazare Carnot Marceau La

Tour drsquoAuverne) e um siacutembolo democraacutetico o deputado Alphonse Baudin morto nas barricadas em 2

de dezembro de 1851 em defesa da representaccedilatildeo nacional face ao ldquocesarismordquo ORY op cit p 127

Alguns anos antes Miguel Lemos e Teixeira Mendes tinham sido expulsos da Politeacutecnica ndash ao que

parece o Baratildeo do Rio Branco natildeo estava feliz com a atuaccedilatildeo publicista dos dois alunos de Benjamin

Constant Lemos vai para Paris e mesmo que natildeo tenha conseguido completar os estudos dada a

falecircncia da famiacutelia acaba ingressando nos ciacuterculos sociais primeiro de Littreacute depois de Laffitte

sempre com um olhar atento agrave poliacutetica de Gambetta Em 1880 ele eacute sagrado sacerdote da humanidade

e pouco depois retorna agrave corte Entre 1884 e 1885 o Centro Positivista da Corte organiza eventos em

homenagem agrave Danton eventos que culminam no centenaacuterio da queda da Bastilha Ver ALONSO

Acircngela Ideacuteias em movimento a geraccedilatildeo 1870 na crise do Brasil Impeacuterio Satildeo Paulo Paz e Terra

2002 p 294 139 No contexto dos eventos patrocinados pelo Centro Positivista da Corte escreve Angela Alonso ldquoa

progressiva atribuiccedilatildeo de legitimidade a uma via revolucionaacuteria chegaria ao aacutepice no centenaacuterio da

Tomada da Bastilha em 14 de Julho de 1889 com eventos apoteoacuteticos na Corte em Satildeo Paulo e n Rio

Grande do Sulrdquo ldquoA evoluccedilatildeo poliacutetica chegou ao seu termo revolucionaacuteriordquo Gazeta de Notiacutecias

12111889 ALONSO op cit p 318-319

60

Tiradentesrdquo em 21 de abril 7 de setembro como dia da independecircncia 15 de

novembro como ldquocomemoraccedilatildeo da paacutetria brasileirardquo satildeo alguns exemplos140

O novo calendaacuterio como toda poliacutetica comemorativa precisava se apresentar

com algum grau de legitimidade e para isso demonstrar sensibilidade com as

memoacuterias enquadradas141 Mas nem todos os expoentes do novo regime estavam

satisfeitos ldquoE para os que quiserem ver na independecircncia alcanccedilada em 1822 a

palavra suprema dos nossos anseios ndash disse ningueacutem menos do que o presidente em

mensagem ao Congresso Constituinte ndash apontaremos o 7 de abril de 1831 em que

banimos o nosso primeiro Imperadorrdquo142 Ora a palavra suprema dos anseios do

marechal Deodoro natildeo se encontrava naquele longiacutencuo 7 de setembro mas

comeccedilava a ser pronunciada apenas um ano antes no 15 de novembro data em que

ldquoiniciamos a demoliccedilatildeo de trecircs seacuteculosrdquo143

A reorganizaccedilatildeo do calendaacuterio em torno dos valores e das expectativas do

novo regime poliacutetico exigiu a intervenccedilatildeo de grandes homens que associados a esta

ou agravequela data conferem a elas um sentido edificante na medida em que marcam a

ruptura entre o tempo antigo e o tempo novo144 Tiradentes em seu 21 de abril seria

transformado pela iconografia republicana em uma espeacutecie de Cristo secular e seu

martiacuterio saudado como um sacrifiacutecio no altar da paacutetria145 Mas o tiacutetulo de patriarca da

independecircncia continuaria sob o vulto de Joseacute Bonifaacutecio146 Membro da Academia de

Ciecircncias de Lisboa criacutetico da escravidatildeo poreacutem leal a D Pedro I e preceptor de seu

herdeiro Andrada e Silva era o candidato ideal para angariar o maior nuacutemero de votos

dentre os mais diversos grupos e quadros sociais da memoacuteria147 Mais tarde os

140 Ver OLIVEIRA Luacutecia Lippi As festas que a Repuacuteblica manda guardar Estudos Histoacutericos 2

1989 pp 172-189 141 Ainda em 1889 Siacutelvio Romero tomou as vestes de oficiante e organizou uma comissatildeo para

organizar festejos em homenagem a Tiradentes Ver ALONSO op cit 291 142 apud NETO Edgar Leite Ferreira O improviso da civilizaccedilatildeo a Naccedilatildeo Republicana e a construccedilatildeo

da ordem social no final do seacuteculo XIX Niteroacutei UFF 1989 (diss mestrado ndash mimeo) p A1 143 Discurso de Deodoro da Fonseca em ocasiatildeo do primeiro aniversaacuterio da declaraccedilatildeo da repuacuteblica 15

de novembro de 1890 apud NETO op cit p 40 Citado tambeacutem por SIQUEIRA Carla A Imprensa

comemora a Repuacuteblica memoacuterias em luta no 15 de novembro de 1890 Estudos Histoacutericos Rio de

Janeiro vol 7 n 14 1994 p 161-181 A autora ressalta o investimento republicano no 15 de

Novembro lembrando as batalhas de memoacuteria na imprensa oitocentista 144 Sobre a divisatildeo entre tempo antigo e tempo novo como elemento fundamental das aspiraccedilotildees

republicanas ndash e no caso francecircs revolucionaacuterias ndash ver BACZKO Bronislaw 1984 Le calendrier

reacutepublicain In NORA Pierre (org) Les lieux de meacutemoire Paris Gallimard passim 145 Importante notar que o Centro Positivista da Corte jaacute comemorava a Inconfidecircncia Mineira como

ldquofesta ciacutevicardquo a partir de 1881 ALONSO op cit 292 146 Ver MOTTA Marly Silva da A naccedilatildeo faz cem anos o centenaacuterio da independecircncia e a questatildeo

nacional no iniacutecio dos anos 20 Rio de Janeiro CPDOCFGV 1992 p 16 147 A elevaccedilatildeo de Joseacute Bonifaacutecio a grande homem da naccedilatildeo jaacute estava sendo preparada desde antes do

iniacutecio do II Reinado Um elogio histoacuterico eacute proferido na Academia Imperial de Medicina ainda no ano

61

monarquistas liberais da geraccedilatildeo de 1870 iriam fazer todo o possiacutevel para representar

certa continuidade entre suas criacuteticas morais agrave escravidatildeo ndash esse cancro mortal que

ameaccedilava os fundamentos da naccedilatildeo ndash e a campanha abolicionista do fim do seacuteculo

Natildeo seria exagero dizer que dentro do contexto comemorativo brasileiro Joseacute

Bonifaacutecio valeria um Danton148

Ainda na Ameacuterica poreacutem um pouco mais ao norte e cerca de um seacuteculo antes

um panfleto escrito sob o pseudocircnimo de ldquoCassiusrdquo causa polecircmica na nova

repuacuteblica A data assinada marca 10 de outubro de 1783 Aedanus Burke ndash o autor

ele mesmo um ex-combatente revolucionaacuterio mais tarde congressista pela Carolina

do Sul ndash demonstra revolta contra a receacutem criada Sociedade dos Cincinnati ldquoCassiusrdquo

fazia referecircncia a um dos assassinos de Juacutelio Ceacutesar Ao lado de Junius Brutus era

considerado um homem ilustre nos EUA dos anos 1700 por ter tentado evitar a queda

da repuacuteblica cometendo o tiraniciacutedio Burke acreditava que a Sociedade era ldquona

verdade e vai acabar sendo um pariato hereditaacuterio uma nobreza para seus membros

e sua prole masculinardquo149 Seu argumento era claro Essa Ordem como chamavam

alguns violava os artigos da confederaccedilatildeo assim como todos os valores pelos quais a

de sua morte em 1838 e publicado na revista do IHGB alguns anos mais tarde SILVA MAIA Emiacutelio

Joaquim Elogio histoacuterico do conselheiro Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva Revista do IHGB VIII

1846 pp 116-40 Uma estaacutetua em bronze encomendada ao escultor Louis Rochet tem seu siacutetio no

Largo de Satildeo Francisco inaugurado em 1872 em uma cerimocircnia que contou com a presenccedila da famiacutelia

real membros da alta aristocracia e com discurso do orador do IHGB Joaquim Manuel de Macedo

Alguns anos depois em 1877 com o aceite por parte do Instituto do Elogio histoacuterico a Joseacute Bonifaacutecio

escrito por Latino Coelho Bonifaacutecio eacute saudado como ldquo() ministro ilustrado e previdente conselheiro

leal e esforccedilado lidador na grandiosa empreza da emancipacatildeo nacional se como alguns pensam natildeo

foi o pensamento foi o braccedilo que guiou destro o movimento reaccionario coroado do mais feliz

sucesso Seu nome sua gloria a justa celebridade de seus feitos constituem um patrimonio de

inestimavel valor para a naccedilatildeo que o preza e honrardquo Parecer sobre o Elogio Histoacuterico de Joseacute

Bonifaacutecio de Latino Coelho por Olegaacuterio Herculano de Aquino e Castro e Joseacute Tito Nabuco de

Arauacutejo Revista do IHGB t40 v2 1877 p 519 Sobre o gecircnero dos elogios histoacutericos ver

OLIVEIRA Maria da Gloacuteria Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade biografia memoacuteria e

experiecircncia da histoacuteria no Brasil oitocentista Varia Histoacuteria Belo Horizonte vol 26 no 43 p283-

298 janjun 2010 Eacute claro que nem todos concordavam em alccedilar Bonifaacutecio ao meacuterito de patriarca da

independecircncia Escrevendo ao tesoureiro e organizador de facto da Sociedade Comemorativa da

Independecircncia do Impeacuterio o historiador Alexandre de Mello Moraes um criacutetico da monarquia alega

que a estaacutetua de Andrada e Silva um falso patriota devia ser ldquocontemplada com indiferenccedilardquo Ver

Correspondecircncia de Alexandre Joseacute de Mello Moraes para Ameacuterico Rodrigues Gamboa 23 de outubro

de 1872 In MELLO MORAES Alexandre Joseacute de A independecircncia e o Impeacuterio do Brazil ou a

Independecircncia comprada por dous milhotildees de libras esterlinas Rio de Janeiro Typ Do Globo 1877

pp 352-354 apud KRAAY Hendrik Alferes Gamboa e a Sociedade Comemorativa da Independecircncia

do Impeacuterio 1869-1889 Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo v 31 n 61 2011 p 20 148 Como escreveu Armelle Enders ldquoNa histoacuteria incerta do panteatildeo brasileiro Joseacute Bonifaacutecio de

Andrada e Silva (1763-1838) eacute um dos raros personagens cuja estaacutetua manteve desde 1822 a solidez e

a constacircncia do bronzerdquo ENDERS Armelle Os Vultos da Naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e formaccedilatildeo de

brasileiros Rio de Janeiro FGV Editora 2014 p 72 149 ldquoIt is in reality and it will turn out to be a hereditary peeragerdquo BURKE Aedanus Considerations

on the Society or Order of Cincinnati proving that it creates a Race of Hereditary Patricians or

Nobility Philadelphia Robert Bell 1793

62

revoluccedilatildeo lutou e a medida que suas ideias forem se corrompendo vai

inexoravelmente conspirar contra suas conquistas ldquoTocai o trompete em Zionrdquo150

ldquoComo a uacutenica organizaccedilatildeo social aleacutem do congressordquo analisou Harry M

Ward ldquoa Sociedade dos Cincinnati serviu ateacute certo ponto como instrumento de lobby

dos veteranos pressionando o congresso para abrir terras no oeste recompensar os

militares garantir pensatildeo aos veteranos e corrigir seus pagamentosrdquo 151 Em apenas

um ano 13 sociedades foram estabelecidas com um quadro social de 2150 dos 5500

oficiaacuteis que poderiam ser eleitos e contando com 23 dos 65 signataacuterios da

Constituiccedilatildeo152 Os seus fundadores no entanto natildeo poderiam prever a intensa

oposiccedilatildeo que sofreriam John Quincy Adams em 1787 maldizeu a sociedade

alegando que a instituiccedilatildeo tornar-se-ia fatal para a constituiccedilatildeo Diversos

representantes regionais passaram resoluccedilotildees condenando os Cincinnati contando

mesmo com o apoio de alguns heroacuteis da independecircncia Quando o panfleto de Burke

chegou agraves matildeos de Benjamin Flanklin ele encorajou a sua traduccedilatildeo para o francecircs

realizada pelo conde de Mirabeau153

George Washington que havia aceito o cargo de presidente da Ordem escreve

ao colega Thomas Jefferson que o aconselha a manter os rumos da associaccedilatildeo

afastados da poliacutetica O general resolve tambeacutem propor o fim do princiacutepio da

hereditariedade o que embora votado em instacircncia nacional natildeo eacute aceito por todas as

unidades regionais da Ordem Com muitos de seus membros se dirigindo ao oeste ndash

ao lado de uma nova oposiccedilatildeo inspirada pela revoluccedilatildeo francesa ndash por volta de 1800

a sociedade estava esvaziada154 O trabalho de transformar um personagem em

ldquoheroacuteirdquo ndash em um ldquomorto divinizadordquo como jaacute expressava Stephan Czarnowski ndash

150 ldquoblow ye the trumpet in zionrdquo Idem 151 ldquoAs the only national oranization other than Congress the Society of the Cincinnati served to some

extent as a veteranrsquos lobby pressing Congres to open lands in the west for military bounties to grant

pensions for all Revolutionary War veterans and to compensate veterans for the difference in price

between what they sold their pay ()rdquo WARD Harry M The War for Independence and the

Transformation of American Society UCL Press London 1999 p 233 152 Idem Ibidem 153 MIRABEAU Consideacuterations sur lrsquoOrdre de Cincinnatus ou Imitation drsquoun pamphlet Anglo-

Ameacutericain J Johnson Londres 1784 Sobre o entusiasmo de Benjamin Franklin contra os Cincinnati

ver OLSTER Lester C Benjamin Franklins Vision of American Community A Study in Rhetorical

Iconology (Studies in RhetoricCommunication) University of South Caroline 2004 p 128 No dia 13

de Julho de 1784 Franklin escreveu em seu jornal ldquoMirabeau and Champfort came and read their

translation of (American) Mr Burkersquos pamphlet against the Cincinnati which they had much enlarged

intending it as covered satire against noblesse in generalrdquo Idem p 129 154 WARD op cit p 234

63

estava longe de seguir uma jornada linear155 Entre o esquecimento do episoacutedio e sua

pontual lembranccedila ele demonstra que mesmo um Deus mesmo um grande homem

estaria sujeito a enroscar-se no tortuoso emaranhado dos usos do passado Ele eacute como

o proacuteprio passado uma figura sempre conflituosa

16 Oficiar a moral dos grandes homens da naccedilatildeo

As topografias do passado com seus picos de densidade memorial suas

planiacutecies esquecidas seus cruzamentos de interesses mesmo que comumente

naturalizadas natildeo escondem o traccedilo humano de seus contornos graacuteficos156 Os

grandes homens natildeo escalavam as montanhas da lembranccedila de matildeos nuas belos como

os deuses a subir ao Olimpo extasiados pelo transe comemorativo incutido pelo

endosso em massa de uma consciecircncia moral Eles eram eleitos preparados e

elevados por um quadro social ao cargo de representante identitaacuterio do grupo em um

duplo esforccedilo memorial e social As poliacuteticas comemorativas satildeo casos emblemaacuteticos

desse trabalho de enquadramento da memoacuteria incentivadas por associaccedilotildees civis

comissotildees estatais e divulgadas pela imprensa a organizaccedilatildeo de seus eventos

demonstra tambeacutem a disputa pelo cargo de celebrante aquele que ministra a

celebraccedilatildeo ordena e oficializa o passado a ser comemorado Comemoraccedilatildeo que

assim entendida torna-se na feliz expressatildeo cunhada por Geacuterard Namer uma

vontade poliacutetica da memoacuteria157 Vontade cuja pretensatildeo eacute ser ldquogeralrdquo esse tipo de uso

do passado enfrenta a oposiccedilatildeo de vontades particulares em episoacutedios que tecircm sido

descritos pela literatura especializada enquanto ldquobatalhas de memoacuteriardquo158 Se a

comemoraccedilatildeo eacute ndash como insinuava Marc Bloch em seu diaacutelogo com Maurice 155 CZARNOWSKI Stefan Le culte des heroacutes et ses conditions sociales Saint Patrick heacuteros national

de lrsquoIrlande Paris Alcan 1919 Apud ENDERS Armelle Os Vultos da Naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e

formaccedilatildeo de brasileiros Rio de Janeiro FGV Editora 2014 p 15 156 A analogia topograacutefica eacute de responsabilidade de ZERUBAVEL Eviatar Time Maps Collective

Memory and the Social Shape of the Past The University of Chicago Press 2003 ChicagoLondres

prinicpalmente p 25-34 157 ldquoHalbwachs ne parle pas de la commeacutemoration et de la propagande politique la commeacutemoration est

une volonteacute politique de la meacutemoire et ce nrsquoeacutetait pas la faccedilon dont Halbwachs posait le problegraveme ()

La commeacutemoration que nous eacutetudions ici pose donc un problegraveme nouveau qui est celui des rapports de

la politique et de la meacutemoire agrave cocircteacute de la meacutemoire sociale subie presque inconscientement par les

hommes sous la forme de tradition il y a donc une mise en place de meacutemoire collective une volonteacute de

faire se souvenir il y a aussi un deacutesir diffus conscient ou non de se souvenir que nous eacutetudions ici Au

service de cette volonteacute politique de meacutemoire la commeacutemoration joue aussi un peu le rocircle de meacutediardquo

NAMER Geacuterard op cit p 5-6 158 POLLACK 1989 p 5 ldquomneumonic battlesrdquo eacute a expressatildeo usada por ZERUBAVEL Eviatar

Social Mindscapes An Invitation to Cognitive Sociology Cambridge Mass Harvard University Press

1997 pp 97-99

64

Halbwachs ndash uma forma de comunicaccedilatildeo entre geraccedilotildees o officiant tenta contracenar

nos episoacutedios que discutiremos logo a seguir algo como o papel de guardiatildeo da

memoacuteria nacional

Celebraccedilotildees ciacutevicas tornaram-se tradicionais jaacute durante o Segundo Impeacuterio

Algueacutem eacute claro tinha que as oficiar e no periacuteodo a tarefa da seleccedilatildeo de datas

memoraacuteveis e organizaccedilatildeo de seus respectivos festejos foi levada a cabo por

associaccedilotildees civis e divulgada na imprensa Entre 1841 e 1889 pelo menos 887

sociedades ndash grande parte dedicadas agrave beneficiecircncia e agrave ajuda muacutetua ndash foram criadas

no Rio de Janeiro com a tarefa de auxiliar na vida ldquomaterial e moral de artesatildeos

operaacuterios ex-escravos industriais comerciantes engenheiros advogados e meacutedicos

entre outros setoresrdquo Desde pelo menos a deacutecada de 50 do seacuteculo XIX dezenas

desses grupos alguns muito efecircmeros outros nem tanto tinham como objetivo

comemorar o 7 de Setembro159

Em 1869 aparece a Sociedade Comemorativa da Independecircncia do Impeacuterio

cujos soacutecios elegeram presidente Francisco Joaquim Betencourt arquiteto ligado ao

Liceu de Artes e Ofiacutecios do Rio de Janeiro A eminecircncia parda da associaccedilatildeo era no

entanto um reles alferes reformado Eleito tesoureiro Ameacuterico Rodrigues Gamboa

destacou-se como organizador dos eventos comemorativos160 Sua tarefa natildeo seria

beneficiente mas igualmente moral e edutiva como aplaudiu o Diaacuterio de Notiacutecias os

festejos ciacutevicos ldquoacostuma-os futuros cidadatildeos agrave sociedade torna-os mais aptos para

a vida social e arregimentados como estatildeo grava-lhes a noccedilatildeo de que em todos os

acontecimentos em todos os atos da vida mister se faz a ordemrdquo161

O primeiro lugar escolhido pela Sociedade para festejar a autonomia nacional

foi a Praccedila da Constituiccedilatildeo que desde 1862 abrigava a estaacutetua equestre de D Pedro I 159 ldquovida material e moral de artesatildeos ()rdquo eacute citaccedilatildeo presente na primeira paacutegina do artigo PEREIRA

DE JESUS Ronaldo Cultura Associativa no seacuteculo XIX atualizaccedilatildeo do repertoacuterio criacutetico dos

registros de sociedades na cidade do Rio de Janeiro (1841-1889) In Anais do XXVII Simpoacutesio

Nacional de Histoacuteria Conhecimento histoacuterico e diaacutelogo social Natal RN 22 a 26 de Julho de 2013 O

autor apurou que ndash entre 1841 e 1889 ndash 46 sociedades comemorativas dentre as quais nos sobraram 10

estatutos foram criadas no Rio de Janeiro Destacam-se a Associaccedilatildeo Nacional Vinte e Quatro de

Setembro (1861-1865) a Sociedade Gloacuteria do Lavradio (1862-1881) a Sociedade Ipiranga (1862) a

Sociedade Patrioacutetica Brado do Ipiranga (1865) a Sociedade Primeiro de Dezembro (1862) a

Sociedade Sete de Setembro (1868) a Sociedade Vinte e Oito de Setembro (1880) e a Sociedade

Comemorativa da Independecircncia do Impeacuterio (1872-1881) Angela Alonso destaca o papel poliacutetico

desse surto associativo ldquodesde a deacutecada [de 1870] ateacute a queda do regime emergiram muacuteltiplas

manifestaccedilotildees puacuteblicas de protesto exacerbando a demanda liberal por reformas associaccedilotildees de

proprietaacuterios manifestaccedilotildees populares associaccedilotildees abolicionistas militares republicanas literaacuterias e

outras congecircneres O movimento intelectual foi uma dimensatildeo desta mobilizaccedilatildeo coletivardquo ALONSO

2002 p 98 160 Sobre a Sociedade Comemorativa do Impeacuterio ver KRAAY 2011 texto que tomo como guia 161 Diaacuterio de Notiacutecias 10 de julho de 1888 Apud KRAAY op cit p 29

65

um siacutembolo possiacutevel da Independecircncia e emblema maacuteximo da monarquia162 Liberais

exaltados como Teoacutefilo Otoni chegaram a apelidar a estaacutetua de ldquomentira de bronzerdquo

inaugurando uma frase que viraria palavra de ordem dos republicanos163 Certamente

preferiam ver Tiradentes ndash e natildeo o descendente direto de seus assassinos ndash elevado a

grande homem da naccedilatildeo164 Esse clima de hostilidade entre republicanos e

monarquistas era publicado diariamente na imprensa do periacuteodo de modo que os

relatos sobre as comemoraccedilotildees imperiais variam de veiacuteculo a veiacuteculo de um sempre

simpaacutetico Jornal do Commercio ao sarcasmo e agrave hostilidade de Mephistopheles e da

Revoluccedilatildeo Desde a inauguraccedilatildeo da estaacutetua ateacute os eventos anuais promovidos pela

Comemorativa no entanto centenas de almas uniam-se na praccedila a cantar o Te Deum

os organizadores nisso sem grande sucesso tentavam afastar os democircnios

republicanos que jaacute um ano depois em 1871 tornariam puacuteblicas as primeiras

denuacutencias contra supostos financiamentos governamentais agrave Sociedade165

ldquoA Sociedade Comemorativa era no maacuteximordquo escreveu Hendrik Kraay

ldquouma associaccedilatildeo do que pode ser considerada a classe meacutedia baixardquo Sabe-se que

Gamboa seu real organizador natildeo era exatamente uma figura destacada da sociedade

162 Tanto a estaacutetua de D Pedro I quanto o monumento a Joseacute Bonifaacutecio foram encomendados ao

escultor Louis Rochet Isso aconteceu natildeo apenas pelo artista francecircs ser o autor da estaacutetua equestre de

Carlos Magno localizada em frente a Notre Dame de Paris mas pelas impossibilidades tecnoloacutegicas de

se realizar trabalhos sofisticados em bronze no Brasil da eacutepoca Para Paulo Knauss ldquoEnquanto o

imperador foi representado a cavalo trazendo a Constituiccedilatildeo para simbolizar a afirmaccedilatildeo do Estado

nacional Joseacute Bonifaacutecio foi representado como intelectual cercado de alegoria das virtudes claacutessicas

simbolizando a razatildeo de Estado As duas imagens se completavam e a promoccedilatildeo da primeira imagem

se estendida assim pela segunda imagem constituindo um circuito narrativo que unia duas praccedilas

importantes na vida urbana constituindo um texto urbanordquo Ver KNAUSS Paulo A festa da imagem

a afirmaccedilatildeo da escultura puacuteblica no Brasil do seacuteculo XIX 19amp20 Rio de Janeiro v V n 4 outdez

2010 Disponiacutevel em lthttpwwwdezenovevintenetobraspknausshtmgt Ver tambeacutem RIBEIRO

Maria Eurydice de Barros Memoacuteria em bronze ndash estaacutetua equestre de D Pedro I In KNAUSS Paulo

(Coord) Cidade vaidosa imagens urbanas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Sette Letras 1999 E

ainda SANTOS Gisele Cunha dos amp MONTEIRO Fernanda Fonseca ldquoCelebrando a fundaccedilatildeo do

Brasil a inauguraccedilatildeo da Estaacutetua Equestre de D Pedro Irdquo Revista Eletrocircnica de Histoacuteria do Brasil Juiz

de Fora UFJF v 4 nordm 1 Juiz de Fora UFJF janjun 2000 163 Ver CARVALHO Joseacute Murilo de A formaccedilatildeo das almas o imaginaacuterio da Repuacuteblica no Brasil Satildeo

Paulo Companhia das Letras 1993 p 60 E tambeacutem FERREIRA 1989 p 91 164 Segundo Joseacute Murilo de Carvalho os republicanos chegaram mesmo a preparar um poema

impresso em forma de panfleto a ser distribuiacutedo no dia da inauguraccedilatildeo da estaacutetua ldquoNos dias de

cobardia festeja-se a tirania Fazem-se estaacutetuas aos reis Hoje o Brasil se ajoelha E se ajoelha

contrito Ante a massa de granito do primeiro Imperadorrdquo () ldquoFoi ele o maacutertir primeiro Que pela

paacutetria morreu Do sangue de Tiradentes Brotou-nos a salvaccedilatildeordquo As coacutepias do poema seriam

apreendidas pela poliacutecia CARVALHO 1993 p 61 165 Ver KRAAY op cit p Diario de Noticias 5 de set 1872 Jornal do Commercio 6 set 1873

FERREIRA DA ROSA Francisco Memorial de [sic] Rio de Janeiro personagens ndash fatos ndash narrativa

de acontecimentos ndash vida e progresso da cidade em meio seacuteculo (1878-1928) Arquivo do Distrito

Federal v2 p 88 (1951) FERREIRA DA ROSA Francisco Chronica antiga In Prosa sadia

(pequeno extrato de uma antiga coleccedilatildeo de escritos) 9 v Rio de Janeiro Graacutefica sauer 1936-1946

v6 p 24-25 ldquo7 de Setembrordquo O Mequetrefe set 1892 ldquoSC da Independecircncia do Impeacuteriordquo Jornal da

Tarde 9 set 1871 ldquoMemorandum 7 de setembrordquo Corsario 3 set 1882

66

fluminense e que o Baratildeo de Lorena soacutecio mais proeminente talvez apenas ldquojulgasse

uacutetil participar de uma sociedade que festejava agrave sua portardquo 166 Preconceito contra um

certo ldquomonarquismo popularrdquo influenciando ou natildeo Gamboa e outros trecircs direitores

tiveram foram cassados em 1876 A nova diretoria sob Isidro Borges Monteiro chefe

da poliacutecia da Corte na deacutecada de 50 tratou de organizar uma comemoraccedilatildeo nos

mesmos moldes das anteriores Para sua frustraccedilatildeo todos os esforccedilos da nova direccedilatildeo

natildeo parecem ter feito justiccedila ao carisma do velho alferes A Revista Illustrada sempre

irocircnica escreveu que naquele ano foi de suas camas que a ldquobrava genterdquo ouviu os

ldquoestourados do Morro de Santo Antocircniordquo167 No ano seguinte a Comemorativa

naufragou e Gamboa sempre entusiasta fundou a Sociedade Independecircncia

organizando eventos no largo de Satildeo Francisco desta vez ao redor do monumento a

Joseacute Bonifaacutecio

O Jornal do Commercio em geral simpaacutetico agraves comemoraccedilotildees do Impeacuterio fez

elogios agrave nova associaccedilatildeo escrevendo que a velha Comemorativa ldquonatildeo tem vivido

senatildeo girandolando e erguendo coretosrdquo168 A referecircncia criacutetica agrave arquitetura efecircmera

comemorativa eacute recorrente na imprensa do periacuteodo considerada de gosto duvidoso

por jornalistas e leitores A Gazeta de Notiacutecias chegou a escrever ndash diante da cena

ldquocada vez mais grotescardquo na qual veteranos da Guerra do Paraguai guardavam coretos

sob a proteccedilatildeo de canhotildees de papel ndash que os fortes e as peccedilas de artilharia estariam a

sitiar a estaacutetua equestre169 Algo como pressionar D Pedro ainda mais uma vez para

que declare o ldquoFicordquo Ironias republicanas agrave parte os perioacutedicos satildeo unacircnimes em

descrever ilustrar e narrar a intensa movimentaccedilatildeo do ldquopovordquo diante das bandas de

muacutesica fogos e discursos nem que estivessem laacute como o fizera um jovem Luiz

Edmundo tatildeo somente para ldquogozar as luminaacuteriasrdquo instaladas pelos celebrantes170

Em 1886 com a morte do alferes Gamboa um grupo ligado ao governo

assume o controle das comemoraccedilotildees promovendo um programa muito parecido com

o dos anos anteriores No entanto o perfil social dos participantes parece ter mudado

166 KRAAY op cit respectivamente p 20 e p 19 167 Revista Illustrada 8 set 1877 Apud KRAAY op cit 21 168 Jornal do Commercio 17 set 1876 169 Segundo um recorte da eacutepoca acerca da imprensa oitocentista brasileira ldquoa Gazeta de Notiacutecias

fundada pelo dr Ferreira de Araujo [em 1875] que ainda a dirige hoje e outros inaugurou no Brasil o

jornal barato popular livre de compromisos partidaacuterios ou similhantes e tambeacutem o jornal facil de

fazer sem systema na distribuiccedilatildeo das mateacuterias aacute portuguezardquo Ver MATTOS Joseacute Verissimo de A

Instrucccedilatildeo e a Imprensa In ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO

DO BRASIL Livro do Centenaacuterio (1500-1900) Imprensa Nacional Rio de Janeiro 1900 Vol 1 170 EDMUNDO Luiz De um livro de memoacuterias 5v Rio de Janeiro sn 1958 v1 p 66 Apud

KRAAY op cit p 25

67

ldquoo tradicional anjinho vestido de verde e amarelordquo disse o Diaacuterio de Notiacutecias em

1887 ldquocedeu o passo aos elegantes representantes do grand-monde fluminenserdquo171

Com uma nova lideranccedila que incluia senadores ex-ministros e outras celebridades

carimbadas ano-a-ano no Almanaque Laemmert a Comemorativa sob a aprovaccedilatildeo da

imprensa investiu no caraacuteter pedagoacutegico do 7 de Setembro expresso no ldquodesejo das

classes dirigentes de promoverem os meios de despertar no povo o sentimento da

nacionalidade e de em seus coraccedilotildees fazer revigorar ndash se natildeo nascer ndash o amor agrave

paacutetriardquo172 Menos festa e mais histoacuterias invertendo a loacutegica de Herculano numa clara

tentativa de traduzir em rito positivo aquilo que muitos consideravam um mero

corrobbori vulgar ou espeacutecie de carnaval fora de eacutepoca

Nas comemoraccedilotildees imperiais tardias esse ldquoamor agrave paacutetriardquo seria expresso jaacute

por uma ldquomistura de heroacuteis republicanos e tradicionais figuras monarquistasrdquo 173 Em

1887 alguns coleacutegios particulares do Rio de Janeiro diante da arquitetada hesitaccedilatildeo

das escolas municipais fizeram seus alunos realizarem procissotildees ciacutevicas jaacute sob as

hostes de Tiradentes e Joseacute Bonifaacutecio No ano seguinte a Cacircmara Municipal natildeo

vetou participaccedilotildees e grande nuacutemero de escolas puacuteblicas uniram-se ao desfile Em

1889 no entanto foi proclamada a Repuacuteblica e com ela assistimos ao fim das

sociedades comemorativas da independecircncia do Impeacuterio A partir de agora o iacutedolo

das origens iria marchar sobre outra data o 15 de novembro oficiado ao som dos

tambores do Exeacutercito Nacional

Um par de anos apoacutes a proclamaccedilatildeo e a Repuacuteblica encontra seu primeiro

centenaacuterio o martiacuterio ciacutevico de Tiradentes contava aniversaacuterio Novamente a Praccedila

da Constituiccedilatildeo esse inegaacutevel lugar de memoacuteria do Brasil oitocentista ganhou

feiccedilotildees de campo de batalha Seu nome ainda em 1890 seria trocado para Praccedila

Tiradentes Mas setores republicanos ndash em especial o clube cuja alcunha comemorava

o heroacutei inconfidente ndash acreditavam que era o momento de fazer as reivindicaccedilotildees de

sua memoacuteria avanccedilar ainda mais174 Em 1893 militantes do Clube Tiradentes tentam

171 ldquoNotas do diardquo Diaacuterio de Noticias 6 set 1887 Apud KRAAY op cit p 28 O Diaacuterio de Noticias

fundado em 1885 era um ldquoum importante veiacuteculo abolicionistardquo dirigido por Ruy Barbosa Para um

recorte da eacutepoca a cerca da imprensa oitocentista brasileira Ver MATTOS Joseacute Verissimo de op cit 172 ldquoChronica da semanardquo Gazeta de Notiacutecias 9 set 1888 173 KRAAY op cit 29 Trata-se de um momento no qual a pedagogia moral dos grandes homens

comeccedila a encontrar seus limites frente ao tropismo nacional Armelle Enders defende a tese de que no

Brasil do segundo reinado ldquoa eacutetica monaacuterquica e tradicional ainda eacute mais forte que a nova pedagogia

dos grandes homensrdquo Ver ENDERS 2000 p 56 174 Os republicanos tambeacutem se organizavam na trilha dos surtos associativos do Segundo Impeacuterio

Segundo Armelle Enders ldquoem fins da deacutecada de 1860 a facccedilatildeo liberal que desejava reformas radicais

particularmente no que dizia respeito agrave autonomia das proviacutencias veio engrossar a corrente republicana

68

encobrir com tapumes a estaacutetua equestre ndash a ldquomentira de bronzerdquo ndash para as

comemoraccedilotildees do 21 de Abril A manifestaccedilatildeo chegou a contar com o apoio do

prefeito Barata Ribeiro que pouco depois recuou Frente agraves numerosas criacuteticas

recebidas chega a declarar que ldquoum povo sem tradiccedilatildeo eacute um povo sem histoacuteria e

portanto sem valor moralrdquo 175 Mesmo os republicanos tendiam a entender que os

heroacuteis nacionais deveriam promover algum compromisso buscar o consenso evitar

causar aquilo que pouco mais tarde seria chamado do outro lado do Atlacircntico de

anomia social E que personagem qual heroacutei republicano seria mais adequado para

adequar-se ao tropismo nacional Para Joseacute Murilo de Caravalho

Na figura de Tiradentes todos podiam identificar-se ele

operava a unidade miacutestica dos cidadatildeos o sentimento de

participaccedilatildeo de uniatildeo em torno de um ideal fosse ele a

liberdade a independecircncia ou a repuacuteblica Era o totem

ciacutevico Natildeo antagonizava ningueacutem natildeo dividia as

pessoas em classes sociais natildeo dividia o paiacutes natildeo

separava o presente do passado nem do futuro176

Antes de chegar a esse ponto em sua hagiografia ciacutevica ndash para que seu mito

possuiacutesse a liberdade ainda que tardia de adentrar todos os lares da naccedilatildeo ndash ele

deveria sofrer com a concorrecircncia de outros candidatos a representante de uma

federaccedilatildeo da memoacuteria No norte Frei Caneta ao sul os heroacuteis da Farroupilha

Nenhum deles no entanto seria agraciado com investimentos simboacutelicos

comparaacuteveis ao do heroacutei inconfidente jaacute exercidos desde o iniacutecio do Segundo

Impeacuterio O futuro liacuteder do Partido Republicano do Rio dedicou ndash ainda em 1866

quando presidente da proviacutencia das Minas Gerais ndash um monumento em gloacuteria a

Tiradentes A primeira celebraccedilatildeo do 21 de Abril data de 1881 mesmo ano em que

outro monumento eacute proposto no Rio Grande do Sul177 Mas a benccedilatildeo da

panteonizaccedilatildeo ciacutevica de Tiradentes foi obra da fortuna Em 1873 Joaquim Norberto

de Souza e Silva publica sua Histoacuteria da Conjuraccedilatildeo Mineira Treze anos antes ele

havia obtido acesso agrave ldquopreciosiacutessima coleccedilatildeo de documentos originais das duas

que se organizou como partido em 1870 dando origem em meio a certa desordem a todo tipo de

clubesrdquo ENDERS 2014 p 225 175 ldquoO prefeito do Distrito Federal Barata Ribeiro poacutes um ponto final na discussatildeo argumentando em

favor da manutenccedilatildeo do Imperador que lsquoum povo sem tradiccedilatildeo eacute um povo sem histoacuteria e portanto

sem valor moralrsquo DPedro I ficou onde estava mas obrigado a dividir o espaccedilo com seu rival na praccedila

que recebeu o nome de Tiradentesrdquo NETO Edgard Leite Ferreira op cit p 91 176 CARVALHO 1993 p 68 Grifos meus 177 Idem p 57

69

devassas que se procederam nas capitais das capitanias de Minas Gerais e Rio de

Janeirordquo 178 Souza e Silva considerava Tiradentes uma figura menor no cenaacuterio da

conjuraccedilatildeo Simpaacutetico agrave monarquia e ligado ao IHGB acreditava que seu trabalho

deveria arrefecer os acircnimos em torno do martiacuterio lembrando inclusive a

recomendaccedilatildeo do Imperador ao Instituto ldquoEacute de mister que natildeo soacute reunais os trabalhos

das geraccedilotildees passadas () como tambeacutem () torneis aquela a que pertenccedilo digna dos

foros da posteridaderdquo179

Ao utilizar como fontes natildeo somente as devassas mas tambeacutem um conjunto

de Memoacuterias anocircnimas contendo o depoimento de Raimundo de Penaforte confessor

dos inconfidentes o historiador enfatizou a mudanccedila de conduta de Tiradentes

Viacutetima de muitas privaccedilotildees sucessivos interrogatoacuterios recluso e com poucas palavras

carinhosas a ouvir aleacutem daquelas que saiam dos laacutebios de frades franciscanos

Tiradentes teria sido domado Beijou as matildeos e os peacutes de seu carrasco e andava para a

morte com um crucifixo entre os punhos grilhados a enunciar monoacutelogos de

inspiraccedilatildeo cristatilde 180 Tais evidecircncias foram divulgadas pelo soacutecio honoraacuterio do IHGB

como uma contribuiccedilatildeo agrave defesa da memoacuteria geracional dos Braganccedila ldquoFui por muito

tempo entusiasta do Tiradentesrdquo escreveu ldquoagrave medida poreacutem que me instruiacutea na

histoacuteria da malograda conjuraccedilatildeordquo encontrou um homem que ldquoem 21 de abril de

1792 jaacute natildeo era o mesmo ardente apoacutestolo da emancipaccedilatildeo poliacutetica () Prenderam

um patriota executaram um fadrerdquo 181

178 SOUSA E SILVA Joaquim Norberto de Discurso ao Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro 23

de Novembro de 1860 In Histoacuteria da Conjuraccedilatildeo Mineira Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Domiacutenio

publico Original de 1873 179 Idem Ibidem A referecircncia original eacute IHGB Discurso do Imperador D Pedro II In Revista do

IHGB Rio de Janeiro 12 552 1849 180 ldquoLadeado dos oficiais de justiccedila entrou na cadeia o algoz negro Era o famoso Capitania tatildeo

ceacutelebre pelos seus crimes Vinha vestir-lhe a alva e atar-lhe o baraccedilo ao colo Pedindo-lhe de costume o

perdatildeo da morte pois que a justiccedila e natildeo a sua vontade lhe moviam os braccedilos desceu o Tiradentes de

seu pedestal de gloacuteria para humilhar-se de mais e lhe dizer ldquoOh meu amigo deixe-me beijar-lhe as

matildeos e os peacutesrdquo O que fez com grande admiraccedilatildeo do proacuteprio algoz Ao despir-se para vestir a alva

tirou tambeacutem a camisa e ungiu seus laacutebios com estas belas palavras ldquoO meu Redentor morreu por mim

tambeacutem assimrdquo SOUZA E SILVA op cit p 140 ldquoOs soliloacutequios que fazia com o crucifixo mdash quando

estas palavras se acham agrave paacuteg 414 da minha obra entre aspas e aiacute se lecirc a nota 2ordf na qual digo

pertencerem estas expressotildees a Frei Raimundo de Penaforte que assim as escreveu nos Uacuteltimos

momentos dos inconfidentes de 1789rdquo SOUZA E SILVA Joaquim Norberto de O Tiradentes perante

os historiadores oculares de seu tempo Resposta a um injusto reparo dos criacuteticos da Histoacuteria da

Conjuraccedilatildeo Mineira Memoacuteria lida na sessatildeo de 9 de dezembro de 1881 pelo soacutecio honoraacuterio Joaquim

Norberto de Sousa Silva 2ordm vice-presidente In SOUZA E SILVA op cit p 147 181 ldquoFui por muito tempo entusiasta do Tiradentes Os maacutertires atraem as simpatias como os algozes se

tornam dignos das maldiccedilotildees populares Agrave medida poreacutem que me instruiacutea na histoacuteria da malograda

conjuraccedilatildeo senti modificar-se e arrefecer-se o meu entusiasmo e achei-me ante o homem que em 21

de abril de 1792 jaacute natildeo era o mesmo ardente apoacutestolo da emancipaccedilatildeo poliacutetica Os anos que passou na

masmorra segregado do mundo mdash o coloacutequio com os frades franciscanos que lhe transmudaram as

70

Os republicanos de iniacutecio protestaram Mas se o objetivo da Histoacuteria da

Conjuraccedilatildeo Mineira era desmontar o mito de Tiradentes ndash apresentando-o como um

fraco pouco convicto da causa que o levou agrave morte preservando de modo indireto a

imagem da famiacutelia real ndash seu resultado seria o contraacuterio Tiradentes se fortaleceu Sua

imagem sacra favorecida pela ausecircncia de qualquer iconografia original veio unir-se

a um processo jaacute em andamento Ainda em 1866 Castro Alves escrevia o ldquodrama

histoacuterico brazileirordquo Gonzaga ou a Revoluccedilatildeo de Minas encenado em Satildeo Paulo

Salvador e Rio de Janeiro Como o tiacutetulo indica a peccedila centra-se no heroiacutesmo de

Gonzaga saudado como ldquomaior que Napoleatildeordquo Mas ela termina com um poema que

canta ldquoei-lo o gigante da praccedila o Christo da multidatildeo Ersquo Tiradentes quem passardquo

182 A seguir em 1882 aparece o panfleto mineiro nomeado ldquoAgrave forca o Cristo da

multidatildeordquo que chega a atribuir ao maacutertir republicano ldquomaior fortaleza moral do que a

de Cristordquo 183 Na ausecircncia de imagens os artistas da repuacuteblica trataram de pintar com

realismo o sacrifiacutecio ciacutevico de Tiradentes elevando-o por fim ao estatuto de grande

homem da histoacuteria nacional Verdadeiro representante da federaccedilatildeo da memoacuteria

brasileira ndash talvez ao gosto de Victor Cousin ndash ele seria aos poucos saudado como

ldquonossordquo ateacute mesmo por monarquistas como o Visconde de Taunay184

Enquanto o culto de Tiradentes era exportado de seu lugar original trabalhado

e oficiado como pertencente a ldquotodos noacutesrdquo a memoacuteria de Joseacute Bonifaacutecio seguia a

mesma direccedilatildeo embora trilhando o caminho inverso O velho conselheiro jaacute vinha

sendo reabilitado nos ciacuterculos monarquistas pelo menos desde o ano de sua morte em

1838 quando foi velado por Emiacutelio Joaquim da Souza Maia como uma ldquovictima da

intrigardquo 185 Comparado a Aristiacutedes e Seneca ele teria caiacutedo em desgraccedila seguindo as

ideacuteias mdash os conselhos que lhe deram os seus juiacutezes com fementidas promessas mdash tudo isso

transformou o conjurado em um homem eivado de misticismo Prenderam um patriota executaram um

fraderdquo SOUZA E SILVA Joaquim Norberto de O Tiradentes perante os historiadores oculares de

seu tempo op cit p 146 182 CASTRO ALVES Gonzaga ou a revoluccedilatildeo de minas Drama histoacuterico brazileiro Rio de Janeiro

Livraria Coutinho 1975 p 89 Os versos ldquoMaior que Napoleatildeo Uma voz sombria murmura Brazil

Maria E Gonzaga Oh Maldiccedilatildeordquo encontram-se na paacutegina seguinte 183 CARVALHO 1993 p 64 184 ldquoEscrevendo apoacutes a proclamaccedilatildeo o visconde de Taunay reclamava contra o monopoacutelio que os

republicanos especialmente os jacobinos queriam manter sobre a memoacuteria do heroacutei Ao libertar o paiacutes

o Impeacuterio alegava realizou o sonho de Tiradentes Por essa razatildeo ldquotambeacutem ele nos pertencerdquo

CARVALHO 1993 p 71 O O texto de Taunay eacute citado igualmente por Luacutecia Lippi Oliveira para

quem ldquoTaunay coloca Tiradentes no panteatildeo dos monarquistasrdquo Ver OLIVEIRA Luacutecia Lippi 1989 p

12 Referecircncia original Visconde de Taunay ldquoO Tiradentes e noacutes monarquistasrdquo Em Impeacuterio e

Repuacuteblica pp 5-15 185 ldquo() este homem que merecia as homenagens dos compatriotas e estima do seu priacutencipe ia em

pouco tempo ser victima da intrigardquo SILVA MAIA Revista do IHGB VIII 1846 p 136

71

palavras de Ciacutecero por ter prestado serviccedilos a seu paiacutes186 Da miseacuteria do exiacutelio a

memoacuteria de Bonifaacutecio elevaria sua personagem agrave dignidade do grande homem

modelo para a accedilatildeo e exemplo a ser imitado187 Cinco anos apoacutes a edificaccedilatildeo de seu

monumento no Largo Satildeo Francisco o IHGB voltava a comemorar Andrada e Silva

desta vez jaacute como ldquolidador na grandiosa empreza da emancipaccedilatildeo nacionalrdquo Era

ainda o ldquoministro ilustrado e previdente conselheiro leal e esforccediladordquo segundo os

mestres do Instituto cuja ldquogloacuteria a justa celebridade de seus feitos constituem um

patrimocircnio de inestimaacutevel valor para a naccedilatildeo que o preza e honrardquo 188

ldquoNatildeo haacute um ressurgimento dos grandes homens como patrimocircniordquo

perguntaria Franccedilois Hartog referindo-se aos dias atuais Ora no IHGB do seacuteculo

XIX Bonifaacutecio jaacute o era preceptor dos monarcas o velho conselheiro seria saudado

pela transcendecircncia geracional dos valores morais que representava189 ldquoPatrimocircnio

memoacuteria comemoraccedilatildeo os trecircs termos natildeo se intimidam a alternarrdquo Mas para que

possuam um foco de organizaccedilatildeo precisam fazer referecircncia a um quarto a

identidade190 Identidade que em 1900 isolada entre circuitos aristocraacuteticos natildeo seria

capaz de oficiar o grande homem frente aos quadros sociais jaacute organizados em torno

do tropismo nacional Para isso era preciso ir ao puacuteblico

186 ldquoMuita razatildeo pois tinha Cicero quando dizia ndash misero interdum civis optime de republica meritos

(desgraccedilados aquelles cidadatildeos que tiverem feito mais serviccedilos ao seu paiz)rdquo Eacute sem surpresa que

Silva Maia traduz republica por ldquoseu paizrdquo SILVA MAIA op cit p 136 187 ldquoA sabedoria a humanidade a fidelidade a justiccedila a modestia a resignaccedilatildeo em fim quasi todas as

virtudes fizeram de sua existecircncia uma pratica constante de acccedilotildees nobres e sublimes e do dia de sua

morte como diz eloquentemente Bossuet fallando de um grande homem o melhor o mais glorioso e o

mais feliz de sua vida Aqui tendes pois illustre auditoacuterio um modelo para grandes acccedilotildees aqui vos

offereccedilo este bello exemplo dimitaccedilatildeo elle merece certamente ser seguido tanto pelo que tem de bom

como porque o individuo que o apresenta respirou no berccedilo o mesmo ar que respiramosrdquo SILVA

MAIA op cit p 139 188 Parecer sobre o Elogio Histoacuterico de Joseacute Bonifaacutecio de Latino Coelho por Olegaacuterio Herculano de

Aquino e Castro e Joseacute Tito Nabuco de Arauacutejo Revista do IHGB t40 v2 1877 p 519 189 ldquoE voacutes Augusto Monarcha que honraes com vossa imperial presenccedila esta illustre sociedade voacutes

que fostes por vosso augusto pai confiado ao grande homem de quem lamentamos a perda quando a

idade aumentar os vosso jaacute felizes conhecimentos tereis um prazer bem vivo em vos lembrardes que

foi Joseacute Bonifacio quem primeiro dirigeu vossos nascentes passos quem delineou vossos estudos e

quem traccedilou a linha de vossa importante instrucccedilatildeo que promettem fazer-vos um dia um dos maiores

principes do vosso seculo entatildeo o mundo mostraraacute com assombro aacute mais remota posteridade o grande

Imperador do Brasil e diraacute - eis o pupillo de Joseacute Bonifacio de Andrada e Silvardquo SILVA MAIA op

cit p 139-140 190 ldquoNy agrave-t-il enfin une reviviscence des grands hommes comme patrimoine () Patrimoine meacutemoire

commeacutemoraison les trois termes nont cesseacute de tournoyer ils font systegraveme et renvoient vers un

quatriegraveme qui en figure comme le foyer organisateur identiteacuterdquo HARTOG 2005 p 187

72

2

Celebrar os mortos e editar a naccedilatildeo

Poliacuteticas de memoacuteria e esquecimento

21 O espelho perfeito de Bonifaacutecio a Bonifaacutecio

Satildeo Paulo 8 de dezembro de 1886 Reunidos no teatro Satildeo Joseacute o senador

Dantas apresenta o orador Ruy Barbosa em uma cerimocircnia ciacutevica que prestava

homenagem a certo Andrada e Silva Seu objetivo Prestar tributo ao ldquoGrande Mortordquo

comprometendo-se ndash diriam eles ldquotacitamenterdquo ndash com o lema da reforma servil

ldquoprimeiro a aboliccedilatildeo nada sem a aboliccedilatildeo tudo pela aboliccedilatildeordquo191 Morto haacute quase

meio seacuteculo o Patriarca de fato havia condenado a escravidatildeo em seu famoso

discurso agrave Assembleia Constituinte Dissolveu-se a Assembleia em 12 de novembro

de 1823 e condenou-se Bonifaacutecio relegando-o ao exiacutelio e descartando seu projeto de

lei emancipatoacuteria192 Mas natildeo era essa histoacuteria senatildeo indiretamente que se queria

comemorar naquela noite Era a histoacuteria de outro Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva

neto materno do Patriarca morto em 26 de outubro daquele ano Ano em que

protagonizou discussotildees acaloradas no senado do Impeacuterio contra Ribeiro da Luz em

nome da bandeira abolicionista Duas imagens sucessivas como no espelho

supostamente fiel de Halbwachs no qual um grupo se reconhece e faz reconhecer-se

Natildeo existia apenas um Bonifaacutecio e como toda vida o proacuteprio neto era

possuidor de um sem nuacutemero de perfis Detalhe que natildeo passava despercebido pela

191 ldquoFoi para este fim que a cidade de Satildeo Paulo alevantou-se em noite de 8 de Dezembro de 1886 e foi

ao theatro Satildeo Joseacute sancionar com a sua adesatildeo o preito que se tributava ao ldquoGrande Mortordquo ndash

subscrevendo tacitamente o lemma do eminente e ilustrado brasileiro o conselheiro Ruy Barbosa

orador oficial de tatildeo patrioacutetica solenidade ldquoPrimeiro a aboliccedilatildeo nada sem aboliccedilatildeo tudo pela

aboliccedilatildeordquo Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva Realisada em

noite de 8 de Dezembro de 1886 no Theatro S Joseacute Satildeo Paulo Publicaccedilatildeo em favor da libertaccedilatildeo dos

captivos Typographia King 1887 192 Os argumentos do velho Bonifaacutecio partiam de princiacutepios morais e cristatildeo e encontravam verbo nos

corolaacuterios do direito natural ldquoHa de espantarrdquo escreveu ldquoque hum trafico tatildeo contra aacutes Leis da moral

humana e aacutes santas maximas do Evangelho e ateacute contra as leis de huma satildea poliacutetica dure ha tantos

seculos entre os homens que se dizem civilizados e christatildeosrdquo ANDRADA E SILVA Joseacute Bonifaacutecio

de Representaccedilatildeo aacute Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil sobre a

Escravatura Paris Firmin Didot 1825 p 20 Seu projeto de lei previa o fim da escravidatildeo no Impeacuterio

do Brasil em apenas 4 ou 5 anos

73

sinceridade intelectual de Souza Dantas ldquoOs oradores que tiverem de mostrar-vos em

todas as faces o quadro da vida e do gecircniordquo disse o homem puacuteblico ldquoestudaratildeo nelle

o prosador o poeta o polemista o jornalista o orador o jurisconsulto o professor e

vos diratildeo a que alturas elle subiu em todas essas revelaccedilotildees muacuteltiplas de sua vasta e

esplendida intelligecircnciardquo 193 Ora selecionemos pois o Grande Morto a ser

comemorado naquela noite de 1886 era neto mas tambeacutem avocirc embora muito mais

senador do que conselheiro muito menos pedagogo dos monarcas do que exemplo

moral de toda a naccedilatildeo Afinal dentre esse inuacutemero quadro de atividades e virtudes

ciacutevicas solicitou o senador Dantas aos seus leitores

Deixae pois que de toda a vida do pranteado cidadatildeo eu

destaque antes voacutes em breve mas raacutepido relevo apenas

a ultima phase de sua carreira aquella em que a morte

de suacutebito o colheo como nrsquouma apoteose quando no

pleno apogecirco da gloria e do talento elle voltara-se todo aacute

maior das causas aacute que seu espiacuterito dedicou-se aquella

que seu coraccedilatildeo mais profundamente amou a liberdade

dos escravos194

Retirar detalhes da biografia de um homem ilustre investir na lembranccedila de

certo feitos e seguindo uma loacutegica jaacute centenaacuteria ldquoarrancaacute-los dali e pocirc-los na vitrinerdquo

195 O procedimento que investe na densidade memorial de tal ou qual episoacutedio

precisa ndash pela boa feacute da ciecircncia e pela sensibilidade agraves identidades contituidas ndash

argumentar com as evidecircncias lembradas por outras vontades poliacuteticas e a partir dali

minimizaacute-las senatildeo conduzindo-as ao esquecimento Sim ldquoJoseacute Bonifaacutecio foi

monarchistardquo admite Barbosa em seu discurso embora natildeo soubesse ldquodizer se ateacute os

seus uacuteltimos dias continuou a encarar o throno como em 1861 quando via nas

proviacutencias do Impeacuterio uma famiacutelia de lsquoirmatildes igualmente desveleadas em amor

estremecido aacute monarchiarsquordquo196 Mais do que lembraacute-lo como parceiro dos imperadores

cabe dizer que ldquoelle natildeo alimentava prevenccedilotildees fundamentaes contra a republicardquo197

Agora em finais do seacuteculo XIX ldquotodas as proviacutencias tecircm trazido a esta memoria sua

oblaccedilatildeo e todas a consagram a Joseacute Bonifaacutecio o abolicionistardquo 198 Barbosa ndash

193 Idem p 9 194 Idem ibidem Grifos meus 195 MONTAIGNE op cit Livro I Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas p 101 196 BARBOSA Ruy Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva

1886 p 26 Citando BONIFAacuteCIO Joseacute Discurso de 28 de junho de 1861 197 BARBOSA Ruy 1887 p 27 198 BARBOSA Ruy 1887 p 67

74

oficiante ou ldquoorador oficial de tatildeo patrioacutetica solemnidaderdquo ndash natildeo mediu esforccedilos

retoacutericos para associar o grande homem a certo projeto liberal ldquosem avenccedilas com o

captiveirordquo 199 Ou natildeo era a aboliccedilatildeo nas palavras do uacuteltimo Bonifaacutecio a ldquomelhor de

todas as causasrdquo 200 Nisso ldquoa naccedilatildeo toda o applauderdquo ndash ou pelo menos assim

aclamava o orador oficial em nome da naccedilatildeo Pois agravequeles que celebravam Andrada e

Silva por outros motivos sobrava-lhes a provocaccedilatildeo dizendo que ldquomorresse elle trez

anos antes e toda a sua existecircncia anterior natildeo se compararia com alguns momentos

da phase que a cerrourdquo 201 Ruy Barbosa queria assim neste distinto malabarismo

memorial conduzido por um claro uso poliacutetico do passado chegar agrave conclusatildeo de que

ldquose o partido liberal () refusa a missatildeo de partido abolicionista natildeo pode reclamar a

heranccedila de Joseacute Bonifaacuteciordquo 202 E de nada vale murmurar nas sombras do

esquecimento que Andrada e Silva ldquopouco fezrdquo como se o caraacuteter dos grandes

homens fosse quantificaacutevel

ldquoA medida do valor dos homens () natildeo eacute arithmetica

senatildeo moral estaacute na personalidade a qual se aprecia

menos pelas acccedilotildees do que pela influencia () Essa

forccedila irradiadora para que natildeo haacute dynamometro

possiacutevel que poacutede mais do que as obras a eloquecircncia a

majestade e o gecircnio eacute o caraacuteter isso a que algueacutem

chamou de a vontade do homem purordquo 203 199 BARBOSA Ruy 1887 p 61 200 BONIFAacuteCIO Joseacute Sessatildeo de 4 de setembro de 1885 Anaes do Senado 1886 vol IV p 179

APUD BARBOSA 1887 p 61 Ver tambeacutem FARIA Julio Cezar de Joseacute Bonifaacutecio o moccedilo

Companhia editora nacional Satildeo Paulo 1944 p 338 201 BARBOSA Ruy 1887 p 61 202 BARBOSA Ruy 1887 p 62 203 BARBOSA Ruy 1887 p 70 A leitura de Ruy Barbosa sobre o problema dos grandes homens natildeo

parece sair de Cousin senatildeo talvez apenas indiretamente de Carlyle atraveacutes da obra do ensaiacutesta

americano RW Emerson Muito popular no final do seacuteculo XIX Emerson chegou a realizar uma

releitura das tipologias do Grande Homem de Carlyle sob o tiacutetulo de Representative men No texto

citado por Barbosa ldquoA vontade dos puros emana deles para os outros entes como a agua deriva de um

vaso para outro inferior O caraacuteter eacute a ordem moral entrevista atraveacutes de uma natureza individualrdquo

EMERSON Waldo Ralph Character In Essays Second Series The Complete WorksVol III

Boston and New York Houghton Mifflin and Company 1904 p 95 No original ldquoThe will of the pure

runs down from them into other natures as water runs down from a higher into a lower vessel This

natural force is no more to be withstood than any other natural force We can drive a stone upward for

a moment into the air but it is yet true that all stones will forever fall and whatever instances can be

quoted of unpunished theft or of a lie which somebody credited justice must prevail and it is the

privilege of truth to make itself believed Character is this moral order seen through the medium of an

individual naturerdquo O transcendentalismo de Emerson adepto de uma loacutegica neo-platonica (the tought

is always prior to the fact) inspirada pela crenccedila na metempsicose (the transmigration of souls is no

fable) fazia-o sustentar a existecircncia de uma ldquomente comum a todos os homens individualmenterdquo (there

is one mind common to all individual men) de modo que ldquose toda histoacuteria estaacute em um soacute homem ela

pode ser explicada pela experiecircncia individualrdquo (if the whole of history is in one man it is all to be

explained from individual experience) Em seu ensaio sobre a Histoacuteria (1841) Emerson propotildee uma

praacutetica de leitura que permita ao indiviacuteduo a possibilidade de ldquoviver toda a histoacuteria em sua proacutepria

75

O trabalho de enquadramento de uma bios feito por uma vontade poliacutetica da

memoacuteria ndash ou seja uma comemoraccedilatildeo ndash precisaria estar atenta agraves prerrogativas da

consciecircncia moral agora traduzidas pela imagem ldquopurardquo diriacuteamos noacutes editada de

um grande homem da histoacuteria nacional Em Emerson ndash o ldquoalgueacutemrdquo a quem se refere

Barbosa na passagem supracitada ndash o caraacuteter do great men manifesta-se como

sineacutedoque da consciecircncia social204 Sua existecircncia individual no entanto uacutenica

continua representativa como fora para Cousin ldquoprimeiro de coisas depois de ideiasrdquo

205 A forccedila do seu caraacuteter puro o qual habita uma ldquoesfera superior do pensamentordquo

introduz com ele ldquoverdades morais na mente geralrdquo 206 ldquoNossa religiatildeo eacute o amor e o

pessoa () ele deve transferir seu ponto de vista daquele que a histoacuteria eacute comumente lida de Roma a

Atenas e Londres ateacute ele mesmo sem negar sua convicccedilatildeo de que ele eacute o tribunal e se a Inglaterra ou o

Egito tiver algo a dizer ele analisaraacute o casordquo (he sould see that he can live all history in his own person

() he must transfer the point of view from which history is commonly read from Rome and Athens

and London to himself and not deny his conviction that he is the court and if England or Egypt have

any thing to say to him he will try the caserdquo Emerson que se dizia naturalista pensava que o

conhecimento do passado ou a possibilidade de revivecirc-lo aproximava-nos da natureza humana

Buscava natildeo a ldquotiraniardquo dos fatos (facts tyrannize over them and make the men of routine the men of

sense) mas a ldquorazatildeo necessaacuteriardquo (necessary reason) de cada evento qual poderia desvelar a identidade

da histoacuteria ldquoseu pensamento vive ao longo de toda linha de templos esfinges e catacumbas passa

satisfeito por todos eles para viver de novo na mente ou no agorardquo (his thought lives along the whole

line of temples and sphinxes and catacombs passes through them all with satisfaction and they live

again to the mind or are now) A natureza do pensamento humano vive no fluxo de consciecircncia que

paira sobre um tempo coacutesmico O estudioso da histoacuteria nessa loacutegica vasculha o passado ateacute encontrar

a si mesmo ldquonossa admiraccedilatildeo do antigo natildeo eacute a admiraccedilatildeo do velho mas do naturalrdquo () pois

ldquoquando um pensamento de Platatildeo torna-se meu pensamento ndash quando uma verdade que acendeu a

alma de Piacutendaro inflama a minha nada haacute mais Quando eu sinto que noacutes dois nos conhecemos em

uma percepccedilatildeo () por que devo medir graus de latitude por que devo eu contar anos egiacutepciosrdquo (Our

admiration of the antique is not admiration of the old but of the natural () when a thought of Plato

becomes a thought to me ndash when a truth that fired the soul of Pindar fires mine time is no more When

i feel that we two meet in a perception () why sould I measure degrees of latitude why should I count

Egyptian yeras) Esse encontro do homem universal (universal men) com a natureza universal

(universal nature) eacute promovido por uma leitura absolutamente sinedoacutequica entre a experiecircncia

individual e o singular coletivo ldquoem outras palavras natildeo existe propriamente histoacuteria apenas

biografiardquo (on other words there is no properly History only biography) EMERSON Ralph Waldo

History In The Complete Works Vol II Essays First SeriesBoston and New York Houghton

Mifflin and Company 1904 pp 4-41 Sua visatildeo dos grande homens eacute tambeacutem naturalmente pautada

pelo individualismo metodoloacutegico como a passagem citada por Barbosa evidencia eles satildeo a

expressatildeo individual de uma razatildeo necessaacuteria ndash a ordem moral 204 ldquo() men of character are the conscience of the society to which they belongrdquo EMERSON

Character 1904 p 96 Na nota 2 dessa mesma paacutegina o editor incluiu ldquoIn the lecture on Politics as

first delivered these sentences occur Character is the true theocracy It will one day suffice for the

government of the world 205 ldquoMen are also representative first of things and secondly of ideasrdquo EMERSON Waldo Ralph

The Complete Works Uses of Great Men In Representative men Vol IV Boston and New York

Houghton Mifflin and Company 1904 p 8 206 ldquoI count him a great man who inhabits a higher sphere of thoughtrdquo Idem p 6 ldquoHow to illustrate the

distinctive benefit of ideas the service rendered by those who introduce moral truths into the general

mindrdquo Idem p 21

76

apreccedilo desses patronosrdquo 207 Com o seu culto a grande forccedila sobre a qual repousa o

projeto comemorativo pocircde traduzir-se atraveacutes do intento de ldquoarrancar o Brasil da

lethargia moral em que tem vivido () e lhe fazer compreehender que deve e haacute de

restituir aacute humanidade essa grande parte de seu ser a qual tem sido arredada a

comunhatildeo dos homens pelas algemas da escravidatildeordquo 208 Nesse gesto simboacutelico que

devolve a humanidade aos cativos ndash mesmo que teoricamente avesso ao holismo

funcionalista um gesto quase durkhemiano de reparaccedilatildeo moral ndash encontramos como

corolaacuterio certa desumanizaccedilatildeo panteonizadora ndash e possivelmente algo mais Ou

oficiando a memoacuteria de Joseacute Bonifaacutecio o neto em uma seacuterie de discursos que natildeo

fazem sequer referecircncia a sua mocidade natildeo estariam os ldquonovos liberaisrdquo

enquadrando de uma soacute vez tambeacutem a mateacuteria memorial de seu avocirc materno

Inegaacutevel diaacutelogo para dizer o miacutenimo entre experiecircncias geracionais Mas

conversar com os mortos eacute sempre uma tarefa para cegos no qual o passado ndash sem

uma existecircncia visiacutevel para aleacutem do ruiacutedo de uma memoacuteria inexoravelmente sujeita

aos trabalhos do presente ndash eacute aberto a usos e abusos A commemoratio barbosiana natildeo

apenas editou uma vida recortando seus uacuteltimos atos supendendo-os da ordem do

tempo copiando e colando-os jaacute no proacutelogo de sua existecircncia Seu epitaacutefio natildeo

satisfeito com a simples adesatildeo agrave causa foi bem aleacutem relacionando o grande homem

agrave imagem do ldquoradicalismo abolicionistardquo e aquinhoando um procedimento caro as

mais antigas autarquias orientais representou a mais perfeita continuidade ndash de

Bonifaacutecio a Bonifaacutecio ndash da memoacuteria coletiva de um quadro identitaacuterio e

abolicionista209

22 A lembranccedila como ato moral

Barbosa referia-se aos uacuteltimos anos do Impeacuterio era posterior ao bem sucedido

gabinete do Baratildeo de Rio Branco (1871-1875) deacutecada de interrompidos avanccedilos

207 ldquoOur religion is the love and cherishing of these patrons The gods of fable are the shining moments

of great menrdquo Uses of Great Men p 4 208 BARBOSA Climaco Ao Puacuteblico Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de

Andrada e Silva p 4 Grifos meus 209 BARBOSA Ruy op cit ldquoTransubstanciado por esse contacto com a realidade eterna o coraccedilatildeo de

Joseacute Bonifacio eacute hoje o coraccedilatildeo impessoal da patria e o sentimento que propulsa o musculo titanico eacute

o radicalismo abolicionistardquo p 60-61 Para Angela Alonso os ldquoNovos Liberais () ressaltaram uma

continuidade abolicionista na histoacuteria brasileira Apresentaram-se como herdeiros da melhor cepa

liberal do Impeacuterio a geraccedilatildeo de Bonifaacutecio idealizadora da Independecircncia e da monarquia

constitucional com trabalho livre bem como de todos os reformadores do Segundo Reinado mesmo os

conservadores como Euseacutebio Paranaacute e Rio Brancordquo op cit p 293

77

liberais e obstaacuteculos impostos agrave causa abolicionista210 Derrotado nas eleiccedilotildees de

1886 frustrado e excluiacutedo dos ciacuterclos de poder ele perguntava-se se ldquohaacute ahi na

chronica deste paiz ephemeacuterides de immoralidade comparaacuteveis aacutes destes dois

annosrdquo211 A escravidatildeo esse crime do direito ciacutevil contra o direito natural jaacute era ao

menos desde o velho Bonifaacutecio catalisadora de um discurso moralista ndash mas a

aboliccedilatildeo natildeo marcou o fim do topos Quanto mais se aproximavam da virada do

seacuteculo os anos mais evidenciavam atraveacutes de parte da intelectualidade e da imprensa

certa leitura moral das crises que assolariam a jovem repuacuteblica Marcas da geraccedilatildeo de

1870 Daqueles ldquotristiacutessimos temposrdquo de ldquoum mundo que se acabardquo e no qual se

pode escutar o ldquoranger das peccedilas de um edifiacutecio que se esboroardquo 212 Eacute possiacutevel que

sim muito embora a tendecircncia a assinalar esse tipo de diagnoacutestico natildeo lhe seja eacute

claro uacutenica

Em 1843 o perioacutedico O Panorama ou Jornal Literaacuterio e Instructivo da

Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uacuteteis publica pela primeira vez o

romance histoacuterico O Bobo Preocupado nitidamente com o problema da identidade

nacional seu autor Alexandre Herculano elenca o reinado de Dona Urraca I (1078-

1126) como periacutedo originaacuterio da nacionalidade portuguesa O cenaacuterio eacute o castelo de

Guimaratildees no Condado Portucalense e o enredo termina por versar em torno de D

Bibas o Bobo que caiacutera em desgraccedila com a morte de seu querido protetor D

Henrique Testemunha das intrigas palacianas ora espiando por debaixo dos panos de

mesa jurava vinganccedila tornando-se espeacutecie de eminecircncia parda de uma histoacuteria

secreta

Degradaccedilatildeo moral Era esse o sentimento de Herculano em relaccedilatildeo a um dos

mais ldquodesastrosos periacuteodos de desordens de rebeliotildees e de guerras civisrdquo signos do

reinado de D Urruca Resistir era inuacutetil dizia o autor pois qualquer accedilatildeo contraacuteria

aos desmandos da monarquia tomava finalidades ldquoindividuais desconexas e por isso

sem resultados definitivos efeito natural de instituiccedilotildees puacuteblicas viciosas e

210 Ver ALONSO 2002 A autora defende que Rio Branco teria retirado certas pautas da matildeo dos

liberais e republicanos (como por exemplo a reforma do ensino) ao passo que jaacute em 1878 o gabinete

do Visconde de Sinimbu natildeo fazia mais do que ecoar o poder moderador 211 BARBOSA Ruy op cit p 50 212 Tristiacutessimos tempos sr Conselheiro () Vim buscar inspiraccedilotildees agrave Europa Levo-as mas quatildeo

diversas do que eu sonhava Este eacute um mundo que se acaba () Sente-se o ranger das peccedilas de um

edifiacutecio que se esboroa Carta de Tavares Bastos agrave Nabuco de Araujo 1867 Apud ALONSO Acircngela

2002 Citado nas paacuteginas 52 e 96

78

incompletasrdquo 213 Para o escritor lusitano isso acontecia porque

A ideacuteia de naccedilatildeo e de paacutetria natildeo existia para os homens

drsquoentatildeo do mesmo modo que existe para noacutes O amor

cioso da proacutepria autonomia que deriva de uma

concepccedilatildeo forte clara consciente do ente coletivo era

apenas se era um sentimento frouxo e confuso para os

homens dos seacuteculos XI e XII Nem nas crocircnicas nem

nas lendas nem nos diplomas se encontra um vocaacutebulo

que represente o espanhol o indiviacuteduo da raccedila godo-

romana distinto do sarraceno ou mouro () O que falta

eacute a designaccedilatildeo simples precisa do suacutebdito da coroa de

Oviedo Leatildeo e Castela E por que falta Eacute porque em

rigor a entidade faltava socialmente214

Em um periacuteodo em que a identidade natildeo era uma evidecircncia a compatibilidade

coletiva era afirmada ndash mesmo na ausecircncia de uma designaccedilatildeo para portugueses e

espanhoacuteis ndash ainda assim pela via da alteridade Entre cristatildeos e muccedilulmanos a

afinidade grifada pela feacute ldquoaparecia clara e distintardquo Em outras palavras enquanto a

identidade nacional natildeo se fazia (no vocabulaacuterio cartesiano uma evidecircncia) ldquocada

catedral cada paroacutequia cada mosteiro cada simples asceteacuterio era um anel da cadeia

moral que ligava o todo na falta de um forte nexo poliacuteticordquo215 Mas esse tipo de elo

identitaacuterio natildeo era suficiente para deter a crise cuja imagem manifesta atraveacutes de

costumeira pintura moral ganhou sentido histoacuterico pelo paralelo traccedilado por

Herculano entre a archeacute e o telos da lusitanidade ldquoPobres fracos humilhadosrdquo o

presente dos portugueses ndash como o foi a sua origem ndash era experienciado pelo topos da

decadecircncia moral Na leitura do autor de O Bobo o horizonte soacute ganhava em

expectativa quando iluminado pela lembranccedila de uma aurora gloriosa

() depois de tatildeo formosos dias de poderio e de renome

que nos resta senatildeo o passado Laacute temos os tesouros dos

nossos afetos e contentamentos Sejam as memoacuterias da 213 HERCULANO Alexandre O bobo Satildeo Paulo Saraiva 1959 Documento digitalizado por Antonio

de Padua Danesi Disponiacutevel em httpwwwdominiopublicogovbr Acesso em 14 de Dezembro de

2013 p 2 214 Idem Ibidem 215 Idem Ibidem ldquoHavia-a mas debaixo de outro aspecto em relaccedilatildeo ao grecircmio religioso Essa sim

que aparece clara e distinta A sociedade criada era uma e preenchia ateacute certo ponto o incompleto da

sociedade temporal Quando cumpria aplicar uma designaccedilatildeo que representasse o habitante da parte da

Peniacutensula livre do jugo do Islam soacute uma havia christianus O epiacuteteto que indicava a crenccedila

representava a nacionalidade E assim cada catedral cada paroacutequia cada mosteiro cada simples

asceteacuterio era um anel da cadeia moral que ligava o todo na falta de um forte nexo poliacuteticordquo Grifos

meus

79

paacutetria que tivemos o anjo de Deus que nos revoque agrave

energia social e aos santos afetos da nacionalidade Que

todos aqueles a quem o engenho e o estudo habitam para

os graves e profundos trabalhos da histoacuteria se dediquem

a ela No meio de uma naccedilatildeo decadente mas rica de

tradiccedilotildees o mister de recordar o passado eacute uma espeacutecie

de magistratura moral eacute uma espeacutecie de sacerdoacutecio

Exercitem-se o que podem e sabem porque natildeo o fazer

eacute um crime 216

Essa tarefa ciacutevica alcanccedilaria feiccedilotildees complementares a um rito positivo quer

seja de um exerciacutecio de reparaccedilatildeo moral Para Herculano celebrar os tesouros do

passado portuguecircs eacute mais do que um compromisso dos eruditos uma espeacutecie de

dever do historiador o qual recusando-se a julgar (positivamente) o passado colonial

seria ele mesmo condenado como criminoso Ora os tempos grandiosos do impeacuterio

ultramarino eram a uacutenica dimensatildeo em que a histoacuteria paacutetria aparentava aos olhos de

muitos intelectuais de sua eacutepoca marchar no ritmo das naccedilotildees mais civilizadas217

Essa leitura da experiecircncia peninsular do tempo ndash seu passado seu presente seu

futuro ndash natildeo foi em nada uacutenica a Alexandre Herculano embora as particularidades de

cada autor envolvido em sua reflexatildeo evidenciassem ainda diferentes formas de se

relacionar com os dias que jaacute se foram Almeida Garrett acostumado a viajar de

livros em matildeos no deleite do quarto toma enfim o caminho da estrada ndash e nele

testemunha a experiecircncia decadentista Sua obra Viagens na Minha Terra eacute o ldquosentir

da criserdquo embora tambeacutem seja um manifesto pelo caraacuteter do povo portuguecircs

entendido por meio de seus elementos constituidores imaginados a partir da ldquoterra da

tradiccedilatildeo dos costumes e do proacuteprio passadordquo 218

Algumas deacutecadas mais tarde os beletristas de 1870 natildeo seriam tiacutemidos em

transformar as impressotildees da geraccedilatildeo anterior em armas de embate puacuteblico Antero de

Quental esboccedilou em uma das famosas Conferecircncias do Casino 27 de maio de 1871

uma visatildeo que em algum sentido tornou-se arquetiacutepica da ldquodecadecircncia como uma

216 Idem Ibidem Grifos meus 217 ldquoAgrave medida que o seacuteculo XIX se desenrola comeccedila a desenhar-se com nitidez o progressivo

distanciamento do nosso paiacutes face agraves naccedilotildees que lentamente se industrializam e se desenvolvem e que

concomitantemente vatildeo produzir uma natildeo menos prodigiosa revoluccedilatildeo cultural de que nos chegaratildeo

ecos Satildeo pois a conscientizaccedilatildeo destes factos e a assunccedilatildeo da nossa pequenez e impossibilidade

fiacutesica para a realizaccedilatildeo de tatildeo difiacutecil desiderato que levaratildeo toda uma geraccedilatildeo a preocupar-se

denodadamente com as razotildees da decadecircncia nacional () RODRIGUES Vitor Luis Gaspar A

decadecircncia da monarquia constitucional portuguesa factores de afirmaccedilatildeo do ideaacuterio republicano

Ponta Delgada Universidade dos Accedilores 1986 p 83 218 RODRIGUES op cit p 84

80

espeacutecie de estigma indeleacutevel e recorrente de nosso destino peninsularrdquo 219 Sua palavra

aparece como um apelo agrave ldquocomunhatildeo moralrdquo diante de um amplo quadro de

dissoluccedilatildeo dos costumes220 As causas Accedilatildeo funesta do cristianismo

contrarreformado associado ao tribunal da inquisiccedilatildeo agrave ordem jesuiacutetica e agrave poliacutetica

do antigo regime que levaram os paiacuteses ibeacutericos agrave ldquomorte moralrdquo 221 Sua soluccedilatildeo

notemos natildeo era menos polecircmica ldquoEacute necessaacuterio um esforccedilo virilrdquo escreveu Antero

de ldquoquebrar resolutamente com o passadordquo O respeito agrave ldquomemoacuteria dos nossos avoacutesrdquo

sua rememoraccedilatildeo piedosa deveria ser mantida poreacutem ao custo de jamais os

imitarmos O passado observado atraveacutes da dinacircmica entre decadecircncia e progresso

natildeo era mais lido atraveacutez de imagens que certo vez nas paacuteginas de Plutarco foram

ldquovirtudes em accedilatildeordquo222 Era tambeacutem um espaccedilo traacutegico de viacutecios corrupccedilatildeo e mazelas

Essa desvalorizaccedilatildeo do caraacuteter moralmente utilitaacuterio do passado cuja recusa a

imitatio pode ser entendida tambeacutem como um triunfo na crenccedila na dinacircmica do

progresso difere do modelo de Alexandre Herculano muito embora seu socialismo agrave

la Prudhomme tambeacutem natildeo fizesse quoacuterum entre grande parte dos republicanos de

seu paiacutes223 Mesmo assim ldquomarca uma eacutepoca em Portugalrdquo Foi a primeira vez que

como disse um contemporacircneo ldquoem Portugal entra o espiacuterito moderno e a primeira

vez que aqui se expotildee () que o Catolicismo foi uma das causas () da decadecircncia de

Portugal e de Espanhardquo224

Inexistente no latim claacutessico o termo decadentia (de-cadere) aparece durante

219 LOURENCcedilO Eduardo Revisitaccedilatildeo da mitologia anteriana Prefaacutecio agraves Causas da decadecircncia dos

povos peninsulares nos uacuteltimos trecircs seacuteculos In QUENTAL Antero Lisboa Tinta-da-china 2008 p

11-12 220 QUENTAL Antero Causas da decadecircncia dos povos peninsulares nos uacuteltimos trecircs seacuteculos

Prefaacutecio de Eduardo Lourenccedilo Lisboa Tinta-da-china 2008 p 25-26 221 Nas palavras do autor ldquoO espiacuterito sombrio e depravado da sociedade reflectiu-o a Arte com uma

fidelidade desesperadora que seraacute sempre perante a histoacuteria uma incorruptiacutevel testemunha de acusaccedilatildeo

contra aquela eacutepoca de verdadeira morte moral Essa morte moral natildeo invadira soacute o sentimento a

imaginaccedilatildeo o gosto invadira tambeacutem invadira sobretudo a inteligecircnciardquo op cit pp 30-31 222 Sobre a relaccedilatildeo necessaacuteria entre as imagens como ldquovirtudes em accedilatildeordquo e o estiacutemulo agrave imitatio ver

HARTOG Franccedilois Plutarque entre les anciens et les modernes In PLUTARQUE Vies Parallegraveles

Paris Gallimard 2001 p 14 223 ldquoOponhamos ao catolicismo natildeo a indiferenccedila ou uma fria negaccedilatildeo mas a ardente afirmaccedilatildeo da

alma nova a consciecircncia livre () a filosofia a ciecircncia e a crenccedila no progresso na renovaccedilatildeo

incessante da Humanidade pelos recursos inesgotaacuteveis do seu pensamento () Oponhamos agrave

monarquia centralizada uniforme e impotente a federaccedilatildeo republicana de todos os grupos

autonoacutemicos de todas as vontades soberanas () oponhamos a iniciativa do trabalho livre a induacutestria

do povo pelo povo e para o povo natildeo dirigida e protegida pelo Estado mas espontacircnea natildeo entregue

agrave anarquia cega da concorrecircncia mas organizada duma maneira solidaacuteria e equitativa operando assim

gradualmente a transiccedilatildeo para o novo mundo industrial do socialismo a quem pertence o futurordquo

Idem 224 REIS Jaime Batalha Correspondecircncia Apud BERRINI Beatriz Brasil e Portugal A Geraccedilatildeo de

70 Campo das Letras Porto 2003 p 25

81

a Idade Meacutedia para designar a deteriorizaccedilatildeo a ruiacutena ou o colapso Na modernidade

decadecircncia opotildee-se a progresso e natildeo seraacute ldquode resto por acaso que a decadecircncia

como categoria de anaacutelise histoacuterica se aviva no seacuteculo XIX quando a ideia e a crenccedila

no progresso se desenvolvem fortementerdquo225 Joel Serratildeo em verbete do seu

Dicionaacuterio de Histoacuteria de Portugal segue um rumo parecido ao afirmar que ldquosem a

ideia de progresso a ideia de decadecircncia ldquonatildeo alcanccedila sentido algum () soacute se torna

legiacutetimordquo afinal de contas ldquodizer que algo decai apoacutes se ter postulado previamente

em que consiste subirrdquo226

Apenas nove anos separam a conferecircncia de Quental das comemoraccedilotildees do

tricentenaacuterio da morte de Camotildees Aqueles que sentiam a crise reconheciam tambeacutem

certa necessidade em retornar ao passado como se nele protegida pela passagem dos

anos repousasse certa essecircncia virtuosa e esquecida A municcedilatildeo vinha do norte

carregada nas folhas da Fraserrsquos Magazine em palavras anotadas anos antes pelo

proacuteprio Thomas Carlyle

Carlyle resenha o romance histoacuterico de Guilherme Centazzi saudado

justamente por se afastar dos modelos peninsulares que lhe eram contemporacircneos O

Estudante de Coimbra contava a histoacuteria do jovem que saiacutedo da universidade se via

na frente de batalha das guerras liberais Era para o criacutetico escocecircs um livro raro

entre os romances lusitanos ldquofundado sobre fatos natildeo faacutebulas em eventos histoacutericos

e costumes nacionais ao inveacutes de absurdos leviatatildes e geografias impossiacuteveisrdquo227 Se o

retrato do presente havia salvo o romance portuguecircs do atraso das mirabilia ainda

vivas no antigo regime ele natildeo tinha ainda assim contribuiacutedo para frear a decadecircncia

de Portugal Guerra permanente nunca andou de lado com o progresso das belas

letras mas revoluccedilotildees e guerras civis exatamente o tipo de conflito no qual os

lusitanos viam-se de imediato envolvidos lhes seriam fatais

Alguns argumentos que mais tarde estaratildeo presente na conferecircncia de Quental

jaacute se faziam ouvir nessas palavras de Carlyle As causas primaacuterias do decliacutenio ldquode

uma naccedilatildeo que outrora foi vanguarda empreendedora das descobertasrdquo foram por um

lado a ldquoafluecircncia do ouro vindo dos paiacuteses receacutem descobertos a opressatildeo do jugo

225 PIRES Antoacutenio Machado A Ideia de Decadecircncia na Geraccedilatildeo de 70 2 ed Lisboa Vega 1992 p

18 226 SERRAtildeO Joel Dicionaacuterio de Histoacuteria de Portugal Vol 1 V decadecircncia 227 ldquo() a book founded on facts and not on fables on historical events and national customs instead

of absurd leviathans and impossible geographyrdquo CARLYLE Thomas Romance of Portuguese

Revolution March 1848 In Frasersrsquos Magazine for Town And Country January to June 1848

London John W Parker West Strand Vol XXXVII p 274

82

espanholrdquo e por outro ldquoos grilhotildees impostos ao progresso pelos jesuiacutetas e pela

Inquisiccedilatildeordquo embora ldquoa continuidade de seu estado de degradaccedilatildeo pelo menos em

dias recentes ldquodeva ser buscada em sua proacutepria incansaacutevel turbulecircncia e em suas

querelas internasrdquo228 Primeiro romance moderno de Portugal Eacute bem possiacutevel que

Carlyle concordasse Mas isso natildeo significa em nada que fosse uma obra prima se

em Lisboa ele poderia ser considerado um livro de primeiro escalatildeo em Londres

estaria mais proacuteximo do terceiro229 As guerras liberais haviam valorizado a

pertinecircncia dos temas presentes e com eles o romance moderno mas o paralelo de

seus frutos artiacutesticos com o grande vulto da lusitanidade era ainda visto como

profundamente desigual ldquoQuatildeo incomensuraacutevel eacute o intervalo entre o melhor dos

escritoresrdquo ndash exalta o professor escocecircs ao denegrir os beletristas portugueses de seu

tempo ndash e o ldquoinspirado e patrioacutetico autor drsquoOs Lusiacuteadasrdquo230 Passados quase

quatrocentos anos Portugal era ainda nada mais do que ldquoa terra nativa de Camotildeesrdquo231

Nessa terra de Camotildees Almeia Garret natildeo demoraria para flertar com uma

leitura ldquonacionalistardquo drsquoOs Lusiacuteadas escrevinhando o eacutepico no grande-homem-poeta

do ensaiacutesta escocecircs ou aquele que canta a naccedilatildeo ldquoNatildeo admirardquo escreveu Oliveira

Martins ldquoque desde entatildeo Camotildees ficasse na alma popular como siacutembolo da naccedilatildeo e

Os Lusiacuteadas como sua biacutebliardquo Deveriacuteamos nos surpreender caso o poeta zarolho

animasse tambeacutem os espiacuteritos dos filhos do Brasil Pai da liacutengua ldquoassim dotado com

todos os caracteres do povo que representavardquo poderia tambeacutem de alguma maneira

representar a Ameacuterica Portuguesa232 No ambiente intelectual e poliacutetico varrido pelas

ondas comemorativas de finais do seacuteculo dezenove a geraccedilatildeo brasileira de 1870

228 If the primary causes of decline in a nation which once led the van of natical enterprise and

discovery were the great influx of gold from new-found countries the oppressive Spanish yoke and

the fetters imposed on progress by Jesuits and the Inquisition the continuance of its degraded state at

least in recent days must be sought in its own restless turbulence and internal quarrels Idem p 272 229 () it is refreshing to turn to a book which if in England it would be esteemed of third-rate merit

may certainly claim in Portugal a place in the very first rank () Idem p 274 230 Idem p 273 231 ldquo() the native land of Camoens ()rdquo Idem p 272 232 ldquoNatildeo admira pois que desde entatildeo Camotildees ficasse na alma popular como siacutembolo da naccedilatildeo e Os

Lusiacuteadas como a sua biacuteblia Natildeo admira que tivesse passado agrave condiccedilatildeo de epoacutenimo desta pequena

paacutetria tatildeo semelhante a Atenas e mais ainda a Esparta na agitaccedilatildeo da sua vida poliacutetica na grandeza da

sua missatildeo colonial e tambeacutem na miseacuteria fuacutenebre da sua decomposiccedilatildeo Natildeo admira que desde o

seacuteculo XVII por toda a parte onde surgisse de entre as ruiacutenas do edifiacutecio nacional algum fuste de

coluna ainda de peacute ou algum friso inteiro onde se visse correr agitada a trageacutedia de outras eras por

toda a parte onde se erguesse do matagal de urzes e cardos da histoacuteria a haste florida de uma accedilucena

de saudade ou de esperanccedila a corola dessa flor ou a forma dessa evocaccedilatildeo tivesse o perfume e a cor

dos Lusiacuteadas e se considerasse uma revelaccedilatildeo de Camotildees () E quis a sorte que um poeta assim

dotado com todos os caracteres do povo que representava aparecesse no momento proacuteprio da completa

definiccedilatildeo do seu pensamentordquo MARTINS Oliveira Camotildees Os Lusiacuteadas e a Renascenccedila em

Portugal 4ordf ed Lisboa Guimaratildees Ed 1986 (2ordf ed1891)

83

acessaria o mesmo personagem numa tentativa jaacute assinalada pela criacutetica de edificar

um contrapeso ibeacuterico ao indianismo saquerema233 Logo o centenaacuterio de Camotildees

seria comemorado no Brasil ao lado de uma efemeacuteride nacional imaginando um

personagem particular dentro do quadro geral do desenvolvimento da nacionalidade

transeuropeacuteia Castro Alves234

Contavam apenas dez anos da morte do autor de Navio Negreiro Para alguns

jaacute era hora de lembraacute-lo urgecircncia que se confundia na inspiraccedilatildeo do poeta ldquoaquele

que como o pai da trageacutedia grega possa dedicar suas obras lsquoao Temporsquo ()rdquo e nele

ldquoencarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento da sua eacutepocardquo235

Comemorar um defundo que mal terminou por ser velado pode parecer tanto comum

no mundo contemporacircneo mas para os finais do seacuteculo XIX o gancho jornaliacutestico

em especial um tatildeo imediato natildeo era ainda uma evidecircncia arbitrariamente edificada

sob os escombros dos excessos de informaccedilatildeo O paralelo precisava prestar contas ao

leitor ldquoA justificaccedilatildeo do decenaacuteriordquo explicava Ruy Barbosa ldquoeacute que Castro Alves

escreveu o poema da nossa grande questatildeo social e da profunda aspiraccedilatildeo nacional

que tem a resolverrdquo236 Em outras palavras o passado recente era acessado pelas

demandas de um tempo presente em franca aceleraccedilatildeo Suas palavras de ordem a

memoacuteria do morto sua comemoraccedilatildeo e a elevaccedilatildeo dele ao estatuto de patrimocircnio

nacional

Barbosa inicia o elogio comentando sua escolha como oficiante Ele natildeo eacute

poeta ndash natildeo habita os ldquocimos mais proacuteximos do astrordquo ndash escolha que demonstra

entatildeo um ldquonovo tributo ao nome que comemoraisrdquo237 Novo tributo que natildeo pretendia

233 Para Angela Alonso ldquoa recuperaccedilatildeo de Camotildees passou pelo filtro da geraccedilatildeo 1870 portuguesa No

auge do romantismo luso Almeida Garret se encarregara de prover uma leitura nacionalista de Os

Lusiacuteadas e de elevar Camotildees agrave situaccedilatildeo de mito Essa versatildeo se cristalizara na tradiccedilatildeo poliacutetico-

intelectual saquarema Por isso as geraccedilotildees 1870 a portuguesa e a brasileira retornaram a Camotildees

como estrateacutegia revisionista da proacutepria ideia de naccedilatildeordquo ALONSO op cit p 287 Ver tambeacutem

LOURENCcedilO E Mitologia da Saudade Cia das Letras Satildeo Paulo 1999 234 Transeuroeacuteia pois como escreveu Anne-Marie Thiesse ldquonada eacute mais internacional do que a

formaccedilatildeo das identidades nacionaisrdquo THIESSE Anne-Marie La creacuteation des identiteacutes nationales

Europe XVIII-XIX siegravecles Paris Seuil 1999 Citado tambeacutem por ENDERS 2014 p 14 235 Pensando nos versos de Castro Alves Rui Barbosa lembra do ldquoglorioso arauto de Agamemnon

imortalizado por Homero Taltiacutebios lsquosemelhante aos deuses pela vozrsquo () o poeta aquele que como o

pai da trageacutedia grega possa dedicar as suas obras ldquoao Tempordquo sentiu a natureza teve a inspiraccedilatildeo

universal e humana encarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento da sua eacutepocardquo

BARBOSA Rui Elogio ao Poeta (1881) In Trabalhos diversos Rio de Janeiro Ministeacuterio da

Educaccedilatildeo e Cultura 1957 (Obras Completas de Rui Barbosa v 8 1881 t 1) p II-III 236 Idem XXIII-XXIV 237 Minhas senhoras meus senhores ndash Obedeccedilo ainda assustado e confundido agrave honra da eleiccedilatildeo que

me eleva ateacute aqui Incapaz de ambicionaacute-la nem sonhaacute-la achei-me todavia desarmado para lhe

resistir Cativo agrave espontaneidade dela natildeo menos cativo me senti agrave origem deste mandato agrave bela

geraccedilatildeo nova de minha terra aos moccedilos agravequeles que em todo paiacutes suscetiacutevel de ressurreiccedilatildeo ou de

84

escalar o Olimpo sem duacutevida Era patente que Rui Barbosa escrevendo ao Diaacuterio da

Bahia em 1881 referia-se com tais palavras ao problema da escravidatildeo A atualidade

que o falecimento de Castro Alvez ganha atraveacutes da pauta abolicionista demonstra o

caraacuteter poliacutetico dessas efemeacuterides ldquoculturaisrdquo ldquoOrardquo continua Barbosa ldquoo elemento

servil eacute o cunho negro de toda a nossa histoacuteria e a extinccedilatildeo do elemento servil seraacute a

fimbria luminosa de todo o nosso futurordquo238 A geraccedilatildeo de 1870 foi pioneira em um

novo tipo de jornalismo de opiniatildeo ndash ou na linguagem da eacutepoca publicismo ndash o qual

natildeo desconhecia a teacutecnica da efemeacuteride Nas paacuteginas dessa imprensa em ascensatildeo

catalizavam-se discursos poliacutetico-morais nos quais a escravidatildeo era vista como a ldquoa

ignomiacutenia que barbariza e desumana o escravo conspurca a famiacutelia livre () perverte

irreparavelmente a educaccedilatildeo de nossos filhos () explica todos os defeitos do caraacuteter

nacional toda a indolecircncia do nosso progressordquo O orador natildeo lanccedilava palavras ao

vento proselitismo sem alvo mas marcava-o com tons pedagoacutegicos claros Seu

diaacutelogo era para com a ldquobela geraccedilatildeo novardquo os moccedilos suscetiacuteveis de ldquoressurreiccedilatildeo ou

de progressordquo Para eles Barbosa ensinava que se ldquotodas as sombras do nosso

horizonterdquo podem ser explicadas pela escravidatildeo o abolicionismo jaacute havia se tornado

a ldquoexpressatildeo da mais inflexiacutevel das necessidades sociaisrdquo239

Concentrar os esforccedilos intelectuais no trabalho da memoacuteria abolicionista na

luta contra esse peso do passado teve como efeito colateral ndash de um ponto de vista

atento agraves foacutermulas de identificaccedilatildeo nacional ndash a relativizaccedilatildeo do indianismo das

geraccedilotildees anteriores A leitura moral que encabeccedila a lista de preocupaccedilotildes dos

oficiantes quando em vez eacute uma forma de associar o Brasil a sua heranccedila lusitana

deixando por ora suspensos certos aspectos americanos de nossa formaccedilatildeo ldquoNoacutes

somos brasileiros natildeo somos guaranisrdquo escreveu Joaquim Nabuco ldquoa liacutengua que

falamos ainda eacute portuguesardquo Em sua polecircmica com Joseacute de Alencar o abolicionista

reconhecia com certo desdeacutem que estudar os ldquodialetos selvagens a religiatildeo grosseira

os mitos confusos os costumes rudesrdquo dos iacutendios brasileiros era prestar um serviccedilo agraves

progresso representam a alianccedila da generosidade com a forccedila o grande desinteresse e as grandes

aspiraccedilotildees Mas designando para esta homenagem ao poeta o uacuteltimo dentre voacutes arriscastes-vos a uma

temeridade que me deixou perplexo enquanto natildeo sondei intimamente o vosso desiacutegnio Agora sim

que o percebo Natildeo foi um excesso de inexperiente confianccedila foi pelo contraacuterio uma deliberaccedilatildeo

maduramente refletida para demonstrar a profundeza da influecircncia da obra desse extraordinaacuterio

representante da nossa poesia a voz que a houvesse de atestar devia partir natildeo dos cimos mais

proacuteximos do astro deslumbrados pelo seu esplendor escaldados pela sua irradiaccedilatildeo mas caacute da

humildade do vale que de tatildeo longe o contempla Neste sentido a infimidade da escolha foi um novo

tributo ao nome que comemorais e a este tiacutetulo a vossa designaccedilatildeo acertou Idem I 238 Idem p XXIV 239 Idem p XXIV

85

artes e agrave ciecircncia Mas o que lhe parecia impossiacutevel era ldquoquerer fazer dos selvagens a

raccedila de cuja civilizaccedilatildeo nossa literatura deve ser o monumentordquo240

E que monumentos sobrariam senatildeo aqueles que comeccedilam por enaltecer a

liacutengua portuguesa e com ela o poeta renascentista Em Camotildees e os Lusiacuteadas texto

de 1872 Nabuco jaacute oferecia sua resposta escolhendo o poema eacutepico lusitano para

objeto de seus estudos acreditava ter tomado ldquoum assumpto nacionalrdquo Os versos

camonianos ldquosatildeo a obra prima da literatura portugueza que eacute a nossardquo Bem diferente

era aquela ldquolitteratura inspirada pela vida errante das tribus primitivasrdquo a qual natildeo

teria direito a se chamar nacional ldquoA poesia poacutede idealisar o caracter o coraccedilatildeo as

guerras a civilizaccedilatildeo ateacute drsquoesses ferozes habitantes de nossos sertotildees mas a poesia

que se impuzer essa aliaacutes bella missatildeo seraacute uma poesia phantasticardquo concluiu241

Em Portugal Teoacutefilo Braga cofundador da revista O Positivismo e bem ao

contraacuterio de Nabuco republicano convicto torna-se a figura maacutexima na organizaccedilatildeo

do tricentenaacuterio Seus trecircs artigos intitulados precisamente O Centenaacuterio de Camotildees

em 1880 apresentavam a ambiccedilatildeo de aproveitar a crise das instituiccedilotildees monaacuterquicas

como mote para uma verdadeira ldquorevivescecircncia nacionalrdquo Seu ldquoComitecirc de Salvaccedilatildeo

Puacuteblicardquo com o auxiacutelio de Ramalho Ortigatildeo foi a vanguarda das comemoraccedilotildees

camonianas atraindo em pouco tempo a atenccedilatildeo das mais prestigiadas instituiccedilotildees

de ensino do paiacutes e finalmente do proacuteprio governo242 Seu objetivo era

destacadamente moral e poliacutetico em Os centenaacuterios como synthese affectiva nas

sociedades modernas texto de 1884 Braga oferecia um balanccedilo e um prognoacutestico a

respeito do fenocircmeno comemorativo Por meio da relaccedilatildeo entre os grandes homens e

suas paacutetrias os centenaacuterios eram vistos fundamentalmente como mateacuteria difusora da

nacionalidade243 Exaltar os ldquovultos histoacutericosrdquo da paacutetria lusitana natildeo era mateacuteria

desconhecida do notoacuterio erudito Em 1881 com a colaboraccedilatildeo de diversos autores

entre eles Oliveira Martins Braga havia jaacute lanccedilado o seu Plutarcho Portuguez244

240 COUTINHO Afracircnio (Org) A polecircmica Alencar-Nabuco Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

1978 p 190 241 NABUCO Joaquim Camotildees e os Lusiacuteadas Rio de Janeiro Tipographia Imperial do Instituto

Artiacutestico 1872 p 10-12 242 Aqui trabalho a partir de CABRAL Alexandre Luiacutes de Camotildees Poeta do Povo e da Paacutetria Notas

oitocentistas ndash I Lisboa Horizonte 1980 243 BRAGA Teoacutefilo Os Centenaacuterios como synthese affectiva nas sociedades modernas Porto

Typographia de AJ da Silva Teixeira 1884 Para quem ldquoO Centenaacuterio de Camotildees neste momento

histoacuterico e nesta crise dos espiacuteritos teve a significaccedilatildeo de uma revivescecircncia nacionalrdquo p 10 244 BRAGA Teoacutefilo Plutarco Portuguez collecccedilatildeo de retratos e biographias dos principaes vultos

histoacutericos da civilizaccedilatildeo portugueza Desenhos de Julio Costa e phototypias Emilio Biel amp Cia

86

Nessa obra os grandes homens uniam-se agrave paacutetria cuja siacutentese feliz era a proacutepria

histoacuteria Histoacuteria costurada natildeo pelas estrateacutegias dos biografados face agrave fortuna mas

atraveacutes dos serviccedilos ndash morais e poliacuteticos ndash que renderam sentido civilizatoacuterio agrave paacutetria

paacutetria sentida na leitura da bios de seus arquitetos como uma comunidade afetiva

instituiccedilatildeo e entidade quase sagrada amada e respeitada por seus cidadatildeo e protegida

no coraccedilatildeo de todos os verdadeiros republicanos245

A atenccedilatildeo agrave efemeacuteride a data redonda parecia sistematizar as estrateacutegias

literaacuterias e poliacutetico-morais do autor Um ano antes do aniversaacuterio de Camotildees Braga jaacute

preparava o terreno para seu proselitismo republicano em um periacuteodo que se estende

de 1879 a 1891 lanccedila as Soluccedilotildees Positivas da Repuacuteblica Portugueza seguidas do

Programma do Partido Republicano Portuguez Nesses textos procurava destituir

todo conteuacutedo socialista (ao estilo da juventude de Antero de Quental) do projeto

republicano ldquoadaptando-o dessa forma agrave realidade social portuguesa afim derdquo nas

palavras de um comentador ldquocaptar as simpatias de uma pequena e meacutedia burguesiardquo

246 Novamente o officiant ndash nas provaacuteveis vestes do magistrado de Herculano ndash busca

uma soluccedilatildeo de compromisso como mecanismo moral frente agraves amplas audiecircncias

No presente caso a vontade poliacutetica da memoacuteria intentava cada vez mais unir o topos

da decadecircncia agrave proacutepria imagem da monarquia247

Foi nesse contexto ndash agravado pelo Ultimatum britacircnico de 1890 ndash que

Oliveira Martins em artigo publicado no Jornal do Commercio datado de 1894

transportou a discussatildeo para o outro lado do Atlacircntico248 Na peccedila o puacuteblico carioca

pocircde confrotar-se com o questionamento de inegaacutevel sabor decadentista sobre se

havia ou natildeo recursos ldquointelectuais morais sobretudo econocircmicosrdquo para que os

portugueses sobrevivessem como povo autocircnomo em suas fronteiras nacionais Com

as potecircncias europeias arquitetando a partilha do impeacuterio lusitano Martins

perguntava-se ainda se ldquosalvar-nos-aacute no Seacuteculo XIX Angola como nos salvou o

collaboradores drsquoeste volume Theophilo Braga Oliveira Martins Joaquim Vasconcellos Julio de

Mattos e Paiva e Pona Pocircrto J Costa E Biel amp Cia 1881 245 CATROGA Fernando Paacutetria naccedilatildeo e nacionalismo In SOBRAL Joseacute Manoel VALA Jorge

(Org) Identidades nacionais inclusatildeo e exclusatildeo Lisboa ICS 2010 246 RODRIGUES op cit p 97 247 ldquoEssa identificaccedilatildeo entre monarquia e decadecircncia conduziria por outro lado e de forma inevitaacutevel

a uma outra noccedilatildeo que apresentava a Repuacuteblica como a nova foacutermula de salvaccedilatildeo nacional ()rdquo

RODRIGUES op cit p 94-95 248 Em 11 de janeiro de 1890 o governo inglecircs demanda a retirada das tropas portuguesas estacionadas

no territoacuterio do atual Zimbaacutebue Lisboa acata as ordens O sonho lusitano de unir suas duas uacuteltimas

grande colocircnias ndash Moccedilambique e Angola ndash termina e para muitos natildeo o que culpar senatildeo o

entreguismo dos monarquistas O episoacutedio leva agrave queda do governo nomeaccedilatildeo de um novo ministeacuterio

e oferece municcedilatildeo agrave causa republicana

87

Brasil no seacuteculo XVIIIrdquo249

A decadecircncia era um topos poliacutetico-moral entre beletristas eruditos e filoacutesofos

da segunda metade do seacuteculo XIX Sua temaacutetica chegava ao Brasil no ritmo dos

vapores europeus pelos ensaios da Fraserrsquos da Quaterly ou da Westminster ainda

atraveacutes das paacuteginas da Revue des Deux Mondes Disponiacutevel na corte em Satildeo Paulo e

na Bahia o quinzenal francecircs natildeo era apenas muito lido no Impeacuterio do Brasil

mantendo-se igualmente como uma referecircncia constante em artigos de jornais e

discursos puacuteblicos Certa vez o conselheiro Saraiva admitiu que natildeo lia outra coisa

atitude que lhe rendeu gracejos no que foi defendido pelo proacuteprio imperador ldquoeacute

quanto bastardquo bradou D Pedro II250 Mas natildeo bastava O topos da decadecircncia

adentrava o repertoacuterio poliacutetico-moral dos homens de letras brasileiros jaacute contavam

algumas deacutecadas igualmente por meio do filtro da geraccedilatildeo portuguesa de 1870 Com

o centenaacuterio de Camotildees ele soacute ganhou mais forccedila Em Teoacutefilo Braga temos o modelo

republicano da leitura drsquoOs Lusiacuteadas de volta agrave origem ndash natildeo mais vista na Idade

Meacutedia como em Herculano mas no renascimento e na expansatildeo ultramarina ndash

declamar os versos eacutepicos de Camotildees era como reacender as chamas da gloacuteria em um

tempo de escuridatildeo251

No Brasil tanto republicanos quanto monarquistas foram bastante ativos na

comemoraccedilatildeo do centenaacuterio camoniano Entre eles surgiram diversos Camotildees todos

de alguma forma prontos para o combate Afonso Celso Jr e Miguel Lemos vieram

somar facetas ao grande-homem-poeta enquanto Belivaacutequoa e Martins Jr prestavam-

lhe em conferecircncias e poemas todo o tipo de homenagens Em junho de 1880 a

revista Brasileira dedicou-lhe um nuacutemero e mais tarde em 1885 a Igreja Positivista

ergueria um busto do poeta252 Se em Portugal as comemoraccedilotildees em torno do autor de

Os Lusiacuteadas ganhavam feiccedilotildees republicanas de ofensa agrave monarquia no Brasil elas

apareciam como um ataque ndash republicano ou natildeo ndash agrave velha leitura indianista de uso

conservador e afastando-se dela reafirmava a heranccedila lusitana Por outro lado

249 MARTINS Oliveira Portugal Contemporacircneo 3ordf Ediccedilatildeo Lisboa Antocircnio Maria Pereira 1895 pp

XII-XIV 250 SODREacute Werneck Histoacuteria da Imprensa no Brasil Rio de Janeiro 1966 Civilizaccedilatildeo Brasileira

Apud ALONSO op cit p 53 251 Nas palavras de Eduardo Lourenccedilo Braga promovia uma ldquoutilizaccedilatildeo partidaacuteria da sua gloacuteria posta

ao serviccedilo dos primeiros alvores republicanosrdquo Ver LOURENCcedilO 1999 p 60 252 ALONSO op cit p 288-289 Para a autora ldquoEssas efemeacuterides culturais tinham clara conotaccedilatildeo

poliacutetica As figuras selecionadas compunham uma visatildeo da tradiccedilatildeo nacional que se afastava do cacircnon

indianista da elite imperial e representavam uma ruptura em relaccedilatildeo aos esquemas de legitimaccedilatildeo que

os saquaremas tinham construiacutedo para a sociedade estamental e para o sistema poliacutetico restritivordquo p

290

88

celebrar Camotildees Bonifaacutecio o velho e ateacute certo ponto Tiradentes era expediente que

encontrava na tradiccedilatildeo nacional jaacute acostumada a esses vultos certa legitimidade

moral para campanhas que possuiacuteam ndash como no caso da escravidatildeo ndash claros limites

legais A vontade poliacutetica da memoacuteria aparecia mais uma vez indissociaacutevel de seus

instrumentos morais de enquadramento

23 Catalisadores do discurso moralista

ldquoUma dramaacutetica duacutevida sobre o futuro do paiacutes e uma lei de alternacircncia de

grandezadecadecircncia como motor da histoacuteria nacionalrdquo253 Assim Antoacutenio Machado

Pires resume seu estudo sobre a Ideacuteia de Decadecircncia na Geraccedilatildeo de 70 em Portugal

As relaccedilotildees da geraccedilatildeo de Eccedila de Queiroz Oliveira Martins Teoacutefilo Braga e Antero

de Quental com o Brasil eram relativamente estreitas254 Seus diaacutelogos atravessavam

o oceano em obras publicadas atraveacutes de mateacuterias de jornal assinadas drsquoaleacutem mar e

natildeo esqueccedilamos uma intensa correspondecircncia Diversas pautas cairiam bem ao topos

decadentista se em Portugal ele jaacute havia aparecido tendo como causa o catolicismo

contrareformado e a longevidade do absolutismo no Brasil os liberais republicanos

poderiam reeditar-lhe os argumentos Algo como a superaccedilatildeo de uma sociedade e de

uma organizaccedilatildeo poliacutetica que jaacute natildeo andam mais em harmonia ambas condenadas agrave

ldquocorrupccedilatildeordquo ora entendida como resultado da ldquoprostraccedilatildeo moral a que nos arrastou o

absolutismo praacutetico sob as vestes do liberalismo aparenterdquo255

Para os monarquistas liberais mais iacutentimos dos ciacuterculos de poder o topos da

decadecircncia ndash inseparaacutevel de certo juiacutezo teleoloacutegico ndash era estimulado natildeo por uma

criacutetica ao sistema poliacutetico mas pela condenaccedilatildeo moral da escravidatildeo Em uma

campanha que beirava os limites da legalidade o discurso moralista suas atribuiccedilotildees

de certo e errado viacutecios e virtudes ndash por vezes evocados a partir dos costumes cristatildeos

ndash preparava um terreno comum de inteligibilidade e legitimidade para com a tradiccedilatildeo

imperial Natildeo tinha sido o bastante para o velho Bonifaacutecio e seu ldquocancro mortalrdquo eacute

verdade mas a proacutepria valorizaccedilatildeo de seu vulto jaacute abria um novo precedente

memorial

A escravidatildeo essa ldquoverdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na fronterdquo

253 PIRES 1992 p 26 254 Sobre essa questatildeo ver BERRINI 2003 255 Manifesto Republicano 1870 In PESSOA R C A ideia republicana no Brasil atraveacutes de

documentos Satildeo Paulo Alfa-Ocircmega 1973 p 70

89

era tambeacutem indubitaacutevel catalizadora do discurso moral256 No Brasil de meados do

seacuteculo XIX a moral aquilo que eacute relativo aos costumes era um terreno dominado

ora pela referecircncia aos ancestrais ora pelos ensinamentos do cristianismo Ou

Bonifaacutecio o velho natildeo foi exilado logo apoacutes insultar as elites escravocratas

declarando com todas as palavras que seus membros natildeo eram verdadeiros cristatildeos

ldquoHa de espantarrdquo ousou dizer agrave Assembleia Constituinte ldquoque hum trafico tatildeo contra

aacutes Leis da moral humana e aacutes santas maximas do Evangelho e ateacute contra as leis de

huma satildea poliacutetica dure ha tantos seculos entre os homens que se dizem civilizados e

christatildeosrdquo Ao que ele intreacutepido completaria ldquomentem nunca o focircramrdquo257

Mesmo argumentos nitidamente econocircmicos natildeo se esqueciam de acessar

dentro de um amplo repertoacuterio disponiacutevel de conceitos e ideias a ordem da moral

Quintino Bocaiuacuteva liberal republicano comentando a crise do campo natildeo deixou de

fazer o julgamento de um paiacutes escravocrata ldquomoral e economicamente gangrenado por

essa instituiccedilatildeo fatalrdquo258 Natildeo era apenas uma palavra arbitraacuteria ou estiliacutesticamente

inclusa em um rol de consideraccedilotildees negativas a respeito das poliacuteticas monaacuterquicas

Em outra ocasiatildeo ao debater poliacuteticas de imigraccedilatildeo capazes de trazer braccedilos livres ao

paiacutes Bocaiuacuteva admitiu que ldquocada vez que mais estudo e aprecio as coisas da nossa

decadecircncia moral e dessa lacircnguida frouxidatildeo que enerva as almas () de nossa

populaccedilatildeordquo seus olhos encontravam ldquoa escravidatildeo como origem como a sede como

o foco maldito donde se exala esse miasmo atrofiadorrdquo259 O mundo mudava os

poderes tradicionais esboroavam-se e no espaccedilo de uma vida natildeo ldquoexiste ainda

organizado nenhum poder moralrdquo260 Conceito que garantia pontes de inteligibilidade

entre conservadores liberais e republicanos a moral carregava mais do que isso

trazia tambeacutem uma chave explicativa para a compreensatildeo da dinacircmica entre

decadecircncia e progresso Como resumiu Nabuco a escravidatildeo deve encontrar seu

teacutermino porque ldquoassim como arruiacutena economicamente o paiacutesrdquo ldquocorrompe-lhe o

caraacuteter desmoraliza-lhe os elementos constitutivosrdquo acostuma-nos ao servilismo nos

faz desprezar o trabalho manual retardando a imigraccedilatildeo e ldquoa apariccedilatildeo das induacutestriasrdquo

Ela encobre ldquoos abismos da anarquia moral de miseacuteria e destituicatildeo que do Norte ao

256 NABUCO Joaquim O Abolicionismo Ediccedilotildees do Senado Federal Vol 7 Brasiacutelia 2003 p 23 257 ANDRADA E SILVA 1825 p 20 258 BOCAIUacuteVA Quintino A crise da lavoura In SILVA E (org) Ideacuteias poliacuteticas de Quintino

Bocaiuacuteva BrasiacuteliaRio de Janeiro Senado FederalCasa Rui Barbosa 1986 p 184 259 BOCAIUacuteVA 3081870 Colonizaccedilatildeo Asiaacutetica Cartas a Nicolau Moreira In SILVA E (org)

1986 260 BOCAIUacuteVA Quintino A questatildeo social In SILVA 1986 p 478

90

Sul margeiam nosso futurordquo Em Nabuco o argumento moral reorientava-se com

desenvoltura do passado para o futuro esse ldquopeso enorme que atrasa o Brasilrdquo eacute o

mesmo fardo que impedia nosso progresso261

Os argumentos de Bonifaacutecio e Nabuco poderiam ser inscritos como devedores

de uma tradiccedilatildeo moralista e providencial de criacutetica agrave escravidatildeo Em 1863 Goldwin

Smith jornalista e historiador britacircnico radicado nos Estados Unidos ministra uma

conferecircncia depois publicada em panfleto intitulada Does the Bible Sanction

American Slavery Smith partia do ponto de vista confessional de que a ldquoBiacuteblia tem

muita relaccedilatildeo com a poliacutetica e a ciecircncia () e com tudo o que adentra a vida moral do

homemrdquo262 O amor de Deus acreditava move todos os tipos de trabalhos que nos

levam a ldquodescoberta de verdades cientiacuteficas e filosoacuteficasrdquo ldquoAssimrdquo continua ldquoem

seu movimento avante o progresso da natureza humana tem como condiccedilatildeo

transformar-se em semelhanccedila a seu Criadorrdquo Em suma ldquoa Biacuteblia reconhece o

progressordquo263 Fomos feitos agrave imagem e semalhanccedila do demiurgo e continuamos a ser

feitos assim Mas o Livro tambeacutem observa no Velho Testamento o trabalho

compulsivo como instituiccedilatildeo tradicional do Povo Escolhido tambeacutem faz menccedilatildeo ao

captivos no Novo Testamento sem incutir-lhe algum juiacutezo edificante Entretanto

mesmo que o coacutedigo de leis daquelas ldquorudes instituiccedilotildees de uma naccedilatildeo primitiva

incluindo a escravidatildeordquo natildeo tenham se modificado por um uacutenico milagre eles o

foram pela accedilatildeo paulatina dos propoacutesitos divinos264 A providecircncia como no catoacutelico

Bossuet ordenava o mundo atraveacutes de seus desiacutegnios Goldwin em uma intervenccedilatildeo

moral na poliacutetica interna de uma Ameacuterica fraturada em duas propotildee demonstrar seu

argumento anti-esclavagista a partir do recurso a exemplos retirados da histoacuteria sacra

e secular chegando a utilizar um procedimento comum em seu tempo recorre agrave crise

do escravismo romano lido a partir do diagnoacutestico de uma crise moral ora citando

261 NABUCO O Abolicionismo op cit p 110 262 ldquoThe Bible has much to do with politics and science and with everything that enters as all parts of

our social and intellectual state do enter into the moral life of manrdquo SMITH Goldwin Does the Biblie

Sanction American Slavery Oxford amp London John Henry and James Parker 1863 p 3 263 The love of God and Man () moves the high and self-devoted labours which have led to the

discovery of scientific and philosophic truth And thus in its onward progress human nature is by the

very condition of that progress changed Into the likeness of its Maker ()The Bible recognises

Progress Idem p 3-4 Grifos meus 264 ldquoThis code of laws takes the rude institutions of a primitive nation including Slavery as they stand

not changing society by miracle which as has been said before seems to have been no part of the

purposes of God ()while it takes these institutions as they stand it does not perpetuate them but

reforms them mitigates them and lays on them restrictions tending to their gradual abolitionrdquo Idem

Ibidem

91

Gibbon ora citando Mommsen265

A perfectibilidade pressupotildee o movimento constante da alma Ela eacute anaacuteloga ao

progresso que ndash ldquoreconhecido pela Biacutebliardquo ndashtransformava a natureza humana em algo

cada vez mais perfeito com Deus Uma busca inquieta que garantia a simetria entre

ordem do tempo e ordem da natureza pelo trabalho da matildeo invisiacutevel da providecircncia

divina sobre os povos escolhidos A criacutetica moral agrave escravidatildeo encontra nas palavras

de Godwin Smith um inusitado aliado no providencialismo protestante

A tese de Goldwin Smith natildeo era na verdade em nada original mas

acompanhava um movimento cultural em liacutengua anglo-saxatilde que tinha como um de

seus corolaacuterios a criaccedilatildeo de interdiccedilotildees morais ao trabalho escravo266 Unclersquos Tom

Cabine o romance sentimental sobre o escravo que no leito de morte perdoa os

capatazes que o torturaram talvez tenha sido o maior best seller do seacuteculo XIX

Famosa tambeacutem no Brasil a obra de Harriet Stowe foi aqui encenada diversas vezes

no final do seacuteculo XIX267 Tatildeo cedo quanto em 1793 Noah Webster perguntava-se

referindo agrave escravidatildeo se ldquouma grande revoluccedilatildeo nos governos do velho mundo natildeo eacute

um evento desejaacutevelrdquo268 Seu texto de pouco mais de 50 paacuteginas trazia um painel da

degradaccedilatildeo moral das populaccedilotildees cativas em Connecticut apresentando a escravidatildeo

como ato ldquobarbaro e perversordquo clara ldquoviolaccedilatildeo das leis da natureza e da

sociedaderdquo269 Mais tarde com a Guerra de Secessatildeo o fluxo de panfletos livros e

artigos abolicionistas provenientes dos Estados do norte encontra terreno fertil no

clima abolicionista de parte das elites ilustradas brasileiras

No Abolicionista de Joaquim Nabuco novamente seraacute Theodor Mommsen

quem aparece dando as cartas Eacute na Histoacuteria Romana que o liberal brasileiro vai

buscar o paralelo que faltava ao seu diagnoacutetico de crise moral Nada muito diferente

do expediente de Goldwin que igualmente e em plena segunda metade do seacuteculo

XIX foi buscar na crise do escravismo romano ndash lido atraveacutes do mesmo historiador

alematildeo ndash sua comparaccedilatildeo para com o caso americano ldquoOnde quer que se a estuderdquo

265 ldquoBut the Roman world was doomed and it was doomed partly because the character of the upper

classes had been deeply and incurably corrupted by the possession of a multitude of slavesrdquo Idem p

124Mommsen eacute citado na paacutegina 63 jaacute Gibbon aparece um pouco depois na paacutegina 90 266 Para uma perspectiva mais abrangente ver DRESCHER Seymour Capitalism and Antislavery

British Mobilization in Comparative Perspective New York amp Oxford Oxford University Press 1987 267 Ver ALONSO op cit p 190 268 ldquoAnd let humanity and benevolence decide whether liberty or slavery is the most eligible and

whether a general revolution in the governments of the old world is not a desirable eventrdquo WEBSTER

Noah Effects of slavery on morals and industry Cornell University Library 1793 p 56 269 ldquothat the practice of enslaving their brethren of the human race is barborous and wicked and that it

is a violation of the laws of nature and societyrdquo Idem p 7

92

seja na Roma antiga na Ameacuterica do Norte ou no Brasil ldquoa escravidatildeo passou sobre o

territoacuterio dos povos que a acolheram como um sopro de destruiccedilatildeordquo270 Entre a Roma

de Mommsen e o Brasil e as Colocircnias de Oliveira Martins Nabuco constroacutei um

argumento que dispotildee toda a naccedilatildeo brasileira como viacutetima da escravidatildeo ldquoesse preccedilo

quem o pagou e estaacute pagando natildeo foi Portugal fomos noacutesrdquo271

Deixe-mos as histoacuterias natildeo paguemos o preccedilo do perdatildeo esqueccedilamos tudo

queimemos os registros em uma anistia irrestrita que promova a ldquoreconciliaccedilatildeo de

todas as classesrdquo Se o povo brasileiro necessitava de um ldquooutro ambienterdquo no qual

poderia ldquodesenvolver-se e crescer em meio inteiramente diversordquo em nome da ordem

e da ldquomoralizaccedilatildeo de todos os interessesrdquo o caminho a ser percorrido para Nabuco

era natildeo apenas o do ldquoesquecimento da escravidatildeordquo mas o de uma trilha que apagasse

ldquoateacute mesmo a recordaccedilatildeo da luta em que estamos empenhadosrdquo272 Sem as histoacuterias

como ficariam nossa moral e nossa cosmologia Libertar os captivos deslembrar seus

seacuteculos de trabalhos forccedilados entregaacute-los nuacutes de passado e de pertences ao seio da

paacutetria sem origem e de duvidoso destino natildeo seria o mesmo que olvidaacute-los como

cidadatildeos

Anos depois jaacute na repuacuteblica Rui Barbosa completaria os planos de Nabuco

ateando fogo aos registros do cativeiro A integraccedilatildeo da heranccedila afro-brasileira ndash de

seu passado e de seus costumes ndash dentro da federaccedilatildeo da memoacuteria nacional parecia de

fato fora de cogitaccedilatildeo Era preciso libertar para melhor assimilar Nisso a posiccedilatildeo do

grupo de Miguel Lemos era tanto emblemaacutetica Os positivistas tambeacutem natildeo se

furtavam em condenar a escravidatildeo em tons morais O trabalho compulsoacuterio

derrubava as distinccedilotildees entre o produtor e o produto do trabalho reificando o

primeiro agrave imagem do segundo e degradando por fim o proacuteprio senhor Alheios ao

direito exilados da cidadania a raccedila amante natildeo era parte legiacutetima da sociedade ciacutevil

embora ainda assim ela natildeo cessasse de angariar o usofruto de seu trabalho por meio

da instituiccedilatildeo criminosa da escravidatildeo

Esse era um argumento que mesmo em Franccedila poderia ser recuado a

Condorcet ldquode duas uma ndash ou natildeo haacute moral ou eacute preciso acceitar como um principio

que o crime seraacute sempre um crime muito embora a opiniatildeo o natildeo estigmatise e a lei

270 NABUCO O Abolicionista op cit p 139 271 Idem p 120 272 Idem p 206

93

do paiz o tolererdquo273 Traduzido em 1881 por Aaratildeo Reis engenheiro pela Politeacutecnica e

simpatizante dos positivistas a Escravidatildeo dos Negros de Condorcet veio unir-se ao

repertoacuterio do combate abolicionista como em Ciacutecero ainda mais uma vez poderiacutea-se

dizer que ldquonem tudo que eacute permitido eacute honesto nem tudo que eacute legal eacute moralrdquo (De

Officis 325667) Agora o raciociacutenio colocava em oposiccedilatildeo na praacutetica pelo menos

duas leituras morais legitimatoacuterias distintas a abolicionista secular e a escravista

catoacutelica ndash e nisso era ainda mais agressivo do que os argumentos providencialistas da

tradiccedilatildeo moralista anglo-saxatilde que via ordens de reparaccedilatildeo divina na marcha agrave

perfectibilidade

Se a escravidatildeo era um crime ldquodegradanterdquo o abolicionismo soacute poderia

encontrar o rumo da criacutetica das instituiccedilotildees que lhe davam suporte como na tradiccedilatildeo

liberal o Estado e a Igreja foram seus alvos preferenciais Os poderes seculares e

espirituais seriam senatildeo responsaacuteveis ao menos cuacutemplices da ldquomonstruosidade

social originada da infame opressatildeo que a raccedila inteligente exerceu sobre a raccedila

amanterdquo274 Embora legal o trabalho compulsoacuterio era certamente ilegiacutetimo pois

imoral

A moral em jogo no entanto natildeo era a dos negros A luta dava-se entre duas

leituras ocidentais contrastantes dispostas em conflito ainda talvez para usar o

vocabulaacuterio de Chateaubriand a evidecircncia tardia do choque entre dois ldquosistemasrdquo As

memoacuterias em cena aquelas que possuiacuteam meios de assumir uma franca disputa

poliacutetica tambeacutem natildeo tinham origem na Aacutefrica sequer na senzala O projeto

positivista de naccedilatildeo natildeo planejava tampouco incluir espaccedilos de revindicaccedilatildeo

identitaacuteria afro-brasileira Seus costumes natildeo seriam bem vindos Tatildeo logo os

captivos fossem libertos os sacerdotes da humanidade assumiriam a tarefa de

arrebanhaacute-los em nome da razatildeo e da eugenia da raccedila A ciecircncia positiva fazia

acreditar que a miscigenaccedilatildeo entre negros iacutendios e europeus ndash entre a ldquoraccedila

inteligenterdquo a ldquoraccedila amanterdquo e a ldquoraccedila nativardquo ndash permitiria a sobrevivecircncia dos

caracteres mais evoluiacutedos de cada etnia ao mesmo tempo em que eliminaria seus

aspectos nocivos275

Parte do repertoacuterio poliacutetico disponiacutevel aos publicistas da geraccedilatildeo de 1870

273 CONDORCET A escravidatildeo dos negros (reflexotildees) Traduccedilatildeo do engenheiro civil Aaratildeo Reis Rio

de Janeiro Typ De Serafim Joseacute Alves 1881 p 23 274 LEMOS Miguel (Org) O positivismo e a escravidatildeo moderna Rio de Janeiro Igreja Positivista do

Brasil 1884 p 21 275 Idem p 38

94

deste ou do outro lado do Atlacircntico os argumentos morais quando apropriados por

uma vontade poliacutetica natildeo se furtavam em orientaacute-la Desde os antigos ndash como um dos

princiacutepios fundamentais daquilo que os modernos chamariam de memoacuteria ndash a moral

subscrita nos costumes ancestrais entraria em franca contradiccedilatildeo caso o oportunismo

do orador transformasse-a em instrumento passivo A sua proacutepria evocaccedilatildeo jaacute suscita

no coraccedilatildeo das audiecircncias a imagem da beleza moral o viacutecio e a virtude o bom e o

mau o exemplo a imitar ou combater A mudanccedila de regime poliacutetico tampouco a

aboliccedilatildeo abalaram o topos da decadecircncia nem menos ainda a argumentaccedilatildeo moral

Esses continuariam a ser acessados e apropriados o tanto quanto permanecerem

oportunos

24 Da crise moral ao grande jubileu

Na Ameacuterica portuguesa desde a proclamaccedilatildeo de 1889 ateacute ao menos 1898 jaacute

no governo Campos Sales o novo regime republicano enfrentava sucessivos

transtornos Poliacutetica financeira malagrada Encilhamento revoltas messiacircnicas

confrontos entre militares e civis esse clima de instabilidade poliacutetica natildeo deixou de

ser interpretado atraveacutes de matizes morais dentre as quais se fez sentir os efeitos do

topos da decadecircncia Em 1900 a Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutephico de Satildeo

Paulo publica ndash como vatildeo fazer diversas instacircncias afiliadas ao IHGB ndash um nuacutemero

dedicado agrave comemoraccedilatildeo do quadricentenaacuterio da descoberta de Cabral Joatildeo Vampreacute

folclorista filoacutelogo e criacutetico literaacuterio sergipano escreve sobre as Festas Tradicionais

brasileiras Por tradiccedilatildeo ele entendia todo um conjunto de ldquoelementos da morfologia

universal das literaturasrdquo produto resultante do sincretismo da ldquoemotividade

sensorialrdquo que ldquonos conduz agraves relaccedilotildees entre a natureza coacutesmica e a moralrdquo 276 O

objetivo das tradiccedilotildees ensinava Vampreacute seria ldquoo bello o idealrdquo tomado ainda a

partir da definiccedilatildeo tomista ldquoresplendecircncia formae super partes materiae

proportionatas vel super diversas vires vel actionesrdquo 277 Objetivo que no caso

brasileiro estaria longe de ser alcanccedilado em nosso paiacutes ldquoo desprezo pelo passadordquo

demonstraria uma ldquodegradaccedilatildeo intelectual denota no individuo e no povo um estado

de selvaacutetica rudezardquo Seu diagnoacutestico apontava que

276 VAMPREacute Joatildeo Festas Tradicionais Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutephico de Satildeo Paulo

Tomo VI 1900-1901 p 87-88 277 Na traduccedilatildeo do autor ldquoO Bello eacute o esplendor comunicado pela forma aacutes diversas partes da mateacuteria

ou a vaacuterios princiacutepios a varias acccedilotildees harmonicamente unidas em um mesmo todordquo Idem p 86

95

Tudo quanto na nossa terra tornava a existencia heroica

e bella tudo quanto a envolvia em um nimbo de doce e

meiga poesia tudo quanto na vida punha uma nota

alacre de vibrante emoccedilatildeo ou de cariciosa e amoravel

meiguice tudo isto desappareceu para dar logar aacute peor

das situaccedilotildees moraes - a de uma patria abatida

desvirilisada soacute porque impertinentemente se querem

apagadas a luz redemptora das tradicccedilotildees as nossas

lendas mais santas278

Nas lareiras da naccedilatildeo natildeo ardiam mais sob os cuidados de seus respectivos

nuacutecleos familiares o fogo das tradiccedilotildees A frustraccedilatildeo das expectativas para com a

repuacuteblica tatildeo sublinada pela historiografia somava-se a uma leitura conservadora que

via a necessidade de se valorizar as experiecircncias nacionais ndash sob a eacutegide do passado

da memoacuteria da tradiccedilatildeo ndash como forma de reparaccedilatildeo moral Evidecircncias desse

discurso Vampreacute toma as palavras de Herculano veste a toga ciacutevica e reafirma

convicto que ldquoo mister de recordar o passado () eacute uma espeacutecie de magistratura

moral eacute um sacerdoacuteciordquo279 Sem a rememoraccedilatildeo de nossas heranccedilas as ldquolembranccedilas

mais queridas da famiacutelia desapparecemrdquo fadadas a um esquecimento que ndash segundo

Vampreacute em sua expliacutecita filiaccedilatildeo a Spencer ndash jaacute estava no entanto sociologicamente

determinado280

Herbert Spencer foi o porta-voz por excelecircncia do clima otimista que dos anos

de 1850 a 1880 justificava em seu paiacutes a crenccedila no progresso ndash mas ia aleacutem Seu

projeto intelectual ambicionava reabilitar uma filosofia da histoacuteria reunindo

prerrogativas do espiacuterito e da natureza em um quadro nomoloacutegico uacutenico Sua lei

ldquoToda forccedila ativa produz mais do que uma mudanccedila ndash toda causa produz mais do que

um efeitordquo281 Seu corolaacuterio ldquoUniversalmente o efeito eacute mais complexo do que a

causardquo282 Spencer intuiu seu statement of the law a partir das observaccedilotildees de

naturalistas que desde solo Alematildeo estudavam as seacuteries de mudanccedilas ocorridas entre

a germinaccedilatildeo de uma semente em uma aacutervore ou dos um oacutevulos em animais Suas

pesquisas demonstrariam algo que o filoacutesofo transformou em expressatildeo loacutegica geral 278 Idem p 89 Grifos meus O autor acrescenta que ldquo() neste particular estou com Spencer quando

diz que ideacuteias e sentimentos se devem acommodar ao estado socialrdquo 279 Idem p 90 280 Idem p 92 281 ldquoEvery active force produces more than one cause ndash every cause produces more than one effectrdquo

SPENCER Herbert Progess Its Law and Causes In The Westminster Review Vol 67 (April 1857)

p 466 282 Idem Ibidem ldquoUniversaly the effect is more complex than the causerdquo

96

o desenvolvimento constitui-se em um ldquoavanccedilo da homogeneidade de estrutura para a

heterogeneidade de estruturardquo283 O progresso assim entendido natildeo estaria reduzido a

niveis moleculares mas presente na cosmologia na geologia conduzindo os rumos

da histoacuteria natural guiando a marcha das civilizaccedilotildees e refletindo-se na manifestaccedilatildeo

de seus espiacuteritos ndash sua arte seus costumes sua religiatildeo e poliacutetica nada escapava ao

prodigioso esquema spenceriano ldquoo progresso natildeo eacute um acidenterdquo fez questatildeo de

ressaltar ldquomas uma necessidade beneficienterdquo284 Do simples ao deveras complexo os

modos de mudanccedila pareciam ainda mais ceacuteleres entre as ldquodivisotildees civilizadasrdquo da

espeacutecie humana dentre as quais se destacavam os povos europeus285

Em Spencer a aceleraccedilatildeo dos modos de mudanccedila sociais ou histoacutericos ndash em

uma palavra o progresso ndash estava naturalizada a partir de sua lei bio-cosmoloacutegica

geral E eles iam cada vez mais raacutepido como se seguissem o curso de um caminho de

ferro286 Isso natildeo significa no entanto que a ordem da natureza natildeo pudesse passar

por percalccedilos que conduzam indiviacuteduos ou espeacutecies inteiras na direccedilatildeo oposta do

desenvolvimento heterogecircneo Mudanccedilas agudas nas condiccedilotildees fiacutesicas no ambiente e

na nutriccedilatildeo associadas a variaccedilotildees intensas nos costumes das populaccedilotildees afetadas

poderiam direcionaacute-las a modos de vida mais simples287 Natildeo se tratava entretanto de

todo uma anomalia ldquoo processo envolve natildeo simplesmente a tendecircncia agrave

diferenciaccedilatildeo de cada raccedila de organismos em diversas raccedilasrdquo explicava Spencer

ldquomas envolve uma tendecircncia agrave produccedilatildeo ocasional de um organismo de certa forma

superiorrdquo 288 O progresso resulta entatildeo no desenvolvimento de raccedilas superiores

derivadas da conquista de melhores condiccedilotildees de vida e do desenvolvimento de

costumes mais complexos ou heterogecircneos cujo caso exemplar eacute dado pelas

283 ldquoThe investigations of Wolf Goethe and Von Baer have established the truth that the series of

changes gone through during the development of a seed into a tree or an ovum into an animal

constitute an advance from homogeneity of structure to heterogeneity of structurerdquo Idem p 446 284 ldquoProgress is not an accident not a thing within human control but a beneficient necessityrdquo Idem p

484 285 ldquoIt is alike true that during the period in which the Earth has been peopled the human organism has

become more heterogeneous among the civilized divisions of the speciesrdquo () This characteristioc

which is more marked in Man than in any other creature is more marked in the European than in the

savagerdquo Idem p 451 286ldquoThe change from the homogeneous to the heterogeneous is displayed equally in the evolution of

civilization as a whole and in the progress of every tribe or nation and is still going on with increasing

rapidityrdquo Idem 458 287 ldquoNot only would there be thus caused certain modifications consequent on change of physical

conditions and kind of nutriment but also in some cases other modifications consequent upon change

of habitsrdquo Idem p 477 288 ldquoThe process involves not simply a tendency Towards the differentiation of each race of organisms

into several races but it involves a tendency to the occasional production of a somewhat higher

organismrdquo Idem Ibidem

97

condiccedilotildees morais europeacuteias O resultado oposto eacute a ldquoretrogradaccedilatildeordquo conceito

inspirado no movimento aparente reverso de um planeta em relaccedilatildeo ao ponto de

observaccedilatildeo terrestre289

Noccedilatildeo ainda marginal no artigo fundador de 1857 a retrogradaccedilatildeo ganha

corpo na filosofia do uacuteltimo Spencer A partir de 1875 o otimismo vitoriano comeccedila

a ser sistematicamente questionado e as ideias spencerianas sobre a inevitabilidade

do progresso entram em cheque Suas reflexotildees acerca do papel moral necessaacuterio e

benemeacuterito do progresso datildeo lugar a textos que diagnosticam a intervenccedilatildeo poliacutetica

ou estatal na economia e na vida civil como antinatural e originadora da decadecircncia

Jaacute nos Principios de Sociologia (1876-1896) Spencer continua a desenvolver sua

teoria geral da evoluccedilatildeo aplicada agraves sociedades humanas embora sublinhando

igualmente a possibilidade da decadecircncia290 Nem o maior apoacutestolo do progresso

resistiu ao pessimismo do uacuteltimo quartel do seacuteculo XIX Como diversas obras e cartas

escritas na uacuteltima fase de sua vida testemunham o filoacutesofo passou a acreditar que

viviacuteamos em um periacuteodo de barbarizaccedilatildeo seja pela intervenccedilatildeo militar inglesa

malograda no estrangeiro ndash seja por meio da tirania sindical ndash a dinacircmica entre

progresso e decadecircncia fazia a uacuteltima ritmar sobre os avanccedilos da raccedila291 A premissa

de que ldquouma constituiccedilatildeo moral melhor adaptada deve necessariamente aparecer

assim que as circunstancias modificam-serdquo continuaria vaacutelida embora seu resultado

fosse uma composiccedilatildeo moral menos heterogecircnea ndash no jargatildeo spenceriano menos

evoluiacuteda ou civilizada292

Mas voltemos ao Brasil de finais do XIX Escrevendo para o Instituto

Histoacuterico e Geograacutefico de Satildeo Paulo Vampreacute dizia que ldquoa fragmentaccedilatildeo dessa

memoacuteria familiar e individualrdquo era apresentada ldquocomo o signo de uma corrosatildeo mais

289 ldquoIn some cases the habits of life adopted beign simpler than before a less heterogeneous structure

will result there will be a retrogradationrdquo Idem Ibidem 290 Satildeo textos dessa fase SPENCER Herbert Principles of Sociology Williams and Norgate London

1877 SPENCER Herbert The Man Versus the State Caxton Printers Idaho 1960 [1884] Sobre a

dinacircmica entre progresso e decadecircncia no pensamentro de Herbert Spencer sigo BECQUEMONT

Daniel Herbert Spencer progregraves et deacutecadence In Mil neuf cent No 14 1996 pp 69-88 Ver tambeacutem

HARTOG Franccedilois Croire en lacuteHistoire Flammarion Paris 2013 Progregraves et Reacutevolution p 231 291 BECQUEMONT op cit p 83-85 292 Para o primeiro Spencer ldquoUne constitution morale mieux adapteacutee devait neacutecessairement apparaicirctre

lorsque les circonstances changeaient Certes tous les individus ne seraient pas capables dacqueacuterir ces

qualiteacutes morales et certains disparaicirctraient dans la quecircte de la perfection mais les faculteacutes humaines

seraient neacuteanmoins faccedilonneacutees jusquagrave ladaptation complegravete agrave leacutetat social et le mal et limmoraliteacute

appeleacutes agrave disparaicirctre la perfection de lhumaniteacute neacutetait quune question de tempsrdquo BECQUEMONT

op cit p 70

98

ampla aquela que atingia a sociedade brasileira na sua totalidaderdquo 293 A crise poliacutetica

era lida pelo autor como um problema mesmo para a moral domeacutestica como se ndash

reeditando Balzac em terras tropicais ndash ao expulsar a famiacutelia imperial a repuacuteblica

tivesse expurgado a autoridade de todos os pais de famiacutelia da naccedilatildeo

Oscilando entre a crenccedila no progresso e os sintomas da decadecircncia uma auto-

proclamada ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo fundaria um ano antes do grande jubileu nacional a

Associaccedilatildeo do Quarto Centenaacuterio do Descobrimento do Brasil Seu manifesto seu

objetivo seu (como diriam no discurso de inauguraccedilatildeo do monumento aos

descobridores) ldquoprotestordquo era ao mesmo tempo uma afirmaccedilatildeo do presente uma

honraria ao passado e um projeto de futuro encaminhado pela ldquopujanccedila da geraccedilatildeo de

1900rdquo ndash testemunha ldquoeloquente do progresso da Arte neste famoso torratildeo americano

() oferenda immorredoura que os bons Brasileiros dedicam aacute Patriardquo 294

Ramiz Galvatildeo diretor da Biblioteca Nacional era o nome puacuteblico da

Associaccedilatildeo Entre colaboradores eventuais organizadores publicistas e escritores

reuniu em torno da causa comemorativa nomes como Capistrano de Abreu Olavo

Bilac mesmo Machado de Assis e Joseacute do Patrociacutenio chegando com sua lideranccedila a

arrefecer a influecircncia de liberais histoacutericos como Ruy Barbosa295 Diante da

diversidade de abordagens possiacuteveis Galvatildeo pretendia conduzir as comemoraccedilotildees no

sentido de promover trabalhos que no mesmo espiacuterito daqueles desenvolvidos

durante sua administraccedilatildeo da Biblioteca Nacional (1870-1882) celebrassem

ldquocondignamente a origem e o desenvolvimento da Nacionalidade Brasileirardquo 296

Mapeamento de fontes conservaccedilatildeo de cultura material organizaccedilatildeo de acervos

documentais realizaccedilatildeo de exposiccedilotildees e cerimocircnias ciacutevicas o drama comemorativo

em um setting montado por instrumentos nada estranhos agrave ciecircncia positiva visava

293 Ver WANDERLEY Marcelo da Rocha Jubileu Nacional A comemoraccedilatildeo do Quadricentenaacuterio

do Descobrimento do Brasil e a Refundaccedilatildeo da Identidade Nacional (1900) UFRJ 1998 dissertaccedilatildeo

que tomo por guia 294 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz O Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Imprensa Nacional Rio

de Janeiro 1900-1904 Vol IV p 174 295 WANDERLEY 1998 p 62 A partir de 1890 e de forma marcante apoacutes a conturbada presidecircncia de

Deodoro os governantes da repuacuteblica comeccedilam a advogar por poliacuteticas mais conciliatoacuterias para com a

heranccedila lusitana e imperial brasileira A posiccedilatildeo de Ramiz Galvatildeo era a esse respeito mais adequada

do que a de diversos republicanos histoacutericos Em 7 de setemebro de 1890 O Paiz ndash jornal simpaacutetico agrave

repuacuteblica ndash publica que Quaisquer que sejam as criacuteticas histoacutericas do feito do Ipiranga a Naccedilatildeo

brasileira natildeo esqueceraacute nunca que ( ) o Princiacutepe ( ) esqueceu os sentimentos de subordinaccedilatildeo e de

dever ao seu pai e ao seu Rei para proclamar a Independecircncia poliacutetica do povo cujos destinos dirigia

A Revoluccedilatildeo de 7 de setembro formou assim uma nova nacionalidade americanardquo apud NETO 1989 p

74 296 Estatutos In O Livro do Centenaacuterio op cit p 47 Citado tambeacutem por WANDERLEY 1998 p 65

99

conduzir o cidadatildeo rumo agrave auto-identificaccedilatildeo para com um personagem abstrato

definido narrativamente como brasileiro

Patrono da cadeira nove da Academia Brasileira de Letras preceptor ateacute

1889 do priacutencipe e baratildeo de Ramiz o tambeacutem professor do Coleacutegio D Pedro II

conquistou amplo tracircnsito no universo letrado carioca da virada do seacuteculo Atento ao

surto dos centenaacuterios Ramiz Galvatildeo vinha ao menos desde a exposiccedilatildeo camoniana de

1880 credenciando sua autoridade de oficiante reafirmada logo no ano seguinte com

o sucesso da Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do Brasil297 De certa maneira ele reeditava o

projeto do IHGB em seu ofiacutecio de ldquocoligir e organizar os elementos para os estudos

histoacutericos e geograacuteficos nacionais que se encontravam dispersos nas proviacutenciasrdquo 298

Mas ele tambeacutem o atualizava frente agrave urgecircncia comemorativa agrave proximidade da data

redonda como um apelo moral e pedagoacutegico agraves futuras geraccedilotildees

[A Associaccedilatildeo do Quarto Centenaacuterio teve] o intuito de

assentar um marco imorredouro na estrada de nossa

existecircncia nacional marco que assinale o esforccedilo

heroacuteico do passado e ao mesmo tempo sirva de estimulo

agraves geraccedilotildees futuras que tecircm de receber o legado quatro

vezes secular engrandececirc-lo e elevaacute-lo ao fastiacutegio da

prosperidade299

E como fazecirc-lo O registro mais perene dos trabalhos da Associaccedilatildeo agrave sombra

do bronze de seus monumentos comemorativos satildeo memoacuterias de papel O Livro do

Centenaacuterio (1500-1900) monumental obra coletiva que reunia nomes como

Capistrano de Abreu e Siacutelvio Romero tinha como objetivo confesso dizer ldquoao mundo

inteirordquo que a heranccedila europeacuteia ndash essa ldquoprogidiosa semente plantada pelos

Portuguezes ao fechar-se do seculo XVrdquo ndash havia finalmente germinado300 ldquoDe uma

raccedila inferior e engolfada na barbaria fez-se um povo que cresceu abriu os olhos aacute luz

297 Quando assume seus encargos frente agrave Associaccedilatildeo do Quarto Centenaacuterio derivada de uma

ldquoComissatildeo Centralrdquo comemorativa fundada em 1898 Ramiz Galvatildeo jaacute havia publicado os Anais da

Biblioteca Nacional (1876) realizado a supracitada exposiccedilatildeo Camoniana e tambeacutem a grande

Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do Brasil (1881) cuja publicaccedilatildeo do Cataacutelogo foi saudada por Joseacute Honoacuterio

Rodriguecircs como ldquode extraordinaacuteria importacircncia na historiografia brasileira natildeo somente por ser a

uacutenica em sua eacutepoca em termos universais como porque nada melhor se construiu no Brasil ()rdquo

formando uma ldquoressurreiccedilatildeo do passado e uma previsatildeo de futurordquo ver RODRIGUES Joseacute Honoacuterio

ldquoIntroduccedilatildeordquo In Cataacutelogo da Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do Brasil Brasiacutelia Editora da Universidade de

Brasiacutelia 1981 v1 pVII e X 298 BARBOSA Januaacuterio da Cunha ldquoDiscurso do Primeiro Secretaacuterio Perpeacutetuo do Institutordquo Revista

do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro IHGB 1839 t1 p 9 299 ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro do

Centenaacuterio (1500-1900) Rio de Janeiro Imprensa Oficial 1900 vol I p VII 300 Livro do Centenaacuterio vol 1 op cit p VII

100

da civilizaccedilatildeordquo sem o qual jamais esquecera liccedilotildees recebidas dos ldquomestres e da

experiecircnciardquo O Brasil havia trilhado o caminho do progresso e da liberdade

organizando-se como naccedilatildeo autocircnoma O grande jubileu era a forma de apresentaacute-lo

ao concerto das naccedilotildees ldquoEacute preciso demonstrar com factos que a Republica dos

Estados Unidos do Brasil natildeo eacute um mythordquo escreveu Coelho Neto301

O quarto volume do Livro do Centenaacuterio publicado mais tarde em 1910

reuniu um conjunto de artigos e estatutos referentes agrave proacutepria Associaccedilatildeo Sua

Memoacuteria Histoacuterica como foi chamada eacute uma fonte imprescindiacutevel para o estudo do

jubileu nacional e mais especificamente das poliacuteticas de memoacuteria do grupo Gecircnero

de certo duplamente comemorativo ou natildeo comemora ele a proacutepria comemoraccedilatildeo

Sua visatildeo do passado fazia-se clara jaacute na introduccedilatildeo

ldquoPrestar culto aos grandes homens que honraram a

nossa raccedila eacute certamente um dever ciacutevico de que se natildeo

exquecem os povos civilizados mas fazer a apotheose

da Patria festejando com esplendor a data mais solenne

de sua existencia equivale a uma synthese de

commemoraccedilotildees centenarias porque o seu unico nome

enfeixa todas as nossas glorias e alegriasrdquo 302

Seguir o exemplo ndash modelo para imitaccedilatildeo e autoridade ndash dos povos

civilizados Como se passou vinte anos antes em terras portuguesas com o centenaacuterio

de Camotildees as comemoraccedilotildees de 1900 seriam capitaneadas em paacuteginas de jornal

ldquoDas columnas editoriaes drsquoO Paiz partiu effectivamente o primeiro gritordquo lanccedilando

a ideia de emular no Rio de Janeiro uma das grandes ldquofeiras do progressordquo ndash essas

Exposiccedilotildees Universais Internacionais tatildeo ceacutelebres em propagandear os avanccedilos

materiais teacutecnicos comerciais e industriais de todas as naccedilotildees da terra A proposta

sabe-se natildeo vingou seja pelos percalccedilos da nascente repuacuteblica seja pelo ldquovecircso

funesto da procrastinaccedilatildeordquo que em finais do seacuteculo XIX ldquotanto retarda os nossos

passos no caminho do progressordquo 303

Projetos para o jubileu natildeo faltaram mas a ldquopoliacutetica absorvia ainda a atenccedilatildeo

geralrdquo dadas as ldquoferidas abertas no corpo da Naccedilatildeo por um periacuteodo de luctas

301 NETTO Coelho Gazeta de Notiacutecias 3 de Junho de 1898 302 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit Introducccedilatildeo 303 ldquoAmolentados pelo ardor dos tropicos costumamos deixar para a ultima hora aquillo que

apparelhado com tempo vagar e estudo meditado poderia ser feito com mais brilho e perfeiccedilatildeordquo Livro

do Centenaacuterio vol 4 op cit p 6-7

101

sangrentas e de desvarios lamentaacuteveisrdquo 304 A partir de 1898 no entanto a Gazeta de

Noticias adere agrave causa comemorativa publicando primeiro um poema dedicado a

Cabral depois um curioso artigo de Coelho Neto propondo que ldquofaccedilamos alguma

cousa para que natildeo se diga que somos indifferentesrdquo 305 Por traacutes desse apoio da

imprensa estava o nome de Ramiz Galvatildeo que em 27 de maio daquele ano publica

seu proacuteprio artigo na Gazeta O texto mostrava-se atento aos centenaacuterios europeus

evocava-lhes a autoridade mantinha-a como exemplo e solicitava a disposiccedilatildeo geral

de todos os ldquoBrasileiros patriotas para esta commemoraccedilatildeo histoacutericardquo 306

A estrateacutegia publicista do ex-diretor da Biblioteca Nacional farto de contatos

entre os homens das letras mostrava-se vitoriosa ldquoA briosa imprensa fluminense

assim como boa parte da imprensa dos Estadosrdquo escreveu Galvatildeo na memoacuteria

histoacuterica ldquoacceitou com calor o pensamento da commemoraccedilatildeordquo 307 Mais do que

isso parece ter arregimentado diversas vozes que dia-a-dia traziam em seus

editoriais palavras de apoio agrave organizaccedilatildeo das celebraccedilotildees paacutetrias Aquele coro no

centro do jornal toda manhatilde repetindo algo como ldquolembrai-vos do quarto centenaacuterio

do descobrimento do Brasil Ersquo necessario que faccedilamos alguma cousardquo 308 Repetir

redizer e reforccedilar de novo como se a pedagogia ciacutevica fosse espeacutecie de dever ldquoa

imprensa e as vaacuterias associaccedilotildees brasileiras devem dar o exemplo tractando de

espalhar a ideacutea pelos Estadosrdquo 309 A Memoacuteria Histoacuterica ainda compila os endossos

editoriais de diversos veiacuteculos da eacutepoca A Lavoura e A Cidade de Barbacena O

Estado de Satildeo Paulo o Jornal da Bahia a Gazeta de Petroacutepolis entre outros foram

tiacutetulos que participaram ativamente da campanha comemorativa310

E alguma coisa comeccedilou a ser feita No dia 4 de agosto de 1898 eacute fundada por

iniciativa de oficiais da Marinha do Brasil a primeira Comissatildeo Central do

Centenaacuterio Ramiz Galvatildeo e Manuel Pederneiras representantes da Gazeta e do

Jornal do Commercio satildeo chamados agrave reuniatildeo presidida pelo contra-almirante

304 IdemIbidem 305 ldquoNatildeo digo que festejemos o quarto anniversario do descobrimento do Brasil com uma Semana

Sancta () Eacute necessaacuterio fazermos alguma cousa () Essas festas preparam o espiacuterito do povo e vatildeo

constituindo a tradiccedilatildeo () Enfim seja como focircr o necessaacuterio eacute que faccedilamos alguma cousa para que

natildeo se diga que somos indifferentesrdquo NETTO Coelho Fagulhas Gazeta de Notiacutecias 25 de maio de

1898 306 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz O Centenaacuterio do Brasil Gazeta de Notiacutecias 27 de Maio de

1898 307 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit p 11 308 NETTO Coelho Gazeta de Notiacutecias 6 de Junho de 1898 309 NETTO Coelho Gazeta de Notiacutecias 3 de Junho de 1898 310 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit pp 10-17

102

Guillobel Demonstraccedilotildees religiosas festejos navais e militares uma exposiccedilatildeo

retrospectiva brasileira terminando em 15 de Novembro de 1900 e uma exposiccedilatildeo

nacional projetada para apresentar ao mundo os progressos da naccedilatildeo ndash esse era o

plano inicial das comemoraccedilotildees acompanhado pela edificaccedilatildeo de duas estaacutetuas de

Pedro Alvares Cabral uma em Porto Seguro outro no Rio de Janeiro e de verbas

para a construccedilatildeo de um Asilo de Invaacutelidos da Marinha (que levaria o nome do

descobridor) Sem esquecer eacute claro de festejos populares e da tradicional queima de

fogos

Sob a presidecircncia do contra-almirante Joseacute Candido Guillobel Ramiz Galvatildeo

e Paulo de Frontin vice-presidentes a Comissatildeo dava os primeiros passos rumo a uma

proposta de financiamento A ideia era a manutenccedilatildeo ao longo do ano de 1899 de

uma ldquotaxa commemorativardquo de quatro por cento sobre a parte dos direitos de

importaccedilatildeo Dessa vez no entanto as vozes puacuteblicas natildeo seriam unacircnimes No dia 16

de agosto a folha vespertina A Notiacutecia chama a taxa de ldquoOnus dispensavelrdquo Essa

criacutetica adiantou a decisatildeo da Cacircmara que de fato ignorou a mateacuteria durante a leitura

do projeto de orccedilamento da receita Assustados os diretores da Comissatildeo ldquoapenas

tiveram tempo para correr aacute Camara e conseguiram de alguns amigos intervenccedilatildeo

immediata para que nem tudo se perdesserdquo Mas nem a amizade de Nilo Peccedilanha seria

suficiente a primeira emenda do requerimento relativa agrave taxa comemorativa foi

recusada em nome do interesse dos consumidores que vivendo em um paiacutes que

importava boa parte de suas manufaturas pagariam a conta311

25 A naccedilatildeo editada ou o Livro do Centenaacuterio

Logo no iniacutecio de 1899 natildeo restou alternativa aos membros da Comissatildeo Sem

financiamento estatal a proposta de transformaacute-la em Associaccedilatildeo distribuir tiacutetulos de

soacutecios benemeacuteritos contribuintes foi aceita com entusiasmo Ramiz Galvatildeo e Paulo

Frontin a sua frente a primeira diretoria teve ainda um oficial do baixo escalatildeo do

exeacutercito e nenhum membro da marinha Pouco menos de um mecircs mais tarde em 8 de

fevereiro assumiu como presidente o almirante Balthazar da Silveira ex-governador

do Rio de Janeiro sob a presidecircncia de Floriano Peixoto

311 Livro do Centenaacuterio vol 4 op cit p 41-42

103

O novo plano comemorativo entretanto jaacute havia sido aprovado e nele

percebemos a retirada das demandas da Marinha do Brasil nada de verbas para asilos

de Invaacutelidos nem estaacutetuas de Pedro Alvares O foco agora havia mudado

radicalmente Do bronze ao papel o grande monumento comemorativo tornou-se o

Livro do Centenaacuterio ainda que em suas paacuteginas o descobridor continuasse a adornar

o centenaacuterio como seu grande homem312 O navegador ndash orientado pelo tempo escrito

nas estrelas o ano da efemeacuteride ndash era conjurado de volta agrave vida e quiccedila mareado suas

gestas agrave deriva nas ondas comemorativas encontrava ainda haacutebeis timoneiros nas

figuras de Galvatildeo e Frontin ldquoPanteotildees diversosrdquo dos ldquojazigos monumentaisrdquo esses

construiacutedos natildeo de ldquopedra e calrdquo ou ldquomaacutermore e bronzerdquo mas da ldquopalavra solene da

histoacuteriardquo Ainda assim um guia para o ldquoespiacuterito da mocidaderdquo cadinho de virtudes

como exemplo agraves novas geraccedilotildees ora elevado a ldquoum culto especial para os mortosrdquo

Foacutermula que natildeo era estranha agrave historiografia nacional do seacuteculo XIX313

O Livro do Centenaacuterio (1500-1900) foi originalmente dividido em 16

memoacuterias confiadas a ldquodistinctos especialistasrdquo muito embora ao final mais de 23

autores tenham colaborado com a monumental obra coletiva A memoacuteria que

inaugura o livro foi redigida por Capistrano de Abreu Eacute em ldquoo Descobrimento do

Brasilrdquo que encontramos sua famosa tese a respeito do ldquodescobrimento socioloacutegicordquo

portuguecircs produto final da discussatildeo oitocentista em torno dos possiacuteveis preceptores

de Cabral em terras de Vera Cruz Pouco mais tarde essa tese vai dialogar

diretamente com o parecer da Comissatildeo de Histoacuteria a respeito dos estudos de Joseacute

Feliciano de Oliveira Em O Descobrimento do Brasil esboccedilo de uma apreciaccedilatildeo

histoacuterica vemos a persistecircncia das velhas discussotildees sobre a premeditaccedilatildeo ou a

casualidade do feito de Cabral De acordo com o bispo Correa Nery a descoberta

poderia ser vista como fruto da forte feacute de Portugal314

Muito mais edificante era a memoacuteria que se seguia escrita pelo Padre Julio

Maria ndash sobre ldquoa religiatildeo ordens religiosas instituiccedilotildees pias e beneficientes do

Brasilrdquo Padre Maria dividia a histoacuteria do catolicismo brasileiro em trecircs quadros de

ferro associados cada um a certo estado do espiacuterito moral Sua ordem Agrave colocircnia o

esplendor ao Impeacuterio a decadecircncia agrave Repuacuteblica o combate315 Combate que teria

312 Idem pp 51-55 313 PORTO ALEGRE Manuel de Arauacutejo Iconografia Brasileira RIHGB t 19 p 349-350 1856 314 RIHGB 1905 p 265-66 315 ldquoO periacuteodo da Republica natildeo poacutede ser ainda para a religiatildeo como foi o colonial o esplendor Natildeo eacute

tambeacutem como foi o do impeacuterio a decadecircncia Ersquo natildeo poacutede deixar de ser ndash o periodo do combaterdquo

104

iniciado contra o regalismo a submissatildeo que disfarccedilada de uniatildeo catoacutelica entre

Estado e Igreja soacute fazia desmerecer a uacuteltima atraveacutes da tirania secularizadora da

coroa ilustrada316 Grande adversaacuterio do positivismo contra quem abriu ldquocombate de

morterdquo Padre Maria julgava que o impeacuterio ldquopelo enfraquecimento das ordens

religiosas pelo desprestiacutegio do clero pela rapidez da reacccedilatildeo catholica na questatildeo

religiosa () pelo racionalismo e o scepticismo das classes dirigentes ()rdquo foi a

ldquodecadecircncia da religiatildeordquo 317 Nesse exame moral as expectativas cristatildes para com a

repuacuteblica haviam se alargado imaginando que a ldquoeducaccedilatildeo leiga [a] secularizaccedilatildeo

da eschola [entre] outros manjares da cozinha positivista por muito provados jaacute natildeo

regalam o paladar de nossa eacutepocardquo 318

Em uma leitura que creditava reunir Cesar Cantugrave Hippolyte Taine e Jacques-

Beacutenigne Bossuet o autor da segunda memoacuteria definia a histoacuteria como a ldquosciencia que

ligando o presente ao passado como o effeito aacute causa e os meios ao fim transporta

para a ordem eterna do universo as leis que regem o mundo moralrdquo 319 A histoacuteria

universal como um ldquolongo encadeamento de causas particularesrdquo dependeria em

uma matriz celestial e logo necessaacuteria das ldquoordens secretas da Providecircncia

divinardquo320 Padre Maria natildeo se acanhava em considerar o proacuteprio ldquodescobrimento da

Ameacuterica um facto providencial de induacutestria preparado por Deus para compensaccedilatildeo e

MARIA Padre Julio A religiatildeo ordens religiosas instituiccedilotildees pias e beneficientes do Brasil Livro do

Centenaacuterio (1500-1900) op cit vol 1 p 123 Notar que a numeraccedilatildeo do Livro do Centenaacuterio reinicia sua

contagem em cada memoacuteria 316 Neste ponto ao comentar a questatildeo religiosa Padre Maria parece voltar-se contra a ala

ultramontana que defendia a religiatildeo de Estado e reafirmava a base catoacutelica do regime imperial A

disputa com a maccedilonaria levou o gabinete Rio Branco ndash ele mesmo gratildeo-mestre de duas lojas ndash a

processar os bispos por desobediecircncia civil os quais seriam anistiados pouco mais tarde por Sinimbu

Diversas leituras morais da crise pulularam neste cenaacuterio Para Mendes de Almeida a laicizaccedilatildeo do

Estado enfraquece ldquoo espiacuterito () arrasta-o a maior corrupccedilatildeo e deperecimento moral () Esta

civilizaccedilatildeo tem dado exclusiva atenccedilatildeo agraves ciecircncias fiacutesicas e agraves invenccedilotildees industriais () desprezando a

verdade religiosardquo ALMEIDA Mendes de Anais do Senado do Impeacuterio 3061873 Para Candido

Mendes a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado era uma excentricidade revolucionaacuteria francesa sendo

necessaacuterio manter a ldquosupremacia da lei moral sobre a poliacutetica ou a civilrdquo MENDES Cacircndido Anais do

Senado do Impeacuterio 1031872 Ver ALONSO op cit p 89 317 MARIA Padre Julio op cit p 107 A frase ldquoabri combate de morte contra o Positivismordquo ndash

referindo-se as suas publicaccedilotildees jornaliacutesticas aparece mais a seguir na paacutegina 122 318 Idem 104 Grifos originais 319 ldquoErsquo certo que a histoacuteria natildeo eacute a chronica nem a gazeta eacute a harmonia do verdadeiro do bello e do

bomrdquo Idem 5 E continua citando CANTUgrave Cesar Histoire universelle Lacombe Paris 1883 ldquoDahi eacute

que decorre a necessidade de se exigir da histoacuteria a foacutermula de seus phenomenos e tambem a

necessidade de combinar-se o seu elemento livre accidental humano com o seu elemento essencial

immutavel divinordquo 320 ldquoMais souvenez-vous monseigneur que ce long enchaicircnement des causes particuliegraveres qui font et

deacutefont les empires deacutepend des ordres secrets de la divine Providence () Dieu excerce par ce moyen

ses redoutables jugements selon les regravegles de as justice toujours infaillible () Ne parlons plus de

hasard ni de fortune ou parlons-en seulement comme dacuteun nom dont couvrons notre ignorancerdquo

BOSSUET Discours sur lrsquoHistoire Universelle Garnier Fregraveres Paris p 421-422

105

equiliacutebrio das perdas que na Europa o protestantismo acarretou aacute Egrejardquo Se para noacutes

os grandes homens o satildeo pelo trabalho de enquadramento dos mecanismos morais e

poliacuteticos da memoacuteria para o historiador do catolicismo brasileiro eles nasciam do

recebimento de uma ldquomissatildeo divinardquo Ou Pedro Alvares grande homem natildeo o foi jaacute

por ter recebido o santo encargo ldquofazendo enfim do Brasil um novo scenario dado

ao christianismordquo 321

ldquoQuadro fiel da marcha do gecircnero humano atraveacutes dos seacuteculosrdquo a histoacuteria eacute

compreendida como um ldquomovimento geralrdquo cujo sentido eacute encadeado do Alfa

atraveacutes de suas causas particulares (do ldquopoliacutetico juriacutedico scientifico litterario

industrial artiacutestico das naccedilotildeesrdquo etc) rumo ao Omega ldquoo fim () destino da

humanidaderdquo ndash seu inevitaacutevel reencontro com Deus lido a partir de Deschamps

(Oeuvres Tomo II parte 2)322 Do ponto de vista da ordem terrena daquilo que eacute do

homem a nacionalidade poderia ser definida ainda a partir de nossos aspectos

morais ldquoNatildeo compreendordquo disse o autor ldquoque se possa escrever uma memoacuteria

histoacuterica () onde o inicio e o desenvolvimento de nossa nacionalidade () os usos e

os costumes ndash [natildeo estejam] identificado[s] com as crenccedilas religiosas de nossos

antepassadosrdquo A identidade entre dois personagens abstratos ndash o Brasil e o brasileiro

ndash soacute poderia ser entendida atraveacutes do catolicismo ndash ldquocatholicismordquo que emprestando

suas caracteriacutesticas ldquoformou nossa nacionalidaderdquo 323

Com seus sacerdotes desacreditados ndash pontes de ligaccedilatildeo com o mundo

superior interditadas ndash os rumos da proacutepria histoacuteria brasileira eram desorientados pelo

quadro de dissoluccedilatildeo dos costumes Nesse periacuteodo ingloacuterio marcado pelo ceticismo e

pelo ateiacutesmo cientificista natildeo haacute ldquoum soacute que tenha nas matildeos a bandeira das ideacuteas

grandes das grandes verdades moraes que nas eacutepochas de decadecircncia retemperam os

povos e salvam as naccedilotildeesrdquo 324 Mas a situaccedilatildeo natildeo mudaria magicamente com o fim

do Impeacuterio A crise brasileira natildeo dependia afinal de contas das formas de

321 ldquoConsiderando neste trabalho o descobrimento da America um facto providencial de industria

preparado por Deus para compensaccedilatildeo e equilibrio das perdas que na Europa o protestantismo

acarretou aacute Egreja dando a Pedro Alvares Cabral uma missatildeo divina fazendo enfim do Brasil um

novo scenario dado ao christianismo diratildeo talvez que eu faccedilo do Discurso sobre a Histoacuteria

Universal essa obra prima de Bossuet o modelo a regra o limite dos quadros e narraccedilotildees da

Histoacuteriardquo MARIA Padre Julio op cit p 6 322 Idem p 7 Grifos originais 323 Idem p 7 324 Idem p 105

106

governo325 Ela eacute uma ldquocrise moral resultante da profunda decadencia religiosa desde

o antigo regimen das classes dirigentes da naccedilatildeo e que soacute poacutede ser resolvida por uma

reacccedilatildeo catholicardquo 326 Mais do que um convite a refletir a comemoraccedilatildeo do

quadricentenaacuterio convocava o ldquoespiacuterito pensadorrdquo ndash nesse ponto do tempo em que os

paralelos se encontram ndash a reviver e se deixar convencer pela autoridade moral dos

exemplos fundadores ldquonunca maior missatildeo se deparou agrave egreja em nosso paizrdquo 327

Missatildeo divina esse convite de Deus agrave ldquoreconstrucccedilatildeo moral da sociedaderdquo 328

O que deveriacuteamos entatildeo reconstruir ou reparar moralmente Com padre

Maria a comemoraccedilatildeo como em sua forma elementar religiosa (re-ligare) fazia

cantar e escutar o Te Deum em toda ocasiatildeo festiva ao menos ateacute suas histoacuterias

unirem-se em um singular coletivo capaz de distinguir e clarificar ndash por vezes em uma

uacutenica e longa dissertaccedilatildeo ndash os designiacuteos da identidade nacional ouvida agora desde as

margens tranquilas de um ceacutelebre riacho Em sua expressatildeo mais sincera fundamental

e edificante a comemoraccedilatildeo proposta por Padre Maria enquadrava a memoacuteria

brasileira a partir do catolicismo ao mesmo tempo em que exortava um retorno agrave

confessatildeo ancestral

A proacutepria ldquocrise moralrdquo contra a qual Padre Maria cerrava os punhos tornava

evidente o brasileiro jaacute era lembrado como algo mais do que simplesmente catoacutelico

Siacutelvio Romero escrevendo outra memoacuteria retoma alguns aspectos de sua Histoacuteria da

Litteratura Brasileira Realizou na verdade uma leitura filiada a Spencer ndash em seu

apego agrave dinacircmica entre progresso e decadecircncia ndash do desenvolvimento das belas letras

em nosso paiacutes329 Outrora modelo no iniacutecio do seacuteculo XIX Portugal jaacute natildeo o era mais

como explicava Romero ldquoSob a influecircncia da navegaccedilatildeo directa a vaporrdquo a Franccedila

325 Ersquo aacute religiatildeo natildeo a esta ou aacutequella forma de governo que a Providecircncia Divina mostra na sucessatildeo

dos factos e na corrente dos acontecimentos o desiacutegnio misericordioso de fazer reviver na terra do

Cruzeiro retemperada e triunphante a feacute que animou os nossos descobridores Idem p 130 326 Idem p 130 327 Idem p 124 328 Ersquo ao catholicismo natildeo a um partido poliacutetico que manifestadamente na hora presente Deus

convida aacute reconstrucccedilatildeo moral da sociedade Idem p 130 329 O autor chega a inclui a si mesmo ndash ao lado de Clovis Bevilaqua ndash como um expoente da ldquocorrente

spencerianardquo da criacutetica nacional ROMERO Sylvio Litteratura In Livro do Centenaacuterio (1500-1900)

vol 1 op cit p 124 Para Angela Alonso esse tipo de filiaccedilatildeo intelectual autoproclamada deveria ser

entendida como um elemento constituidor da identidade de um grupo que acessando um repertoacuterio

teoacuterico internacional ndash seja via Revue des Deux Mondes seja via Quaterley Review ndash fazia um

determinado uso poliacutetico de suas ferramentas conceituais Nas palavras da socioacuteloga ldquoCategorias como

lsquodarwinismorsquo lsquopositivismorsquo lsquoliberalismorsquo sofreram apropriaccedilotildees redefiniccedilotildees usos poliacuteticos Isso eacute

evidente nas polecircmicas entre facccedilotildees termos como lsquopositivistas laffitistasrsquo e lsquolittreiacutestasrsquo [Miguel

Lemos] lsquodarwinistasrsquo e lsquospencerianosrdquo () foram criados nas controveacutersias As categorias satildeo

constrativas exprimem relaccedilotildees entre grupos a proacutepria nomeaccedilatildeo eacute uma arma em meio a conflitos de

definiccedilatildeo de identidades ALONSO 2002 p 32 Grifos Meus

107

havia assumido tal posiccedilatildeo ldquoO brasileiro supposto egual ao europecirco julga[va]-se o

primeiro povo drsquoAmericardquo Ora jaacute com a guerra do Paraguay ldquoproblemas politicos e

sociaes varios novos ideaes philosophicos abre-se um periodo de reacccedilatildeo

pessimisticardquo marcado pela preponderacircncia germacircnica jaacute no contexto da grande

vitoacuteria de 1871 Ao sabor dos tempos emprestaacutevamos conceitos ideias aqui noccedilotildees

acolaacute Embora ainda fosse cedo para falar em antropofagia cultural ndash o vocabulaacuterio

era certamente outro ndash na sua ldquoespeacutecie de balanccedilo ethnographicordquo o criacutetico literaacuterio

havia chegado agrave conclusatildeo de que o ldquoser genuiacuteno brasileirordquo era ldquopura e simplesmente

o mesticcedilo physico ou moralrdquo 330

O problema da raccedila jaacute fazia parte do repertoacuterio do IHGB pelo menos desde a

famosa dissertaccedilatildeo de Karl Von Martius escrita em 1843 mas publicada na revista do

instituto em 1865 Como se deve escrever a histoacuteria do Brasil apresentava a

necessidade de se pensar na tarefa de narrar o passado do paiacutes ldquoos elementos que ahi

concorreratildeo para o desenvolvimento do homemrdquo331 Com a autoridade de um

naturalista que entre 1817 e 1820 tinha desbravado as selvas amazocircnicas a mando do

rei da Bavaria Martius havia chegado agrave conclusatildeo de que as peculiaridades das

populaccedilotildees brasileiras eram fruto da fusatildeo de trecircs raccedilas ldquoa de cocircr cobre ou americana

a branca ou caucasiana e enfim a negra e ethiopicardquo Ao lado das costumeiras

atribuiccedilotildees morais relacionadas agrave ldquopequena paacutetriardquo ndash aos normandos e saxotildees de

Walter Scott ou aos Gauleses e Francos de um Montesquieu ndash as raccedilas de Martius

agora possuiam cor Cores e costumes que carregavam tambeacutem a chave do

entendimento dos destinos do desenvolvimento nacional ldquocada uma das

particularidade physicas e moraes que distinguem as diversas raccedilas offerece a este

respeito um motor especialrdquo332

O vocabulaacuterio de Martius seguia de perto os estudos de anatomia comparada

realizados anos antes na Alemanha por Johan Friedrich Blumenbach Embora o autor

dos Elementos de Fisiologia fosse um defensor da monogenia cristatilde e das teorias de

degeneraccedilatildeo ele natildeo via as raccedilas negras e americanas como definidamente inferiores

mesmo que seus comentaacuterios a esse respeito tenham sido pouco impactantes Pelo

contraacuterio sua obra parece mesmo ter contribuiacutedo para o desenvolvimento do

330 Idem p 7 Grifos originais 331 MARTIUS Karl Friederich Phillipe von Como se deve escrever a histoacuteria do Brasil RIHGB Rio

de Janeiro 1865 t6 2 Ed pp 389-411 In GUIMARAtildeES Manuel Luiz Salgado Livro de Fontes de

Historiografia Brasileira Rio de Janeiro Eduerj 2010 p 63 332 Idem p 64

108

cientificismo racioloacutegico do seacuteculo XIX333 Nela estavam presentes as descriccedilotildees

fisioloacutegicas de cinco raccedilas humanas das quais trecircs seratildeo identificadas no Brasil de

Martius334

Eacute sem surpresa portanto que Martius fala em ldquoraccedilas inferioresrdquo ao mesmo

tempo em que encontra espaccedilo para saudar a miscigenaccedilatildeo dos elementos negros

iacutendios e brancos Mais do que isso a fusatildeo eacutetnica eacute percebida como uma verdadeira

obra da Providecircncia que reuniu no Novo Mundo ldquouma ao lado da outra de uma

maneira desconhecida na histoacuteria antigardquo trecircs raccedilas humanas junto agraves ldquocondiccedilotildees para

o [seu] aperfeiccediloamentordquo335 Essa era a ldquoactividade historicardquo cujo Impeacuterio de Brasil ndash

a quem o historiador ldquocomo autor Monarchico-Constitucionalrdquo deve servir ndash era

chamado a realizar a perfectibilidade fiacutesica e moral natural e humana das

populaccedilotildees brasileiras336 Para Martius o Brasil das trecircs raccedilas era um grande

experimento divino que chamava as atenccedilotildees racionais da filosofia natural e da

filosofia moral reunificadas sob a eacutegide do vocabulaacuterio e dos instrumentos

taxonocircmicos das novas ciecircncias

Na Europa do iniacutecio do seacuteculo XIX enquanto Karl Von Martius preparava-se

para passar algumas temporadas no Brasil geoacutelogos naturalistas e filoacutelogos eram

chamados a oferecer modelos explicativos aos saacutebios obcecados pela busca das

origens Uma das heranccedilas da revoluccedilatildeo ndash da abertura de um tempo novo que por sua

proacutepria definiccedilatildeo natildeo poderia buscar raiacutezes em nenhum passado muito longiacutenquo ndash

333 Sobre essa questatildeo ver FREDRICKSON George M Racism A Short History Princeton University

Press 2002 principalmente pp 56-58 ldquoWhatever their intentions Linnaeus Blumenbach and other

eighteenth-century ethnologists opened the way to a secular or scientific racismrdquo p 57 334 ldquoThus among the five varieties into which I would divide the human race in the first which may be

termed Caucasian and embraces Europeans (except the Laplanders and the rest of the Finnish race)

the western Asiatics and the northern Africans it is more or less white In the second or Mongolian

including the rest of the Asiatcs (except the Malays of the peninsula beyond the Ganges) the Finnish

races of the north of Europe as the Laplanders ampc and the tribes of Esquimaux widely diffused over

the most northern parts of America it is yellow or resembling box-wood In the third or Ethiopian to

which the remainder of the Africans belong it is of a tawny or jet black In the fourt or American

comprehending all the Americans excepting the Esquimaux it is almost copper coloured and in some

of a cinnamon and as it were ferruginous hue In the fifth or Malaic in which I include the

inhabitants of all teh islands in the Pacif Ocean and of the Philippine and Sunda and those of the

peninsula of Malaya it is more or less brown ndash between the hue of fresh mahogany and that of cloves

or chesnutsrdquo BLUMENBACH Friedrich Johan The Elements of Physiology Elliotson John (trans) 4

ed London Longman Rees Orme Brown and Green Paternoster-Row 1828 pp 174-175 335 Idem 66 336 ldquoEm a classe baixa tem lugar esta mescla e como das inferiores e por meio drsquoellas se vivificam e

fortalecem assim se prepara actualmente na ultima classe da populaccedilatildeo brasileira essa mescla de raccedilas

que drsquoahi a seculos influira poderosamente sobre as classes elevadas e lhes communicaraacute aquella

actividade historica para a qual o Imperio do Brasil eacute chamadordquo Idem p 86 () ldquoNunca esqueccedila pois

o historiador do Brazil que para prestar um verdadeiro serviccedilo aacute sua paacutetria deveraacute escrever como autor

Monarchico-Constitucional como unitaacuterio no mais puro sentido da palavrardquo Idem p 86

109

foi ser responsaacutevel por uma intensa mobilizaccedilatildeo pelo reconhecimento de algum

ldquomotorrdquo (como diria Martius) da histoacuteria nacional Sylvain Venayre escrevendo a

respeito do caso francecircs afirma que alguns historiadores ldquosobretudo falavam de

naccedilatildeordquo e essa ldquosimples palavra parecia os autorizar a procurar na histoacuteria as

qualidades lsquonativasrsquo da Franccedilardquo337 Guizot Thierry Michelet Quinet e mais tarde

Fustel de Coulanges Taine e Vidal de la Blache todos pareciam a sua maneira

interessados nessa discussatildeo Discussatildeo que nos conta um pouco da histoacuteria daquilo

que mais tarde jaacute no seacuteculo XX atenderaacute pelo nome de ldquoidentidade nacionalrdquo

Da teoria das ldquoduas naccedilotildeesrdquo francesas ndash essa cisatildeo ancestral de supostas

repercussotildees classistas ndash passamos a medida em que nos afastamentos do periacuteodo

revolucionaacuterio ao evocar incessante das imagens de unidade338 Apoacutes 1871 os

estudos racioloacutegicos vinculados agraves ciecircncias naturais comeccedilam a sofrer oposiccedilatildeo

ldquoCiecircncia alematilderdquo agora contraposta agraves ldquoconcepccedilotildees francesasrdquo como mostrou

Venayre eacute uma elaboraccedilatildeo que aparece com a perda da Alsaacutecia-Mosela e ela tambeacutem

eacute concomitante com o prestiacutegio do novo impeacuterio alematildeo No Brasil Siacutelvio Romero

vem falar dos ldquonovos ideaes philosophicosrdquo ideias vindas da Alemanha que

exatamente nesse momento abrem um ldquoperiodo de reacccedilatildeo pessimisticardquo O

repertoacuterio da decadecircncia e a criacutetica da ldquodissoluccedilatildeo dos costumesrdquo encontra focirclego

renovado ao apropriar-se do prestiacutegio das novas taxonomias raciais

Mesmo que Ernest Renan como vimos tenha em sua conferecircncia de 1882

desacreditado a instrumentalidade poliacutetica da categoria de raccedila diversos de seus

contemporacircneos mesmo na Franccedila natildeo haviam abandonado esse vocabulaacuterio339

Muitos deles eram constantemente lembrados entre os ldquodistinctos especialistasrdquo

chamados a escrever as tais memoacuterias centenaacuterias Hyppolyte Taine era um deles

Com Taine temos a ceacutelebre foacutermula da Raccedila do meio e do momento Ou como ele

337 VENAYRE Sylvain Les Origines de la France quand les historiens racontaient la nation

LrsquoUnivers historique Paris Seuil 2013 p 14 338 A Franccedila de Michelet ndash que por vezes com ela conversava em meios aos seus textos usando o

familiar ndash era uma assimiladora de espiacuteritos uma conversora de paixotildees Ao contraacuterio da Alemanha

que nunca possuiu e da Itaacutelia que haacute muito deixou de ter a Franccedila sim ldquotem um centrordquo Ela era

ldquouacutenica e identica depois de vaacuterios seacuteculosrdquo e merecia ser considerada como ldquouma pessoa que vive e

morrerdquo A Franccedila atraiu absorveu e identificou franceses na Inglaterra na Alemanha mesmo na

Espanha neutralizando ldquoum pelo outro e convertido todos a sua substacircnciardquo MICHELET Jules

Introduction a lrsquoHistoire Universelle Suivi du discours drsquoouverture 3a ed Paris L Hachette 1843 p

5 339 VENAYRE 2013 chama a atenccedilatildeo para o caraacuteter oportunista da oposiccedilatildeo de Renan ndash entendida

como uma oposiccedilatildeo ao germanismo ndash ao conceito de raccedila

110

mesmo explicou ldquoa mola interior a pressatildeo de fora e a impulsatildeo jaacute adquiridardquo340 O

autor das Origens da Franccedila Contemporacircnea era um tanto desconfiado da erudiccedilatildeo a

histoacuteria para ele natildeo deveria ser escrita a partir dos fenocircmenos superficiais que

emergem na leitura das fontes Pelo contraacuterio era preciso entender as suas causas

mais profundas ldquoQue os fatos sejam fiacutesicos ou morais natildeo importa eles tecircm sempre

causas () o viacutecio e a virtude satildeo produtos como o sulfato e o accediluacutecarrdquo disse em uma

de suas mais citadas frases341

A naturalizaccedilatildeo da moral natildeo era no entanto direta e absoluta Para continuar

usando o vocabulaacuterio do autor a proacutepria passagem de uma ldquoreligiatildeo disciplinarrdquo para

uma ldquoreligiatildeo moralrdquo demandou a criaccedilatildeo e ediccedilatildeo de doutrinas ritos e mesmo de

uma arquitetura sacra 342 Os trecircs conceitos fundamentais ndash a ordem das causas ndash natildeo

cessavam de se entrecruzar formando um ldquosistema de sentimentos e ideias humanasrdquo

sistema que tinha como motor alguns traccedilos gerais ldquocertos caracteres de espiacuteritordquo

comuns aos ldquohomens de uma raccedila de um seacuteculo ou de um paiacutesrdquo 343 Mesmo a raccedila

causa ldquouniversal e permanente presente a cada momento e a cada casordquo demonstraria

variaccedilotildees ao longo do tempo e do espaccedilo pela accedilatildeo do meio e do momento344 Nesse

sistema de sentimentos poderiacuteamos definir o caraacuteter de um povo ldquocomo o resumo de

todas as suas accedilotildees e de todas suas sensaccedilotildees precedentes ou seja como uma

quantidade e como um peso natildeo infinitordquo 345

Ainda que estivessemos em um clima intelectual alimentado constantemente

de analogias comparaccedilotildees ou importaccedilotildees diretas de conceitos desenvolvidos sob a

oacuterbita cientiacutefica do evolucionismo bioloacutegico a raccedila enquanto elemento mais

340 TAINE H Histoire de la litteacuterature anglaise T 1 Paris Librarie de L Hachette 1866

Introduction p XXXIV O conceito de raccedila em Taine parece natildeo ter uma filiaccedilatildeo eminentemente

bioloacutegica lido talvez como paralelo ao conceito de Volk em Herder 341 ldquoQue les faits soient physiques ou moraux il nacuteimporte ils ont toujours des causes il y en a pour

lacuteambition pour le courage pour la veacuteraciteacute comme pour la digestion poacuteur le mouvement musculaire

pour la chaleur animale Le vice et la vertu sont des produits comme le vitriol et le sucre et toute

donneacutee complexe naicirct par la rencontre dacuteautres donneacutes plus simples dont elle deacutependrdquo Idem p XV

Grifos meus 342 Idem XVI 343 ldquoIl y a donc un systegraveme dans les sentiments et dans les ideacutees humaines et ce systegraveme a pour moteur

premier certains traits geacuteneacuteraux certains caractegraveres dacuteesprit et de coeur communs aux hommes dacuteune

race dacuteun siegravecle ou dacuteun paysrdquo Idem p XVIII 344 ldquoCe sont lagrave les grandes causes car ce sont les causes universelles et permanentes preacutesentes agrave

chaque moment et en chaque cas ()rdquo Idem p XVII Taine explica que as diferenccedilas fundamentais

entre povos germacircnicos e latinos ndash ambos de suposta origem ariana ndash seriam derivadas do clima

mediterracircnico e noacuterdico instacircncias determinadoras de seus ldquocaracteres de espiacuterito suas formas mais

gerais de pensar e de sentirrdquo Idem p XVI-XVII 345 ldquoEn sorte quacuteagrave chaque moment on peut considegraverer le caractegravere dacuteun peuple comme le reacutesumeacute de

toutes ses actions et de toutes ses sensations preacuteceacutedentes cacuteest-agrave-dire comme une quantiteacute et comme un

poids non pas infinirdquo Idem XXV

111

invariaacutevel das foacutermulas sociais natildeo definiria mecanicamente uma nacionalidade Ou

acaso ela natildeo poderia ser moldada pelo efeito de outras causas fundamentais O meio

(natural poliacutetico e social) composto por essas ldquoforccedilas exterioresrdquo encontraria nos

discursos poliacutetico e morais dos oficiantes da velha repuacuteblica os instrumentos

necessaacuterios para que moldasse a ldquomateacuteria humanardquo346 O momento eacute verdade natildeo

poderia parecer mais propiacutecio a Grande Data o jubileu nacional instante em que os

reloacutegios da naccedilatildeo ecoavam os sinos comemorativos dobrados por um punhado de

intelectuais e publicistas da naccedilatildeo ldquoQuando o caraacuteter nacional e as circunstacircncias do

ambiente operamrdquo escreveu Taine ldquoelas natildeo operam em uma taacutebula rasardquo Trata-se

de uma lousa na qual as impressotildees jaacute estatildeo marcadas347 Marcada por uma missatildeo

divina ou um dever ciacutevico encarrilhar a locomotiva nacional nos trilhos de ferro do

progresso era tarefa que partindo de caminhos a lembrar e atalhos a esquecer

alcanccedilava enfim ao tocar o problema da raccedila os contornos bem definidos de uma

poliacutetica de atropelamento eacutetnico

O Brasil natildeo eacute o iacutendio este onde a civilizaccedilatildeo ainda natildeo

se extendeu perdura com os seus costumes primitivos

sem adeantamento nem progresso Descoberto em 1500

pela frota portugueza ao mando de Pedro Alvares

Cabral o Brasil eacute a resultante directa da civilizaccedilatildeo

occidental trazida pela immigraccedilatildeo que lenta mas

continuamente foi povoando o soacutelo A religiatildeo a mais

poderosa focircrccedila civilizadora da epocha internou-se pelos

longincuos e invios sertotildees brasileiros e sob o influxo de

Nobrega e Anchieta conseguiu assimilar nuacutemero

consideraacutevel de aborigenes que assim se incorporaram aacute

Naccedilatildeo Brasileira Os silviacutecolas esparsos ainda

abundam nas nossas magestosas florestas e em nada

differem dos seus ascendentes de 400 annos atraacutes natildeo

satildeo nem podem ser considerados parte integrante da

nossa nacionalidade a esta cabe assimila-los e natildeo o

conseguindo elimina-los348

346 O meio eacute definido por Taine como ldquoles puissances exteacuterieures qui faccedilonnent la matiegravere humaine et

par lesquelles le dehors agit sur le dadansrdquo Idem p XXIX 347 ldquoQuand le caractegravere national et les circonstances environnantes opegraverent ils nacuteopegraverent point sur une

table rase mais une table ougrave des empreintes sont deacutejagrave marquegravees Selon quacuteon prend la table agrave un

moment ou agrave un autre lacuteemoreinte est diffeacuterente et cela suffit pour que lacuteeffet total soit diffeacuterentrdquo p

XXIX-XXX 348 FRONTIN Paulo de Sessatildeo Magna do Centenaacuterio no dia 4 de Maio de 1900 Livro do Centenaacuterio

1500-1900 Vol 4 Memoacuteria Histoacuterica p 187 Grifos Meus

112

Temos o direito de nos sentir chocados com essa passagem mas para analisaacute-

la creio ser necessaacuterio comeccedilar afirmando que as referecircncias aos padres Manuel da

Noacutebrega e Antocircnio Vieira natildeo satildeo em nada aleatoacuterias Em um texto publicano nos

anos 90 do seacuteculo XX Eduardo Viveiro de Castro preocupou-se em entender aquilo

que os antropoacutelogos costumam chamar de ldquovisatildeo do iacutendio sobre a tribordquo Ao seguir a

leitura de Clifford James Castro observa a percepccedilatildeo de si dos povos nativos do

Brasil menos como ldquouma fronteira a ser defendidardquo e mais enquanto ldquoum nexo de

relaccedilotildees e transaccedilotildees no qual o sujeito estaacute ativamente comprometidordquo Para essa

leitura falar em ldquoidentidaderdquo talvez fosse tanto abusivo pois para os nativos era ldquoa

troca natildeo a identidade o valor fundamental a ser afirmadordquo fenocircmeno proacuteximo da

ldquoouverture agrave lrsquoautrerdquo de que fala Levi-Strauss 349 Esse elemento de alteridade

presente no perspectivismo ameriacutendio permite ao pesquisador compreender as

enigmaacuteticas afirmaccedilotildees dos Tupinambaacute registradas por Noacutebrega que alegavam

querer ser ldquochristianos como nosotrosrdquo Como mostra Castro querer ser cristatildeo era

no fundo querer ser iacutendio encontrar no outro parte de si e mesmo sua proacutepria

memoacuteria Os povos do litoral brasileiro entregavam-se aos catequistas tomavam

comunhatildeo aprendiam a rezar mas para o espanto dos missionaacuterios regressavam

com imensa facilidade aos ldquomaus costumesrdquo de seus ancestrais Logo no iniacutecio do

ensaio Castro cita uma longa passagem do Sermatildeo do Espiacuterito Santo de autoria do

Padre Vieira que aqui reproduzo em parte

Os que andastes pelo mundo e entrastes em casas de

prazer de priacutencipes veriacuteeis naqueles quadros e naquelas

ruas dos jardins dois gecircneros de estaacutetuas muito

diferentes umas de maacutermore outras de murta A estaacutetua

de maacutermore custa muito a fazer pela dureza e

resistecircncia da mateacuteria mas depois de feita uma vez natildeo

eacute necessaacuterio que lhe ponham mais matildeo sempre

conserva e sustenta a mesma figura a estaacutetua de murta eacute

mais faacutecil de formar pela facilidade com que se dobram 349 Na passagem citada pelo autor ldquoAs narrativas de contato e mudanccedila cultural tecircm sido estruturadas

por uma dicotomia onipresente absorccedilatildeo pelo outro ou resistecircncia ao outro [] Mas e se a identidade

for concebida natildeo como uma fronteira a ser defendida e sim como um nexo de relaccedilotildees e transaccedilotildees

no qual o sujeito estaacute ativamente comprometido A narrativa ou narrativas de interaccedilatildeo devem nesse

caso tornar-se mais complexas menos lineares e teoloacutegicas O que muda quando o sujeito da lsquohistoacuteriarsquo

natildeo eacute mais ocidental Como se apresentam as narrativas de contato resistecircncia ou assimilaccedilatildeo do

ponto de vista de grupos para os quais eacute a troca natildeo a identidade o valor fundamental a ser afimadordquo

CLIFFORD James 1988 The predicament of culture twentieth century ethnography literature

andart Cambridge Mass Harvard Univ Press p 344 apud CASTRO Eduardo Viveiros de O

maacutermore e a murta In A Inconstacircncia da Alma Selvagem Cosacnaify Satildeo Paulo 2005 pp 195-196 e

206

113

os ramos mas eacute necessaacuterio andar sempre reformando e

trabalhando nela para que se conserve Se deixa o

jardineiro de assistir em quatro dias sai um ramo que

lhe atravessa os olhos sai outro que lhe descompotildee as

orelhas saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete e

o que pouco antes era homem jaacute eacute uma confusatildeo verde

de murtas350

Nesse excerto o jesuiacuteta faz menccedilatildeo agraves dificuldades encontradas pelos

missionaacuterios em dobrar as almas do gentio brasileiro Pontuava a ldquodiferenccedila que haacute

entre umas naccedilotildees e outras na doutrina da feacuterdquo sendo algumas ldquonaturalmente duras

tenazes e constantesrdquo resistindo com armas duacutevidas e desentendimentos aos

misteacuterios revelados e outras que como as do Brasil ldquoreteacutem tudo o que lhes ensinam

com grande docilidade e facilidaderdquo As uacuteltimas no entanto satildeo um pouco como

estaacutetuas de murta e natildeo de maacutermore perdendo ldquoa nova figurardquo ao simples

ambandono das matildeos do jardineiro ldquoEacute necessaacuterio que [se] assista sempre a estas

estaacutetuasrdquo dizia Vieira ldquotrabalhando () contra a natureza do tronco e o humor das

raiacutezesrdquo 351

O tema da ldquoinconstacircncia da almardquo selvagem como mostrou Castro eacute

recorrente em toda a histoacuteria do Brasil fazendo-se notar em sua proacutepria histoacuteria da

histoacuteria Para Varnhagen que de certo nunca viu os iacutendios com muita simpatia eles

eram ldquofalsos e infieacuteisrdquo igualmente ldquoinconstantes e ingratosrdquo Na obra de Serafim

Leite historiador da ordem jesuiacutetica no Brasil careciam de vontade e expressavam

sentimentos superficiais Ainda Seacutergio Buarque de Holanda retomaria a questatildeo

descrevendo-os como ldquoinacessiacuteveisrdquo a ldquocertas noccedilotildees de ordem constacircncia e

exatidatildeordquo 352

Em sua base o problema das trecircs raccedilas talvez seja anaacutelogo ao tema aristoteacutelico

das trecircs potecircncias da alma Muito caro aos jesuiacutetas e aos peripateacuteticos da Coimbra

seiscentista a doutrina tendia a atribuir a cada uma das raccedilas uma faculdade ldquoaos

iacutendios a percepcatildeo aos africanos o sentimento aos europeus a razatildeordquo 353 Ou ainda a

raccedila inteligente a raccedila amante e a raccedila selvagem Jaacute nos Dialogo sobre a conversatildeo

350 VIEIRA Antonio Sermao do Espfrito Santo in Sermoes Sao Paulo Editora das Americas vol 5

1957 [1657] p 216 Apud CASTRO 2005 183-184 351 Idem Ibidem 352 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Histoacuteria geral do Brasil antes de sua separaccedilatildeo e

independecircncia de Portugal Satildeo Paulo Melhoramentos Tomo I 1959 [1854] p 51 BUARQUE DE

HOLANDA Seacutergio Raiacutezes do Brasil Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1956 [1936] Ver CASTRO

2005 p 186 nota 5 para uma bibliografia completa 353 CASTRO 2005 187

114

do Gentio vemos na fala do interlocutor Nugueira a descriccedilatildeo do problema ldquoisso

estaacute claro pois a alma tem trecircs potentias entendimento memoria vontade que todos

tecircmrdquo354 Essa eacute uma toacutepica que segue ateacute o seacuteculo XX de Gilberto Freyre355 Se os

iacutendios entendiam bem diziam os pregadores a memoacuteria e a vontade lhes eram fracas

retornando sem grande resistecircncia aos ldquocostumes inveteradosrdquo como beber de seus

vinhos ter muitas esposas fazer a guerra e praticar a antropofagia356 Por vezes

incapazes de reconhecer uma religiosidade entre os povos primitivos da Ameacuterica por

outras intolerantes a suas praacuteticas os padres traduziam uma questatildeo tanto epistecircmica

quanto poliacutetica como se o problema fosse o fato de que ldquoos selvagens natildeo crecircem em

nada porque natildeo adoram nada E natildeo adoram nada no fim das contas porque

obedecem a ningueacutemrdquo 357

Os costumes do gentio eram o inimigo principal dos pregadores jesuiacutetas do

seacuteculo XVI Entre os tupinambaacutes a praacutetica de ensopar a carne dos guerreiros

capturados e oferece-las em grandes banquetes fazia parte do ciclo de contagem do

tempo Para eles na leitura de Castro ldquoo outro natildeo era um espelho mas um destinordquo

358 O guerreiro que hoje come a carne do vencido amanhatilde seraacute devorado e ao fazecirc-

lo alcanccedilara a honra Honra que se assentava na capacidade de engendrar a vinganccedila

a qual se tornava por sua vez ldquoa instituiccedilatildeo que produzia a memoacuteriardquo 359 Teriacuteamos

entre os selvagens do seacuteculo XVI uma ordem do tempo baseada natildeo na justiccedila mas

na vinganccedila ao longo da qual o homem sacrificado recebia a gloacuteria de em seu

momento final ocupar um papel anaacutelogo ao do Deus agostiniano (conditor et

administratorhellip ordo temporum)360 O ritual de canibalismo era antecedido por um

diaacutelogo Na leitura de Castro nesses debates

Os exemplos natildeo trazem nenhuma evocaccedilatildeo religiosa

nenhuma menccedilatildeo a divindades ou ao destino poacutestumo

da alma da viacutetima Em troca todos eles falam de algo

354 NOacuteBREGA Padre Manuel da Dialogo sobre a conversatildeo do Gentio MetaLibri Satildeo Paulo 2006

[1556-1557] p 9 355 FREYRE Gilberto Casa-grande e senzala (formaccedilatildeo da famiacutelia brasileiro sob o regime de

economia patriarcal) Rio de Janeiro Joseacute Olympo 1954 [1933] pp 316-318 356 CASTRO 2005 190-192 357 CASTRO 2005 216 358 CASTRO 2005 211 359 CASTRO 2005 234 360 ldquo() in ordine temporum habenda sunt quorum est conditor et administrator Deusrdquo

AUGUSTINI S Aureii De Doctrina Christiana Libri Quatuor et Enchiridion ad Laurentium Editio

Stereotypa Lipsiae Sumtibus et typis caroli tauchnitii 1838 pp Livro II Cap XXVIII [2844] pp 64-

65 Trabalharei o tempo em Santo Agostinho no capiacutetulo 3

115

que passou despercebido aos comentadores Eles falam

do tempo () O combate verbal dizia o ciclo temporal

da vinganccedila o passado da viacutetima foi o de um matador o

futuro do matador seraacute o de uma viacutetima a execuccedilatildeo iria

soldar as mortes passadas agraves mortes futuras dando

sentido ao tempo () O dueto e o duelo entre cativo e

matador associando indissociavelmente as duas fases do

guerreiro que se respondem e se escutam ndash as perguntas

e as respostas satildeo permutaacuteveis ndash eacute aquilo que torna

possiacutevel uma relaccedilatildeo entre passado e futuro Soacute quem

estaacute para matar e quem estaacute para morrer eacute que estaacute

efetivamente presente isto eacute vivo O diaacutelogo cerimonial

era siacutentese transcendental do tempo na sociedade

tupinambaacute361

Diferente de uma instituiccedilatildeo ocidental de reperaccedilatildeo moral e identitaacuteria a

agoniacutestica dos diaacutelogos que antecediam o sacrifiacutecio antropofaacutegico tinha como

resultado ldquoproduzir o tempordquo Para Castro que se afasta tanto da leitura cavalheiresca

de Montaigne quanto do materialismo de Florestan Fernandes ldquoo rito era o grande

Presenterdquo 362 O sacrificado era o refundador da ordem do tempo Mas a sua

administraccedilatildeo para seguir Agostinho residia natildeo na recuperaccedilatildeo da memoacuteria dos

mortos mas na manutenccedilatildeo da agoniacutestica com os inimigos ldquoestes eramrdquo escreveu o

antropoacutelogo brasileiro ldquoos guardiatildees da memoacuteria coletiva pois a memoacuteria do grupo ndash

nomes tatuagens discursos cantos ndash era a memoacuteria dos inimigosrdquo 363

Se a vinganccedila ldquonatildeo era um retorno mas um impulso adianterdquo se com isso ela

produzia o futuro o horizonte desse porvir natildeo poderia como ciclo afastar-se do

espaccedilo de experiecircncia ancestral dos tupinambaacutes Se esse ordenamento do tempo era

baseado na vinganccedila o tempo da vinganccedila seria o grande presente Os povos

indiacutegenas jaacute na percepccedilatildeo de Paulo Frontin natildeo poderiam crer na naccedilatildeo O

ldquoproblegraveme de lrsquoincroyance au seiziegraveme siegraveclerdquo evocado em Lucien Fegravebvre por

Viveiros de Castro poderia ser revisto nas entrelinhas do ciclo dos centenaacuterios Se

crer eacute obedecer ndash ao entregar-se por completo agrave palavra alheia ndash os iacutendios do Brasil

oitocentista continuariam inconstantes Sem aceitar as prerrogativas europeias de

futuro nem a obediecircncia agrave moral dita civilizada eles tornavam sua superaccedilatildeo aos

olhos do oficiante da naccedilatildeo um requisito sine qua non tanto do progresso quanto da

ordem O discurso de Frontin ao expulsar o iacutendio do templo da naccedilatildeo pratica o

361 CASTRO 2005 235-238 362 CASTRO 2005 238 363 CASTRO 2005 240-241

116

sacrifiacutecio metoniacutemico de sua alma de sua moral de seus costumes num movimento

que se imagina indispensaacutevel ao progresso da naccedilatildeo A alma ameriacutendia flanando

selvagem e alimentando ciclos de vinganccedila eacute vituperada em nome de uma alma que

ascende linear e irreversivelmente em direccedilatildeo agrave perfectibilidade junto ao altar da

paacutetria

O Brasil natildeo era o iacutendio Os costumes dos povos autoacutectones natildeo poderiam

fazer parte da memoacuteria federada Simples de traccedilos culturais homogecircneos trocircpegos e

inconstantes frente ao ritmo do progresso spenceriano seus haacutebitos selvagens

formavam algo como a imagem desagradaacutevel de um passado ainda presente Presente

e incapaz de reconhecer-se na federaccedilatildeo o ldquoperspectivismo ameriacutendiordquo ndash anaacutelogo

sem duacutevida as constituiccedilotildees identitaacuterias do povo Hopi estudado por Richard Handler

ndash natildeo pensava como deveria preso aos seus cracircnios364 E nisso atacar os povos

autoacutectones ndash recorrendo quando necessaacuterio ao repertoacuterio racioloacutegico em voga ndash

poderia tambeacutem ser entendido como uma forma de marcar posiccedilatildeo afirmar uma

identidade republicana europeacuteia e progressista afastando-se do indianismo que

pintara com cores romacircnticas certos elementos da tradiccedilatildeo imperial365

Paulo Frontin foi o homem que ao lado de Ramiz Galvatildeo recebeu a gloacuteria de

celebrar a naccedilatildeo Junto ao diretor da Biblioteca Nacional seu semblante ficou

guardado sob a proteccedilatildeo de duas folhas de papel vegetal nas paacuteginas iniciais do IV

volume do Livro do Centenaacuterio Os magistrados morais embora alternassem

momentos de maior ou menor efusividade reverberavam em uacutenissono sua relaccedilatildeo

com o passado ldquoChamou-se Brasil esta maravilhosa terrardquo disse Ramiz Galvatildeo

pouco apoacutes o discurso do colega Frontin ldquopovoada entatildeo de rudes criaturas humanas

que mal conheciam a pedra polidardquo Como apoacutestolos da evanescecircncia do mal

(Spencer) da benevolecircncia necessaacuteria do progresso ldquoos processos colonizadores da

metroacutepole incutiram-lhe a pouco e pouco os beneficios do govecircrno e da disciplina

socialrdquo 366

Logo protegidos pela fortaleza erudita de suas ediccedilotildees comemorativas os dois

magistrados de 1900 demonstravam desde a Sessatildeo Magna do Centenaacuterio que a

364 Sobre o ldquoperspectivismo ameriacutendiordquo inspiro-me tambeacutem em CASTRO Eduardo Viveiros de Os

pronomes cosmoloacutegicos e o perspectivismo ameriacutendio In Mana 2(2)115-144 1996 365 Ver ALONSO op cit p 162 ldquoa dominaccedilatildeo saquarema na poliacutetica tinha sua contraparte numa

tradiccedilatildeo intelectual composta do catolicismo hieraacuterquico o indianismo romacircntico e o liberalismo

poliacuteticordquo 366 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz Sessatildeo Magna do Centenaacuterio no dia 4 de Maio de 1900

Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Vol 4 p 194

117

histoacuteria a ser oficiada jaacute estava escrita em tintas lusitanas Sua versatildeo era proacute-

europeacuteia desprovida do sentimentalismo indianista caro a outras geraccedilotildees orgulhosa

da heranccedila catoacutelica ndash a supracitada ldquomais poderosa focircrccedila civilizadora da epochardquo O

Livro do Centenaacuterio registro de um gecircnero comemorativo didaticamente orientado

unia ainda mais uma vez o uacutetil e o agradaacutevel o moral e o poliacutetico em um grande

manual que tratava o passado como patrimocircnio de uma civilizaccedilatildeo europeacuteia

ultramarina Seu recorte a ordem das questotildees nele proposta natildeo foi apenas resultado

editorial de um livro Nele editou-se uma versatildeo da naccedilatildeo Uma ediccedilatildeo realizada

dentro de uma moldura moral que valorizava as virtudes lusitanas e catoacutelicas

pressuposto do ordenamento de seu tempo Ou a leitura de suas memoacuterias natildeo instrui

nossa relaccedilatildeo com o passado O que elas fazem lembrar O Descobrimento de certo

pelo menos mais de uma vez367 Do catolicismo das belas letras da arte da ciecircncia e

da imprensa mesmo que as uacuteltimas como reconhecem agravequeles que foram atarefados

com a redaccedilatildeo dos respectivos artigos estivessem mais ligadas ao futuro do que

mesmo ao presente da naccedilatildeo368

A eacutegide do pensamento da ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo ficou conhecida como ufanismo

cujo paradigma parece ter sido Porque me ufano de meu paiacutes livro escrito por

Affonso Celso tambeacutem no contexto do jubileu nacional Celso ocupava a cadeira de

nuacutemero 36 da Academia Brasileira de Letras criada por membros da geraccedilatildeo de

1870 instituiccedilatildeo tanto saudosa em seus aspectos formais eacute verdade das tradiccedilotildees e

pompas imperiais Dedicado a seus filhos Porque me ufano tinha como objetivo

garantir que a nova ldquogeraccedilatildeo exceda a minha e as precedentes senatildeo em semelhante

amor [pelas coisas paacutetrias] ao menos nas ocasiotildees de o comprovarrdquo Era preciso

acreditava afastar nosso sentimento de inferioridade e munido dos argumentos

expostos no livro reverberar ldquosomos brasileirosrdquo e a seguir levantar a ldquocabeccedila

367 Afinal ldquoSepultar no exquecimento e no silencio esta data celebre seria exquecer tambem a vida

intellectual e moral da naccedilatildeordquo como escreveu AZEVEDO Moreira de O Descobrimento do Brasil

Intuitos da Viagem de Pedro Alvares Cabral In Livro do Centenaacuterio op cit Vol I p III Memoacuteria que

repete o tema inaugural de Capistrano de Abreu em um estilo mais popular 368 Joseacute Verissimo de Mattos em sua memoria sobre A Instrucccedilatildeo e a Imprensa reconhece que os

perioacutedicos brasileiros em nuacutemero e qualidade ainda estavam em sua infacircncia MATTOS op cit

Coelho Netto chamado a escrever sobre as Bellas Artes diz que ldquoAo Brasileiro natildeo faltam

intelligencia e gosto e com pequeno esforccedilo e perseveranccedila dentro em pouco podemos ver nivelado

com o progresso material da Patria o progresso artistico que seraacute o attestado da sua vitalidade

espiritual A Arte eacute a summa da civilizaccedilatildeo de um povo - urge natildeo exquece-la para que natildeo percamos

o passado e possamos ser dignos do futurordquo NETTO Coelho Bellas Artes in Livro do Centenaacuterio

Vol II p 77

118

transbordantes de nobre ufaniardquo 369 Seu argumento sobre a ldquosuperioridade brasileirardquo

era dividido em onze partes da grandeza territorial agraves riquezas nacionais da ausecircncia

de desastres naturais ao elogio das trecircs raccedilas do nobre mesticcedilo aos grandes homens

da histoacuteria

Grandes homens Sim uma sucessatildeo de nomes seguidos de breves adjetivos

ou curtas descriccedilotildees de caraacuteter (Cap XXXVII) Breves ao menos ateacute aportarem no

seacuteculo XIX tempo de independecircncia era do Impeacuterio Affonso Celso natildeo eacute tiacutemido em

explicitar suas simpatias pela antiga famiacutelia imperial Filho do visconde de Ouro

Preto conde pela Santa Seacute ele jaacute havia publicado vasta obra dentro da qual

destacavam-se elogios aos monarcas Vultos e Fatos (1892) e o Imperador no Exiacutelio

(1893) adiantam a sua maneira a obra de 1900 Obra que presta suas honras a D

Pedro I fundador de ldquoum esperanccediloso impeacuteriordquo libertador de ldquoum antigo reinordquo

homem que havia ldquorenunciado duas coroas servido duas Paacutetrias deixando fama

imortal na Europa e na Ameacutericardquo370 Obra que enfim encontra em D Pedro II ldquoo

grande vulto da histoacuteria brasileirardquo ndash vulto que impera absoluto no capiacutetulo XXXVIII

ldquoEacutepoca viraacute natildeo mui remotardquo profetizava Affonso Celso ldquoem que unanimemente se

lhe reconheceraacute a benemerecircncia proclamando-o a naccedilatildeo inteira o mais eminente dos

brasileiros o mais nobre dos americanos (sem excetuar Washington e Boliacutevar) uma

das figuras mais simpaacuteticas e venerandas da histoacuteria universalrdquo371

Mesmo que agrave margem da grande obra comemorativa ainda que excluiacuteda das

paacuteginas do Livro do Centenaacuterio a memoacuteria monarquista tratava de contar seus votos

no plebiscito-de-todos-os-dias Ou para ele fazia campanha investindo em

ldquoimortalizar a memoacuteriardquo do Imperador Braganccedila que ldquoapeado do trono banido da

Paacutetria ningueacutem acusou natildeo lavrou um protesto natildeo formulou uma queixa no meio

de tamanhas ingratidotildees e iniquidadesrdquo372 Foi-se o tempo no entanto desse

ldquofuncionaacuterio perfeitordquo373 Sem dar nomes aos regimes poliacuteticos sem falar em

monarquia ou repuacuteblica o ufanista por mais positivo que fosse em relaccedilatildeo ao futuro

do Brasil apontava-lhe dois perigos continuar a ter maus governos e continuar a

somar instituiccedilotildees incompatiacuteveis com sua iacutendole Celso jaacute tinha alguns capiacutetulos

atraacutes reeditado antigo argumento ao dizer que ldquorepetirei com Robert Southey que soacute

369 CELSO Affonso Porque me ufano de meu paiacutes 11a ed Rio de Janeiro Briguet amp Cia 1937 p 5 370 Idem p 167 371 Idem p 168 372 Idem p 176 373 Idem p 175

119

a mais extrema e obstinada prevaricaccedilatildeo da parte do governo ou a mais cega e

culpaacutevel impaciecircncia do povo poderatildeo subverter a influecircncia e a prosperidade do

Brasilrdquo374

ldquoO Brasil eacute perfeitamente homogecircneo material e moralmente pelo lado social

e pelo lado etnico pois nele se cruzam e se fundam todas as raccedilasrdquo375 Raccedilas que

excetuando-se a europeacuteia pareciam ter vindo a terra unicamente para completar a

missatildeo heroacuteica da formaccedilatildeo do mesticcedilo Os iacutendios eram apresentados como bons

selvagens acessiacuteveis em geral agrave catequese dos missionaacuterios Foram todos relegados

a um capiacutetulo sobre as ldquocuriosidadesrdquo de seus costumes (XVII) Aos negros o Brasil

deveria ldquoimensa gratidatildeordquo Gratidatildeo por seus serviccedilos prestados agrave paacutetria tatildeo valorosos

e reconhecidos que os filhos da Aacutefrica teriam contribuiacutedo para que ldquono Brasil jamais

houvesse preconceito de corrdquo376

A seleccedilatildeo obliteradora da memoacuteria a respeito dos indiacutegenas ao lado do deliacuterio

para com a condiccedilatildeo social dos afro-brasileiros eram experiecircncia intelectuais

compartilhadas entre diversos membros monarquistas ou republicanos da geraccedilatildeo de

1900 Geraccedilatildeo que se apropriava por um lado do repertoacuterio progressista spenceriano

da lei comteana dos trecircs estaacutegios das teorias racioloacutegicas de Taine e por outro havia

assistido agrave manifestaccedilatildeo do ldquodesejo mais ardenterdquo dos liberais abolicionistas o de que

ldquonatildeo fique sinal de tudo isso e que a anistia do passado elimine ateacute mesmo a

recordaccedilatildeo da luta em que estamos empenhadosrdquo377 Organizar e selecionar separar e

descartar Se a memoacuteria coletiva eacute a forma que um grupo social encontra para ordenar

suas lembranccedilas o resultado loacutegico de sua administraccedilatildeo torna-se expresso no

esquecimento Esquecimento que nas matildeos de uma vontade poliacutetica da memoacuteria eacute

orientado diante dos valores morais de um grupo Grupo que tinha como porta-voz

um personagem ora eleito como lugar-tenente dos grandes homens aclamado

celebrante ou orador oficial Em 1900 um officiant que se julgava apresentado em

toga magistral a toda naccedilatildeo

374 Idem p 48 375 Idem pp 194-195 376 Idem p 74 377 NABUCO O Abolicionista op cit p 206

120

26 Oradores historiadores e magistrados morais

Associaccedilotildees dedicadas agrave comemoraccedilatildeo do descobrimento do Brasil tivemos

vaacuterias378 Uma como vimos seraacute lembrada como a mestra e organizadora dos

eventos Sob a direccedilatildeo de Ramiz Galvatildeo ndash ex-diretor da Biblioteca Nacional baratildeo

por concessatildeo papal professor do Pedro II ndash a Associaccedilatildeo conquistou a cobertura

diaacuteria da imprensa Tendo os periacuteodicos a seu lado os magistrados morais da naccedilatildeo

alcanccedilavam uma projeccedilatildeo impensaacutevel aos oradores claacutessicos adentrar com suas

palavras transcritas em paacuteginas de jornal o proacuteprio lar dos espectadores Diversos de

seus tiacutetulos e peccedilas veiculadas nos perioacutedicos da eacutepoca mais tarde seriam

reproduzidos no uacuteltimo volume do Livro do Centenaacuterio com o claro intuito de

edificar uma memoacuteria da comemoraccedilatildeo De fato lembramos a grande obra coletiva

como a maior contribuiccedilatildeo historiograacutefica do ano de 1900 a qual dentre a escolha de

seus colaboradores parecia aliar-se a nomes ligados a posiccedilotildees chave do saber no

Brasil Eacute esse uacuteltimo tomo do Livro comemorando a comemoraccedilatildeo que vai inventar

definir e divulgar a ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo

Afonso Celso Ramiz Galvatildeo Padre Julio Maria Um elemento unia esses trecircs

personagens de 1900 suas estreitas relaccedilotildees com a Igreja Catoacutelica Os dois primeiros

natildeo eram apenas devotos mas nobres por concessatildeo papal o uacuteltimo em sua memoacuteria

encomendada para o Livro do Centenaacuterio refletia certo clima presente nas polecircmicas

internas do IHGB quais ele proacuteprio foi pivocirc jaacute durante sua admissatildeo como soacutecio da

casa O velho instituto tatildeo desprestigiado durante os turbulentos anos dos marechais

associado de modo inevitaacutevel a uma famiacutelia imperial exilada e a um projeto

centralista de naccedilatildeo assistiu entre 1889 e 1912 a nada menos que 23 sacerdotes

adentrarem seus quadros379 Eram tempos difiacuteceis tambeacutem para a feacute catoacutelica ainda

titubeando entre as consideraccedilotildees do Conciacutelio Vaticano I ndash ldquocontra a moral

lsquocientiacuteficarsquo laica a moral cristatilderdquo ldquocontra a razatildeo a feacuterdquo ndash e as tentativas de

378 ldquoSatildeo exemplo a lsquoSociedade Commemoradora do Quarto Centenariordquo em Satildeo Vicente no Litoral

Paulista a lsquoAssociaccedilatildeo do Centenario do Brasil ndash em honra a Pedro Alavares Cabralrsquo ou o lsquoCentro

beneficiente 4o Centenario da Descoberta do Brasilrdquo Ver WANDERLEY op cit p 61 379 O levantamento foi realizado por HRUBY Hugo O templo das sagradas escrituras o Instituto

Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro e a escrita da histoacuteria do Brasil (1889-1912) In histoacuteria da

historiografia nuacutemero 02 marccedilo 2009 pp 50-66 (o nuacutemero de 23 sacerdotes aparece na paacutegina 52)

121

ldquoreconciliaccedilatildeo com o mundo modernordquo propostas jaacute nos anos finais do seacuteculo XIX

pelo papa Leatildeo XIII380

Tensotildees entre republicanos e monarquistas atingiam a Igreja antigo baluarte

legitimador do poder e da tradiccedilatildeo imperial O teacutermino do regalismo imposto pela

uniatildeo entre Estado e Igreja prevista na constituiccedilatildeo anterior fora no entanto ndash como jaacute

indicava a leitura da memoacuteria escrita por Padre Maria ndash recebido com bons olhos por

boa parte do clero nacional A nova ordem limitava a accedilatildeo dos sacerdotes catoacutelicos na

sociedade brasileira enquanto que por outro lado permitia-lhe maior autonomia uma

relaccedilatildeo menos mediada para com o papado e o coleacutegio dos cardeais O ano de Jubileu

como indicava o colaborar do centenaacuterio era igualmente tempo de luta

Luta que se dava tambeacutem no seio do IHGB opondo soacutecios simpaacuteticos agraves

teorias e filosofias da histoacuteria evolucionistas e secularizadoras de matriz iluminista e

os apoacutestolos de um providencialismo tardio os quais lanccedilavam a histoacuteria em debates

sobre feacute e razatildeo matildeo de Deus e natureza humana glosando o acaso a fortuna e o

contingente sob o invoacutelucro universal e necessaacuterio da Providecircncia381

No IHGB Padre Maria encontrou-se nessa frente de batalha Jaacute durante a

leitura de seu parecer de admissatildeo o relator Baratildeo de Alencar lanccedilou diversos

impropeacuterios agrave ordem republicana a Igreja deveria ser tatildeo importante quanto o Estado

e ganhava todo direito de reclamar quando se sentisse por ele desprestigiada

ldquoTemeraacuteria responsabilidaderdquo essa agora tomada em matildeos pelo governo lanccedilando a

paacutetria aos braccedilos de um patriotismo ateu o qual desconhecia senatildeo ignorava com

propoacutesitos a ldquofaculdade matildee que guia providencialmente o homem em todos os

misteres da vidardquo382 De palavras fortes uma coacutepia do discurso do Baratildeo de Alencar

vazou para a imprensa resultando em sua exoneraccedilatildeo das Comissotildees de Admissatildeo383

380 Respectivamente BARROS R S M de A ilustraccedilatildeo brasileira e a ideacuteia de Universidade Satildeo

Paulo Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1986 pp 51-52 e OLIVEIRA L L Terra de Santa Cruz

In A questatildeo nacional na Primeira Repuacuteblica Satildeo Paulo Brasiliense 1990 p 161 381Momigliano jaacute comentara o crescimento do providencialismo entre os historiadores europeus do

iniacutecio do seacuteculo XX MOMIGLIANO Arnaldo As raiacutezes claacutessicas da historiografia moderna Bauru

EDUSC 2004 pp 211-217 Ao estudar o IHGB Hugo Hruby percepeu que ldquoa Histoacuteria ao final do

seacuteculo XIX e limiar do XX encontrava-se em meio aos debates entrea feacute e a razatildeo buscando se

legitimar atraveacutes das leis da Natureza dos homens ou de Deusrdquo HRUBY op cit 59 382 RIHGB Rio de Janeiro Imprensa Nacional t 62 parte 2 1900 p 334-335 383 ldquoA Igreja eacute uma instituiccedilatildeo tatildeo necessaacuteria como o Estado Tem portando o direito de reclamar

quando se vecirc desconhecida por elle Nas Conferecircncias da Assumpcatildeo () parece que o objectivo

principal () eacute o restabelecimento no Brazil das relaccedilotildees do Estado com a Igrejardquo () ldquoFoi sem duacutevida

uma temeraria responsabilidade a que assumiu o Estado no Brazil ndash paiz catholico ndash com a innovaccedilatildeo

do desconhecimento da religiatildeo tradicional do povo brazileirordquo Idem p 335

122

Tudo se passa como se fosse um elogio barafundo Era primeiro de setembro

de 1899 ano anterior ao jubileu nacional Padre Maria futuro colaborador do Livro

do Centenaacuterio membro do seleto grupo do Baratildeo de Ramiz pede passagem ao

IHGB no que eacute recebido por um caloroso discurso em defesa da Igreja e do

providencialismo Mas Julio Maria na condiccedilatildeo de magistrado moral aprendera a

apostar em argumentos conciliatoacuterios como explicaria tambeacutem em sua memoacuteria ele

natildeo se opunha agrave Repuacuteblica via com severas restriccedilotildees o regalismo do Impeacuterio e

acreditava que sua luta se daria na instruccedilatildeo da ldquomocidaderdquo ndash das novas geraccedilotildees ndash

sempre otimista em sua crenccedila na compatibilidade cientiacutefica entre feacute e razatildeo384

A reconciliaccedilatildeo da Igreja com o mundo moderno diretriz leonista aparecia

como caminho para o arrefecimento da crise moral e da dissoluccedilatildeo dos costumes ldquoOs

costumes as tradiccedilotildees o sentimento nacional as famiacutelias () tudo diz tudo exclama

tudo brada o Brasil pertence a Jesus Cristordquo ldquoGlorificar a Paacutetria revelando a sua

histoacuteriardquo ldquointuito supremordquo do IHGB grifado assim no original marcava tambeacutem o

elo providencialista entre uma revelaccedilatildeo sagrada e outra profana385 Mas nem todos

concordavam com a missatildeo divina de elevar o cristianismo ao grau de mais evidente

fato histoacuterico da naccedilatildeo386

Os ldquopositivistasrdquo inimigos mortais do Padre Maria eram para alguns

membros do IHGB o nemesis entrincheirado dentro dos muros do instituto Na

verdade o que Padre Maria e alguns outros soacutecios como Maximiano Marques

Carvalho entendiam por ldquopositivistasrdquo era uma qualquer sorte de posturas que

substituiacuteam a Providecircncia por outras palavras de ordem retiradas do repertoacuterio

intelectual da ciecircncia oitocentista progresso evoluccedilatildeo estaacutegios de desenvolvimento

etc Natildeo parecia ser um ataque endereccedilado unicamente ao apostolado de Miguel

Lemos

Ainda em 1884 Marques Carvalho denunciava essa ldquonova escolardquo que ldquose

levantou na Franccedila propondo-se fazer resuscitar as ideacuteas de democrito e Epicuro

entre os antigos e de Bento Espinosa e de Augusto Comte entre os modernosrdquo Escola

que ldquotomou o nome de positivista sendo na realidade panteiacutestardquo natildeo encontrou eco

em lugar algum mas arregimentou ldquoalguns homens de talento em Portugal que

384 Idem p 375-81 385 Idem p 372-3 386 Padre Julio Maria jaacute afirmava que ldquoO catholicismo que natildeo eacute senatildeo o christianismo integral natildeo eacute

soacute a religiatildeo histoacuterica do povo brazileiro eacute o facto historico por excellencia na histoacuteria da nossa

paacutetriardquo Idem p 371

123

levantaacuteratildeo um facho de revoluccedilatildeo idealista e enviaacuteratildeo suas centelhas ao Brazilrdquo

Homens de talento em Portugal Carvalho refere-se precisamente a ldquoTheophilo

Bragardquo cuja ldquosociologia ou philosophia transcedental () escripta com muito talento

e publicada em Portugal vem chegar ao Brasilrdquo Estudos que continham ldquoideacuteas

esparsas de um monstruoso materialismordquo que natildeo possui outro intuito senatildeo

ldquodestruir as crenccedilas e demonstraccedilotildees da Providencia divinardquo abalando as ldquoideacuteas

fundamentaes das sociedades familiar e nacionalrdquo387

ldquoOs Centenaacuterios disse o muito erudito Theophilo Braga satildeo a coordenaccedilatildeo de

sentimentos existentes que estavam isolados na consciencia de cada individuo ao

primeiro impulso expandem-se em unanimidade e daqui vem a sua gradezardquo388 As

ofensas a Braga autor das siacutenteses afetivas texto tatildeo oportunamente lembrado por

Ramiz Galvatildeo em seus discursos compunham somente uma dimensatildeo das criacuteticas

que seratildeo estampadas nas paacuteginas da Revista do IHGB

Durante a sessatildeo solene do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro o

conselheiro Aquino e Castro fez seus reparos aos organizadores do jubileu nacional

O discurso fora transcrito parcialmente por Max Fleiuss pouco mais tarde publicado

pela revista no momento em que ldquodeliberaram os poderes publicos e associaccedilotildees

particulares commemorarrdquo No entanto escreveu Fleiuss ldquoa data soffreu uma

alteraccedilatildeo que a verdade historica repelerdquo389 O problema todo girava em torno da

escolha do dia 3 de maio ndash em detrimento do 22 de abril ndash pela Associaccedilatildeo do Quarto

Centenaacuterio do Descobrimento do Brasil Os organizadores mantinham uma data que

supostamente corroborava a reforma do calendaacuterio gregoriano e que vinha sendo

celebrada desde a lei de 9 de setembro de 1826390

Aquino e Castro apoacutes reafirmar a tese do 22 de abril baseando-se na ldquoprova

mais convincenterdquo ndash a Carta de Pero Vaz aceita por Ferdinand Denis Varnhagen e

Beaurepaire ndash chama a atenccedilatildeo para a Provisatildeo do rei de Portugal Felippe II datada

de setembro de 1582 O documento mandava cumprimir o Calendaacuterio Gregoriano

nos termos em que seguiria ao dia 4 de outubro daquele ano ldquonatildeo o dia 5 mas o dia

15 sendo o immediato 16rdquo ateacute completar os 31 dias mantendo-se os meses 387 RIHGB Rio de Janeiro Imprensa Nacional T 47 parte 2 p 593 388 GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz Sessatildeo Magna do Centenaacuterio no dia 4 de Maio de 1900

Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Vol 4 p 194 389 FLEIUSS Max Centenaacuterios do Brazil In RIHGB Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1901 t 64

p 91 390 Lei de 9 de Setembro de 1826 ndash Marca os dias de festividade nacional em todo o ImperioIn

Colleccedilatildeo das Leis do Impeacuterio do Brasil Parte Primeira Rio de Janeiro Typographia Nacional 1880

p 7

124

anteriores com o nuacutemero original de jornadas A perda dos dias explicava ainda o

documento teria ldquosomente lugar no dito mez de outubro deste anno de 1582rdquo

reduzidos a 21 luas391 Aquino e Castro concluiacutea que ldquonatildeo se pretendeu dar efeito

retroactivo aacute nova disposiccedilatildeo contrariando o passado completa inversatildeo na ordem

das datasrdquo Inversatildeo que abalaria natildeo somente os tempos que jaacute se foram mas

tambeacutem as demandas comemorativas do presente alterando-se com eles igualmente

ldquoantigos factos histoacutericos ateacute hoje e por noacutes mesmos commemoradosrdquo como o

descobrimento da Ameacuterica (12 de outubro de 1492) ou a inauguraccedilatildeo do caminho

mariacutetimo das Iacutendias (20 de maio de 1498)392

Era o problema mero preciosismo antiquaacuterio Para Aquino e Castro tratava-se

de algo como um dever cumprido pelo historiador Para Max Fleiuss essa era a

reparaccedilatildeo da verdade histoacuterica Mas estaria esse regime de verdade excluiacutedo da

reparaccedilatildeo moral sob a forma do julgamento da posteridade Fleiuss propotildee a seguir

um histoacuterico em ldquosummarios traccedilosrdquo do Brasil nos centenaacuterios de 1600 1700 e 1800

cada uma das datas recheadas de histoacuterias da histoacuteria ora sorvidas das fontes ora

atualizadas pelo historiador por fim endereccediladas ao deleite do leitor sem que antes

elencasse uma moral e um sentido

Em seu 1600 lido a partir da leitura de Fernatildeo Cardim e do Tratado

descriptivo de Gabriel Soares de Souza ldquoa prosperidade do Brazil natildeo era simples

fantasiardquo ainda que o conceito laacute natildeo existisse Os francezes jaacute haviam sido em duas

ocasiotildees expulsos da baia do Rio de Janeiro e as capitanias ao longo de nosso

primeiro seacuteculo soacute natildeo produziram mais accedilucar pelo caraacuteter inicialmente titubeante

de seus poderes fragmentados ldquoJaacute nessa longiacutencua eacutera a centralizaccedilatildeo administrativa

se impunha como medida imprescindiacutevel aacute marcha regular dos negoacutecios puacuteblicosrdquo

disse Fleiuss ao que completaria seu paralelo de modo nada sutil ldquooxalaacute que em

tempos muito mais modernos esse exemplo natildeo tivesse sido desprezadordquo393

No centenaacuterio seguinte em 1700 o Brasil estava ldquonovamente dividido em

dois governos e como da primeira vez reunido pouco depois em um soacuterdquo num tempo

em que o paiacutes travou ldquolutas formidaacuteveis tendo que combater os francezesrdquo e

holandeses Natildeo faltaram certos elogios a Mauriacuteciu de Nassau sendo ldquojusto consignar

que natildeo foram infrutiacuteferos os vinte e quatro annos de dominaccedilatildeo hollandezardquo

391 FLEIUSS op cit pp 92-93 392 Idem p 93 393 Idem pp 97-98

125

atribuiacutedos em seus sucessos ao ldquoespiacuterito administrativordquo do governador batavo Mais

edificantes no entanto seriam as consideraccedilotildees a respeito do Quilombo dos

Palmares ldquoa nosso ver a primeira guerra civil de nossa paacutetriardquo e embriatildeo que ldquonatildeo se

exterminou jamaisrdquo ora resultado das ldquopraticas humanasrdquo ldquoora explodindo quando a

tibieza dava a isso ensejo elle viveu sempre a vida horrivel dos parasitas mausrdquo A

escravidatildeo encontrava ainda mais um paralelo com os negros tomando ldquoda natureza o

que ella espalha com profusatildeo pela flora e pela fauna selvagemrdquo a crescer e se

emaranhar no quilombo ldquocomo as arvores das selvasrdquo A raccedila amante parte africana

da naccedilatildeo tem seu desenvolvimento acompanhado da tensatildeo de uma incipiente guerra

civil Isso natildeo impediu Fleiuss ndash como certa vez natildeo impediu Taacutecito de fazer o

mesmo com os baacuterbaros ndash de admirar sua capacidade de obedecer ldquodisposiccedilotildees

verdadeiramente extraordinaacuterias quanto ao ponto dos deveres civicos naquella

eacutepocardquo sob a lideranccedila do Zumbi394

ldquoEntra o seacuteculo XIXrdquo ndash continua Pleiuss em sua jornada pelos centenaacuterios do

Brasil ndash ldquoe desde logo surge a figura de Bonaparte apoacutes o 18 de Brumario como um

ente predestinado a reunir em si os destinos do mundordquo Sua fortuita e inesperada

demonstraccedilatildeo de bonapartismo natildeo vem de uma maacute leitura de Stendhal mas pelo

contraacuterio carrega uma criacutetica imbuiacuteda em outro claro paralelismo poliacutetico com o

presente da repuacuteblica Ora

ldquoextincta a Revoluccedilatildeo que conturbava os povos da

Europa celebrisando lugubremente certos heroacutees dessa

tragedia horriacutevel heroacutees que infelizmente cem annos

depois em outra regiatildeo da terra tiveram imitadores

enthusiastas a Franccedila ia encontrar no Primeiro Consul o

Maicirctre que lhe havia de elevar o nome sob multiplos

prestigios crando a epopeacuteia militar da edade

contemporaneardquo395

Aleacutem do exemplo da Revoluccedilatildeo Francesa aqueles vindos da Ameacuterica do

Norte ndash sob a figura de ldquoJorge Washington modelo impereciacutevel de patriotismo e

abnegaccedilatildeordquo ndash natildeo inspirariam a imitaccedilatildeo dos habitantes do Brasil Fleiuss reconhece

as guerras de emboabas mascates e com certa rapidez que natildeo permite evocar-lhe o

nome de nenhum grande homem a ldquorevoluccedilatildeo em Minas que tatildeo mal interpretada

394 Idem pp 101-102 395 Idem p 106 Grifos meus

126

tem sido exaltando-se o merito diminuido de uns com manifesto prejuizo dos que

verdadeiramente se empenharam nessa tentativa de separaccedilatildeordquo396

Para encerrar o ldquoterceiro seacuteculo de existenciardquo Fleiuss compra outra polecircmica

dessa vez com o autor de o Brasil e as Colocircnias Para Oliveira Martins como se sabe

Portugal teria estabelecido boa parte de seu impeacuterio colonial jaacute sob o signo da

decadecircncia ao que ele acrescentava apresentar o Brasil jaacute em finais do seacuteculo XVIII

ldquoos elementos constitucionae de uma naccedilatildeordquo precipitados dizia pelos desmandos e

corrupccedilotildees da corte de D Joatildeo VI logo aportada no Rio de Janeiro Essa eacute uma

opiniatildeo que Fleiuss natildeo pode achar razoaacutevel lanccedilando-o em uma longa digressatildeo

sobre os feitos econocircmicos de Pombal e as qualidades administrativas do monarca

portuguecircs A nacionalidade afinal tinha data marcada para surgir ldquoO terceiro

centenaacuterio do Brazil terminavardquo retrucou o Fleiuss ldquoem condiccedilotildees que annunciavam

para futuro natildeo remoto a instituicatildeo de uma nova nacionalidade a que o espiacuterito

liberal de muitos brazileiros prestava concurso soberanordquo397

Suas desavenccedilas com Oliveira Martins pareciam no entanto pontuais e em

nome da imparcialidade natildeo se apresentavam sob quaisquer espectros poliacuteticos ldquoA

historia sendo essencialmente uma grande paacutetria de moralrdquo declara Fleiuss ldquonatildeo

deve ficar prejudicada por espirito de seita ou de partidarismordquo ao que completa ser

ldquoseu principal objetivo a analyse serena imparcial e severa dos homens e das

cousasrdquo398 Paacutetria de moral Essa posiccedilatildeo teoacuterica ecoava o proacuteprio Martins a seguir

citado apenas como ldquonotaacutevel publicista contemporacircneordquo chamado a palavra a partir

da introduccedilatildeo de sua Histoacuteria de Portugal

ldquoo desenvolvimento do criteacuterio racional e o predomiacutenio

crescente dos processos proacuteprios das sciencias baniram

os modelos antigos e fizeram da historia um gecircnero

novo Nem os discursos Moraes sobre historia aacute

maneira do XVII seacuteculo nem o doutrinarismo secco do

XVIII que sobre factos e instituiccedilotildees mal conhecidos

construiacutea systemas geraes chimericos nem a opiniatildeo

muito seguida em nossos dias de considerar a historia

unicamente nos seus phenocircmenos exteriores

396 Idem p 106-107 397 Idem p 110 398 Idem p 111 Mais tarde o autor cita Ruy Barbosa dizendo que ldquoo homem () cujo horizonte mental

se confunde com o horizonte visual dos partidos nunca sera capaz das virtudes que assignalam os

grandes regedores de povos menos digno ainda seraacute o homem que se propuzer a tratar de factos

historicos submettendo-os aacute influencia nefasta de suas predilecccedilotildees Idem p 112

127

averiguando eruditamente as eacutepocas e as condiccedilotildees dos

sucessos merecem a nosso ver imitaccedilatildeordquo399

A nova histoacuteria de Oliveira Martins tendo banido primeiro os discursos da

histoacuteria dos costumes depois aqueles que edificavam ldquosistemas gerais quimeacutericosrdquo ndash

sem esquecer de tomar distacircncia do diletantismo antiquaacuterio ndash natildeo parece na verdade

ter mantido um pouco de cada um dos mundos O regime de historicidade moderno

de seu tipo ideal de sabor weberiano ao avatar empiacuterico que a histoacuteria da histoacuteria nos

proporciona ainda operaria dentro de uma circunscriccedilatildeo moral ndash mesmo que

argumentemos que ele natildeo assuma tons moralistas Ou natildeo era ldquoa historia sobretudo

uma liccedilatildeo moralrdquo Eis a conclusatildeo que no entender de Martins ldquosaacutee de todos os

eminentes progressos ultimamente realisados no focircro das sciencias sociaesrdquo400

Apoacutes as breves poreacutem recorrentes desavenccedilas com Oliveira Martins ndash sempre

no que diz respeito ao julgamento moral do caraacuteter dos aristocratas lusitanos ndash Max

Fleiuss volta-se contra seus reais inimigos Eacute o caso agora de enfrentar as posiccedilotildees

republicanas expressas ldquoem um livro de histoacuteria poliacuteticardquo pelo natildeo diretamente

nomeado Felisbello Firmo de Oliveira Freire No capiacutetulo sobre o Departamento de

Instrucccedilatildeo de sua Histoacuteria Constitucional da Republica dos Estados Unidos do

Brasil Freire havia chamado D Joatildeo VI de ldquobraganccedilatildeo imbecil e cynicordquo ao que

completou dizendo que ele ldquonatildeo tinha a perdicularidade decorativa do estylete tinha

bochechas pernas inchadas e como sua esposa Carlota natildeo se lavava nunca

crescendo como os mineraes pela juxtaposiccedilatildeo do ciscordquo401 Trata-se como vemos

da memoacuteria republicana sobre o D Joatildeo VI grotesco e pitoresco ora comendo

coxinhas de galinha retirada dos bolsos ora temendo raios memoacuteria que seraacute pouco

399 Idem Ibidem 400 Ao que ele completa ldquoA realidade eacute a melhor mestra dos costumes a critica a melhor bussola da

intelligencia por isso a historia exige sobretudo observaccedilatildeo directa das fontes primordiaes pintura

verdadeira dos sentimentos descripccedilatildeo fiel dos acontecimentos e ao lado disto a frieza impassivel do

critico para coordenar comparar de um modo impessoal ou objectivo o systema dos sentimentos

geradores e dos actos positivos () Todos estes systemas poreacutem ensaios successivos para determinar

o genero de um modo definitivo teem um lado de verdade aproveitavel Os modelos classicos fizeram

sentir o caracter moral da historia os modelos abstractos a necessidade de comprehender os

phenomenos num systema de leis geraes os modelos eruditos finalmente a condiccedilatildeo imprescriptivel

de um conhecimento real e positivo da chronologia e dos elementos que compotildeem o meio externo ou

phisico das sociedades O intimo e o essencial consiste no systema das instituiccedilotildees e no systema das

ideacuteas collectivas que satildeo para a sociedade como os orgams e os sentimentos satildeo para o indiviacuteduo

consistindo por outro lado no desenho real dos costumes e dos caracteres na pintura animada dos

logares e acessoacuterios que foram o scenario do theatro histoacutericordquo MARTINS Oliveira Histoacuteria de

Portugal 7 ed T 1 Antonio Maria Pereira Lisboa 1908 pp VIII-IX 401 FREIRE Felisbello Firmo de Oliveira Histoacuteria constitucional da Republica dos Estados Unidos do

Brasil Rio de Janeiro Typographia Moreira Maximino amp C 1894-1895 3 Vol

128

mais tarde retrabalhada em um contexto mais calmo pelo claacutessico de Oliveira

Lima402 Fleiuss critica o mau gosto de Freire ndash qual ldquoestampa nitidamente o criterio

dum escriptorrdquo ndash e a seguir tece novos e longos elogios ao Priacutencipe Regente ldquoA

figura portanto grotesca com que alguns escriptores apresentam D Joatildeo VIrdquo

continua Fleiuss ldquodesapparece ante a evidecircncia dos factos Natildeo podia ser mediocre

um homem que tantas provas deu de alto senso administrativo ()rdquo403 Se satildeo os

ldquomotivos moraesrdquo ndash completa reverberando novamente Oliveira Martins ndash que

dominam a histoacuteria a ldquoobra de D Joatildeo VI representa de facto o primeiro capiacutetulo de

formaccedilatildeo social de nossa paacutetriardquo404

Se Fleiuss a seguir reconhece que o governo de D Pedro I foi ldquosem duacutevida

cheio de difficuldades e natildeo raro de vacillaccedilotildees e errosrdquo natildeo deixa de advogar em

nome de sua memoacuteria E natildeo lhe basta listar dentre os feitos do primeiro Imperador

seus ldquoserviccedilos prestados aacute Patriardquo questionaacuteveis do ponto de vista republicano Sua

estrateacutegia eacute associaacute-lo a um personagem que jaacute contava muitos votos no plebiscito-de-

todos-os-dias chamando-o de volta ao palanque Braganccedila Fleiuss faz questatildeo de

transcrever o decreto de nomeaccedilatildeo de Joseacute Bonifaacutecio como tutor dos filhos e irmatildes de

D Pedro I seguido da carta do Imperador ao conselheiro seu ldquoamigo constanterdquo405

ldquoAinda eacute cedordquo declara Fleiuss ldquopara enunciar opiniatildeo minuciosa sobre o

governo de D Pedro IIrdquo No entanto ldquomuitos a sentem mas receiam expendel-ardquo

Diante da carga das investidas republicanas tecer elogios ao ldquocaracter de nossos

patriciosrdquo tornava-se moralmente ilegiacutetimo ldquoha como que um terror de tratar com

respeito e estima os homens do antigo regimenrdquo Eacute com essa consideraccedilatildeo que o

historiador do IHGB declara sem meias palavras que ldquoterminou hontem o cyclo que

por cincoenta annos assegurou ao nosso povo e aacute nossa terra um regimen em que a lei

o progresso e a honra natildeo eram simples ficccedilotildees em que na pessoa do soberano se

402 LIMA Oliveira D Joatildeo VI no Brasil 403 FLEIUSS RIHGB op cit p 118 404 Idem p 119 Essa tese vai ser melhor desenvolvida por Oliveira Lima em 1908 no livro supracitado

Sobre o contexto da citaccedilatildeo original de Martins ldquoO que domina sobretudo a histoacuteria satildeo os motivos

morais e esses motivos parecem verdadeiros ou falsos conforme as eacutepocas e os lugares Assim a

histoacuteria haacute de ser objetiva sob pena de as obras do artista natildeo passarem de criaccedilotildees fantaacutesticas do seu

espiacuterito E haacute de por outro lado assentar sobre a base de um saber solidamente minucioso de um

conhecimento exato e erudito dos fatos e condiccedilotildees reais sob pena de em vez de se escrever histoacuteria

inventarem-se romances Arena ampliacutessima onde o artista e o erudito o pensador e o criacutetico se

encontram e se confundem o jurista para indagar com escruacutepulos o psicoacutelogo para avaliar sua sutileza

a histoacuteria se natildeo eacute a forma culminante das manifestaccedilotildees intelectuais do homem eacute sem duacutevida a mais

complexa e a mais compreensivardquo MARTINS Oliveira Histoacuteria da civilizaccedilatildeo ibeacuterica Lisboa

Guimaratildees amp Cordf Editores 1973 [1879] pp 8-9 405 FLEIUSS RIHGB op cit 122-123

129

concentravam todas as virtudes humanasrdquo406 Era mesmo cedo para emitir opiniotildees

Fleiuss declara sua admiraccedilatildeo pelo monarca mas de resto deixa o elogio a Affonso

Celso transcrevendo-lhe todo o capiacutetulo XXXVIII do Porque me ufano407

Atento agrave ldquoverdade dos factosrdquo e de olhos fixos na ldquojusticcedila histoacutericardquo Max

Fleiuss termina sua contribuiccedilatildeo agrave polecircmica das dataccedilotildees lamentando a incapacidade

de julgar o presente ldquoa calma factor essencial dos estudos histoacutericos natildeo permite a

analyse dos ultimos successosrdquo408 Pode natildeo ter julgado como gostaria mas permetiu-

se trazer um grande nuacutemero de paralelos essa forma especial de comparaccedilatildeo ainda

mais uma vez com claros propoacutesitos morais e poliacuteticos Eacute de fato a coleccedilatildeo de saberes

eruditos sobre os costumes dos povos que tornaratildeo possiacutevel o ldquojulgamento da

posteridaderdquo retomando o instrumento dos antigos retores agora buscando a verdade

natildeo como advogados da mos maiorum divinizada dos ancestrais mas enquanto juiacutezes

que apoiados na subsunccedilatildeo da moral superior de um tempo em progresso

A querela das dataccedilotildees envolvia muito mais do que o preciosismo diletante

dos eruditos Do 3 de maio ao 22 de abril nesse vale de laacutegrimas dos usos do passado

a histoacuteria da naccedilatildeo seria por algum tempo oficiada entre dois trabalhos de memoacuteria

Centenaacuterios do Brasil texto considerado promissor pelos avaliadores do instituto foi

a dissertaccedilatildeo apresentada por Afonso Celso como prova literaacuteria agrave indicaccedilatildeo do jovem

Fleiuss para soacutecio efetivo do IHGB em 25 de maio de 1900 Ela inaugura uma

carreira de raacutepida ascensatildeo nos quadros do instituto trajetoacuteria que o levaria ao cargo

de Secretaacuterio Perpeacutetuo preito que soacute havia sido dado ao cocircnego Januaacuterio da Cunha

Barbosa e a Manuel Ferreira Lagos409 Mais tarde Fleiuss formaria junto a Afonso

Celso e ao baratildeo de Ramiz a ldquotrindade do silogeurdquo de que nos falou Luacutecia Paschoal

Guimaratildees410 Em 1900 no entanto Max Fleiuss via Ramiz Galvatildeo em outra

trincheira A desavenccedila entre a publicaccedilatildeo na revista do IHGB e a data escolhida para

a celebraccedilatildeo do centenaacuterio pela Associaccedilatildeo revelava uma desordem no tempo em sua

expressatildeo talvez em igual medida mais precisa e mais primitiva e cuja resoluccedilatildeo

moral passaraacute como pretendo sublinhar pela comunhatildeo de uma cosmologia

406 Idem p 124 407 Idem pp 124-132 408 ldquoDos tempos actuaes natildeo tratamos a calma fator essencial dos estudos histoacutericos natildeo permite

ainda analyse dos uacuteltimos sucessos que se para uns soacute oferecem aspectos lisonjeiros para outros

representam exatamente o contrario e nos repugna a analyse de factos impossiacuteveis de serem tratados

sem o perigo da acirrada polemicardquo Idem p 132 409 Aqui sigo GUIMARAtildeES Luacutecia Maria Paschoal Da Escola Palatina ao Silogeu Instituto

Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (1889-1938) Rio de Janeiro Ed Museu da Repuacuteblica 2006 p 48 410 GUIMARAtildeES Luacutecia 2006 59

130

Intervalo

Study problems not periods

Lord Acton

131

Almas em movimento

Chamado geracional ao som das estrelas

ldquoO anciatildeo-rei natildeo falava de outra coisa a natildeo ser do Africano quando

recordou as suas gestas e ateacute suas palavrasrdquo Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo Emiliano

Africano (185-129 ac) refere-se pelas letras de Ciacutecero ao Africano Maior seu avocirc

por lei heroacutei romano das Guerras Puacutenicas na Hispacircnia e ancestral que conhecia tatildeo

somente atraveacutes das maacutescaras de cera que adornavam o aacutetrio de sua casa familiar

Naquela noite recebido com banquetes e pompas reais e apoacutes ouvir os elogios do

monarca Massinissa endereccedilados ao seu avocirc o jovem Cipiatildeo seria acometido por um

ldquosono mais pesado do que o de costumerdquo Estamos no inverno de 150-151 antes de

nossa era e o enviado romano buscava apoio na Aacutefrica do poderoso estado da

Numiacutedia411

Matildeos leves pelo cansaccedilo da viagem olhos pesados ouvidos atentos agraves

palavras do velho rei ele adormece ldquoNatildeo temas Cipiatildeo e entregue minhas palavras agrave

vossa memoacuteriardquo Ao ouvir essa voz o jovem se vecirc transportado a um ponto indefinido

do Cosmos entendido em uma percepccedilatildeo natildeo precisamente euclidiana ldquocheio de

estrelas e totalmente iluminado e sonorordquo412 Esferas giram rapidamente em

movimentos perfeitos tatildeo perfeitos que pareciam animados por uma inteligecircncia

divina Estrelas de natureza e magnitude diversa pulsavam em todas as direccedilotildees Dos

inuacutemeros misteacuterios que o cercavam aquele que lhe dirigia a palavra pareceu-o tatildeo

logo se aproximou de suacutebito familiar seu rosto mais do que humano era uma efiacutegie

numinosa que se revelava igual aos bustos patriarcais que conhecia desde o lar (ea

forma quae mihi ex imagine eius quam ex ipso erat notior I 2) Era ele Cipiatildeo o

411 Apresento agora uma leitura do Sonho de Cipiatildeo capiacutetulo final (VI) da Repuacuteblica de Marco Tuacutelio

Ciacutecero feito agrave luz da traduccedilatildeo portuguesa de Carlos Nougueacute e Ricardo da Costa e do confronto com a

versatildeo franco-latina de NISARD M (dir) Traiteacute de la Reacutepublique Livre Sixiegraveme In Ouvres

complegravetes de Ciceacuteron Paris JJ Dubochet 1841 Tome IV pp 342-348 Para a traduccedilatildeo portuguesa

NOUGUEacute Carlos COSTA Ricardo da O Sonho de Cipiatildeo de Marco Tuacutelio Ciacutecero Notandum Jan-

abr 2010 IJI-Universidade do Porto pp 37-50 412 Incorporo igualmente as notas didaacuteticas de VILLALBA I VARNEDA Pere Nota introductograveria

In MARC TULLI CICEROacute Lrsquoart de governar [DE RE PVBLICA] Barcelona Prohom Edicions

2006 incluiacutedas na supracitada ediccedilatildeo de liacutengua portuguesa do Sonho de Cipiatildeo assim como as notas

organizadas por M Nisard na ediccedilatildeo franco-latina de 1841

132

Africano Maior ancestral ndash ser divinizado por comportamento ciacutevico ndash que lhe faria

diversas revelaccedilotildees desde aquele ldquolugar excelsordquo (X10)413

Primeiro o jovem destruiraacute Cartago celebraraacute triunfos receberaacute o tiacutetulo de

censor e depois por duas vezes o de consul Seraacute enviado como legado ao Egito agrave

Siacuteria agrave Aacutesia e agrave Greacutecia Chamado de volta agraves armas derrotaraacute os celtiacuteberos da

Hispacircnia e conquistaraacute a poderosa Numacircncia ldquoAgora depois que tiverdes sido

conduzido ateacute o Capitoacutelio com carro triunfal encontraraacutes uma Repuacuteblica perturbada

pelas maquinaccedilotildees de meu netordquo (X211) Ao invocar uma metaacutefora que anuncia a

imagem do Sol regente do universo o Africano Maior realiza entatildeo o seu chamado

ldquofaltaraacute oferecer agrave paacutetria o lume de vossa menterdquo Ao 56 anos de idade ndash precisamente

quando o astro rei completar oito vezes sete translaccedilotildees e seus retornos ndash o jovem vai

ser ldquoo uacutenico no qual repousaraacute a salvaccedilatildeordquo Para isso teraacute que ldquocolocar a Repuacuteblica

em ordem com os poderes de ditadorrdquo (XII12)

Gloacuteria efecircmera adulaccedilotildees da plebe ainda os meros prazeres da carne tais

eram algumas das futilidades que deveriam ser postas de lado em nome da harmonia

natural entre o corpo e a alma No Somnium os valores ciacutevicos natildeo cansam de se opor

agraves indulgecircncias corporais Mas existia uma recompensa para uma vida de privaccedilotildees

dedicadas aos deveres para com a Repuacuteblica ldquoTenha sempre em menterdquo explicou o

Africano Maior ldquoque todos aqueles que conservam ajudam e engrandecem a paacutetria

tecircm um lugar determinado no ceacuteu onde fruem felizes uma vida sempiternardquo Os

abenccediloados aqueles que optaram pela alternativa loacutegica da virtude e da retidatildeo

poderiam desfrutar da verdadeira existecircncia libertos do caacutercere de seus corpos e

livres para seguir em um movimento eterno a via da Orbe Laacutectea (XIV14)

O exemplo dos antepassados como meacutedium iacutentimo da mos maiorum

mantinha ligaccedilatildeo com os homens por uma cadeia de virtudes ciacutevicas A famiacutelia era

assim composta por pais carnais e pais espirituais os quais se justificavam para

Ciacutecero natildeo tanto pelos laccedilos consanguiacuteneos mas principalmente pelos valores que

cultivaram em vida Quem aparece ao jovem como evidecircncia disso eacute seu pai

bioloacutegico Aemilius Paulus apresentando-se tambeacutem como exemplo de dignidade 413 Segundo Leonard Koff o guia do jovem Cipiatildeo aparece como um ldquoobjeto esculturado ao louvor

romanordquo Cipiatildeo o Velho eacute o ldquocidadatildeo romano enquanto dever encarnado presenccedila numinosardquo

privilegiado com o direito de aparecer a seu neto adotivo ldquoem um sonho a respeito do futuro porque

em consequecircncia de seu comportamento ciacutevico ele (o Velho) eacute digno de falar sobre issordquo Ao jovem

por sua vez eacute concedido sonhar como se as imagens oniacutericas formassem um ldquoveiacuteculo transcendente

para a transferecircncia do dever ciacutevicordquo KOFF Leonard Michael Dreaming the Dream of Scipio In

DEUSEN Nancy van (org) Cicero refused to die Ciceronian influence through the centuries Brill

Leiden 2013 p 68

133

Emocionado com a visatildeo do ldquopai santiacutessimo e melhor de todosrdquo o jovem pergunta

entre laacutegrimas e demonstraccedilotildees de afeto porque natildeo poderia esquecer a existecircncia

terrena e unir-se logo ao patriarca no templo celestial Como se reprovasse quaisquer

impulsos que abreviassem o destino Paulus explica que ldquonatildeo somente voacutes Puacuteblio

mas tambeacutem todos os homens piedosos devem reter a alma dentro da custoacutedia do

corpordquo e sem a permissatildeo e a recompensa do demiurgo ldquonatildeo podem migrar da vida

humana e se esquivarem da tarefa proacutepria dos humanosrdquo Humanos que virtuosos

teriam uma missatildeo natural a cumprir

Paulo se despede tatildeo raacutepido quanto chegou exortando o filho a manter o

caminho da boa conduta A seguir o Africano Maior toma o jovem pela matildeo e

aponta com a outra para cada uma das nove esferas ldquoa primeira das quais eacute celestial

externa e abraccedila todas as demaisrdquo Sob os cursos fixados a partir dela ndash imagem

dinacircmica do proacuteprio demiurgo platocircnico ndash ldquohaacute outras sete que giram mais lentamente

com um movimento contraacuterio ao da celestialrdquo (XVII417) Satildeo as estrelas errantes ou

os planetas ndash Saturno Juacutepiter Marte Sol Vecircnus Mercuacuterio e Lua ndash apresentados em

sua ordem Caldeacuteia Ordem que natildeo edificava um sentido visiacutevel (relacionado agrave

evidentia) senatildeo um senso expresso por relaccedilotildees numeroloacutegicas analogias agraves

divindades e associaccedilotildees com os humores projetados na Terra esfera cuja posiccedilatildeo era

central mas cujas caracteriacutesticas imoacuteveis cultivavam a morte e a imperfeiccedilatildeo

As tentaccedilotildees eacute claro eram difiacuteceis de serem evitadas em nome de um

propoacutesito ciacutevico Para isso era preciso fechar os olhos ao mundo e paciente escutar

os ditos harmoniosos da alma Mas ldquoque som eacute esserdquo pergunta-se o jovem ldquotatildeo

potente e ao mesmo tempo tatildeo doce que preenche meu ouvidordquo ldquoEste somrdquo

responde-lhe o Africano Maior ldquoeacute aquele que composto por intervalos separados e

diferenciados conforme uma proporccedilatildeo determinada por uma razatildeo nasce de um

impulso e do movimento das proacuteprias esferasrdquo Impulso que ldquoequilibrando

sobriamente agudos com graves produz um concerto harmocircnicordquo 414 As distacircncias

racionais e dessemelhantes entre as oito esferas moacuteveis (com a Terra estaacutetica ao

centro) ldquoproduzem sete tons por seus intervalos desiguais nuacutemero que eacute o laccedilo do

universordquo (XVIII518) Laccedilo do universo Chave de quase tudo (qui numerus rerum

414 ldquoComo Ciacutecero mostra ndash comentou Leonard Koff ndash a muacutesica das esferas a qual cada alma escuta e eacute

capaz de lsquomover-se em sua direccedilatildeorsquo eacute para ele o alinhamento que faz do universo uma uacutenica

comunidade ciacutevicardquo Se aceitarmos essa leitura Ciacutecero teria acreditado em uma ldquoharmonia de

domiacutenios uma harmonia que tem uma dimensatildeo paralela na alma e no corpordquo Tal seria uma ldquoreligiatildeo

ciacutevicardquo a qual corresponde uma ordem ciacutevica que reflete por sua vez uma ordem cosmoloacutegica KOFF

op cit 71

134

omnium fere nodus est) Algo que a dispotildee a amarra e pelo ouvido confere sentido

ordenando a natureza a muacutesica arranjada mais tarde pela tradiccedilatildeo pitagoacuterica ao lado

das matemaacuteticas da geometria e da fiacutesica no quatrivium educativo

Apoacutes uma digressatildeo sobre a pequeneza da Terra e a imensidatildeo do cosmos

(XIX620 e XX21) o jovem eacute chamado a compreender tambeacutem a grandiosidade do

tempo ldquoOs homens calculam corretamente a duraccedilatildeo do ano somente por uma volta

do Sol isto eacute de um soacute planeta mas na realidaderdquo explica o Africano Maior

ldquodeveriam denominar um anordquo apenas ldquoquando todos os planetas tivessem retornado

ao mesmo ponto de onde uma vez saiacuteram e tivessem feito retornar a configuraccedilatildeo

primeira do universordquo A esse magnus annus Ciacutecero atribuiacute 12954 anos de modo

que o Africano Maior acredita que ldquoseratildeo necessaacuterias a contagem de muitiacutessimas

geraccedilotildees humanasrdquo e que ldquodeste ano astronocircmico ainda natildeo transcorreu a vigeacutesima

parterdquo (XXII24)

ldquoCheio de tempo e de espaccedilordquo como certa vez disse Mandelstam sobre

Ulisses o jovem aprendia assim desde aquele templo celestial a natildeo cultuar a gloacuteria

em sua efecircmera e imperfeita existecircncia terrena ldquoPortanto se desejais dirigir vosso

olhar para cima e contemplar este lugar de permanecircncia eternardquo diz-lhe em novo

chamado o Africano Maior ldquodesdenha o que diz o povo (neque te sermonibus vulgi

dedideris) e natildeo coloque a esperanccedila de vossas accedilotildees nas recompensas humanas o

que importa eacute que soacute a virtude por seus proacuteprios atrativos vos conduza agrave verdadeira

honrardquo Ao final as virtudes deveratildeo ser lembradas e seu oposto ldquotoda aquela

tagarelicerdquo natildeo seraacute ldquoperenizada por mais ningueacutemrdquo e se ldquoextinguiraacute no

esquecimento da posteridaderdquo (oblivione posteritatis exstinguitur) (XXIII25)

Aos benemeacuteritos da repuacuteblica estavam abertos os caminhos que conduziriam

agraves portas celestes Cipiatildeo o Africano Maior insistia que ldquoo que eacute mortal natildeo sois voacutes

mas vosso corpo e certamente voacutes natildeo sois aquele que essa atual aparecircncia

manifesta mas a alma de cada um eacute aquele cada um natildeo essa figura que se pode

mostrar com o dedordquo E essa ldquoalma sempiterna move um corpo efecircmerordquo

(XXIV826) ldquoEacute evidenterdquo ensina o velho heroacutei a seu neto ldquoque o que se move eacute por

si eternordquo E quem natildeo poderia entatildeo ldquoassegurar que esta faculdade natildeo tenha sido

atribuiacuteda agraves almasrdquo ldquoAssimrdquo continuou seu diaacutelogo e seu chamado ldquoexercita esta

alma nas atividades elevadas As melhores satildeo os trabalhos para a sauacutede da paacutetria a

alma estimulada e exercitada por eles mais rapidamente alccedilaraacute voo a esta casardquo

Mesmo materialmente aprisionada ela pode se ldquoprojetar na luz puacuteblicardquo e assumindo

135

uma postura contemplativa ao mundo exterior ldquose desembaraccedilar o maacuteximo possiacutevel

do corpordquo Almas viciosas entregues agraves voluacutepias do corpo e da mente assim violando

as ldquoleis divinas e humanasrdquo devem vagar sem rumo ao redor da Terra e ldquouma vez

saiacutedas dos corposrdquo natildeo retornaratildeo ao templo celestial

No sonho refutar a virtude eacute um procedimento iloacutegico e nefasto atitude que

renegaria a proacutepria natureza essa eterna causa de ordem conduzindo o homem agraves

sombras do esquecimento O viacutecio encarceraria a alma na esfera inferior impedindo-a

de se movimentar em harmonia com o cosmos e nesse balanccedilo projetar-se como

exemplo transmissor de seu legado agrave memoacuteria das novas geraccedilotildees O veto agrave

transmigraccedilatildeo das almas eacute em outras palavras uma imagem de morte Apenas

aqueles que forem conhecidos e lembrados pelos seus serviccedilos ao Estado poderiam

ldquoretornar como mentores ciacutevicosrdquo informando os homens das ldquorecompensas do dever

no ceacuteurdquo em consequecircncia da ldquodireccedilatildeo santificada da proacutepria vidardquo 415 Cipiatildeo o velho

faz um chamado traz um alerta mas tambeacutem tece uma ameaccedila e logo apoacutes proferir

palavras que soavam nesse contexto platocircnico tanto amedrontadoras o Africano

Maior parte o jovem Cipiatildeo acorda e Ciacutecero encerra abruptamente a sua Repuacuteblica

O Sonho do Cipiatildeo era conhecido dos medievais e dos modernos apenas

atraveacutes do comentaacuterio de Ambroacutesio Teodoacutesio Macroacutebio filoacutesofo que viveu entre os

seacuteculos IV e V Macroacutebio que por muito tempo chegaria a disputar a paternidade do

Somnium transformou o excerto ciceroniano no texto autoritativo e confirmatoacuterio de

ldquoum neoplatonismo que natildeo possuiacutea fins poliacuteticosrdquo Em sua leitura as recompensas

celestes satildeo destinadas agravequeles que forem ldquometafisicamente saacutebiosrdquo 416 Se em Ciacutecero

o mundo sublunar por vezes natildeo reconhecia as virtudes da alma em Macroacutebio essa

ldquorecusa do mundordquo parece associada ao ldquodesprezo pelo mundordquo topos neoplatocircnico

que cairia bem aos olhos da moral cristatilde417

Com o decliacutenio da vida puacuteblica claacutessica o orador natildeo teria mais accedilotildees (erga) a

realizar e seu logos sua fala em pouco reconheceria a funccedilatildeo original da ldquoconduccedilatildeo

415 KOFF op cit 69 416 KOFF op cit 66 417 KOFF op cit 72

136

da poliacuteticardquo418 Taacutecito jaacute se perguntava sobre a perda de prestiacutegio da eloquecircncia ldquoPara

que serve acumular discursosrdquo refletiu o autor dos Anais ldquovisto que natildeo incumbe aos

incompetentes nem agrave multidatildeo tomar deliberaccedilotildees mas ao mais saacutebio dos homens

sozinhordquo 419 Na eacutepoca de Santo Agostinho o nome de Ciacutecero tornou-se sinocircnimo de

ldquobufatildeo profissionalrdquo ndash algueacutem que ainda deleitava mas que jaacute era inuacutetil um scurra

um cocircmico um bobo ou um palhaccedilo ndash para na alta idade meacutedia beirar o

esquecimento como mostra Michael Herren os autores do periacuteodo nada conheciam a

respeito da vida do arpiniata420 Ciacutecero eacute resgatado ao longo do renascimento do

seacuteculo XII e valorizado como mestre da retoacuterica pelos leitores da Institutio oratoria

de Quintiliano que nessa obra chegou a citaacute-lo 689 vezes421 Tambeacutem era lido em sua

juvenilia atraveacutes do De Inventione e da Rhetorica ad Herennium422 No ano em que

Marciacutelio Ficino nasceu 1433 a maior parte dos trabalhos de Ciacutecero jaacute havia sido

compilada A geraccedilatildeo do autor da Theologia platonica mostrar-se-ia aacutevida leitora das

Epistolae ad familiares cartas que encontraram uma primeira versatildeo impressa em

1467423 No renascimento dos seacuteculos posteriores a imagem do autor como figura

ciacutevica eacute reabilitada A publicaccedilatildeo dos tratados de maturidade elevaria seu status em

meio aos eruditos humanistas ldquoreforccedilando sua reputaccedilatildeo para a eloquecircncia contra

rivais emergentesrdquo fossem Hermogenes e Quintiliano fossem homens do presente

como Guarido de Verona e George de Trebizonda424

Eacute no ldquolongo seacuteculo XVrdquo periacuteodo que se estenderia da maturidade de Petrarca

(1304-1374) agrave deacutecada de 20 do seacuteculo XVI que emerge o problema da ldquoliacutengua latina

e sua utilidade como instrumento de culturardquo 425 Foi por essa eacutepoca que os

humanistas recolhendo evidecircncias em fontes como Aulo Geacutelio Varro e o Brutus de

Ciacutecero comeccedilaram a perceber que o latim romano um dia fora uma liacutengua natural

aprendida e expressada em diferentes graus de refinamento de estilo e de erudiccedilatildeo

418 HARTOG Franccedilois Evidecircncia da Histoacuteria o que os historiadores veem Belo Horizonte

Autecircntica 2011 p 41 419 TAacuteCITO Dialogue des orateurs (Dialogus Oratoribus) Texto estabelecido por Henri Goelzer e

traduzido por Henri Bornecque Paris Les Belles Lettres 1936 p 41 apud HARTOG 2011 p 44 420 HERREN Michael W Cicero redivivus apud scurras some early medieval treatments of the great

orator In DEUSEN Nancy van (org) Cicero refused to die 213 op cit p 39 421 ldquoA mainstream of what the Latin Middle Ages knew of Cicero ndash quite a lot as it turns out ndash was

intermediated through Quintilianrdquo DEUSEN Nancy van Cicero through quintilian eyes in the middle

ages In DEUSEN (org) Cicero refused to die op cit 2013 p 48 422 WARD John O Ciceronian Rhetoric and Oratory from St Augustine to Guarido da Verona In

DEUSEN (org) 2013 p 164 423 REES Valery Ciceronian Echoes in Marcilio Ficino In DEUSEN (org) 2013 p 141-142 424 WARD op cit 164 425 CELENZA Christopher S Coluccio Salutatirsquos View of the History of the Latin Language In

DEUSEN op cit p 5-6

137

ldquoSe olharmos essa questatildeo de outra maneirardquo como sugeriu Christopher Celenza

ldquopodemos dizer que os humanistas assim descobriram que o latim era uma liacutengua

morta estudada em seu tempo apenas por meio de uma educaccedilatildeo formalrdquo 426 Para

acessar esse lugar que em Petrarca (autor no qual jaacute poderiacuteamos ver o iniacutecio das

periodizaccedilotildees modernas) jaacute era claramente um passado o estudante do quattrocento

em geral optaria por dois meacutetodos aprender e escrever o latim em estilo ecleacutetico

nutrindo-se do modelo de diversos autores como o fariam Lorenzo Valla e Angelo

Poliziano ou imitar a prosa ciceroniana427 A autoridade do arpiniata alcanccedilava seu

auge e a todo tempo fazia lembrar o Ciacutecero orador o Ciacutecero das Ad Familiares o

homem puacuteblico e o tratadista embora o Ciacutecero do Somnium estivesse ainda preso a

Macroacutebio Nos seacuteculos seguinte envolto na discussatildeo que transcenderia a mos

gallicus e a mos italicus em nome de um direito natural o De Officis seria lido e

usado a partir de agendas poliacuteticas das mais diversas e contraditoacuterias Mably o teria

em alta conta antes da revoluccedilatildeo e jaacute depois Edmund Burke natildeo guardaria receios

em reeditar-lhe certos argumentos428

Quatro anos apoacutes a Santa Alianccedila Angelo Mai ao deambular pela Biblioteca

Vaticana encontrou um manuscrito contendo comentaacuterios aos Salmos de Santo

Agostinho documento copiado por volta do seacuteculo VIII Naquele dia de 1819 o

estudioso jesuiacuteta percebeu de certo com alguma surpresa que restos de letras e

palavras que natildeo pertenciam nem aos comentaacuterios nem aos Salmos ainda podiam ser

lidas Resolveu raspar o pergaminho e nesse palimpsesto encontrou uma coacutepia da

Repuacuteblica de Ciacutecero Coacutepia incompleta pelo estado de conservaccedilatildeo da fonte mesmo

assim ajudou a formar o corpus documental ciceroniano e atribuir-lhe definitivamente

a autoria do Sonho de Cipiatildeo429

Ciacutecero escreveu sua Republica apoacutes passar o ano de 58 AC exilado na Greacutecia

De volta a Roma continuava longe dos ciacuterculos de poder afastado do Senado e da

vida puacuteblica Ao transcrever discursos e redigir seu tratado sobre o governo o orador

parecia segundo Timothy Shonk responder a duas questotildees como permanecer

influente no Estado romano e como se certificar de que suas palavras e sua reputaccedilatildeo 426 CELEZAN op cit p 6 427 KOFF op cit 66 e tambeacutem TUNBERG Terence Colloquia Familiaria na aspecto of

Ciceronianism reconsidered In DEUSEN (org) op cit 124 428 Sobre os diversos ndash e contraditoacuterios ndash usos de Ciacutecero ao longo do periacuteodo preacute e poacutes-revoluconaacuterio

ver ATKINS Jed W A revoluctionary doctrine Cicerorsquos natural right teaching in Mably and Burke

Classical Receptions Journal 2014 6 (2) pp 177-197 429 COSTA Ricardo da Apresentaccedilatildeo In NOUGUEacute Carlos COSTA Ricardo da O Sonho de Cipiatildeo

de Marco Tuacutelio Ciacutecero op cit p 38-39

138

sobreviveriam ao tempo Segundo essa leitura foi refletindo sobre o primeiro

problema que Ciacutecero elaborou uma conversaccedilatildeo imaginaacuteria um diaacutelogo de sabor

platocircnico modelado na Republica do filoacutesofo grego no qual apartavam personagens

tanto conhecidos do passado romano Manius Manillus Publius Rutilus Rufus e

Quintus Mucius Scaevola O principal interlocutor no entanto era Cipiatildeo o jovem430

Apoacutes discutir o fenocircmeno da apariccedilatildeo de dois soacuteis em um uacutenico dia o conquistador

de Cartago introduz o tema maacuteximo da obra sublinhar o meacuterito de cada um dos

sistemas de governo ndash a democracia popular a repuacuteblica aristocraacutetica e a ditadura ndash

argumentando por fim que Roma conseguia a faccedilanha de unir o melhor dos trecircs

mundos431 Responder a segunda questatildeo no entanto exigia da parte de Ciacutecero uma

reflexatildeo sobre seu futuro e seu nome ldquoVerdaderdquo comentou Shonk ldquosuas

performances puacuteblicas tinham sido memoraacuteveis mas a vibraccedilatildeo do som no ar eacute tatildeo

efecircmera quanto o momento que as conduzrdquo como o eram a memoacuteria daqueles que

escutavam seus discursos Assim ele se dispotildee a reescrevecirc-los e indo aleacutem resolveu

entregar-se a uma obra que fizesse de sua contribuiccedilatildeo poliacutetica algo como uma

aquisiccedilatildeo para sempre432

Algueacutem poderia argumentar que o capiacutetulo final da Republica une

metaforicamente os dois intentos Mas tal apelo agrave commemoratio posteritatis caso

possamos observaacute-lo nas entrelinhas do Sonho de Cipiatildeo natildeo seria de todo obra da

vaidade O pensamento de Ciacutecero de qualquer maneira logo viria insinuar o

contraacuterio No seu mais bem acabado tratado de retoacuterica o De Oratore Ciacutecero fizera a

defesa da arte da persuasatildeo como forma de incitar uma vida puacuteblica moralmente bela

e harmoniosa No De Partitionbus Oratoriae sua obra didaacutetica ele pensaria com

Aristoacuteteles ao dividir a retoacuterica entre os gecircneros judiciaacuterio voltado ao julgamento dos

feitos passados o deliberativo incitado a persuadir a assembleia a tomar decisotildees

relativas ao futuro da urbs e o demonstrativo utilizado para deleitar e instruir as

audiecircncias 433 O uacuteltimo dos gecircneros citados tambeacutem conhecido como epidiacutedico

voltado para o presente poderia igualmente produzir a presenccedila do passado Assim

elaboravam-se ldquoliccedilotildees uacuteteis e honestas onde atraveacutes do encocircmio ou vitupeacuterio de

430 Aqui sigo SHONK Timothy A ldquoFor I Hadde Red of Affrycan Byfornrdquo Cicerorsquos Somnium

Scipionis and Chaucerrsquos Early Dream Visions In DEUSEN (org) op cit pp 85-122 431 Eacute possiacutevel que Ciacutecero tenha retirado essa reflexatildeo de Poliacutebio saudado como teoacuterico da Constituiccedilatildeo

Mista ateacute os dias de Montesquieu Cf HARTOG 2011 p 99 432 Idem p 86 433 Ver CICERO Marcus Tullius A Dialogue Concerning Oratorical Partitions In The Orations of

Marcus Tullius Cicero Volume IV London Bell amp Sons 1921 p 489

139

homens e cidades ficassem claros o caminho da virtude e os perigos do viacuteciordquo

englobando uma lista de gecircneros auxiliares ldquoo panegiacuterico a laudatio funebris a

biografia exemplar a crocircnica a histoacuteriardquo434 O Sonho de Cipiatildeo caso pudermos vecirc-lo

como aqui proponho enquanto um chamado geracional certamente compartilharia de

espaccedilo sob a ampla sombra epidiacutedica relacionando-se com a historia sem

embaralhar-se todavia com ela ao evocar o passado no presente e a seguir

apresentando-o atraveacutes de um estilo ornado Desde aquele ldquolugar excelsordquo Ciacutecero fez

escutar de Cipiatildeo a Cipiatildeo o som da natureza a partir de um ponto de contemplaccedilatildeo

do espaccedilo e do tempo em sua imensidatildeo material e dimensatildeo plural O movimento da

alma faz lembrar os ancestrais desvela o porvir e chama agrave accedilatildeo poliacutetica lembrando e

se apropriando de uma cosmologia de inegaacutevel sabor platocircnico (Timeu 39-40 Fedro

245e-246a Feacutedon 81c) mas que natildeo deixa de ter a muacutesica ldquolaccedilo do universordquo como

chave de harmonia Apostava na faacutebula e sublinhava-se a audiccedilatildeo meacutetodo que ao

menos para um grego acostumado a autoridade de Heraacuteclito era ldquomais agradaacutevel

poreacutem menos vaacutelidordquo435 Diferentemente da histoacuteria a relaccedilatildeo entre fatos e palavras

se daria mais pela fabulaccedilatildeo poeacutetica do que pela autoridade do particular conjurando

uma epifania ciacutevica capaz de transmitir os valores e exemplos de uma era dourada o

periacuteodo imeditamente anterior agraves guerras puacutenicas

O detalhe que traz a descriccedilatildeo dos dias vindouros aparecerem antes do

chamado ciacutevico acredito pode ser significativo A partir dele o Africano Maior vecirc

ldquoum duplo caminho marcado pelos fatosrdquo (XII12) A escolha eacute como uma opccedilatildeo

entre abraccedilar ou afugentar um destino que estaacute a priori escrito nas estrelas

reverberado e enlaccedilado pelo nodus da muacutesica celestial O movimento da alma que a

escolha da virtude proporciona persegue de toda maneira uma trajetoacuteria ciacuteclica e

teleoloacutegica determinado pela ordem da natureza ele alcanccedila os ceacuteus e de laacute retorna

de geraccedilotildees em geraccedilotildees mesmo por meio de sonhos luacutecidos para oficiar a mos

maiorum aos jovens campeotildees da repuacuteblica E os ancestrais conhecidos apenas

atraveacutes de maacutescaras de cera natildeo seriam vistos mas escutados nas estrelas

No capiacutetulo final da Repuacuteblica o movimento circular das almas eacute igualmente

conservador uma vez que sua eloquecircncia instrui uma nova geraccedilatildeo a agir frente agrave

corrupccedilatildeo dos valores ancestrais no intento de restaurar uma ordem moral que deve

434 TEIXEIRA Felipe Charbel Uma Construccedilatildeo de fatos e palavras Ciacutecero e a concepccedilatildeo retoacuterica da

histoacuteria In Varia Historia Belo Horizonte vol 24 n 40 juldez 2008 p 562 435 POLIBIO Histoacuterias XII 27 p 521 apud TEIXEIRA op cit p 555 Sobre as criacuteticas de Poliacutebio a

Timeu de Taormina e a evocaccedilatildeo da autoridade de Heraacuteclito ver igualmente HARTOG 2011 p 102

140

seguir tambeacutem uma ordem coacutesmica natural divina e imutaacutevel ldquoO que eacute passado de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo como afirmou Koff a respeito do Somnium eacute tatildeo somente a

expectativa ndash empiricamente previsiacutevel e por isso imitaacutevel ndash da ldquonobreza ciacutevicardquo 436

Entre os modernos se a metempsicose ou a reencarnaccedilatildeo cristatilde nunca seratildeo

consensualmente metaacuteforas seria possiacutevel que se passasse a oficiar a saga das almas

como um movimento progressivo que elas avanccedilassem de esfera em esfera rumo agrave

perfectibilidade natildeo pelo contato com o mundo das ideias mas pelo encontro e

alianccedila com o Deus uacutenico Como veremos desde cedo esta discussatildeo ndash cuja questatildeo

acima oferece senatildeo um tipo ideal ndash fora apenas mais um dos muitos pontos de

choque entre os dois lados do Reno

Jaacute na primeira modernidade os olhos seratildeo abertos a filologia dos textos

autoritativos unida agraves observaccedilotildees dos ciclos naturais proporcionando a cada nome

ou feito comemorado uma data precisa Eacute aiacute que o desenvolvimento das

comemoraccedilotildees reencontra ao longo da modernidade a elaboraccedilatildeo de outro conceito

conceito paralelo que no Brasil de finais do seacuteculo XIX deixa ele mesmo de resistir

agraves tentaccedilotildees euclidianas e termina por tocar os contornos semacircnticos dos jubileus

nacionais E esse conceito devemos dizer comeccedila a ser lido muitos seacuteculos antes

depois apropriado aos antigos pelos modernos e evidenciado pela observaccedilatildeo natildeo do

mundo sublunar ou das gestas dos homens mas do movimento dos ceacuteus e do retorno

das estrelas

436 KOFF op cit 69

141

II

Efemeacuterides

142

3

Ordem da Natureza

As efemeacuterides e os nuacutemeros da mudanccedila

Em uma dissertaccedilatildeo que nos chega apresentada no volume dezoito de seus

Nouveaux Meacutelanges Voltaire assumia o pseudocircnimo de Soranus meacutedico de Trajano

Sua intenccedilatildeo Debater o problema da metempsicose tema que a sua maneira usaraacute

para discutir um outro nuacutemero de toacutepicos criticar o providencialismo de certos

interlocutores como Malebranche ou ainda perguntar se a alma de todo modo

poderia ser considerada uma faculdade Caso aceitemos seguindo o autor em seu

calculado vocabulaacuterio platocircnico que nosso corpo eacute o ldquoenvelope da almardquo como os

animais fazem seus membros obedecerem as suas vontades Como as ideias das

coisas formam-se neles atraveacutes dos sentidos E logo depois perguntaria Voltaire

realizando o vocirco que embora natildeo tenhamos asas para seguir poderiacuteamos ao menos

tentar acompanhar em seu pouso ldquoem que consiste a memoacuteriardquo 437

Para discutir essas questotildees o filoacutesofo busca a origem do conceito de alma

ldquoSe alguma naccedilatildeo antigardquo escreveu o autor dos Meacutelanges ldquopode reivindicar a honra

de ter inventado aquilo que chamamos de alma eacute provaacutevel que esta foi a casta dos

bracircmanesrdquo Vida doce agraves margens do Ganges frutos a colher por toda parte os

bracircmanes eram dados desde muito cedo na histoacuteria aos estudos e agrave meditaccedilatildeo Eles

chegaram mesmo a ldquoimaginar a metempsicoserdquo que natildeo poderia ser executada senatildeo

por ldquouma alma que muda de corpordquo ldquoA proacutepria palavra metempsicoserdquo explicava

Voltaire ldquoque eacute grega e que pode ter sido a traduccedilatildeo de uma liacutengua oriental significa

expressamente a migraccedilatildeo da almardquo Ora isso indicava que os bracircmanes ldquoacreditavam

na existecircncia de almas de tempos imemoriaisrdquo 438

437 VOLTAIRE De lrsquoAme par Soranus In Ouvres Complegravetes Philosophie Tome I Paris Antoine-

Augustin Renouard 1819 ldquo() qui passa por ecirctre lrsquoenveloppe de cette acircmerdquo p 205 ldquoII Lrsquoacircme est-elle

une faculteacute Comment tout animal fait-il obeacuteir ses membres agrave ses volonteacutes Commente les ideacutees des

choses se forment-elles dans lrsquoanimal par le moyen de ses sens En quoi consiste la meacutemoirerdquo p 207 438Ibid p 209 ldquoSi quelque nation antique put preacutetendre agrave lhonneur davoir inventeacute ce que nous

appelons chez nous une acircme il est agrave croire que ce fut la caste des brachmanes sur les bords du Gange

car elle imagina la meacutetempsycose et cette meacutetempsycose ne peut sexeacutecuter que par une acircme qui

143

Tempos imemoriais Se a sucessatildeo de geraccedilotildees natildeo conseguia guardar a

lembranccedila das eras antigas na leitura de Voltaire as almas fariam vezes de uma

unidade de sentido capaz de transcender toda limitaccedilatildeo da memoacuteria Eacute assim que o

filoacutesofo explicava em seu tempo a perenidade dos costumes e tradiccedilotildees ancestrais

indianas Foi graccedilas agrave crenccedila na migraccedilatildeo das almas afirmou o iluminista ldquoque os

descendentes dos brachmanesrdquo resistiram agrave currupccedilatildeo de seus costumes (mœurs)

arquitetada pelos ldquosalteadores europeus que a avareza transportou ao Gangesrdquo 439

Voltaire lembra a seguir as viagens que muitos filoacutesofos antigos

empreenderam agrave Iacutendia e chega a arriscar a conclusatildeo de que ldquotoda a antiga teologia

diferentemente dissimulada na Aacutesia e na Europa nos chega incontestavelmente dos

bracircmanesrdquo 440 O notaacutevel exagero parece ter como intenccedilatildeo polemizar com

Malebranche esse ldquonovo filoacutesofordquo que ousava acreditar na alma como uma

substacircncia doada pela providecircncia aos homens Natildeo para Voltaire ndash falando pela

boca de Soranus ndash a alma natildeo era uma substacircncia Ela era tatildeo somente uma faculdade

de nosso corpo propriedade capaz de animaacute-lo atraveacutes desse lado intangiacutevel da

existecircncia Deificar a alma assim como um dia divinizou-se a memoacuteria insinuaria

Voltaire era coisa da ldquometafiacutesica do populacho () essa supersticcedilatildeo ridicula e

vergonhosa vinda evidentemente daquele que imaginou no homem uma pequena

substacircncia divinardquo 441 Ainda assim

ldquoOs homens supuseram uma alma pelo mesmo erro que

os fez supor entre noacutes um ser chamado Memoacuteria que a

seguir foi divinizado Eles fizeram dessa Memoacuteria a matildee

das Musas Eles ergueram os diversos talentos da

natureza humana como deusas meninas da Memoacuteriardquo442

change de corps Le mot mecircme de meacutetempsycose qui est grec et qui ne peut ecirctre quune traduction

dapregraves une langue orientale signifie expresseacutement la migration de lacircme Les brachmanes croyaient

donc lexistence des acircmes de temps immeacutemorialrdquo Grifos meus 439Ibid p 209 ldquoIl en est encore ainsi chez tous les brames descendans des anciens brachmanes qui

nont point corrompu leurs mœurs par la freacutequentation des brigands dEurope que lavarice a

transplanteacutes vers le Gangerdquo 440Ibid p 205 ldquoAinsi nous voyons que toute lrsquoancienne theacuteologie diffeacuteremment deacuteguiseacutee en Asie et en

Europe nous vient incontestablement des brachmanesrdquo 441ibid p 214 ldquoCeacutetait la meacutetaphysique de la populace Cette superstition ridicule et honteuse venait

eacutevidemment de celle qui avait imagineacute dans lhomme une petite substance divine autre que lhomme

mecircmerdquo 442 ibid Les hommes nrsquoont supposeacute une acircme que par la mecircme erreur qui leur fit supposer dans nous un

ecirctre nommeacute Meacutemoire lequel ecirctre ils divinisegraverent ensuite Ils firent de cette Meacutemoire la megravere des

Muses Ils eacuterigegraverent les talents divers de la nature humaine en autant de deacuteesses filles de Meacutemoire pp

219-220

144

Alma e memoacuteria se quisermos seguir esse raciociacutenio tornar-se-iam parte de

uma mesma faculdade ordenadora da mente humana A crenccedila na transmigraccedilatildeo

agora serviria como transmissora dos costumes (mœurs) garantindo a comunicaccedilatildeo

geracional e posando de fiadora de uma identidade coletiva ainda que dada por

atribuiccedilotildees morais Tudo se passa como se pudessemos conquistar a imortalidade

pelas letras de uma faacutebula Atraveacutes de um pseudocircnimo que comemora Soranus a

ironia de Voltaire faz a alma dos antigos ler e responder jaacute com um espiacuterito moderno

a Malebranche e ao providencialismo O paralelismo entre alma e memoacuteria enquanto

crenccedilas compartilhadas talvez nos ajudem a traduzir toda uma seacuterie de expressotildees tatildeo

caras ateacute os seacuteculos XVIII e XIX que hoje no entanto podem soar como jargotildees

vazios ao historiador a ldquomeacutemoire eternellerdquo essa ldquomemoacuteria imorredoura dos povosrdquo

ou qualquer outro tipo de variaccedilatildeo inspiradas nos modelos antigos Seriam expressotildees

que tentavam a partir de suas experiecircncias historicamente contingentes dar conta da

ldquomemoacuteria coletivardquo antes que Maurice Halbwachs e as ondas testemunhais do poacutes-

guerra pudessem se fazer ouvir e impor suas autoridades443

Essa faculdade humana entendida pela ldquometafiacutesica do populachordquo por vezes

como alma por outras como memoacuteria ao fim natildeo deixaria de ser lida nas estrelas O

repouso a meditaccedilatildeo em suma toda uma vida voltada a contemplar o cosmos ndash

experiecircncias comuns na visatildeo de Voltaire aos antigos bracircmanes ndash os levaram a

reconhecer tambeacutem certa ordem na natureza Olhos atentos aos ceacuteus ldquoeles satildeo os

primeiros que calcularam para a posteridade a posiccedilatildeo dos planetas visiacuteveisrdquo Aos

bracircmanes ldquodevemos as primeiras efemeacuterides e eles ainda as compotildee com uma aacutegil

facilidade que surpreende ateacute hoje nossos matemaacuteticosrdquo444

A referecircncia agraves efemeacuterides na fala de Soranus ndash fala cujo fio condutor eacute o

debate sobre a metempsicose ndash natildeo parece fortuita Ela acena ao cosmos agrave ordem da

443 Essa questatildeo foi proposta por RUSSEL Nicolas Collective Memory before and after Halbwachs

In The French Review Vol 79 No 4 March 2006 Para o problema ao longo da primeira

modernidade e da renascenccedila ver RUSSEL Nicolas Construction et repreacutesentation de la meacutemoire

collective dans les entreacutees triomphales au XVIe siegravecle In Renaissance et Reacuteforme 322 Printemps

2009 Nos dois textos o autor defende que a definiccedilatildeo de memoacuteria coletiva tal como encampada na

segunda metade do seacuteculo XX pelos estudos sociais possui uma relaccedilatildeo iacutentima com a identidade de

grupos a partir da experiecircncia direta ou das lembranccedilas do vivido No seacuteculo XVI como explica em

Construccedilatildeo Representaccedilatildeo (2009) ldquoo conteuacutedo da memoacuteria coletiva natildeo eacute apresentado como o espelho

da identidade singular de um grupo mas sobretudo como uma coleccedilatildeo de exemplos e de textos que

perduram graccedilas a seu valor eacutetico ou esteacuteticordquo (54-55) 444 VOLTAIRE Idebm Ibidem ldquoCe repos et cette meacuteditation qui furent toujours le partage des

brachmanes leur fit dabord connaicirctre lastronomie Ils sont les premiers qui calculegraverent pour la

posteacuteriteacute les positions des planegravetes visibles On leur doit les premiegraveres eacutepheacutemeacuterides et ils les

composent encore aujourdhui avec une faciliteacute prompte qui eacutetonne nos matheacutematiciensrdquo Grifos meus

145

natureza ao tempo do calendaacuterio e com a ideia de movimento recorrente das esferas

agrave transmigraccedilatildeo das almas Reconhecimento moderno de uma concepccedilatildeo antiga em

alguma medida lida na danccedila dos orbes celestes para o que chamariacuteamos hoje de

memoacuteria e de identidade de um povo A relaccedilatildeo entre a metempsicose e a

transmissatildeo (ou transmigraccedilatildeo) do conhecimento e da virtude jaacute foi reconhecida em

diversos autores gregos ligados agrave astronomia em especial nos astrocircnomos da escola

de Miletos445 Natildeo eacute esse difiacutecil caminho no entanto que vamos tomar Por ora basta

apontar e reconhecer em alguns capiacutetulos da histoacuteria do conceito de efemeacuteride sua

associaccedilatildeo a diversas praacuteticas e dentre elas certa simpatia recorrente pelo topos da

influecircncia celeste Entre antigos e modernos vamos agora comeccedilar a acompanhar a

histoacuteria do conceito e de seus usos Conceito pensado como forma de descrever

gestas ora dos homens ora dos astros as praacuteticas que se associaram a ele natildeo

deixaram de fazecirc-lo transitar da natureza ao tempo da filosofia natural agrave luz puacuteblica

da poliacutetica aos debates histoacutericos O trajeto deve nos levar ao Brasil de finais do

seacuteculo XIX quando jaacute como um subgecircnero historiograacutefico as efemeacuterides

encontraratildeo lugar ao lado das grandes comemoraccedilotildees nacionais

31 Efemeacuterides antigas a ordem do tempo submissa

ldquoMuitas vezes ele gostava de sair agrave caccedila de raposas ou de aves como

podemos ver nas Efemeacuteridesrdquo 446 Plutarco referia-se agraves Efemeacuterides de Alexandre um

jornal de fatos da vida do rei obra redigida por Eumenes de Caacuterdia e que chega ateacute

noacutes senatildeo pelas referecircncias que a ela fez o bioacutegrafo grego ao lado de outros poucos

comentadores447 Semprocircnio Aseacutelio historiador latino da geraccedilatildeo de Poliacutebio chegou

a refletir sobre o gecircnero448 Tribuno militar do jovem Cipiatildeo acompanhou-o durante o

445 Sobre a metempsicose pitagoacuterica como ldquoconstante movimento da alma que eacute o princiacutepio da vida e

do movimento instrumento para a transmissatildeo e transmigraccedilatildeo do conhecimento e da virtuderdquo ligados

a concepccedilatildeo de que o movimento da alma (psyche) define a ordenaccedilatildeo do cosmos ver PEREIRA

Angelo Balbino Soares A Teoria da Metempsicose Pitagoacuterica Dissertaccedilatildeo de mestrado UNB 2010

Sobre Tales e Anaximandro de Mileto (ldquoprofessores de Pitaacutegorasrdquo segundo a tradiccedilatildeo biograacutefica

antiga) principalmente pp 23-24 51-52 70 446 Na traduccedilatildeo francesa de Alexis Pierron ldquoSouvent il srsquoamusait agrave chasser au renard ou aux oiseaux

comme on peut le voir dans les Eacutepheacutemeacuterides (ἐφημερίδων)rdquo PLUTARQUE Les vies des hommes

illustres Tome Troisiegraveme vie drsquoAlexandre Traduc par Alexis Pierron (Bilingue) Paris Charpentier

Libraire-Eacutediteur 1853 [23468] 447 In Plut Vit Alex p 98 Sympos L t op T II p 623 Athen L I p 434 Aelian Var Hist L III

C XXIII 448 Esse eacute tambeacutem o momento no qual aparecem as primeiras manifestaccedilotildees da palavra histoacuteria usada

como sinocircnimo de ldquoacontecimentordquo Segundo Christian Meier ldquoiotopia assumiu o significado de

146

cerco da Numacircncia tendo escrito uma histoacuteria dos Gracos e das Guerras Puacutenicas que

se perdeu Apesar disso conhecemos algumas de suas palavras atraveacutes de escritos

posteriores No capiacutetulo XVIII do quinto livro das Noites Aacuteticas Aulo Geacutelio (circa

125-180 AD) transcreveu uma passagem das histoacuterias de Asellio Antes fez sobre ela

um breve comentaacuterio interessado como estava em compreender e distinguir os

diferentes gecircneros existentes para se registrar os feitos dos homens (res gestas) Em

Roma a tradiccedilatildeo dos Annales era bem conhecida mas ldquoquando () os eventos satildeo

gravados natildeo ano a ano mas dia a dia essa histoacuteria eacute chamada em grego efemeacuteride

(ἐφημερίς) ou um diaacuteriordquo 449 Inspirado em Poliacutebio Asellio natildeo pretendia tatildeo

somente propor anais nem menos ainda confortar-se com diaacuterios Natildeo estava

satisfeito em apenas ldquofazer saber o que aconteceurdquo mas tambeacutem em demonstrar o

propoacutesito (consilio) e a razatildeo (ratione) de um feito (gesta) 450 Operaccedilatildeo que quase

mil anos mais tarde seria saudada em Poliacutebio por Herder ndash interlocutor criacutetico de

Voltaire ndash como um princiacutepio de histoacuteria enquanto ldquodoutrina estruturalrdquo ou uma

ldquofilosofia cheia de exemplosrdquo 451

ldquoHistoacuteriardquo (no sentido de acontecimento) Eacute em Poliacutebio que encontramos pela primeira vez a palavra

utilizada dessa formardquo MEIER Christian Antiguidade In KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito

de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 46 Poderia-se supor portanto que dentre os

historiadores da geraccedilatildeo de Poliacutebio jaacute existia o repertoacuterio necessaacuterio para o reconhecimento de pelo

menos um dos sentidos fundamentais associados ao termo efemeacuteride o das efemeacuterides histoacutericas que

registram os acontecimentos em sua unicidade dispostos em meio a um calendaacuterio de dias recorrentes 449GELLIUS Aulus The Attic Nights John Carew Rolfe (ed) Cambridge London Harvard

University Press 2002 [5187] ldquoCum vero non per annos sed per dies singulos res gestae scribuntur

ea historia Graeco vocabulo ἐφημερὶς dicitur cuius Latinum interpretamentum scriptum est in libro

Semproni Asellionis primo ex quo libro plura verba ascripsimus ut simul ibidem quid ipse inter res

gestas et annales esse dixerit ostenderemusrdquo Na traduccedilatildeo inglesa de Rolfe ldquoWhen however events

are recorded not year by year but day by day such a history is called in Greek ἐφημερίς or a diary a

term of which the Latin interpretation is found in the first book of Sempronius Asellio I have quoted a

passage of some length from that book in order at the same time to show what his opinion is of the

difference between history [res gestas] and chronicle [annales]rdquo Encontrei ainda um comentaacuterio em

francecircs laquo Eacutecrire lrsquohistoire non par anneacutees mais par jour crsquoest ce que les Grecs appellent une

Eacutepheacutemeacuteride mot dont nous trouvons la traduction latine dans le premier livre de Sempronius Asellio

lorsqursquoil eacutetabli ainsi la diffeacuterence entre des annales et une histoire laquo Les annales indiquaient

seulement dit-il le fait et lrsquoanneacutee du fait comme ceux qui eacutecrivaient un journal (diarum) que les

Grecs nomment lsquoEacutepheacutemeacuteridesrsquo raquo DUBIEF Eugeacutene Le Journalisme Bibliothegraveque des Merveilles

Librairie Hachette Paris 1892 p 5 450 GELLIUS 5188 ldquoNobis non modo satis esse video quod factum esset id pronuntiare sed etiam

quo consilio quaque ratione gesta essent demonstrarerdquo Na traduccedilatildeo inglesa de Rolfe ldquoI realize that it

is not enough to make known what has been done but that one should also show with what purpose

and for what reason things were donerdquo 451 ldquoIsso eacute verdade sobre Poliacutebio cuja histoacuteria jaacute foi chamada por outros de uma filosofia cheia de

exemplos E para ser claro isto eacute uma doutrina estruturalrdquo Na traduccedilatildeo inglesa de Michael Forster

ldquoThat is indeed true of Polybius whose history has already been called by others a philosophy full of

examples And to be sure that is a doctrinal structurerdquo HERDER Johann Gottfried Von Older

Critical Forestlet In Philosophical Writings Edited by Michael N Forster Cambridge University

Press Cambridge 2002 p 265

147

Eacute o mesmo sentido de diaacuterio que encontramos como referecircncia em Pro

Quinctio ldquoQuinctius ao sairrdquo escreveu Ciacutecero ldquocomeccedilou a lembrar em que dia ele

deixou Roma em direccedilatildeo agrave Gaacuteliardquo Para isso ldquoele vai ateacute o seu jornal (ad

ephemeridem reuertitur) e encontra o dia de sua saiacuteda 31 de Janeirordquo 452 Cadernos e

registros diaacuterios de financcedilas tambeacutem podiam na Roma republicana ser chamados de

efemeacuterides como vemos em um dos fragmentos da vida de Atticus e em uma das

infames elegias de Oviacutedio453

Durante o principado entretanto as fontes comeccedilam a atribuir outra acepccedilatildeo

mesmo que anaacuteloga agravequele presente nos registros anteriores Na eacutepoca de Nero como

registrou Pliacutenio a medicina de Crinas de Massilia tornou-se popular ldquoCrinas ndash

escreveu o autor da Histoacuteria Natural ndash para parecer precavido e mais religioso juntou

duas artes ele administrava alimentos de acordo com o movimento dos astros

gravados nas efemeacuterides matemaacuteticas observando as horasrdquo 454 Ainda um jornal

diaacuterio natildeo unicamente pessoal e particular mas agora organizado por um nexo

natural455 No ocidente as efemeacuterides comeccedilam a marcar o tempo da natureza e com

os olhos nas estrelas especular sua influecircncia no mundo sublunar unindo por um

punhado de nuacutemeros a razatildeo a um propoacutesito universal456

452 CICERO Pro Quinctio oratio XVIII In NISARD (dir) Ouvres Complegravetes de Ciceacuteron Tome II

Imprimeurs de lrsquoinstitut de France Paris 1869 ldquoDiscedens in memoriam redit Quinctius quo die Roma

in Galliam profectus sit ad ephemeridem reuertitur inuenitur dies profectionis pridie kaL Febr- Nonis

Febrrdquo 453 () non amplius quam terna milia peraeque in singulos menses ex ephemeride eum expensum

sumptui ferre solitum ROLFE John C (Org) CORNELII NEPOTIS Vitae The Lives of Cornelius

Nepos With Notes Exercices and Vocabulary Boston Allyn and bacon 1894 [Att 136] p 129 Em

Oviacutedio XII25 ldquoInter ephemeridas melius tabulasque iacerent in quibus absumptas fleret avarus opesrdquo

Na traduccedilatildeo de Nisard ldquo() elle eacutetait bien plus propre agrave servir drsquoeacutepheacutemeacuterides agrave lrsquoavare qui nrsquoy aurait

qursquoen pleurant noteacute la bregraveche faite agrave son treacutesorrdquo NISARD (dir) Ovide Ouvres complegravetes J-J

Dubochet Eacutediteurs Paris 1838 454 PLINE lrsquoAncien Histoire Naturalle Tome Second Livre XXX Eacutemile Littre (traduction) Paris JJ

Dubochet Eacuteditors 1850 Plin HN 293 Na traduccedilatildeo de Littre ldquoCrinas pour paraicirctre plus preacutecautionneacute

et plus religieux joignait deux arts il donnait les aliments drsquoapregraves le mouvement des astres consigneacute

sur des eacutepheacutemeacuterides matheacutematiques et observait les heuresrdquo No latim ldquocum crinas massiliensis arte

geminata ut cautior religiosiorque ad siderum motus ex ephemeride mathematica cibos dando

horasque observando auctoritate eum praecessitrdquo Grifos meus 455 Caso natildeo unissem o natural (universal) ao particular as efemeacuterides ndash marcando eventos que

ocorrem nos mesmos meses ou dias poreacutem em anos diversos ndash natildeo poderiam ser capazes de distinguir

um ano de outro e consequentemente os fatos em si a soluccedilatildeo romana (no gecircnero das crocircnicas

analiacutesticas) foi no sentido de ritmar o tempo pela alternacircncia dos cocircnsules Ver POMIAN Krzystof

Lrsquoordre du temps Paris Gallimard 1984 p II 456 Sentido paralelo ndash composto pela uniatildeo entre duas artes ndash nutre-se do primeiro (que remete ao dia a

dia humano) e natildeo o anula como percebemos na leitura de certos contemporacircneos de Crinas ldquoYou are

sober when you make your daily appearence in public ()rdquo ldquosic cenas tamquam ephemeridem patri

adprobaturus ()rdquo SENECA Ad Lucilium Epistulae Morales E Capps (org) The Loeb Classical

Library Richard M Gummere (transl) Vol III London William Heinemann 1925 pp 430-431 [Sen

Ep 123-10]

148

A popularidade do topos da influecircncia celeste eacute atestada pela literatura latina

dos primeiros seacuteculos de nossa era Ou em sua mais extensa e famosa saacutetira Juvenal

natildeo fizera pilheacuteria das crenccedilas astroloacutegicas O poeta comeccedila com uma paroacutedia de

Hesiacuteodo e Oviacutedio ilustrando as Idades do Homem a luz da degradaccedilatildeo moral do

tempo dos ceacutesares Na Idade de Ouro natildeo havia necessidade para se temer os ladrotildees

Na Idade de Prata os primeiros adulteacuterios satildeo registrados Na Idade de Ferro todo o

tipo de crime eacute generalizado Sua sexta saacutetira dedicada agraves mulheres eacute na verdade um

esboccedilo misoacutegino e sarcaacutetisco que aponta agrave corrupccedilatildeo dos valores femininos saudando

Corneacutelia Africana filha de Cipiatildeo o jovem como exemplo das virtudes perdidas457

Por sua natureza afetada as mulheres de Juvenal eram propensas a todo o tipo

de ignoracircncia e supersticcedilatildeo Deixavam-se facilmente levar pelos desiacutegnios dos

sacerdotes eunucos de Bellona deusa da guerra ou de Cybele matildee dos deuses

Abriam de grado agraves portas de casa a divindades estrangeiras aos cultistas de Isis aos

sacerdotes judaicos ou armecircnios ainda encontrando tempo para escutar conselhos de

astroacutelogos caldeus Quando dotadas de alguma inteligecircncia tornavam-se ainda mais

perigosas Algumas delas versadas nessas artes orientais chegavam a conquistar um

puacuteblico proacuteprio Ora vestidas agrave moda grega serelepes e libidinosas manuseavam

tabeacutelas de efemeacuterides como quem esfregava pedaccedilos de ambar no proacuteprio corpo

proferindo auguacuterios de aroma perfumado458

Mais tarde jaacute no baixo impeacuterio Ammianus Marcellinus descreveu os

costumes da aristocracia romana do final do seacuteculo IV ldquoAlguns delesrdquo disse o autor

da Rerum Gestarum ldquonatildeo aparecem em puacuteblico nem se banham ou comem sem antes

fazer um exame criacutetico das efemeacuterides e aprender aonde por exemplo o planeta

Mercuacuterio estaacute ou qual grau da constelaccedilatildeo de Cacircncer a lua ocupa em seu curso pelos

ceacuteusrdquo 459 A relaccedilatildeo das elites romanas para com as teorias da influecircncia celeste

457 ldquoSim eu prefiro a ti matildee Corneacuteliardquo ldquoMalo Venusinani quam te Cornelia materrdquo Na traduccedilatildeo de

Jules Lacroix ldquoOui je preacutefegravere agrave toi sublime CorneacutelieUne Veacutenusienne en sa rusticiteacute LACROIX

Jules (trad) Satires de Juveacutenal et Perse Paris Firmin Didot 1846 (JuvenalSat26) 458 ldquoIn cuius manibus ceu pinguia sucina tritas cernis ephemeridasrdquo na leitura de Watson ldquothe woman

carries her almanac tablets around with her thumbing them much as women rubbed lumps of amber

(sucina) which they bore on their person to produce a fragrant scentrdquo WATSON Lindsay (org)

Juvenal Satire VI Cambridge Greek and Latin Classics Cambridge University Press 2014 p 254 459 Rerum Gestarum 28424 ldquoMulti apud eos negantes esse superas potestates in caelo nec in

publicum prodeunt nec prandent nec lavari arbitrantur se cautius posse antequam ephemeride

scrupulose sciscitata didicerint ubi sit verbi gratia signum Mercurii vel quotam Cancri sideris partem

polum discurrens obtineat lunardquo Na traduccedilatildeo inglesa de Rolfe ldquoMany of them who deny that there are

higher powers in heaven neither appear in public nor eat a meal nor think they can with due caution

take a bath until they have critically examined the calendar and learned where for example the planet

Mercury is or what degree of the constellation of the Crab the moon occupies in its course through the

149

parece ter sido utilitaacuteria senatildeo mesmo instrumental passando de bonae artes quando

mantidas na seguranccedila do palaacutecio ou domus patriarcal a externae supertitiones ao

serem professadas em ambientes externos ou rivais de algum ciacuterculo de poder Dion

Caacutessio mais de uma centena de anos antes de Marcellinus jaacute havia mesmo reportado

a apropriaccedilatildeo que os imperadores fizeram dos saberes celestes Na Histoacuteria Romana

Seacuteptimo Severo realiza julgamentos em uma sala cujos limites superiores eram

adornados pelas imagens dos astros sob os quais havia nascido com a notaacutevel

exceccedilatildeo devemos lembrar da ldquoporccedilatildeo do ceacuteu no qual como expressavam os

astroacutelogos lsquoobservava a horarsquo em que ele viu a luz pela primeira vezrdquo 460 A

informaccedilatildeo a respeito de sua efemeacuteride primordial era mantida como segredo de

Estado uma vez que seu potencial ndash diriacuteamos noacutes cronosoacutefico ndash autorizava as

externas supertitiones a realizar prognoacutesticos a respeito da longevidade de sua vida e

de seu principado461 ldquoApenas os astrocircnomos e os astroacutelogosrdquo escreveria Krzystof

Pomian ldquotinham necessidade de uma grande precisatildeo e apenas eles utilizavam

instrumentos que lhes permitiam medir mesmo horas e minutosrdquo 462

heavensrdquo In ROLFE John c Ammianus Marcellinus With An English Translation Cambridge

Cambridge Mass Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1935-1940 460 Dion Caacutessio Histoacuteria Romana LXVII 111 Na traduccedilatildeo inglesa de Cary ldquoHe knew this chiefly

from the stars under which he had been born for he had caused them to be painted on the ceilings of

the rooms in the palace where he was wont to hold court so that they were visible to all with the

exception of that portion of the sky which as astrologers express it lsquoobserved the hourrsquo when he first

saw the light for this portion he had not depicted in the same way in both roomsrdquo HENDERSON

Jeffrey (Ed) Dio Cassius Roman History Volume IX Books 71- LCL119 With an english

translation by Earnet Cary on the basis of the version of Herbert Baldwin Foster Harvard University

Press Cambridge Massachusetts London England 2001 [1927] p 263 Na traduccedilatildeo francesa de Gros

(que curiosamente marca o livro LXVI como referecircncia) ldquoIl le savait surtout dapregraves la connaissance

des astres sous lesquels il eacutetait neacute (il les avait fait peindre sur les plafonds des salles de son palais ougrave il

rendait la justice en sorte quexcepteacute le moment preacutecis qui se rapportait agrave lheure ougrave il eacutetait venu au

jour agrave son horoscope comme on dit tout le monde pouvait les voir car ce moment neacutetait pas figureacute de

mecircme de chaque cocircteacute)rdquo GROS E (dir) Histoire Romaine de Dion Cassius Tome Neuviegraveme Paris

Virmin Didot 1867 461 Sobre as estrateacutegias de consolidaccedilatildeo da dinastia severa ver GONCcedilALVES Ana Teresa Marques

Propaganda no Periacuteodo Severiano A Construccedilatildeo da Imagem Imperial Tese de Doutorado

Universidade de Satildeo Paulo 2002 Sobre o papel das previsotildees astroloacutegico-matemaacuteticas na legitimaccedilatildeo

imperial severiana ver ZERUTUZA Hugo Andreacutes BOTALLA Horacio Centros e Maacutergenes

Simboacutelicos del Imperio Romano Buenos Aires UBA 1998 pp 199-201 e tambeacutem o artigo que

demonstra as caracteriacutesticas estoicas do poema de Manilio GONCcedilALVES Ana Teresa Marques

Astrologia e poder o caso de Marcus Manilius XXIV Simpoacutesio Nacional de Histoacuteria 2007 Textos

que tomo por guia 462 ldquo() seuls les astronomes et les astrologues avaient besoin d`une grande exactitude et seuls ils

utilisaient donc les instruments qui leur permettaient de mesurer les heures et les minutesldquo POMIAN

1984 p IV Logo a seguir Pomian apresenta uma primeira definiccedilatildeo de seu conceito de cronosofia ldquoAgrave

un tel questionnement de l`avenir qui preacutetend aboutir agrave des reacuteponses permettant de s`en repreacutesenter de

faccedilon veacuteridique sinon les menues particulariteacutes du moins les grandes lignes je donnerai le nom de

chronosophierdquo idem p V-VI No capiacutetulo XIV do primeiro livro da Repuacuteblica Ciacutecero descreve um

mecanismo em bronze capaz de simular o movimento das esferas celestes e prever eclipses com

precisatildeo ldquoAssim que Gallus colocou a esfera em movimentordquo relatou Ciacutecero ldquovimos a lua suceder ao

150

As referecircncias zodiacais entre os altos ciacuterculos de poder da repuacuteblica romana

poderiam ser recuadas de fato ao primeiro principado Marcus Manilius dedicou a

Otaacutevio um longo poema didaacutetico-astroloacutegico dotado de um claro vocabulaacuterio estoico

ldquoEu cantareirdquo declamou o poeta ao ldquomonarca silencioso da natureza () pois um

uacutenico sopro (spiritus) reside em todas as suas partes () mestre controlador de tudo

() dirige os seres da Terra pelo curso das estrelasrdquo 463 Leis secretas conhecimentos

divinos sobre os astros simpatia das esferas e da Terra definindo as vicissitudes

humanas por meio de uma uacutenica e fatal vontade Otaacutevio encarnando o genius

ordenador chegaria a assumir a imagem do carneiro estampaacute-la em suas moedas

fazendo alusatildeo ao signo da casa de Capricoacuternio464 A astrologia de Maniacutelio assim

apropriada foi em essecircncia zodiacal tendo por base referecircncias mitoloacutegicas por

exerciacutecio a magia e como ponte de ligaccedilatildeo com o divino (religio) certo

conhecimento revelado465

sol no horizonte terrestre como ela o sucede todos os dias no ceu vimos consequentemente o sol

desparecer no ceu e pouco agrave pouco a lua mergulhou na sombra da terra no momento mesmo em que o

sol no canto opostordquo ldquoHanc sphaeram Gallus quum moveret fiebat ut soli luna todidem

conversionibus in aeumlre illo quot diebus in ipso caelo succederet ex quo et in [caelo] sphaera solis fieret

eadem illa defectio et incideret luna tum in eam metam quae esset umbra terrae quum sol e

regionerdquo Na traduccedilatildeo de Nisard ldquoLorsque Gallus mettait la sphegravere en mouvement on voyait agrave

chaque tour la lune succeacuteder au soleil dans lrsquohorizon terrestre comme elle lui succegravede tous les jours

dans le ciel on voyait par conseacutequent le soleil disparaicirctre comme dans le ciel et peu agrave peu la lune

venir se plonger dans lrsquoombre de la terre au moment mecircme ougrave le soleil du cocircteacute opposeacuterdquo CICEacuteRON

Ouvres Complegravetes Nisard (trad) Tome Quatriegraveme Paris JJ Dubochet 1841 p 286-287 Esse

invento segundo Ciacutecero teria sido trazido a Roma por Marcus Claudius Marcellus conquistador de

Siracusa e sua autoria atribuiacuteda a Arquimedes partindo dos trabalhos de Tales de Miletos e Eudoxe de

Cnide (disciacutepulo de Platatildeo) A descriccedilatildeo do mecanismo guarda semelhanccedilas com os fragmentos da

maacutequina em bronze encontrada na ilha de Anticiacutetera em 1901 e exposta no Museu Nacional de

Arqueologia de Atenas 463 Livro II vers 60-73 ldquonamque canam tacita naturae mente potentem () cum spiritus unus per

cunctas habitet partes atque irriget orbem () tota magistro ac tantum mundi () erraretque vagus

mundus standove rigeret nec sua dispositos servarent sidera cursus noxque alterna diem fugeret

rursumque fugaret ()rdquo MANILIUS Astronomica GOOLD (ed) Cambridge Harvard University

Press 1977 464 Vide Portrait of Octavian Capricorn kerykeion shield dolphin trident altar and the hand holding

a shipboard decoration Sardonyx Twenties of the 1st century BC 25 times 24 cm Inv No Ж 263

Saint-Petersburg The State Hermitage Museum Para uma discussatildeo mais extensa ndash incluindo uma

revisatildeo bibliograacutefica ndash sobre os usos da imagem de Capricoacuternio no contexto da guerra civil romana ver

BARTON Tamsyn S Power and Knowledge Astrology Physiognomics and Medicine under the

Roman Empire Ann Arbor The University of Michigan Press 1994 [2002] Em especial a parte

Astrology Divination and the Fall of the Republic Cap 1 Star Wars in the Greco-Roman World

Principalmente pp 40-42 Cf GOUREVITCH D Tamsyn S BARTON Power and Knowledge In

Lantiquiteacute classique Tome 73 2004 pp 480-481 465 Cicero em seu tratado sobre De divinatione explica as caracteriacutesticas das crenccedilas e prognoacutesticos

(Prognostica) estoicos ldquode iniacutecio [de acordo com a doutrina dos estoicos] o universo foi criado de tal

forma que certos resultados seriam precedidos por alguns sinais que satildeo dados por vezes pelas

entranhas e por paacutessaros algumas vezes por relacircmpagos por portentos e por estrelas algumas vezes

por sonhos () (I III 118) ldquoQuando antes do nascer do Sol a Lua foi eclipsada no signo de Leatildeo isso

151

Seriam os saberes ocultos e as praacuteticas maacutegicas o uacutenico caminho para se

desenvolver uma teoria da influecircncia celeste No seacuteculo II um estudioso da biblioteca

de Alexandria vai propor outra abordagem Claacuteudio Ptolomeu (circa 100-178 AD)

conhecido entre noacutes como astrocircnomo antigo e um dos pais da cartografia propocircs uma

sistematizaccedilatildeo do modelo geocecircntrico na sua obra Almagesto Tambeacutem uma Syntaxis

mathematica o texto oferecia a descriccedilatildeo numeacuterica do movimento das esferas tendo

a Terra eacute claro como centro do universo Tratava-se de uma compilaccedilatildeo bastante

precisa da observaccedilatildeo milenar caldeia egiacutepcia e grega do movimento estelar Em

outro trabalho ndash o chamado ldquoLivro Quadruplordquo ndash Ptolomeu expunha os princiacutepios

daquilo que acreditava ser a aplicaccedilatildeo desse conhecimento ldquoDos meacutetodos de

previsatildeo astronocircmicardquo escreveu Ptolomeu logo no iniacutecio do seu Tetrabiblos ldquodois

satildeo mais importantes e vaacutelidosrdquo O primeiro e segundo o proacuteprio autor mais seguro

eacute aquele pelo qual ldquoapreendemos os aspectos dos movimentos do Sol da Lua e das

estrelas em relaccedilatildeo uns aos outros e a Terra do modo em que eles ocorrem de tempo

em tempordquo O segundo seria o modo que opera ldquoa partir do caraacuteter natural desses

aspectosrdquo investigando ldquoas mudanccedilas que elas trazem naquilo que os cercamrdquo 466

De linguagem seca e desprovida de muitos dos floreios da retoacuterica claacutessica o

primeiro livro do Tetrabiblos disponibilizava a seus leitores uma condensada

reformulaccedilatildeo de conceitos basais a respeito das estrelas errantes e fixas dos signos e

suas relaccedilotildees com os planetas O segundo livro tratava da astrologia geograacutefica da

metereologia e de eventos gerais No terceiro temos uma apreciaccedilatildeo dos horoscopos

individuais para jaacute no quarto lermos uma anaacutelise mais detelhada de suas

especificaccedilotildees Como comentou Ornella Faracovi ldquoo tratado era composto de uma

revisatildeo da tradiccedilatildeo astroloacutegica consolidando seus fundamentos geomeacutetricos e

astronocircmicosrdquo ainda pouco evidentes em escritores populares como Manilius A

autora natildeo deixou de ressaltar que no Livro Quadruplo Ptolomeu conectava-se a

temas da filosofia natural peripateacutetica fechando agraves portas da razatildeo agraves accedilotildees

demoniacuteacas ou supernaturais ldquoOs planetas eram tomados como entidades fiacutesicasrdquo

indicou que Daacuterio e os persas seriam vencidos na batalha pelos macedocircnios dirigidos por Alexandre (I

IV 120-1) NISARD op cit Tome IV pp 184-186 466 ldquoOf the means of prediction through astronomy O Syrus two are the most important and valid

One which is first both in order and in effectiveness is that whereby we apprehend the aspects of the

movement of sun moon and stars in relation to each other and to earth as they occur from time to

time the second is that in which by means of natural character of these aspects themselves we

investigate the changes which they bring about in that which they surroundrdquo Sendo o original em grego

alexandrino utilizei a traduccedilatildeo inglesa de ROBBINS FE Ptolomy Tetrabiblos Loeb Classical

Library No 435 1940 p 3

152

completou Faracovi ldquocujos movimentos e relaccedilotildees de reciprocidade eram dispostos

como efeitos naturais nas mateacuterias do mundo sublunarrdquo Egiacutepcio e alexandrino

Ptolomeu estava familizariado com o corpus hermeacutetico embora soacute lhe rendesse

tributos quando via neles atribuiccedilotildees medicinais em partes bastante especiacuteficas da

obra Quanto ao tema estoico a respeito da infalibilidade das previsotildees tatildeo criticado

por Ciacutecero e Sexto Empiacuterico era posto completamente de lado em nome da

dificuldade imposta pelas causas acidentais467

Em uma eacutepoca na qual astrologia e astronomia eram termos intercambiaacuteveis

Claudio Ptolomeu parecia igualmente expor uma primeira distinccedilatildeo entre aquilo que

em um regime de verdade posterior marcaraacute os limites de duas praacuteticas

essencialmente diversas Antes uma descriccedilatildeo matemaacutetica dos movimentos celestes

com o Almagesto Depois no Tetrabiblos chegamos ao tratado que examina o tipo de

influecircncia entendida sempre por meios fiacutesicos que o deslocamento das esferas vai

exercer no mundo sublunar ldquoEacute muito evidenterdquo declarou o saacutebio de Alexandria ldquoque

a maioria dos fatos de natureza geral retiram suas causas dos ceacuteusrdquo 468 Como na fiacutesica

de Aristoacuteteles filoacutesofo citado logo no prefaacutecio do Almagesto Ptolomeu natildeo aceitaria

causas remotas realizadas a distacircncia e sem contato efetivo Um quinto elemento

contrastando com os quatro usuais ndash terra aacutegua ar e fogo ndash se fazia assim necessaacuterio

ldquoum certo poder emanando da eterna e eteacuteria substacircnciardquo estava disperso da Terra aos

ceacuteus formando o elo fiacutesico capaz de transformar a influecircncia celeste em uma

evidecircncia registravel por exemplos naturais469

Como haacute seacuteculos faziam os egiacutepcios ndash unindo a medicina com as previsotildees

astroloacutegicas ndash Ptolomeu procurava sistematizar um meacutetodo prognoacutestico que reunisse

condiccedilotildees universais a casos particulares em virtude de um ambiente determinado

pela ordem da natureza470 Tanto a abordagem quanto o vocabulaacuterio ptolomaico ao

467 FARACOVI Ornella The Return to Ptolomy In DOOLEY Brandan (org) A companion to

astrology in the Renaissance Introduction Brill 2014 p 90 468 () it is so evident that most events of a general nature draw their causes from the enveloping

heavensrdquo (Tetrabiblos 11) Robbins 1940 p 6 469 Tetrabiblos 12 Robbins 1940 p 7 470 Tetrabiblos 13 Robbins 1940 p 33 Saber cronosoacutefico os prognoacutesticos estritamente astronocircmicos

a respeito do movimento das estrelas (nas taacutebuas de efemeacuterides do Almagesto) jaacute buscavam

transcendendo o presente em direccedilatildeo ao futuro apreender toda uma trajetoacuteria ldquode lrsquohistoire du devenir

ou du tempsrdquo projeto coerentemente concluiacutedo pela substituiccedilatildeo (atraveacutes do meacutetodo do Tetrabiblos) de

um conhecimento ldquoneacutecessairement incomplegravete par un savoir acheveacute suscetible de metre en eacutevidence la

signification ultime de tout ce qui aura eacuteteacute advenurdquo ldquoTelles sont la voyancerdquo explica Pomian

ldquocapaciteacute de voir avec les yeaux de l`acircme les choses cacheacuteesrdquo ldquola divination savoir permettant une

lecture des eacuteveacutenements futurs agrave partir des signesrdquo e finalmente ldquol`interpreacutetation des conjonctions

astrales afin d`eacutetablir les prognostications et les horoscopesrdquo POMIAN 1984 p V-VI Grifos meus

153

passo em que buscam claramente afastar-se do fatalismo estoico que ignorava as

qualidades acidentais aproximam-no do repertoacuterio peripateacutetico471 ldquoEacute verdade que o

movimento dos corpos celestesrdquo anotou ldquoeacute eternamente realizado em acordo com o

divino e imutaacutevel destinordquo ldquoenquanto que as coisas terrenasrdquo por outro lado seriam

ldquosujeitas ao destino natural e mutaacutevel e tomando suas causas primeiras do

firmamento satildeo assim governadas pelo acaso e pela sequecircncia naturalrdquo 472

ldquoA natureza eacute sempre uma causa de ordemrdquo 473 O argumento desenvolvido

pela fiacutesica de Aristoacuteteles foi certamente original contrastando na tradiccedilatildeo claacutessica

com seu predecessor direto Platatildeo que separava a forma do devir imaginava a

mateacuteria como accedilatildeo de um agente extriacutenseco alma ou demiurgo474 Para o filoacutesofo de

Estagira pelo contraacuterio a ordem da natureza possui uma loacutegica imanente sendo

indissociaacutevel de uma teleologia da natureza475 Na Metafiacutesica IX ele jaacute comentava

que a relaccedilatildeo entre potecircncia e ato eacute constituidora do ser e do vir a ser No De Caelo

cada elemento aparece tendo como caracteriacutestica uma potecircncia e na ausecircncia de

qualquer obstaacuteculo nada poderia impedir que ela se realizasse em ato Ato que na

definiccedilatildeo mesma de natureza eacute ligado intimamente ao movimento movimento que se

daacute entre uma potecircncia e a ocupaccedilatildeo do espaccedilo relativo ao ato ou seja tendo como

orientaccedilatildeo seu lugar natural476

Devo fazer notar que em A Ordem do Tempo Pomian natildeo refer-se ao trabalho de Ptolomeu mas

apresenta um argumento geral em relaccedilatildeo agrave divinaccedilatildeo (astroloacutegica ou aruacutespica) e aos prognoacutesticos

antigos 471 Isso ocorre especialmente quando Ptolomeu procura responder agraves criacuteticas agrave astrologia realizadas por

Cicero (De Divinatione I 2) centradas na natildeo factibilidade dos prognoacutesticos zoodiacais Por

qualidades acidentais Ptolomeu entende elementos como nacionalidade pais e criaccedilatildeo Ver

Tetrabiblos 129 472 Tetrabiblos 1312 ROBBINS 1940 p 23 ldquoRather it is true that the movement of the heavenly

bodies to be sure is eternally performed in accordance with divine unchangeable destiny while the

change of earthly things is subject to a natural and mutable fate and in drawing its first causes from

above it is governed by chance and natural sequencerdquo 473 Fiacutesica VIII 1 252a12 17 In ARISTOTE Physique Texte eacutetabli et traduit par Henri Carteron Vol

I 2ed Paris Budeacute 1956 474 Sobre a ordem da natureza na fiacutesica de Aristoacuteteles sigo LANG Helen S The Order of Nature in

Aristotlersquos Physics Place and the elements Cambridge University Press 1998 O estudo parte de uma

rejeiccedilatildeo da visatildeo anacrocircnica (projetada por um meacutetodo natildeo contextual) de que a fiacutesica aristoteacutelica

ldquoadiantariardquo certas concepccedilotildees modernas tornando-se algo como proto-mecacircnica O objetivo de Helen

Lang eacute ldquocompreender a concepccedilatildeo de natureza como sempre uma causa de ordem e a definiccedilatildeo dos

problemas cujas soluccedilotildees exibem essa pressuposiccedilatildeordquo p 5 475 ldquoIndeed there is no difference between the order of nature and the teleology of nature Aristotlersquos

teleology is often identified with his account of ldquofinal causesrdquo as if apart from them the rest of his

physics (or philosophy more generally) were not teleological Such an account is anoter version of the

view that Aristotlersquos philosophy is a proto-mechanistic view with teleology in the guise of final

causes added on But such a view is more than misleading it is falserdquo LANG 1998 274 476 LANG 1998 7-8 Para a autora ldquoAristotle presents a cosmos with the earth stationary at its center

the stars going around eternally and each element ndash earth air fire and water ndash is moved always toward

its natural place Because it is like form place renders this cosmos determinate in respect of direction

154

Se em Platatildeo como num gentil repouso de suas asas o demiurgo impunha a

forma na mateacuteria e na alma em Aristoacuteteles os ceacuteus governam pelo divino e o corpo

deseja a alma como sua primeira enteleacutequia477 A natureza possui o princiacutepio do

movimento e os ceacuteus satildeo o grande modelo para toda accedilatildeo elementar os corpos

celestes estatildeo em contiacutenuo deslocamento rumo a seus lugares naturais em uma danccedila

que eacute a proacutepria relaccedilatildeo entre potecircncia e ato movimento circular perfeito cujas

revoluccedilotildees alguns seacuteculos mais tarde vatildeo ser pontuadas matematicamente nas

efemeacuterides ptolomaicas

Os ciclos tambeacutem poderiam ser entendidos na fiacutesica de Aristoacuteteles como o

espaccedilo entre a vida e a morte entre a luz e a escuridatildeo entre o frio e o calor entre a

Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo Nesse breve tratado ndash situado entre o De Caelo e a

Meteorologica ndash o filoacutesofo faz um exame das ldquocondiccedilotildees e das causas fiacutesicas da

produccedilatildeo e da destruiccedilatildeo das coisas e dos seres individuaisrdquo478 Problema antigo jaacute

havia sido tratado por reflexotildees anteriores como por exemplo aquela desenvolvida

por Empeacutedocles Para Aristoacuteteles no entanto nenhum dos esforccedilos anteriores foi

capaz de sistematizar uma teoria capaz de dar conta tanto da formaccedilatildeo e estrutura do

quadro coacutesmico geral quanto das coisas e seres que o habitam Unir as dimensotildees

macroscoacutepicas e microscoacutepicas do universo mesmo Platatildeo quando direcionou seus

esforccedilos a essa tarefa no Timeu (29b-d) natildeo deixou de lanccedilar matildeo de contos

mitoloacutegicos (eikos muthos) Mas no De geratione et corruptione coisas e seres que

coexistem na esfera sublunar reclamam explicaccedilotildees de ordem fiacutesica da mesma

maneira que o fazem os fenocircmenos celestes Ainda uma investigaccedilatildeo sobre as causas

agora dispostas em um elo comum entre o macro e o micro da archeacute e do telos das

coisas e dos seres

Eacute ao capiacutetulo X do segundo livro que os comentadores costumam remeter

quando buscam respostas para a articulaccedilatildeo ordenadora entre o mundo sublunar e o

cosmos celestial Eacute nele que Aristoacuteteles argumenta que os elementos satildeo criados uns

dos outros em uma geraccedilatildeo que forma um ciclo eterno e contiacutenuo o qual emula a

locomoccedilatildeo circular Eacute tambeacutem nele que o filoacutesofo explica a dinacircmica do gerador

causa de toda transformaccedilatildeo sublunar baseada em ocorrecircncias regulares Na Fiacutesica

ie up down left right front and back and all things within the world are determined in respect of

placerdquo Idem p 9 477 LANG 1998 275 478 MUGLER Charles Introduction In ARISTOTE De la Geacuteneacuteration et de la Corruption Paris

Socieacuteteacute drsquoeacutedition 1966 p VIII

155

(VIII7-9) jaacute tiacutenhamos a demonstraccedilatildeo de que o movimento de revoluccedilatildeo celeste era

eterno e anterior agrave geraccedilatildeo pois seguindo sua loacutegica uma coisa que estaacute para ser natildeo

pode existir ainda Corrupccedilatildeo e geraccedilatildeo sendo contraacuterios natildeo deveriam tambeacutem se

dar ao mesmo tempo como toda investigaccedilatildeo antiga o sistema aristoteacutelico eacute uma

busca por causas O gerador faz esse papel Ele eacute a causa fiacutesica da loacutegica de

transformaccedilatildeo contiacutenua tanto das coisas quanto dos seres

Os fenocircmenos sensiacuteveis satildeo tambeacutem claramente

conformes ao nosso raciociacutenio Noacutes observamos que

quando o sol [gerador] se aproxima temos a geraccedilatildeo e

quando ele se afasta temos a destruiccedilatildeo de modo que

essas duas fases possuem a mesma duraccedilatildeo uma vez

que o tempo da destruiccedilatildeo natural eacute o igual ao da

geraccedilatildeo479

Na concepccedilatildeo aristoteacutelica do cosmos o Sol orbitando ao redor da Terra

aproximava-se da esfera sublunar nos meses quentes afastando-se dela nos meses de

outono e de inverno O astro rei eacute dessa forma a causa das transformaccedilotildees ocorridas

entre noacutes do surgimento das coisas e dos seres a sua corrupccedilatildeo e morte O exemplo

do gerador aponta para o papel solar mas o argumento bastante geral foi extrapolado

por diversos autores ao longo da antiguidade tardia e do medievo Natildeo era apenas o

Sol afinal de contas que na perspectiva geocecircntrica orbitava e influenciava nossa

esfera a lua e as estrelas errantes tambeacutem o faziam Aleacutem de Ptolomeu que aplicou o

argumento teoacuterico aristoteacutelico da influecircncia (no caso do Sol geradora e corruptora)

aos demais corpos celestes poderiacuteamos ainda lembrar de Averroacuteis480 Em seu

comentaacuterio sobre a o tratado de Aristoacuteteles o filoacutesofo cordobenho reafirmava que a

ldquocausa eficiente para a continuidade da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeordquo seria o ldquomovimento

primaacuterio contiacutenuordquo Embora ele reconhecesse que essa relaccedilatildeo de influecircncia fosse

ldquomais aparente no caso do Solrdquo (pelo seu papel de gerador) ela natildeo era limitada a ele

mas tambeacutem se fazia sentir igualmente nos casos ldquoda Lua e de todos os planetasrdquo481

479 ARISTOTE 1966 p 68 Ross em sua traduccedilatildeo inglesa remete ao termo ldquogeradorrdquo no que pese agrave

tradiccedilatildeo de comentadores sempre ter associado esse termo ao Sol (que de fato eacute traduccedilatildeo recorrente na

liacutengua francesa) Ver ARISTOTLE The works of Aristotle translated into English ROSS WD (ed)

Oxford Claredon 1931 Livro II X 480 Ptolomeu discute o problema da influecircncia do Sol e dos planetas em termos jaacute similares aos de

Averroacuteis no capiacutetulo 4 do primeiro livro do Tetrabiblos Ver Tetrabiblos IVI ROBBINS 1940 p

117-121 481 KURLAND S (ed) Averroes on Aristotlesrsquos De generatione et corruptione Middle commentary

and Epitome Translated from the original arabic and the hebrew and latin versions Cambridge MA

The Medieval Academy of America 1958 Apud MARTINS Roberto de Andrade A Influecircncia de

156

No ocidente como vimos jaacute durante o principado as efemeacuterides uniam

exemplos naturais a casos particulares relacionando passado e presente ainda sem se

esquivarem agrave tarefa de perscrutar bases matemaacuteticas para o estabelecimento de

prognoacutesticos racionais De uma modalidade do gecircnero histoacuterico (res gestas) baseada

na narraccedilatildeo dia-a-dia dos feitos dos homens elas tambeacutem comeccedilaram a remeter agraves

gestas estelares ainda assim descrevendo seus movimentos diaacuterios Em Ptolomeu

entretanto natildeo se falava mais em simpatias como entre certos estoicos ou mesmo

alguns neoplatocircnicos mas de influecircncia pelo contato elementar (via eacuteter celestial) e

pelo jogo de contraacuterios que ao menos desde Empeacutedocles fazia parte do repertoacuterio

claacutessico (calor e frio umido e seco) Ao serem assim utilizadas pela filosofia natural

elas tambeacutem edificavam uma ponte racionalizada ndash dentro eacute claro dos criteacuterios de

um regime de evidecircncia antigo ndash para a filosofia moral482 O estudo descritivo da

posiccedilatildeo dos planetas possibilitava o estabelecimento das bases tabulares de uma

praacutetica se assim pudermos dizer cronosoacutefica que lia na regularidade do movimento

das estrelas os meios de prever efeitos futuros Tratava-se de uma teacutecnica que operava

a partir de uma relaccedilatildeo entre ordem do tempo e ordem da natureza na qual a primeira

dependia em uacuteltima instacircncia da essecircncia imutaacutevel e do sentido teleoloacutegico da

uacuteltima

32 Primeiras experiecircncias cristatildes a ordem do tempo comemorada

A relaccedilatildeo entre as teacutecnicas cronosoacuteficas de prediccedilatildeo e as experiecircncias do

tempo tornaram-se uma evidecircncia ao longo do periacuteodo heleniacutestico e da antiguidade

tardia Mas em Santo Agostinho no seacuteculo V essa jaacute era uma associaccedilatildeo indesejaacutevel

Para o bispo de Hipona a histoacuteria deveria limitar-se a narrar o que foi Nisso ela se

diferenciava dos livros de adivinhos e aruacutespices uma vez que tais escritos ensinavam

o que deveria ser feito ou observado aparentando seu gecircnero agrave ousadia de um

conselheiro Caberia a histoacuteria pelo contraacuterio a tarefa inversa a qual definiria sua

utilidade (de historiae utilitate) credenciar-se pela fidelidade de um narrador Afinal

Aristoacuteteles na obra astroloacutegica de Ptolomeu (O Tetrabiblos) TransFormAccedilatildeo Satildeo Paulo 18 1995 p

70 Texto que como o tiacutetulo indica esforccedila-se por demonstrar as caracteriacutesticas aristoteacutelicas do tratado

de Claudio Ptolomeu 482 Apoacutes expor ao longo do livro I uma defesa dos meacutetodos da astrologia e suas caracteriacutesticas gerais

Ptolomeu comeccedila no livro II a descrever os efeitos da influecircncia dos astros celestes no clima e nas

caracteriacutesticas fiacutesicas das populaccedilotildees sublunares Jaacute no livro III (13-14) ele discute respectivamente a

influecircncia dos planetas nas qualidades da alma (determinadas por Mercuacuterio e pela Lua assim como

pelos planetas que se relacionam a ela) e nas doenccedilas que a afligem

157

ela natildeo poderia ter como linha mestra as instituiccedilotildees humanas nem a intenccedilatildeo de

retorno agravequilo que jaacute passou uma vez que o passado ldquopertence a ordem do tempo

cujo fundador e administrador eacute Deusrdquo483

O conhecimento das estrelas ndash que na tradiccedilatildeo astronocircmica claacutessica era

relacionado como vimos agrave ordem da natureza ndash na Doutrina Cristatilde tambeacutem natildeo

aparecia enquanto ldquouma questatildeo de narraccedilatildeo mas de descriccedilatildeordquo Mesmo assim ela

envolve como admite o pai da Igreja ldquoalgo como uma narrativa do passadordquo 484

Pode-se eacute verdade voltar de uma posiccedilatildeo presente e traccedilar o itineraacuterio de um astro

ateacute seus movimentos anteriores Da mesma forma conhecer as estrelas tambeacutem torna

possiacutevel indicar algumas antecipaccedilotildees (futurorum regulares coniecturas) ndash natildeo feitas

a ldquomaneira absurda dos astroacutelogosrdquo (genethliaci) que buscavam com isso prever

accedilotildees e fatos humanos ndash mas tatildeo somente a respeito do translado dos proacuteprios corpos

celestes Entender a danccedila dos orbes havia deixado de ser uacutetil para julgar

compreender ou prognosticar quaisquer dimensotildees temporais relativas ao mundo

sublunar Com a providecircncia assumindo as reacutedeas da ordem do tempo restava aos

cristatildeos orientarem-se pela palavra divina E muito pouco a respeito das estrelas era

comemorado na Biacuteblia (quorum perpauca Scriptura commemorat) Aleacutem da lua

483 AUGUSTINI S Aureii De Doctrina Christiana Libri Quatuor et Enchiridion ad Laurentium

Editio Stereotypa Lipsiae Sumtibus et typis caroli tauchnitii 1838 pp Livro II Cap XXVIII [2844]

pp 64-65 ldquoNarratione autem historica cum praeterita etiam hominum instituta narrantur non inter

humana instituta ipsa historia numeranda est quia iam quae transierunt nec infecta fieri possunt in

ordine temporum habenda sunt quorum est conditor et administrator Deus Aliud est enim facta

narrare aliud docere facienda Historia facta narrat fideliter atque utiliter libri autem aruspicum et

quaeque similes litterae facienda vel observanda intendunt docere monitoris audacia non indicis fiderdquo

Grifos meus Na sua leitura da De Doctrina Christiana Odilo Engels escreveu que ldquoEntre as doctrinae

dos pagatildeos Agostinho distingue duas institutiones as que decorrem da praacutetica humana e que por isso

satildeo dispensaacuteveis ainda que uacuteteis e aquelas que o Criador institui a favor do homem e que por

consequecircncia natildeo satildeo cambiaacuteveis Nesse contexto eacute verdade que os acontecimentos histoacutericos se

devem a accedilotildees humanas mas se concretizam dentro de uma dada ldquo(ordo) temporum quorum est

conditor et administrator Deusrdquo Ver ENGELS Odilo Compreensatildeo do conceito na Idade Meacutedia In

KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 81 484Na Doutrina Cristatilde em capiacutetulos imediatamente sucessivos Agostinho traz a discussatildeo da histoacuteria

da adivinhaccedilatildeo e da astrologia [2844 a 2946] Eacute possiacutevel que ele estivesse respondendo a uma

tradiccedilatildeo que buscava analogias entre a ordem do tempo e o cosmos (ou agrave ordem da natureza) Esse tipo

de relaccedilatildeo natildeo era incomum e poderia ser recuada no ocidente ao menos ateacute o Timeu de Platatildeo senatildeo

mesmo ateacute a Palavra de Anaximandro Jaacute em Posidocircnio existe uma relaccedilatildeo expliacutecita com a escrita da

histoacuteria Para o estoico a tarefa do historiador deveria ser a de ldquoenquadrar toda a humanidade naquilo

que tange a sua parentela bem como a seu distanciamento espacial e temporal sob a uacutenica ordem

representada transformando-a por assim dizer num oacutergatildeo da providecircncia divina Pois da mesma

forma que ela unifica a ordem das estrelas no ceacuteu e as naturezas humanas numa analogia comum

fazendo-as circular numa mesma trajetoacuteria por toda a eternidade atribuindo a cada um aquilo que o

destino lhe reserva aqueles que registram os acontecimentos comuns do mundo como se fossem uma

uacutenica cidade transforam sua representaccedilatildeo numa justificativa unitaacuteria e num ato de administraccedilatildeo

comum do acontecidordquo APUD MEIER Christian Antiguidade In KOSELLECK Reinhart (org) O

Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 56 Grifos meus

158

marcar o aniversaacuterio da paixatildeo quase nada mencionava-se Era o que bastava Ir aleacutem

poderia incitar o ldquopernicioso errordquo das supersticcedilotildees485

Agostinho natildeo era uma voz isolada entre os pensadores cristatildeos da antiguidade

tardia Em obra endereccedilada ao imperador Constantino do qual chegou a ser

conselheiro e segundo a tradiccedilatildeo convencera-lhe a mandar suas legiotildees lutarem a

batalha da ponte Miacutelvia tendo um cristograma pintado em seus escudos Lactacircncio

criticava os adivinhos e os fazedores de horoacutescopos486 No capiacutetulo XVII do segundo

livro de suas Instituiccedilotildees Divinas o ldquoCiacutecero cristatildeordquo dos humanistas eruditos natildeo

apenas afirmava que a ldquoastrologia os auguacuterios os oraacuteculos a necromancia a magiardquo

enfim todo esse repertoacuterio de conhecimentos ocultos pagatildeos eram supersticcedilotildees

Lactacircncio ia aleacutem defendendo que tais procedimentos eram obras incitadas pelo

democircnio487 Viver em uma histoacuteria sacra significaria de igual maneira que ao fieacutel

caberia tatildeo somente comemorar em culto puacuteblico certas datas a partir da leitura ritual

das escrituras enquanto ele espera indefinidamente o retorno do salvador no sabaacute do

seacutetimo dia como explicou-nos Agostinho em outra oportunidade488

485 Ibid Livro II Cap XXIX [2946] Siderum autem cognoscendorum non narratio sed demonstratio

est quorum perpauca Scriptura commemorat Sicut autem plurimis notus est lunae cursus qui etiam ad

passionem Domini anniversarie celebrandam sollemniter adhibetur () Quae per se ipsa cognitio

quamquam superstitione non alliget non multum tamen ac prope nihil adiuvat tractationem divinarum

Scripturarum et infructuosa intentione plus impedit et quia familiaris est perniciosissimo errori fatua

fata cantantium commodius honestiusque contemnitur Habet autem praeter demonstrationem

praesentium etiam praeteritorum narrationi simile aliquid quod a praesenti positione motuque siderum

et in praeterita eorum vestigia regulariter licet recurrere Habet etiam futurorum regulares coniecturas

non suspiciosas et ominosas sed ratas et certas non ut ex eis aliquid trahere in nostra facta et eventa

temptemus qualia genethliacorum deliramenta sunt sed quantum ad ipsa pertinet sidera () 486 Sobre a questatildeo do chi-rho ver LACTANTIUS De la mort des perseacutecuteurs de lrsquoEglise In Choix

des monuments primitfs de lrsquoEacuteglise chreacutetienne Paris Socieacuteteacute du Pantheacuteon Litteacuteraire 1843 No capiacutetulo

445 da ediccedilatildeo francesa ldquoConstantin averti en songe de faire peindre sur les boucliers de ses soldats le

signe adorable de la croix et dengager ensuite le combat obeacuteit et fit peindre sur ses boucliers un X

avec un accent circonflexe qui signifie Jeacutesus-Christrdquo 487 LACTANTIUS Institutions Divines In Choix des monuments primitfs de lrsquoEacuteglise chreacutetienne

Paris Socieacuteteacute du Pantheacuteon Litteacuteraire 1843 Livro II CAP XVII Astrologiam aruspicinam et similes

artes esse daemonum inventa No latim ldquoEorum inventa sunt astrologia et aruspicina et auguratio et

ipsa quae dicuntur oracula et necromantia et ars magica et quiquid praeterea malorum exercent

homines vel palam vel occulte Quae omnia per se falsa sunt ut Sibylla Erythraea testatur Επεὶ πλάνα

πάντα τάδ ἐστίν Ἅπερ ἄφρονες ἀνδρες ἐρευνῶσι κατ ἧμαρ Sed iidem ipsi auctores praesentia sua

faciunt ut vera esse credantur Ita hominum credulitatem mentita divinitate deludunt quod illis verum

aperire non expedit Hi sunt qui imagines et simulacra fingere docueruntrdquo Na ediccedilatildeo francesa

ldquoLastrologie judiciaire les auspices les augures les oracles la neacutecromancie la magie et tous les

mauvais arts que les hommes exercent soit en particulier soit en public sont des inventions des

deacutemons et ces arts-lagrave sont faux comme la sibylle Erythreacutee le teacutemoigne quand elle dit que tout ce que

les hommes deacutepourvus de sagesse cherchent par lexplication des songes nest quillusion et tromperie

Mais bien que ces moyens de parvenir agrave la connaissance de la veacuteriteacute soient faux les deacutemons qui les ont

inventeacutes abusent tellement de la creacuteduliteacute des hommes quils les leur font recevoir comme veacuteritablesrdquo 488 AUGUSTIN La citeacute de Dieu 22 30 5 Apud HARTOG 2013 p 91

159

Astrocircnomos de Miletos como Tales e Anaximandro tambeacutem Platatildeo e

Aristoacuteteles os estoicos e epicuristas ainda Plotino teorias filosoacuteficas sobre o tempo

foram abundantes na antiguidade e constituiram ldquoindubitavelmente saberes adquiridos

sem os quais Santo Agostinhordquo como lembrou Franccedilois Hartog ldquonatildeo teria podido

comeccedilar sua proacutepria reflexatildeordquo 489 ldquoO que eacute o tempordquo perguntava ndash talvez em sua

mais ceacutelebre questatildeo ndash o velho bispo de Hipona Eacute melhor natildeo pressionaacute-lo pois se

ningueacutem o indagar ele saberaacute mas se algueacutem ousar questionar-lhe e ele tiver de

explicar nem o santo poderaacute fazecirc-lo490 Eacute no capiacutetulo XI das Confissotildees que

encontramos sua reflexatildeo sobre o assunto Agostinho acredita que eacute preciso um ser

para conferir realidade ao tempo Para um cristatildeo como comentou Pomian relegar o

tempo ao natildeo-ser tornar-se-ia inaceitaacutevel diferente do que apresentava-se em

Aristoacuteteles ndash quando aparecia como uma intrusatildeo metafiacutesica no mundo fiacutesico ndash nas

Confissotildees o tempo era uma questatildeo gnoseoloacutegica Para o ser portanto existiria um

presente do passado talhado na memoacuteria um presente do presente manifestando-se

pela visatildeo e ainda um presente do futuro antecipando-se em expectativa Assim

Agostinho lanccedilava a tese de que a sensaccedilatildeo da temporalidade natildeo passava de um

alongamento da alma (animo) a qual se articulava a partir dela por meio de uma

experiecircncia intelectual dada entre a ldquodistensatildeordquo (distensio) e a ldquoatenccedilatildeordquo (attentio)491

ldquoA alma (animo) espera (expectat) e estaacute atenta (adtendit) e lembra-se (meminit) de

maneira que o que espera transpondo aquilo ao que estaacute atento passa para o que se

lembrardquo492

489 HARTOG 2013 p 84 Ver tambeacutem PAPACHRISTOU Ioannis Time for Aristotle Physics IV10-

14 by Ursula Coope Oxford Clarendon Press 2005 Book review In Rhizai III2 (2006) pp 63-66

Para quem o ldquotermo lsquoTemporsquo(chronos) aparece desde o periacuteodo preacute-socraacutetico como podemos ver em

um fragmento atribuiacutedo a Tales (frs A1 I 71 13 DK) e em um fragmento atribuiacutedo a Anaximandro

(frs B1 I 89 14 DK) no qual o tempo eacute representado mais como um poder personalizado do que

como uma noccedilatildeo filosoacutefica strictu senso A primeira importante referecircncia agrave noccedilatildeo de tempo eacute

encontrada no Timeu (37c5-38c3) no qual Platatildeo considera o tempo um ingrediente do universo como

um todo de acordo com a cosmologia explicitada em seu trabalho () Depois de Aristoacuteteles e aleacutem

dos fragmentos estoicos e epicuristas a mais importante e sistemaacutetica reflexatildeo sobre o tempo eacute

encontrada no tratado de Plotino (II7[45]) Sobre a Eternidade e o Tempordquo (63) 490 AUGUSTIN Les confessions 11 28 38 In Ouvres de Saint Augustin Paris Descleacutee de Brouwer

1996 Bibliothegraveque Augustinienne 14 utilizei tambeacutem AUGUSTINE Confessions With an English

Translatin by William Watts The Loeb Classical Library London William Heinemann New York

The Macmillan co Vol II 1912 491 Franccedilois Hartog em sua leitura dessa passagem das Confissotildees traduz animo por ldquoespiacuteritordquo

Krzystof Pomian por outro lado prefere traduzir o mesmo termo latino por ldquoalmardquo Ver POMIAN

1984 246-247 Cf HARTOG 2013 84-85 492 AUGUSTINE Confessions 1912 Em latim ldquosed quomodo minuitur aut consumitur futurum quod

nondum est aut quomodo crescit praeteritum quod iam non est nisi quia in animo qui illud agit tria

sunt nam et expectat et attendit et meminit ut id quod expectat per id quod attendit transeat in id quod

meminerit quis igitur negat futura nondum esse sed tamen iam est in animo expectatio futurorum et

160

Esqueccedilamos por ora o chamado de Plutarco que rogava seus leitores a

ldquoaplicar suas curiosidades para o Solrdquo perguntando ldquoaonde ele se potildee e aonde ele

nasce ()rdquo e incentivando o interesse ldquopelas mudanccedilas da Lua como terias sobre as

coisas humanasrdquo (Moralia 6 473-485-507) O questionaacuterio agostiniano sobre o

tempo natildeo mais ancora suas meditaccedilotildees na ordem da natureza natildeo mais olha para o

movimento dos ceacuteus mas para dentro de si abandonando a metafiacutesica aristoteacutelica ao

mesmo passo em que relegava as influecircncias celestes ndash senatildeo agraves obras do democircnio

como o fez antes dele um mais modesto Lactacircncio ndash agraves supersticcedilotildees da plebe Essa

primeira experiecircncia do tempo cristatilde eacute uma percepcatildeo iacutentima tatildeo pertencente ao

acircmago do ser que Pomian viu nela um ldquotempo psicoloacutegicordquo enquanto que Hartog

tendo Ricoeur em mente natildeo deixou de pontuar sua novidade o esboccedilo de uma

fenomenologia do tempo493

Com a emergecircncia vitoriosa do cristianismo no ocidente e o fim do mundo

romano as efemeacuterides retecircm o sentido presente no jornal escrito por Eumenes de

Caacuterdia Em Isidoro de Sevilha ldquohistoriardquo era a maneira de retomar tudo o que fosse

passado ndash historia est narratio rei gestae (Etymologiae 1 41 1) Se a distinccedilatildeo entre

annales como enumeraccedilatildeo de acontecimentos impessoais e historia como experiecircncia

vivida se perdeu isso ocorre em nome de uma moldura narrativa que permita ao

pregador no ato da oraccedilatildeo comemorar junto ao seu auditoacuterio exemplos como modo

de transmitir-lhes valores morais e pedagoacutegicos Essa narraccedilatildeo incluiacuteda no ato

predicante nos sermotildees e nas crocircnicas poderia ser pontuada em anos em meses ou

em dias respectivamente falava-se em annales em kalendas ou em ephemerida

(Etymologiae 1 44)494 Integradas no projeto agostiniano as efemeacuterides contam o

tempo dos homens suas gestas dia-a-dia venerando os exemplos cuja autoridade

(auctoritas) era obra concedida pela matildeo da providecircncia (providentia Dei) Mesmo

em um ambiente cristatildeo os exemplos quando reflexotildees da virtude guardam ainda

quis negat praeterita iam non esse sed tamen adhuc est in animo memoria praeteritorum et quis negat

praesens tempus carere spatio quia in puncto praeterit sed tamen perdurat attentio per quam pergat

abesse quod aderit non igitur longum tempus futurum quod non est sed longum futurum longa

expectatio futuri est neque longum praeteritum tempus quod non est sed longum praeteritum longa

memoria praeteriti estrdquo [112837] pp 276 seguida de uma traduccedilatildeo inglesa na paacutegina 277 que verte

ldquoanimordquo para ldquomindrdquo 493 HARTOG 2013 84 POMIAN 1984 principalmente 245-250 Para o tratamento de Ricoeur a

respeito do problema do tempo em Agostinho ver RICOEUR Paul Tempo e Narrativa Tomo I

Campinas Papirus 1994 pp 19-42 Para uma leitura que dialoga entre Agostinho e Aristoacuteteles ver

RICOEUR Paul Tempo e Narrativa Tomo III Satildeo Paulo Martins Fontes 2010 pp 15-36 494 ENGELS Odilo Compreensatildeo do conceito na Idade Meacutedia In KOSELLECK Reinhart (org) O

Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 64

161

algo de origem divina Era o momento como comentou Hartog de prestar mais

atenccedilatildeo ao passado e menos ao futuro e mantendo os olhos em Cristo diriacuteamos noacutes

deixar seduzir-se pela boa nova comemorando em eucaristia a lembranccedila de seu

modelo vivo ldquoEssa inflexatildeo da ordem cristatilde do tempo em direccedilatildeo ao jaacute a um passado

em verdade continuamente reativado pelo ritual ndash anotou o autor dos Regimes de

historicidade ndash permite agrave Igreja () recuperar retormar habitar os modelos antigos

da mos maiorum e da historia magistrardquo que agora podem operar em seu proveito

Potecircncia temporal a ordem cristatilde ndash guiada pelos signos da palavra de um Deus

narrativo ndash faz o presente o passado e o futuro perdurarem com flexibilidade Atraveacutes

da teologia medieval as trecircs categorias baacutesicas da temporalidade se articulam na

aeternitas da mesma forma que nos seacuteculos anteriores uma Roma Invicta havia sido

oficiada pela lembranccedila dos costumes de seus ancestrais495

33 A escolaacutestica e a via media

Durante a Idade Meacutedia Central o pensamento de Aristoacuteteles ganha nova

acolhida no seio das nascentes universidades A escolaacutestica faz debater e comentar

ainda mais uma vez a fiacutesica aristoteacutelica suas sistematizaccedilotildees sobre o tempo e a

relaccedilatildeo necessaacuteria que ele mantem com a vicissitude Tomaacutes de Aquino retorna a um

problema intimista anaacutelogo agrave ordem das meditaccedilotildees agostinianas pode o tempo

sendo ele nuacutemero e medida da mudanccedila existir alheio a uma alma capaz de contar

sua passagem O argumento tomista reitera a relaccedilatildeo de dependecircncia explicitada na

Fiacutesica (IV10-14) que o tempo possui frente agrave mudanccedila (kinecircsis) asseverando que

ldquose o movimento eacute posicionado entatildeo tambeacutem eacute necessaacuterio posicionar o tempo

porque lsquoantesrsquo e lsquodepoisrsquo existem no movimento e satildeo essas coisas ndash a saber o

lsquoantesrsquo e o lsquodepoisrsquo no movimento uma vez contaacuteveis ndash que satildeo o tempordquo496

495 HARTOG 2013 p 91-92 496 AQUINAS Thomas Commentary on Aristotles Physics Book 4 Richard J Blackwell Richard J

Spath amp W Edmund Thirlkel (trans) Yale University Press 1963 Lecture 23 The Problems are

Solved as to the Existence and Unity of Time (Liber 4 123 n5) 629 For as motion is posited so is it

also necessary to posit time because ldquobeforerdquo and ldquoafterrdquo exist in motion and it is these things

namely the ldquobeforerdquo and ldquoafterrdquo in motion insofar as they are numerable that are time [icut enim

ponitur motus ita necesse est poni tempus quia prius et posterius in motu sunt et haec scilicet prius et

posterius motus inquantum sunt numerabilia sunt ipsum tempus]

162

ldquoEntretantordquo diria Aquino logo a seguir ldquoisso natildeo significa que se natildeo tivermos

quem conte natildeo haveraacute nada contaacutevel que eacute a objeccedilatildeo levantada pelo Filoacutesofordquo497

O comentaacuterio de Tomaacutes de Aquino parece ler uma relaccedilatildeo de imanecircncia entre

tempo e mudanccedila que asseguraria o estatuto ontoloacutegico do primeiro ancorando-o nas

manifestaccedilotildees cineacuteticas do segundo como se um natildeo pudesse existir sem o outro ou

talvez mais precisamente como se o tempo imitasse ou tentasse seguir de perto os

caminhos movimentados pela vicissitude Recentemente Ursula Coope considerou a

interpretaccedilatildeo tomista um erro Na leitura da filoacutesofa de Oxford o tempo em

Aristoacuteteles natildeo eacute apenas dependente do intelecto como tambeacutem o eacute de maneira

diferente que a mudanccedila498 Logo a autora vem propugnar a interpretaccedilatildeo oposta

agravequela desenvolvida no comentaacuterio do monge dominicano Nela o tempo eacute

dependente da existecircncia das almas uma vez que se trata de algo contaacutevel que precisa

da racionalidade dos seres para fazecirc-lo499 A tese de Coope trata dos uacuteltimos cinco

capiacutetulos da Fiacutesica IV Dentre a ordem dos assuntos trecircs toacutepicos destacam-se no

investimento de suas reflexotildees a relaccedilatildeo do tempo com a mudanccedila a condiccedilatildeo do

tempo como uma espeacutecie de nuacutemero a unidade e diversidade dos tempos500

ldquoUm nuacutemero da mudanccedila com relaccedilatildeo ao antes e ao depoisrdquo (219b1-2) Essa

passagem da Fiacutesica inspira comentadores haacute milhares de anos Ela acena para a

relaccedilatildeo entre tempo e movimento mas seu corolaacuterio tambeacutem indica que a

temporalidade soacute pode ser reconhecida atraveacutes da percepccedilatildeo das mudanccedilas (219a22-

9)501 Convertido assim em uma espeacutecie de nuacutemero o desenho do tempo seria o de

um continuum Ao contraacuterio da mudanccedila ndash que pode ser lenta ou raacutepida ndash o tempo eacute

sempre o mesmo Eacute precisamente essa identidade entre o antes e o depois que garante

a sua analogia com uma linha502 imagem que como comentaremos a seguir seraacute

497 AQUINAS Idem Ibidem However it does not follow that if there is no one counting there is

nothing countable which is the objection raised by the Philosopher [non tamen sequitur quod si non

est numerans quod non sit numerabile ut obiectio philosophi procedebat] 498 COOPE Ursula Time for Aristotle Physics IV 10-14 Oxford Aristotle Studies Clarenton Press

Oxford 2008 p 160 ldquoOnce we fully understand Aristotlersquos view about the way in which time is

countable we should be able to see for ourselves not just that it is mind-dependent but also that it is

mind-dependent in a way in which change is notrdquo 499 PAPACHRISTOU 2006 p 65 lembra que Ursula Coope natildeo leva em consideraccedilatildeo ldquoos argumentos

a respeito dos animais que mesmo natildeo sabendo contar possuem uma consciecircncia do tempo que eacute

essencial nas suas habilidades de lembranccedila (De memoria et reminiscentia 450a 15-23)rdquo 500 Sigo tambeacutem a leitura de ROARK Tony Time for Aristotle Physics IV10-14 by Ursula Coope

In Mind Oxford Journals Clarendon Press Vol 118 470 April 2009 501 ibid I-II 502 COOPE op cit p 36

163

recorrente na histoacuteria da cronologia moderna reiterando a unidade da diversidade do

tempo

Em Aristoacuteteles como mostra Coope os ciclos naturais natildeo fazem exatamente

parte da ordem do tempo Sua causa de ordem eacute como jaacute citamos a natureza As

coisas e os seres buscam ndash no processo teleoloacutegico da realizaccedilatildeo da potecircncia em ato ndash

seu lugar natural O movimento emula a locomoccedilatildeo circular pela loacutegica das

revoluccedilotildees E uma revoluccedilatildeo cindida em duas ou mais partes natildeo deixaria de ser

uma revoluccedilatildeo Os ciclos naturais natildeo podiam assim depender da temporalidade

imaginada como uma linha reta a oposiccedilatildeo potencial entre anterior e posterior

percebida na alma do ser eacute o que permite a ele repartir e contar o tempo esse

enigmaacutetico ldquonuacutemero da mudanccedilardquo

Uma mudanccedila que como movimento eacute sempre relativa e contiacutenua mais lenta

ou mais raacutepida portanto desigual na sua diversidade Para medir-la dispotildee-se um

nuacutemero uma racionalizaccedilatildeo que o ser faz perante as vicissitudes ordenando-lhe em

espaccedilos percebidos no agora como tempo de igual passagem que entre o anterior e o

posterior formam uma unidade do diverso Algo como o ldquotempo absolutordquo de que nos

falou Pomian se as mudanccedilas satildeo localizadas o tempo torna-se universal e

simultaneamente o mesmo por todo o cosmos503 Mas a temporalidade como razatildeo

matemaacutetica da mudanccedila natildeo chega a se confundir com o movimento ou a proacutepria

mudanccedila Ela eacute tatildeo somente ldquoalgo da mudanccedilardquo ndash quelque chose du changement504

Teriacuteamos entatildeo uma ordem do tempo na fiacutesica de Aristoacuteteles Ora como

argumenta Coope existe uma ordem temporal pois eacute dentro dela que as mudanccedilas

acontecem relacionam-se entre si satildeo percebidas e contabilizadas pela alma dos seres

racionais505 Eacute calculando a ordem definitiva de ldquoagorasrdquo ou ldquoinstantesrdquo ao longo do

movimento que podemos estabelecer uma uniformidade no entendimento desse

503 Como comentou Pomian ldquoAs mudanccedilas satildeo muacuteltiplas o tempo eacute um A mudanccedila eacute variaacutevel o

tempo uniforme Tudo isso daacute ao tempo um estatuto estranhamente ambivalente ele mesmo invisiacutevel

natildeo fica confinado agraves esfeacuteras celestesrdquo () ldquoNatildeo haacute nem lugar nem vazio nem tempo fora dos ceacuteusrdquo

[De Caello I 9 279 a 12] POMIAN 1984 p 235 504 Cito a paraacutefrase na liacutengua de Voltaire uma vez que a proacutepria Ursula Coope ndash comentando a traduccedilatildeo

da passagem para liacutenguas modernas ndash admite que a francesa eacute a mais inteligiacutevel Ver COOPE op cit p

31 505 Encontramos esse raciociacutenio ndash que opotildee os ciclos naturais da mudanccedila a uma ordem do tempo ndash

tambeacutem no tratado sobre a Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo ldquoLa destruction et la geacuteneacuteration naturelles de plus

srsquoopegraverent en un temps eacutegal C lsquoest lagrave la raison pour laquelle la dureacutee de la vie de chaque ecirctre srsquoexprime

et se deacutetermine par un nombre car il y a un ordre reacutegulier en toutes choses et le temps que dure

chaque vie est mesureacuterdquo ARISTOTE 1966 p 68 Grifos meus

164

nuacutemero da mudanccedila506 ldquoEacute a nossa contagem que cria uma seacuterie ordenada de

instantesrdquo concluiu Coope e ldquosem esses instantes contados natildeo haveria uma simples

ordem de antes e depois na qual todas as mudanccedilas satildeo organizadasrdquo Em outras

palavras ldquosem eles natildeo teriacuteamos tempordquo507 Ordenaacute-lo tarefa de uma alma capaz de

contar eacute um procedimento que realizamos tendo por acircncora fiacutesica o cosmos

organizado pela imutabilidade da natureza508 Logo na obra de Aristoacuteteles natureza e

tempo satildeo sistemaacuteticamente distintos a primeira eacute ldquocausa de ordemrdquo enquanto que

das reflexotildees a respeito do segundo poderiacuteamos intuir um plano racional de

ordenamento das vicissitudes senatildeo mesmo das causas509

No centro dessa reflexatildeo aristoteacutelica como tambeacutem lembrou Pomian estava o

ldquoagorardquo ou o instante ldquoPorque o agora eacute precisamente o movimento no qual a alma

apreendendo o anterior-posterior dentro do movimento viraacute sincronizado com elerdquo

fazendo com que o tempo ateacute esse momento potecircncia virar ato e ldquoo fiacutesico-coacutesmico

psiacutequicordquo510 Entatildeo para que o tempo exista como ato seria necessaacuterio um intelecto

que perceba no movimento da alma o instante do anterior-posterior Eacute preciso no

miacutenimo a alma de um ser racional capaz de contar Parece residir aiacute o motivo que faz

Coope refutar a interpretaccedilatildeo tomista da natildeo dependecircncia do tempo em relaccedilatildeo agraves

almas

Eacute nesse instante em que Coope ndash seguindo a justa tarefa da filosofia ndash

interessou-se por reconhecer um erro que proponho que enxerguemos na bem mais

506 Segundo Pomian 1984 p 236 ldquoO movimento em Aristoacuteteles comporta trecircs princiacutepios os dois

contraacuterios ndash privaccedilatildeo e forma ndash e o sujeito cuja persistecircncia preserva a identidade da coisa atraveacutes das

mudanccedilas a qual foi submetida A privaccedilatildeo eacute o estado passado da coisa a forma eacute o seu futuro o

sujeito corresponde asim ao presente ou melhor ao agora ou ao instante dois termos que tomaremos

aqui por intercambiaacuteveisrdquo 507 COOPE op cit p 172 508 Como explicou Pomian 1984 p 239 ldquo() la reacutevolution ceacuteleste fournissant un eacutetalon naturel de

mesure du temps et donc de tous les mouvements ce qui explique pourquoi le temps est un au lieu

drsquoecirctre deacutemultiplieacute comme lrsquoest le mouvement et pourquoi il est universel partout le mecircme et

uniformerdquo 509 Trata-se de uma loacutegica distinta daquelas operadas pelas tradiccedilotildees que o estagirita teve de dialogar

diretamente 1) para os astrocircnomos de Miletos como na palavra de Anaximandro ldquoas coisas que satildeo

() se fazem justiccedila e reparam suas injusticcedilas conforme a ordem do tempordquo (Fragmento B1) apud

HARTOG 2013 p 17 2) para a academia platocircnica que seguia o Timeu de Platatildeo a origem do tempo

se dava com o movimento dos astros (ver Timeu 39d e 38c tambeacutem Definiccedilotildees 411b) Aristoacuteteles

conseguiu a seu modo sistematizar a dualidade presente nas teorias filosoacuteficas antigas entre imagens

de um ldquotempordquo ciacuteclico e imagens de um tempo linear Para um artigo escrito pelo tradutor de

Aristoacuteteles que trata desse problema geral entre os gregos ver MUGLER Charles Deux thegravemes de la

cosmlogia grecque Devenir cyclique et pluraliteacute des monde Paris 1953 E tambeacutem os comentaacuterios de

MOMIGLIANO Arnaldo Time in Ancient Historiography History And Theory Separate number 6

1966 p 1 e passim Assim como a siacutentese realizada por MEIER Christian Antiguidade In

KOSELLECK Reinhart (org) 2013 p 54 510 POMIAN 1984 p 327

165

modesta incumbecircncia compreensiva da historiografia os filtros de uma praacutetica de

leitura cristatilde Natildeo teriacuteamos aqui uma apropriaccedilatildeo que buscava unir o pensamento

peripateacutetico agrave tradiccedilatildeo patriacutestica comemorando Aristoacuteteles ao lado de Agostinho

unindo razatildeo e feacute submetendo enfim a ordem da natureza aristoteacutelica a uma ordem

cristatilde do tempo Imaginemos um monge dominicano ndash ao qual a auctoritas manda

chamar Aristoacuteteles por ldquoo Filoacutesofordquo ndash sonhando com um universo desprovido de

almas racionais ou de qualquer inteligecircncia capaz de contar Existiraacute o tempo

Deixemos que Tomas de Aquino responda e com os olhos fechados em meditaccedilatildeo

conclua diante da invisibilidade do tempo que ldquoa existecircncia de coisas contaacuteveis natildeo

depende de um intelecto a natildeo ser que se trate do intelecto que eacute a causa das coisas

como o divino intelectordquo511

Se uma alma racional capaz de contar se faz necessaacuteria para o cristatildeo sempre

existira uma na Aeternitas Nesse sentido a leitura de Aquino foi ndash aleacutem de um

possiacutevel erro no entedimento da loacutegica claacutessica de antes do Cristo ndash a resoluccedilatildeo de um

problema teoloacutegico presente em um ano do Senhor A praacutetica de leitura tomista natildeo

poderia deixar de lado todo o repertoacuterio dos pais da Igreja E se em Agostinho o

tempo jaacute dependia do ser quem era essa inteligecircncia fundadora da ordem senatildeo

como vimos a proacutepria providecircncia divina Deus natildeo depende da temporalidade nem

tampouco da natureza Como logos Ele manifesta-se aos homens narrativamente

Faz o tempo na mesma medida em que se determina a partir dele A providecircncia jaacute

no Genesis (11-31) marca o anterior e o posterior antes fez da escuridatildeo a luz do

firmamento o ceacuteu ainda edificando as estrelas a terra e todo mundo natural depois

criou o homem para ouvir contar e soacute entatildeo arrebanhar os auditoacuterios dizendo missa

com a commemoratio dos signos da palavra divina Nessas Escrituras Deus eacute o gecircnio

ordenador fundador e administrador da natureza outrora profana e do tempo agora

sacramentado por suas constantes eucaristias comemorativas

Eacute verdade que desde outro contemporacircneo de Constantino Euseacutebio bispo de

Cesareia jaacute tiacutenhamos um conceito que tentava expressar essa experiecircncia cristatilde do

tempo A sua Histoacuteria Eclesiaacutestica vai da boa nova ateacute o tempo presente narrando o

ritmo da chegada de Cristo em direccedilatildeo agravequilo que Oroacutesio disciacutepulo de Santo

511 AQUINAS Ibidem However the existence of counted things does not depend on an intellect

unless it be an intellect which is the cause of things as is the divine intellect It does not depend on the

intellect of the same [Esse autem rerum numeratarum non dependet ab intellectu nisi sit aliquis

intellectus qui sit causa rerum sicut est intellectus divinus non autem dependet ab intellectu animae]

166

Agostinho mais tarde chamaraacute de pax christiana512 Ao emular Flavius Josephus

Euseacutebio de Cesareacuteia acordou sua Histoacuteria Eclesiaacutestica com uma vida de

Constantino513 Eacute com Euseacutebio que temos tambeacutem aquela que vai ser uma das mais

ceacutelebres cronologias glosada e imitada ao longo da idade meacutedia e da primeira

modernidade O Chronicon dispunha em colunas paralelas taacutebuas cronoloacutegicas de

reis e povos iniciando pelos primeiros reis da Assiacuteria e pela histoacuteria do patriarca

Abraatildeo

Em meio a essa sequecircncia de linhas paralelas temos sua cisatildeo potencial em

grupos de 50 anos loacutegica que parece seguir o Livro dos Jubileus o ldquopequeno genesisrdquo

do povo judeu que baseava todo ordenamento do tempo comemorativo nos muacuteltiplos

do nuacutemero sete sublinhados no Leviacutetico514 Como que guiadas por um ldquoplano secreto

de Deusrdquo todas as colunas paralelas todos os povos que elas representam parecem

sofrer paacutegina a paacutegina uma intervenccedilatildeo milagrosa e natildeo euclidiana convergindo

uma a uma em direccedilatildeo primeiro agrave macedocircnia depois agrave civilizaccedilatildeo romana que enfim

unida a Israel apoacutes as guerras judaicas vem se tornar cristatilde e univeral Essa era a

ldquogigantesca liccedilatildeordquo que Euseacutebio vinha ensinar ao mundo515 Como escreveram

Rosenberg e Grafton a respeito do Chronicon de Euseacutebio ldquoao comparar histoacuterias

individuaisrdquo entre si ldquocom o progresso uniforme dos anos o leitor poderia ver a matildeo

da providecircncia trabalhandordquo 516

As matildeos da providecircncia agora encarnadas no ministeacuterio petrino resolveram

comemorar ao final do seacuteculo XIII o primeiro jubileu cristatildeo fartamente registrado

512 Sobre a identificaccedilatildeo entre pax romana e pax christiana em Oroacutesio ver ENGELS Odilo

Compreensatildeo do conceito na Idade Meacutedia In KOSELLECK Reinhart (org) 2013 p 73 513 GRAFTON Anthony What was history Cambridge University Press New York Kindle Edition

(sem paginaccedilatildeo) 2007 Proacuteximo a nota 72 514 Uma interpretaccedilatildeo corrente do Livro dos Jubileus assevera que ao multiplicar sete anos por sete o

ano seguinte ndash contando a unidade de 50 ndash deveria ser o Sabbath dos Sabbaths Ver VANDERKAM

James The Book of Jubilees Guides to Apocrypha and Pseudepigrapha Sheffield Sheffield Academic

Press 2001 Ver tambeacutem CAMPION Nicholas The Great Year Astrology Millenarism and History

in the Western Tradition London Pinguin Books 1994 p 115 Obra que sigo apenas parcialmente E

ainda VANDERKAM James Textual and Historical Studies in the Book of Jubilees Harvard Semitic

monographs no 14 Scholars Press Missoula 1977 Sobre o debate renascentista a respeito dos grupos

de 50 anos no Chronicon de Euseacutebio ver GRAFTON Anthony Defenders of the Text The traditions

of scholarship in an age of science 1450-1800 Cambridge and London Harvard University Press

1991 p 143 Voltarei brevemente a essa discussatildeo no uacuteltimo capiacutetulo 515ldquo() Enquanto todas as outras listas de governantes sumiam e apenas a romana permanecia

enquanto as muacuteltiplas colunas que estabeleciam a histoacuteria antiga da Greacutecia e do Oriente Proacuteximo

afunilavam-se em uma uacutenica longa e cheia coluna dedicada apenas a Roma a Crocircnica provava atraveacutes

de imagens que a histoacuteria mundial culminava no Impeacuterio Romanordquo GRAFTON Anthony

WILLIAMS Megan Christianity and the Transformation of the Book Origen Eusebius and the

Library of Caesarea Cambridge Harvard University Press 2006 p 141 516 ROSENBERG Daniel GRAFTON Anthony Cartographies of time A history of the timeline

Princenton Architectural Press New York 2010 p 15

167

Em 1300 o papa Bonifaacutecio VIII emite a bula Antiquorum fida relatio exortando os

cristatildeos a peregrinar para Roma Atenta as palavras de Giacomo Gaetani Stefaneschi

cardeal conselheiro papal e autor do De Anno Jubileo a bula reivindicava tradiccedilotildees

ancestrais as quais prometiam perdotildees aos pecados para os visitantes da Basiacutelica do

Priacutencipe dos Apoacutestolos Bonifaacutecio VIII planejava observar esses jubileus a cada cem

anos formando dessa forma jaacute a unidade de um seacuteculo mas questotildees decorrentes do

cisma do ocidente levaram o antipapa Clemente VI residente em Avignon a

antecipar um jubileu para 1350 mantendo a suposta sequumlecircncia leviacutetica517

Unidades de cinquenta ou mesmo de cem anos cisotildees potenciais pelo caacutelculo

das almas nada disso alteraria o estatuto ontoloacutegico do passado conferido pelo

fundador e administrador da ordem cristatilde do tempo Em uma de suas Quaestiones

Quodlibetales (V 2 3) Tomaacutes de Aquino pergunta se uma moccedila perdendo a

virgindade pode ser restituida a seu estado de graccedila (utrum Deus possit virgine

reparare) A resposta de Tomaacutes como afirmou um notoacuterio escritor foi corajosa

ldquoDeus pode perdoar e portanto restaurar a virgem () atraveacutes de um milagrerdquo poreacutem

ldquonem mesmo Deus pode fazer com que aquilo que foi natildeo tenha sidordquo518 Lembrar o

passado ou purgaacute-lo de seus erros natildeo faz os pecados terem deixado de existir o

tempo cristatildeo eacute linear e irreversiacutevel Seria ele completamente alheio aos ciclos

naturais ou celebrativos que no ocidente ao menos desde a Carmen Saeculare de

Horaacutecio jaacute eram vistos como annos orbis ciclos que em um mundo pagatildeo trariam

de volta os cantos e os jogos519

Ora jaacute em Euseacutebio os reinos e os povos parecem ascender e decair seguindo

um fluxo natural Mesmo que paacutegina a paacutegina todos eles convergissem rumo agrave

cristandade universal a cronologia posterior continuava a indicar certa tensatildeo entre

histoacuteria eclesiaacutestica e histoacuteria profana Sim o tempo sagrado da Igreja esse dardo

lanccedilado dos ceacuteus parecia irreversiacutevel Como afirmou Pomian eacute nele que a ldquoIgreja ndash

517 Sobre a bula e as intenccedilotildees do papa Bonifaacutecio VIII ver o claacutessico THURSTON Herbert SJ The

Holy Year of Jubilee An account of the history and ceremonial of the Roman jubilee London Sands amp

Co 1900 principalmente pp 6 13-14 Tambeacutem o comentaacuterio de Jacques Le Goff para quem ldquo() o

seacuteculo (talvez preparado na Idade Meacutedia pelo Jubileu de 1300 celebrado pela primeira vez pelo papa

Bonifaacutecio VIII e que em princiacutepio deveria celebrar-se todos os cinquenta anos) favoreceu todo um

renovar-se de comemoraccedilotildees os centenaacuterios que podem ser muacuteltiplosrdquo LE GOFF Jacques

ldquoCalendaacuteriordquo in Enciclopeacutedia Einaudi Memoacuteria - Histoacuteria (trad) Lisboa Imprensa NacionalCasa da

Moeda 1984 vol1 p 286 518 ECO Umberto Os limites da representaccedilatildeo Perspectiva Satildeo Paulo 1990 p 22 519 HORATIUS Flaccus Q Carmen Saeculare In Horace Odes and Epodes Paul Shorey Boston

Benj H Sanborn amp Co 1898 1 20 p 117 ldquocertus undenos deciens per annos orbis ut cantus

referatque ludos ter die claro totiensque grata nocte frequentisrdquo

168

como o foi Roma ndash eacute eternardquo Por outro lado ainda parecendo resistir agrave loacutegica do

devir celestial temos ldquoo tempo profano dos Estadosrdquo contado em ciclos nos quais os

corpos poliacuteticos ldquose levantam prosperam decaem e desaparecemrdquo 520

Durante o periacuteodo medieval e em especial a partir da retomada dos textos

aristoteacutelicos por volta do seacuteculo XII os saacutebios do ocidente investem no

desenvolvimento de reflexotildees que permitam coadunar o tempo ciacuteclico com o tempo

linear a ordem da natureza profana com a ordem do tempo cristatilde Siger de Brabante e

Boeacutecio da Daacutecia ambos leitores de Aristoacuteteles e Averroacuteis vatildeo defender que o mundo

foi criado fora do tempo e eacute eterno com Deus Verdadeira clivagem ontoloacutegica ela

separa natildeo exatamente o criador das criaturas mas os seres invariaacuteveis perfeitos pela

graccedila daqueles que satildeo submissos aos ciclos sublunares da corrupccedilatildeo e da geraccedilatildeo521

Eacute novamente Tomaacutes de Aquino quem vem responder a essa controveacutersia que

se instaura no seio do ensino universitaacuterio Na Suma Teoloacutegica ele parte como natildeo

poderia deixar de fazecirc-lo da concepccedilatildeo aristoteacutelica de que o tempo nada mais eacute do

que o nuacutemero do movimento de acordo com o antes e o depois (Nihil est aliud quam

numerus motus secundum prius et posterius 1a 10 1) Logo a seguir propotildee aquilo

que vai ser uma medida conciliatoacuteria aceita ao menos ateacute que o antiquariado

humanista demonstre o seu desgaste a distinccedilatildeo entre Tempus Aevum e Aeternitas

O Tempus possui antes e depois Ao aevum natildeo pertencem em si um anterior

e um posterior embora como cisatildeo potencial esses elementos possam ser nele

relacionados A Aeternitas por sua vez natildeo reivindica nem antes nem depois

desprovida de comeccedilo ou de fim constituindo uma temporalidade completamente

avessa a esse raciociacutenio (Tempus habet prius et posterius aevum autem non habet in

se prius et posterius sed ei conjugi possunt aeternitas non habet prius posterius

neque ea compatitur Ia 10 5)522 A grande novidade atendia pela nomenclatura

intermediaacuteria do Aevum Ao longo do seacuteculo XII os processos lineares comeccedilam a ser

acompanhados por essa palavra Palavra que designa um comeccedilo e um final ainda

difere de Tempus uma vez que nela natildeo eacute a substacircncia dos seres que se modifica

sendo as vicissitudes que sofremos apenas mudanccedilas ocasionais

Ao trabalhar a dicotomia entre Aeternitas e Tempus certos aristoteacutelicos da

idade meacutedia central ndash como Siger e Boeacutecio ndash ofereciam soluccedilotildees que ameaccedilavam

520 POMIAN 1984 pp 40-41 521 Ibid p 43 522 AQUINAS Thomas Summa Theologiae Vol 2 (ia 2-11) Existence and Nature of God

McDermott Timothy (ed) Cambridge University Press Oct 26 2006 Ia 10 6 pp 136-148

169

escapar agrave tradiccedilatildeo cristatilde A eternidade agora natildeo pertencia mais unicamente a Deus

mas a todo universo imutaacutevel o que incluiria os corpos celestes e seus movimentos

ciacuteclicos ao passo em que Tempus parece ter sido reduzido ao tempo sublunar dos

seres corporais os quais seguiriam a sua maneira os velhos ciclos de geraccedilatildeo e de

corrupccedilatildeo O Deus aristoteacutelico imaginado como motor imoacutevel que anima atraveacutes do

movimento circular e perfeito dos astros todos os seres da primeira esfera desafiava

a cosmologia cristatilde e sua histoacuteria linear e irreversiacutevel Natildeo restava a Igreja outra

alternativa senatildeo condenar essas perspectivas por duas vezes entre 1270 e 1277523

Grande parte das 219 opiniotildees rejeitadas em 1277 eram astroloacutegicas em algum

sentido da palavra524 Em Satildeo Boaventura temos uma resposta a esse problema

apresentada junto agrave tentativa de demonstrar que a noccedilatildeo mesma de um mundo criado

fora do tempo carrega uma contradiccedilatildeo interna ldquoA linha divisoacuteria passava portanto

entre o criador e o conjunto das criaturasrdquo entre os seres corporais e espirituais

ldquoentre aeternitas e tempusrdquo525 Tomaacutes de Aquino em geral cauteloso preferiu iniciar

na Suma Teoloacutegica por uma suspensatildeo do juiacutezo natildeo poderiacuteamos responder

racionalmente nem demonstrar a tese da eternidade do mundo nem defender seu

contraacuterio embora tenhamos que aceitar a finitude por um ato de feacute Apenas Deus eacute

eterno enquanto que suas criaturas corporais submissas agrave geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo tem

a existecircncia acolhida no Tempus Por sua vez as criaccedilotildees espirituais ndash como a santa

Igreja os anjos os astros e as almas ndash natildeo existiriam no tempo mas no Aevum526 Ao

aceitar o caraacuteter linear e irreversiacutevel da temporalidade como um elemento natildeo

submetido agrave atividade humana mas agrave providecircncia divina ndash sendo os homens

incapazes de produzirem quaisquer modificaccedilotildees substanciais no mundo (omnis

forma artis est accidens et accidentalis) ndash o tomismo autorizou-se a salvar algumas

repercussotildees cosmoloacutegicas da fiacutesica peripateacutetica adaptando-as ao repertoacuterio cristatildeo

elaborado desde os Pais da Igreja

Era uma eacutepoca de popularidade para os saberes astrais Os espiacuteritos cristatildeos da

Idade Meacutedia animavam-se com a ideia de influencia Algumas centenas de anos antes

de Tomaacutes de Aquino por volta do seacuteculo X o Papa Silvestre II chegou a requisitar

523 POMIAN 1984 p 43 524 THORNDIKE Lynn The true place of astrology in the History of Science Isis Vol 46 No 3

Setembro de 1955 pp 273-278 University of Chicago Press p 273 nota 2 525 POMIAN 1984 p 43 526 AQUINAS Summa Theologiae Questatildeo 10 pp 135-151

170

uma coacutepia do poema didaacutetico de Marcus Manilius astroacutelogo de Otaacutevio527 Em 1150 a

tradiccedilatildeo de relacionar as efemeacuterides tambeacutem agraves gestas estelares eacute registrada no

almanaque atribuiacutedo a Solomon Jarchus conhecido de Petrus da Daacutecia e Roger Bacon

nos anos 1300 autores que tambeacutem criaram suas proacuteprias versotildees desse tipo de

trabalho Conhecimento tradicional saber passado de mestre a aluno as teses a

respeito dos astros e suas implicaccedilotildees no mundo sublunar eram mateacuteria para

discussotildees eruditas cujas aplicaccedilotildees dependiam de tabelas descritivas do movimento

dos astros No seacuteculo XIII Alfonso X de Castela o rei saacutebio reuniu um grupo de

tradutores e estudiosos dos ceacuteus com o objetivo de renovar as Taacutebuas de Toledo

compiladas por volta do final do seacuteculo XI Suas sucessoras diretas as Taacutebuas

Alfonsinas como ficaram conhecidas combinavam os dados de Claacuteudio Ptolomeu a

respeito da precessatildeo dos equinoacutecios (revisados por Al-Battani e Al-Souphi) com a

doutrina da oitava esfera e da trepidatio fixarum instruiacuteda por Azarquel Seriam

traduzidas para o latim por volta da deacutecada de 20 do seacuteculo seguinte por Jean de

Lignegraveres e Jean de Murs e difundidas um seacuteculo depois tambeacutem no Canoni de Joatildeo

da Saxocircnia528 Essas tabelas eram utilizadas pelos astroacutelogos para o caacutelculo das

efemeacuterides necessaacuterias agrave feitura dos horoacutescopos

No terceiro livro da Summa Contra Gentiles Tomaacutes de Aquino envolve-se

diretamente no debate a respeito da influencia celeste Estamos entre os capiacutetulos 82 e

87 e neles podemos seguir seus argumentos sobre a relaccedilatildeo entre a ordem natural

(ordine naturae) e a ordem providencial (ordo providentiae) Aquino recupera eacute

claro Aristoacuteteles mas tambeacutem revisa os estoicos lembra os pais da Igreja para por

fim criticar Avicena e Albumasar Nos capiacutetulos anteriores da Summa aprendemos

sobre a diferenccedila entre substacircncias intelectuais (substantiis intelectualibus) inferiores

e superiores de modo que agora assistimos adentrarem o debate as proacuteprias

substacircncias corpoacutereas ldquoSubstacircncias intelectuaisrdquo ndash e de tal maneira comeccedila o capiacutetulo

82 ndash ldquosatildeo governadas pelas superiores uma vez que a disposicatildeo da divina

providecircncia descende proporcionalmente a mais baixardquo 529

527 GONCcedilALVES 2007 p 5 528 Ver POUELLE E Les Tables alfonsines avec les Canons de Jean de Saxe Paris 1984

principalmente p 6 e pp 17-19 Ver tambeacutem HUumlBNER Wolfgang The Culture of Astrology from

Ancient to Renaissance In DOOLEY Brandan (org) A companion to astrology in the Renaissance

Introduction Brill 2014 principalmente pp 126-127 529 AQUINAS Summa Contra Gentiles Livro 3 Providecircncia Vernon J Bouker (trad) New York

Hanover House 1955-57 Caput 82 Quod inferiora corpora reguntur a Deo per corpora caelestia Na

traduccedilatildeo inglesa ldquoBut intellectual substances are ruled by the higher ones since teh disposition of

divine providence descendes proportionally to the lowestrdquo () No latim ldquoSubstantiae autem

171

Atentar aos ceacuteus e conhecer as privaccedilotildees do inferno eram tarefas que pareciam

uacuteteis a muitos como forma de unir a lembranccedila ao desenvolvimento de estrateacutegias

morais diante das fatalidades da ordem natural organizando a experiecircncia passada

com as expectativas nutridas no presente Os antigos que de tudo um pouco sabiam

conheciam o espaccedilo mas tambeacutem dominavam algumas artes do tempo Em 1460

Thomas Swatwell copiou uma Ars oratoria que duas deacutecadas mais tarde seria

impressa em Veneza O monge teve cuidado especial ao transcrever o appendix da

obra o qual continha uma Ars memorativa Nela Jacobus Publicius seu autor

tomava emprestada a concepccedilatildeo dualista do Ad Herennium ciceroniano segundo a

qual existiriam duas formas de memoacuteria ldquouma natural e outra produto da arterdquo530

Essa Arte da Memoacuteria bem estudada por Frances Yates implicava em treinamento e

disciplina baseando associaccedilatildeo de lembranccedilas agrave composiccedilatildeo mental de imagens de

fundo A demanda por lugares de memoacuteria ou ficta loca era suprida por Publicius a

partir de um repertoacuterio imageacutetico que iniciava pelas esferas do universo visualizar os

elementos os planetas as estrelas fixas o ceacuteu e o inferno ndash alegoriais morais dos

viacutecios e das virtudes ndash era a melhor maneira de aliar memoacuteria e prudecircncia Publicius

acreditava que tanto intenccedilotildees simples quanto meditaccedilotildees espirituais escapavam com

facilidade agrave lembranccedila a menos que ingressas compartilhadas e associadas a uma

similitude corporal ndash e nisso natildeo parecia em nada longe de Tomaacutes de Aquino531

De fato os corpos celestes apareciam na Summa Contra Gentiles como

ldquosimilares agraves substacircncias intelectuaisrdquo nos criteacuterios de incorruptibilidade Seus

movimentos aperfeiccediloados pela natureza sem a necessidade de contraacuterios tornam-os

dotados de ldquomais poder universal do que os corpos inferioresrdquo De movimentos

imutaacuteveis regulares e uniformes as estrelas eram dispostas como a causa de todo e

qualquer movimento posterior como se dos ceacuteus fosse ldquopatente que os corpos

inferiores satildeo regidos por Deus atraveacutes dos corpos celestesrdquo 532 No capiacutetulo 83

intellectuales reguntur a superioribus ut dispositio divinae providentiae proportionaliter descendat

usque ad infimardquo 530 CICERO Rhetorica ad Herennium Harry Clapman (transl) London-Cambridge Harvard

University Press 1954 p 205 531 Jacobus Publicius natildeo era eacute claro um caso uacutenico Fazia parte de uma tradiccedilatildeo que alcanccedila pelo

menos Alberto Magno Pedro de Ravenna (Phoenix sive artificiosa memoria 1491) e um pouco mais

tarde o dominicano Johannes Romberch (Congestorium artificiose memorie 1520) que expande e

desenvolve o uso do universo como sistema de memoacuteria Sobre a ars memorativa e os autores citados

sigo YATES Frances The Art of memory London Pimlico 1992 principalmente pp 117-128 532 Ibid C 82 8 Na traduccedilatildeo inglesa ldquoThus it is evident that lower bodies are ruled by God through

the celestial bodiesrdquo No Latim ldquosic ergo patet quod corpora a inferiora a Deo per corpora caelestia

regunturrdquo

172

Tomaacutes recorda-se das palavras de Gregoacuterio ldquoaquele que criou o mundo por Si

Mesmo governa por Si Mesmordquo (Moralia XXIV 20) e Boeacutecio ldquoDeus dispotildee todas as

coisas de si mesmo sozinhordquo (De consolatione Philosophiae III) Tambeacutem comemora

Agostinho com a leitura do terceiro livro do tratado sobre A Trindade quando o bispo

de Hippona reconheceu que as coisas do mundo sublunar satildeo regidas ldquoem uma certa

ordemrdquo pelos corpos superiores533

No capiacutetulo 84 no entanto os argumentos do dominicano mudam de ecircnfase

Mesmo que a ordem da providecircncia deva reger os corpos inferiores pelos superiores

o entendimento (intellectus) ndash que natildeo eacute um poder corporal mas uma substacircncia

proacutexima do divino ndash excede todos os corpos na ordem da natureza534 Sendo os efeitos

dos movimentos celestes sujeitos ao tempo (nuacutemero de sua mudanccedila) eventos que

abstraiam da temporalidade natildeo podem estar submissos a eles Desde as Confissotildees de

Agostinho ndash e agora observamos seu eco embora natildeo citado nominalmente por

Aquino ndash ldquoo intelecto em sua operaccedilatildeo abstrai sim do tempo assim como o faz do

lugarrdquo535 A distinccedilatildeo agostiniana natildeo era dessa forma compatiacutevel com o fatalismo

dos estoicos e dos filoacutesofos mouros ndash ou de tal modo lembrados por Aquino ndash para

quem ldquonoccedilotildees intelectuaisrdquo eram ldquoimpressas em noacutes pelos corpos celestesrdquo536

Mas se o movimento dos astros natildeo poderia influir em nosso entendimento

(intelligentiae) ele conseguiria ainda assim atuar nele de maneira indireta Se a

inteligecircncia humana natildeo eacute uma forma de poder corporal eacute tambeacutem verdade que ela

natildeo pode se fazer sem operar funccedilotildees corporais as quais seriam ldquoa imaginaccedilatildeo

(imaginatio)rdquo e os ldquopoderes da memoacuteria e da cogniccedilatildeordquo (vis memorativa et

533 AUGUSTIN De la Triniteacute Livre Troisiegraveme Comment Dieu a-t-il apparu C IV Empire Souverain

de Dieu sur toute creacuteature In Ouvres Complegravetes de Saint Augustin M Raulx (trad) T 2 Bar-le-Duc

1868 p 392 Na traduccedilatildeo francesa ldquoMais de mecircme que dans lrsquoordre physique les corps lourds et

infeacuterieurs reccediloivent lrsquoinfluence des corps plus leacutegers et supeacuterieurs ainsi dans lrsquoordre moral tous les

corps obeacuteissent agrave lrsquoaction de lrsquoesprit de vierdquo No texto latino ldquoSed quemadmodum corpora crassiora et

inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia corpora spiritum uitae et

spiritus uitae irrationalis per spiritum uitae rationalemrdquo Curiosa traduccedilatildeo oitocentista que verte

ldquospiritum uitaerdquo para ldquolrsquoordre moralrdquo 534 AQUINAS Summa Contra Gentiles Livro 3 Cap 84-8 ldquoBut our sould is united to the intellectual

substances which are superior to the celestial bodies in the order of nature by virtue of the part which

is the understanding In fact our soul cannot understand unless it receives intellectual light from those

substancesrdquo No latim ldquoAnima autem nostra secundum quod intelligit unitur substantiis

intellectualibus quae sunt superiores ordine naturae corporibus caelestibus non enim potest anima

nostra intelligere nisi secundum quod lumen intellectuale inde sortiturrdquo 535Ibid Cap 84 6 Em Inglecircs ldquoBut the intellect in its operation does abstract from time as it does from

placerdquo No Latim ldquoIntellectus autem in sua operatione abstrahit a tempore sicut et a locordquo 536 Ibid 84-10 ldquoAccording to their view it followed that intellectual notions are impressed on us

chiefly by an impression from the celestial bodiesrdquo No latim ldquo() impressione corporum caelestium

intellectuales notiones nobis imprimenturrdquo

173

cogitativa)537 Eacute manobrando nos entornos do problema do livre-arbiacutetrio que Aquino

ndash seguindo observaccedilotildees favoraacuteveis de Agostinho (Cidade de Deus) e Joatildeo Damasceno

(De fide orthodoxa) ndash pocircde credenciar-se a citar o aforisma 38 do Centiloquium uma

falsificaccedilatildeo atribuiacuteda durante a Idade Meacutedia a Ptolomeu ldquoquando no momento do

nascimento de um homem Mercuacuterio estaacute em conjunccedilatildeo com Saturno ()rdquo a geraccedilatildeo

resultaraacute em um ser de inteligecircncia notaacutevel538

A circulaccedilatildeo das esferas portanto atuaria indiretamente no entendimento

humano a partir da capacidade de influenciar corpos inferiores Assim ldquocomo os

meacutedicos podem julgar a sauacutede de um intelecto a partir das condiccedilotildees do corpo ()

tambeacutem um astroacutelogo poderia julgaacute-lo pelos movimentos celestesrdquo sempre como uma

causa remota dessas disposiccedilotildees539 Causa remota ela natildeo conseguiria da forma que

imaginaram Avicenna e Albumasar ser efetiva e ditar os rumos de nossas escolhas

540 Se eles natildeo podem realizar uma impressatildeo direta nos intelectos tambeacutem seratildeo

ineficientes em fazecirc-lo sob a vontade Como na sempre ldquocausa de ordemrdquo aristoteacutelica

a natureza tomista ldquoeacute determinada a um uacutenico resultadordquo mas as ldquoescolhas humanasrdquo

por seu turno ldquotendem a terminar em vaacuterios caminhos tanto na moral quanto na

arterdquo541 Ora seguindo a Eacutetica do Filoacutesofo o par de contraacuterios lembrados como viacutecios

e virtudes natildeo encontram seu iacutendice geral na natureza mas nos costumes A retidatildeo e

o pecado ndash para um cristatildeo os princiacutepios de qualquer ato de escolha ndash natildeo podem ser

537 Ibid 84-14 538 Ibid 84-14 In this way then it is possible that there is some truth in what Ptolomy says in his

Centiloquium ldquoWhen at the time of a manrsquos birth Mercury is in conjunction with Saturn and is itself

in a strong condition is gives inwardly to things the goodness of understandingrdquo () ldquoEt per hunc

modum potest verificari quod Ptolomaeus in Centilogio dicit cum fuerit Mercurius in nativitate

alicuius in aliqua domorum Saturni et ipse fortis in esse suo dat bonitatem intelligentiae medullitus in

rebusrdquo Quanto a falsidade do Centiloacutequio ver DOOLEY 2014 p 4 obra coletiva e que uso como

referecircncia para os recentes estudos sobre a astrologia da primeira modernidade 539 Ibid 84-14 ldquoThus just as physicians may judge the goodness of an intellect from the condition of

its body as from a proximate disposition so also may an astronomer judge from the celestial motions

as the remote cause of such dispositionrdquo ldquoEt sic sicut medici possunt iudicare de bonitate intellectus

ex corporis complexione sicut ex dispositione proxima ita astrologus ex motibus caelestibus sicut ex

causa remota talis dispositionisrdquo 540 Ibid C 87 Quod motus caelestis corporis non sit causa electionum nostrarum ex virtue animae

moventis ut quidam dicunt 1 ldquoHowever we should not that Avicenna maintains that the motions of

the celestial bodies are also the causes of our acts of choice not simply as occasions as was said

above but directly () On this point also he seems to return to the theory of Albumasar in his

Introduction I ldquoEst tamen attendendum quod Avicenna vult quod motus caelestium corporum sint

etiam nostrarum electionum causae non quidem per occasionem tantum sicut supra dictum est sed per

se () Ad quod etiam redire videtur positio Albumasar in primo sui introductoriirdquo 541 Ibid 85-5 () for nature is determined to one result But human choices tend to their end in various

ways both in moral actions and in artistic productions Therefore human choices are not accomplished

by naturerdquo ldquoElectiones autem humanae diversis viis tendunt in finem tam in moralibus quam in

artificialibus Non igitur electiones humanae sunt naturaliterrdquo

174

agraciados ou redimidos explicados ou justificados unicamente atraveacutes dos ceacuteus 542

Novamente lemos o Centiloquium atribuiacutedo a Ptolomeu nos escritos de Aquino ldquoa

alma saacutebia favorece o trabalho das estrelasrdquo ao passo que o ldquoastroacutelogo natildeo pode fazer

julgamento baseado nas estrelas a natildeo ser que ele conheccedila bem o poder da alma e seu

temperamento naturalrdquo543

O topos da influecircncia celeste com as ressalvas feitas agraves tradiccedilotildees estoicas e

mesmo aos interlocutores mouros que eram apresentados a Aquino consegue

sobreviver atraveacutes das palavras de uma farsa amarrada na esteira do prestiacutegio

renovado da fiacutesica peripateacutetica e da reforma dos proacuteprios modelos geocecircntricos

alexandrinos544 A resposta de Tomaacutes de Aquino ao problema da influecircncia celeste

natildeo deixou de ser acompanhada por outros membros da ordem dominicana Em

Alberto Magno os seres vivos satildeo ainda mais sujeitos agraves impressotildees vindas das

estrelas do que os objetos inanimados Lynn Thorndike chegou mesmo a escrever que

ldquoessa lei geral de que o mundo da naturezardquo eacute governado pelos ldquomovimentos das

estrelas eacute expressamente repetidardquo nos estudos de Alberto Magno ldquoe sua verdade

assumida com ainda mais frequecircnciardquo545

Em breve os conhecimentos ocultos e astronocircmicos deixariam de ser

privileacutegio ou monopoacutelio dos debates universitaacuterios e teoloacutegicos Alguns seacuteculos mais

tarde na Mainz de 1472 Gutenberg publicaria o primeiro exemplar impresso de uma

542 Ibid 85-8 ldquo() virtues and vices are the proper principles for acts of choice for virtues and vices

differ in the fact that they choose contraries Now the political virtues and vices are not present in us

from nature but come from custom as the Philosopher proves in Ethics IIrdquo ldquoVirtutes et vitia sunt

electionum principia propria nam virtuosus et vitiosus differunt ex hoc quod contraria eligunt Virtutes

autem politicae et vitia non sunt nobis a natura sed ex assuetudine ut probat philosophus in II Ethicrdquo 543 Ibid 85-22 ldquothe wise soul assists the work of the starsrdquo and that ldquothe astronomer could not give a

judgement based on the stars unless he knew well the power of the sould and the natural

temperamentrdquo No latim ldquoquod anima sapiens adiuvat opus stellarum et quod non poterit astrologus

dare iudicia secundum stellas nisi vim animae et complexionem naturalem bene cognoveritrdquo 544 O cosmos aristoteacutelico e ptolomaico tinha como limite a esfera das estrelas fixas ndash contando a partir

da terra a oitava e uacuteltima em ordem Ao longo da Idade Meacutedia quando os astrocircnomos perceberam que

a oitava esfera movia-se mais lentamente em relaccedilatildeo aos movimento de precessatildeo definiu-se a

existecircncia de uma nona esfera desprovida de estrelas Essa nona esfera imaterial tornou-se na filosofia

escolaacutestica o primum mobile manancial de todo o movimento do universo e usualmente relacionado

ao motor aristoteacutelico imoacutevel e eterno como descrito na Fiacutesica VIII 6 Ver BEZZA Giuseppe

Representation of the Skyes and the Astrological Chart In DOOLEY 2014 pp 73-74 Edward Grant

ressalta no entanto que tais modificaccedilotildees estavam longe de ser consensuais As posiccedilotildees dos

astroacutelogos variavam entre a defesa de oito a onze orbes A avaliaccedilatildeo dependia da contagem (ou natildeo)

dos trecircs tipos diferentes de movimento que se atribuiacuteam agraves estrelas fixas o movimento diaacuterio o

movimento de precessatildeo dos equinoacutecios e o movimento progressivo e regressivo das estrelas Ver

GRANT Edward Planets Stars and Orbs The Medieval Cosmos 1200-1687 Cambridge Cambridge

University Press 1994 545 THORNDIKE Lynn A history of magic and the experimental Science Vol II New York

Columbia University Press 1923 p 583 Sobre a relaccedilatildeo entre magia e experimentalismo em Alberto

Magno ver paacuteginas 720-750

175

efemeacuteride astroloacutegica O livreto inscrevia-se em um gecircnero de faacutecil acesso raacutepida

leitura e barato consumo que ndash como um dos primeiros best-sellers da histoacuteria ndash vai

divulgar ao longo da modernidade toda uma gama de conhecimentos celestes unidos

a ldquoinformaccedilotildees uacuteteisrdquo e mesmo pequenas notas locais Em geral publicadas ano a ano

essas primeiras efemeacuterides modernas (que no mundo anglo-saxatildeo desde o iniacutecio do

seacuteculo XVII vatildeo ser chamadas de almanaques) eram capazes de ndash ao descrever o

movimento diaacuterio dos astros ndash oferecer as tabelas necessaacuterias agrave leitura prognoacutestica dos

ceacuteus ao passo em que raramente deixavam de promover suas proacuteprias previsotildees

anuais546

34 Experiecircncias humanistas brechas na ordem natural

Aportemos no seacuteculo XVI Estamos na eacutepoca das Guerras Italianas e do

conciliaacutebulo gaacutelico de Pisa da eleiccedilatildeo de Carlos V e do pontificado de Adriano VI

das Teses de Lutero e da dieta de Worms momento em que a antes poderosa Milatildeo

dos Sforza dobra seus joelhos diante das disputas francas e imperiais Mas durante o

Renascimento como notou Grafton as cortes e os saacutebios da Europa natildeo se

preocupavam apenas com os problemas sublunares da cristandade No iniacutecio da

deacutecada de 20 do seacuteculo XVI muito se especulava a respeito de pressaacutegios e de sinais

nos ceacuteus Em fevereiro de 1524 seis planetas dentre eles os dois mais lentos (Jupiter

e Saturno) entrariam em Peixes A deacutecima segunda casa conclui o zodiaco e junto a

Escorpiatildeo e Cacircncer tambeacutem a triacuteplice dos signos aquaacuteticos todos representados por

formas estranhas ao corpo humano ndash um iacutectio um aracniacutedeo e um crustaacuteceo ndash

546 Em 1741 Johan Friedrich Wiedler preparou uma extensa lista bibliograacutefica de obras astronocircmico-

astroloacutegicas Dentre elas figuravam diversas efemeacuterides Sobre as informaccedilotildees apresentadas ver

WIEDLER Johan Friedrich Historia astronomiae Vitembergae Sumtibus GH Schwartzii

Bibliopolae 1741 p 265 Mais tarde em 1785 Jean-Sylvain Bailly ndash astrocircnomo primeiro prefeito de

Paris e um dos principais organizadores da Festa da Federaccedilatildeo ndash utiliza a obra de Wiedler ao escrever

sua Histoacuteria da Astronomia Moderna BAILLY Histoire de lrsquoastronomie moderne depuis la fondation

de lrsquoeacutecole drsquoAlexandrie jusqrsquoagrave lrsquoeacutepoque de 1730 Tome 1 De Bure Paris 1785 Pouco mais tarde

reunindo toda a bibliografia levantada por Wiedler e Bailly aparece a obra de La Lande DE LA

LANDE Jeacuterocircme Bibliographie astronomique avec lhistoire de lastronomie depuis 1781 Jusqursquoaagrave

1802 Paris Imprimerie de la Reacutepublique 1803 No mundo medieval anglo-saxatildeo aleacutem dos

almanaques de Jarchus Petrus e Bacon (preservadas no Museu Britacircnico e na Biblioteca de Oxford)

temos tambeacutem um Almanaque para o ano de 1386 publicado no seacuteculo XIX como curious particulars

mas infelizmente omitindo a maiorias de suas tabelas e cronologias HACKNEY Stower (printed for)

Almanac for the Year 1386 Transcribed Verbatin From the Original Antique Illuminated Manuscript

in the Black Letter 1812 Esse almanaque oferecia uma descriccedilatildeo das casas zodiacais dos planetas e

de suas propriedades uma exposiccedilatildeo dos signos tambeacutem uma breve cronologia a partir do nascimento

de Caim (tanto de eventos sagrados quanto naturais e profanos) algumas explicaccedilotildees numeroloacutegicas

sobre nuacutemeros primos e notas em medicina entre outros toacutepicos

176

relacionadas segundo a tradiccedilatildeo astroloacutegica ao elemento aacutegua O prognoacutestico a

respeito do movimento das estrelas errantes e de sua entrada em Peixes era ressaltado

em cores profeacuteticas desde ao menos 1499 data a partir da qual 56 autores em 113

escritos preservados comeccedilaram a prever um grande diluacutevio para 1524547

Nenhum desses genethliaci contava perto de seiscentos anos embora muitos

guardassem como uma aquisiccedilatildeo para sempre algo em torno de seis seacuteculos de

leituras Ao inveacutes de preparar uma arca e convocar animais imprimiram os tipos de

suas previsotildees em folhetos livros e almanaques resultando em um clima de

apreensatildeo generalizada que transbordou para aleacutem das florestas da Germacircnia e jaacute do

outro lado foi bem aleacutem dos ciclos eruditos frequentados por astroacutelogos de prestiacutegio

como Seitz e Carion Copp Reynmann Volmar Virdung e Ranssmar assim como

teoacutelogos interessados nos sinais celestes como Stephan Wacker Balten Wilhelms e

Heinrich Pastoris548

E no mesmo ano entraram na naacuteu dos Hallucinatii catoacutelicos e reformados

seus saacutebios e seus plebeus suas mulheres e suas crianccedilas

Do leste ao oeste do Reno do sul ao norte dos Alpes o ldquogrande medo de

1524rdquo de fato natildeo atormentava apenas os homens de letras Pomian seguindo de perto

o trabalho de Ottavia Niccoli lembra que na Itaacutelia do seacuteculo XVI um ldquomedo real das

inundaccedilotildeesrdquo ndash associado agrave frequecircncia do fenocircmeno na regiatildeo ndash foi indentificado agrave

propagaccedilatildeo do luteranismo Frente a esses perigos os dois glaacutedios uniam-se na

organizaccedilatildeo ou incentivo de rituais de reparaccedilatildeo coletiva ndash fossem eles procissotildees de

penitecircncia fossem eles corrobories vulgares549 Martinho Lutero natildeo demorou para

assumir a defensiva criticando os ldquoastroacutelogos que foram iludidos naquele ano a

anunciar (ou negar) o fim iminente do mundordquo550

547 Aqui sigo POMIAN Krzystof Les sciences les croyances occultes et les niveaux de culture en

Europe (XVIe-XVIIe siegravecle) In History European Ideas Vol 3 no 1 pp 133-139 1982 Reprinted

from Le Deacutebat No 6 Novembro 1980 p 135-136 tambeacutem HUumlBNER Wolfgang The Culture of

Astrology from Ancient to Renaissance In DOOLEY 2014 p 30 BARNES R Prophecy and

Gnosis Stanford Stanford University Press 1988 GRAFTON Anthony Starry Messengers Recent

Work in the History of Western Astrology Perspective on science Volume 8 n 1 spring 2000

principalmente pp 75-77 GRAFTON Anthony Cardanorsquos Cosmos The World and Works of a

Renaissance Astrologer Cambridge MA 1999 pp 38 53-54 e 40 Na paacutegina 53 Grafton lembra que

Stoeffler e Pflaum anunciaram no seu Almanach Nova (1499) a configuraccedilatildeo dos planetas para 1524

Agradeccedilo ao colega Vitor Batalhone pela disponibilizaccedilatildeo do livro 548 ZAMBELLI Paola (org) Introduction In Astrologi Hallucinati Stars and the End of the World

in Luthers Time Berlin New York De Gruyter 1986 p 11 549 POMIAN 1980-1982 p 136 NICCOLI Ottavia Prophecy and People in Renaissance Italy

Cochrane Princenton University Press 1990 550 ldquo() astrologers who had been deluded that year into announcing (or denying) the imminent end of

the world due to a flood brought on by the conjunction of the three upper planets in the sign of Piscesrdquo

177

As factiacuteveis relaccedilotildees entre as crenccedilas astroloacutegicas ndash com seu inegaacutevel tracircnsito

por vaacuterios segmentos da sociedade ndash e o sentimento de medo ou inseguranccedila jaacute foram

exploradas desde pelo menos a histoacuteria das mentalidades francesa551 Mas os efetivos

prognoacutesticos astroloacutegicos natildeo poderiam ser realizados sem o intenso

desenvolvimento acelerado no quattrocento das observaccedilotildees astronocircmicas e do

cocircmputo dos movimentos celestes Grande parte das previsotildees arriscadas ao longo

dos dois seacuteculos seguintes seriam baseadas em tabelas de efemeacuterides sofisticadamente

apuradas primeiro atraveacutes daquelas editadas por Peuerbach e seu disciacutepulo

Regiomontanus depois por outras jaacute incentivadas pela publicaccedilatildeo do De

revolutionibus orbium coelestium de Nicolau Copeacuternico (1543) como as Tabulae

Prutenicae de Rhenold (1551) e as Ephemerides novae de Johannes Stadius

publicadas em Colocircnia no ano de 1556552

Toda essa precisatildeo matemaacutetica natildeo seria suficiente para garantir o sucesso das

previsotildees Aceitemos apenas por um instante a premissa da influecircncia celeste

Hiparco de Niceacuteia (circa 190ndash120 AC) jaacute havia calculado a precessatildeo dos

equinoacutecios e seus resultados apontavam que ndash dado o movimento irregular do eixo

terrestre hoje bem conhecido ndash os signos zodiacais deslocam-se um grau do leste para

o oeste em um intervalo regular de cerca de 72 anos Isso equivale a dizer que as doze

constelaccedilotildees ldquonatildeo mais correspondem aos doze setores geomeacutetricos contados a partir

e adiante dos pontos tropicaisrdquo Como relembrou Wolfgang Huumlbner ldquoos astroacutelogos

prestam atenccedilatildeo aos duodeacutecimos abstrados dos ciacuterculos ecliacutepticos ao inveacutes das

constelaccedilotildees reaisrdquo 553 Choveu um pouco na Itaacutelia eacute verdade Mas o diluacutevio universal

natildeo veio Mesmo assim o episoacutedio natildeo parece ter abalado fatalmente as crenccedilas

astroloacutegicas e o prestiacutegio geral de seus adeptos mesmo que as criacuteticas comuns desde

Ciacutecero e Sexto Empiacuterico continuassem frequentes Se mais tarde para Antocircnio

Vieira como veremos as estrelas falam com autoridade muitos saacutebios celestes do

LUTHER Werke Kritische Ausgame (Henceforth WA) Briedfweschsel (Henceforth Br) III

Weimar 1933 p 260 Nr 724 apud ZAMBELLI 1986 p 1 551 Ver entre outros o claacutessico de DELUMEAU Jean La Peur en Occident Paris Fayard 1978

principalmente pp 90-102 552 BEZZA Giuseppe Representation of the Skyes and the Astrological Chart In A Companion

Astrology in Renaissance Brill Brills Companions to the Christian Tradition Vol 49 Leiden e

Boston 2014 p 94 Na mesma paacutegina Bezza ressalta que ldquoContrary to what a number of historians

have claimed the spread of Copernicus heliocentric theory did not occasion a crisis in astrology

ldquoReformerrdquo astrologers precisely claimed to be disciples of the Ptolomy of the Tetrabiblos but they

took the new astronomy on board without difficulty both in its Copernican and in its Tychonic

versionsrdquo idem ibidem 553 HUumlBNER Wolfgang op cit p 31

178

renascimento natildeo precisavam olhar os ceacuteus Cegos para o cosmos ouvidos bem

atentos ao som celestial codificado nas efemeacuterides os astroacutelogos viviam para

prognosticar alheios aos increacutedulos e agraves chamas da inquisiccedilatildeo

35 Conjunccedilotildees astrais e eventos sublunares

O tipo de previsatildeo praticada a respeito do diluacutevio de 1524 eacute um bom exemplo

da doutrina astroloacutegica do conjuncionismo Pierre drsquoAilly (1351-1420) cardeal

catoacutelico e teoacutelogo com fama de homem saacutebio era tambeacutem um proliacutefico autor de

textos a respeito da filosofia natural Seu famoso Ymago Mundi tratado geral sobre

cosmografia foi lido com atenccedilatildeo e preenchido de anotaccedilotildees por Cristovatildeo Colombo

que tambeacutem preparou algumas tabelas de efemeacuterides mediando o estudo da obra com

suas proacuteprias observaccedilotildees astronocircmicas Leitor de Platatildeo Aristoacuteteles e Pliacutenio DrsquoAilly

natildeo deixava de citar os astrocircnomos aacuterabes e mouros O problema da influecircncia celeste

forma assim uma das premissas fundamentais de toda sua produccedilatildeo Mas havia algo

de singular na maneira pela qual o cardeal abordava o topos

Em 13 de janeiro de 1493 navegando as Antilhas Colombo lamenta em seu

diaacuterio natildeo haver um porto melhor para observar a conjunccedilatildeo da lua com o sol que

deveria ocorrer dia 17 mesma data em que Jupiter entraria em oposiccedilatildeo com nossa

estrela e em conjunccedilatildeo com Mercuacuterio Ele parecia entusiasmado com o espetaacuteculo

celeste que como acreditava era sinal de ldquograndes ventosrdquo554 Aleacutem de ter declarado

que seria possiacutevel alcanccedilar o outro lado da Terra navegando pelo seu oposto ndash sem

esquecer de comentar que a Iacutendia era imensa em tamanho e em maravilhas ndash o Ymago

Mundi trazia tambeacutem entre citaccedilotildees do Centiloquim do pseudo-Ptolomeu a imagem

de um ldquociacuterculo do zoodiacordquo como ldquoo cinto do firmamentordquo555

Mas eacute em outro tratado o ambicionsamente intitulado De concordia

astronomicae veritatis et narrationis historicae que DrsquoAilly vai expor a sua teoria

das conjunccedilotildees organizadas ainda a partir das tabelas de efemeacuterides alfonsinas Na

hierarquia celeste Saturno e Juacutepiter ndash o titatilde Chronos e o deus dos deuses ndash os

554 COLUMBUS Christopher The Diario of Christopher Columbusrsquos First Voyage to America 1492-

1493 Abstracted by Fray Bartolomeacute de las Casas O Dunn JE Kelley Jr (trad) Library of Congress

1989 pp 328-329 Folio 55r 555 DrsquoAILLY Pierre Ymago Mundi Edmond Buron (eacuted) Texte latin et traduction franccedilaise des quatre

traiteacutes cosmographiques de drsquoAilly et des notes marginales de Christophe Colomb Tome I Librarie

Orientale et Ameacutericaine Paris 1930 Tome I p 169 Sobre os usos do Centiloquium ver por exemplo

pp 248-249 para o capiacutetulo sobre as iacutendias ver p 265 e seguintes

179

planetas mais lentos conhecidos ateacute entatildeo ocupam um papel especial A cada 960

anos ocorre entre eles uma grande conjunccedilatildeo Outra intermediaacuteria se passa a cada

240 anos Uma menor eacute observada em 19 intervalos anuais e proacuteximo a cada 30 anos

os dois gigantes entram em oposiccedilatildeo DrsquoAilly propocircs uma narrativa que buscava

relacionar grandes eventos da histoacuteria sagrada e profana com esses fenocircmenos

celestes com a vantagem de que assinalavam uma periodicidade natural que se

aproximava de nuacutemeros redondos 20 30 250 e 1000 anos O tratado sobre A

concordacircncia da verdade astronocircmica e da narraccedilatildeo histoacuterica era com certeza um

dos tipos extremos mais importantes para aquilo que Krysztof Pomian seacuteculos depois

chamaria de astrologia como uma teologia naturalista da histoacuteria556 Foi tambeacutem

bastante lido e comentado ao longo dos seacuteculos XVI e XVII por eruditos e antiquaacuterios

como William Camden557 Natildeo era pouco para um autor que antecipou as ondas

diluvianas um seacuteculo antes de elas varrerem os quatro cantos do Sacro Impeacuterio

Abolindo o ordenamento do tempo enquanto percepccedilatildeo do ser seu modelo eacute o

exemplo mais bem acabado de integraccedilatildeo da histoacuteria humana aos ciclos das

conjunccedilotildees e das luas cheias dos eclipses e das siziacutegias da escuridatildeo e da luz da matildeo

providencial e da ordem da natureza

Mas Pierre drsquoAilly tambeacutem teve criacuteticos ilustres A concordacircncia entre a

verdade astronocircmica e a narraccedilatildeo histoacuterica atraveacutes dos ciclos de conjunccedilotildees

implicaria no avatar milenarista de um regime de historicidade com olhos no futuro

ancorado na ordem da natureza e dado a prognoacutesticos ldquoracionaisrdquo mas encrustrado

em uma experiecircncia do tempo que insistia em ouvir o passado aos exempla e a

auctoritas Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) assim como mais tarde o

cronologista Joseph Scaliger (1540-1609) e mesmo o astrocircnomo Johannes Kepler

(1571-1630) ndash que natildeo deixava de interessar-se pela influecircncia celeste ndash viam a

astrologia horoscoacutepica confrontada com Hiparco como uma antiga ilusatildeo e

perguntavam-se em debates acalorados como uma premissa tatildeo fraacutegil pocircde coexistir

556 POMIAN Krzysztof Astrology as a Naturalistic Theology of History In Astrologi Hallucinati

Stars and the End of the World in Luthers Time Berlin New York De Gruyter 1986 sobre os ciclos

de Pierre D`Ailly ver p 36 Jonathan Dove ndash autor de almanques de efemeacuterides ndash em 1667 jaacute havia

feito uma afirmaccedilatildeo parecida com a de Pomian quando definiu a astrologia como uma forma de natural

theologie ou seja uma ciecircncia que nos aproximaria da providecircncia DOVE Jonathan Dove speculum

anni aacute partu virginis MDCLXVII or an almanack for the year of our Lord God 1667 Cambridge

1667 557 GRAFTON 2000 p 72 SMOLLER Ackerman L History Prophecy and the Stars Princenton

NJ Princenton University Press 1994 E tambeacutem GRAFTON Anthony Joseph Scaliger 2 vol

Oxford Clarendon Press 1983-93 especialmente p 351

180

em um mundo de saacutebios como Claudio Ptolomeu e Hermes Trimegistus558 Muitos

dos participantes do debate a respeito do diluacutevio de 1524 aproveitaram as

circunstacircncias para atacar o modelo conjuncionista do cardeal DrsquoAilly Pico della

Mirandola talvez seu mais jovem e feroz opositor anos antes jaacute havia colocado em

cena toda a sua velha carga de leituras para apontar que se a teoria do Grande Ano

estava mesmo presente na filosofia claacutessica (Timaeus 39d) aquela dos ciclos

baseadas em conjunccedilotildees era completamente ausente A validade de sua tese como

lembrou Paola Zambelli continua sendo corroborada ateacute hoje segundo a

historiografia atual a teoria das conjunccedilotildees veio da Peacutersia Sassacircnida e chegou ao

ocidente atraveacutes dos escritos de Mashallah (740-815) Al-Kindi (801-873) e

Abumasar (787-886) astroacutelogos dentre os quais Tomaacutes de Aquino ainda no seacuteculo

XII encontrava interlocutores criacuteticos559 Os profetas do diluacutevio de 1524 poderiam

natildeo ter os seiscentos anos de Noeacute mas eacute possiacutevel que contassem tempo muito

parecido em erudiccedilatildeo560

558 Vide GRAFTON Anthony Commerce with the Classics Ann Arbor University of Michigan Press

1997 principalmente capiacutetulo 5 559 ZAMBELLI 1986 p 24-25 Tambeacutem GRAFTON 2000 p 73 e HUumlBNER op cit p 29 Sobre a

astrologia no mundo islacircmco ver KENNEDY E S Ramification of the World-year concept in Islamic

Astrology Congress of the History of Science Paris 1962 pp 23-42 Sobre as conjunccedilotildees e seu

impacto nos eventos da histoacuteria humana em Mashallah ver LORCH RP The Astrological History of

Māshāallāh In The British Journal for the History of Science Cambridge Mass Cambridge

University Press 6 (4) novembro de 2013 pp 438-439 Sobre a interface entre a escolaacutestica e a

filosofia natural araacutebico-ptolomaica ver LEMAY Richard Abu Marsquoshar and Latin Aristotelianism in

the Twelfth Century The Recovery of Aristotlersquos Natural Philosophy through Arabic Astrology Beirut

American University of Beirut 1982 Existem indiacutecios que apontam para um claro contrabando de

textos e conceitos matemaacuteticos vindos do oriente nos trabalhos de astroacutelogos matemaacuteticos (genethliaci)

ocidentais Em instigante ensaio Jerky Dobrzycki e Richard Kremer propuseram-se a refazer os

caacutelculos das efemeacuterides de Johannes Angelus mestre de artes na Vienna do seacuteculo XVI Engel como

era igualmente conhecido publicou suas Ephemeris entre 1510 e 1512 Seus almanaques imitavam

ldquoexatamente o formato impresso estabelecido para o gecircnero em 1747 pelas efemeacuterides de Johannes

Regiomonatnus e continuadas por Johan Stoumlffler e Jacob Pflaum em seu Almanach nova de 1499rdquo No

entanto no Almanach novum atque correctum Angelus afirmava que seu trabalho era mais preciso do

que os ldquoalmanaques comunsrdquo pois era computado a partir de ldquonovas taacutebuas de equaccedilotildees planetaacuteriasrdquo

Angelus dizia ter encontrado as novas tabelas em um manuscrito inacabado de Peurbach e ldquocom a

ajuda do todo poderosordquo teria sido capaz de completaacute-las As refazer os caacutelculos das efemeacuterides

comparando-os com Stoumlffler e Pflaum os autores sugerem que as correccedilotildees realizadas por Angelus no

sistema Ptolomaico a partir dos modelos alfonsinos (cujas tabelas foram publicadas em 1483)

empregaram teacutecnicas matemaacuteticas (como os ldquomoderadores harmocircnicosrdquo) desenvolvidas pela escola

persa de Maragha Ver DOBRZYCKI Jerzy KREMER Richard Peurbach and Maragha Astronomy

The Ephemeris of Johannes Angelus and their implications In Journal for the History of Astronomy

Provided by NASA Astrophysics Data System Xxvii 1996 560 Cf SENECA Naturales Quaestiones De Aquis Terrestribus Liber III-291 [291] ldquoQuidam

existimant terram quoque concuti et dirupto solo noua fluminum capita detegere quae amplius ut e

pleno profundant Berosos qui Belum interpretatus est ait ista cursu siderum fieri adeo quidem

affirmat ut conflagrationi atque diluuio tempus assignet arsura enim terrena contendit quandoque

omnia sidera quae nunc diuersos agunt cursus in Cancrum conuenerint sic sub eodem posita

uestigio ut recta linea exire per orbes omnium possit inundationem futuram cum eadem siderum

turba in Capricornum conuenerit Illic solstitium hic bruma conficitur magnae potentiae signa

181

A recepccedilatildeo do conjuncionismo desde cedo levantou polecircmica no ocidente

Suas teses jaacute haviam sido condenadas e proibidas em Paris e Oxford no ano de 1277

e continuavam sendo atacadas no seacuteculo seguinte por Henrich von Langenstein porta

voz da Sorbonne em seu Contra astrologos coniuctionistas de eventibus futurorum

datado de 1371561 Publicada de forma poacutestuma em 1498 as Disputationes adversus

astrologiam divinatricem de Pico defendiam que ldquoo poder dos planetas conjurados

natildeo eacute maior do que o dos planetas divididosrdquo concluindo categoricamente que ldquoessas

grandes conjunccedilotildees satildeo uma nova invenccedilatildeo que deriva do desentendimento de um

locus em Ptolomeurdquo 562

A questatildeo que comeccedilava a surgir na esteira dos estudos humanistas era a de

como justificar a presenccedila na obra ptolomaica dos aforismas que tratavam das

conjunccedilotildees dos planetas superiores Pico della Mirandola apesar de jaacute semear

algumas duacutevidas natildeo chegou ao ponto de questionar nas suas disputationes a autoria

do Centiloquium (Dip III 14)563 No mesmo periacuteodo em que aparece o comentaacuterio de

Ibn al-Daya surgiu tambeacutem a primeira versatildeo latina das 100 pequenas teses atribuiacutedas

a Ptolomeu feita por Joatildeo de Sevilha em 1136 um par de anos antes da traduccedilatildeo do

Tetrabiblos realizada por Platatildeo de Tivoli A divulgaccedilatildeo do texto menor que

circulava em cerca de 150 manuscritos intensificou-se entre os seacuteculos XIII e XIV

depois das universidades rejeitarem a proibiccedilatildeo da leitura e ensino da filosofia natural

de Aristoacuteteles564

No entanto eacute apenas com as sucessivas traduccedilotildees do Tetrabiblos de Ptolomeu

ndash que comeccedilam tambeacutem a ser realizadas diretamente do texto grego ndash que os

humanistas passam pouco a pouco a suspeitar dos aforismas do Centiloquium

George de Trebizonda jaacute na metade do seacuteculo XV iniciou o esforccedilo filoloacutegico ao

quando in ipsa mutatione anni momenta suntrdquo CLARKE John (trans) Physical Science in the Time of

Nero Being a translation of the Quaestiones Naturales of Seneca Macmillan and co Limited

London 1910 ldquoforth from their full source in larger volume Berosus the translator of [the records of]

Belus affirms that the whole issue is brought about by the course of the planets So positive is he on

the point that he assigns a definite date both for the conflagration and the deluge All that the earth

inherits will he assures us be consigned to flame when the planets which now move in different

orbits all assemble in Cancer so arranged in one row that a straight line may pass through their

spheres When the same gathering takes place in Capricorn then we are in danger of the delugerdquo

Grifos meus 561 HUumlBNER op cit p 30 562 apud ZAMBELLI 1986 p 25 563 Agora sigo a introduccedilatildeo e o comentaacuterio agrave traduccedilatildeo do Centiloquium realizada por BEZZA

Giuseppe Commento al primo libro della Tetrabiblos di Claudio Tolemeo Nuovi Orizzonti Milano

sp 19901992 564 LEMAY Richard The Teaching of Astronomy in Medieval Universities principally at Paris in the

Fourteenth Century Manuscripta 1976 XX3 pp 197-217

182

tentar recuperar o texto original do Tetrabiblos tambeacutem vertendo para o latim o

Almagesto compondo-lhe uma versatildeo que renderia criacuteticas de seu adversaacuterio o

cardeal Bessarion565 Versotildees latinas do Tetrabiblos e do Centiloquium foram

publicados juntas em Veneza no ano de 1493 Um pouco antes entre 1477 e 1491

Lorenzo Bonincontri Giorgio Valla Girolamo Cardano e enfim Franciscus Junctius

jaacute haviam tecido seus comentaacuterios agrave obra Pouco menos de meio seacuteculo mais tarde

em 1535 aparece uma ediccedilatildeo dos textos ptolomaicos em grego realizadas por

Joaquim Camerarius e Philipp Melanchthon que em 1553 publicaria uma versatildeo

latina do Tetrabiblos566 Alguns anos antes as casas editoriais de Nurenberg

resolveram reciclar a ediccedilatildeo de Joatildeo de Sevilha publicando-a em 1548 sob o nome de

Epitome totius astrologiae567

Do outro lado do Reno ndash mas compartilhando o espiacuterito da reforma astroloacutegica

levada a cabo pelo ciacuterculo de Melanchthon ndash Cardano natildeo teria mais duacutevidas a

respeito do Centiloquium Ao recuperar o texto grego chamado de Karpos e

confrontar-lhe o estilo a linguagem e a teoria com o Tetrabiblos ele natildeo demorou a

declarar em sua Opera Omnia que aqueles ceacutelebres aforismas natildeo haviam sido

escritos por Ptolomeu apontando Hermes Trimegistus como seu provaacutevel autor568

Tratavam-se de fato de dois escritos muito singulares O tratado em quatro livros

pareceu-lhe de difiacutecil leitura exigindo o estudo de conhecimentos muito especiacuteficos

o que levou Cardano a classificaacute-lo como obscurissimus569 Era de todo diferente da

astrologia ecleacutetica na qual Ptolomeu Hermes e astroacutelogos aacuterabes pareciam coexistir

em uma espeacutecie de harmonia sincreacutetica que natildeo era incomumente defendida pelos

saacutebios medievais570

Algum tipo de uso do corpus Ptolomaico era visiacutevel mesmo nos autores

ligados a Ars Historica renascentista Jean Bodin de fato comeccedila seu Methodus ad

facilem historiarum cognitionem argumentando em favor da distinccedilatildeo entre historia

humana historia naturalis e historia divina No entanto mais adiante no quinto

capiacutetulo ele propotildee que ldquopesquisemos () os fatos regidos pela natureza e natildeo pelas

565 FARACOVI 2014 92 566 HUumlBNER op cit 20 567 FARACOVI 2014 90 568 CARDANO Opera Omnia vol V Astronomica Astrologica Oneirocritica Lugduni 1663 apud

BEZZA 1992 569 Sobre os usos da metodologia de Cardano na criacutetica do Centiloquium para quem seguindo Galeno

primeiro era necessaacuterio realizar perguntas filoloacutegicas e soacute depois lanccedilar as devidas questotildees

filosoacuteficas ver GRAFTON Cardanorsquos Cosmos 1999 p 137 570 FARACOVI op cit pp 90-91

183

instituiccedilotildees humanas os fatos estaacuteveis que nada pode modificarrdquo O autor do Meacutetodo

inicia eacute verdade ldquopor estabelecer que nenhuma influecircncia assim como dos lugares

quanto dos corpos celestes implique em uma necessidade absolutardquo 571 Como notou

Grafton de todo modo Bodin ldquotratou o clima como um fator determinante no

desenvolvimento de cada genius nacionalrdquo 572

Enquanto os humanistas realizavam a criacutetica erudita da obra ptolomaica seus

textos falsos ou natildeo continuavam a ser impressos e ao lado deles seguiam um sem

nuacutemero de almanaques de conteuacutedo astroloacutegico Na Franccedila do seacuteculo XVI a

popularidade das efemeacuterides eacute atestada por um documento conservado na Biblioteca

Nacional Assinado por Oronce Fineacute matemaacutetico cartoacutegrafo e astroacutelogo judiciaacuterio

preso no contexto de 1524 tratava-se de um pequeno manual relativo ao Uso amp

praacutetica dos almanaques a que chamamos de Efemeacuterides As tabelas de movimento

dos astros mais apuradas como aquelas produzidas no ciacuterculo de Peuerbach e Muumlller

eram ainda publicadas em latim e abarrotadas de nuacutemeros o que de certo dificultava o

entendimento do puacuteblico Fineacute organizou assim um manual de leitura astronocircmico

indicando aos interessados natildeo apenas o que deveriam encontrar em cada secccedilatildeo de

uma efemeacuteride cotejando suas partes com os nomes latinos que lhes acompanhavam

mas tambeacutem ensinando a utilizar e adaptar suas tabelas aos mais variados usos que

iam com naturalidade do agriacutecola ao medicinal Dividido em 30 toacutepicos aos quais

preferiu chamar de cacircnones em trecircs deles o manual tocava diretamente a praacutetica

judiciaacuteria oportunidade em que aflorava o vocabulaacuterio conjuncionista573

A crenccedila no poder das conjunccedilotildees enumeradas com a precisatildeo de dias entre as

tabelas publicadas na Europa da eacutepoca natildeo raro antecipavam expectativas ou

quando quase inevitavelmente falhavam contentavam-se a retroalimentar suas

convicccedilotildees celestes na interpretaccedilatildeo de um evento passado agrave luz do conhecimento das

revoluccedilotildees astrais Assim a conquista de Jerusalem por Saladin em 1187 foi anos

571 ldquoCherchons au contraire des faits reacutegis pas la nature et non par les institutions humaines des faits

stables que rien ne puisse modifier si ce nrsquoest une grande force ou une discipline prolongeacutee des faits

que lrsquoon ne saurait deacuteranger snas les voir revenir drsquoeux-mecircmes agrave leur nature primitiverdquo () Mais je

commence par eacutetablir qursquoaucune influence aussi bien des lieux que des corps celestes nrsquoinplique une

necessite absolue () BODIN Jean Agevin Meacutethode pour faciliter la connaissance de lrsquohistoire P

Mesnard (trad) Paris Martin le Jeune 1572 respectivamente pp 313-314 572 GRAFTON 2007 sp cap 1 proacuteximo a nota 61 573 FINEacute Oronce Les canons amp documents tregraves amples touchant l`usage amp practique des communs

almanachz que lrsquoon nomme eacutepheacutemeacuterides Briefve amp isagogique introduction sur la judiciaire

astrologie avc un traicteacute drsquoAlcabice touchant les conjonctions des planegravetes en chascun des 12 signes

et de leur prognostications Impr De R Chadiegravere Paris 1551 BNF Deacutepartemente Reacuteserve des livres

rares V-21376

184

depois interpretada a partir do encontro dos planetas em Libra ocorrida em 16 de

setembro de 1186 Em 1484 uma grande conjunccedilatildeo em Escorpiatildeo ocorrida no dia 25

de novembro foi depois relacionada por alguns astroacutelogos ao surto de siacutefilis na

Europa e por outros ao nascimento de Lutero Algumas decadas mais tarde a uniatildeo

de trecircs planetas exteriores em Cacircncer no ano de 1503 seria cotejada com a morte do

papa Alexandre VI574

Apoacutes o episoacutedio de 1524 a nova geraccedilatildeo de astroacutelogos parece ter aprendido a

ser mais cuidadosa Em 1583 Saturno e Juacutepiter voltaram a se unir ainda uma vez em

Peixes Essa conjunccedilatildeo era agurdada com ansiedade sendo conhecida pelo menos

desde as primeiras tabelas de Johannes Muumlller (depois apelidado por Melanchthon de

Regiomontanus) datadas de 1474 e ampliadas em escopo temporal e precisatildeo pelas

Ephemerides sive almanach perpetuus de 1498 Rumores a respeito de uma previsatildeo

de grandes calamidades para o ano de 1588 atribuiacuteda ao proacuteprio Muumlller ndash um dos

mais respeitados matemaacuteticos da renascenccedila ndash comeccedilaram rapidamente a se espalhar

apoacutes a sua publicaccedilatildeo em 1553 Regiomontanus teria escrevinhado tal prognoacutestico em

alguns versos encontrados em uma folha de papel solta em seu escritoacuterio Em 1564

Cyprien Leowitz no De coniunctionibus magnis endorsa a suposta profecia do

ceacutelebre matemaacutetico lanccedilando expectativas para a segunda chegada do filho de

Deus575

Com esses elementos em mente os saacutebios celestes utilizaram entatildeo um

procedimento que natildeo seria estranho um seacuteculo antes ao cardeal DrsquoAilly Miraram

seus prognoacutesticos natildeo ao momento da conjunccedilatildeo em Peixes de 1583 mas cinco anos

depois dela quando seus efeitos acreditavam eles seriam efetivamente sentidos

Mais comedidos ndash com algum tempo para revisar cada prognoacutestico apoacutes a leitura

atenta da Bula de Sisto V de 1586 ndash natildeo arriscaram suas reputaccedilotildees falando em

diluacutevio fosse particular ou universal mas tatildeo somente e de maneira mais vaga

previram um acidente aquaacutetico E nesse caso puderam observar a profecia realizar-se

na destruiccedilatildeo da Armada Invenciacutevel no annus mirabilis de 1588576

574 HUumlBNER op cit pp 30-31 575 LEOWITZ Cyprien De coniunctionibus magnis insignioribus superiorum planetarum apud

EAMON William Astrology and Society In DOOLEY 2014 p 182 ldquoSince () a new trigon which

is the fiery is now imminent undoubtedly new worlds will follow which will be inaugurated by

sudden and violent changesrdquo Leowitz chegou a dizer que a conjunccedilatildeo ldquosem duacutevida anuncia a segunda

vinda do filho de Deusrdquo 576 Ver EAMON op cit pp 180-181

185

36 Le Roy e o Imperador uma (des)ordem da natureza

Enchentes e conjunccedilotildees foram apenas dois fenocircmenos entre uma seacuterie de

eventos naturais observados com certa mistura de temor e curiosidade pelos homens

do seacuteculo XVI Philip Melanchthon demonstrava preocupaccedilatildeo ao procurar sinais de

cometas nos ceacuteus577 Martinho Lutero que em geral natildeo via a praacutetica astroloacutegica com

bons olhos acreditava que os eclipses eram ldquomaus pressaacutegios assim como os partos

monstruososrdquo O autor das teses de 1517 tambeacutem pensava que esse tipo de evento

estava se tornando cada vez mais comum em um sinal provaacutevel da proximidade do

fim dos tempos578 A reforma fazia bom uso dos evangelhos de Marcos (1320) e

Mateus (2422) os quais asseveravam que Deus administrador do tempo e mestre da

natureza poderia acelerar o teacutermino do mundo em nome do fim do sofrimento dos

fieacuteis E tal natildeo era uma leitura que fosse de todo singular ao leste do Reno Louis Le

Roy (1510-1577) homem erudito dado a devaneios entre infolios pagatildeos professor

de grego no Collegravege Royal tradutor de Platatildeo Isoacutecrates Xenofonte Demoacutestenes e

tambeacutem da Poliacutetica de Aristoacuteteles jaacute na velhice encontrou tempo para publicar um

longo tratado sobre a Vicissitude ou Variedade das Coisas no Universo Datada de

1575 nesta obra seu projeto intelectual e as traduccedilotildees dos claacutessicos para o francecircs

ganhavam sentido ainda sob seus ombros Le Roy vertera os gigantes em liacutengua

moderna na esperanccedila de que seu tempo pudesse ver o nascimento de pensadores e

homens de letras tatildeo grandes quanto os modelos vindos da antiguidade579

577 Sobre o problema dos ceacuteus no pensamento de Melanchthon ver METHUEN Charlotte The Role of

the Heavens in the Thought of Philip Melanchthon Journal of The History of Ideas 57 1996 pp 385-

403 Entre os seacuteculos XVI e XVII surge toda uma seacuterie de tratados de cometografia que buscavam

catalogar registros de atividades de cometas muitos dos quais produzidos no ciacuterculo luterano de

Melanchthon Entre 1532 e 1558 Joaquim Camerarius com o endorso do mestre publica textos nos

quais defende a natureza portentosa dos cometas Milich Jakob entendendo que os corpos celestes satildeo

movidos por uma ldquocerta ordem e lei da naturezardquo (certa lege naturae atque ordine moventur) tambeacutem

via neles sinais divinos Caspar Peucer por sua vez acreditava que os prognoacutesticos astroloacutegicos eram

meios legiacutetimos de ldquose compreender a ordem natural estabelecida por Deusrdquo Sobre os tratados de

cometografia sigo as informaccedilotildees de MOSLEY Adam Past Portents Predict Cometary historiae

and catalogues in the sixteenth and seventeenth centuries In TESSICINI D BONER PJ (org)

Celestial Novelties on the Eve of the Scientific Revolution 1540-1630 Florencia Leo Olschki Museo

Galileo 2013 pp 2-32 para quem os ldquoacadecircmicos luteranos foram condicionados a entender os

cometas tanto como sinais naturais quanto providenciais de um mundo divinamente ordenadordquo (p 6) 578 GRAFTON Anthony Some uses of Eclipses () 2003 p 213 579 Trata-se da opiniatildeo de uma obra que sigo parcialmente em minha leitura da cosmologia de Louis Le

Roy GUNDERSHEIMER Werner L The Life and Works of Louis Le Roy Droz 1966 Genebra p 37

Gundersheimer ao longo de seu estudo pensa as reflexotildees de Louis de Roy como se estivessem

integradas a uma ldquofilosofia da histoacuteriardquo Natildeo eacute uma opiniatildeo incomum entre estudiosos da astrologia

renascentista como Eugenio Garin para quem o saber celeste constituia-se em uma ldquofilosofia da

histoacuteria baseada em uma concepccedilatildeo do universo caracterizada por um consistente naturalismo e um

186

Dividida em doze livros escritos em liacutengua francesa sua obra maacutexima

declarava estudar as ldquomudanccedilas alternativas do universo tanto em sua parte superior

quanto inferiorrdquo e a partir daiacute chegar ao problema das ldquoinsignes mutaccedilotildees do gecircnero

humanordquo Seguia-se a elas jaacute no penuacuteltimo capiacutetulo uma comparaccedilatildeo entre seacuteculos

daquele que lhe era contemporacircneo com os ldquoprecedentes mais ilustresrdquo em suma do

seacuteculo XVI com o mundo antigo580 Os paiacuteses as religiotildees os costumes os povos

todos pareciam em constante mutaccedilatildeo O percurso traccedilado por Le Roy o permitiria se

perguntar no deacutecimo primeiro livro em que o tempo presente era inferior superior

ou igual aos seacuteculos exemplares581 Nada mudava mais do que o homem mas era essa

uma corrente de vicissitudes que seguia alguma ordem

O primeiro livro declarava a premissa fundamental da obra ldquoDa vicissitude ou

variedade observada dos movimentos dos ceacuteus e das esferas celestesrdquo dependiam

segundo Le Roy todas as ldquomudanccedilas advindas neste mundo inferiorrdquo O topos da

influecircncia celeste natildeo era assumido sem fazer concessotildees ao modelo agostiniano o

qual o obrigada a reconhecer ldquomuito humildemente a providecircncia divinardquo como ldquofator

e governador dessa grande obra de excelecircncia e beleza admiraacutevel em variedade

singularidade e perenidaderdquo582

Poucos anos antes em 1571 Girolamo Cardano ndash um dos mais eminentes

doutores a praticar e ensinar a astrologia em solo catoacutelico ndash fora condenado pela

inquisiccedilatildeo583 A alianccedila do autor das Vicissitudes com a via media encontrada anos

riacutegido determinismordquo GARIN Eugenio Astrology in the Renaissance The Zoodiac of Life Routledge

amp Kegan Paul London-Boston 1983 p 16 Nesta tese ao falar na astrologia medieval e renascentista

prefiro a distinccedilatildeo esboccedilada por Pomian (1986) entre duas teologias da histoacuteria uma teocecircntrica e

outra naturalista guardando a filosofia da histoacuteria para o momento em que Voltaire e seus

interlocutores alematildees comeccedilam a relacionar as noccedilotildees de movimento (e mudanccedila) agrave accedilatildeo sublunar

humana 580 ldquoDoncques en toute lrsquooeuure sont representez les changemens alternatifs de lrsquovnivers taacutet em as

partie superieure qursquoinferieurerdquo () ldquorecontres les insignes mutations du genre humainamp comparaison

de ce siecle aux precedes plus ilustres pour ssccedilauoiren en quoy il leur est inferieur ou superieur ou

egalrdquo Sommaire de lrsquoouvre LE ROY Louis De la Vicissitude ou variete des choses en l`univers et

concurrence des armes et des lettres par les premieres et plus illustres nations du monde depuis le

temps ougrave agrave commenceacute la civiliteacute amp memoire humaine jusques agrave present Paris Pierre l`Huilier 1575

Doravante citada apenas como Viciss 581 Keith Thomas em trabalho muito citado natildeo deixou de comentar que durante a renascenccedila italiana

ldquodoutrinas astroloacutegicas a respeito das recorrecircncias de conjunccedilotildees planetares e sua influecircncia no curso

dos assuntos humans ajudaram a formar o conceito de periacuteodo histoacutericordquo Ver THOMAS Keith

Religion and the Decline of Magic Studies in Popular Beliefs in Sixteenth and Seventeenth-Century

England Oxford University Press Oxford 1971 p 386 582 ldquoLa vicissitude amp variete obseruee eacutes mouuemens du ciel amp des spheres celestes dont dependente

les changemens aduenans em ce monde inferieur ()rdquo ldquo() ie recognois treshumblement la prouidance

diuvine estre par dessus croyant certainement que Dieu tout puissant facteur amp gouuerneur de ce grand

ouurage excelleacutet en baeuteacute admirable en varieteacute singulier enduree ()rdquoViciss I1 583 Ver GRAFTON 1999 4-5

187

antes pela escolaacutestica garantia-lhe certamente proteccedilatildeo combinada com o cauteloso

expediente de citar os pensadores pagatildeos mouros e mesmo os astroacutelogos

contemporacircneos sem encampar nominalmente suas teses584 Na praacutetica entretanto o

que o leitor assiste ao longo do primeiro e tambeacutem do uacuteltimo capiacutetulo da obra eacute a uma

grande revisatildeo ecleacutetica da tradiccedilatildeo astroloacutegica de onde deriva a assimilaccedilatildeo

cosmoloacutegica que guia os rumos de sua anaacutelise histoacuterica A causa das modificaccedilotildees

sublunares diria Le Roy eacute dupla uma advem do ldquoprimeiro motor imoacutevel a outra do

motor moacutevel atraveacutes da virtude e da influecircncia do primeirordquo que expressa os

desiacutegnios ldquoda providecircncia divina dominanterdquo restauradora e renovadora de todos os

corpos sensiacuteveis por meio da apropriaccedilatildeo cristatilde do cacircnone aristoteacutelico da geraccedilatildeo e da

corrupccedilatildeo585

Tanto ldquoastroacutelogos quanto meacutedicos afirmam que da parte superior do universo

descendem certas virtudes companhadas de luz e calorrdquo caracteriacutesticas que ldquoalguns

chamam de espiacuterito do universo outros de naturezardquo Mas esse espiacuterito transcende a

ordem da natureza integrando-se no iacutentimo de todas as caracteriacutesticas humanas

influindo nos ldquocostumes (moeurs) das pessoas propriedades das naccedilotildees viacutecios e

virtudes sauacutedes e doenccedilasrdquo e mesmo nas ldquoprosperidades e a adversidadesrdquo Natildeo se

trata entretanto de uma ldquolei fatalrdquo podemos diminuir ou aumentar a accedilatildeo da natureza

atraveacutes da prudecircncia da alimentaccedilatildeo dos costumes e das instituiccedilotildees humanas586

Le Roy compreende a dinacircmica das vicissitudes a partir da influecircncia dos dois

motores embora ressalte que as mudanccedilas eram tambeacutem ldquotemperadasrdquo pelo repertoacuterio

claacutessico dos contraacuterios e desiguais lido atraveacutes de Heraacuteclito Homero e eacute claro

584 Le Roy sabia por exemplo como tambeacutem soubera Pico dela Mirandola que o conjuncionismo

astroloacutegico (tal como praticado no seacuteculo anterior por Pierre Drsquoailly) vinha atraveacutes dos filoacutesofos

naturais mouros ldquoSi ont les Arabes diuseacute ce longe espace de temps par les grandes conionctions des

Planetes signamment des trois Superieures Saturne Iupiter amp Mars que ils maintiennet auoir

meilleur pouuoir sur les alteratios principales de ce mode inferieur ()rdquoViciss I 3 585 ldquoLa cause mouuante est double lvne du premier moteur immobile lautre du moteur mobile par la

vertu amp influence duquel (la diuine prouidence dominant les choses caduques au mode sensible sont

incessamment restaures amp renouuelles moyennant la generation ()rdquoViciss I4 586 ldquoDocques les Astrologiens amp Physiciens afferment de la partie superieure de lvnivers descendre

certaine vertu accompagnee de lumiere amp chaleur quaucuns deux appellent lesprit de lvnivers les

autres nature () Lagrave estre le premier mouuement dont deppendent les autres inferieurs amp toute

essence De lagrave proceder diuerses temperatures des corps inclinations dentedemens moeurs des

personnes proprietez des nations vices amp vertus santeacute amp maladies force amp foiblesse briueteacute amp

longuer de vie mortaliteacute richesse amp pauureteacute prosperitez amp aduersitez () Non pas que tels effects

aduiennent necessairement amp inuiolablement par vne loy fatale ains quils peuuent estre euitez pra

sagesse ou destournez par prieres diuines ou augmentez amp diminuez par prudence ou moderez par

nourriture coustume institutionrdquo Viciss I 2

188

Empeacutedocles587 Para a filosofia natural desenvolvida sob os escombros dos antigos as

efemeacuterides solares produziam divisotildees anuais quadripartidas as quais abarcam dois

solstiacutecios um de inverno outro de veratildeo e dois equinoacutecios um durante a primavera e

outro no outono Assim satildeo lidas as alternacircncias entre o calor e frio geraccedilatildeo e

corrupccedilatildeo Tanto o movimento quanto a luz e a influecircncia eram os agentes da accedilatildeo

celeste Agentes que operacionalizavam o comportamento astral por meio da

produccedilatildeo de quatro qualidades principais a saber o calor o frio a secura e a

humidade Combinadas entre si elas originariam os quatro elementos fundamentais o

fogo a aacutegua o ar e a terra

Entre os ldquocontraacuterios e dissimilaresrdquo Louis le Roy imaginava uma espeacutecie de

dialeacutetica celeste ldquoentendida pela discoacuterdiardquo essa ldquovariedade das coisas que se unemrdquo

devem tender a ldquosuperar a contrariedaderdquo Eacute o que se passa quando Marte e Venus

Jupiter e Saturno equilibram suas caracteriacutesticas naturais E assim ocorre com o

mundo inferior composto pelos elementos com os humores humanos ndash suas paixotildees

e accedilotildees ndash ainda com a poliacutetica e com a economia588 Dessa forma como explica o

humanista ldquohoje se opotildee os escoceses aos ingleses os ingleses aos franceses e os

franceses aos italianosrdquo dentre muitos outros povos citados e comparados em

especiacutefico ao longo dos capiacutetulos restantes Sobra uma linha para comentar a

influecircncia dos contraacuterios ao sul do equador americano ldquoao Brasil dos selvagensrdquo

rudes habitantes que se potildee a ldquocomer uns aos outros quando satildeo pegos em guerrardquo 589

O seacuteculo XVI era de ansiedades e guerras de religiatildeo fez catoacutelicos e

protestantes tremerem diante das incertezas da morte da deterioraccedilatildeo das relaccedilotildees

sociais e da crise da cosmologia medieval Essa apreensatildeo eacute expressa diretamente nas

paacuteginas finais do deacutecimo livro no qual o professor do Collegravege Royal levanta o 587 ldquo() lrsquovnivers nrsquoest seulement conferueacute par la vicissitude des cieux amp des elemens mais aussi

tempere par contraiacuteres ()rdquoViciss I 6 588 ldquoEntendant par discorde la varieteacute des choses qui srsquoassemblent amp par concorde lrsquovnion drsquoiccelles

Mais lrsquovnion en celle assemblee doit surmonter la contrarieteacute Autrement se resouldroit la chose les

priacutencipes se separans Ainsi nous noions au ciel mouuemens contraiacuteres conseruer lrsquovniuers Venus

colloquee au mylieu prez Mars afin de dompter son impetuositeacute qui est de sa nature corruptif amp

Iuppiter prez Saturne pour corriger as malice Le monde inferieur composeacute drsquoElemens contraiacuteres se

maintenir par la proportion qursquoils ont ensemble les natures faittes drsquoeux se conserner par la

temperature de qualitez diferentes Se trouuent au corps de lrsquovniuers terre eua air feu soleil lune amp

autres astres Il y a matiere forme priuation simpliciteacute mixtion substance quantiteacute qualiteacute action

passion Em lrsquohumain sang flegme cholere melancholie chair os nerfs veines arteres () En

lrsquoeconomique Mari femme enfans seigneur serf maistre amp feruiteur Au politique iustice fortitude

prudence temperance religion militie iudicature finance conseil magistrats amp priuez () Lrsquoart

imitant nature em la peinture du noir blanc iaune rouge ()rdquoViciss 15-6 589 ldquoAinsi sont auiordrsquohuy opposez les Escossois aux Anglois les Anglois aux Franccedilois les Franccedilois

aux Italiens () Et au Bresil les Sauluages iusques agrave srsquoentremanger quando sont prins em guerrerdquo

Viciss I 6

189

problema das vicissitudes negativas de seu seacuteculo ldquoPor muito tempo natildeo se viu tanta

maliacutecia no mundo tanta impiedade e felonia ()rdquo a ldquodevoccedilatildeo foi extinta simplicidade

e inocecircncia satildeo zombadas e soacute nos resta sombras da justiccedilardquo 590 Como artifiacutecio para

entender o que toma como modificaccedilotildees radicais na ordem do universo Le Roy vai

buscar em Platatildeo a velha teoria do Grande Ano esse momento em que ldquoos sete

planetas e as outras estrelas fixas retornam a seus postos primitivos representando a

mesma natureza que eles possuiacuteam no comeccedilo dos temposrdquo 591

Como do outro lado do Reno fez Martinho Lutero Louis Le Roy parecia se

perguntar se o fim estava proacuteximo Mas sua impune erudiccedilatildeo ao contraacuterio do que

aconteceu com o austero reformador permitia-lhe uma interface entre a escatologia

cristatilde e os mitos platocircnicos Quando a revoluccedilatildeo do Grande Ano chegar ao fim de um

ciclo dizia o autor das Vicissitudes ldquoapareceratildeo diversos signos na terra e no ceacuteurdquo E

natildeo ldquoparecia a muitos que uma grande mutaccedilatildeordquo estava para ocorrer considerando os

sinais que teimavam em aparecer ldquonos ceacuteus nos astros nos elementos e em toda a

naturezardquo Nunca foram vistos tantos eclipses Nunca foram observados tantos

cometas Nunca se teve tantas notiacutecias de inundaccedilotildees fluviais e mariacutetimas terremotos

violentos e nascimentos de criaturas monstruosas Tambeacutem natildeo havia registros ldquona

memoacuteria humana de tantas mutaccedilotildees frequentes sobrevindas nos paiacuteses nas pessoas

nos costumes (moeurs) nas leis na poliacutetica e na religiatildeordquo

Ao fazer o percurso ptolomaico que pretendia unir em reflexatildeo a ordem do

tempo agrave ordem da natureza Le Roy natildeo se furtava a traccedilar relaccedilotildees diretas entre a

filosofia moral e a filosofia natural o sol e a lua segundo ele natildeo estavam mais na

mesma posiccedilatildeo que ocupavam na eacutepoca do saacutebio de Alexandria Leitor de Hiparco e

conhecedor da precessatildeo dos equinoacutecios ele natildeo parecia outrossim disposto a

abandonar a astrologia horoscoacutepica como a seguir fariam Scaliger e Kepler Pelo

contraacuterio as mudanccedilas na disposiccedilatildeo dos signos eram vistas como um alerta a

respeito de grandes transformaccedilotildees mundanas Chegamos a perceber uma curiosa

leitura das teorias heliocecircntricas que comeccedilavam a animar os espiacuteritos de sua eacutepoca

590 ldquoCari l nrsquoy eut pieccedila plus de malice au monde plus drsquoimpieteacute amp de defloyauteacute Deuotion est

esteinte simpliciteacute amp innocence mocquees ne reste que lrsquoombre de Iusticerdquo Viciss X 102 591 ldquoLe grand an quand les sept planetes amp autres estoilles fixes retornent agrave leurs premiers sieges

representes la mesme nature qui estoit au coacutemencement estans les vies de toute choses amp temps prefix

de leur duree terminez par nombres moindres ou plus grands selon la disposition de la matiere dont

elles sont faittes () sentant chacune sa corruption cause dautre generation Tellement quil semble agrave

Platon que lvniuers se nourisse par sa consomptions amp vieillesse surrogeant touiurs nouuelles

creatures aux vielles amp mettant au lieu des peries autress semblables sans que les especes en defaillent

qui demourent par ce moyen comme immortellesrdquo Viciss I 2

190

ldquoa terra retornourdquo diziam alguns ldquoa sua situaccedilatildeo primeira natildeo estando inteiramente

como ela estaria depois no centro do universordquo 592

Pela tradiccedilatildeo aristoteacutelica como vimos a natureza era sempre uma causa de

ordem Posta em franco movimento ciclos naturais acelerados o que sobraria para

os homens uma vez que neles a ldquovicissitude eacute maior do que em qualquer outra coisardquo

estando seus corpos mortais submetidos a uma constante variaccedilatildeo nos ldquocostumes nas

opiniotildees nos apetites nos prazeres nas doresrdquo mas igualmente nos ldquomedos e nas

esperanccedilasrdquo593 Com a imprensa e os sistemas de comunicaccedilatildeo dinamizando a forma

de transmissatildeo de saberes e informaccedilotildees registros de atividades celestes e cataacutestrofes

naturais tornavam-se disponiacuteveis em maior quantidade e rapidez Se natildeo era ainda o

momento da consciecircncia da aceleraccedilatildeo do tempo jaacute presente nos homens do seacuteculo

XVIII e XIX teriacuteamos a percepccedilatildeo de um desregramento da ordem da natureza

Quase ao final de sua obra no penuacuteltimo paraacutegrafo do livro onze Louis Le Roy

arrisca um prognoacutestico De maneira anaacuteloga ao encerramento da Repuacuteblica de Ciacutecero

o humanista cria uma seacuterie de imagens apocaliacutepticas calculadas como comentou

Gundersheimer para ldquocausar arrepios na espinha dos leitoresrdquo594

Eu prevejo guerras por toda a parte brotando no interior

e no estrangeiro facccedilotildees e heresias levantando-se para

profanar todo o humano e o divino que possam

encontrar fomes e pestes ameaccedilando os mortais a

ordem da natureza a regra dos movimentos celestes e a

harmonia dos elementos rompendo-se enquanto por um

lado enchentes ocorrem e por outro temos calor

excessivo e terremotos violentos Prevejo tambeacutem o 592 ldquoMais que toutes viennent agrave finir leurs cours dedans la reuolutions du grand an Et que quand lvne

vient agrave finir lautre est preste agrave commencer il se face plusieurs signes estranges en la terre amp au ciel

Parquoy il semble a plusieurs quelque mutation grande approcher considerans les signes apparus puis

quelque temps au ciel eacutes astres eacutes elements amp en toute nature Oncques le Soleil amp la Lune

neclipserent plus apparemment Oncques ne furent veues tant de Cometes amp autres impressios en lair

Oncques la mer amp les riuieres ne desborderent si violemment Oncques ne furent ouys tels tremblement

de terre Oncques ne nasquirent tant de monstres amp si hideux () Aussi na lon veu de memoire

humaine tant de mutations amp si frequentes aduenueumls eacutes paiumls gens meurs loix polices religions Le

cours du Soleil nest plus tel quil estoit anciennement ny les poincts mesmes des Solstices amp

Equinocces ains depuis quatorze cens ans que vesquit Ptolomee trasdiligent obseruateur des affaires de

lvnivers il est plus prochain quil nestoit lors de la terre enuiron douze degrez () Dauantage lon dict

que toutes les parties du Zodiaque amp les signes entiers ont change leurs lieux amp que la terre est remuee

de sa premiere situation nestant entierement comme elle estoit parauant le centre de lunivers ()

Aucuns aussy (comme Hipparque Astrologie fort estimeacute entre les Grecs) ont mis en auant que les

mouuements celestes nont quelquefois agrave lopposite amp que les cours des astres changeront deuenant

lOrient Occident amp le Midy Septentrion Cependant la continuation de la vicissitude que voions cy bas

consiste en la cause mouuante amp en la matiere premiererdquo Viciss I 4 593 ldquoOr est la varieteacute amp vicisstude plusgrande en lhomme quen nulle autre chose () que par lame

changeant de meurs coustumes opinions appetis plaisirs douleurs craintes esperancesrdquo Idem I 10 594 GUNDERSHEIMER op cit p 116

191

universo se aproximando do fim por uma ou outra forma

de desregramento trazendo consigo a confusatildeo de todas

as coisas e levando-as de volta ao seu estado anterior de

caos 595

Natildeo estava na pauta da Vicissitude se transformar em um tratado escatoloacutegico

No paraacutegrafo seguinte seu autor lembra que a despeito de tudo que os fiacutesicos da

eacutepoca diziam quanto agraves causas e leis fatais do mundo ldquotodos os eventos dependem

principalmente da providecircncia divina que estaacute acima de toda a naturezardquo e que

apenas ela sozinha sabe o tempo em que tudo isso pode ocorrer ldquoAs pessoas de boa

vontade natildeo deveriam se assustarrdquo conclui ldquomas tomar coragem trabalhando com

cuidado nas vocaccedilotildees a que foram chamadasrdquo 596 Na verdade Louis Le Roy fora

tudo menos um pessimista O suposto Toynbee ou Spengler de seu tempo ndash como

qualificou uma notoacuteria estudiosa do hermetismo renascentista ndash tambeacutem faria no

deacutecimo livro de sua obra maacutexima um balanccedilo fortemente favoraacutevel ao seacuteculo em que

viveu comparando-o com outras eras ilustres597 O voraz leitor dos antigos e haacutebil

feitor de paralelos era em igual medida um defensor dos modernos Uma das

primeiras a falar em progressos a erudiccedilatildeo de Le Roy ldquoencontra sua justificaccedilatildeo

uacuteltima na proacutepria asserccedilatildeo de que amanhatilde ela pode ser superadardquo 598 O progresso

sobre o qual escrevia ndash o movimento que tendia a exonerar a agecircncia humana ndash

dependia ainda dos ciclos de uma natureza que natildeo havia ldquoexaurido sua forccedilardquo e a

qual permitia aos homens ldquodar agrave luz a inovaccedilotildees genuiacutenasrdquo599 Eacute claro que isso natildeo o

595 ldquoIe preuoy guerres de toute pars sourdre intestines amp foraines factioacutes amp heresies srsquoefmouuoir qui

prophaneront tout ce que trouueron de diun amp humain famines amp pestes menasser les mortels lrsquoordre

de nature reiglement des mouuemeacutes celestes amp conuenance des elements se rompant drsquovn costeacute

aduenir deluges de lrsquoautre ardeurs excessius amp tremblemens tref-violents Et lrsquovunivers approchat de

la fin par lrsquovn ou lrsquoautre desreiglement emportant auec foy la confusion de toutes choses amp les

reduisant agrave leur ancient chaosrdquo Viciss XI 114 Grifos meus 596 ldquoParainsi combien que ces choses procedente agrave lrsquoaduis des Phisiciens selon la loy fatale du monde

amp ayent leurs causes naturelles Toutefois les euenemens drsquoicelles dependente principalement de la

prouidence diuine qui est par dessus toute nature amp sccedilait seulle les temps prefix eacutesquels douient

eschoir Parquoy ne srsquoem doiuent esbahir les gens de bonne volonteacute ains plustot prendre courage

trauaillant soigneusement chacun em la vaccation ougrave il est appelleacute ()rdquo Viciss XI 114 597 O paralelo com Toynbee e Spencer foi feito na deacutecada de 60 em uma resenha da obra de

Gundersheimer por YATES Frances A The Life and Works of Louis Le Roy By Werner L

Gundersheimer Librairie Droz Geneva New York Review of Books August 24 1967 598 GUNDERSHEIMER op cit p 121 Franccedilois Hartog viu na Vicissitude um ponto de vista que reflete

mudanccedilas na relaccedilatildeo com o tempo o qual deixaria de ser visto como fundamental ou uniformemente

decadente ldquoHaacute progressosrdquo escreveu Hartog ldquoou mais exatamente haacute progressordquo no tempo

Progressos que formam uma espeacutecie de senoacuteide que natildeo eacute ldquonem naturalmente contiacutenua nem

indefinida nem uniformerdquo embora o graacutefico da decadecircncia tambeacutem natildeo o fosse HARTOG Anciens

Modernes Sauvages 2005 p 36-37 599 Anthony Grafton por sua vez disse que Louis le Roy ldquoargumentou tatildeo cedo quanto em 1542 que a

natureza natildeo havia exaurido sua forccedila e que o homem poderia ainda produzir inovaccedilotildees genuinasrdquo

GRAFTON What was history 2007 cap 3 sp proacuteximo a nota 75

192

impediu ndash ainda que sobre uma tela bem diversa ndash de pintar as partes finais de sua

cosmologia nas mesmas cores do chamado moral com que Cicero encerrou o Sonho

de Cipiatildeo

Ainda no seacuteculo XVI as primeiras escolas foram criadas no Brasil tendo

membros da Companhia de Jesus entre seus primeiros professores Quinze dias depois

de aportarem ao lado de Tomeacute de Souza em 1549 membros da ordem fundaram a

ldquoEscola de ler e Escreverrdquo Em 1556 criaram o coleacutegio de Todos os Santos para um

ano depois construiacuterem outro no Rio de Janeiro e em 1558 mais um em Olinda 600

Nos seus cursos de artes os padres ensinavam matemaacutetica fiacutesica loacutegica eacutetica e

metafiacutesica e entre 1575 e 1578 enquanto Le Roy escrevia seu tratado sobre a

Vicissitude o Coleacutegio da Bahia comeccedila a conferir os primeiros graus de Bacharel e de

Mestre em Artes601 Apesar dos saberes celestes natildeo figurarem em seus curriacuteculos

alguns professores eram versados nessas artes e permaneceram cultivando-as em

terras tropicais 602

Parece ter sido o caso deacutecadas mais tarde de Paulo da Costa professor de

Padre Antocircnio Vieira (1608-1697)603 Vieira estudou filosofia natural no Coleacutegio da

Bahia entre os anos de 1628 e 1631 e segundo suas proacuteprias palavras foi um aluno

bastante aplicado tendo preparado de punho uma suacutemula filosoacutefica604 Aleacutem de

Imperador da liacutengua portuguesa no ceacutelebre dizer de Fernando Pessoa o padre fora

tambeacutem tradutor e diplomata da voz divina Mas ela natildeo vinha lhe fazer menccedilatildeo de

uma sarccedila ardente Em 1695 um cometa foi avistado na Cidade do Salvador Vieira

no incanccedilaacutevel papel de pregador apressa-se para redigir um longo juiacutezo sobre o

fenocircmeno que atento a leitura dos antigos e dos pais da Igreja considerava como um

portento maleacutefico Natildeo queria no entanto reivindicar o estatuto de uma anaacutelise

astronocircmica desinteressado que estava em definir a natureza material do cometa

medir-lhe as distacircncias tomar-lhe os tamanhos e precisar seus formatos Fez tambeacutem

600 LEITE Serafim As Primeiras Escolas do Brasil In Paacuteginas de Histoacuteria do Brasil col ldquoBrasilianardquo

vol 95 Companhia Editora Nacional 1937 p 39 601 ____________ Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil Tomo I Rio de Janeiro Livraria

Civilizaccedilatildeo Brasileira 1938 p 75 602 MORAES Abrahatildeo A Astronomia no Brasil Usp 1984 p 17 603 Sobre Padre Antocircnio Vieira em particular (pp 140-141) assim como a respeito da teoria da

influecircncia celeste portuguesa em geral sigo CAROLINO Luiacutes Miguel Ciecircncia Astrologia e

Sociedade a Teoria da Influecircncia Celeste em Portugal (1593-1755) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian

Porto 2003 604 LEITE Serafim Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil Tomo VII op cit p 222

RODRIGUES Francisco Histoacuteria da Companhia de Jesus na Assitecircncia de Portugal Porto

Apostolado da Imprensa 1931-1950 Tomo III vol I p 134-135

193

uma ressalva aos juiacutezos astroloacutegicos criticando na esteira das sucessivas

condenaccedilotildees papais o caminho judiciaacuterio essa inuacutetil e vatilde parte da nobre arte que

ldquocostuma entreter os discursos e enganar as esperanccedilasrdquo grave crime contra a

providecircncia e mais importante um claro ldquodesprezo pelos seus avisos taotilde manifestosrdquo

605 Sim um aviso Deus a ecoar Agostinho ldquoauthor amp governador do Universordquo

envia-nos sobre as asas de um anjo essa ldquoportentosa figurardquo Motivo pelo qual ldquoao

juizo do cometa interpretadordquo Vieira daria o ldquoSegundo nome de voz de Deosrdquo 606

Muitos em seu tempo jaacute lhe pareciam increacutedulos Entre alguns se notava a

ousadia de observar os cometas meramente atraveacutes de ldquocausas naturaesrdquo sem neles

reconhecer ldquooutro mysterio ou documento mais altordquo607 De fato alguns anos antes

entre marccedilo de 1680 e fevereiro de 1881 a passagem de um cometa inspirou um

combatido represente da Repuacuteblica das Letras a redigir alguns Penseacutees Diverses Em

1682 Pierre Bayle utilizando registros telescoacutepicos como oportunidades editoriais

promovia em paacuteginas impressas a querela dos ceacuteticos contra os superticiosos

Criticava os astroacutelogos chamava agrave palavra os catoacutelicos associando-os ao paganismo

em seus diaacutelogos e de laacute agrave ignoracircncia ancestral608

605ldquoNatildeo se chama este juizo Astronomico porque natildeo he nosso intento examinar ou diffinir a natureza

a materia o nascimento o lugar as distancias os aspectos os movimentos nem algumas das outras

circunstacircncias em que curiosamente se empregravegaotilde as observaccedilotildees da Astronomia (hellip) Tambem se natildeo

chama Astrologico este juizo porque reputando nograves com os mais Sabios amp prudentes professores da

mesma Arte quam inutil instructosa amp vatilde seja aquella parte da Astrologia que com o nome de

Judiciaria costuma entreter os discursos amp enganar as esperanccedilas ou fantasias dos homens naotilde soacute

seria crime cotildentra a Providencia Altissima mas desprezo pelos seus avisos taotilde manifestos (hellip)rdquo

VIEIRA Antonio Voz de Deos ao mundo a Portugal amp aacute Bahia Juizo do cometa que nella foi visto

em 27 de Outubro de 1695 amp continua ateacute hoje 9 do Novembro do mesmo anno In Sermoens e Varios

Discursos () da Companhia de Jesu Pregravegador de Sua Magestade Tomo XIV Obra posthuma

dedicada a purissima Conceyccedilam da Virgem Maria Nossa Senhora Lisboa Valentim da Costa

Deslandes 1710 p 225-226 doravante citada como Voz de Deos 606 Voz de Deos 226 607 A tradiccedilatildeo representada pelos tratados de cometologia da primeira modernidade apresentava os

registros de avistamentos de cometas como documentos ou evidecircncias relacionadas a eventos

sublunares unindo como tambeacutem faratildeo outras formas de de cronologia os meacutetodos da filologia agraves

observaccedilotildees astronocircmicas Com frequecircncia os avistamentos eram organizadas em uma sequecircncia de

datas e associados a algum desastre ou fato traacutegico morte de reis pestes fomes guerras etc As

dificuldades poliacuteticas do seacuteculo XVI asseguravam que a apariccedilatildeo de um cometa pudesse logo ser

associada a algum fato negativo Por sua vez a concepccedilatildeo aristoteacutelica de que os cometas seriam

exalaccedilotildees terrestres na atmosfera facilitava seu uso meacutedico climaacutetico e poliacutetico Como escreveu Adam

Mosley ldquoos cataacutelogos de cometas dos seacuteculos XVI e XVII testemunham ateacute que ponto a historia como

uma forma de investigaccedilatildeo atravessava a fronteira moderna entre os reinos natural e socialrdquo

MOSLEY 2013 p 18 608 BAYLE Pierre Penseacutees Diverses agrave lrsquooccasion drsquoun comegravete In Oeuvres Diverses Tome III parte

I La Haye Compagnie des libraires 1737 John Robertson chegou a ver nesse texto de Bayle a origem

das discussotildees que levariam ao desenvolvimento do iluminismo em Naacutepoles e na Escoacutecia a partir da

asserccedilatildeo de que uma sociedade construiacuteda por ateus era natildeo apenas concebiacutevel como tambeacutem possiacutevel

ROBERTSON John The Case for the Enlightenment Scotland and Naples 1680ndash1740 Cambridge

Cambridge University Press 2005 principalmente p 130 apud POCOCK J G A Historiography and

194

ldquoNos dias que precederagraveotilde o Juizo finalrdquo e nesse tom dirige Vieira a palavra

aos ceacuteticos ldquohaveraacute alguns homens tatildeo increacutedulos que zombem dos sinaesrdquo Mas os

efeitos desses pressaacutegios castigaratildeo toda obstinaccedilatildeo ldquopor natildeo quererem dar credito aos

avisos do ceordquo 609 Na leitura que deveria fazer eco a via media os cometas satildeo

efeitos de uma causa secundaacuteria criados ex nihilo pela vontade da Primeira Causa

como vozes da Providecircncia Igual a muitos de seu tempo o jesuiacuteta estava convencido

de que esses fenocircmenos celestes eram cada vez mais frequentes ldquoporque em nenhua

historia sagrada ou profana se faz memoria ou menccedilatildeo de que fosse visto Cometardquo

excetuando-se o ldquoprimeiro anno da Olympiada setenta amp seterdquo quando os gregos

avistaram hoje sabemos o cometa Halley por volta de 466 AC610

Entatildeo por que os antigos natildeo registravam esses eventos Caso aceitemos

seguir a leitura como o faz o sacerdote de textos atribuiacutedos a Berossus deveriacuteamos

acreditar que os antigos conheciam bem a astrologia essa ciecircncia que receberam ldquoos

Chaldeos de Adamrdquo e o patriarca pessoalmente de Deus Seria negligecircncia ou

ldquodesatenccedilatildeo dos histoacutericosrdquo Falta de ouvidos agrave palavra divina Ora responderia

Vieira natildeo os anotavam porque ldquoem todas aquelas idades natildeo houve Cometasrdquo tendo

o Senhor reservado ldquoeste modo de linguagem para falar por ella ao mundo nos tempos

posteriores destinados a sua Providenciardquo Mas tatildeo logo cessaram os profetas apoacutes a

vinda do Cristo e a ldquomesma Chronologia dos temposrdquo vem confirmar toda conjectura

pontuada pela apariccedilatildeo das ceacutelebres estrelas novas611

As estrelas novas vieram ao mundo oferecer alertas e instigar conselhos

Mundo que poderia ser pensado como natural ldquoou como mundo poliacuteticordquo Enquanto

pressaacutegios da natureza os cometas anunciam pestes fomes secas enchentes

erupccedilotildees de fogo e tremores de terra Os avisos do segundo tipo que parecem lhe

interessar mais diziam respeito aos governos e a sua ruiacutena poliacutetica dividindo-se em

relaccedilatildeo a trecircs questotildees sublunares a guerra a mudanccedila de impeacuterios e a morte de

priacutencipes Atraveacutes da leitura dos historiadores antigos e da era cristatilde Padre Antonio

Enlightenment a view of their History In Modern Intellectual History 51 Cambridge University

Press 2008 p 84 609 Voz de Deos 226-227 610 () porque em nenhuma historia sagrada ou profana se faz memoria ou menccedilatildeo de que fosse visto

Cometa senatildeo no primeiro anno da Olympiada setenta amp sete que responde aos anos quatrocentos amp

oitenta antes do nascimento de Christo E daqui se poacutede formar hum novo amp naotilde vulgar argumento de

que se prova que os Cometas como dizia saotilde liacutengua ou voz de Deos o qual desde aquelle tempo

comeccedilou a falar amp avisar aos homens por meyo destes sinais do Ceo costumando de antes fallarlhes

por outros modos como diz S Paulo muytos amp diversos () Voz de Deos 227 611 Voz de Deos 228-229

195

Vieira relaciona ndash em um esboccedilo cronoloacutegico que lembra os esforccedilos conjuncionistas

de Pierre DrsquoAilly ndash a observaccedilatildeo dos cometas agrave eclosatildeo de conflitos Sua narrativa

comeccedila quatro seacuteculos antes da vinda do Salvador quando um corpo celeste

incandescente anunciaria a guerra de Xerxes contra a Greacutecia Mais tarde as batalhas

de Estilicatildeo entre os Getas tambeacutem seriam anunciadas por um fenocircmeno similar

assim como a luta de Carlos Martel frente aos sarracenos e de Lotaacuterio a seus

irmatildeos612

O segundo tipo de pressaacutegio relativo ao mundo poliacutetico dizia respeito agraves

mudanccedilas de impeacuterios ldquoNatildeo haacute cousa mais vulgar na opiniatildeo commuardquo acreditava o

padre ldquonem mais celebre nas Escriturasrdquo ndash mesmo que fosse essa uma posiccedilatildeo ousada

e francamente contraacuteria como vimos no iniacutecio deste capiacutetulo ao que pensava

Agostinho Alexandre vencendo Dario Otaacutevio derrotando Antocircnio a Peacutersia

conquistada pela Araacutebia sagraccedilatildeo de Carlos Magno levando o impeacuterio agrave Germacircnia

tambeacutem a tomada de Constantinopla pelos Latinos em 1204 todas as grandes

mudanccedilas poliacuteticas teriam sido acompanhadas com precisatildeo pelo avistamento de

cometas613 Vieira encontra espaccedilo para citar as tabelas conjuncionistas de Andrea

Argoli ceacutelebres entre os lusitanos com quem ldquotodos os Mathematicos antigos

concordaratildeordquo referindo-se ao encontro dos dois gigantes no ano de 1683 ldquoAssim

refere Argolo nas suas Efemeridesrdquo fez dizer o jesuiacuteta ldquotendo conjunccedilatildeo superior de

Saturno e Juacutepiter no triacircngulo de fogordquo grandes modificaccedilotildees em questotildees gerais e

nas propriedades ocorreriam facilmente614 Seguindo de muito perto as palavras de

Joatildeo Damasceno sacerdote siacuterio dado a divagaccedilotildees celestes Vieira lembra a uacuteltima

categoria de avisos que seriam trazidos na cauda das estrelas Chrysorrhoas o Boca

de Ouro ldquodistintamente affirma que os Cometas saotilde instituidos por Deos para

significar a morte dos Reysrdquo Unindo como bom jesuiacuteta o estudo dos doutores da

612 Voz de Deos 232-235 613 Voz de Deos 336 614 ldquoE se as Estrellas tem sobre ele algum poder ou significaccedilatildeo todos os Mathematicos antigos

concordaratildeo de Saturno amp Jupiter que soy no anno de oytenta amp trecircs deste seacuteculo haveraacute grande

mudanccedila de domiacutenios Assimo refere Argolo nas suas Efemerides sendo muyto para notar que natildeo faz

outra notaccedilatildeo em todas ellas as palavras com que o diz satildeo as seguintes fol 363 Cur celeretur

conjunctio superiorum Saturni amp Jovis in trigonoigneo antiquorum consensis mutationes magna

contingente amp generales constitutiones ac de facili dominiorum mutationesrdquo Voz de Deos 336 Para o

texto citado ver ARGOLO Andrea Avectore Exactissimae Caelestivm Motvvm Ephemerides Ad

Longitvdinem Almae Vrbis Et Tychonis Brahe Hypotheses AC Deductas Caelo Accurat

Observationes AB Anno 1641 Ad Annum 1700 () Praeter Stellarum Fixarum Catalogum Extat

Tabula Ort Encontrei citaccedilatildeo das efemeacuterides de Argolo tambeacutem em outro autor portuguecircs do seacuteculo

XVII TEIXEIRA Antonio Epitome das noticias Astrologicas para a Medicina Lisboa Officina de

Ioam da Costa 1670 p 340

196

Igreja com observaccedilotildees astronocircmicas eacute a vez de comemorar ldquoKeplero na sua

Philologiardquo Kepler havia comentado o medo que Carlos V sentiu ao avistar a estrela

nova de 1586 O imperador no entanto viveu mais alguns anos O que poderia fazer

o governante pio frente a uma sentenccedila de morte senatildeo arrepender-se e ajoelhar-se

diante de Deus Imitem a Carlos diria Vieira e que nenhum ldquose fie de sua idade nem

se engane com seu poderrdquo Assim poderatildeo sobreviver615

A Voz de Deus tambeacutem clamava seu chamado moral aos reinos ldquoA Primeyra

cousa que diz a Portugal () he que entenda () que este Cometa fala

particularmenterdquo com ela Lembre-se diz o pregador do astro que apareceu nos ceacuteus

em 1580 anunciando uma das maiores trageacutedias de sua histoacuteria ldquomorreo Dom

Henrique amp o Reynordquo fora ldquoherdado sem direyto comprado sem preccedilo amp

conquistado sem Guerrardquo Vieira inteacuterprete da voz de Deus natildeo evoca apenas a

memoacuteria do cativeiro eacutepoca de uniatildeo forccedilada sob o julgo habsburgo e de insatisfaccedilatildeo

da aristocracia lusitana Fala tambeacutem em pressaacutegios de esterilidade de secas de fome

e todo o tipo de ldquoestragos nos poubresrdquo 616 Palavras endereccediladas a Bahia eacute claro

igualmente chegavam na poeira das estrelas Por mais de dez dias avistado na costa

brasileira o portento de 1695 rogava segundo Antonio Vieira pela ldquoreformaccedilatildeo da

justiccedilardquo ldquomelhora dos costumes amp tal emenda nas vidasrdquo O terror causado pelos

avistamentos seria como nos diz um bom pressaacutegio exortando os fieacuteis a largarem os

ldquopecados escandalososrdquo Deus eterno e imutaacutevel ameaccedila os pecadores mas

ldquoentenderdquo conclui Vieira que Ele ldquosoacute te castigaragrave () se te natildeo emendaresrdquo 617

Educado no seio da Companhia de Jesus Padre Antonio Vieira tanto no juiacutezo

do cometa quanto em inuacutemeros sermotildees expressa uma formaccedilatildeo que teve por base os

Commentarii Collegi Conimbrencis apostilhas de filosofia natural aristoteacutelica

615 Voz de Deos 240 616 () herdado sem direyto comprador sem preccedilo amp conquistador sem Guerra por estes tres titulo (ou

por outros no Tribunal Divino mais justos) ficou cativo amp sugeyto ao Rey estranho naotilde por menos

espaccedilo que de sessenta anos inteyros (hellip) As novas q aqui chegaacuteratildeo ultimamente de Portugal saotilde de

esterilidade amp fome mas como a fome faz os seus effeytos amp estragos nos poubres amp nos pequenos

amp a Sybilla falla dos grandes poderosos amp illustres fique a explicaccedilatildeo amp applicaccedilatildeo deste oraculo a

Lisboa () Voz de Deos pp 241-251 617 ldquoEmfin Bahia que se veja em tit al reformaccedilatildeo de justice tal melhora de costumes amp tal emenda

nas vidas que assim como hoje te quadra o nome de Civitas vanitatis assim mereccedilas o de Civitas justi

() E porque a peccados escandalosos amp publicos se deve satisfaccedilatildeo tambem publica veja publicas

penitencias o Ceo em tuas ruas amp publicas deprecaccedilotildees Christo Senhor (hellip) confia em Deos cuja

condiccedilatildeo se natildeo muda que se te ameaccedila peccadora natildeo te castigaraacute penitente Entende que o que

pertende Deos com o terror deste Cometa natildeo he castigarte senatildeo emendarte amp soacute te castigaragrave se te

natildeo emendaresrdquo Voz de Deos pp 263-264

197

preparadas ao longo do seacuteculo XVII618 A comparaccedilatildeo entre Le Roy e o Imperador

natildeo se daacute apenas pelo proselitismo providencialista e moral que ambos os discursos

levam como marca Os dois autores supracitados expressam cada um a seu modo

uma apreensatildeo cosmoloacutegica frente a um desregramento dos ciclos naturais

entendidos ora como sinal do fim dos tempos ora como anuacutencio de desgraccedilas

seculares Ou como deveriacuteamos entender as preocupaccedilotildees do padre jesuiacuteta quando

inspirado por questotildees debatidas nos bancos escolares da ordem imagina tendo a

Corte como auditoacuterio um cosmos desprovido de movimento Valendo um Louis le

Roy agraves avessas contraacuterio e dissimilar natildeo eacute a percepccedilatildeo de uma aceleraccedilatildeo dos

ciclos naturais mas seu exato oposto que inflama a alma racional e a (natildeo) contagem

do tempo

Quando o Sol parou agraves vozes de Josueacute aconteceram no

mundo todas aquelas consequecircncias que parando o

movimento celeste consideram os filoacutesofos As plantas

por todo aquele tempo natildeo cresceram as qualidades dos

elementos e dos mistos natildeo se alteram a geraccedilatildeo e a

corrupccedilatildeo com que se conserva o mundo cessou as

artes e os exerciacutecios humanos de um e outro hemisfeacuterio

estiveram suspensos os antiacutepodas natildeo trabalhavam

porque lhes faltava a luz os de cima cansados de tatildeo

comprimido dia deixavam o trabalho estes pasmados de

verem o Sol que se natildeo movia aqueles tambeacutem

pasmados de esperarem pelo Sol que natildeo chegava

cuidavam que se acabara para eles a luz imaginavam

que se acabava o mundo tudo eram laacutegrimas tudo

assombros tudo horrores tudo confusotildees619

Como notou Luiacutes Miguel Carolino Vieira apropriava-se das teses presentes no

Cursus Philosophicus de Francisco Soares que por sua vez seguiam os Commentari

de Coimbra a respeito do De Caelo Caso o movimento circular dos astros deixasse de

618 Vieira considerou a autoridade dos Comentarii ldquoa mais autorizada e elegante que ateacute agora apareceu

no mundordquo Ver CAROLINO 2003 p 152 Para uma lista dos comentaacuterios ver p 19 Vieira

provavelmente leu o Cursus Philosophicus de Rodrigo de Arriaga publicado na Antueacuterpia em 1632

Sobre essa questatildeo ver LEITE Serafim Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil vol VII p 222 619 VIERA Antonio Sermatildeo do Esposo da Matildee de Deus S Joseacute In Sermotildees XV tomos Porto Lello

amp Irmatildeo 1959 Vol VI pp 389-390 Grifos meus O compromisso poliacutetico de Vieira neste sermatildeo era

legitimar o Duque de Braganccedila frente aos seus rivais ao trono portuguecircs D Joatildeo IV era neto por

linhagem matriarcal de Dona Catarina e Vieira argumentava que a Providecircncia possuiacutea em certos

momentos da histoacuteria predileccedilatildeo pela prole masculina O exemplo era buscado em Jesus que teria

herdado o reino de Davi atraveacutes de Maria e natildeo de Joseacute Sobre essa questatildeo ver BUESCU Ana Isabel

Sentimento e Esperanccedilas de Portugal In A Restauraccedilatildeo e sua eacutepoca Lisboa Cosmos 1993 e

tambeacutem CUNHA Mafalda Soares da A questatildeo juriacutedica na crise dinaacutestica In Histoacuteria de Portugal

No Alvorecer da Modernidade Lisboa Estampa 1997

198

se fazer notar nos ceacuteus os ciclos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo seriam suspensos na terra e

com ele o comportamento natural dos corpos sublunares verteria suas regras na mais

pura desordem620 Sem efemeacuterides para marcar a mudanccedila natildeo poderia haver vida e

sem ela almas para contar o tempo Imagens escatoloacutegicas eram lugares comumente

evocados na retoacuterica do Padre Antonio Vieira Mas sua teologia natural da histoacuteria se

pudermos emprestar novamente a concepccedilatildeo de Pomian encontrou senatildeo uma paacutelida

imagem no projeto inacabado que visava reciclar as profecias de Bandarra de

Trancoso e que natildeo poderia existir sem se basear em uma tensatildeo621 Enquanto

profecia suas palavras certamente ultrapassavam o ldquohorizonte de experiecircncia

calculaacutevelrdquo destruindo o tempo ldquode cujo fim ela se alimentardquo 622 Como prognoacutestico

nutria-se da situaccedilatildeo poliacutetica do qual era uma instacircncia de accedilatildeo permitindo-se mirar

para antes do fim dos tempos uma pax lusitana a ordenar a cristandade Como em

Louis le Roy lia nos astros um uso do futuro ainda que em nome de um passado

uma advertecircncia escatoloacutegica pela manutenccedilatildeo dos bons costumes cristatildeos

incentivada agora pela imagem do impeacuterio glorioso

Talvez um dos uacuteltimos resquiacutecios daquilo que o autor de A Ordem do Tempo

viu em Pierre drsquoAilly como um ldquobeco sem saiacutedardquo alguns dos escritos que renderiam

argumentos aos inquisidores contra Vieira portavam consigo a crise das formas

aristoteacutelicas de representaccedilatildeo da natureza delimitando os limites da via media tomista

e com ela da proacutepria cosmologia medieval623 Se com o heliocentrismo e o retorno

aos textos claacutessicos de Ptolomeu a astrologia sofreu propostas de reforma com o

sucesso acadecircmico das teses de Sir Isaac Newton ao longo dos seacuteculos seguintes a

620 ldquo() natildeo hesitava em tomar para si a posiccedilatildeo de Francisco Soares segundo a qual se os astros

cessassem a sua operaccedilatildeo natildeo apenas por intermeacutedio do movimento mas ainda pela influecircncia cessaria

na verdade a reproduccedilatildeo dos seres vivosrdquo [Si Astra non solum cessarent a motu sed etiam ab influxo

cessarent quidem generationes viventium] SOARES Francisco Cursus Philosophicus Tomus

secundus continens universam doctrinam in Libros Aristotelis Physicorum de Coelo Meteoris et

Parvis Naturalibus Eacutevora ex typographia Academia 1668 (1651) Apud CAROLINO 2003 158 621 Sobre o uso das profecias de Bandarra na obra de Padre Antonio Vieira ver MANDUCO

Alessandro Histoacuteria e Quinto Impeacuterio em Antocircnio Vieira In Topoi v 6 n 11 Jul-dez 2005 p 252

Bandarra de Trancoso acusado pela inquisiccedilatildeo teria tomado seu messianismo poliacutetico dos judeus ver

ANTOcircNIO Seacutergio Interpretaccedilatildeo Natildeo Romacircntica do Sebastianismo In Obras Completas Ensaios

Tomo I Ed Claacutessicos Saacute da Costa 2ordf ediccedilatildeo Lisboa pp 239-271 apud NOVISNKY Anita Padre

Antocircnio Vieira a Inquisiccedilatildeo e os Judeus Novos Estudos Cebrap n o 29 Marccedilo de 1991 p 173 Para

quem ldquoa prisatildeo de Vieira pela Inquisiccedilatildeo estaacute ligada agrave sua mensagem poliacutetica agrave sua criacutetica social e aos

seus escritos a favor dos cristatildeos-novosrdquo 622 KOSELLECK Reinhart O Futuro Passado dos Tempos Modernos In Futuro Passado

Contribuiccedilatildeo agrave semacircntica dos tempos histoacutericos Rio de Janeiro Contraponto 2006 p 33 623 Sobre o modelo de Pierre drsquoAilly como um ldquobeco sem saiacutedardquo ver POMIAN Krzysztof Astrology

as a Naturalistic Theology of History 1986 p 43

199

teoria da influecircncia celeste receberia enfim a sua paacute de cal624 A percepccedilatildeo de uma

desordem da natureza deslocou consigo a necessidade de reformular suas formas de

representaccedilatildeo Ela insuflou expectativas olhares aos ceacuteus e ao horizonte

acompanhando a libertaccedilatildeo de toda uma seacuterie de modalidades da experiecircncia do

tempo Em uma de suas obras da mesma fase do Clavis Prophetarum Padre Antonio

Vieira jaacute expressava essa inquietaccedilatildeo

O tempo como o Mundo tem dois hemisfeacuterios um

superior e visiacutevel que eacute o passado outro inferior e

invisiacutevel que eacute o futuro no meio de um e outro

hemisfeacuterio ficariam os horizontes do tempo que satildeo

estes instantes do presente que iamos vivendo onde o

passado se termina e o futuro comeccedila desde este ponto

tendo seu principio a nossa histoacuteria625

Fascinado pelo sol como metaacutefora de Cristo a escrita de Vieira rumou ao

horizonte e esperanccedilosa em se iluminar pelos raios dourados da verdade e da vida

fez o saacutebio observar descendo agraves celas da inquisiccedilatildeo a sua inacapada Histoacuteria do

Futuro ter o mesmo triste fim das asas de Iacutecaro626 O bem aventurado infante faleceu

antes que pudesse contar jubileus e com ele saudou-se em adeus o sonho do Quinto

Impeacuterio A tensatildeo que as interpretaccedilotildees escatoloacutegicas do tempo refletiam ndash abrindo o

horizonte a um porvir mesmo que em nome da restauraccedilatildeo de uma moral passada ndash jaacute

foi observada enquanto parte do processo de ldquodescobertardquo da dimensatildeo histoacuterica

Segundo essa leitura o ldquoencurtamento do tempordquo teve como surpreendente efeito a

aceleraccedilatildeo da proacutepria histoacuteria627

624 Tal eacute a tese claacutessica de THORNDIKE Lynn The true place of astrology in the History of Science

op cit 1955 Thorndike argumenta que um dos efeitos da revoluccedilatildeo cientiacutefica foi a substituiccedilatildeo da

influecircncia celeste como lei geral da natureza pela teoria da gravitaccedilatildeo universal O debate acadecircmico

a respeito da superaccedilatildeo da filosofia natural peripateacutetica eacute no entanto bem mais vasto e sua anaacutelise

foge as minhas pretensotildees Edward Grant dedicou-se a estudar as reaccedilotildees tradicionalistas aos modelos

heliocecircntricos e mecacircnicos Para o estudioso o sistema aristoteacutelico ldquocontinuou a ganhar adesatildeo da

esmagadora maioria das classes educadas do seacuteculo XVII o seu uacuteltimo como um sistema creditaacutevelrdquo

GRANT Edward In Defense Of The Earths Centrality and Immobility Scholastic Reaction To

Copernicanism In The Seventeenth Century American Philosophical Society 1984 p 3 625 VIERA Antonio Histoacuteria do Futuro Livro Ante-Primeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees e Publicaccedilotildees

Brasil 1937 p 37 A seguir Vieira explica o tiacutetulo de sua obra ldquoE porque havemos de distinguir

tempos e annos signalar proviacutencias e cidades nomear naccedilotildees e ainda pessoas quanto o sofrer a

mateacuteria por isso sem ambiccedilatildeo nem injuria de ambos os nomes chamaremos a esta narrativa histoacuterica

histoacuteria do futurordquo Idem p 40 626 Para um alonga lista das imagens que associam o sol a Cristo no sermonaacuterio de Viera ver

CAROLINO 2003 p 154 nota 67 627 () if one observes the topos of the eschatological foreshortening of time in terms of its historical

interpretations one arrives at the astonishing finding that from the initially suprahistorical

foreshortening of time came a gradual acceleration of history itselfrdquo KOSELLECK Reinhardt Some

200

De todas as profecias astroloacutegicas arriscadas ao longo do renascimento e da

primeira modernidade talvez a mais impressionante natildeo seja mesmo a referente ao

fatiacutedico projeto de um Quinto Impeacuterio tema final das previsotildees de Vieira e topos

recorrente nos pregadores da restauraccedilatildeo628 Pierre drsquoAilly em seu tratado sobre a

concordacircncia da verdade astronocircmica e da narraccedilatildeo histoacuterica jaacute havia lanccedilado

palavras muito mais certeiras Ao prognosticar os movimentos combinados entre

Saturno e Jupiter motor de toda a sua teologia natural da histoacuteria o cardeal anotou o

que seria uma derradeira conjunccedilatildeo entre os dois gigantes ldquoDito isto se o mundo

durar ateacute aquele ano o que soacute Deus sabe aconteceraacute grandes enormes e

surpreendentes mudanccedilas () principalmente na lei e na religiatildeordquo 629 O ano para a

previsatildeo 1789

No percurso iluminista a confusatildeo entre efeitos e causas que as profecias

movimentam nos espiacuteritos seria bem delineada ao longo do combate aos ldquoprogressos

das supersticcedilotildeesrdquo Em busca de uma ldquovocaccedilatildeo legiacutetimardquo Pierre Bayle ergueu a

bandeira da ldquoRepuacuteblica das Letrasrdquo levantando com ela a voz da razatildeo contra todo o

tipo de ldquovisotildeesrdquo e ldquocredulidades popularesrdquo Para o filoacutesofo cujo Dicionaacuterio Histoacuterico

e Criacutetico inspirou a Enciclopeacutedia natildeo haveria profissatildeo melhor capacitada do que a

sua a assumir a tarefa de se tenir a la bregraveche contra as ldquoirrupccedilotildees e desordensrdquo

causadas pela credulidade imoral da idolatria dos supersticiosos630 Poderia-se dizer

que esse eacute um processo que culmina natildeo em Voltaire sequer na Revoluccedilatildeo mas nas

suas memoacuterias Mais tarde a data de 1789 seria lembrada por palavras devedoras da

proacutepria ilustraccedilatildeo natildeo como a chegada do anticristo ou o retorno do messias mas

como mais um dos finais possiacuteveis do tempo biacuteblico e dos ldquosistemas antigosrdquo fosse

para o ecircxtase de uns fosse para o lamento de outros As festas revolucionaacuterias que lhe

seguiram de perto junto a todo seu corroborie vulgaire inversotildees e rituais

Questions Regarding the Conceptual History of ldquoCrisesrdquo In KOSELLECK The practice of

conceptual history timing history spacing concepts Stanford University Press 2002 p 245 628 Sobre essa questatildeo ver MARQUES Joatildeo Francisco A utopia do Quinto Impeacuterio em Vieira e nos

pregadores da Restauraccedilatildeo E topia Revista Electroacutenica de Estudos sobre a Utopia nordm 2 2004 629 DrsquoAILLY Pierre De concordantia astronomie cum hystorica narratione cap 1 e 2 Teoria das

conjunccedilotildees de Saturno e Juacutepiter apud BURON Edmond Essai critique t I p 6i 64-70 96-108 t II

In DrsquoAilly Pierre Imago Mundi op cit 1930 Na passagem traduzida por Buron ldquoLa huitiegraveme aura

lieu en 1789 dit-il lsquoCeci dit si le monde dure encore jusquagrave cette anneacutee-lagrave ce que Dieu seul sait il y

aura de grands nombreux et eacutetonnants changementsdans le monde principalement dans la loi et la

religionrsquordquo 630 Je preacutetends avoir une vocation leacutegitime pour mopposer aux progregraves des superstitions des visions et

de la creacuteduliteacute populaire Agrave qui appartient-il mieux quaux personnes de ma profession de se tenir agrave la

bregraveche contre les irruptions de ces deacutesordres () BAYLE Pierre La Cabale Chimeacuterique ou

Refutation de lrsquoHistoire Fabulouse In Oeuvres Diverses La Haye Par la Compagnie des Libraries

1737 Tomo II Lettre XIII p 681

201

comemorativos logo passariam a ser ordenadas por uma vontade poliacutetica cujos

desiacutegnios natildeo ignoravam a ldquotransferecircncia de sacralidaderdquo 631

ldquoPor volta de 1800rdquo como escreveu Reinhardt Koselleck o proacuteprio

ldquoprogresso se transformou em um genuiacuteno conceito histoacutericordquo vertendo ou

esquecendo o ldquopano de fundo naturalrdquo de algo que ldquopercorre um espaccedilordquo As

efemeacuterides tambeacutem deixariam por volta do mesmo periacuteodo revolucionaacuterio de

pontuar tatildeo somente o movimento das estrelas ao longo dos ceacuteus marcando

igualmente o passo dos homens no percurso de suas vidas sublunares Nessa histoacuteria

particular a ordem do tempo parecia superar a ordem da natureza natildeo tivesse com

isso guardado um detalhe que soava desagradaacutevel aos apoacutestolos do progressismo os

conceitos de ldquodecliacuteniordquo e ldquodecadecircnciardquo mostravam-se mais e mais incapazes ldquode

verter seus significados de fundo natural e bioloacutegico da mesma maneirardquo632 As

imagens da decadecircncia continuariam seguindo uma loacutegica agora humanizada da

geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo a assombrar os homens pelo chamado dos magistrados

morais Chamado que jaacute no seacuteculo XIX teraacute hora marcada com o sublime juacutebilo

organizado no ciclo dos centenaacuterios

631 Ver OZOUF Mona 1976 principalmente cap X un transfert de sacraliteacute pp 317-340 632 ldquoProgress became a modern concept when it shed or forgot its natural background meaning of

stepping through space The figurative reference faded Since around 1800 progress has turned into a

genuinely historical concept while ldquodeclinerdquo and ldquodecayrdquo have not been able to shed their natural and

biological background meaning in the same wayrdquo KOSELLECK Reinhardt Progress and Decline In

The practice of conceptual history op cit 2002 p 221

202

4

Ordem do Tempo

O retorno das efemeacuterides agrave histoacuteria

ldquoTalvez nunca tenha existido um espiacuterito mais saacutebio mais metoacutedico um

loacutegico mais exato do que o Sr Lockerdquo633 Entre 1726 e 1728 Voltaire exilou-se na

Inglaterra Dentre os muitos aspectos da vida e da filosofia insular que seriam

incorporados em suas reflexotildees o problema da inexistecircncia das ideias inatas e do

conhecimento relacionado agrave experiecircncia merecia destaque em seu elogio epistolar ao

autor do Ensaio Acerca do Entendimento Humano E esse era um problema que fazia

referecircncia direta agraves aporias sobre a natureza da alma Desde a antiguidade ou como a

lia o iluminista francecircs os filoacutesofos tentavam entender sem sucesso essa questatildeo O

divino Anaxaacutegoras crente que o Sol era maior do que o Peloponeso a neve negra e os

ceacuteus feitos de pedra afirmava que a alma possuiacutea um espiacuterito aeacutereo e imortal

Diogenes o ciacutenico pensava nela como porccedilatildeo da substacircncia divina Aristoacuteteles a

quem Voltaire natildeo mostrava satisfaccedilatildeo em render longos comentaacuterios jaacute havia sido

explicado ldquode mil maneiras porque era ininteligiacutevelrdquo embora parecesse defender que

o ldquoentendimento de todos os homens fosse uma mesma e soacute substacircnciardquo enquanto

que seus mestres Platatildeo e Soacutecrates tinham sem cessar apregoado o caraacuteter corporal e

eterno das almas634

633 ldquoJamais il ne fut peut-ecirctre un esprit plus sage plus methodique un Logicien plus exact que Mr

Locke ()rdquo VOLTAIRE Treisiegraveme Lettre sur Mr Locke In Lettres eacutecrites de Londres sur les

Anglois et autres sujets Bowyer Londres 1734 pp 91-104 A citaccedilatildeo supracitada figura logo no

iniacutecio da carta 634 ldquoDans la Grece berceau des arts amp des erreurs amp ougrave on pussa si loin la grandeur amp la sotise de

l`esprit humain on raisonnoit comme chez nous sur lrsquoAme () Le divin Anaxagoras agrave qui on dressa

un autel pour avoir apris aux hommes que le Soleil eacutetoit plus grand que le Peloponnese que la neige

eacutetoit noire amp que les Cieux eacutetoient de pierre affirma que lrsquoAme eacutetoit un Esprit aeumlrien mais cependeant

immortel Diogene un autre que celui devint Cinique apregraves avoir eacuteteacute faux monnoyeur assuroit que

lrsquoame eacutetoit une portion de la substance mecircme de Dieu amp cette ideacutee au moins eacutetoit brillante Epicure la

composiot de parties comme le corps () Aristote qursquoon a expliqueacute de mille faccedilons parce qursquoil eacutetoit

inintelligible croyot si lrsquoon srsquoen rapporte agrave quelques uns de ses disciples que lrsquoentendement de tous

les hommes eacutetoit une seule amp mecircme substance () Le divin Platon maicirctre du divin Aristote amp le

divin Socrate maicirctre du divin Platon disoient lrsquoame corporelle amp eternelle Le Demon de Socrate lui

avoit apris sans doute ce qui en eacutetoitrdquo Ibidem pp 92-93 A base das posiccedilotildees platocircnicas eacute encontrada

na doutrina da anamnese a qual defende que todo o aprendizado eacute uma recoleccedilatildeo e que tudo o que

203

Os padres da Igreja repetiriam as trilhas da antiguidade Satildeo Bernardo lido

nas palavras de Mabillon ldquoensina a respeito da alma que apoacutes a morte ela natildeo

enxerga Deus nos ceacuteus mas tatildeo somente conversa com a natureza humana de Jesus

Cristordquo Descartes tambeacutem seguiria esse caminho ainda que tenha substituiacutedo os erros

dos antigos pelos seus proacuteprios ao passo que Malebranche ndash o ldquofiloacutesofo ocasionalrdquo

que escrevia comentaacuterios mais obscuros do que os textos neles comentados ndash delirava

entre ilusotildees de grandeza retoacuterica que admitiam as ideias inatas e faziam ver o proacuteprio

Deus na alma dos homens635 Uma multidatildeo de pensadores assim contribuiram para o

ldquoRomance da Almardquo ateacute que um uacutenico saacutebio e modesto resolveu lhe escrever a

histoacuteria Locke desmontou o inatismo das ideias percorrendo ldquopasso a passo os

progressos de seu entendimentordquo consultando ldquoseu proacuteprio testemunhordquo ou a

ldquoconsciecircncia de seu pensamentordquo636 Consultar o proacuteprio testemunho Para o filoacutesofo

inglecircs essa era uma das tarefas da retenccedilatildeo faculdade da mente ldquoatraveacutes da qual se

faz () progresso em direccedilatildeo ao conhecimentordquo Trata-se da capacidade de guardar

ideias recebidas pela sensaccedilatildeo ou pela reflexatildeo637 A habilidade de retenccedilatildeo eacute

sabemos ou podemos apreender do mundo jaacute existe em noacutes Ver Mecircnon 80a-86c Feacutedon 73c-78b

PLATAtildeO Meno Warminster Aris amp Phillips 1991 PLATAtildeO Phaedrus Cambridge Cambridge

University Press 2011 A opiniatildeo de Voltaire sobre as posicotildees aristoteacutelicas parece controversa Cf De

Anima III 4-7 ARISTOacuteTELES De lrsquoame J Vrin (dir) Paris Organon Librarie Philosophique 1947

ARISTOacuteTELES De Anima In The Complete Works of Aristotle Barnes J (ed) Princeton Princeton

University Press 1984 Segundo Jean Pierre-Vernant em Platatildeo a memoacuteria natildeo visa elaborar uma

histoacuteria individual onde se afirmaria a unicidade do eurdquo mas ldquorealizar a uniatildeo da alma com o divinordquo

enquanto que em Aristoacuteteles ldquonada mais lembra a Mnemosyne miacutetica nem os exerciacutecios de

rememoraccedilatildeo destinados a liberar do tempo e a abrir o caminho para a imortalidaderdquo VERNANT

Jean-Pierre Aspectos miacuteticos da memoacuteria In Mito e pensamento entre os gregos Paz e Terra 2002

Satildeo Paulo pp 162 e 166 635 ldquoSt Bernard selon lrsquoavis du Pere Mabillon enseigna agrave propos de lrsquoame qursquoapregraves la mort elle ne

voyoit pas Dieu dans le Ciel mais qursquoelle conservoit seulement avec lrsquohumaniteacute de Jesus Christ ()

Nocirctre Descartes neacute non pour deacutecouvrir les erreurs de lrsquoAntiquiteacute mais pour y substituer les siennes amp

entraineacute par cet Esprit systematique qui aveugle les plus grands hommes srsquoimagina avoir deacutemontreacute que

lrsquoame eacutetoit la matiere selon lui est la mecircme chose que lrsquoeacutetendueuml () Mr Mallebranche de lrsquoOratoire

dans ses illusions sublimes non seulement admit les ideacutees inneacutees mais il ne doutoit pas que nous ne

vissions tout en Dieu amp que Dieu pour ainsi dire ne fut nocirctre amerdquo Ibidem pp 93-95 ldquo() quand il a

voulu deacutevelopper cette grand veacuteriteacute que Tout est en Dieu tous les lectuers ont dit que le comentaire est

plus obscur que le texterdquo TOLLADET Abbeacute de (pseud) Tout en Dieu commentaire sur

Malechanche 1769 In VOLTAIRE Oeuvres complegravetes T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie

de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes biographiquesGarnier Fregraveres Paris 1877-1885 636 ldquoTant de raisonneurs ayant fait le Roman de lrsquoAme un Sage est venu qui en a fait modestement

lrsquohistoire Mr Locke a deacutevelopeacute agrave lrsquohomme la raison humaine comme un excellent Anatomiste

explique les ressorts du corps humain il srsquoaide par tout du flambeau de la Physique il ose quelquefois

parler affirmativemente () il fut pas agrave pas les progreacutes de son entendement () Il consulte sur tout son

propre temoignage la conscience de sa penseacutee ()rdquo Ibidem p 95 637 ldquoThe next Faculty of the Mind whereby it makes a farther Progress towards Knowledge is that

which I call Retention or the keeping of those simples Ideas which from Sensation or Reflection it

hath received This is done two ways First by keeping the Idea which is brought into it for some time

actually in view which is called Contemplationrdquo LOCKE John An Essay Concerning Human

Understanding Peter Nidditch (org) Oxford Clarendon Press 1975 (1690) p 149

204

susceptiacutevel de operar pequenos milagres como por exemplo aquele conjurado por

meio do ldquopoder de reviver novamente em nossas mentes essas ideiasrdquo

E assim noacutes fazemos () ao conceber o Calor ou a Luz

o Amarelo ou o Doce Esta eacute a memoacuteria algo como o

armazem de nossas ideias Uma vez sendo a Mente do

Homem incapaz de manter muitas ideias em vista e em

consideraccedilatildeo era necessaacuterio possuir tal repositoacuterio638

Guardas e acessar as ideias na perspectiva do empirismo a utilidade da

memoacuteria residiria na funccedilatildeo de resgatar aquilo que de fato ldquonatildeo estaacute em nenhum

lugar mas apenas ali residindo em uma habilidade da mente que com sua vontade

pode fazecirc-la reviver de novordquo639 Mnemosine se cala o mundo das ideias torna-se

mais difiacutecil de imitar a existecircncia sempiterna na via-laacutectea e a identificaccedilatildeo de vida

nas das esferas de Publicius e Romberch metaacuteforas morais Se com a metempsicose o

cristinismo havia encontrado ldquoa cama feitardquo o Voltaire leitor de Locke como lrsquoenfant

terrible veio pular sobre suas molas e bagunccedilaacute-la640 A vontade humana de lembrar

sugere ser mais importante do que as formas inatas de percepccedilatildeo e valoraccedilatildeo doadas

pela ordem natural e providencial641

Assim como aquele que os criou os personagens de Voltaire gostavam de

viajar Sua alma escondia-se entre pseudocircnimos e heterocircnimos que natildeo cansavam de

migrar impunes no tempo e no espaccedilo Natildeo seria esse o caso dos interlocutores dos

Entretiens Chinois Xain um mandarim que passou a juventude perambulando pela

Europa retorna a China e encontra em Pequim um amigo que ingressara na

Companhia de Jesus Dividido em trecircs conferecircncias o diaacutelogo se passa como uma

638 LOCKE op cit 149-150 639 ldquoAnd in this Sense it is that our Ideas are said to be in our Memories when indeed they are

actually no where but only there is an ability of the Mind when it will to revive it againrdquo Idem

Ibidem 640 Acima reflito sobre as seguintes palavras ldquoFoi precisamente o mito platocircnico da alma que teve a

capacidade de resistir ao processo de racionalizaccedilatildeo integral do ser e ateacute de se infiltrar novamente e

dominar progressivamente () o cosmos racionalizado Foi aqui que se inseriu a possibilidade da sua

aceitaccedilatildeo por parte da religiatildeo cristatilde que nele encontrou por assim dizer a cama feitardquo JAEGER

Werner Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Martins Fontes Satildeo Paulo 1995 p 192 641 Em sua resposta a Locke Lebniz no Novo Ensaio sobre o Entendimento Humano enxergava a

criacutetica empirista ao inatismo como um ataque velado ao princiacutepio da imortalidade da alma Para

Leibniz a ideia inata de substacircncia era fornecida pelo fato de que somos substacircncias e de que podemos

realizar uma reflexatildeo sistemaacutetica a respeito de nossa natureza Nesse sentido seriacuteamos ldquoinatos a noacutes

mesmosrdquo LEIBNIZ GW New Essays on Human Understanding P Remnant e J Bennett (trans)

Cambridge Cambridge University Press 1981 (1704) 51-52 Sobre o debate setecentista que opotildee

inatismo racionalista e anti-nativismo empirista ver HARRIS John Leibniz and Locke on Innate

Ideas In Ratio n 16 1974 pp 226-242 e WALL G Lockes Attack on Innate Knowledge In

Philosophy 49 1974 pp 414

205

polecircmica de alteridades sobre o tema maacuteximo da criacutetica agraves supersticcedilotildees O jesuiacuteta

reclama do irracionalismo das crenccedilas locais com o mandarim retrucando a respeito

das incoerecircncias de um ocidente que afastava o misticismo oriental na mesma medida

em que abraccedilava com forccedila de verdade os relatos maravilhosos do avistamento de

santos Incomodado com os maus tratos aos missionaacuterios o padre pede ao mandarim

jaacute na segunda parte que intervenha junto ao governo chinecircs recebendo como resposta

que toda pregaccedilatildeo estrangeira fosse cristatilde fosse maometana era proibida por uma lei

que tinha como justificativa os crimes cometidos contra o vizinho Japatildeo642

Na terceira conferecircncia no entanto os dois personagens encontram um

denominador comum no que o mandarim propotildee vinte teses ao espiacuterito de uma

ldquoprofissatildeo de feacuterdquo Contra a supersticcedilatildeo e o sectarismo religioso as teses tocam ao

longo da deacutecima primeira e da deacutecima segunda o tema dos almanaques ldquoCaso se decirc

a um charlatatildeo o privileacutegio exclusivo de fazer almanaquesrdquo redigiu Voltaire ldquoele faraacute

um calendaacuterio de supersticcedilotildees para todos os dias do anordquo intimidando povos e

magistrados ldquopelas conjunccedilotildees e influecircncias dos astrosrdquo Mas se forem vinte

charlatotildees ldquoeles vatildeo prever fatos diferentesrdquo contradizendo-se uns aos outros ldquoum

tempo viraacuterdquo concordariam os amigos entre dois mundos ldquoquando todo o povo teraacute

descoberto a patifaria de todos os astroacutelogosrdquo643 Neste dia natildeo teremos almanaques

que natildeo sejam feitos por ldquoastrocircnomos de verdade que calculam tatildeo somente o

movimento dos globos sem atribuir influecircncia a nenhumrdquo nem render previsotildees

fossem boas fossem maacutes644

642 Em outra oportunidade Voltaire esclaresceu essa questatildeo com o tom de chacota que lhe era proacuteprio

ldquoLes jeacutesuites avaient obtenu de lrsquoempereur de la Chine Kang-hi la permission drsquoenseigner le

catholicisme () Cependant lrsquoempereur Kang-hi mourut agrave la fin de 1722 Il laissa lrsquoempire agrave son

quatriegraveme fils Yong-Tching qui a eacuteteacute si ceacutelebre dans le monde entier par la justice et par la sagesse de

son gouvernement par lrsquoamour de ses sujets et par lrsquoexpulsion des jeacutesuitesrdquo VOLTAIRE Oeuvres

complegravetes de Voltaire Dictionnaire philosophique I Jean-Antoine-Nicolas de Caritat marquis de

Condorcet Furne 1835 p 331 643 ldquo11o Si vous donnez agrave un charlatan le privilegravege exclusif de faire des almanachs il fera un calendrier

de superstition pour tous les jours de lrsquoanneacutee il intimidera les peuples et les magistrats par les

conjonctions et les influences des astres Si vous laissez vingt charlatans faire des almanachs ils

preacutediront des eacuteveacutenements diffeacuterents ils se deacutecreacutediteront tous les uns les autres un temps viendra ougrave

tout le peuple aura deacutecouvert la friponnerie de tous les astrologuesrdquo VOLTAIRE Entretiens Chinois

In Dialogues et anecdotes philosophiques avec introduction notes et rapprochements Raymond

Naves (org) Garnier Paris 1939 p 250 644ldquo12o Alors il nrsquoy aura plus drsquoalmanachs que ceux des veacuteritables astronomes qui calculent juste les

mouvements des globes qui nrsquoattribuent drsquoinfluence agrave aucun et qui ne preacutedisent ni la bonne ni la

mauvaise fortune Le peuple insensiblement ne croira que ces sages il adorera drsquoun culte plus pur le

creacuteateur et le guide de tous les globes et notre petit globe en sera plus heureux rdquo VOLTAIRE 1939 p

251

206

Educado no coleacutegio dos jesuitas de Louis-le-Grand Voltaire natildeo apenas

atacava os saacutebios que buscavam prever futuro mas igualmente os eruditos que

julgavam organizar o passado A demanda por trabalhos de cronologia aumentou ao

longo da primeira modernidade unindo meacutetodos da filologia claacutessica vindos da

hermenecircutica medieval com observaccedilotildees astronocircmicas Seus objetivos manifestos

supunham conciliar a narrativa biacuteblica com os registros celestes feitos desde a

antiguidade ordenando a temporalidade em um momento em que os tradicionais

sistemas cosmoloacutegicos pareciam ndash literalmente para alguns como vimos ndash fazer aacutegua

Era tambeacutem o periacuteodo em que o tempo passava a ser visto como mesuraacutevel uniforme

ditado pela voz de Deus e pelo movimento das estrelas em uma linguagem acessiacutevel agrave

engenhosidade humana Era igualmente o periacuteodo em que o literalismo biacuteblico

encampado por movimentos que buscavam ir aos fundamentos do Velho Testamento

logo seria tambeacutem seguido pelas contrapartes romanas Natildeo poderia haver

contradiccedilatildeo entre o tempo do Livro e o tempo das estrelas mas seria essa uma

possibilidade viaacutevel

ldquoEu recebi hoje meu querido dia 27 de marccedilo a sua carta de 27 de fevereirordquo

escreveu Voltaire ao conde de Argental ldquoe ela eacute tatildeo difiacutecil de conciliar quanto a

cronologia da Vulgata e a da Septuagintardquo645 Seacuteculos antes ateacute pelo menos o final do

XVI as contradiccedilotildees entre as versotildees koineacute e latina da Biacuteblia natildeo eram dignas de

muitos percalccedilos fariacuteamos como o monge cartuxo Werner Rolevink que em seu

Fasciculus Temporum contava o tempo tambeacutem de frente para traz do apocalipse agrave

criaccedilatildeo conciliando judeus e cristatildeos e deixando que Deus ao cair dos tempos

decida quem estava certo e quem estava errado646 Em 1498 no entanto como um

profiacutecuo historiador da cronologia jaacute demonstrou em diversas oportunidades esse

quadro comeccedilaria a se alterar Naquele ano o dominicano Giovanni Nanni de Viterbo

publicou um livro que seria notado por todos os eruditos da Europa Annius seu

cognome latino apresentava pela primeira vez ao puacuteblico letrado uma seacuterie de autores

citados por Euseacutebio de Cesareia mas que ateacute o momento eram desconhecidos do

ocidente Os textos chegavam a desacreditar Heroacutedoto ndash o que desde ao menos

Luciano de Samoacutesata era um lugar comum ndash e dentre os nomes publicados dois se

645 ldquoJe reccedilois mon cher ange aujourdrsquohui 17 de mars votre lettre du 27 feacutevrier Cela est aussi difficile

agrave concilier que la chronologie de la Vulgate et des septanterdquo VOLTAIRE Ouvres complegravetes Tome

61 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-Typographique 1785 Recueil des lettres Lettre CLIII A

M Le Comte DrsquoArgental p 280 646 Sobre Werner Rolevink vide ROSENBERGGRAFTON 2010 pp 39 48

207

destacariam entre os interesses do puacuteblico Maneto historiador egiacutepcio da era

ptolomaica e Beroso autor de uma Histoacuteria da Babilocircnia

O livro de Nanni de Viterbo fechava inuacutemeras lacunas historiograacuteficas

partindo de um celebrado modelo que unia os criteacuterios de verdade (fides) da filologia

e do antiquariado647 Carregado de insights autores antes indiretamente conhecidos

como Metastenes Fabio Pictor e Catatildeo confirmavam-se uns aos outros em quarenta e

nove histoacuterias conectadas que com a exceccedilatildeo daquela de Propertio eram

absolutamente falsas Juan Luis Vives Pietro Crinito e Beatus Rhenanus jaacute haviam

notado a farsa648 Mais tarde em 1602 Joseph Scaliger intrigado pelos escritos de

Annius e ansioso por encontrar os textos reais recebe alguns fragmentos de uma

crocircnica bizantina Nela o cronologista encontra uma sequecircncia dos reis do Egito

atribuiacuteda ao verdadeiro Maneto Trata-se de um fragmento cujos registros podem ser

hoje confirmados na leitura dos papiros presentes em Turim Preservados pelo proacuteprio

Euseacutebio em uma espeacutecie de primeira nota de rodapeacute da histoacuteria aqueles textos

originais trariam problemas para o tempo biacuteblico

Joseph Scaliger natildeo soube como tambeacutem natildeo soubera o bispo de Cesareia o

que fazer com os textos transcritos por Euseacutebio e cuidadosamente esquecidos por Satildeo

Jerocircnimo em sua traduccedilatildeo latina Neles Beroso narrava como uma criatura chamada

Oannes corpo humano e cabeccedila de peixe emergiu do Mar Vermelho para fundar a

civilizaccedilatildeo Maneto era ainda mais ousado Sua lista de dinastias ia muito aleacutem do

diluacutevio universal Na verdade comeccedilava antes da criaccedilatildeo Diante do dilema moral a

eacutetica de Scaliger ditou que ele deveria publicar os documentos jogando as datas

egiacutepcias em direccedilatildeo ao vago lugar de um ldquotempo proleacutepticordquo649

647 ldquoWhen Annius argued that Berosus and his friends deserved credibility he did more than describe

them as Josephus had as priests with access to ancient records () Only those historians who met this

standard he argued deserved trust () Annius was steeped in a formal theology and he drew on his

training to offer the first formal principles of historical criticism ever elaborated in print For a century

to come anyone who hoped to formulate rules for assessing historical fides had to come to terms with

these influential precedentsrdquo GRAFTON 2007 sp cap 2 perto da nota 60Sobre o modelo de criacutetica

documental jaacute presente em finais da idade meacutedia ver GINZBURG Carlo Lorenzo Valla e a Doaccedilatildeo

de Constantino In Relaccedilotildees de Forccedila Histoacuteria Retoacuterica Prova Compania das Letras Satildeo Paulo

2000 pp 64-69 648 GRAFTON What was History 2007 sp perto da nota 60 649 Sigo GRAFTON 2007 cap 4 proacuteximo a nota 97 Ver tambeacutem GRAFTON Anthony MOST

Glenn SETTIS Salvatore The Classical Tradition Harvard University Press 2010 p 866 Paacutegina na

qual o autor explica que ldquoScaligerrsquos books provoked criticism from Johannes Kepler and refutation

from the erudite Jesuit Danys Petau It also indirectly helped inspire another Jesuit Martino Martini to

believe that Chinese history like Egyptian could have begun before the Flood By the end of the

century many scholars acknowledge that Scaligerrsquos hoped-for synthesis of biblical and secular history

could not be carried out without undermining the authority of the Bible ndash a paradoxical conclusion that

208

Athanasius Kircher o jesuita que a tudo sabia natildeo deixou de ler o calvinista

Scaliger Entre 1640 e 1650 Martino Martini um de seus pupilos do Collegio

Romano viaja a China com o objetivo de escrever a primeira cronologia baseada em

fontes e observaccedilotildees astronocircmicas orientais Para a infelicidade do literalismo biacuteblico

as datas da tradiccedilatildeo analiacutestica chinesa ndash acompanhadas de registros de eclipses ndash

tambeacutem iniciavam muito antes do diluacutevio universal650 Sobre essas ldquoprodigiosas

provas da antiguidade chinesardquo Voltaire homem de formaccedilatildeo jesuita lanccedilou nas

palavras do Essai sur les moeurs et lesprit des nations mais uma de suas costumeiras

e deliciosas ironias

Nossos viajantes missionaacuterios relatam com franqueza

que assim que conversaram com o imperador Cam-hi a

respeito das consideraacuteveis variaccedilotildees da cronologia da

Vulgata da Septuaginta e dos Samaritanos Cam-hi

lhes respondeu Seria possiacutevel que os livros nos quais

vocecircs acreditam se contradigam651

Voltaire realmente natildeo tinha a cronologia em alta conta No Dictionnaire

philosophique o verbete relativo ao tema aparece com o subtiacutetulo ldquoda vaidade dos

sistemasrdquo Para o iluminista a mateacuteria tratava da fuacutetil tarefa de instituir dataccedilotildees

precisas a respeito de personagens e eventos sem precisatildeo de modo que bastaria que

ldquoapenas um chinecircs a contradigardquo para que fosse universalmente comprometida652 O

que afinal importa perguntaria em De la Chine ldquoque esses livros nem sempre contecircm

uma cronologia confiaacutevelrdquo ldquoEu quero que natildeo saibamos em que tempo precisamente

viveu Carlos Magnordquo disparou o filoacutesofo desde que lembremos que o imperador

subjugou vaacuterios povos pela forccedila de seus exeacutercitos e que principalmente era filho de

Scaliger himself glimpsed as he confessed to his pupils though he also told them that he lsquodid not darersquo

to publish on such issuesrdquo 650 FINDLEN Paula (org) Athanasius Kircher The Last Man Who Knew Everything Routledge New

York 2004 p 184 651 ldquoNos voyageurs missionnaires rapportent avec candeur que lorsqursquoils parlegraverent au sage empereur

Cam-hi des variations consideacuterables de la chronologie de la Vulgate des Septante des Samaritains

Cam-hi leur reacutepondit Est-il possible que les livres em qui vous croyez se combattentrdquo VOLTAIRE

Essai sur les moeurs et lesprit des nations In Oeuvres complegravetes de Voltaire T 16 1785 de

lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-Typographique p 85 652 ldquoSrsquoil avait menti srsquoil avait fait une fausse chronologie srsquoil avait parleacute drsquoempereurs qui nrsquoeussent

point existeacute ne se serait-il trouveacute personne dans une nation savante qui eucirct reacuteformeacute la chronologie de

Confutzeacutee Un seul Chinois a voulu le contredire et il a eacuteteacute universellement basoueacuterdquo VOLTAIRE

Oeuvres complegravetes de Voltaire Dictionnaire philosophique I Jean-Antoine-Nicolas de Caritat

marquis de Condorcet Furne 1835 p 331

209

ldquouma naccedilatildeo numerosa formada por um grupo de pessoas em uma longa duraccedilatildeo de

seacuteculosrdquo653

As criacuteticas de Locke ao inatismo teriam levado-o a valorizar a ldquoimportacircncia da

memoacuteria em ancorar um senso de continuidade individual ao longo do tempordquo654 Eu

me pergunto se em Voltaire natildeo assistiriacuteamos a elevaccedilatildeo desse juizo de sucessatildeo a

esferas coletivas em um momento em que noccedilotildees de movimento encontram-se em

franco processo de singularizaccedilatildeo A tarefa de libertar o mundo do inatismo poderia

de todo modo ser entendida como uma tentativa de livrar os indiviacuteduos de ldquoter de

repetir as mesmas accedilotildees continuamenterdquo introduzindo-os a uma ldquovisatildeo de seus

proacuteprios progressos e desenvolvimentos possiacuteveisrdquo655 E quanto aos povos ldquoDepois

de ter lido quatro mil descriccedilotildees de batalhas e o teor de algumas centenas de

tratadosrdquo reconheceria Voltaire ldquoeu natildeo aprendi senatildeo os fatosrdquo Nas geraccedilotildees

anteriores a Voltaire os cronologistas buscavam contar o tempo cotejando as

narrativas biacuteblicas com os fatos duros da natureza como se deixassem na esteira do

projeto agostiniano a ordem do tempo nas matildeos da providecircncia Talvez em breve

rogava o iluminista francecircs novas descobertas que ldquofizeram banir os sistemas

antigosrdquo sejam realizadas tambeacutem ldquona maneira de escrever a histoacuteriardquo Afinal

ldquoqueremos conhecer o gecircnero humano em seu detalhe interessante que eacute hoje a base

da filosofia naturalrdquo656

Mas com a queda dos ldquosistemas antigosrdquo esse ldquodetalhe interessanterdquo natildeo se

apresentaria apenas por meio da descriccedilatildeo taxonocircmica dos povos humanos Natildeo cabia

apenas encontrar sentidos inatos no mundo mas tambeacutem fazer dele algum sentido Jaacute

em suas Novas Consideraccedilotildees a verdadeira histoacuteria aparece como histoacuteria do

ldquoespiacuterito humano cujo progresso se manifesta natildeo na poliacutetica mas nas artes e na

653 ldquoQursquoimporte apregraves tout que ces livres renferment ou non une chronologie toujours sucircre Je veux que

nous ne sachions pas em quel temps preacuteciseacutement veacutecut Charlemagne degraves qursquoil est certain qursquoil fait de

vastes conquecirctes avec des grandes armeacutees il est clair qursquoil est neacute chez une nation nombreuse formeacutee

en corps de peuple par une longue suite de siegraveclesrdquo VOLTAIRE De la Chine Chapitre Premier De la

Chine de son antiquiteacute de ses forces de ses lois de ses usages amp de ses sciences InOeuvres

complegravetes de Voltaire T 16 1785 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-Typographique pp 257-258

Grifos meus 654 FERGUSON Frances Romantic Memory In Studies in Romantism 1996 35 p 506 655 Ibidem p 509 656 ldquoMais apreacutes avoir lu trois ou quatre mille descriptions de batailles et la teneur de quelque centaines

de traiteacutes j`ai trouveacute que je n`eacutetais guegravere plus instruir au fond Je n`apprenais lagrave que des eacuteveacutenements

() Peut-ecirctre arrivera-t-il bientocirct dans la maniegravere d`eacutecrire l`histoire ce qui est arriveacute dans la physique

Les nouvelles deacutecouvertes ont fait proscrire les anciens systegravemes On voudra connaicirctre le genre humain

dans le deacutetail inteacuteressant qui fait aujourd`hui la base dela philosophie naturellerdquo VOLTAIRE

Nouvelles Consideacuterations sur l`histoire 1744 In Ouvres historiques Paris Bibliothegraveque de la Pleacuteiade

1957 pp 46-49

210

ciecircncia no comeacutercio e nas manufaturas nas leis e nos costumesrdquo657 Apaga-se a

providecircncia descartam-se os caracteres inatos da natureza e como em uma ironia ndash

dessa vez acreditamos involuntaacuteria ndash recorre-se ao uso libertaacuterio de um princiacutepio

ordenador (spiritus) antes tatildeo caro ao fatalismo dos estoicos ldquoVoltaire transforma o

objeto de pesquisa histoacuterica ndash como um singular coletivo ndash lsquolrsquohistoire de lrsquoesprit

humainrsquo () e numa analogia coacutesmicardquo corresponde como escreveu Hans Guumlnther

ldquoa ordem do universo que antigamente soacute podia ser imaginadardquo mas que agora a

ciecircncia teria dado a conhecer658

Se a crenccedila na metempsicose era saudada nos bracircmanes como forma

encontrada para manter vivos seus costumes frente agrave cobiccedila dos invasores europeus

para um saacutebio iluminista por outro lado esse tipo de instrumento mental jaacute

expressaria uma crenccedila na histoacuteria O curto circuito entre alma e memoacuteria

possibilitava o desenvolvimento de outro gecircnio ordenador de outro ser racional capaz

de contar e conferir sentido ao tempo O espiacuterito jaacute se manifestava no entanto bem

longe do aevum ou da aeternitas mas no tempus contado agora por seacuteculos Na

filosofia da histoacuteria a laacute Voltaire as vicissitudes satildeo ritmadas pelos progressos do

proacuteprio homem por meio da arte dos costumes da ciecircncia e da induacutestria659

Se vozes como as de Leibniz jaacute se levantavam contra o empirismo sugerindo

que ele ao fundo atacava a crenccedila na migraccedilatildeo das almas e por consequecircncia a moral

e a religiatildeo da parte de Voltaire essa seria uma culpa confessa No elogio a Locke o

filoacutesofo da histoacuteria tratava de acalmar seus leitores ldquojamais os filoacutesofos formaratildeo um

secto religiosordquo uma vez que ldquoeles natildeo escrevem para o povo e satildeo desprovidos de

entusiasmordquo660 Consciente de que os valores ancestrais podem ser lembrados ou

esquecidos selecionados ou descartados essa eacute uma regra que Voltaire ndash escrevendo

para o puacuteblico e com muito entusiasmo ndash iria jaacute com certa idade quebrar Para fazer

657 VOLTAIRE Nouvelles Consideacuterations sur l`histoire 1744 op cit pp 46-49 658 Portanto como disse Voltaire ldquoCrsquoest donc lrsquohistoire de lrsquoopinion qursquoil fallut eacutecrire et par lagrave ce

chaos drsquoeacuteveacutenements de factions de reacutevolutions et de crimes devenait digne drsquoecirctre presente aux

regards des sagesrdquo Apud GUumlNTHER Hans Pensamento histoacuterico no iniacutecio da Idade Moderna In

KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 109 659 A proacutepria expressatildeo ldquola philosophie de lrsquohistoirerdquo veio de Voltaire que em 1765 publicou sob o

pseudocircnimo de Abbeacute Bazin uma obra com esse tiacutetulo que logo veria diversas ediccedilotildees e reimpressotildees

BAZIN Abbeacute La Philosphie de lrsquohistoire Amsterdam 1765 660 ldquoJamais les Philosophes ne feront une secte de Reacuteligion pourquoi Crsquoest qursquoils nrsquoeacutecrivent point

pour le peuple amp qursquoils sont sans Entousiasme Divisez le Genre humain en vingt parts il y en a dix

neuf composeacutees de ceux qui travaillent de leurs mains amp qui ne sccedilauront jamais srsquoil y a eu un Mr

Locke au monde dans la vingtieacuteme partie qui reste combien trouve t-on peu drsquohommes qui lisent amp

parmi ceux qui lisent il y a vingt qui lisent des Romans contre un qui eacutetudie en Philosophie Le

nombre de ceux qui pensent est excessivement petir amp ceux-lagrave ne srsquoavisent pas de troubler le mondeldquo

VOLTAIRE Treisiegraveme Lettre sur Mr Locke 1734 op cit p 103-104

211

isso no entanto o filoacutesofo deveria se tornar um pouco como o pregador (mesmo que

agraves avessas da supersticatildeo) repudiando os fazedores de horoacutescopos que aparvalhariam

o povo com almanaques de prognoacutesticos e assumindo uma voz puacuteblica capaz de fazer

notar suas proacuteprias efemeacuterides histoacutericas por meio da autoconsciecircncia historiograacutefica

de que os signos do passado podem ser modificados E essa seria a defesa da sua

ldquoIgrejardquo

Haacute muito que deixara de ser vaacutelido perscrutar para os mais esclarecidos

sacedotes dessa repuacuteblica das letras a experiecircncia e a esperanccedila a partir da

observaccedilatildeo de regularidades nos ciclos naturais Da mesma forma entender a

memoacuteria a partir do inato daquilo que eacute dado por uma ordem providencial da

natureza apenas transformou a lembranccedila e a experiecircncia humana em um misteacuterio do

tamanho do cosmos Insuflar as expectativas por meio de prognoacutesticos celestes tatildeo

somente expunha seus feitores agrave ridicularizaccedilatildeo do choque entre as evidecircncias e suas

praacuteticas charlatatildes Mas essa mudanccedila de postura natildeo eacute percebida nas fontes como

resultado de uma estrondosa revoluccedilatildeo racional Nos seacuteculos imediatamente

anteriores os mestres da Ars Historica debatiam em um sintoma da ldquocompulsatildeo de

repeticcedilatildeordquo que marcaria a coerecircncia interna do gecircnero questotildees que derivavam da

filosofia natural peripateacutetica661 Com meacutetodos e livros gramaacuteticas e alguns preceitos

a passagem dos lunaacuterios e almanaques celestes agraves efemeacuterides histoacutericas a despeito de

toda mise-en-scegravene voltariana aconteceria quase ldquosem chicote e sem laacutegrimasrdquo662

Com a permissatildeo de Anthony Grafton que afirmara algo parecido a respeito dos usos

dos eclipses pretendo observar essa modificaccedilatildeo de princiacutepio tatildeo somente como uma

lenta mudanccedila de praacutetica663 As efemeacuterides como tabelas de movimentos diaacuterios dos

astros comeccedilam a ter seus conteuacutedos vistos mais como repositoacuterio de fatos do que

como anuacutencios de pressaacutegios e seguindo essa loacutegica interna vatildeo reinvestir-se

tambeacutem dos sentidos atribuiacutedos por Semprocircnio Aseacutelio e reeditados por Isidoro de

661 A imagem algo freudiana de uma ldquocompulsatildeo por repeticcedilatildeordquo nos debates da Ars Historica eacute trazida

por Grafton em alguns momentos de sua obra Ver por exemplo ldquo() the discussions of speeches in

the artes historicae illustrate the repetition compulsion that is one of the salient and stranger

characteristics of the genre as a wholerdquo GRAFTON Anthony 2007 Parte II entre as notas 96 e 97 662 Aqui parafraseio a bela passagem de Montaigne a respeito de sua instruccedilatildeo na liacutengua latina ldquosem

meacutetodo sem livro sem gramaacutetica ou preceito sem chicote e sem laacutegrimas tinha aprendido o latimrdquo

MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Cap XXV Sobre a educaccedilatildeo das crianccedilas Pinguin Books Satildeo

Paulo 2010 p 125 663 A mudanccedila de postura frente aos eclipses que passam de pressaacutegios a fatos como demonstra o

autor acontece como uma lenta mudanccedila de praacutetica Ver GRAFTON Anthony Some uses of Eclipses

() 2003 p 229 Embora o autor natildeo use o termo os meacutetodos de previsatildeo dos eclipses satildeo tambeacutem ndash e

isso ateacute os dias da astronomia que nos eacute contemporacircnea ndash baseados em caacutelculos de efemeacuterides

212

Sevilha Nesse longo processo que perpassa vaacuterios seacuteculos da modernidade a

astrologia seraacute superada ainda que algo guardados no interior das efemeacuterides

histoacutericas percebam-se instrumentos mentais anaacutelogos agravequeles presentes nas teacutecnicas

cronosoacuteficas dos sistemas antigos Nesse momento seria conveniente escutar o

conselho de Reinhardt Koselleck e ldquoprestar atenccedilatildeo ao conteuacutedo metafoacuterico de nossos

conceitos de modo a capacitarmos a avaliaccedilatildeo do poder de suas expressividades

histoacutericasrdquo664 Natildeo seraacute mais a hora eacute claro de completar o passado e o presente pela

antecipaccedilatildeo de um futuro lido nas conjunccedilotildees e influecircncias astrais mas de ndash jaacute sob a

aurora de uma ldquociecircncia causal sublunarrdquo ndash observar no choque entre vontades

poliacuteticas da memoacuteria as armas empregadas no impasse e na resoluccedilatildeo de batalhas

entre manifestaccedilotildees puacuteblicas e divergentes da experiecircncia do tempo 665

41 Conhecer os ciclos preluacutedio de um eclipse da natureza

Johannes Muumlller astrocircnomo e matemaacutetico natildeo era em nada avesso agraves teorias

da influecircncia celeste como natildeo o foram a maioria absoluta de seus contemporacircneos

Talvez no seu caso o interesse pelo tema fosse bem aleacutem Se as Efemeacuterides

Perpeacutetuas publicadas em Veneza em 1498 combinavam o calendaacuterio com certas

datas comemorativas oferecendo tambeacutem uma tabela de ciclos lunares e solares as

Tabulae directionum parecem ter sido projetadas para o uso astroloacutegico ndash embora

fossem criacuteticas ao modo judiciaacuterio dos saberes celestes condenado por tantos papas

Em suma essas Taacutebuas propunham uma reformulaccedilatildeo do velho sistema de casas

zodiacais apresentando um modelo que alcanccedilou alguma popularidade na Europa da

renascenccedila666 Mas natildeo seriam apenas esses elementos da astronomia de Muumlller hoje

664 KOSELLECK Reinhardt ldquoProgressrdquo and ldquoDeclinerdquo An Appendix to the History of Two Concepts

In The practice of conceptual history timing history spacing concepts Stanford University Press

Cultural Memory in the Presente Stanford 2002 p 221 665 Devo a imagem da histoacuteria enquanto ldquociecircncia causal sublunarrdquo a VEYNE Paul Como se escreve a

histoacuteria Lisboa Ediccedilotildees 70 1983 p 43 Para aleacutem da esfera terrestre temos ldquoa regiatildeo do

determinismo da lei da ciecircncia os astros natildeo nascem natildeo mudam e natildeo morrem e o seu movimento

tem a periodicidade e a perfeiccedilatildeo de um mecanismo de relojoaria ()rdquo No mundo sublunar ldquosituado

abaixo da lua reina o devir e tudo aiacute eacute acontecimento () O homem eacute livre o acaso existe os

acontecimentos tecircm causas cujo efeito permanece duvidoso o futuro eacute incerto e o devir eacute contingente

()rdquo 666 REGIOMONTANUS Ioannis de Monteregio Tabulae Directionum Profectionumque non tam

astrologiae iudiciariae quam tabulis instrumentisque innumeris fabricandis utiles ac necessariae

eiusdem Regiomontani tabula sinuum per singula minuta extensa universam sphaericorum

triangulorum scientiam complectens accesserunt his tabulae ascensionum obliquarum a 60 gradu

elevationis poli usque ad finem quadrantis per Erasmum Reinholdum () Supputae-Imprimebantur in

officina typographica Matthei Welack 1584 REGIOMONTANUS Ioannis de Monteregio

Ephemerides sive almanach perpetuus Impr Petri Liechtenstein Venetiis 1498 Para uma discussatildeo

213

associadas a uma pseudociecircncia que alimentariam com seus prognoacutesticos alguns

episoacutedios periclitantes do renascimento

Aparentemente menos dramaacuteticas do que seus usos judiciaacuterios a leitura

natural das efemeacuterides faria tremer diante da sofisticada arte europeacuteia alguns nativos

do novo mundo Com apenas duas naacuteus que jaacute deviam fazer aacutegua sem mantimentos e

rogando por um resgate Cristovatildeo Colombo faria de tudo para reaver o suporte

logiacutestico dos habitantes da Jamaica Entre uma coleccedilatildeo de tratados cosmoloacutegicos e

tabelas de movimento dos astros as matildeos do navegador logo tocariam as efemeacuterides

de Regiomontanus e perscrutando suas paacuteginas com os olhos de um filoacutesofo natural

fizeram-no encontrar a data e o horaacuterio previsto para um evento coacutesmico Mandou

chamar os caciques taiacutenos Era 29 de fevereiro de 1504 noite que assistiria agrave ascensatildeo

de uma lua cheia Colombo disse aos iacutendios que seu Deus estava furioso com o

tratamento dado aos aventureiros e prometeu que como sinal de sua insatisfaccedilatildeo Ele

pintaria o sateacutelite terrestre com as cores do sangue antes de extingui-lo para sempre

Foi seu filho Fernando Colombo quem registrou o ocorrido

Assim que na verdade um pouco depois de nascer a

lua comeccedilou a aparecer terna e avermelhada os iacutendios

foram tomados de terror e () se apressaram levando

consigo grandes quantidades de viveres proferindo

lamentaccedilotildees e assegurando ao Almirante que caso ele

intercedesse para desarmar a coacutelera de seu Deus eles se

comprometeriam a nunca mais deixar faltar nada aos

cristatildeos667

ldquoVocecirc vecirc isso foi um eclipserdquo disse o Yankee na corte do rei Arthur

ldquoOcorreu-me no calor da hora como Colombo Cortez ou uma dessas pessoasrdquo

usaram um fato celeste ldquopara alardear alguns selvagensrdquo E assim baseado em fatos

recente MOSLEY Adam Regiomontanus and Astrology Cambridge University History and

Philosophy of Science Department 1999 Sobre a popularidade do sistema de Regiomontanos ver

LEWIS James R The Astrology Book The Encyclopedia of Heavenly Influences Visible Ink Press

2013 p 574 667 COLOMB Fernand Histoire de la vie et des deacutecouvertes de Christophe Colomb Muller Eugecircne

(trad) Paris Maurice Dreyfous 1879 p 283 Na traduccedilatildeo de Muller ldquoLorsque en effet un peu apregraves

son lever la lune commenccedila drsquoapparaitre voileacutee et rougeacirctre les Indient furent saisis drsquoune veacuteritable

terreur et comme agrave mesure que lrsquoasire montait le pheacutenomecircne devenait plus sensible ils se haacutetegraverent de

prendre avec eux de grandes quantiteacutes de vivres et drsquoaccourir aux navires en poussant des lamentations

et en assurant lrsquoAmiral que srsquoil voulait bien interceacuteder pour deacutesarmer la colegravere de son Dieu ils

srsquoengageraient agrave ne jamais laisser les chreacutetiens manquer de rien agrave lrsquoavenirrdquo Para uma narrativa recente

a respeito desse episoacutedio das viagens de Colombo ver HEAT-MOON William Least Columbus in the

Americas John Wiley amp Sons New Jersey 2010 pp 175-176

214

semeando terror com o sarcasmo do Deus razatildeo o Sr Morgan viu a chance de escapar

da fogueira medieval salvo pelos astros como de volta a um futuro jaacute passado

aconteceria com o almirante genovecircs668 Mas natildeo deixemos nossas almas se perderem

entre o anterior e o posterior Comemoremos brevemente a ciecircncia renascentista que

se preocupava em pintar com precisatildeo alguns pontos (a partir dos quais poderiacuteamos

entre eles contar a mudanccedila) nas linhas irreversiacuteveis do tempo sagrado e profano

Quatro seacuteculos antes de Mark Twain e uma centena de anos apoacutes Colombo Henrich

Buumlnting presenteou o bispo luterano de Halberstadt com um trabalho descrito por ele

mesmo como uma ldquocerta cronologia e narrativa do tempo do iniacutecio do mundo ao

presenterdquo 669

Dos muitos estudos e propostas cronoloacutegicas que pululavam no periacuteodo o

texto de Buumlnting diferenciava-se pela arrojada proposta de estabelecer dataccedilotildees a

partir de registros de eclipses sem no entanto interessar-se por vecirc-los como sinais ou

relacionaacute-los pela premissa da influecircncia celeste com grandes eventos sublunares Ou

seraacute que natildeo poderiacuteamos ler em Buumlnting alguma pitada de sarcasmo quando ele

claramente parafraseia e corrige Ptolomeu ao dizer que ldquoduas formas de caacutelculo satildeo as

mais certas de todas aquela que eacute empreendida com a sagrada escritura e aquela que

eacute realizada a partir do intervalo dos eclipsesrdquo670

Buumlnting jaacute natildeo devia seu modelo cosmoloacutegico ao grande saacutebio de Alexandria

mas ao Copeacuternico do sistema heliocecircntrico cujas Revoluccedilotildees das Orbes Celestes

foram pontuados por Erasmus Reinhold nas ceacutelebres Taacutebuas Prutecircnicas de 1551

Como escreveu Anthony Grafton ldquoBuumlnting tratava eclipses enquanto fatosrdquo e fatos

como quaisquer outros ldquocom a exceccedilatildeo de que eram mais precisosrdquo Ao unir uma

abordagem filoloacutegica das crocircnicas de diversos povos com observaccedilotildees astronocircmicas

o cronologista tambeacutem fez questatildeo de ressaltar que sua ecircnfase nos eclipses nada tinha

a ver com quaisquer importacircncias simboacutelicas ou cosmoloacutegicas mas com as certezas

quantitativas que eles traziam671

668 TWAIN Mark A Connecticut Yankee in King Arthurrsquos Court Digireadscom Publishing Stilwell

2004 p 18 Interessante precisar que o eclipse de Twain datado de 21 de junho de 528 natildeo encontra

registro em outro lugar senatildeo no romance de 1889 669 Sobre os usos dos eclipses nas cronologias da primeira modernidade sigo GRAFTON Anthony

Some uses of Eclipses () 2003 A frase acima citada encontra-se na paacutegina 214 do artigo 670 Buumlnting dedicatory letter to Henrich Julius apud GRAFTON 2003 p 215 Peccedilo ao leitor que

compare essa afirmaccedilatildeo com a frase inicial ainda que traduzida para o inglecircs do Tetrabiblos ldquoOf the

means of prediction through astronomy O Syrus two are the most important and validrdquo ROBBINS

FE Ptolomy Tetrabiblos 1940 p 3 671 GRAFTON 2003 p 214-115

215

Quase todo almanaque publicado na Europa da primeira modernidade

apresentava algum tipo de tabela de efemeacuterides associadas ao calendaacuterio Nisso essas

publicaccedilotildees compartilhavam a obsessatildeo pela contagem do tempo que os trabalhos de

cronologia expressavam em ciacuterculos mais refinados Na Inglaterra reformada essa

reuniatildeo de informaccedilotildees astronocircmicas e festas religiosas natildeo escapou a usos poliacuteticos

Ao lado de ldquopreces e sermotildees estatutos e proclamaccedilotildeesrdquo crocircnicas e almanaques

expunham um padratildeo providencial que atuava como lembranccedila constante da boa

fortuna dinaacutestica e religiosa de uma naccedilatildeo eleita672

Juacutepiter e Saturno em Peixes natildeo foram alardes suficientes para Felipe II Com

as velas levantadas cruz catoacutelica amostra a Armada Espanhola rumou ao mar do

norte aonde para absoluto terror dos castelhanos ldquoDeus soprou e eles foram

dissipadosrdquo A vitoacuteria decisiva da monarquia elisabetana sobre a Armada Espanhola

em 1588 seria rapidamente trabalhada como um sinal conferido ao novo povo

escolhido (Godrsquos Englishmen) Mesmo sem estabelecer um ldquoano da Armadardquo o

evento foi comemorado em ldquomedalhas e tapeccedilarias pinturas e poemas sermotildees e

precesrdquo enquanto que o aniversaacuterio da rainha ofereceu um instante a cada novembro

para se relembrar a vitoacuteria e maldizer os catoacutelicos673 William Leigh (1550-1639)

cleacuterigo tutor real e orador escolhido para dirigir-se agraves tropas reunidas em Tilbury

diria sem deixar de lado as imagens astronocircmicas que ldquoo mirabilis annus de 88

jamais seraacute esquecido enquanto o sol e a lua existiremrdquo 674

A vitoacuteria assim foi naturalizada e com ela o proacuteprio inimigo Dezessete anos

mais tarde um grupo de conspiradores catoacutelicos liderados por Robert Catesby e Guy

Fawkes ensaiaram um atentado contra James I e seu governo sediado nas Casas do

Parlamento A Conjuraccedilatildeo da Poacutelvora permitiu aos pregadores protestantes

estabelecerem uma conexatildeo imediata entre os eventos de 1588 e os de 1605 Os

almanaques impressos no periacuteodo natildeo cansavam de relembrar e relacionar as duas

datas comemorando-as entre os poucos aniversaacuterios duradouros e marcando-os com

frequecircncia entre versos brutos e letras vermelhas O almanaque de Richard Allestree

para 1629 um dos perioacutedicos mais populares da Inglaterra contava os anos

672 Aqui sigo CRESSY David National Memory in Early Modern England In In GILLIS John R

(org) Commemorations the politics os national identity Princeton University Press New Jersey

1994 p 62 673 CRESSY 1994 p 63-64 674 ldquo() that mirabilis annus of rsquo88 will never be forgotten so long as the sun and moon durethrdquo

LEIGH William Queen Elizabeth Paraleld in her Princely Vertues with David Isosua and Hezekia

London 1589 p 36 Apud CRESSY 1994 p 63

216

retroativamente ldquodesde a criaccedilatildeo do mundo () a destruiccedilatildeo de Sodoma pelo fogo e

pelo enxofre () o iniacutecio do abenccediloado reinado de Elizabeterdquo e tambeacutem desde a

destruiccedilatildeo da ldquoArmada Espanholardquo e ldquoa maldita Traiccedilatildeo da Poacutelvorardquo675 Geraccedilotildees

mais tarde essa lista de efemeacuterides continuava a animar as almas leitoras do Poor

Robinrsquos Almanac ldquoa memoacuteria da Conspiraccedilatildeo da Poacutelvora dificilmente morreraacuterdquo 676

Entre as datas de 1588 1605 e 1666 teriacuteamos trecircs momentos em que a

histoacuteria da Inglaterra foi ldquofatalmente determinadardquo677 Ora se os almanaques ingleses

como que oficiando avant la lettre uma sorte de ldquomemoacuteria nacionalrdquo assim

construiacuteam uma identidade reformada em oposiccedilatildeo ao catolicismo romano o que

restava para as paacuteginas que lidavam com os horaacuterios da aurora e do crepuacutesculo as

fases da lua o translado das estrelas errantes a posiccedilatildeo dos horoacutescopos e todo o tipo

de prognoacutestico que munidos dessas informaccedilotildees esses pequenos textos populares

publicavam Curiosidades ou supersticcedilotildees de mero ldquointeresse histoacutericordquo Newmann e

Grafton jaacute chamaram a atenccedilatildeo para o perigo que correm alguns estudos quando ao

ligar a renascenccedila ao surgimento do nacionalismo ignoram ou desvalorizam o papel

da astrologia no periacuteodo678 Respeitar a dualidade entre as praacuteticas astroloacutegicas e uma

nascente memoacuteria coletiva eacute igualmente reconhecer a tensatildeo entre centro e periferia

Krzysztof Pomian explicou de que maneira duas teologias concorrentes da

histoacuteria coexistiram entre o final da idade meacutedia e os primoacuterdios da modernidade A

675 ALLESTREE Richard A New Almanach for Prognostication for the yeere of our Lord God 1629

and from the creation 5591 being the first frō leap-yeere calculated and properly referred to the

longitude amp sublimity of the pole articke of 52 amp 53 deg London Printed for the Company of

Stationers 1628 676 ldquoWhat erersquos forgot the memory orsquo the Powder Plot will hardly dierdquo Poor Robin An Almanac After

the Old and New Fashion London 1695 Segundo CRESSY op cit pp 65-71 ldquoO governo de Jaime I

respondeu a Conjuraccedilatildeo da Poacutelvora legislando uma comemoraccedilatildeo anual unindo prerrogativas

seculares e religiosas () [tratou-se de] An Act for Public Thanksgiving to Almighty God Every Year on

the Fifith Day of November () to the End this Unfained Thankfulness May Never be Forgotten but he

had in Perpetual Remembrance () Toda crianccedila inglesa conhece a rima remember remember the

fifth of November The Gunpowder Treason and Plot I see no reason why Gunpowder Treason

Should ever be Forgot () [Com Charles I casado com uma catoacutelica] A cultura da memoacuteria

fragmentou-se em linhas partisatildes e competitivas como rivais pelo controle do passado () Depois do

Grande Fogo de Londres em 1666 o Parlamento inaugurou um monumento () [uma] coluna Doacuterica

de 202 peacutes de altura () monumento ao desastre e a confiante reconstruccedilatildeo da cidade Mas logo ele

ganhou novos significados Rumores persistiram alegando que o fogo natildeo havia sido acidental mas

obra de papistas incendiaacuterios () Em 1681 quinze anos apoacutes o fogo () poliacuteticos Whig adicionaram

uma nova inscriccedilatildeo em maacutermore como um novo apelo agrave memoacuteria lsquoEste pilar foi erguido em

lembranccedila perpeacutetua do mais terriacutevel incecircndio desta cidade Protestante iniciado e levado a cabo pela

traiccedilatildeo e maliacutecia da facccedilatildeo papistarsquo () Sem surpresa James II mandou remover a inscriccedilatildeo mas ela

foi restaurada apoacutes o triunfo protestante na Revoluccedilatildeo gloriosa Eacute apenas em 1830 apoacutes a emancipaccedilatildeo

catoacutelica que a incrisccedilatildeo memorial seria permanentemente removidardquo 677 CRESSY op cit 65 678 NEWMANN William R GRAFTON Anthony (org) Secrets of Nature Astrology and Alchemy in

Early Modern Europe Cambridge MA 2001 principalmente pp 1-11

217

primeira delas representada pela astrologia oferecia inteligibilidade agrave histoacuteria

ldquoprocurando pela razatildeo suficiente de seu curso fora do mundo humanordquo Ao olhar

para os ceacuteus e tentar a partir do invisiacutevel traccedilar relaccedilotildees de influecircncia de uma regiatildeo

diferente do ser para com a esfera sublunar ldquoa razatildeo suficiente do curso da histoacuteria eacute

identificada com a sucessatildeo de eventos celestes resultando necessariamente da

locomoccedilatildeo circular dos astros dotados de poderes peculiaresrdquo Natildeo por acaso no

entanto com as bulas papais do seacuteculo XIII e a via media encontrada por Satildeo Tomaacutes

toda e qualquer doutrina natural da histoacuteria deveria ser subordinada agrave teologia

teocecircntrica ldquoIsso significardquo concluiu Pomian ldquoque se uma contradiccedilatildeo aparecer entre

as duas seraacute a segunda que vai ter a palavra decisivardquo 679

Formas de integrar todas as temporalidades de um dado objeto estudado

ambas as cronosofias projetavam descriccedilotildees de futuro de modo a tornar a histoacuteria do

passado e do presente inteligiacuteveis e completas680 Mas elas o fariam por caminhos

diferentes Uma das discrepacircncias mais significativas entre os pontos de vista

teocecircntrico-cristatildeo e astroloacutegico-natural da histoacuteria encontrava-se nos tratamentos

singulares dados aos problemas do espaccedilo e do tempo O sistema teocecircntrico vecirc as

relaccedilotildees espaciais com desinteresse tendo olhos ldquoapenas para a sucessatildeo temporalrdquo

ao passo que a astrologia reitera com forccedila o papel do espaccedilo da geografia em suma

do lugar como agente historicamente determinante681

Ao estudar as correspondecircncias entre o processo de secularizaccedilatildeo e a

emergecircncia do protestantismo na Inglaterra da primeira modernidade John

Sommerville argumentou que a feacute reformada levava a um entendimento diferente do

espaccedilo no qual capelas monasteacuterios e altares perdiam muitas das suas qualidades

sagradas Por sua vez as experiecircncias do tempo tambeacutem se modificavam com as

alteraccedilotildees nos calendaacuterios eclesiaacutesticos retirando a significaccedilatildeo dos santos682 Eacute

partindo de uma interface entre Pomian e Sommerville que Alison Chapman propotildee

679 POMIAN 1986 p 38-40 A via media estabelecida no seacuteculo XIII por Tomaacutes de Aquino continuou

pautando posiccedilotildees mesmo dentre as religiotildees reformadas John Booker (1602-1667) pregador puritano

tambeacutem foi um astroacutelogo profissional e escritor de almanaques Certamente natildeo dizia nada de

incomum quando escreveu que ldquoas estrelas satildeo letras e os ceacuteus o livro de Deusrdquo ldquoThe stars are letters

and the Heavenrsquos Godrsquos book which day and night we may at pleasure look and thereby learn

uprightly how to liverdquo apud CAPP Bernard English almanacs astrology and the popular press

1500-1800 Londres Farber amp Fauber 1979 p 143 680 Sobre a distinccedilatildeo entre cronometria cronologia e cronosofia ver pp 25-30 Tambeacutem POMIAN

1984 pp V-VI 681 POMIAN 1986 p 38-39 682 SOMMERVILLE John C The secularization of Early Modern England from religious culture to

religious faith Oxford 1992 p 8

218

uma leitura alternativa dos almanaques de efemeacuterides ingleses da primeira

modernidade Aonde autores como David Cressy enxergam o reflexo de um conjunto

nascente de poliacuteticas de memoacuteria e identidade nacional Chapman propotildee observar

tambeacutem uma miriacuteade de reaccedilotildees regionais ndash encabeccediladas por uma teologia natural de

tipo astroloacutegico ndash agraves mudanccedilas ocorridas nos calendaacuterios e nos lugares sagrados Com

a reforma carregando suas tintas no papel de um Deus onipresente a guiar o destino de

um novo povo eleito ndash relativizando assim o sentido do tempo e dos lugares

terrestres ndash os almanaques de efemeacuterides iriam contra a ldquotendecircncia geral do

pensamento protestanterdquo 683

Um almanaque que se proponha a oferecer por exemplo os horaacuterios precisos

para a aurora e o crepuacutesculo ao longo de todo um ano deveraacute fazecirc-lo tendo por base

uma regiatildeo bastante limitada como uma cidade ou um condado Era comum que

essas publicaccedilotildees anuais oferecerem indicaccedilotildees matemaacuteticas para que seus leitores

pudessem converter o valor dos horaacuterios para o uso em outras regiotildees Certos

almanaques eram vendidos com a promessa de possuiacuterem informaccedilotildees vaacutelidas ldquode

modo geral para toda a Inglaterrardquo enquanto outros de maneira provavelmente mais

sincera propagandeavam sua utilidade ldquopara as partes do Sul da Gratilde Bretanhardquo 684

William Lilly (1602-1681) astroacutelogo que se tornou popular com seus

almanaques de prognoacutesticos natildeo deixou de se preocupar com o problema das

aplicaccedilotildees regionais ldquoO mais abusado e celebrado astroacutelogo do seacuteculo XVIIrdquo

realmente construiu uma reputaccedilatildeo para si685 Lilly montou uma teia de contatos na

Inglaterra atraveacutes da qual impunemente praticava o contrabando de dados e profecias

astrais Ele quebrou a tradiccedilatildeo ao publicar textos que deixavam claro ao leitor

exatamente o que deveria saber para interpretar um caso astroloacutegico686 Lilly seguindo

o padratildeo dos dados astronocircmicos publicados nos almanaques do periacuteodo igualmente

683 CHAPMAN Alison A Marking time Astrology Almanacs and English Protestantism In

Renaissance Quaterly Volume 60 Number 4 Winter 2007 p 1260 ldquoI rehearse these broad shifts as

the necessary background to my primary subject the rise of the astrological almanach and the

consequent expansion of an astrologically informed awareness of the significance of time and spacerdquo p

1258 A tese do autor eacute certamente engenhosa Ela oferece um quadro explicativo bastante singular

para o sucesso editorial das efemeacuterides da primeira modernidade na Inglaterra Essa explicaccedilatildeo no

entanto natildeo da conta do igual sucesso desse tipo de publicaccedilatildeo em territoacuterios catoacutelicos como a Franccedila

a Itaacutelia e mesmo a Peniacutensula Ibeacuterica 684 CHAPMAN 2007 1264 685 CAPP 1979 p 57 686 GRAFTON Starry Messengers 2000 p 80

219

propocircs um sistema horoscoacutepico que subordinava suas leituras agraves diferentes

localizaccedilotildees geograacuteficas687

Estima-se que apenas entre os anos de 1664 e 1666 mais de um milhatildeo de

coacutepias desses almanaques foram impressas na Inglaterra Isso fez do gecircnero o maior

best-seller do periacuteodo excetuando-se eacute claro as diversas ediccedilotildees do Livro Sagrado688

Com a baixa nos preccedilos dos livros decorrente da invenccedilatildeo e proliferaccedilatildeo da imprensa

todo o tipo de calendaacuterio textual tornou-se mais e mais acessiacutevel689 Com as

efemeacuterides natildeo seria diferente Desde o seacuteculo XV segundo o dicionaacuterio de Oxford

ldquoos almanaques ou ephemerides comeccedilaram a ser preparados para periacuteodos definidos

como 30 ou 10 anosrdquo e a partir do seacuteculo seguinte jaacute eram editados ano a ano690

Tais publicaccedilotildees tambeacutem podem ser observadas como herdeiras de um tipo

de relaccedilatildeo com o tempo visiacutevel em algumas praacuteticas astroloacutegicas renascentistas que a

sua maneira valorizavam a dimensatildeo do instante Por anos a horoscopia cataacutertica

procurava a partir da observaccedilatildeo do movimento dos astros o momento mais oportuno

para a realizaccedilatildeo de eventos puacuteblicos e privados Popular nos territoacuterios germacircnicos a

teacutecnica foi utilizada para a escolha da data de fundaccedilatildeo da Universidade de

Wittenberg e da inauguraccedilatildeo de uma nova torre na abadia beneditina de Niederaltaich

que ateacute hoje conserva a inscriccedilatildeo de um horoacutescopo datado de 24 de julho de 1514691

Na Inglaterra o dramaturgo e poeta Thomas Middleton (1580-1627) expressou com

ironia essa experiecircncia do tempo ldquoEsposas satildeo como almanaquesrdquo escreveu em uma

687 CHAPMAN 2007 1265 688 Esses nuacutemeros foram estimados por BOSANQUET Eustace F English seventeenth century

almanacks In The Lybrary 10 1930 p 365 Bernard Capp trouxe mais recentemente outros nuacutemeros

ldquoNa deacutecada de 60 do seacuteculo XVII da qual evidencias detalhadas sobreviveram as vendas de

almanaques contaram em meacutedia 400000 coacutepias anuais () CAPP op cit p 23 Robert Houston por

sua vez referiu-se aos almanaques como ldquoo patildeo e mantega dos editores comunsrdquo HOUSTON Robert

Literacy in Early Modern Europe Culture and Education 1500-1800 London New York Longman

1988 p 169 Nuacutemeros para Portugal do seacuteculo XVIII foram trazidos ainda no seacuteculo XIX por

GUIMARAtildeES Ribeiro J Summaacuterio de Varia Histoacuteria Narrativas Lendas Biographias Descripccedilotildees

de Templos e Mommentos Estatiacutesticas Costumes Civis Poliacuteticos e Religiosos de outras eras Lisboa

Rolland amp Semiond 1873 para quem ldquoimprimiam-se por anno 15000 a 17500 folhinhas de algibeira

e 35500 de porta () antes o nuacutemero das de algibeira eta de 20000 e das de porta 40000rdquo p 196 Eacute

possiacutevel inferir que esse tipo de publicaccedilotildees fosse ao lado do livro sagrado o uacutenico tipo de leitura a

que muitas famiacutelias da primeira modernidade tinham acesso 689 Sobre essa questatildeo ver por exemplo os ensaios de CHARTIER Roger LrsquoOrdre des livres

Lecteurs Auteurs Bibliothegraveques en Europe entre XVI et XVIII siegravecle Alineacutea Aix-en-provence 1992

Para um tratamento a respeito de como o advento da imprensa criou as condiccedilotildees de possibilidade para

a revoluccedilatildeo cientiacutefica ndash tornando disponivel todo o corpus claacutessico ao escrutiacutenio criacutetico ver

EISENSTEIN Elizabeth The printing press as an agent of change 2 vol Cambridge 1979 Volume

II 573-575 690 SIMPSON John WEINER Edmund (org) The Oxford English Dictionary Clarendon Press

Oxford 1989 Entrada ldquoalmanachrdquo 691 HUumlBNER op cit p 25

220

de suas tragicomeacutedias ldquonoacutes podemos ter uma nova a cada anordquo Com tais escritos

diria Chapman o tempo comeccedilou a ser experenciado ele mesmo como algo

temporaacuterio692

O tempo efecircmero das efemeacuterides eacute demonstrado pela acircnsia dos letrados da

primeira modernidade em registraacute-lo e ordenaacute-lo Ateacute hoje somos pegos invejando se

surpreendendo ou mesmo fazendo chacotas com a pontualidade praticada nos paiacuteses

de feacute reformada Max Engammare dedicou-se a estudar como o renascimento e a

reforma calvinista produziram uma nova relaccedilatildeo entre o espaccedilo e o tempo A partir de

um diaacutelogo com autores como Max Weber Michel Foucault e Norbert Elias o autor

persegue a invenccedilatildeo da pontualidade ateacute a eacutetica calvinista segundo a qual todos os

instantes da vida humana deveriam ser consagrados agrave alianccedila com o fundador e

administrador da ordem do tempo Deveriacuteamos entatildeo circunscrever espacialmente as

noccedilotildees de um tempo renascentista ldquoflutuanterdquo ndash como expressaram as palavras

claacutessicas de Lucien Febvre ndash aos paiacuteses de religiatildeo romana693 Na Genebra do seacuteculo

XVI o tempo natildeo poderia se dar ao luxo de flutuar ou perder-se em sono improfiacutecuo

a ideia de aproveitar cada instante de produzir a cada minuto toma uma amplitude

que ndash somada agrave culpa protestante ndash adentra o proacuteprio vocabulaacuterio da eacutepoca A partir

da Formula Vivendi de Martin Bucer da Ratio Studiorum de Bullinger e tambeacutem das

Ephemerides de Cauzabon entre outras fontes o autor propotildee-se a analisar o medo da

perda de tempo cujos loci communes encontrariam siacutentese em uma nova economia

temporal voltada agrave caccedila das ociosidades694

Era uma eacutepoca em que reloacutegios espalhavam-se por todas as cidades da Europa

e encimando-se nos campanaacuterios ritmavam a vida comum do alto dos espaccedilos como

que zelando pela moral puacuteblica das praccedilas e mercados ao lembrar natildeo apenas da

passagem do tempo mas da iminecircncia da morte Michaeumll Beuther jurista e

historiador em nada estranho ao ciacuterculo de Lutero Melanchthon e Erasmus Reinhold

natildeo deixou de escrever uma Ephemeris Historica A obra surge em 1551 para logo

ganhar popularidade com sua experimentaccedilatildeo editorial As paacuteginas da publicaccedilatildeo

692 ldquowives are like almanacs we may have every year a new onerdquo MIDDLETON Thomas No wit no

help like a womanrsquos Lowell Johnson (ed) Lincoln 1976 (1611) 51324-325 CHAPMAN 2007

1270 693 ldquoTemps flottant temps dormantrdquo Lucien Febvre Le problegraveme de lrsquoincroyance au XVIe siegravecle La

religion de Rabelais Eacutedition revue Collection Lrsquoeacutevolution de lrsquohumaniteacute synthegravese collective Albin

Michel Paris 1947 Ver capiacutetulo III do segundo livro Les limites de lrsquoincroyance au XVIe siegravecle Les

appuis de lrsquoirreacuteligion les sciences Toacutepico 4 694 ENGAMMARE Max Lrsquoordre du temps Lrsquoinvention de la poncutualiteacute au XVIe siegravecle Droz Les

seuils de la moderniteacute Vol 8 Genebra 2004

221

ofereciam uma entrada geral para cada mecircs seguida de um artigo especiacutefico para cada

dia concordando a cronologia de latinos de gregos e de hebreus695 Mas sua real

inovaccedilatildeo tipograacutefica consistia em deixar a metade de cada paacutegina em branco

reservando espaccedilo aos leitores de modo que pudessem anotar suas proacuteprias

efemeacuterides Em 1551 o livro eacute publicado na Franccedila696 Franccedilois Rassius cirurgiatildeo

parisiense utilizou essa espeacutecie de cronologia interativa Entre os espaccedilos vazios

precisou informaccedilotildees sobre um evento marcante de sua vida ldquono ano do Senhor de

1551 casei-me com Maria la Prestre depois da meia noite entre a primeira e a

segunda horardquo697

O mais famoso exemplar da Ephemeris Historica de Beuther como um

resquiacutecio dessa era dos diaacuterios estaacute preservado na Biblioteca Municipal de Bordeaux

Nele lemos na entrada para o dia primeiro de agosto que em ldquo1581 quando estava

em Luca fui eleito prefeito de Bordeaux no lugar do senhor Marechal de Bironrdquo Na

entrada do dia 19 de dezembro descobrimos que ldquoem 1584 o rei de Navarra veio me

verrdquo Henrique III ndash que logo a seguir em 1589 seria tambeacutem o IV de seu nome em

Franccedila ndash ldquodormiu na minha camardquo e sequer se serviu de um essai esse teste de

prevenccedilatildeo de envenenamento realizado pela prova do manjar real por um ldquooficial de

bocardquo (officier de bouche) Jaacute para o dia 28 de outubro entendemos que ldquono ano de

1571 () fui feito cavaleiro da ordem de Satildeo Michelrdquo Por fim em uma entrada mais

precisa dia 5 de julho estaacute escrito que ldquono ano de 1573 por volta das cinco horas da

manhatilde em Montaigne nasceu de minha esposa Franccediloise de La Chassaigne e de mim

uma menina que foi o terceiro filho de nosso casamentordquo 698 Natildeo era apenas a respeito

695 BEVTHERI Michaelis Ephemeris historica Eivsdem de annorum mundi concinna dispositione

libellus Ex officina Michealis Fezandat et Roberti Grandion Taberna Graphyana Paris 1551 696 A foacutermula tipograacutefica de Beuther seria tambeacutem reeditada por casas editoriais inglesas Com o

Almanack de Thomas Hill publicado em 1571 e pensado na forma de um Livro da Memoacuteria oferecia

aos leitores uma coluna vazia na margem inferior de cada paacutegina Com Thomas Bretor Jonathan Dove

Daniel Browne e Richard Allestree uma geraccedilatildeo mais tarde os almanaques comeccedilaram a deixar

grandes colunas vazias bem no meio das paacuteginas de calendaacuterios Alison Chapman lembra o caso do

escritor John Evelyn (1620-1706) que ldquoresumiu essa preocupaccedilatildeo em recordar e precisar o tempo de

um evento Ele escreve que lsquocomecei a observar as coisas mais pontualmente das quais escrevi na

parte em branco do Almanaquersquo e suas notas satildeo cada vez mais precisas em relaccedilatildeo ao tempo e ao

espaccedilordquo EVELYN John The Diary of John Evelyn De Beer (ed) Oxford 1955 176 ver

CHAPMAN 2007 1282-1284 697 ldquoAnno D 1551 uxorem duxi Mariam la Prestre inter primam et 2am a media nocterdquo Citado por

LAUROUSSE Pierre Grand dictionnaire universel du xix siecle Paris Grand Dictionnaire Universel

Verbete Eacutepheacutemeacuteride p 689-6 698 O documento encontra-se na Bibliothegraveque municipale de Bordeaux Fonds patrimoniaux Ms 1922

e tambeacutem foi disponibilizado online recentemente em trecircs versotildees diplomaacutetica regularizada e

modernizada LEGROS Allan (org) Beuther annoteacute par Montaigne Bibliothegraveques Virtuelles

Humanistes Eacutedition selon trois modes successifs 20022014 Disponiacutevel em httpwwwbvhuniv-

toursfrMONLOEBeutherasp Acesso em 09072014 Refencio aqui os trechos supracitados em

222

de seu cursus honorum que Michel de Montaigne escrevia nas Efemeacuterides Histoacutericas

Em duas entradas dias 10 e 20 de julho ambas relativas ao ano de 1588 ele reclama

de dores no peacute esquerdo causadas por ldquouma espeacutecie de gotardquo 699

Tempo da moral privada as efemeacuterides tambeacutem poderiam contar o tempo da

moral puacuteblica quiccedilaacute em toda sua emaranhada trama poliacutetica caso o autor dos ensaios

ou outro membro da famiacutelia eacute claro tivesse interesse em registraacute-las para a

posteridade O supracitado Henrique de Bourdon chefe do partido protestante logo

se faria amigo e protetor Jean Lacouture pergunta onde estava Montaigne na fatiacutedica

noite de 24 de agosto de 1572 Ainda mais importante o que ele estaria fazendo nos

dias 3 4 e 5 de outubro quando trecircs centenas de huguenotes foram massacrados a dez

leacuteguas de sua casa em Bordeaux ldquoTeria sido faacutecil para ele manifestar sua reprovaccedilatildeo

ou simplesmente sua tristeza no lsquoBeutherrsquo a efemeacuteride familiar longe dos olhos do

puacuteblico das autoridades e dos fanaacuteticos armadosrdquo Mas Montaigne preferiu o silecircncio

As paacuteginas que contavam os primeiros dias do mecircs de outubro foram arrancadas ldquoPor

quem Por ele proacuteprio temeroso do julgamento que havia proferido sobre o ato de

seus concidadatildeosrdquo 700 Natildeo temos como saber Mas natildeo seria difiacutecil visualizar um

Montaigne consciente dos usos poliacuteticos que poderiam ser feitos do seu passado a

partir das efemeacuterides Ou quem sabe outro membro da famiacutelia Talvez sua esposa

Franccediloise quem sabe Leacuteonor sua filha ainda Marie a neta ou Claude-Madeleine

bisneta mulheres que se sucederam na tarefa de manter viva ateacute o seacuteculo XVIII a

tradiccedilatildeo de lembrar ou esquecer dos eventos marcantes da famiacutelia nos espaccedilos em

branco de seu exemplar da Ephemeris Historica de Beuther701

ldquoEmbora seja datado da antiguidaderdquo escreveu Eileen Reeves ldquoo almanaque

floresceu na revoluccedilatildeo impressa do final do seacuteculo XVrdquo Uacutetil ao uso imediato em

ordem a partir da versatildeo regularizada ldquo1581 estant a Lucques ie fus esleu maire de bourdeaus en la

place de mōsieur le mareschal de Biron ()rdquo(p 19) ldquo1584 le roy de nauarre me uint uoir a mōtaigne ou

il nrsquoauoit iamais este et y fut deus iours serui de mes ians sans aucun de ses officiers il nrsquoy souffrit ny

essai ny couuert et dormit dans mon()rdquo (p 26) ldquoLrsquoan 1571 suiuant le comādemāt du roy amp la

despesche que sa maiestegrave mrsquoen auoeumlt faicte ie fu faict chaeualier de lordre s michel ()rdquo (p 23) Lan

1573 enuiron les cinq heures du matin naquit de frāccediloise de la chassaigne ma fame et de moy a

montaigne une fille qui fut le troisiesme ēfant de nostre mariage ()(p 15) Sobre o essai ver a nota

lateral na ediccedilatildeo modernizada p 26 699 Ibidem ediccedilatildeo regularizada 10 de julho ldquo1588 entre trois et quatre apres midi estant logegrave aus faus

bours saint germein a Paris et malade drsquoun espece de goutte () 20 de julho 1588 entre trois et

quatre apres midi estant a Paris et au lit a cause drsquoune dolur qui mrsquoauoit pris au pied gauche trois iours

dauant qui sera a laduanture unrsquoespece de goutte () p 17 700LACOUTURE Jean Montaigne a Cavalo Record Rio de Janeiro 1998 p 161 701 Sobre a linhagem matriarcal das efemeacuterides da famiacutelia Montaigne ver LEGROS Allan (org)

Introduction In Beuther annoteacute par Montaigne op cit sp O texto natildeo faz menccedilatildeo ao silecircncio a

respeito da noite de Satildeo Bartolomeu

223

diversos aspectos da vida civil e domeacutestica suas paacuteginas traziam toda espeacutecie de

informaccedilatildeo a respeito do futuro proacuteximo ldquoquando eclipses solares e lunares

ocorreriam quando eram esperadas mudanccedilas nos padrotildees climaacuteticos quando

grandes feriados religiosos e datas festivas deveriam ser celebradasrdquo e mesmo

ldquoquando sangrias banhos e cortes de cabelo seriam melhor realizadosrdquo Na Itaacutelia para

oferecer dados astronocircmicos precisos assim como no resto da Europa esses panfletos

precisavam se especializar em uma determinada regiatildeo Pouco a pouco comeccedilavam a

publicar pequenas notas locais rumores e novidades Matteo Franzesi secretaacuterio na

Cuacuteria Romana entre a deacutecada de 30 e 40 do seacuteculo XVI relacionou prognoacutesticos com

a sede por notiacutecias ldquoDeixe que o adivinho com base em conjecturas e discussotildees

astrologizerdquo702

No final do seacuteculo XVI sucessivas bulas papais tentavam lidar condenar ou

censurar panfletos de notiacutecias que mesmo natildeo necessariamente astroloacutegicos em

origem costumavam arriscar seus prognoacutesticos A arte nuova dos publicistas

preocupava tanto a atenccedilatildeo dos pontiacutefices de Satildeo Pedro quanto as velhas tradiccedilotildees

secretas Como mostra Eileen Reeves o contrabando entre notiacutecias e almanaques

parece ter se intensificado a partir das primeiras deacutecadas do seacuteculo XVII com o

raacutepido desenvolvimento da astronomia e o aumento das tiragens impressas A

historiadora estudou aquilo que Franccedilois Hartog chamou em sua investigaccedilatildeo sobre a

evidecircncia da histoacuteria de ldquodescoberta ocular do mundo a partir da Renascenccedilardquo703 Os

astrocircnomos natildeo apenas abriam os olhos mas ampliavam sua visatildeo pela arte com a

invenccedilatildeo do telescoacutepio por Galileo e seu posterior aprimoramento com Kepler

A observaccedilatildeo dos ceacuteus alimentava o impresso que tratava de se fazer ouvir

como Mensageiro das estrelas a respeito da descoberta das luas mediceas do

surgimento de estrelas novas e da constataccedilatildeo que lua natildeo era como muitos

defensores do texto pensavam uma esfera lisa e perfeita mas possuidora de

irregularidades similares agraves presentes no mundo sujeito agrave geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo Em

1613 Adriano Politi publicou o seu Dicionaacuterio Toscano Nesse resumo do Dicionaacuterio

de Linguagem Italiana ndash lanccedilado em 1612 por uma academia florentina ligada a

Galileo ndash Politi adicionou uma nova entrada gazetta termo talvez derivado de uma

pequena moeda cunhada em Veneza ldquolsquoUma gazettardquo diz o verbete ldquoeacute composta de

702 FRANZESI Sopra le nouve 207-8 apud REEVES Eileen Evening News Optics Astronomy and

Journalism in Early Modern Europe University of Pennsylvania Press Philadelphia Kindle version

sp 2014 Texto que agora sigo 703 HARTOG 2011 p 143

224

paacuteginas de informaccedilotildees trazidas por mexeriqueirosrdquo que em latim poderiam ser

chamadas de ldquobreve comentaacuterio a respeito de eventos puacuteblicos ou lsquoephemeridesrsquordquo 704

Em Portugal os almanaques astroloacutegicos eram chamados de prognoacutesticos

sarrabais ou lunaacuterios dos tempos Pequenas e de largas tiragens essas peccedilas de

periodicidade anual seguiam os padrotildees editoriais comuns ao gecircnero trazendo a um

puacuteblico semiletrado todo o tipo de informaccedilotildees utilitaacuterias associadas a prognoacutesticos

celestes e indicaccedilotildees das fases da lua assim como eventuais eclipses e conjunccedilotildees

planetares As efemeacuterides lusitanas configuraram uma grande padronizaccedilatildeo embora

pouco a pouco a essa estrutura homogecircnea fossem incluiacutedos outros conteuacutedos

informativos O valenciano Francisco de Gusman jaacute trazia em seu Prognostico y

Lunario de los Tiempos para ano de 1610 listagens das famiacutelias nobres de Espanha

no que foi seguido no seacuteculo seguinte pelas contrapartes portuguesas representadas

pelos almanaques de Rodrigo de Sousa Alcaforado e Leonardo Vaz de Brito Era

igualmente recorrente a divulgaccedilatildeo de aspectos e descriccedilotildees das proviacutencias reais ao

longo dos periacuteodos filipino e brigantino705

Durante o seacuteculo XVII seguindo uma tendecircncia perceptiacutevel por toda a Europa

continental e insular os almanaques portugueses em conteuacutedo e em vocabulaacuterio

igualmente comeccedilam a oferecer avisos e novidades aos seus leitores Mas elas nem

sempre tratavam dos ceacuteus Notiacutecias a respeito das guerras com a Espanha ou ainda

com os holandeses que ocupavam o nordeste brasileiro satildeo publicadas nos lunaacuterios

dos tempos por vezes em secccedilotildees jaacute indicadas com essa finalidade nos proacutelogos Eacute o

que se pode observar nos escritos de Antocircnio Pais Ferraz que em seu Prognostico e

Lunario do ano de 1656 trazia a notiacutecia da libertaccedilatildeo de Pernambuco706

E quanto agrave credibilidade desses perioacutedicos e seus conteuacutedos ldquoEste ano os

cegos veratildeo muito pouco os surdos ouviratildeo bastante mal os mudos quase natildeo

704 Na traduccedilatildeo de Reeves ldquoa gazetta is composed of sheets of reports from newsmongers in Latin one

might phrase it lsquobrief commentary on public eventsrsquo or lsquoephemeridesrsquordquo POLITI Adriano Dittionario

toscano compendio del Vocabolario della Crusca Compilato dal sign Aggiuntoui assaissime voci e

auertimenti necessarij per il scriuere perfettamente toscano Venetia appresso Gio Guerigli amp

Francesco Bolzetta MDCXV p 359 Apud REEVES op cit sd 705 Continuo seguindo CAROLINO Luiacutes Miguel Ciecircncia Astrologia e Sociedade a Teoria da

Influecircncia Celeste em Portugal (1593-1755) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian Porto 2003

principalmente cap 6 p 204 E tambeacutem CAROLINO Luiacutes Miguel A escrita celeste almanaques

astroloacutegicos em Portugal nos seacuteculos XVII e XVIII Rio de Janeiro Access 2002 706 FERRAZ Antoacutenio Pais Prognostico e Lunario do anno de 1656 com as conjunccedilotildees e mais

aspectos da Lua com o Sol e mudanccedilas de tempo E alguns avisos muy importantes para os

Lavradores Calculando ao meridiano de Lisboa cabeccedila da Lusitana Composto por Filosofo e

Mathematico natural desta corte e Cidade de Lisboa Lisboa por Joatildeo Alvarez de Leatildeo 1655 fl1v

apud CAROLINO 2003 p 206

225

falaratildeo os ricos se sentiratildeo um pouco melhor do que os pobres e os que gozarem de

boa saacuteude melhor do que os doentesrdquo707 O prognoacutestico como saacutetira andava de par

como se vecirc com os primoacuterdios da imprensa efecircmera Mais tarde no entanto esse

topos chegaraacute a dominar o gecircnero Com a crescente perda de legitimidade da

cosmologia aristoteacutelica ao longo dos seacuteculo XVII e XVIII a ascensatildeo da astronomia e

o estatuto ambiacuteguo atribuiacutedo agraves teorias da influecircncia celeste ndash ora usadas pelos

priacutencipes ora condenadas agrave astrologia ldquopopularrdquo ndash o escaacuternio e o burlesco tomam

conta dos almanaques de efemeacuterides

Mais ao norte o Poor Robinrsquos previa chuvas para a Inglaterra e mortes para os

mais velhos Em Portugal os feitores de almanaques como uma primeira medida

defensiva tambeacutem esconderiam-se por meio de pseudocircnimos que sussuravam o

oacutebvio A descrenccedila na influecircncia dos ceacuteus mesmo por parte dos que se diziam saacutebios

no assunto jaacute natildeo parecia um problema ldquoQuem se quizer divirtir fale comigordquo

escreveu um astroacutelogo saacutetiro ldquoquem quizer instruir-se em Astrologias leya por

outrosrdquo708 Os prognoacutesticos propriamente ditos ndash que nos sarrabais lusitanos

raramente ousavam versar sobre a vida dos reis ndash tornam-se mais compaacutectos

resumindo-se a descrever os ciclos naturais e a prever aspectos climaacuteticos e utilitaacuterios

como a menccedilatildeo dos horaacuterios da aurora e do crepuacutesculo e a indicaccedilatildeo das fases da lua

e das estaccedilotildees do ano

Em Portugal a crise de legitimidade dos prognoacutesticos levava os feitores de

almanaques natildeo sem ironia a declarar seus leitores como inimigos lanccedilando

vitupeacuterios contra colegas e apresentando-se ndash ao sabor de uma tradiccedilatildeo satiacuterica que

707 RABELAIS Franccedilois Prognoacutesticos Pantagrueacutelicos In ROSSI Paolo (org) Visotildees do fim do

mundo Renata Cordeiro (trad) Satildeo Paulo Landy Editora 2006 p 86 No que continua o prognoacutestico

ao longo da paacutegina seguinte ldquoVaacuterios carneiros bois porcos aves frangos patos morreratildeo mas tatildeo

cruel mortandade natildeo se abateraacute sobre os macacos e os dromedaacuterios Neste ano a velhice seraacute

incuraacutevel por causa dos anos passados Os lacrimosos sentiratildeo grandes dores nos lados do corpo Os

que tiverem diarreacuteia montaratildeo sempre em selas furadas Neste ano os catarros desceratildeo do ceacuterebro ateacute

os membros inferiores A dor drsquoolhos seraacute muito contraacuteria agrave boa visatildeo Na Gasconha as orelhas seratildeo

curtas e mais raras do que de costume E quase universalmente reinaraacute uma doenccedila muito horriacutevel e

temida maligna perversa assustadora e de dar medo que deixaraacute o mundo muito aterrorizado sob a

sua influecircncia muitas pessoas natildeo saberatildeo de que maneira fazer as flechas e muito amiuacutede tentaratildeo

resolver esses problemas com fantasias fazendo planos sobre a pedra filosofal e as orelhas de Midas

Tremo de medo quando penso nisso pois eu lhes digo que essa doenccedila seraacute epidecircmica e Averrois a

chama de falta de dinheiro E devido ao cometa do ano passado e da retraccedilatildeo de Saturno no hospital

morreraacute um grande patife cheio de catarros e bexigas e por ocasiatildeo de sua morte haveraacute uma sediccedilatildeo

horriacutevel entre os gatos e os ratos entre os catildees e as lebres entre os falcotildees e os patos entre as focas e

os ovosrdquo 708 FIALHO (psued) Fuas Feio Sarrabal cidadaotilde Astrologo Casquilho Desenfado do Povo Remedio

dos Cegos e Palito dos Criticos ou Lunaacuterio verdadeiro (ou para cada hum chamar como quizer)

para o anno de 1745 p 5 Apud CAROLINO 2003 p 229 que fala em uma ldquototal descrenccedila no juiacutezo

dos astroacutelogosrdquo

226

poderia ser recuada agrave Histoacuteria Verdadeira de Luciano de Samoacutesata ndash como falsaacuterios

sem credibilidade Se havia alguma hesitaccedilatildeo em condenar a influecircncia celeste para

fora dos regimes de verdade do esclarescimento o terremoto de 1755 jaacute observado

por seus contemporacircneos como fenocircmeno meramente natural veio sepultar a

pretensatildeo dos astroacutelogos e sedimentar sobre eles os signos da mentira e da

inutilidade709 O seacuteculo XVIII foi o momento em que como afirmou Luiacutes Miguel

Carolino ao emular as fontes os almanaques entram pelo ldquobeco da astrologiardquo

ldquoSegurem-me agarraem-merdquo como certa feita escrevera um pobre cego ldquoprendaotilde-

me esse novelleiro esse cambaio esse embusteiro esse tomba lobos esse

historiadorrdquo homem que agora ldquoentra pelo becco da Astrologiardquo710

Como jaacute demonstravam os cacircnones para o leitura e uso das efemeacuterides ndash

publicados na metade do seacuteculo XVI por Oronce Fineacute ndash o saacutebio celeste era um

defensor do texto da tradiccedilatildeo e da autoridade escrita Com a observaccedilatildeo dos ceacuteus

intensificada no iniacutecio do seacuteculo seguinte por Galileo e Kepler essa realidade iria se

inverter Eacute sobre esse problema que Herveacute Dreacutevillon investigando a Astrologia na

Franccedila do Grande Seacuteculo (1610-1715) inicia o seu inqueacuterito ldquoAstrocircnomo ou

astroacutelogordquo escreveria o historiador ldquoesse homem eacute antes de mais nada um leitorrdquo

Abandonando por um momento a leitura dos claacutessicos como Ptolomeu ele passaria agrave

autoacutepsia do cosmos No entanto o que ele enxerga perguntaria Dreacutevillon senatildeo um

ldquoconjunto de signos de uma linguagem celeste na qual a astrologia forma o alfabeto e

a gramaacuteticardquo Na tarefa de decifrar a voz das esferas os Hallucinati voltam-se

novamente agrave leitura no que poderiacuteamos acrescentar que natildeo deixam de escutar

estrelas ldquoEsse eacute o universo dos astroacutelogos leitores de livros e leitores do mundordquo711

709 Sobre a relaccedilatildeo entre o terremoto e a descrenccedila na astrologia em Portugal Ver CAROLINO 2003

p 333-343 710 PEQUENO Antocircnio (pseud) O Cego astrologo Antonio Pequeno filho bastardo do Sarrabal

Saloyo offerece A todos os cegos cegonhas e tortos este grande Prognostico para o anno de 1739

terceiro depois do Bissexto Calculado em Cataluna e ajustado nas Lunaccediloens agraves duas Lisboas Pela

altura so seu Polo 38 graus e 42 minutos de curiosa elevaccedilatildeo ampc Lisboa Officina de Miguel

Rodrigues 1738 pp 2-3 apud CAROLINO 2003 p 199 e 201 Grifos meus 711 DREacuteVILLON Herveacute Lire et eacutecrire lrsquoavenir Lrsquoastrologie dans la France du Grand Siegravecle (1610-

1715) Seysell Champ Vallon 1996 p 10 Grifos meus Entre os seacuteculos XVI e XVII momento da

descoberta ocular do cosmos o autor opotildee duas fontes a primeira as Tableaux accomplis de tous les

arts libeacuteraux publicadas por Christophe de Savigny em 1587 que afiliam a astrologia agrave fiacutesica dos

corpos simples ignorando a astronomia a segunda o Dictionnaire Universel de Furetiegravere publicado

em 1690 que vai opor a astronomia agrave astrologia com a primeira expressando ldquoo maior alcance do

espiacuterito humanordquo e a segunda qualificada como ldquociecircncia vatilde e incertardquo Como um meio termo

publicado na metade do seacuteculo XVII encontramos no Traiteacute des supertitions de Jean-Baptiste Thiers

a astrologia simplesmente definida como uma arte que lecirc signos nos ceacuteus Idem ibidem pp 11-13

227

Na Praga do seacuteculo XVII como mostrou mais recentemente Eileen Reeves as

novidades encontradas nos ceacuteus eram acompanhadas de notiacutecias terrestres relaccedilotildees

tanto confusas entre as duas e disputas publicistas entre jesuiacutetas e protestantes712

Dreacutevillon escrevendo sobre a Franccedila atacou o problema em duas frentes a partir de

um exame da recepccedilatildeo da astrologia ao longo do Grande Seacuteculo e igualmente de um

estudo a respeito dos motivos que levaram os monarcas franceses a condenar e enfim

lanccedilar agrave oacuterbita das ldquosuperticcedilotildees do populachordquo um tipo de saber que nos anos

imediatamente anteriores natildeo haviam cansado de utilizar713

Uma das contribuiccedilotildees do trabalho de Dreacutevillon reside precisamente em

demonstrar que a perda de prestiacutegio da astrologia natildeo se resume agraves criacuteticas de uma

Repuacuteblica das Letras Se Reeves destacou que as bulas papais de 1586 e 1631 natildeo

voltavam suas vozes apenas contra os conhecimentos astroloacutegicos mas igualmente a

todo tipo de publicismo relacionado a elas o historiador francecircs ressaltou que em se

tratando de condenar os saberes celestes os documentos pontificais natildeo iam muito

aleacutem das criacuteticas agraves abordagens judiciaacuterias e divinatoacuterias714 Manobrando entre os

ldquoexcessosrdquo de suas praacuteticas sensiacuteveis ao problema do livre arbiacutetrio os apoacutestolos da

influecircncia celeste mantiveram-se ativos Natildeo se tratava ainda de condenar a validade

de seus pressupostos mas certo uso de seu repertoacuterio Com as ordonnaces de 1560 e

1576 reforccediladas pela declaraccedilatildeo real de 1628 os almanaques de efemeacuterides contendo

prognoacutesticos de natureza poliacutetica foram condenados e proibidos o que natildeo impediu

no entanto que consultas inviduais a astroacutelogos fossem realizadas715

Dreacutevillon mostra por outro lado como essa foi a era da paulatina

marginalizaccedilatildeo social e intelectual da astrologia popular Com os almanaques de

Troye as efemeacuterides manteacutem as mesmas rubricas o mesmo tipo de previsotildees

metereoloacutegicas e tambeacutem a mesma linguagem por vezes hermeacutetica que

712 Ver REEVES 2014 principalmente cap 1 e 2 713 Acompanho tambeacutem a leitura de GUERY Alain Herveacute Dreacutevillon Lire et eacutecrire lrsquoavenir

Lrsquoastrologie dans la France du Grand Siegravecle Resenha Annales Histoire Sciences Sociales 1999

Volume 54 Numero 2 pp 415-117 714 A bula papal de 1586 ndash Contra exercedentes artem Astrologiae judicariae ndash baseava-se na oposiccedilatildeo

entre astrologia natural e astrologia judiciaacuteria A primeira era a arte de prever os efeitos naturais da

influecircncia celeste (clima ventos tempestades trovotildees cometas eclipses etc) a segunda tratava de

prever eventos humanos (guerras queda de Estados morte de reis e papas etc) DREacuteVILLON op cit

p 33 e 79 O historiador francecircs debate essa distinccedilatildeo no ldquoDiscours sur lrsquoastrologie judiciairerdquo que

Richelieu encomendou ao orador Gondren sublinhando que as criacuteticas agrave astrologia natildeo se resumem

pelo seu confronto com a racionalidade cientiacutefica Tratava-se no entanto de uma distinccedilatildeo recorrente

utilizada por autores tatildeo diacutespares quanto Hobbes e Calvino Ver WEBER Dominique Hobbes et les

deacutesir des fous rationaliteacute preacutevisions et politique Presses de la Sorbonne Paris 2007 p 117 715 Segundo CAPP 1979 45 na Inglaterra em alguns casos os almanaques serviam para divulgar os

serviccedilos individuais dos astroacutelogos

228

caracterizava o gecircnero na Franccedila A diferenccedila Ela residia tatildeo somente na

apresentaccedilatildeo papel ruim caracteres borrados xilogravuras grosseiras Tais eram as

caracteriacutesticas das publicaccedilotildees de Pierre I de Larivey o Claude Morel de Troyes que

fez escola desde seu Almanaque para o ano da graccedila de mil seiscentos e onze ateacute a

morte de seu sobrinho e continuador Pierre II de Larivey em 1634716 Como algumas

deacutecadas antes havia sublinhado Geneviegraveve Bollegraveme esse tipo de publicaccedilatildeo era

popular no interior da Franccedila natildeo tanto pelo seus conteuacutedos astroloacutegicos mas

principalmente pelas informaccedilotildees uacuteteis relativas ao cotidiano camponecircs717

Seguindo a tensatildeo antiga entre bonae artes e externae supertitiones Richelieu

natildeo deixaria de chamar a Paris o autor da Citeacute du soleil obra publicada em diversas

versotildees entre 1602 e 1643 Tommaso Campanella imaginou em um diaacutelogo de estilo

platocircnico entre um cavaleiro hospitalaacuterio e um genovecircs uma sociedade utoacutepica

localizada na ilha de Taprobana regida pela ldquoordem da naturezardquo e governada por um

ldquoMetafiacutesicordquo Seus habitantes adoravam o gerador uma vez que ldquono Sol eacute a imagem

do todo poderoso que eles reconhecem sauacutedam nele o Criador sua figura sua estaacutetua

viva eacute ele quem distribui a luz o calor e a vidardquo 718 Dreacutevillon faz uma leitura dos

termos ldquofigurardquo e ldquoestaacutetua vivardquo a partir do sentido que a filosofia hermeacutetica de

Campanella os conferiria ldquoDessa formardquo defendeu o historiador ldquoo sol natildeo faz agraves

vezes de criador ele eacute o criadorrdquo ligando-se por uma relaccedilatildeo de similitude na qual o

ldquoMetafiacutesicordquo sacerdote-rei ocuparia o terceiro niacutevel da representaccedilatildeo719

Representaccedilatildeo que como se pode ver em duas fontes apresentadas pelo autor

corresponderia a certa visatildeo de Luiacutes XIII

Em 1614 surge um panfleto condenando Morgard autor que dava seu nome a

uma popular efemeacuteride astroloacutegica As Memoacuterias de Richelieu chegam a lembrar o

caso quando comentam que ldquoos almanaques desde o comeccedilo do ano soacute falavam da

guerrardquo O Anti-Morgan atacava pessoalmente o astroacutelogo homem que natildeo tinha

ldquooutra estima perante o mundo senatildeo a de um fazedor de almanaquesrdquo Mas natildeo se

716 DREacuteVILLON op cit 145 717 ver BOLLEgraveME Geneviegraveve Les Almanachs Populaires aux XVIIe et XVIII siegravecles Essai d`histoire

sociale Paris Mouton 1969 pp 14-16 718 ldquodans le Soleil crsquoest lrsquoimage du tout puissant qursquoils reconnaissent ils saluent en lui le Creacuteateur sa

figure sa statue vivante crsquoest lui qui distribue la lumiegravere la chaleur et la vierdquoCAMPANELLA T La

Citeacute du Soleil In Voyages aux pays de nulle part Paris Robert Laffront 1990 (1623) p 269 apud

DREacuteVILLON op cit p 110 719 ldquoMais ce systegraveme drsquoeacutequivalence symbolique entre le Soleil et le Creacuteateur ne srsquoarrecircte pas lagrave puisque

le grand precirctre de la Citeacute du soleil srsquoappelle le ldquoMeacutetaphysicienrdquo ou encore le ldquoSoleilrdquo Ainsi le

monarque lrsquoimage et le creacuteateur ne font qursquoun ne sont qursquoun dans cette relation de similitude agrave trois

niveauxrdquo Idem Ibidem

229

tratava de uma criacutetica ao saber celeste Para Dreacutevillon ldquoa acusaccedilatildeo de uso iliacutecito da

astrologia foi apenas um pretextordquo Ou natildeo vemos o autor anocircnimo do panfleto de

1614 ensaiando uma tentativa de ldquorestauraccedilatildeo do prestiacutegio da monarquia pela

exploraccedilatildeo da metaacutefora solar e das trecircs propriedades do solrdquo em uma cena que

contempla os raios da estrela sua circularidade e sua luz ldquoaos quais satildeo associadas

lsquotrecircs virtudes particulares anexas agrave pessoa real () a Majestade o Poder e a

Justiccedilarsquordquo720 Quatro anos antes no contexto do assassinato de Henrique IV conforme

Reeves muitos haviam visto na publicaccedilatildeo do Mensageiro das Estrelas mediceas de

Galileo o prenuacutencio de uma regecircncia italiana na Franccedila721 No conturbado ano dos

Estados Gerais imagens inspiradas no hermetismo de Campanella disputavam espaccedilo

com as previsotildees dos almanaques e ldquoenunciando as propriedades do solrdquo afirmava-

se como declarou Dreacutevillon ldquouma definiccedilatildeo da monarquiardquo 722

Assim como aconteceria na Inglaterra da Guerra Civil aonde os almanaques

de efemeacuterides chegaram a ser vistos como ldquolsquopropaganda de guerrarsquordquo utilizada por

ldquoambos os lados do conflitordquo e seus autores ldquoformadores de opiniatildeordquo esse tipo de

primeiro publicismo emaranhava-se entre as disputas e quimeras poliacuteticas francesas

do seacuteculo XVII723 Logo no entanto o rei sol que refletia as imagens do Metafiacutesico

de Campanella declararia natildeo precisar mais da influecircncia de outros astros para

governar na Terra Afinal natildeo era apenas o ldquoavenir radieuxrdquo da Cidadela do Sol que

reluzia em certos usos das efemeacuterides Em 1631 e mesmo antes em 1614 astroacutelogos

foram acusados de crime lesa-majestade Jaacute na metade do seacuteculo a Previsatildeo

Maravilhosa de Sieur Andreas atribuiacuteda ao ldquogrande astroacutelogo Eistadius nas suas

Efemeacuteridesrdquo prognosticava com precisatildeo o eclipse total de 1654 E indicando uma

ldquopavorosa escuridatildeordquo de trecircs horas na verdade alardeava a proximidade do fim dos

tempos que seria antecedida pela conflagraccedilatildeo de todos os poderes pela a subversatildeo

720 RICHELIEU Meacutemoires In Michaud et Poujoulat Nouvelles Collections des meacutemoires pour servir

agrave lrsquohistoire de France Paris 1838 2 seacuterie vol 7 p 65 LrsquoAnti-Morgard (anocircnimo) Sur ses preacutedictions

de la presente anneacutee mil six cens quatorze Paris Anthoine de Breuil 1614 p 4 apud DREacuteVILLON op

cit p 102 Na mesma paacutegina o autor lembra que Pierre de lrsquoEstoile jaacute descrevia a censura de Maria de

Meacutedicis sobre o Almanaque Morgar para 1611 com a justificativa de que aquela publicaccedilatildeo ldquopreacutedisait

toutes choses funestes et malencontreuses comme pestes guerres renversements drsquoeacutetats avec morts

de rois et de reinesrdquo Pierre de lrsquoEstoile Journal pour la regravegne de Henri IV (1610-1611) Vol 3 Paris

Gallimard 1960 p 198 721 Para a recepccedilatildeo do Sidereus Nuncius na Praga e na Florenccedila de comeccedilos do seacuteculo XVII ver

REEVES op cit principalmente cap 2 722 No que ele completa ldquoLrsquoastrologie ne constitue pas une repreacutesentation neutre elle participe agrave la

deacutefinition du pouvoir et de sa missionrdquo DREacuteVILLON op cit 110 723 As expressotildees satildeo de FERREIRA Juliana Mesquita Hidalgo Propaganda e criacutetica social nas

cronologias dos almanaques astroloacutegicos durante a Guerra Civil inglesa no seacuteculo XVII In Revista

Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo Dezembro de 2007 V 27 N 54 pp 199 e 200

230

de todas as autoridades seguidas por discoacuterdias guerras querelas e divisotildees724 Natildeo

poderiam haver notiacutecias mais indesejaacuteveis aos ciacuterculos de poder

Cleacuterigos literatos da corte e homens proacuteximos agrave Academia Real de Ciecircncias

eram os principais grupos de adversaacuterios da astrologia Se durante o reino de Luiacutes

XIII a luta do Estado se deu no sentido de controlar a imprensa fazendo prevalecer as

prerrogativas celestes oficiais com Luiacutes XIV o exemplo do rei cederaacute aos argumentos

de Port-Royal suprimindo a proacutepria gramaacutetica dos genethliaci A astrologia superior

ou inferior no que era tambeacutem chamada de alquimia lia na ordem dos signos certas

virtudes ndash acompanhadas de luz e calor ndash capazes de modificar o mundo material Ao

aceitar-se a Loacutegica ou a arte de pensar de Arnauld e Nicole publicada em 1662 natildeo

seria mais possiacutevel no entanto confundir substacircncia e representaccedilatildeo palavras e

coisas Com o eacutedito de 1682 realizado sob a eacutegide da Academia de Ciecircncias as

especulaccedilotildees astroloacutegicas a respeito da analogia rei-sol vatildeo ser banidas por Luiacutes XIV

que passa a defender uma concepccedilatildeo binaacuteria da representaccedilatildeo abandonando a trama

hermeacutetica que o emaranhava a outros dois signos Como sol o monarca agora fulgura

por si soacute sob os auspiacutecios da razatildeo Esse eacute precisamente o periacuteodo em que cresce

publica-se e repete-se a importacircncia da noccedilatildeo de supersticcedilatildeo na polecircmica contra os

apoacutestolos da influecircncia celeste725 Em 1699 Pierre Bayle perguntava-se por que esses

saberes continuavam a seduzir todo um seacutequito lamentando que ldquoas grandes luzes 724 ldquoToutes les puissances seront presque aneanties em sorte que toute authoriteacute amp superioriteacute seront

rejetteacutees par les Subjets Les dissentions guerres quereles amp diuisions srsquoeschauferont amp

srsquoenflammeront em sorte que tout Empire Chrestien sera em danger ()rdquo ANDREAS Prediction

merveillevse Du Sieur Andreas Astrologue amp Mathematicien de Padouumle Sur lrsquoEclipse de Soleil qui se

ser ale douziesme iour drsquoAoust MDCLIV Avec son explication amp lrsquoapprobation drsquoEistadius Grand

Astrologue A Paris Par Iacques Beslay 1654 p 4-5 725 Sobre os grupos da Repuacuteblica das Letras que detratavam a astrologia ver DREacuteVILLON op cit p

211 Sobre a Loacutegica de Port-Royal ver pp 179 190-191 195 251 Sobre a polecircmica contra a

astrologia e as noccedilotildees de supersticcedilatildeo e credulidade ver 242 A tese do autor eacute na verdade bem mais

ambiciosa do que julguei necessaacuterio incorporar defendendo que Luiacutes XIV ao banir a leitura

astroloacutegica afetava a eficaacutecia de seu sistema de representaccedilatildeo o qual seria ldquofundado nos mesmos

coacutedigos simboacutelicosrdquo ldquoEn deacutefendant une conception purement meacutecaniste de la convention de

repreacutesentation le roi introduit une faille dans le systegraveme des similitudes et des eacutequivalences

symboliques Or ce systegraveme cette coheacutesion entre toutes les parties du monde fonde aussi le mystegravere de

la preacutesence reacuteelle du roi dans ses repreacutesentations Si le roi nrsquoest pas le soleil alors lrsquoimage du roi nrsquoest

pas le roi Toute se passe en fait comme si Louis XIV demandait agrave ses sujets de croire en ce que lui-

mecircme ne croit pas lrsquoanalogie entre le roi et le soleil doit srsquoimposer aux sujets mais pas au roi Ce

paradoxe est aux origines drsquoune profonde crise de la repreacutesentation royale Car les savants et

lrsquoAcadeacutemie des Sciences contribuent eux aussi agrave briser le systegraveme des analogies par la promotion

drsquoun nouveau statut du signe et du langage que nous avons vu inaugureacute par ces ldquoMessieursrdquo de Porto-

Royalrdquo idem p 242 Cf GUERY 1999 416-417 para quem ldquoLes travaux de Jean-Marie Goumelot

sur lsquoLe regravegne de lrsquohistoirersquo() auraient permis agrave H Dreacutevillon de voir un problegraveme lagrave ougrave il pense avoir

apporteacute une solution Louis XIV peut reacutegner sans fou et sans astrologue aupregraves de lui selon un projet

ougrave peu agrave peu il fait entrer les travaux des savants de ses Acadeacutemies parce qursquoapregraves 1662 date de

publication de la ldquoLogiquerdquo de Port-Royal il nrsquoest plus possible de confondre substance et

repreacutesentation ordre des choses et ordre des motsrdquo

231

filosoacuteficas do seacuteculo XVII natildeo puderam arruinar a astrologiardquo 726 Abandonado pelas

musas com a autoridade de seu corpus e a representaccedilatildeo de seu cosmos na defensiva

o cego que lia as estrelas natildeo poderia mais ao menos para os correspondentes da

Repuacuteblica das Letras fazer delas sentido como se as escutasse Para os philosophes a

crenccedila na gramaacutetica dos astros jaacute estava identificada afinal de contas como

supersticcedilatildeo Supersticcedilatildeo que perdeu-se no ldquobeco da astrologiardquo

Loacutegica jansenista como causa remota ndash e Agostinho tanto mais remoto ndash os

paralelos do rei mudam de direccedilatildeo Eles natildeo vem mais de uma ilha distante governada

por um Metafiacutesico em nome da ordem da natureza mas da ordem do tempo na qual

como fez o Racine de 1666 busca-se o exemplo de Alexandre727 Assim ao rei sol de

Campanella sobrepotildee-se o Ludovico Magno do arco triunfal da porta de Saint-Denis

Apoacutes 1680 como lembra Hartog os proacuteprios paralelos seratildeo postos em duacutevida A

monarquia absoluta que natildeo mais sabia trabalhar com modelos do passado faz do rei

sua proacutepria medida de virtude Louis le Grand cantara Perrault era o ldquomais perfeito

modelordquo 728 ldquoA semelhanccedila deixou de formar no interior do saber uma figura

estaacutevel suficiente e autocircnomardquo completaria um recente filoacutesofo O monarca natildeo era a

imagem mas o proacuteprio centro do sistema poliacutetico como se viesse consolidar ldquouma

ordem de conhecimentos em que a similitude pode ter apenas um lugar precaacuterio e

provisoacuterio no limite da ilusatildeordquo729 Da superaccedilatildeo dos exemplos do passado rumo agrave

gloacuteria literaacuteria do presente o grande homem estava pronto para dar nome ao espiacuterito

de um seacuteculo e capitanea-lo rumo ao futuro

Os ldquofazedores de almanaquesrdquo com suas relaccedilotildees de influecircncia e semelhanccedila

foram condenados pelos censores da Repuacuteblica das Letras ao mais baixo degrau da

literatura A leitura das efemeacuterides do cruzamento de seus nuacutemeros e signos da 726 ldquo() les grandes lumiegraveres philosophiques du XVIIe siegravecle nrsquoont pu ruiner lrsquoastrologierdquo BAYLE

Pierre Continuations des Penseacutees diverses Rotterdam Reinier Leers 1705 [1699] p 180 727 Luiacutes XIV escreveu em suas memoacuterias ldquoJe consideacuterai () que lrsquoexemple de ces hommes ilustres et

de ces actions singuliegraveres que nous fournit lrsquoAntiquiteacute pouvait donner au besoin des ouvertures trecircs

utiles soit aux affaires de la guerre ou de la paix ()rdquo GRELL Chantal MICHEL Christian LrsquoEacutecole

des princes ou Alexandre disgracieacute Paris Gallimardm 2000 p 155 apud HARTOG 2005 p 155

Sobre o paralelo entre o Luiacutes XIV e o rei da macedocircnia na dedicatoacuteria do Alexandre de Racine ver

paacutegina anterior 728 PERRAULT Charles Le Siegravecle de Louis le Grand 1687 apud HARTOG 2005 p 156 ldquoLouis le

Grandrdquo PERRAULT Charles Paralelle des Anciens et des Modernes En ce qui regard les arts et les

sciences Nouvelle Edition augmenteacutee de quelques Dialogues Tome I Paris Coignard 1663 p 7 729 ldquoEis que haacute mais de dois seacuteculos no nossa cultura a semelhanccedila deixou de formar no interior do

saber uma figura estaacutevel suficiente e autocircnoma A eacutepoca claacutessica a mandou embora Bacon de iniacutecio

depois Descartes instauraram para um tempo do qual natildeo saiacutemos uma ordem de conhecimentos em

que a similitude pode ter apenas um lugar precaacuterio e provisoacuterio no limite da ilusatildeordquo FOUCAULT

Michel Arqueologia das Ciecircncias e Histoacuteria dos Sistemas de Pensamento Manoel Barros da Motta

(org) Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2000 p 10

232

mudanccedila natildeo poderia mais influenciar a ordem da mateacuteria atraveacutes de conjunccedilotildees

cometas e eclipses associados agraves qualidades acidentais doadas pelas casas zodiacais

em que se manifestavam Mas a sua escrita assentada nas praacuteticas da geraccedilatildeo de

Poliacutebio como uma narrativa dia-a-dia dos feitos natildeo das estrelas mas dos homens ndash

ainda acompanhada de ldquocomentaacuterios a respeito de eventos puacuteblicosrdquo ndash poderia influir

no mundo a partir da associada consciecircncia secular de que os signos do passado

podem ser debatidos reescritos e de que a dureza dos fatos eacute apenas uma saacutetira

imprecisa do desenvolvimento do espiacuterito dos homens Nos afastamos

progressivamente de um ldquopseudo-conhecimentordquo ndash jaacute intelectualmente excluiacutedo

quando da fundaccedilatildeo da Academia de Colbert em 1666 ndash para aproximar-nos dos

novos saberes da moda das sciences morales et politiques que no Larousse de 1876

teraacute a histoacuteria como ldquoo foco e o controlerdquo730 Em Portugal talvez natildeo por acaso eacute a

partir de 1 de novembro de 1755 ndash dia do terremoto de Lisboa e data selecionada por

Carolino para o sepultamento simboacutelico das crenccedilas astroloacutegicas ndash que narram as

Rerum Luisitanarum Ephemerides compilaccedilatildeo de eventos humanos e sublunares que

segue ateacute a expulsatildeo dos jesuiacutetas em 3 de setembro de 1760731 Passamos ao lado do

Seacuteculo de Luiacutes XIV e rumo agrave esfera puacuteblica as efemeacuterides sauacutedam sua influecircncia nas

ldquohistoacuteriasrdquo e nas ldquonotiacuteciasrdquo

42 As Diatribes das Efemeacuterides

Em 1765 o abade Nicolas Baudeau funda as Efemeacuterides do Cidadatildeo folheto

que de iniacutecio circularia duas vezes por semana levando o sugestivo subtiacutetulo de

crocircnica do espiacuterito nacional A ambiccedilatildeo do projeto era bem maior do que indicava o

peso de sua brochura No editorial de lanccedilamento Baudeau economista e teoacutelogo

refletia sobre as feuilles periodiques e imaginava a funccedilatildeo do novo perioacutedico

Eacute preciso ir mais longe Examinem na Cidadatildeo qual eacute e

qual pode ser a influecircncia dos Escritos puacuteblicos sobre o

Espiacuterito Nacional como eles podem corrigir os erros do 730 ldquoLe mouvement historique inaugure au XVIIe par Bossuet continue au XVIII par Vico Herder

Condorcet et deacuteveloppeacute par tant drsquoesprits remarquables de notre XIXe siegravecle ne peut manquer de

srsquoaccentuer encore davantage pour ainsi dire une religion universelle Elle remplace dans toutes les

acircmes les croyances eacuteteintes et eacutebranleacutee ele est devenue le foyer et le controle des sciences morales agrave

lrsquoabsence desquelles ele suppleacuteerdquo LAUROUSSE Pierre Grand dictionnaire universel du XIXe siegravecle

Vol XII article Histoire p 301 apud HARTOG Croire em lrsquohistoire 2013 op cit p 10 731 FIGUEIREDIO Antonio Rerum Lusitanarum Ephemerides Ab Olisiponensi Terraemotu ad

jesuitarum expulsionem Olisipone Typis Regiis Sylvianes 1762

233

povo ressucitar as antigas verdades () obrigaacute-los a

abrir os olhos agrave luz desmascarar o interesse pessoal

forccedilando-o a seu uacuteltimo refuacutegio ()732

Nos anos seguintes o folheto torna-se a publicaccedilatildeo dos ldquofiloacutesofos

economistasrdquo termo que o editor das Eacutepheacutemeacuterides utilizava para designar os

fisiocratas grupo ao qual tinha se aproximado733 ldquoFisiocraciardquo explicava uma ediccedilatildeo

da revista ldquosignifica governo da naturezardquoTratava-se de defender que eacute a ldquoNatureza

e natildeo os homens () o direito a ordem e as leisrdquo e que nosso ldquodever e interesserdquo era

de ldquoconhecer e de seguir o Governo natural uacutenico invariaacutevelrdquo 734 Para os adeptos da

doutrina as leis da natureza apareciam como as ldquocondiccedilotildees essenciaisrdquo da execuccedilatildeo e

manutenccedilatildeo da ldquoordem instituiacuteda pelo Autor da Naturezardquo735

O vocabulaacuterio fazia eco a uma obra que apareceu no ano anterior publicada

na Londres de 1767 A Ordem Natural e Essencial das Sociedades Poliacuteticas escrita

por Le Mercier de La Riviegravere aparecia como bibliografia fundamental para as

discussotildees e combates que figuravam como Efemeacuterides736 Natildeo se tratava mais eacute

732 BAUDEAU Nicolas Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen ou Chronique de lrsquoEsprit National T 1 4 de

Novembro de 1765 Paris Augustin Delalain p 15 ldquoIl faut aller encore plus loin Examinez en Citoyen

quelle est amp quelle peut ecirctre lrsquoinfluence des Ecrits publics sur lrsquoEsprit national comment ils peuvent

corriger les erreurs du peuple ressusciter les antiques veacuteriteacutes investir lrsquoignorance aveugle amp

preacutesomptuese lrsquoobliger drsquoouvrir les yeux agrave la lumiere deacutemasquer lrsquointeacuteret personell amp le forcer dans

son dernier retranchement vous verrez que les maximes les plus utiles seront toujours enseacutervelies pour

le Public Franccedilois tant qursquoelles demeureront dans les Livres didactiques du petit nombre qui les lit

une moitieacute les oublie lrsquoautre les retient em silencerdquo Baudeau ao publicar as Efemeacuterides teria se

inspirado no The Spectator fundado por Joseph Addison e Richard Steele em 1711 com a ambiccedilatildeo de

ldquotocar todos os puacuteblicosrdquo Sobre os periacuteodos editoriais das Efemeacuterides seguidos de uma longa

compilaccedilatildeo de suas tables de matiegravere ver o recente trabalho de HERENCIA Bernard Les

Eacutepheacutemeacuterides du citoyen et les Nouvelles Eacutepheacutemeacuterides eacuteconomiques (1765-1788) Documents et table

complegravete Centre international drsquoeacutetude du XVIIIe siegravecle Ferney-Voltaire 2014 principalmente pp ix-x 733 Veja-se por exemplo Correspondance entre M Graslin de lrsquoAcadeacutemie eacuteconomique de S

Peacutetesbourg Auteur de lrsquoEssai Analytique sur la Richesse amp sur lrsquoImpocirct et M LrsquoAbbeacute Baudeau Auteur

des Epheacutemeacuterides du Citoyen Sur un des Principes fondamentaux de la Doctrine des soi-disants

Philosophes Eacuteconomistes Londres 1777 734 BADEAU Nicolas NEMOURS Dupont (et all) Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou Chronique de lrsquoesprit

national 1768 Tome Troisieme Seconde Partie Critiques Raisonneacutees N Premier ldquoPhysiocratie

signifie Gouvernement de la nature comme Monarchie veut dire Gouvernement drsquoun seul homme

Oligarchie le Gouvernement drsquoun petit nombre Deacutemocratie le Gouvernement de tout le Peuple La

Doctrine dont tous les priacutencipes sont renfermeacutes dans ce Recueil preacutecieux consiste agrave soutenir que crsquoest

la Nature amp non pas les hommes qui sont le droit lrsquoordre amp les loix que le devoir amp lrsquointeacuterecirct des

hommes est de connaicirctre amp de suivre le Gouvernement naturel unique invariable simple amp le plus

avantageux quirsquoil soit possible agrave notre especerdquo p 165 735 Ibidem ldquoLes Loix Naturelles consideacutereacutees en general sont les conditions essentielles selon

lesquelles tout srsquoexeacutecute dans lrsquoordre institueacute par lrsquoAuteur de la Nature Elles diferente de lrsquoordre

comme la partie difere du toutrdquo p 174 736 Eacute em uma resenha publicada nas Efemeacuterides do Cidadatildeo em 1767 que encontramos a primeira

referecircncia ao termo ldquofisiocraciardquo Nous lui devons avant tout cette justice quil a plutocirct ignoreacute que

combattu les Princies de la Physiocratie cest-agrave-dire de lordre naturel amp social fondeacute sur la neacutecessiteacute

physique amp sur la force irreacutesistible de leacutevidence pp 121-122 Principes de tout gouvernement In

234

claro da ordem natural dos astroacutelogos renascentistas Se a geraccedilatildeo anterior jaacute havia

clamado por uma philosophie nouvelle Le Mercier veio revelar com clareza e

distinccedilatildeo uma nova ordem da natureza ldquoPensei que devia examinar se as leis naturais

da sociedade satildeo as verdadeiras causas de seus proacuteprios malesrdquo explicava sua

enquecircte ldquoou se elas natildeo satildeo nada mais do que os frutos necessaacuterios de nossa

ignoracircncia sobre as disposiccedilotildees dessas leisrdquo Suas pesquisas como vemos logo

fizeram-no passar ldquoda duacutevida agrave evidecircnciardquo convencendo-o da existecircncia de uma

ldquoordem naturalrdquo que governava os homens em sociedade737 Como escreveu o autor

logo no iniacutecio do capiacutetulo VI

Natildeo se pode confundir a ordem sobrenatural com a

ordem natural a primeira eacute a ordem das vontades de

Deus conhecidas pela revelaccedilatildeo e ela natildeo eacute sensiacutevel

senatildeo agravequeles para os quais decidiu manifestar-se A

segunda pelo contraacuterio eacute dada a conhecer por todos os

homens por meio das luzes da razatildeo A autoridade desta

ordem encontra-se em sua evidecircncia assim como na

forccedila irresistiacutevel atraveacutes da qual a evidecircncia domina e

submete nossas vontades738

Superando a duacutevida meacutetodica o que vinha evidenciar a nova ordem da

natureza esse todo fiacutesico a partir do qual as sociedades cresciam como meros ramos

de uma aacutervore divina La Riviegravere acreditava que a relaccedilatildeo de ldquonecessidade fiacutesicardquo

entre as trecircs formas de propriedade ndash pessoal (personelle) moacutevel (mobiliegravere) e

imoacutevel (fonciegravere) ndash era a base da ordem natural e essencial das sociedades

Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou Chronique de lesprit national Lacombe Paris 1767 T4 Parte 2 pp 121-

122 737 LE MERCIER Pierre Paul de La Riviegravere Lrsquoordre naturel et essentiel des socieacuteteacutes politiques T 1

Desaint ndash J Nourse Londres 1767 pp xiii-xv ldquojrsquoai cru devoir examiner si les loix naturelles de la

socieacuteteacute sont les veacuteritables causes de ces mecircmes maux ou srsquoils ne sont point plutocirct les fruits neacutecessaires

de noitre ignorance sur les dispositions de ces loix ()Mecircs recherches sur ce point mrsquoont fait passer du

doute agrave lrsquoeacutevidence elles mrsquoont convaincu qursquoil existe un ordre naturel pour le gouvernement des

hommes reacuteunis en socieacuteteacute un ordre qui nous assure neacutecessairement toute la feacuteliciteacute temporelle agrave

laquelle nous sommes appelleacutes pendant notre seacutejour sur la terre toutes les jouiumlssances que nous

pouvons raisonnablement y deacutecirer amp auxquelles nous ne pouvons rien ajouter qursquoagrave notre preacutejudice

um ordre pour la connoissance duquel la nature nous agrave donneacute une portion suffisante de lumieres amp qui

nrsquoai besoin que drsquoecirctre connu pour ecirctre observeacute un ordre ougrave tout est bien amp neacutecessairement bien ougrave

tout les inteacuterecircts sont si parfaitement combineacutes si inseacuteparablement unis entre eux ()rdquo 738 LE MERCIER 1767 p 60 ldquoIl ne faut pas confondre lrsquoordre surnaturel avec lrsquoordre naturel le

premier est lrsquoordre des volonteacutes de Dieu connues par la reacutevelation amp il nrsquoest sensible aursquoagrave ceux

auxquels il a bien voulu le manifester Le scond au-contraire se fait connoicirctre agrave tous les hommes par le

secours des seules lumieres de la raison Lrsquoautoriteacute de cet ordre est dans son eacutevidence amp dans la force

irreacutesistible avec laquelle lrsquoeacutevidence domine amp assujettit nos volonteacutesrdquo

235

humanas739 Nascida com a agricultura a propriedade imoacutevel era o divisor de aacuteguas

para com a ordem primitiva da natureza Os ldquotrecircs tipos de propriedadesrdquo explicava o

fisiocrata ldquosatildeo tatildeo unidas que devemos observaacute-las como um uacutenico todo do qual natildeo

se pode separar nenhuma parte sem que se resulte na destruiccedilatildeo de todas as outrasrdquo740

Poderiacuteamos sem grandes dificuldades aiacute ler a maacutexima de Malebranche presente eacute

verdade como epiacutegrafe do estudo ldquoa ordem eacute a lei inviolaacutevel dos espiacuteritosrdquo741

Natildeo faltaram criacuteticos a esse ideaacuterio ldquoAs duas primeiras partes da obra natildeo

produziram sob meu espiacuterito o mesmo efeito que a terceirardquo diria Gabriel Bonnot

referindo-se aos capiacutetulos da Ordem Natural que lidavam com o problema da

imanecircncia entre as formas de propriedade ldquoVejo que falamos muito sobre evidecircncia

e me parece que nada ali eacute evidenterdquo continuava o abade de Mably Insatisfeito ele

arregaccedila as mangas e prepara duas sinceras cartas remetendo-as aos cuidados do

editor das Efemeacuterides do Cidadatildeo sob o tiacutetulo de Duacutevidas propostas aos filoacutesofos

economistas742 Para Mably tudo se passa como se uma anaacutelise da ordem da natureza

natildeo devesse partir da deduccedilatildeo cartesiana indo do geral para o particular mas pela

induccedilatildeo histoacuterica que vai do particular para o geral a partir da experiecircncia do passado

ou mesmo da visatildeo do presente Ele jaacute havia explicitado seu meacutetodo no proacutelogo de

uma obra anterior Nas Observaccedilotildees sobre a Histoacuteria da Franccedila o historiador se

propunha a investigar as ldquodiferentes formas de governo que os franceses obedeceram

depois de seu estabelecimento nas Gaacuteliasrdquo e descobrir ldquoas causas que ao impedir que

nada fosse estaacutevel entre eles os entregaram durante uma longa sequecircncia de seacuteculos

a revoluccedilotildees contiacutenuasrdquo Essa parte da histoacuteria da Franccedila como acreditava Mably

seria ainda desconhecida

tanto dos analistas antigos quanto dos historiadores

modernos Eu a aprovei por mim mesmo desde que

remontei agraves verdadeiras fontes de nossa histoacuteria ou seja

a nossas leis aos capitulares agraves foacutermulas antigas agraves

cartas aos diplomas aos tratados de paz e de alianccedila

739 LE MERCIER 1767 p 27 740 Ibidem p 46 ldquoCes trois sortes de proprieacuteteacutes sont ainsi tellement unies ensemble qursquoon doit les

regarder comme ne formant qursquoum seul tout dont aucune partie ne peut ecirctre deacutetacheacutee qursquoil nrsquoem

reacutesalte la destruction des deux autresrdquo 741 ldquoIl est vrai qursquoon demeure assez drsquoaccord que lrsquoordre est la loi inviolable des esprits et que rien

nrsquoest reacutegleacute srsquoil nrsquoy est conformerdquo MALEBRANCHE Traiteacute de Morale IIIX In Ouvres Complegravetes

Paris De Sapia 1837 p 405 742 MABLY Gabriel Bonnot abade de Doutes proposeacutes aux Philosophes Eacuteconomistes sur lrsquoOrdre

Naturel et Essentiel des Socieacuteteacutes Politiques In Ouvres Complegravetes de Lrsquoabbeacute de Mably Tome 11

Lyon Delamolliere 1792 p 3

236

Descobri um sem nuacutemero de erros grosseiros os quais

havia me deparado em meio ao meu Parallegravele des

Romains et des Franccedilois Vi aparecer em frente aos

meus olhos uma naccedilatildeo em tudo diferente daquela que

acreditava conhecer743

Quem natildeo sabia afinal que ldquoa moral e os costumes dos povosrdquo estatildeo sempre

em movimento mudam adaptam-se natildeo ldquotendo nada de estaacutevelrdquo744 Era essa

prerrogativa que impedia Mably de aceitar as ldquoevidecircnciasrdquo de uma ordem da natureza

que manteria a dita relaccedilatildeo de necessidade fiacutesica entre as trecircs formas de propriedade

Exemplos particulares que indicavam o contraacuterio natildeo faltavam ao abade Iroqueses e

hurotildees natildeo conheciam a partilha de terras o que em nada significava que natildeo

possuiacutessem propriedades pessoais Entre os espartanos para quem o Estado doava as

terreas necessaacuterias agrave subsistecircncia ocorreria fenocircmeno parecido Mesmo os iacutendios do

Paraguai habitantes das Missotildees e instruiacutedos no usufruto coletivo das terras pelos

jesuiacutetas pareciam lutar ldquoimpunementerdquo contra a tal ldquolei essencialrdquo da ordem da

natureza745 ldquoTalvez esteja enganado mas me parece que as coisas que natildeo podem ser

separadas sem que causem suas proacuteprias destruiccedilotildees deveriam estar sempre unidasrdquo

provocou Gabriel Bonnot746

Os fisiocratas em sua resposta publicada nas Efemeacuterides pareciam

escandalizados Como seria possiacutevel a um homem que visse ldquocom admiraccedilatildeo a ordem

que rege o universordquo atribuiacutendo toda multiplicidade de efeitos a ldquouma causa superior

e inteligenterdquo acreditar que a ordem da natureza ndash a instacircncia cujo conhecimento nos

743 MABLY Gabriel Bonnot abade de Observations sur lrsquoHistoire de France In Ouvres Complegravetes

de LrsquoAbbeacute de Mably op cit T 1 pp 121-122 ldquoJe me propose dans cet ouvrage de faire connoicirctre les

diferentes formes du gouvernement auxquelles les Franccedilois ont obeacutei depuis leur eacutetablissement dans les

Gaules et de deacutecouvrir les causes qui en empecircchant que rien nrsquoait eacuteteacute stable chez eux les ont livres

pendant une longue suiacutete de siegravecles agrave de continuelles reacutevolutions Cette partir interessante de notre

histoire est entiegraverement inconnue des lecteurs qui se bornent agrave eacutetudier nos annalistes anciens et nos

historiens modernes Je lrsquoai eacuteporouveacute par moi-mecircme degraves que je remontai aux veacuteritables sources de

notre histoire crsquoest-agrave-dire agrave nos lois aux capitulaires aux formules anciennes aux chartes aux

diplomes aux traiteacutes de paix et drsquoaliance etc Je deacutecouvris les erreurs grossiegraveres et sans nombre ougrave

jrsquoeacutetois tombeacute dans mon Parallegravele des Romains et des Franccedilois Je vis paroicirctre devant mecircs yeux une

nation toute diffeacuterent de celle que je croyois connoicirctrerdquo 744 Ibidem p 125 ldquoQui ne sait pas que les lois les moeurs et les coutumes des peuples nrsquoont rien de

stablerdquo 745 MABLY Doutes proposeacutes op cit p 7-8 746 Idem p 5 ldquoJe me trompe peut-ecirctre mais il me semble que des choses qursquoon ne peut seacuteparer sans

causer leur destruction doivent toujours avoir eacuteteacute unies parce qursquoelles le sont essentiellement et par

leur naturerdquo

237

traria o justo absoluto ndash natildeo fosse imutaacutevel com o criador747 O abade certamente natildeo

aceitava que as instituiccedilotildees sociais resultavam de uma necessidade fiacutesica pelo

contraacuterio chocava seus interlocutores ao demonstrar simpatias pelas formas

comunitaacuterias de propriedade Os fisiocratas como se devia esperar tinham boas

respostas ao autor das Duacutevidas Hurotildees Iroqueses e Taacutertaros natildeo eram mais do que

povos selvagens presos agrave ordem primitiva e desprovidos de senso de comunidade

Comparar os ldquoiacutendios que vivem no Paraguai com nossos trabalhadores manuaisrdquo por

outro lado lhes parecia ldquopouco justordquo uma vez que os indiacutegenas desprovidos da

liberdade fiacutesica ldquonatildeo gozavam de sua propriedade pessoalrdquo748

No mesmo ano de 1767 a defesa do ldquodespotismo legalrdquo aparecia em

Despotisme de la Chine assinada por Franccedilois Quesnay nas Efemeacuterides do Cidadatildeo

entre os meses de marccedilo e junho evento que antecipa para o primeiro semestre os

determinismos da Ordem da Natureza de Le Mercier publicada no meio daquele ano

Em sua polecircmica contra os fisiocratas Mably guardaria palavras pouco carinhosas

para Quesnay ldquoVemos que nossos filoacutesofosrdquo escreveu o abade ldquopossuem uma

espeacutecie de desprezo contra os povos aos quais estamos acostumados a respeitarrdquo Ora

por que outro motivo senatildeo a de uma vontade poliacutetica teriam eles falado em

despotismo legal reivindicando o governo da China ldquoNatildeo sabemos como conciliarrdquo

tal admiraccedilatildeo ldquocom os princiacutepios de uma boa filosofiardquo mas acrescentaria M

Bonnot ldquotemendo blasfemar contra verdades desconhecidas esperamos em silecircncio o

oraacuteculo falar com menos misteacuteriordquo749 Natildeo era preciso citar Quesnay diretamente a

imagem de Eudoxo ndash ldquoda boa doutrinardquo que levou o ano solar do Egito agrave Greacutecia ndash

dava conta de transmitir a mensagem de ironia750

Jaacute a partir das ediccedilotildees de 1769 Du Pont mais tarde chamado de Nemours

assume a direccedilatildeo das Efemeacuterides que passa a ter peridocidade semanal modificando

o subtiacutetulo para bibliothegraveque raisonneacutee des sciences morales et politiques Entre

correspondentes e colaboradores aparecem com regularidade os nomes de Mirabeau

Turgot Roubaud e Vauvilliers751 Incitado pelo controlador geral Maynon dInvaut

Du Pont coordena uma ruidosa campanha contra o monopoacutelio da Companhia das 747 MD Les doutes eacuteclaircis ou reacuteponse a m lrsquoabbeacute de Mably In Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou

Chronique de lrsquoesprit national 1768 Tome Troisieme Seconde Partie Critiques Raisonneacutees p 195

Sobre o justo e o injusto absolutos no pensamento fisiocraacutetico ver LE MERCIER 1767 cap 2 748 Idem p 206-208 749 MABLY Doutes proposeacutes op cit p 3 750 Idem ibidem 751 Sigo tambeacutem em minha leitura da revista as informaccedilotildees apresentadas no claacutessico de SCHELLE

Gustav Du Pont de Nemours et lrsquoEcole physiocratique Paris Guillaumin 1888 principalmente 124

238

Iacutendias e pela liberdade do comeacutercio colonial A imagem liberal do grupo fisiocrata

como recentemente lembrou Florence Gauthier natildeo era entretanto compartilhada por

seus contemporacircneos No seacuteculo XVIII Galiani se referia agraves teorias do grupo como

eacutecomystification Linguet falava em eacuteconomisme enquanto que Adam Smith preferia

descrevecirc-los como um ldquosectordquo de linhagem francesa752

Na deacutecada de 70 do seacuteculo das luzes os fisiocratas com sua ldquoboa doutrinardquo

orbitando a esfera do despotismo legal aproximariam-se efetivamente da corte solar

A atuaccedilatildeo do ministeacuterio Turgot ligado a Du Pont e colaborador da revista ao lado de

suas tentativas de reforma fiscal e liberaccedilatildeo da exportaccedilatildeo de gratildeos ndash assuntos

tambeacutem muito debatidos nas paacuteginas das Efemeacuterides ndash estatildeo bem documentadas

desde o trabalho pioneiro de Georges Weulersse753 Mas isso natildeo significa que os

editores natildeo tivessem alguns anos antes rendido suas criacuteticas agrave memoacuteria dos

Bourbon

ldquoHoje estaacute na moda degradar os grandes homensrdquo escreveu um indignado

Voltaire no que ele completaria algumas paacuteginas depois protestando contra diversas

ldquohistoacuterias modernasrdquo que foram ldquocompiladas sob esses jornais preenchidos de novas

impertinecircncias parecidas com essas mentiras impressas das quais eu falordquo754

Mentiras em jornais impertinentes No final de 1769 as Efemeacuterides do Cidadatildeo

haviam publicado o esboccedilo de uma histoacuteria da Companhia das Iacutendias A parte

dedicada agrave apreciaccedilatildeo do reinado de Luiacutes XIV era lotada de pesadas criacuteticas Quanto agrave

ldquogloacuteria desse grande seacuteculordquo dizia o texto ela teria passado ldquocomo as estopas que

752 Ver GAUTHIER Florence Agrave lrsquoorigine de la theacuteorie physiocrate du capitalisme la plantation

esclavagiste lrsquoexpeacuterience de Le Mercier de La Riviegravere Intendant de la Martinique Presses

Universitaires de France Actuel Marx 20022 ndash no 32 p 51-52 Para quem ldquoLa physiocratie fut ainsi

interpreacuteteacutee successivement au XXe siegravecle comme appartenant aux courants libeacuteraux puis marxistes

enfin totalitaires La confusion est donc agrave son comble Notons que les reacutefeacuterents interpreacutetatifs se

rattachent aux trois couleurs politiques qui dominegraverent ce siegraveclerdquo Sobre a leitura ldquomarxistardquo dos

fisiocratas em seu apego ldquomaterialistardquo ver QUESNAY Physiocratie Introduction et textes choisis

par J Cartelier Garnier-Flammarion 1991 apud GAUTHIER op cit para a leitura de uma ldquodoutrina

totalitaacuteriardquo entre os fisiocratas ver tambeacutem REVIGLIO Madame Marie-Claire Laval In Revue

franccedilaise de science politique 37e anneacutee ndeg2 1987 pp 181-213 753 WEULERSSE Georges La Physiocratie sous les ministeres de Turgot et de Necker (I774-I781)

Paris Presses Universitaires de France I950 [Tese defendida em 1910] 754 VOLTAIRE Deacutefense de Louis XIV [13 de outubro de 1769] In Ouvres Complegravetes de Voltaire T

287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes biographiques

Garnier Fregraveres Paris 1877-1885 ldquoCrsquoest la mode aujourdrsquohui de deacutegrader les grands hommesrdquo p 334

ldquoPlus de cent histoires modernes ont eacuteteacute compileacutees sur des journaux remplis de nouvelles

impertinences semblables agrave ces mensonges imprimeacutes dont je parle Peut-ecirctre um jour ces histoires

passeront pour authentiques Celui qui consacrerait son travail son travail agrave preacutevenir le public contre

cette foule drsquoimpostures eacutelegraveverait um monument utilerdquo p 339

239

queimamos em frente ao papa durante sua entronizaccedilatildeordquo755 O autor do Seacuteculo de Luiacutes

XIV como parece lia nas palavras empregadas nas Efemeacuterides uma criacutetica indireta a

seu trabalho Contra a visatildeo negativa que sublinhava no periacuteodo do rei sol o pior mais

regulamentado avesso agrave natureza metoacutedico e imperioso dos regimes fiscais com

resultados funestos ao espiacuterito dos homens Voltaire reeditava os argumentos de sua

obra ldquoSim eu me veria como um baacuterbaro como um espiacuterito falso e baixo sem

cultura sem gostordquo caso pudesse esquecer de Corneille Racine La Fontaine

Quinault Moliegravere ainda Bossuet e mesmo Descartes malgreacute les chimegraveres absurdes

de sua fiacutesica as quais inspiraram o gecircnio preceptor da natureza fisiocrata o maldito

Malebranche756 A Defesa de Luiacutes XIV sugeria que apenas seguindo o Tratado dos

erros dos sentidos e da imaginaccedilatildeo esse ldquoexcelente comeccedilo de um sistema que

termina tatildeo malrdquo conceberia-se dar de ombros a seguinte questatildeo

Como foi ele [o seacuteculo de Luiacutes XIV] capaz de poder

fazer tantos homens superiores em tantos gecircneros

diferentes florescerem todos juntos em uma mesma era

Esse prodiacutegio aconteceu trecircs vezes na histoacuteria do

mundo e talvez natildeo reapareccedila mais757

Eacute em uma polecircmica um pouco posterior que o problema dos trecircs grandes

homens aflora novamente Jaacute natildeo eram as Efemeacuterides do Cidadatildeo mas as Novas

Efemeacuterides perioacutedico que sucedeu o folheto original o qual naufragou em 1772 A

publicaccedilatildeo foi retomada a partir de 1774 durando um biecircnio e apoacutes novo hiato

ressurge durante dois outros anos no final da deacutecada seguinte (1787 e 1788) Em

agosto de 1775 aperece no Mercure de France um texto escrito em 20 de maio no

calor da ldquoguerra da farinhardquo758 Era o auge do ministeacuterio Turgot e o eacutedito de 13 de

755 ldquoLa gloire de ce grand siegravecle si cher agrave nos beaux esprits eacutetait passeacutee comme les eacutetoupes qursquoon brucircle

devant le pape agrave son exaltationrdquo Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen De La Compagnie des Indes Capiacutetulo II Ce

que devint la Compagnie des Indes depuis la mort de Louis XIV jusqursquoem 1725 p 236 756 VOLTAIRE Deacutefense de Louis XIV p 328-329 757 ldquoComment srsquoest-il pu faire que tant drsquohommes supeacuterieurs dans tant de genres diffeacuterents aient fleuri

tous ensemble dans le mecircme acircge Ce prodige eacutetait arriveacute trois fois dans lrsquohistoire du monde et peut-

ecirctre ne reparaicirctra plusrdquo Idem p 330 758 Sobre a ldquoguerra da farinhardquo caberia lembrar a ceacutelebre passagem ldquoVers lrsquona 1750 la nation

rassasieacutee de vers de trageacutedies de comeacutedies drsquoopeacuteras de romans drsquohistoires romanesques de

reacuteflexions morales plus romanesques encore et disputes theacuteologiques sur la gracircce et sur les

convulsions se mit enfim agrave raisonner sur les bleacutesrdquo VOLTAIRE Bleacute ou bled In In Ouvres

Complegravetes T 18 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes

biographiques Garnier Fregraveres Paris 1877-1885 p 41

240

setembro que revogava o droit de hallage e instituia o livre comeacutercio de gratildeos

sofreria oposiccedilatildeo tanto nas ruas quanto no alto conselho real

ldquoUma pequena sociedade de cultivadores nas profundezas de uma proviacutencia

ignorada lecirc assiduamente vossas efemeacuterides e tenta tirar proveito delasrdquo O desprezo

tanto esnobe de Voltaire pelo perioacutedico visto algo como um libello de economistas

aparece desde as primeiras linhas de sua Diatribe ao autor das Efemeacuterides Ora seu

editor natildeo era digno de ser retratado como um homme du monde embora lhe coubesse

bem a pecha de ldquocidadatildeo do universordquo universo que nos Diaacutelogos de Evemeacuterio

aparecera como sinocircnimo de natureza759 O philosophe inicia concordando com a

premissa fundamental da revista pois de fato ldquoa agricultura eacute a base de tudordquo

embora inclua igualmente em sua conta os fundamentos das primeiras festas

religiosas Ora os ritos e faacutebulas da antiguidade base do que viria a se chamar

paganismo eram sumariamente ligados agrave fertilidade e agrave colheita agrave ldquocelebraccedilatildeo dos

trabalhos campestresrdquo e agrave ldquoproteccedilatildeo de um Deus supremordquo760

Para um grupo de adoradores da evidecircncia a sutileza da ironia de Voltaire

logo deveria se fazer visiacutevel Do campo o paganismo ensinou ldquoa venerar Deus nos

astros cujo curso restitui as estaccedilotildeesrdquo marcando-as com festivais que ofereciam ao

ldquogrande demiurgo () os frutos cuja providecircncia havia enriquecido a terrardquo761

Outrossim a classe sacerdotal jamais poderia ser vista como uma amiga dos

agricultores Na Babilocircnia e em Mecircnfis dacircndis de saltos vermelhos (petits-maicirctres agrave

talons rouges) tratavam de abocanhar toda produccedilatildeo dos camponeses julgando que

com isso lhes fazia uma grande honra Na idade meacutedia os trabalhadores rurais da

Europa teriam suas terras pilhadas por monges e falsaacuterios Na Franccedila de 1775 o eacutedito

759 ldquoUne petite socieacuteteacute de cultivateurs dans le fond drsquoune province ignoreacutee lit assidument vos

eacutepheacutemeacuterides amp tacircche drsquoem profiter () Mais vous nous paroissez par vos eacutecrits le citoyen de

lrsquouniversrdquo VOLTAIRE Diatribe a lrsquoauteur des Eacutepheacutemeacuterides BNF Tolbiac - Rez-de-jardin ndash

magasin Cote RZ- 3182 p 3 Sobre os diaacutelogos acompanho PUJOL Steacutephane O jogo do erro e da

verdade nos diaacutelogos filosoacuteficos de Voltaire In Doispontos Curitiba-Satildeo Carlos Vol 9 n3 dezembro

de 2012 p 183 ldquoA palavra natureza eacute uma palavra usada para dizer universo uma palavra de acordo

com a foacutermula de Evheacutemegravere para significar ldquoa universalidade das coisasrdquo 760 ldquoLa religion mecircme nrsquoeacutetoit fondeacutee que sur lrsquoagriculture Tout eles fecirctes tous les rites nrsquoeacutetoient que

des emblemes de cet art le premier des arts qui rassemble les hommes qui pourvoit agrave leur nourriture

agrave leur logements agrave leurs vecirctements les trois seules choses qui sufissesent agrave la nature humaine () Les

premiers mysteres inventeacutes dans la plus haute antiquiteacute eacutetoient la ceacuteleacutebration des travaux champecirctres

sous la protection drsquoum Dieu suprecircmerdquo As faacutebulas natildeo deixavam de ser vistas para algueacutem que seguia

de perto os escritos de Evemeacuterio como ridiacuteculas ldquoCe nrsquoest point sur les fables ridicules amp amusantes

recueillies par Ovide que la religion nommeacutee depuis paganisme fut originairement eacutetablierdquo

VOLTAIRE Diatribe p 4 761 ldquoOn enseignoit agrave reacuteveacuterer Dieu dans les astres dont le cours ramene les saisons amp on offroit le au

grand Demiurgos sous le nom de Ceacuteregraves amp de Bacchus les fruits dont as providence avoit enrichi la

terrerdquo Ibidem p 5

241

do controlador geral ndash homem que ldquoconhece as leis divinas e as leis humanasrdquo ndash

obrigava em nome da ordem natural a que todos os suacuteditos comprassem patildeo a vinte

leacuteguas bem longe da sombra de suas figueiras afastando-os para o bem da alta dos

preccedilos do fruto proibido do monopoacutelio 762

Voltaire insinuava que os fisiocratas eram um secto religioso como o foram

antes deles outros grupos de padres adoradores da natureza Filosofavam com voz

oracular enquanto solapavam a economia domeacutestica levando fome ao campo e agrave

cidade Franccedilois-Marie chegou a publicar ndash aventurando-se em perigoso decorum ndash

um discurso imaginaacuterio de Luiacutes XVI no qual o rei condenava Turgot O objetivo da

Diatribe era questionar as soluccedilotildees agrave crise orgamentaacuteria do reino propostas e

defendidas com paixatildeo nas Efemeacuterides contenccedilatildeo de gastos e cortes nos impostos

como forma de arrecadar mais contribuiccedilotildees ao lado eacute claro do polecircmico problema

da farinha763 Mas natildeo seriam os argumentos de filosofia econocircmica que serviriam de

justificativa legal agrave condenaccedilatildeo de sua pequena diatribe

O texto publicado no Mercure perioacutedico de fama semi-oficial durante o

Antigo Regime natildeo trazia a assinatura do Priacutencipe dos Filoacutesofos764 A Diatribe teria

sido escrita por um celta de alma pagatilde pretensotildees pequenas e famiacutelia grande algo em

torno de vinte e quatro bocas a alimentar O simploacuterio cidadatildeo acreditava no entanto

que existiram trecircs grandes homens na histoacuteria de seu paiacutes O uacuteltimo tinha sido Luiacutes

XIV que ndash reinando sozinho com o auxiacutelio de outro grande homem Corbin ndash havia

assistido a Franccedila nascer765 O segundo fora ldquonosso grande Henrique IVrdquo morto por

um fanaacutetico catoacutelico O primeiro seria ningueacutem menos do que ldquoJuliano o filoacutesofo

que hospedou-se na Cruz-de-ferro na rua de la Harperdquo governando os gauleses com

equidade e clemecircncia diminuindo impostos e vingando a pilhagem dos

germacircnicos766

762 Ibidem ldquoAllez-vous-em plaindre au controcircleur-geacuteneacuteral crsquoest um homme drsquoeacuteglife amp um

jurisconsulte il connoicirct les loix divines amp les loix humaines vous aurez double satisfactionrdquo p 19 ()

ldquo() que la loi naturelle ordonne agrave tous les hommes drsquoaller acheter leur pain agrave vingt lieuesrdquo p 21 763 Como ele mesmo explica em nota Voltaire refere-se aos texto publicados no tomo IV das

Efemeacuterides de 1775 764 Sobre as relaccedilotildees entre a editoria do Mercure e os privileacutegios reais ver DARNTON Robert

Boemia Literaacuteria e Revoluccedilatildeo O submundo das letras no Antigo regime Satildeo Paulo Companhia das

Letras 1987 principalmente p 22 765 VOLTAIRE Diatribe p 12 ldquoEnfin Louis XIV reacutegna par lui-mecircme amp la France naquitrdquo 766 ldquoLa nation fut cruellement eacutecraseacutee depuis Jules-Ceacutesar jusqursquoau grand Julien le philosophe qui

logeoit agrave la Croix-de-fer dans la rue de la Harperdquo ibidem p 6 Voltaire chegara a publicar discursos

suplementos comentaacuterios e perfis literaacuterios de Juliano o apoacutestata figura que parece ter lhe fascinado

em sua fase mais pagatilde Ver VOLTAIRE Discours de lrsquoEmpereur Julian contre les Chretiens In

242

Com a controladoria geral em matildeos fisiocratas as cortes natildeo conseguiriam rir

dos gracejos publicados em um dos jornais que patrocinava Sem um nome para

cravar acabaram julgando Jean-Franccedilois de la Harpe redator do Mercure e notoacuterio

protegido de Voltaire culpado pela divulgaccedilatildeo das nouveauteacutes Talvez pela menccedilatildeo

supracitada como nome de rua talvez porque ele tenha mesmo diretamente ldquotomado a

precauccedilatildeo de anunciar que o artigo era obra suardquo de la Harpe ganhou a desonra de

tornar-se autor de uma ldquosaacutetira tatildeo despreziacutevel quanto fanaacuteticardquo767 O parlamento

preocupava-se com essa nova safra de escritores que insatisfeitos em poetar ou

filosofar dirigiam ldquoa opiniatildeo puacuteblica a respeito de mateacuterias importantesrdquo

Quais satildeo entretanto os pontos sobre os quais desejamos

dirigir a opiniatildeo geral Eacute a ldquomiseacuteria na qual a Naccedilatildeo

estava oprimida depois de Juacutelio Ceacutesar ateacute o grande

Juliano o filoacutesofordquo Priacutencipe que de iniacutecio cristatildeo

depois apoacutestata ldquotratou-nos com clemecircnciardquo ele fez

tudo o que quizera fazer depois nosso grande Henrique

IV amp logo em uma comparaccedilatildeo odiosa de um rei que

estaraacute sempre entre as deliacutecias da Franccedila fingindo

esquecer que Henrique () elevado na religiatildeo

pretensamente reformada abjurou os erros para adentrar

o seio da religiatildeo catoacutelica o autor procura esboccedilar o

mais impressionante contraste oponto Juliano apoacutes sua

apostasia a Henrique antes de sua conversatildeo e escreve

que ldquoeacute a um pagatildeo e a um huguenote que devemos os

mais belos dias que jamais teriacuteamos ateacute o seacuteculo de Luiacutes

XIVrdquo768

Nessa significativa passagem a memoacuteria jaacute natildeo aparece como vontade

poliacutetica ordenando pelo peso da lei o que natildeo se pode esquecer e como se deve

Ouvres Complegravetes T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres

eacutetudes biographiques Garnier Fregraveres Paris 1877-1885 pp 1-64 767 ldquoLrsquoauteur de cet article le sieur de la Harpe (car il a pris la preacutecaution drsquoannoncer que cet article

est son ouvrage) ()rdquo PARLEMENT DE PARIS Arrecirct du parlement (qui enjoit agrave de La Harpe

auteur de lrsquoarticle intitule Diatribe agrave lrsquoauteur des eacutepheacutemeacuterides paru dans le Mercure de France du

moins drsquoaoucirct 1775 agrave Louvel censeur et agrave La Combe imprimeur drsquoecirctre plus circonspects agrave lrsquoavenir

Paris Imprimeur du Parlement 1775 p 1 768 Ibidem p 2 Grifos meus ldquoQuels sont cependant les points sur lesquels on veut diriger lrsquoopinion

geacuteneacuterale Crsquoest la misere dont la Nation a eacuteteacute accableacutee depuis Jules Cesar jusqursquoau grand Julien le

Philosophe Ce Prince drsquoabord Chreacutetien ensuite Apostat nous traita avec cleacutemence il fit tout ce qursquoa

voulu faire depuis notre grand Henri IV amp bientocirct dans une comparaison odieuse pour un Roi quis

era toujours les deacutelices de la France seignant drsquooublier que Henri le grand eacuteleveacute dans la Religion

preacutetendue reacuteformeacutee en avoit abjureacute les erreurs pour rentrer dans le sein de la Religion catholique

lrsquoAuteur cherche agrave rendre le constraste plus frappant em opposant Julien apregraves son apostasie agrave Henri

avant as conversion amp srsquoeacutecrie crsquoest agrave um Payen amp agrave um Huguenot que nous devons les seuls beaux

jours dont nous ayons jamais joui jusqursquoau siecle de Louis XIVrdquo Grifos originais

243

lembrar Caso respondamos positivamente deveriacuteamos reconhecer que no momento

em que a ldquoidentidaderdquo parecia correr o risco de ser desnaturalizada pelas luzes do

seacuteculo XVIII a memoacuteria veio cumprir-lhe um papel reificador Eacute claro que os

advogados do rei sabiam reconhecer um texto de Voltaire quando o liam769 De la

Harpe no entanto mais ligado aos cafeacutes do que aos salotildees vivendo com cerca de 600

livres do Mercure protegia seu protetor servindo de escudo moral ao patrono770

Aliaacutes a moral catoacutelica compartilhava com a poliacutetica o papel de maicirctre na escola que

os historiographes de lrsquoOrdre julgavam ensinar ldquoA religiatildeordquo escreveram os

censores ldquoeacute um dos principais lugares da sociedade natildeo podemos aviltar-la sem

alterar o motivo primordial da obediecircncia dos povosrdquo771 E se era preciso atentar aos

ldquoOraacuteculos da Justiccedilardquo como se fossem ldquouma porccedilatildeo da justiccedila divinardquo essa ldquomultidatildeo

de escritos imoderados de brochuras escandalosas de libellos iacutempiosrdquo ndash os quais

atacavam a ldquoMajestade divinardquo e a ldquoMajestade realrdquo ndash apenas conspiravam contra a

harmonia entre o ceacuteu e a terra base da cosmologia do absoluto solar

Voltaire jaacute entendia que a histoacuteria natildeo deveria ser ldquonem um panegiacuterico nem

uma saacutetira nem uma obra de partido nem um sermatildeo ou um romancerdquo Alegava ter

percebido essa regra quando lanccedilou seu olhar sinoacuteptico ndash que um dia existiu na

geraccedilatildeo de Poliacutebio ndash por toda a terra Outrossim natildeo deixaria de quebrar esse estatuto

proacuteprio Ao cair de seus sessenta anos de combate por ldquojusticcedila aos grandes homensrdquo

o philosophe talvez em nada acreditasse em supersticcedilotildees pagatildes como a metempsicose

Mas ao saudar essa crendice entre os bracircmanes ele igualmente esboccedilava uma crenccedila

primeiro na sua Igreja a Repuacuteblica das Letras depois na histoacuteria natildeo que ela fosse

sempre verdadeira mas ainda assim existente e capaz de produzir verdades ao fazer

justiccedila aos tempos e aos grandes homens que foram em suas paacuteginas eleitos a

representaacute-los Como escreveu durante a Defesa do rei sol ldquovejo ainda o seacuteculo de

Luiacutes XIV como aquele do gecircnio e o seacuteculo presente como aquele que racionaliza

sobre o gecircniordquo772 O seacuteculo da razatildeo eacute tambeacutem lembrado como o seacuteculo da aceleraccedilatildeo

769 ldquoNous ne revelons ici cette citation que pour vous faire mieux sentir amp la mauvaise foi de lrsquohomme

ceacuteleacutebre agrave qui ont attribue cette Diatribe amp la partialiteacute de lrsquoEacutediteur qui en a rendu compte dans le

Mercurerdquo Idem Ibidem 770 Sobre o salaacuterio de La Harpe ver DARNTON 1987 p 19 771 ldquoLa Religion est un des principaux liens de la socieacuteteacute on ne peut lrsquoavilir sans alteacuterer le premier

motif de lrsquoobeacuteissance des Peuplesrdquo PARLEMENT DE PARIS 1775 p 3 772 ldquoOn sait assez que lrsquohistoire ne doit ecirctre ni un paneacutegyrique ni une satire ni un ouvrage de parti ni

um sermon ni un roman Jrsquoai eu cette regravegle devant les yeux quan jrsquoai oseacute jeter um oeil philosophique

sur la terre entiegravere Jrsquoenvisage encore le siegravecle de Louis XIV comme celui du geacutenie et le siegravecle preacutesent

comme celui qui raisonne sur le geacutenie Jrsquoai travailleacute soixante ans agrave rendre exactement justice aux

grands hommes de ma patrierdquo VOLTAIRE Deacutefense p 388

244

do tempo de sua desordem da falecircncia dos sistemas antigos e da Grande Revoluccedilatildeo

Nisso as Efemeacuterides desempenharam o papel de uma ldquoobra digna de seu nomerdquo

contando mesmo a revelia das vozes que ecoam em suas paacuteginas um dos capiacutetulos

da mudanccedila773 O parlamento declarava a improbidade dos excertos que atacavam a

ldquoReligiatildeo o Governo amp a memoacuteria de nossos Reisrdquo774 La Harpe escudeiro de um

enfant terrible eacute quem receberia uma repreensatildeo junto a promessa de que seria mais

cuidadoso no futuro A Voltaire mesmo que na seguranccedila dos piacutencaros do le monde

sobrava continuar a tarefa de senatildeo demolir o tempo cristatildeo ao menos desorientar

suas bases providenciais ao projetar um futuro no qual os homens seriam senhores de

seus proacuteprios destinos E para dialogar com as almas e esferas puacuteblicas como em

outro contexto alegava o editorial de abertura das Efemeacuterides do Cidadatildeo precisaria-

se ldquodas Brochuras amp dos folhetosrdquo775

43 As efemeacuterides na escola de moral e de poliacutetica

Apoacutes a leitura da Chronoligia de Abraham Bucholzer publicada no final do

seacuteculo XVI Joseph Scaliger pegou-se refletindo sobre uma velha questatildeo O texto

seguia Euseacutebio de Cesareacuteia ao pontuar a histoacuteria por jubileus de 50 anos alegando

reconhecer ali uma ldquoanalogia secretardquo Em seu De emendatione o cronologista

huguenote jaacute havia explicado esse ordenamento tatildeo singular o qual atribuia agrave grande

semana judaica ndash uma periodizaccedilatildeo que contava sete anos para guardar o uacuteltimo como

sabaacute ldquoNo ano sabaacutetico caso dividirmosrdquo o nuacutemero de ldquoanos do mundo por 7 o

restanterdquo eacute a posiccedilatildeo do ldquoano na atual semanardquo escreveu Scaliger 776 O que o

intrigava no trabalho de Bucholzer era o fato de que ele teria cometido

() um bom nuacutemero de erros no momento em que fez o

Jubileu consistir em 50 anos completos algo que

contradiz tanto a autoridade da escritura quanto a razatildeo

De que modo 50 pode ser dividido por 7 Natildeo se

poderia levar a seacuterio algueacutem simplesmente por acreditar

nisso pois os gregos tambeacutem tinham essa opiniatildeo ndash pelo

menos lembro de ter encontrado essa fantasia em um 773 ldquoJrsquoai lu les Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ouvrage digne de son titrerdquo Idem p 327 774 PARLEMENT DE PARIS 1775 p 4 775 ldquoLe mal a gagneacute les hommes amp fait de grands progregraves ce nrsquoest pas la seule deacutelicatesse de ce genre

qui se soit comunique drsquoun fexe agrave lrsquoautre il faut donc des Brochures amp des Feuilles agrave notre Sieclerdquo

BAUDEAU Nicolas Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen op cit novembro de 1765 p 16 776 SCALIGER De emendatione 429 apud GRAFTON Defenders of the Text op cit 1991 p 142

245

dos antigos escritores eclesiaacutesticos gregos Isso seria

toleraacutevel se ao menos ele natildeo tivesse baseado alegorias

dignas de um Oriacutegenes nesses Jubileus de 50 anos777

Bem pouca astrologia e numerologia como comenta Grafton pode ser

encontrada nas obras de Scaliger Mas ao criticar o jogo dos nuacutemero por Bucholzer

homem que parecia julgar ter encontrado ali o ldquoplano secreto de Deusrdquo o autor do De

emendatione ldquorevelava a verdadeira novidade de sua atituderdquo no que ldquoas datas que

ele estabelecia eram datas natildeo liccedilotildeesrdquo Algo pouco usual para a eacutepoca segundo o

historiador americano ao menos para um leitor acostumado agraves cronologias

tradicionais778

Seria tambeacutem pouco comum para um leitor familiarizado com as efemeacuterides

histoacutericas Na Franccedila tabelas de fatos de diversos periacuteodos precisando suas datas em

um calendaacuterio anual comeccedilam a aparecer desde o ano 10 da Revoluccedilatildeo Em 1796

surgem as Efemeacuterides de Noeumll obra que alegava preencher um lacuna que ldquofaltava agrave

literatura francesa e estrangeirardquo Ningueacutem havia antes elaborado ldquouma tabela de

eventos notaacuteveis datados de um mesmo dia ao longo da sequecircncia dos seacuteculosrdquo

Considerar a histoacuteria dessa maneira dizia Noumlel seria uma forma tatildeo ldquocuriosa quanto

instrutivardquo fazendo desfilar aos olhos do leitor ldquorevoluccedilotildees conspiraccedilotildees batalhas

tomada de cidades tratados de paz fenocircmenos fiacutesicos nascimento e morte de homens

celebres de todos os gecircnerosrdquo e mesmo a estreacuteia de peccedilas de teatro e cerimocircnias

religiosas Nessas Efemeacuterides publicadas no periacuteodo revolucionaacuterio ldquoa histoacuteria de

todos os seacuteculos e de todos os paiacuteses encontra-se dessa forma fechada no ciclo de um

uacutenico ano ao mesmo tempo em que ela eacute reduzida aos fatos singularesrdquo que

importariam lembrar referenciados a partir dos ldquomais fieacuteis historiadoresrdquo779

777 SCALIGER para BEZA 7 de dezembro de 1584 (calendaacuterio Juliano) Leiden University Library

MS Perizonianus Q 5 fols II recto ndash 14 apud GRAFTON ibidem p 143 Na traduccedilatildeo de Grafton ldquoHe

has made a good many mistakes as when he makes the Jubilee consist of 50 complete years a thing

which constradicts both the authority of Scripture and reason For how can 50 be divisible by 7 It

would not be a serious matter simply to have believed this for the old Greeks also held this view ndash at

least I remember coming across this fantasy in one of the old Greek ecclesiastical writers That would

be tolerable if only he did not base allegories worthy of Origen on these 50-year Jubileesrdquo Cf

Leviacutetico 258-10 ldquoContaraacutes sete anos sabaacuteticos sete vezes sete anos dos quais a duraccedilatildeo faraacute um

periacuteodo de quarenta e nove anos Faraacutes entatildeo soar a trombeta no deacutecimo dia do seacutetimo mecircs ()

Santificareis o quinquageacutesimo ano e publicareis a liberdade na terra para todos os habitantes Seraacute o

vosso jubileurdquo 778 GRAFTON Idem Ibidem 779 NOEumlL Franccedilois-Joseph-Michel Eacutepheacutemeacuterides politiques litteraires et religieuses preacutesentant pou

chacun des jours de lrsquoanneacutee un tableau des eacuteveacutenements remarquables qui datent de ce mecircme jour dans

lrsquohistoire de tous les siegravecles et de tous les pays et commencant au I septembre 1796 pour finir au I

septembre 1797 Paris 1796 De limprimerie de Le Normant 1796 p III Dada a autodeclarada

246

Eacute no periacuteodo da restauraccedilatildeo no entanto que aparece uma Efemeacuteride

proclamadamente dada a oferecer liccedilotildees Jaacute em 1825 Cyprien Desmarais um

publicista habituado a ldquoestudar a poliacutetica atraveacutes dos jornaisrdquo escreve suas

Efemeacuterides do reino de Luiacutes XVIII780 No Prospectus pequeno sumaacuterio das propostas

do projeto os editores adiantavam que o livro seria seguido por novos volumes

publicados ano a ano contendo as ldquoEfemeacuterides histoacutericas poliacuteticas e universais do

ano precedenterdquo A obra completaria uma tabela cronoloacutegica da histoacuteria universal ldquoe

particularmente da Histoacuteria da Franccedila depois da restauraccedilatildeordquo 781

Os editores natildeo deixariam de tomar o cuidado de elucidar a foacutermula da nova

publicaccedilatildeo Mas ela natildeo seguia a ordem do ldquogrande anordquo de Noeumll ldquoAs Efemeacuteridesrdquo

eram como diziam aos leitores ldquoas tabelas histoacutericas nas quais os fatos e eventos

politicos notaacuteveis satildeo classificados pela ordem da data em que aconteceramrdquo782

Tratava-se de uma sucessatildeo de anos dentro deles meses os uacuteltimos pautados por

dias dias nos quais assinalavam-se eventos politicos e notiacutecias gerais referentes ao

reinado de Luiacutes XVIII Sua utilidade era justificada como uma primeira seleccedilatildeo de

fragmentos que serviriam a uma geraccedilatildeo futura a tarefa de raisonneacuter perscrutar

refletir analisar fontes e compor uma histoacuteria ainda sob um terreno previamente

ordenado pela boa memoacuteria do rei ldquoAs Efemeacuterides de uma eacutepocardquo e assim escreveu

novidade da foacutermula os editores tomaram cuidados didaacuteticos ao explicaacute-la ldquoNous ne parlons pas des

rapprochemens singuliers que le lecteur aura souvent occasion de remarquer en voici un que nous

offre le tableau historique du 14 mai agrave lrsquoarticle France Lrsquoan 1554 le 14 mai le roi Henri II ordonne

drsquoeacutelargir la rue de la Feacuteronnerie (ce qursquoon neacutegligea drsquoexeacutecuter) Lrsquoan 1610 le 14 mai Henri IV est

assassineacute dans la rue de la Feacuteronnerie son carosse ayant eacuteteacute arrecircteacute par un embarras de voitures Lrsquoan

1643 le 14 mai mort du fils drsquoHenri IV (Louis XIII) Lrsquoan 1771 le 14 mai Monsieur fregravere de Louis

XVI srsquoeacutetant marieacute avec la fille aicircneacutee du roi de Sardaigne les faiseurs drsquohoroscopes auguregraverent mal de

ce mariage ceacuteleacutebre dans un pareil jour (hellip) Lrsquoexposeacute de chaque fait est suivi drsquoun deacuteveloppement tireacute

des historiens les plus fidegraveles eu auquel on donne plus ou moins drsquoeacutetendue suivant que le fait est plus

ou moins inteacuteressant Nous citons avec soin les sources ougrave nous avons puiseacute dans toutes les choses qui

peuvent sembler extraordinair esau lecteur mais nous omettons les citations qual il srsquoagit

drsquoeacuteveacutenemens trop connus et dont les circonstances sont avoueacutees de tout le monde Enfin nous nrsquoavons

rien neacutegligeacute pour qursquoau meacuterite de lrsquoinvention se joignicirct encore celui de lrsquoexeacutecutionrdquo pp III-IV As

Efemeacuterides de Noumlel conheceriam reimpressotildees NOEumlL Franccedilois-Joseph-Michel Eacutepheacutemeacuterides

politiques litteacuteraires et religieuses preacutesentant pour chacun des jours de lanneacutee un tableau des

eacuteveacutenemens ()Seconde eacutedition revue corrigeacutee et augmenteacutee Paris Le Normant 1803 780 ldquoHabitueacutes depuis quelque temps () agrave eacutetudier la politique dans les journaux ()rdquo DESMARAIS

Cyprien Voyage Pittoresque dans lrsquointeacuterieur de la chambre des deputes suivi Du Temps Present ou

essai sur lrsquohistoire de la civilization au dix-neuviegraveme siegravecle Deuxiegraveme eacutedition Paris Ponthieu

Librarie 1827 p 1 781 DESMARAIS Cyprien Eacutepheacutemeacuterides Historiques et Politiques du Regravegne de Louis XVIII depuis la

restauration FM Maurice Librarie-Eacutediteur 1825 Prospectus sp ldquoCet ouvrage formera um tableu

chronologique et complet de lrsquoHistoire politique de tous les peuples et particuliegraverement de lrsquoHistoire

de France depuis la restauration (1814) Chaque volume qui suivra celui intitule Eacutepheacutemeacuterides du regravegne

de Louis XVIII sera publieacute anneacutee par anneacutee dans le courant du mois de janvier il contiendra les

Eacutepheacutemeacuterides historiques politiques et universelles de lrsquoanneacutee preacuteceacutedenterdquo 782 Idem Ibidem

247

Desmarais ldquosatildeo como o material que o obreiro extrai da pedreira e que transporta ao

local da construccedilatildeo aonde ele deve servir para elevar um edifiacutecio majestosordquo

Continham natildeo apenas os fatos mas a indicaccedilatildeo de suas circunstacircncias783 Imerso na

curta duraccedilatildeo o publicista chegaria alguns anos mais tarde a escrever um conjunto de

ensaios sobre o tempo presente784 Mesmo ele entretanto reconhecia a necessidade

historiograacutefica de ldquofechar os olhosrdquo e algo paciente esperar o teacutermino dos relatoacuterios

de trabalho do arquiteto-tempo785 Esse era um expediente que de todo modo natildeo

deixava de expressar uma tensatildeo

Poderiacutea-se fazer notar que o modelo assumido por Desmarais praticava uma

inversatildeo na ordem das efemeacuterides astronocircmicas as quais publicavam os movimentos

celestes do proacuteximo ano ou das astroloacutegicas que o faziam rendendo prognoacutesticos

que variavam de previsotildees metereoloacutegicas a profecias sobre a morte de reis

Concentrar-se no passado recente no entanto natildeo significava ignorar o futuro e de

certo modo essa mudanccedila de praacutetica ainda guardava as mesmas pretensotildees vaticinais

ainda que submetidas a uma nova experiecircncia do tempo ldquoO reino de Luiacutes XVIII

ainda natildeo tombou ao domiacutenio da Histoacuteriardquo como defendia o escritor ldquomas a era da

revoluccedilatildeo o pertence a posteridade jaacute se levantou por elardquo786 O monarca da

restauraccedilatildeo predizia Desmarais ldquoseraacute nomeado grande pela histoacuteriardquo pois se ele natildeo

pocircde mais convocar a ldquoexperiecircncia do passadordquo foi outrossim saacutebio o suficiente para

dominar o presente antecipando e adivinhando o futuro787 ldquoQualquer que seja o

lugarrdquo que ocuparaacute na ldquoHistoacuteria a revoluccedilatildeo e a usurpaccedilatildeo o retorno a monarquiardquo

completava o prognoacutestico ldquoseraacute o fato dominante nos anais do seacuteculo XIXrdquo788

783 Ibidem p I ldquoLes Epheacutemeacuterides sont de tableaux historiques ougrave les eacuteveacutenement et les fait politiques et

remarquables sont classes dans lrsquoordre de date ougrave ils sont arriveacutes On trouve agrave cocircteacute de chaque fait

lrsquoexplication succinte de as cause et de ses conseacutequences des notes attacheacutes agrave chaque article eacutetablissent

les correacutelations que peuvent avoir entre eux des eacuteveacutenements arriveacutes dans la mecircme anneacutee sous les

mecircmes regravegnes et sous lrsquoinfluence des mecircmes circonstancesrdquo 784 DESMARAIS 1827 op cit 785 ldquoLes Ephemeacuterides drsquoune eacutepoque sont comme ces mateacuterieux que lrsquoouvrier extrait de la carrier et

qursquoil transporte sur le lieu meme ougrave ils doivent server agrave eacutelever un majestueux edifice lrsquoarchitecte qui

doit dresser et executer le plan de ce monument nrsquoa point encore paru cet architecte crsquoest le tempsrdquo

DESMARAIS Eacutephemeacuterides 1825 p I 786 Idem Ibidem ldquoLe regravegne de Louis XVIII nrsquoest pas encore tombeacute dans le domaine de lrsquoHistoire mais

lrsquoegravere de la revolution lui appartient la posteacuteriteacute srsquoest deacutejagrave levee pour ellerdquo 787 Ibidem p XIX ldquoIl sera nommeacute Grand par lrsquohistoire parce qursquoappeleacute agrave regir um ordre de choses

entiegraverement nouveau il nrsquoa eacuteteacute aideacute que par as propre sagesse par la force de son caractegravere et par la

supeacuterioriteacute de ses lumiegraveres ne pouvant invoquer agrave son aide lrsquoexpeacuterience du passeacute qui avoit ignoreacute cette

politique pour ainsi dire impreacutevue il a maicirctriseacute le preacutesent en pressentant et comme en devinant

lrsquoavenirrdquo 788 Idem p XII-XIII ldquoQuelle que soit la place que demandent agrave occuper dans lrsquoHistoire la reacutevolution et

lrsquousurpation le retour de la monarchie sera le fait dominant dans les annales du 19e siegraveclerdquo

248

As Efemeacuterides elogiavam o priacutencipe registravam seus feitos mecircs por mecircs

dia-a-dia como uma vez imaginamos fizera Eumenes de Caacuterdia em relaccedilatildeo a

Alexandre Cyprien Desmarais devemos mencionar fora tambeacutem o curioso autor de

uma Histoacuteria das Histoacuterias da Revoluccedilatildeo Francesa retrato ciacutenico e criacutetico da

primeira geraccedilatildeo liberal de historiadores do movimento de 1789 Poreacutem como os

historiadores liberais que detratava ele natildeo era um ldquoobservador desligado fora do

campo ou da histoacuteria que na proacutepria distacircncia apreende em uma visatildeo sinoacuteptica a

verdade de seu objetordquo789 Publicada em 1834 a Histoire des Histoires acompanhava

um ldquomomento poliacutetico () graverdquo caracterizado segundo um escritor bem mais

ceacutelebre ldquopela repercussatildeo perpeacutetua da tribuna sobre a imprensa e da imprensa sobre a

tribunardquo790 Observador atento ao presente Desmarais eacute engajado escreve para ser

lido por seus contemporacircneos e natildeo se furta a fazer as efemeacuterides transitarem de um

uso do futuro em nome do passado a um uso do passado em nome do futuro Para tal

era preciso refletir sobre a revoluccedilatildeo e mais do que isso julgaacute-la a comeccedilar pelo

escrutiacutenio de seus historiadores liberais ou natildeo como o Thiers da Histoacuteria da

Revoluccedilatildeo o Thierry das Lettres sur lrsquohistoire de France ainda Rabaut do Resumo ou

Bouchez e Roux da Histoacuteria Parlamentar

Tal lembranccedila da revoluccedilatildeo natildeo deixava de dever algo agrave tradiccedilatildeo das

efemeacuterides celestes talvez mesmo a pregadores como Antocircnio Vieira embora as

expectativas centradas na voz de Deus fossem substituiacutedas pelas depositadas nos

feitos dos homens sorvendo da influecircncia celeste senatildeo um conjunto de metaacuteforas

luminosas A imagem dos eventos iniciados em 1789 era a mesma de um ldquometeoro

tenebroso que ilumina o horizonte como um incecircndiordquo para depois ldquose perder e sumir

nos abismos dos ceacuteus sem que os astrocircnomos tivessem sido capazes de prever sua

apariccedilatildeo nem explicar sua trajetoacuteriardquo791 Escutar as vozes dessa estrela cadente

prenuacutencio do assassinato dos reis era natildeo mais a tarefa da filosofia natural mas de

um jornalismo moralista Se ldquoa luta de opiniotildees suspendida durante a passagem da

789 HARTOG 2011 p 145 790 ldquoLe moment politique est grave personne ne le conteste () le retentissement perpeacutetuel de la

tribune sur la presse et de la presse sur la tribunerdquo HUGO Victor Les feuilles drsquoautomne J Hetzel amp

cia Paris 1831 prefaacutecio p 1 791 DESMARAIS Cyprien Histoire des Histoires de la Reacutevolution Franccedilaise Pour servir de

compleacutement agrave tous les eacutecrits sur la mecircme eacutepoque Paris Paul Meacutequignon 1834 pp 3-4 ldquoMeacuteteacuteore

effrayant qui eacuteclaire lhorizon comme un incendie et puis va se perdre et srsquoeacuteteindre dans les abicircmes des

cieux sans que les astronomes aient pu ni deviner son apparition ni expliquer son coursrdquo

249

anarquia e do despotismordquo voltava agora com ldquouma nova energiardquo Desmarais jaacute

havia escolhido o seu lado792

A era da revoluccedilatildeo era vista como um tempo de esquecimento ldquoToda a

Franccedilardquo portava-se como se medo ou receio tivesse de ao olhar para o passado

declinar em direccedilatildeo ldquoao abismordquo do qual havia ldquoacabado de sairrdquo793 Nada muito

distante deveria-se dizer da distinccedilatildeo de Tocqueville entre sociedades aristocraacuteticas

suas casas e costumes resistindo ao tempo pela memoacuteria dos ancestrais e sociedades

democraacuteticas com famiacutelias emergindo enquanto outras envoltas pelas neacutevoas do

esquecimento sumiam sem sequer conhecer seus pais 794 Tampouco das opiniotildees de

Edmond Burke que via na memoacuteria e na tradiccedilatildeo as bases de toda ordem social autor

que mereceu uma longa compilaccedilatildeo de citaccedilotildees que dominam o capiacutetulo XXIV da

Histoacuteria das Histoacuterias795

Interessado em fazer conhecer o ldquoespiacuterito da histoacuteria e dos historiadores da

revoluccedilatildeo francesardquo natildeo era a perspectiva criacutetica de Burke e Tocqueville que

Desmarais encontrava nos escritos de homens como Thiers ou Thierry Ao grande

caos iniciado em 1789 eles em geral eram simpaacuteticos fechando os olhos para

quaisquer abusos e dizendo em alta voz que foram todos inevitaacuteveis e eacute

precisamente ldquoa isso que chamamos de escola histoacuterica fatalistardquo796 Avesso a dita

abordagem seu ldquoestudo comparado dos principais historiadores da revoluccedilatildeordquo foi

levado a cabo preferindo associar-se ao lado oposto ldquoa esse trabalho geral de reaccedilatildeo

contra-revolucionaacuteria que se opera nos espiacuteritosrdquo797

Se Thiers era lembrado como aquele que viu no espiacuterito republicano a

representaccedilatildeo da vontade geral da naccedilatildeo Desmarais pergunta-se como ldquocomo uma

revoluccedilatildeo que no desenrolar de seus fatos foi conduzida pelos homens mais perversos

792 DESMARAIS Fragments In Eacutepheacutemeacuterides Historiques 1825 op cit p XXVI 793 Idem ldquoToute la France agrave cette eacutepoque se portoit en avant et dans lrsquoavenir on nrsquoosoit pas regarder

em arriegravere de peur de reculer dans lrsquoabicircme dont on venoit de sortirrdquo p XVIII-IX 794 TOCQUEVILLE Alexis de De la deacutemocratie en Ameacuterique Les classiques des sciences sociales

version numeacuterique par Jean-Marie Tremblay principalmente parte I capiacutetulos XX-XXI e parte II

capiacutetulo I e II pp 84-101 795 ldquoThe very idea of the fabrication of a new government is enough to fill us with disgust and horror

We wished at the period of the Revolution and do now wish to derive all we possess as an inheritance

from our forefathersrdquo BURKE Edmund Reflection of the Revolution in France London John Sharpe

1820 p 49-50 Desmarais chegou a descrever as reflexotildees de Burke como ldquo() ce qui a eacuteteacute eacutecrit de

ramarquable sur la reacutevolution franccedilaiserdquo DESMARAIS Histoire des Histoires 1834 pp 129-156 796 ldquoEm geacuteneacuteral () les historiens de la reacutevolution sont loin de lui ecirctre hostiles () ce qursquoon appeleacute

lrsquoeacutecole historique fataliste () ils ont vu le crime mais ao lieu de dire il est hideux ils ont dit il eacutetait

ineacutevitablerdquo DESMARAIS Histoire des Histoires 1834 p 7 797 ldquoNous avons preacutefeacutereacute nous associer agrave ce travail geacuteneacuteral de reacuteaction contre-reacutevolutionnaire qui srsquoopegravere

dans les espritsrdquo Idem p 8

250

da sociedade poderia produzir efeitos vantajosos a essa proacutepria sociedaderdquo O

publicista via a usurpaccedilatildeo e a condenaccedilatildeo do rei como um ldquoprinciacutepio anti-socialrdquo o

qual teria sido passado de Mirabeau a ala radical da Assembleia da esquerda aos

girondinos deles agrave montanha os quais por sua vez o abandonaram aos

ldquoterroristasrdquo798 Eacute na transferecircncia desse princiacutepio maligno o qual reside nos coraccedilotildees

dos maus homens que assenta-se a analogia moral preenchida nas paacuteginas da Histoacuteria

das Histoacuterias Desmarais via na revoluccedilatildeo de julho de 1830 ndash na sua nova charte

baseada no princiacutepio da ldquosoberania popularrdquo ndash uma ldquovia difiacutecil e perigosardquo799 Uma

armadilha na qual o girondinos agrave eacutepoca da grande revoluccedilatildeo terminaram por tombar

A historiografia liberal com suas atenccedilotildees voltadas exclusivamente ao futuro seria

incapaz de perceber os sinais da tirania Simpaacuteticos ao espiacuterito da revoluccedilatildeo agraves

sociedades de esquecimento a geraccedilatildeo de Thiers e Thierry terminaria por justificar

seus levantes e usurpaccedilotildees

O sistema da fatalidade (se ele for um sistema) eacute muito

comodo aos historiadores que natildeo querem admitir o

curso loacutegico dos acontecimentos Este sistema natildeo tem

sentido para um seacuteculo que racionaliza e que busca na

histoacuteria liccedilotildees Cordeiros natildeo geram tigres e a

civilizaccedilatildeo uma vez em progresso natildeo deve e natildeo

sabera gerar a barbaacuterie800

Cyprien Desmarais natildeo era exatamente um passadista Mais do que acessar o

topos da histoacuteria mestra da vida ao qual ele natildeo se presta a tecer comentaacuterios

cuidava-se de submetecirc-lo a uma praacutetica historiograacutefica circunscrita ao ldquotempo e a

experiecircncia do tempordquo uacutenicas instacircncias capazes de determinar o ponto de vista

verdadeirordquo801 Isso o permite falar para o presente manter olhos nas liccedilotildees do

passado e as expectativas no futuro Sua escrita reacionaacuteria reconhece a vicissitude

dos costumes a evidecircncia da aceleraccedilatildeo do tempo a falecircncia mesmo que algo

lamentaacutevel dos ldquosistemas antigosrdquo da velha ldquoordem intelectual e moralrdquo como antes

dele reconheceram igualmente os nomes bem menos modestos de Tocqueville e

Chateaubriand

798 Idem pp 39-40 799 Idem p 29 800 ldquoLe systegraveme de la fataliteacute (si crsquoest un systegraveme) est fort commode pour les historiens qui ne veulent

point avouer la marche logique des eacuteveacutenements Ce systegraveme nrsquoest point fait pour un siegravecle qui raisonne

et qui veut chercher des leccedilos dans lrsquohistoire Les agneaux nrsquoengendrent pas les tigres et la civilization

tant qursquoelle est en progregraves ne doit et ne saurait engendrer la barbarierdquo Idem p 49 801 ldquoEm effet crsquoest le temps et lrsquoexperience du temps qui seuls peuvent deacuteterminer la vrai point de

vuerdquo Idem p 5

251

Jaacute nas Efemeacuterides o publicista criticava natildeo o progresso mas a vilania

daqueles que ao longo da revoluccedilatildeo e principalmente do impeacuterio o conduziram em

nome de uma efecircmera gloacuteria militar desprovida de virtude As efemeacuterides histoacutericas

de Desmarais empreendiam um discurso moral o qual seria desenvolvido mais tarde

nas Histoacuteria das Histoacuterias Editando a memoacuteria objetizava naturalizar um tempo

antes desordenado pela revoluccedilatildeo Tempo novo a comeccedilar em 1814 seguindo o

projeto que lhe entregaria novas efemeacuterides em todos os anos subsequentes agrave

restauraccedilatildeo Sua defesa era a defesa do ldquoprinciacutepio eternordquo da monarquia Como

restauraccedilatildeo natildeo apenas da instituiccedilatildeo monaacuterquica mas da proacutepria ordem o espiacuterito de

1814 encontrava pelas matildeos de um grande homem em processo de construccedilatildeo uma

Charte que natildeo era ldquooutra coisa senatildeo a explicaccedilatildeo da sociedade do seacuteculo XIXrdquo

Uma espeacutecie de balanccedilo siacutentese selecionada ou composiccedilatildeo virtuosa das conquistas

que restaram de uma era de sangue e horror802 A referecircncia agrave carta constitucional de

4 de junho de 1814 repete-se nada menos do que 20 vezes ndash associadas portanto a 20

diferentes dias ndash nas Efemeacuterides do reinado de Luiacutes XVIII Jaacute anunciada pela gravura

que abre o livro a densidade memorial impressa sobre a Charte torna-a ldquouma muralha

elevada em frente a legitimidaderdquo o que significa dizer que seu ldquofundadorrdquo

permaneceu ldquoalto e imoacutevel acima dos diversos sistemasrdquo 803 Luiacutes XVIII eacute um

exemplo Exemplo retirado do passado imediato senatildeo mesmo do presente ele

pretende-se um grande homem Como grande homem tornaria-se um modelo capaz

de orientar as accedilotildees futuras oferecendo liccedilotildees Liccedilotildees que natildeo seratildeo escutadas no

entanto pela historiografia liberal E nisso o prognoacutestico reacionaacuterio de Cyprien

Desmarais subscrito ao longo da Histoacuteria das Histoacuterias ia encontrar realizaccedilatildeo no

retorno ao poder apoacutes a Revoluccedilatildeo de 1848 do maior dos inimigos de sua vontade

poliacutetica a tirania usurpadora do partido bonapartista

44 Uma moral e uma cosmologia

Dez anos antes em outubro de 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico

Brasileiro tendo como modelo o Institut Historique de Paris eacute fundado com a tarefa

802 ldquo() la Charte qui nrsquoest autre chose que lrsquoexplication de la socieacuteteacute au 19e siegraveclerdquo DESMARAIS

Eacutepheacutemeacuterides Historiques 1825 op cit p XXI 803 Idem respectivamente p XX ldquoLa Charte est comme um rempart eacuteleveacute em avant de la leacutegimiteacuterdquo P

XIX ldquo() le fondateur de la Charte est resteacute placeacute plus haut et comme immobile au-dessus de ces

divers systegravemes jugeant leurs avantages et leurs inconveacuteniens et arrecirctant leur deacuteveloppement lorsqursquoil

auroit pu devenir funesterdquo

252

de ldquoreunir e organisar os elementos para a historia e geographia do Brazilrdquo804 Coletar

de proviacutencia em proviacutencia as fontes necessaacuterias para a manutenccedilatildeo da memoacuteria das

geraccedilotildees passadas natildeo seria no entanto sua uacutenica atribuiccedilatildeo fundamental Em 1849

o IHGB muda-se para o ldquoPaccedilo da Cidaderdquo local de trabalho do monarca e D Pedro

II aproveita a ocasiatildeo para dirigir-se de modo programaacutetico aos soacutecios O Imperador

natildeo estava satisfeito em ver os historiadores de seu reino debruccedilando-se ldquoquase que

unicamenterdquo sobre os ldquotrabalhos de geraccedilotildees passadasrdquo Era ldquomisterrdquo natildeo apenas ir ao

arquivo escutar a voz da histoacuteria sugeria o soberano mas igualmente tornar sua

proacutepria geraccedilatildeo ldquodigna realmente dos elogios da posteridaderdquo805 O Impeacuterio procurava

seu Tuciacutedides como lembrou Armelle Enders ldquoum historiador agrave antiga que

celebrasse sua gloacuteria e seu seacuteculordquo 806 Mas ele encontraria dificuldades para achar

sequer seu Eumenes de Caacuterdia

Cunha Barbosa fundador do instituto maccedilom e coeditor da gazeta Reveacuterbero

era ldquofigura da linha de frente na luta por um regime constitucionalrdquo partidaacuterio da

submissatildeo dos abusos do poder moderador ao controle da assembleia807 Talvez por

isso natildeo tivesse grandes entraves em abrir os olhos e instigar a reflexatildeo sobre o

presente Problema poliacutetico duacutebio certamente no que a conduccedilatildeo de quaisquer

projetos relativos agrave histoacuteria recente de um jovem Estado assolado por revoltas

provinciais poderia incorrer antecipando a maacutexima de Ernest Renan em lembranccedilas

indesejaacuteveis a um projeto centralizador808 Zona cinzenta da produccedilatildeo historiograacutefica

ela natildeo deixaria de abrir espaccedilo ainda em 1841 a

804 BARBOSA Januaacuterio da Cunha Discurso Revista do IHGB Rio de Janeiro 1 (1) Jan-Mar 1939 p

9 Sobre o modelo das academias francesas ecoando na fundaccedilatildeo do IHGB ver GUIMARAtildeES Manoel

Luis Salgado Historiografia e Naccedilatildeo no Brasil (1838-1857) Rio de Janeiro Eduerj 2011 pp 99-114

para quem o Instituto de Paris representava o ldquoparadigma generalizado do pensamento do seacuteculo XIXrdquo

quer seja aquele que visse a histoacuteria como uma necessidade dos tempos condiccedilatildeo uacuteltima para o

progresso como forma de recolher liccedilotildees para o presente e o futuro 805 Revista do IHGB Discurso de D Pedro II Rio de Janeiro 12 (16) Out-dez 1849 p 551 806 ENDERS 2014 p 216 807 GUIMARAtildeES MLS 2011 p 71 808 As soluccedilotildees apresentadas variavam do engavetamento ou recusa dos projetos ateacute a acomodaccedilatildeo de

fontes em uma ldquoArca do Sigilordquo Sobre o problema do tempo presente no IHGB do seacuteculo XIX ver

CEZAR Temistocles Presentismo memoacuteria e poesia Noccedilotildees da escrita da Histoacuteria no Brasil

oitocentista In Sandra Jatahy Pesavento (Org) Escrita Linguagem objetos Leituras de Histoacuteria

cultural Bauru Edusc 2004 v 1 p 43-80 Para uma perspectiva que trabalha a imagem de um

ldquotribunal da posteridaderdquo associado ao distanciamento temporal necessaacuterio aos juiacutezos de verdade ver

GUIMARAtildeES Lucia Paschoal O Tribunal da Posteridade In PRADO Maria Emiacutelia O Estado

como vocaccedilatildeo Rio de Janeiro Acess 1999 pp 33-57 Ver tambeacutem o recente trabalho de TIBURSKI

Eliete Lucia Escrita da histoacuteria e tempo presente no Brasil oitocentista Dissertaccedilatildeo de Mestrado

UFRGS 2011 p 138 que demonstra a existecircncia de um ldquoespaccedilo possiacutevel e legiacutetimo para a histoacuteria

recente ao mesmo tempo que sua publicaccedilatildeo esteve sempre condicionada ao exame dos seus pares que

natildeo soacute podiam como vetavam muitos dos trabalhos apresentados ()rdquo

253

Outro trabalho natildeo menos importante e cujo valor sera

bem apreciado nas geraccedilotildees futuras [o qual] tem

emprehendido o Instituto desde a sua fundaccedilatildeo sobre a

proposta de seu Secretaacuterio Perpetuo e o continua com a

patriotica perseveranccedila aperfeiccediloando-o de mais em

mais e enriquecendo-o dia por dia com os

acontecimentos ocorrentes segundo a ordem em que se

succedem Fallo Srs das nossas Ephemerides

historico-politicas escriptas com promptidatildeo e

fidelidade no primeiro e no Segundo anno de nossa

existencia academica (hellip)809

Da mesma forma que imaginara Desmarais do outro lado do Atlacircntico o

secretaacuterio perpeacutetuo via nas Efemeacuterides Histoacuterica e Poliacuteticas uma compilaccedilatildeo de fatos

nos quais ldquoencontraraacuteotilde os escriptores da historia do Brasil sufficiente material sobre

que possam trabalharrdquo O edifiacutecio majestoso no caso deveria se tornar um

monumento agrave ldquomarcha gloriosardquo do governo imperial810 Assim tatildeo cedo quanto em

1839 Cunha Barbosa encarregou dois soacutecios de formar um comitecirc para a elaboraccedilatildeo

da narrativa dia-a-dia dos fatos e feitos do Impeacuterio do Brasil Attaiacutede Moncorvo e

Mariz Sarmento em breve receberiam a companhia de Joseacute Clemente Pereira homem

da geraccedilatildeo da independecircncia e articulador do golpe de 1840 que propos ao Instituto

voltar os olhos aos ldquofatos memoacuteraveisrdquo do reinado de Pedro II811 ldquoAo que tudo

indicardquo ponderou Lucia Paschoal Guimaratildees ldquoas duas iniciativas se fundiram e a

escrituraccedilatildeo das lsquoEfemeacuteridesrsquo ganhou maior notoriedaderdquo sendo repassada agrave

responsabilidade do orador do IHGB Diogo Soares da Silva Bivar De iniacutecio suas

efemeacuterides recolhiam fatos de naturezas diversas e pequenas notiacutecias sobre o dia-a-dia

carioca acompanhando a pouca clareza de um gecircnero que histoacuterico carecia de uma

autoridade modelar antiga que natildeo houvesse se perdido A saiacuteda encontrada por Bivar

foi transformar as efemeacuterides em Crocircnica com os informes de relatos puacuteblicos fuga

de escravos e translado de corpos diplomaacuteticos dando lugar paulatinamente aos

ldquorelatos da trajetoacuteria das tropas imperiais empenhadas no combate aos insurretos de

Satildeo Paulo e Minas Geraisrdquo Seu trabalho outrossim jamais fora publicado O acesso

aos documentos das proviacutencias mostrava-se difiacutecil os informes eram incompletos ou

809 BARBOSA Januaacuterio da Cunha Relatoacuterio do Secretaacuterio Perpeacutetuo Revista do IHGB Rio de

Janeiro 3 (Suplemento) 1841 p 529 Grifos meus 810 Idem Ibidem 811 Revista do IHGB Rio de Janeiro 2 (8) 1840 p 401

254

defasados os atrasos frequentes e a atenccedilatildeo dos colegas cada vez mais rara812

Mais tarde jaacute no segundo reinado a relaccedilatildeo entre as efemeacuterides e a imprensa

diaacuteria se faria notar entre as vastas publicaccedilotildees do entatildeo orador do IHGB Joaquim

Manoel de Macedo Sua Efemeacuteride Histoacuterica do Brasil apareceu no diaacuterio O Globo

entre 1874 e 1876 para depois ser editada em volume uacutenico no ano seguinte Ela

comentava diariamente um fato notaacutevel do passado brasileiro relacionado agrave data de

publicaccedilatildeo do jornal impressa em uma coluna da primeira paacutegina813 Pouco mais

tarde seria precisamente a relaccedilatildeo entre as efemeacuterides e o jornalismo uma das

desculpas utilizadas pelos pareceristas do IHGB para a negativa de fomento agrave

publicaccedilatildeo da obra O Ano Histoacuterico Rio-Grandense Em 1885 Pereira Coruja enviou

ao instituto sua compilaccedilatildeo de 2700 efemeacuterides relativas agrave histoacuteria da provincial do

Rio Grande do Sul Alegando falta de recursos o autor requisitou auxiacutelio financeiro

para a impressatildeo do escrito No parecer original apesar de elogiarem o trabalho de

arquivo e o levantamento das fontes utilizadas por Coruja os avaliadores do IHGB jaacute

indicavam que as efemeacuterides ldquodatas comemorativas de grandes acontecimentosrdquo

eram ldquomais proacuteprias para as folhas diaacuterias pela recordaccedilatildeo dos fatos dados em igual

dia mas em diferentes anos trazendo assim agrave lembranccedila sucessivos aniversaacuteriosrdquo O

modelo que seguia estrutura similar ao ldquogrande anordquo das Efemeacuterides de Noeumll

parecia-lhes tambeacutem muito vasto e difiacutecil de julgar814

Luciana Fernandes Boeira jaacute demonstrou como em uma seacuterie de pareceres

tensos e tanto confusos as Comissotildees de Redaccedilatildeo e Orccedilamento do IHGB resolveram

negar apoacutes um silecircncio de dois anos o auxiacutelio agrave publicaccedilatildeo de Pereira Coruja815 A

justificativa que indefiria o pedido era dada pela natureza extensa do trabalho o qual

ocuparia ldquoum tomo inteiro da Revista se for publicado uma vezrdquo ou levaria ldquoalguns

812 GUIMARAtildeES Luacutecia Maria Paschoal Debaixo da imediata proteccedilatildeo de Sua Majestade Imperial O

Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (1838-1889) Revista do IHGB Rio de Janeiro a 156 nordm

388 p 459-613 jul-set 1995 pp 532-533 O manuscrito de Diogo Bivar consultado pela historiadora

estaacute preservado no arquivo do IHGB nas suas duas versotildees BIVAR Diogo Soares da Silva de

Efemeacuterides brasileiras Ms IHGB lata 45 pasta 5 Marccedilo de 1839 a marccedilo de 1841 e BIVAR

Crocircnica de 1842 Ms IHGB D 13321 p 78 e verso 813 MACEDO Joaquim Manuel de Efemeacuteride Histoacuterica do Brasil O Globo ndash Oacutergatildeo dedicado aos

interesses do comeacutercio lavoura e induacutestria In STRZODA Michelle O Rio de Janeiro de Joaquim

Manuel de Macedo jornalismo e literatura no seacuteculo XIX Antologia de Crocircnicas Casa da PalavraRio

de Janeiro 2010 pp 697-716 814 Revista do IHGB 1885 (2) pp 394-395 815 BOEIRA Luciana Fernandes Como salvar do esquecimento os atos bravos do passado rio-

grandense a Proviacutencia de Satildeo Pedro como um problema poliacutetico-historiograacutefico no Brasil Imperial

Tese de Doutorado UFRGS 2013 pp 109-112

255

anos a publicar-se se for em partes o que natildeo pode convir ao autor da obrardquo816 Fosse

pela prudecircncia dos pareceristas em incluir na revista do instituto um rol de fatos

comemorativos de uma proviacutencia beligerante fosse por questotildees materiais e

financeiras a negativa do IHGB natildeo deve ter desanimado totalmente o autor Com o

auxiacutelio da querecircncia gauacutecha acampada na corte Coruja natildeo encontraria dificuldades

para publicar apenas um ano depois o primeiro folheto de uma

ldquoobra cujo titulo indica que deve constar dos factos e

noticias mais notaacuteveis do Continente do Rio Grande do

Sul [e que] comemora tambem muitos acontecimentos

da proviacutencia de Santa Catharina dos territoacuterios drsquoaacutequem

e drsquoaacutelem do Prata e do Paraguai relativos aacute proviacutencia

aleacutem de muitos factos e leis geraes que convecircm serem

sabidos pelos rio-grandeses curiosos das letras

paacutetriasrdquo817

Essa natildeo foi a uacutenica efemeacuteride regional a ser publicada no Brasil de fins do

seacuteculo XIX Poderiacuteamos destacar tambeacutem as Efemeacuterides Mineiras de Joseacute Pedro

Xavier da Veiga Nelas como Noeumll fizera com a Franccedila a histoacuteria de todas as Minas

Gerais aparece fechada em um ciclo de um uacutenico ano Alias eacute no volume II referente

aos meses de abril a junho ndash que aparece natildeo apenas o supliacutecio de Tiradentes esse

acontecimento ldquosombrio e traacutegico epiacutelogo da gloriosa Inconfidencia Mineirardquo

seguido de um longo elogio do movimento ndash como tambeacutem um comentaacuterio simpaacutetico

a Bernardo Pereira de Vasconcelos o liberal arrependido e apoacutestolo do ldquoretrocesso

conservadorrdquo 818 Se pudermos confiar nos testemunhos registrados na Carta aos

Senhores Eleitores da Proviacutencia de Minas Gerais veremos na transcriccedilatildeo do discurso

do deputado Souza Franccedila um trabalho de memoacuteria objetivado no dia 3 de maio que

foge ao ldquoJuacutebilo Nacionalrdquo do Descobrimento

816 Revista do IHGB 1887 (2) p 357 817 CORUJA Antonio Alvares Pereira Anno Historico Sul-Rio-Grandense em Forma de Ephemerides

Editado por uma associaccedilatildeo de rio-grandenses do sul Rio de Janeiro Typ De Joseacute Dias de Oliveira

1888 Primeiro Folheto 1 de Janeiro a 31 de Marccedilo Proacutelogo sp 818 VEIGA Joseacute Pedro Xavier da Ephemerides Mineiras (1664-1897) Volume II (Abril a Junho)

Ouro Preto Imprensa Official do Estado de Minas 1897 respectivamente pp 103 e 209 Sobre

Bernardo Pereira de Vasconcelos sigo tambeacutem CARVALHO Joseacute Murilo de (org) Bernardo Pereira

de Vasconcelos Editora 34 Satildeo Paulo 1999 pp 9-34 Segundo Carvalho na fase liberal de sua

carreira que compreende o periacuteodo da Carta a ldquopreocupaccedilatildeo centralrdquo de Vasconcelos ldquofoi colocar em

funcionamento a monarquia representativa acabar com os resiacuteduos do absolutismo ainda vigente na

cabeccedila e nas praacuteticas do imperador de seus ministros e ateacute mesmo nas leis Rio Branco diria mais tarde

que ele fora ldquoo verdadeiro mestre do parlamentarismo no Brasilrdquo Joaquim Nabuco jaacute dissera antes que

sua palavra e a pena de Evaristo tinham sido ldquoa ferramenta simples mas poderosa que esculpe o

primeiro esboccedilo do sistema parlamentar no Brasilrdquo idem p 17

256

() sempre se festejaratildeo certos dias () Poreacutem porque

razatildeo o natildeo seraacute tambem o dia 3 de maio (apoiado

geralmente) Dia da instalaccedilatildeo do Corpo Legislativo

Hum dia que afianccedila a todos noacutes a nossa Liberdade a

nossa verdadeira felicidade natildeo seraacute taatildeo grande para o

Brasil como os especificados neste Projecto819

A lei de 1826 que estabelecia como dias de festividade nacional ldquoem todo o

Impeacuterio os dias 9 de Janeiro 25 de Marccedilo 3 de Maio 7 de Setembro e 12 de

Outubrordquo entretanto se absteve de fazer quaisquer menccedilotildees ao significado dessas

efemeacuterides Legalmente vazias as datas estavam assim abertas ao ofiacutecio de qualquer

valor820 Celebrar a instalaccedilatildeo da primeira legislatura do paiacutes dois anos apoacutes a

traumaacutetica dissoluccedilatildeo da Constituinte que levou Bonifaacutecio ao exiacutelio talvez soasse

como uma criacutetica ao Imperador senatildeo mesmo agrave monarquia Como lembrou Joseacute

Murilo de Carvalho ldquoo ambiente poliacutetico era de tensa expectativardquo a liberdade de

imprensa estava ameaccedilada jornalistas estavam sendo perseguidos e claramente ldquoa

lua-de-mel do paiacutes com d Pedro I jaacute acabarardquo 821

Natildeo seria estranho para dizer o miacutenimo que um homem com as credenciais

eruditas de Ramiz Galvatildeo ndash ele mesmo soacutecio do IHGB desde 1872 ndash caiacutesse em uma

armadilha centenaacuteria deixando-se confundir em virtude da reforma do calendaacuterio

gregoriano822 Ainda mais bizarro seria aceitarmos que um jornalista advogado e

aspirante a historiador jaacute em sua juvenilia tivesse desmontado o edifiacutecio magestoso

de um Centenaacuterio alicerccedilado nos peacutes de barro de uma efemeacuteride tatildeo incorreta quanto

aquelas publicadas por Nostradamos Faccedilamos entatildeo ouvir o que dizia o baratildeo de

Ramiz jaacute no discurso de abertura da primeira Sessatildeo Magna da Associaccedilatildeo realizada

precisamente no dia 3 de maio de 1899 contando com a presenccedila do presidente

Campos Salles e do poeta Olavo Bilac

819 VASCONCELLOS Bernardo Pereira de Carta aos Senhores Eleitores da Proviacutencia de Minas

Gerais Francisco Rodrigues de Paiva Rio de Janeiro 1899 cap III Lei que fixa os dias de festividade

Nacional p 24 820 Lei de 9 de Setembro de 1826 ndash Marca os dias de festividade nacional em todo o ImperioIn

Colleccedilatildeo das Leis do Impeacuterio do Brasil Parte Primeira Rio de Janeiro Typographia Nacional 1880

p 7 821 CARVALHO 1999 p 13 822 Sobre a relaccedilatildeo de Ramiz Galvatildeo com o IHGB veja-se GUIMARAtildeES 2007 especialmente pp 60-

61 quando a autora comenta que soacutecio desde 1872 o baratildeo de Ramiz voltaria agrave atividade no instituto

por volta de 1907 embora natildeo possa precisar os motivos de seu retorno

257

Vecircde agora o centenaacuterio do descobrimento do Brasil Do

venturoso achado de 1500 surge uma naccedilatildeo da viagem de

Cabral rebenta a constuiccedilatildeo de um povo unificado pela

raccedila pela religiatildeo pela liacutengua e pelos costumes ndash um

povo que nasceu portuguez mas eacute hoje profundamente

radicalmente autonomo livre () Da aurora de Porto-

Seguro levantou-se altivo e radioso um sol que as brumas

do passado puderam por algum tempo annuviar mas que

accediloitou os nevoeiros rasgou impavido as sombras da

escravidatildeo e caminha hoje em sua derrota ndash augusto

soberano no ceacuteu da Histoacuteria Este povo brasileiro feitura

graciosa de matildeos portuguezas este coraccedilatildeo que palpita

agora em 16 milhotildees de homens por muito as influencias

do meio cosmico e o cruzamento de raccedilas o tenham

modificado eacute portanto ndash obra drsquoaquelle feliz

acontecimento maritimo de 22 de Abril de 1500 que

celebramos823

Teria sido essa uacuteltima diatribe das efemeacuterides causada pelo oportunismo de

um jovem cheio de ambiccedilotildees acadecircmicas a escalar uma torre de marfim com o

auxiacutelio de palavras bem escolhidas jogando com a autoestima abalada de um IHGB

financeira e intelectualmente deprimido pela nascente repuacuteblica A confusatildeo em

torno do 3 de maio sobre a qual Fleiuss levantava a voz ndash seguindo de perto faria

bem frisar de muito perto as palavras de Aquino e Castro ndash poderia ter tido ainda

outras repercussotildees824 Victor Meirelles havia se comprometido com a pintura de um

quadro comemorativo do Descobrimento do Brasil ldquoExtraordinaacuterios embarccedilosrdquo no

entanto retardaram a inauguraccedilatildeo da ldquogrande tela que devia ser feita nos dias festivos

de Maio por ocasiatildeo das outras sollenidades commemorativasrdquo Apenas no dia 11 de

Junho no entanto o Panorama do Descobrimento do Brasil estaria pronto para a

exibiccedilatildeo825 O jornalista e poeta Carlos de Laet registrou suas primeiras impressotildees a

respeito da obra

Ao entrar na platafoacuterma do Panorama poacutede o espectador

considerar-se orientado no local do desembarque e

nesta hypothese fica-lhe aacute frente a Leacuteste o olheacuteu da

823 ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro do

Centenaacuterio 1500-1900 Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1900-1910 Volume 4 pp 91-92 Grifos

meus 824 Alguns historiadores jaacute se depararam com a disputa oitocentista em torno do significado histoacuterico do

trecircs de maio dos quais destaco CARVALHO Joseacute Murilo de (org) Bernardo Pereira de Vasconcelos

Satildeo Paulo Editora 34 1999p 73 SOUZA Iara Lins de Carvalho Paacutetria coroada O Brasil como

corpo poliacutetico autocircnomo 1790-1831 Satildeo Paulo Unesp 1999 pp 252-255 e mais recentemente

ENDERS Armelle 2014 p 61 825 ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro do

Centenaacuterio 1500-1900 Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1900-1910 Volume 4 pp 286

258

Coroa Vermelha Na terra firme fronteira a Oeste foi

que frei Henrique por ordem e com assistencia de

Cabral e bem assim da luzida comitiva celebrou a

famosa missa de 3 de Maio de 1500826

Uma missa De fato temos agora um trio de acontecimentos que poderiam ser

associados ao trecircs de maio o descobrimento amarrado agrave data por um suposto erro de

caacutelculo relativo agrave reforma do calendaacuterio gregoriano a instalaccedilatildeo do Corpo Legislativo

e ainda a ldquofamosa missardquo que ao menos desde Varnhagen pensaacutevamos ter ocorrido

no dia 26 de abril827 De todo modo a relaccedilatildeo dos organizadores dos festejos e do

Livro do Centenaacuterio com a Igreja Catoacutelica tem passado despercebida pelos

comentadores do grande ldquoJubileu Nacionalrdquo A proacutepria escolha do nome do evento

carrega um significado religioso que remete ao ano de 1300 senatildeo mesmo a uma

praacutetica recorrente do papado Em 1900 as festas nacionais desenrolaram-se ao longo

de quatro jornadas do chuvoso 3 de maio ateacute o dia 6 daquele mecircs O ldquoprograma do

festival que inaugura o centenaacuteriordquo previa em sua ordem a apresentaccedilatildeo do hino

nacional seguido do Hino portuguecircs e por uacuteltimo do hino do centenaacuterio828 Mas natildeo

era apenas a heranccedila lusitana que deveria ser afirmada No primeiro dia agrave

inauguraccedilatildeo do monumento do Descobridor de autoria de Rodolfo Bernardeli e

sitiado no paccedilo da Gloacuteria antecedeu-se uma missa campal bem registrada por uma

fotografia na qual se contam inuacutemeras almas apinhadas de guarda-chuvas em matildeos

No dia 6 jaacute agraves 11hrs da manhatilde sob um clima mais cristatildeo cantaria-se o Te Deum

Apoacutes a profissatildeo de feacute padre Juacutelio Maria toma a palavra da qual retiro o seguinte

excerto

() este Te Deum natildeo eacute sinatildeo um reconhecimento da

origem divina da nossa nacionalidade uma affirmaccedilatildeo

da vocaccedilatildeo do Brasil () Glorificae a Deus porque eacute

Deus quem domina as naccedilotildees Regnabit Deus super-

gentes A Religiatildeo que comprehende a falsa sciencia

tentando explicar o mundo e a falsa sociologia tentando

explicar os povos sem Deus comprehende tambem o

826 Idem pp 286-287 Grifos meus 827 Robert Southey indicava a data de 1 de maio ainda argumentando que ldquo() subiu Fr Henrique a

um puacutelpito donde pregou como era costume naqueles tempos sobre o evangelho do dia e as vidas de

S Felipe e S Tiago que a Igreja comemora no 1ordm de maiordquo SOUTHEY Robert Histoacuteria do Brasil

Primeiro Volume Ediccedilotildees do Senado Federal Vol 133-A Brasiacutelia 2010 p 41 Cf VARNHAGEN

Francisco Adolfo Histoacuteria Geral do Brazil Rio de Janeiro Laemmert 1854 p 16 ldquoNo dia 16 do

mencionado Abril que era o domingo de Paschoela foram todos os da armada assistir aacute missa que foi

celebrada em um ilheo ou restinga que se acha aacute entrada do dito Porto Segurordquo 828 ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro do

Centenaacuterio 1500-1900 Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1900-1910 Volume 4 p 161

259

naturalismo que nega a Providencia Divina no govecircrno

das naccedilotildees Na ordem natural ndash Deus natildeo eacute somente

creador do mundo eacute tambeacutem senhor do mundo de que

o homem eacute apenas o usufructario829

Para o padre Maria como explicaria a seguir natildeo era ao progresso que a

comemoraccedilatildeo nacional deveria prestar tributos mas agrave perfeiccedilatildeo ao elo da alma com o

absoluto celestial O progresso em seu aspecto teacutecnico e material era visto como

produtor da crise ou da decadecircncia moral um topos comum como vimos a diversos

pensadores oitocentistas Entendido como um processo no qual o agente empiacuterico da

accedilatildeo eacute exonerado e ldquoas experiecircncias satildeo superadas com uma velocidade

surpreendenterdquo o progresso compartilha com a decadecircncia o fato de ldquoconceitualizar

transformaccedilotildees no tempo histoacutericordquo 830 O caraacuteter ciacuteclico dos centenaacuterios poderia

indicar a Julio Maria a oportunidade de oficiar uma ordem natural na qual as

mudanccedilas se ocorrerem deveriam servir antes a providecircncia do que aos homens As

criacuteticas ao ideaacuterio do progresso imagem muito associada ao longo do fenocircmeno dos

centenaacuterios natildeo precisariam ser feitas a partir de loacutegicas providenciais Em um ensaio

que reflete sobre uma das grandes Exposiccedilotildees Universais do seacuteculo XIX Ernest

Renan marcava o tom das cobranccedilas afirmando que alguns

() natildeo compreendem nada atingidos pelos grandes

progressos industriais de nosso tempo a imaginar que

tal progresso sinaliza uma revoluccedilatildeo no espiacuterito

humano Essas pessoas tomam o que eacute acessoacuterio a uma

revoluccedilatildeo como principal se a filosofia da histoacuteria lhes

fosse mais familiar eles veriam que a perfeiccedilatildeo das artes

mecacircnicas pode se aliar a uma grande depressatildeo moral e

intelectual831

A mais famosa das ldquofeiras do progressordquo no entanto seria aquela sediada por

ocasiatildeo do centenaacuterio da revoluccedilatildeo O ano de 1889 eacute vaacutelido dizer seria inclusive ao

menos na Franccedila mais lembrado por muitos como a data de construccedilatildeo da Torre

829 Ibidem p 236-237 830 KOSELLECK Reinhardt The practice of conceptual history timing history spacing concepts

Stanford University Press Cultural Memory in the Presente Stanford 2002 p 220 831 ldquoVoilagrave ce que ne comprennent point assez les personnes qui frappeacutees des grands progregraves industriels

de notre temps srsquoimaginent que de tels progregraves signalent une reacutevolution dans lrsquoesprit humain Ces

personnes prennent lrsquoaccessoire de la civilisation pour le principal si la philosophie de lrsquohistoire leur

eacutetait plus familiegravere elles verraient que la perfections des arts meacutecaniques peut srsquoallier agrave une grande

deacutepression morale et intellectuellerdquo RENAN Ernest La poeacutesie de lrsquoexposition In Essais de morale et

de critique Paris Calman Leacutevy 1859 p 370

260

Eiffel da grande Exposiccedilatildeo Universal Internacional revelando algo como uma face

apoliacutetica da comemoraccedilatildeo revolucionaacuteria832 O Brasil natildeo deixou de participar do

gigantesco evento comercial daquele ano Como monarquia o governo sentia-se

impedido de juntar-se oficialmente a uma festa que visava celebrar um processo que

levou a decapitar reis e nobres ndash um dos projetos apresentados ao edital puacuteblico

encarregado de escolher o monumento comemorativo previa a construccedilatildeo de uma

guilhotina de 300 metros Pedro II no entanto entuasiasta da Franccedila e do progresso

acolheu bem a proposta de formaccedilatildeo de um comitecirc franco-brasileiro para a

exposiccedilatildeo O visconde de Cavalcanti chega a Paris em 1888 com a missatildeo de

organizaacute-lo junto ao senador Eduardo da Silva Prado e segundo a ata de fundaccedilatildeo da

entidade deveriam ser expostos apenas produtos que refletissem o progresso da

naccedilatildeo833 ldquoO Brasil a despeito de sua chegada tardia pocircde encontrar no Campo de

Marte uma localizaccedilatildeordquo agrave margem do lago situado logo aos peacutes da grande torre834

Anos antes Renan natildeo deixou de fazer pilheacuteria dessas ldquofeiras do progressordquo

Chegou a escrever que ldquoo profeta de nossa era Fournier previu que um diardquo ao inveacutes

de celebrar grandes feitos da histoacuteria ldquoas porccedilotildees rivais da humanidade disputaratildeo a

excelecircncia na confecccedilatildeo de petits gacircteuxrdquo 835 Alguns anos mais tarde e do outro lado

do atlacircntico o Imperador no entanto parecia feliz No dia ldquo11 de dezembro de 1888

SMI abriu pessoalmente a exposiccedilatildeo preparatoacuteria no Rio de Janeirordquo e como registra

o documento oficial do evento ldquodemonstrou seu prazer em constatar nessa exposiccedilatildeo

o progresso da induacutestria brasileirardquo 836 O avanccedilo da induacutestria local certamente

impressionou os visitantes do mundo inteiro que aleacutem de vislumbrar todo o tipo de

madeira exoacutetica tabacos diversos e oacuteleos de oititica poderiam levar de presente para

a seguranccedila do lar amostras graacutetis (echantillons) do melhor amianto da terra837

832 AGENOT Marc Le centenaire de la reacutevolution 1989 La documentation franccedilaise 1989 Direction

de la documentation franccedilaise Collection ldquoLes meacutedias et lrsquoeacuteveacutenementrsquo BNF Paris [8-g-23517] p 1 833 EXPOSITION UNIVERSELLE DE PARIS 1889 Empire du Bregravesil Catalogue Officiel 6 mai

1889 BNF 8-v-21701-L 333-A 834 Ibidem p 54 835 ldquoLe prophegravete de notre acircge Fournier avait preacutedit qursquoun jour au lieu de se rencontrer dans des

batailles ou des conciles oecumeacuteniques les portions rivales de lrsquohumaniteacute se disputeraient lrsquoexcellence

dans la confection des petits gacircteaux Sans doute ce grand progregraves nrsquoest pas encore pleinement

accompli mais bien des pas ont eacuteteacute faits en ce sens il y a quelques jours les plus fortes tecirctes de

lrsquoEurope eacutetaient occupeacutees agrave deacutecider quelle nation fabrique le mieux la soie ou le cotonrdquo RENAN

1859 357 836 ldquoLe 11 deacutecembre 1888 as magesteacute lrsquoempereur ouvrait em personne lrsquoexposition preacuteparatoire agrave Rio-

de-Janeiro et reacutepondant agrave um discours de M le Viscomte de Cavalcanti as majesteacute exprima son plaisir

de constater dans cette exposition les progregraves de lrsquoindustrie breacutesiliennerdquo EXPOSITION

UNIVERSELLE DE PARIS op cit p 5 837 Ibidem pp 58-79

261

Pouco mais tarde no contexto dos quatrocentos anos do Brasil o cacircncer do

paiacutes atenderia pelo nome de ldquocriserdquo ou ldquodecadecircnciardquo moral Koselleck lembra bem

que mesmo o conceito de revoluccedilatildeo ndash como tivemos a oportunidade de acompanhar

em Aristoacuteteles e na tradiccedilatildeo peripateacutetica ndash tinha um ldquosentido espacialrdquo encontrado na

ldquooacuterbita das estrelas antes que o termo fosse aplicado a tendecircncias sociais e poliacuteticasrdquo

838 O conceito de progresso segundo o historiador alematildeo por sua vez tornaria-se

moderno quando ldquoverteu ou esqueceu seu sentido de fundo natural de marchar ao

longo do espaccedilordquo A referecircncia figurativa teria desaparecido ao passo que por volta

de 1800 ldquoprogresso tornou-se um conceito genuinamente histoacuterico enquanto que

lsquodecliacuteniorsquo (decline) ou lsquodecadecircnciarsquo (decay) natildeo foram capazes de verter seu pano de

fundo natural e bioloacutegico da mesma maneirardquo 839

Ainda outro conceito ndash muito utilizado pelo uacuteltimo Spencer como vimos no

segundo capiacutetulo ndash faria parte mesmo do vocabulaacuterio dos personagens mais ufanistas

De origem propriamente astronocircmica empregado para representar o movimento

aparente irregular do planeta Marte o termo apareceria no alerta de Afonso Celso em

1914 a respeito da ldquocataacutestrofe que assoberta o Velho Mundo e vai obedecendo agraves leis

abscocircnditas da Providecircncia fazer talvez retrogradar a civilizaccedilatildeordquo 840 Como

mostram os trabalhos de Hugu Hrugy e Luacutecia Paschoal Guimaratildees entre o final do

seacuteculo XIX e o iniacutecio do XX natildeo apenas a memoacuteria monarquista parece ter se

encastelado no IHGB como tambeacutem assistimos ao ingresso nos quadros do instituto

de uma legiatildeo de padres de alto posto encabeccedilando discussotildees sobre a matildeo de Deus e

retomando a providecircncia como princiacutepio explicativo da histoacuteria universal841 Como

escreveu Paschoal Guimaratildees ldquotal qual um oraacuteculordquo ou como as sibilinas de Antonio

Vieira ldquoAfonso Celso arriscava perpretar previsotildees sobre o devirrdquo 842

Em 1900 algo uniria para aleacutem dos tiacutetulos por concessatildeo papal e os cargos

eclesiaacutesticos os organizadores do Jubileu Nacional e a Igreja de Roma A tarefa

comemorativa guardadas suas vicissitudes natildeo era em nada estranha aos princiacutepios

do cristianismo como natildeo seria dois milecircnios mais tarde aos princiacutepios da

identidade nacional oficiados pela liturgia ciacutevica Por volta de 63 dC Satildeo Paulo da

838 KOSELLECK 2002 220 839 Idem p 221 840 CELSO Afonso Discurso de abertura proferido em 07 de setembro de 1914 In Anais do

Primeiro Congresso de Histoacuteria Nacional Rio de Janeiro IHGB 1915 Tomo I p 85 apud

GUIMARAtildeES LMS 2007 p 67 Grifos meus 841 HRUBY Hugo op cit 52 842 GUIMARAtildeES LMP 2007 67

262

Roma de Nero teria escrito uma dramaacutetica carta endereccedilada aos judeus receacutem

conversos da Palestina Mais tarde Jacques-Beacutenigne Bossuet Eacuteveacuteque de Meaux e da

histoacuteria providencial que reanimaria as almas do IHGB de padre Maria descrevia a

epiacutestola aos Hebreus como ldquoa mais eloquente apologia do Novo Testamentordquo

incitando os protestantes a aceitaacute-la843 Como o autor do Discours sur lrsquohistoire

universelle gostava de lembrar a autoridade do texto era reconhecida como ldquocanocircnica

desde os tempos de S Jerocircnimo em dianterdquo844

A epiacutestola aos hebreus preocupava-se com a reminiscecircncia de praacuteticas

judaizantes temendo desde aquela eacutepoca pela universalidade do cristianismo ldquoNova

alianccedilardquo no entanto ela natildeo era em nada parecida agravequela feita muitos anos antes com

os pais de Israel (Hebraeus VIII9) O menino de Beleacutem era superior ao transpositor

do Mar Vermelho Como havia profetizado Davi no milecircnio anterior a Palavra

declarava que o Salvador seria tambeacutem ldquoSacerdote eternamente (in aeternum)

segundo a ordem de Melchisedechrdquo (Salmos 1107 Hebraeus V6)

A nova Lei abolia a velha pois ldquose a perfeiccedilatildeordquo (consummatio) fosse criada

ldquopelo Sacerdoacutecio Leviticordquo por que haveria necessidade que se levantasse um novo

(Hebraeus VII11) Nenhuma Lei levou os homes agrave perfeiccedilatildeo embora tenha

introduzido-os na esperanccedila de alcanccedilaacute-la (Hebraeus VI19) Paulo teria em mente

expurgar os maus costumes dos ancestrais que acreditavam ldquopurificar a consciencia

do que sacrificava por meio somente de manjares e bebidasrdquo (Hebraeus IX9)

Pensava diretamente nas oblaccedilotildees e holocaustos oferendas praticadas durante a velha

alianccedila ndash patildees e oacuteleos farinha e animais ldquosem defeitordquo ndash prescritas e glosadas em

pormenores no Velho Testamento (Leviticus XVI-XXVIII) Testamento que natildeo teria

nenhum valor na visatildeo do santo como aliaacutes nenhum outro tem sem a morte de quem

o realizou (HebraeusIX16-17)

Natildeo havia mais necessidade dos sacerdotes oferecerem imolaccedilotildees diaacuterias

esclarecia a epiacutestola uma vez que o Salvador jaacute entregara a si mesmo em holocausto

(Hebraeus VII27) E ldquonos mesmos sacrifiacutecios se faz memoria dos peccados todos os

annosrdquo (sed in ipsis commemoratio peccatorum per singulos annos fit) A remissatildeo

dos pecados natildeo poderia mais ser alcanccedilada pela velha lei mas sim atraveacutes da Nova

843 apud A BIBLIA SAGRADA Introducccedilatildeo [agrave Epiacutestola de Satildeo Paulo aos Hebreus] Contento o Velho

e o Novo testamento Traduccedilatildeo da Vulgata pelo Padre Antonio Pereira de Figueiredo (1725-1797)

Lisboa Empreza da Historia de Portugal 1902 3 volumes p 502 844 ldquoLe torrent des Peres Latins comme des Grecs cite lrsquoEpicirctre aux Heacutebreux comme caninique degraves le

temps de S Jeacuterocircmerdquo BOSSUET JB Projet de reacuteunion entre les Cathololiques amp les Protestants In

Oeuvres de Messire J Benigne Bossuet Tome Quatrorzieme Libraires Associeacutes Liege 1767 p 563

263

Alianccedila A commemoratio do sacerdoacutecio de Melchisedech superava enfim a ordem

leviacutetica845

O tempo biacuteblico voltaria agrave pauta de discussotildees do IHGB de finais do seacuteculo

XIX Com a proclamaccedilatildeo da repuacuteblica o padroado e o regalismo ndash a uniatildeo do Estado

e da Igreja ndash chegariam ao teacutermino no Brasil Apesar de em tese ldquolimitar a esfera de

accedilatildeordquo da feacute catoacutelica ldquoe dos religiosos na sociedaderdquo a medida republicana permitiria

por outro lado ldquouma maior liberdaderdquo de agir ldquoante o poder temporalrdquo846 Retirando-

se do claustro poliacutetico os padres estavam livres para adentrar a ldquoesferardquo puacuteblica

posto que alguns resolvessem celebrar uma velha ordem natural Essa era certamente

a ldquolutardquo de padre Juacutelio Maria Mas encontrava respaldo parcial naquela de Joaquim

Nabuco o homem que julgava honesto esquecer em nome de uma ideia de naccedilatildeo a

memoacuteria do proacuteprio movimento que havia liderado

Jaacute em seu discurso de posse o ex-abolicionista lamentava como se a crise

moral tivesse adentrado a proacutepria histoacuteria Histoacuteria que estaria ldquoatravessando uma

grave criserdquo vociferava da tribuna Crise causada por ldquouma escola religiosardquo algo

bizarra ldquomais poliacutetica em todo caso que religiosardquo a qual pretendia ldquoreduzir a histoacuteria

nacional a trecircs nomes ldquoA ideiardquo ndash continuava o discurso dirigido aos positivistas e

materialistas ndash ldquoeacute que entre Tiradentes e Joseacute Bonifaacutecio de um lado e Benjamin

Constant de outro isto eacute entre a Independecircncia e a Republica estende-se um longo

deserto de quasi setenta annos a que posso dar o nome de deserto do esquecimentordquo

847

Eacute nesse deserto do esquecimento mesmo que de maneira por vezes natildeo

declarada que se estabelecia o teatro da guerra entre uma memoacuteria monarquista e

uma memoacuteria republicana sobre o qual a juvenilia de Fleiuss e o discurso de Nabuco

satildeo dois dos registros mais bem acabados Digo apenas em seu texto de juventude

pois nada incorrigiacutevel ndash senatildeo uma data ndash separava-o de junto a Afonso Celso

formar com o presidente do grupo do centenaacuterio a nova ldquotrindade do silogeurdquo Apesar

de essencial como ponto de uniatildeo entre a ordem do tempo e a ordem da natureza o

845 Eacute provaacutevel que dadas as diferenccedilas de estilo e vocabulaacuterio a carta aos hebreus natildeo tenha sido

escrita por Paulo embora os estudiosos mantenham-na dentro da ldquoescola paulinardquo Sobre os debates a

respeito da obra de Paulo ver MEEKS Wayne The Writings of St Paul Norton amp Company Inc New

York and London Second Edition 2007 Principalmente a introduccedilatildeo pp XIV-XV 846 HRUGBY 2009 51 847 NABUCO Joaquim Discurso de posse como soacutecio efetivo do IHGB na sessatildeo ordinaacuteria de 25 de

outubro de 1896 RIHGB 1896 Tomo LIX II p 310-311 Veja tambeacutem GUIMARAtildeES LMP 2007

79-94 que parte da percepccedilatildeo de Nabuco para comentar o ldquodeserto do esquecimento imposto pela

Repuacuteblica em relaccedilatildeo agrave histoacuteria do Segundo Reinadordquo p 80

264

estabelecimento de dataccedilotildees era uma questatildeo jaacute humanizada e portanto sujeita agrave

geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo Bastaria natildeo que ldquoapenas um chinecircs a contradigardquo mas a um

baratildeo e ela seria nacionalmente comprometida Originalmente publicadas no Jornal

do Brasil a partir de 1891 as Efemeacuterides Brasileiras foram escritas por Rio Branco a

pedido de Rodolfo Dantas Tratavam-se segundo o autor de ldquoum pequeno diaacuterio

comemorando ou indicando os nossos principais acontecimentos histoacutericos isto eacute

uma espeacutecie de Efemeacuteridesrdquo848

As efemeacuterides do Baratildeo do Rio Branco seguiam a ordem do ldquogrande anordquo de

Noeumll trazendo o 22 de abril como dia do descobrimento e reservando ao dia 3 de

maio duas datas relativas ao Primeiro Reinado a abertura da Assembleia Constituinte

em 1823 e o juramento da Constituiccedilatildeo do Impeacuterio no ano seguinte849 Se houve o

ofiacutecio de um ldquotempo novordquo como observou Bronislaw Baczko ao comentar o

calendaacuterio revolucionaacuterio francecircs esse seria no Brasil uma contribuiccedilatildeo da erudiccedilatildeo

historiograacutefica monarquista de Varnhagen a Aquino e Castro dos dois ao baratildeo e de

laacute agrave chancela autorizadora de Rodolfo Garcia850 Jaacute ao cair de um Estado Novo o 22

de abril como tempo novo seria oficializado

Anos antes contada como ciclo e celebrada por uma liturgia ciacutevica a

comemoraccedilatildeo de 1900 foi em certa medida um eclipse do tempo ndash bem representado

na confusa polecircmica do 3 de maio ndash no qual a ldquoordem da naturezardquo de que falava

padre Maria emerge vitoriosa para sacramentar e reificar a identidade nacional Um

rito ndash se nos permitirmos usar termo caro a Pascal Ory ndash no Brasil ele exigiria ainda

sacrifiacutecios metoniacutemicos executados no passado dos negros e no futuro dos iacutendios

preccedilo da transferecircncia de sacralidade perpetrada por uma nova alianccedila capaz de

aperfeiccediloar em consummatio uma ideia de naccedilatildeo Se com o sangue de ldquotouros e

bodesrdquo natildeo se podia expiar os pecados (Hebraeus X4) uma oblaccedilatildeo quiccedilaacute tanto

pagatilde senatildeo guardando algo de leviacutetica embora certamente ainda natildeo antropofaacutegica

seria oferecida no altar da naccedilatildeo

Em 1900 o futuro era naturalmente europeu e republicano Os antepassados

escutados nos ceacuteus eram Cabral Camotildees D Henrique ainda Pedro II mesmo que

em oposiccedilatildeo astronocircmica a Tiradentes ambas sineacutedoques de uma suposta consciecircncia

moral A comemoraccedilatildeo soava como um chamado a amar os vultos fundadores e com

848 apud CORREcircA Luiz Felipe De Seixas Apresentaccedilatildeo In RIO BRANCO Baratildeo do Efemeacuterides

Brasileiras Rodolfo Garcia (org) Senado Federal Brasiacutelia 1999 p VII 849 RIO BRANCO op cit respectivamente pp 212 e 226-227 850 Sobre o ldquotempo novordquo relacionado agrave repuacuteblica ver BACZKO Bronislaw 1984 passim

265

eles o Brasil Paiacutes de populares impaacutevidos diante do mau tempo mas mais uma vez ndash

mesmo sem enxergaacute-las entre pesadas nuvens ou ofuscadas por forte sol ndash capazes

com os olhos bem fechados de ldquoouvir e de entender estrelasrdquo 851

851 BILAC Olavo Antologia Poesias Satildeo Paulo Martin Claret 2002 Via Laacutectea Soneto XIII ouvir

estrelas p 37-55

266

Da perfeiccedilatildeo da alma e do progresso da naccedilatildeo

Mensagem geracional de uma naccedilatildeo quase eterna

Costor che fan si gran disputazione

Dellarsquoanima ondrsquo ellrsquo entre e dondrsquo ellrsquoesca

O come il nocciol si stia nella pesca

Hanno studiato in su nrsquoun gran mellone

Luigi Pulci Sonetti

Alguns discursos antes de criticar os versos acima Cesar Cantugrave em sua

Reforma na Itaacutelia pergunta-se a respeito das origens do protestantismo Membro da

triacuteade referencial de Padre Juacutelio Maria lembrado por ele junto a Taine e Bossuet o

catoacutelico italiano natildeo se limitava a mapear os reformadores do seacuteculo XVI Chega na

verdade ateacute Joaquim de Fiori o mesmo homem que seacuteculos antes havia dissertado

sobre as idades do mundo Na leitura do historiador providencial o hereacutetico de

Consenza chocava-se contra os princiacutepios escolaacutesticos do aevum do tempus e da

aeternitas Afinal a religiatildeo natildeo pareceria a Fiori ldquoinalteraacutevel em sua essecircnciardquo

eterna mesmo que existindo no aevum para a reta doutrina sua ldquoforma contingenterdquo

ndash ao tocar ldquoas coisas humanasrdquo ndash estivesse exposta aos ldquointeresses e paixotildees da

terrardquo852 Indo aleacutem Hugues de Montpellier e Rodolfo de Saxe declarariam que ldquoo

novo testamento natildeo pocircde conduzir as almas agrave perfeiccedilatildeordquo e que a imitaccedilatildeo de Cristo

nisso era inuacutetil em especial se o pregador carregasse consigo dinheiro e propriedades

Tais asserccedilotildees ldquomiacutesticasrdquo e ldquocomunistasrdquo doariam bases agravequilo que alguns seacuteculos

depois jaacute na primeira modernidade ganharia o nome de protestantismo853

852 ldquoNotre religion est inalteacuterable dans son essence mais dans sa forme contingente elle touche aux

choses humaines et elle est exposeacutee agrave la souillure des inteacuterecircts et des passions de la terrerdquo CANTUgrave

Ceacutesar La Reacuteforme en Italie Les preacutecurseurs Discours historiques Ancinet Digard et Edond Martin

(trad) Paris Adrien Le Clere 1867 p 77 Discurso III a Era de ferro do Papado Cantugrave repete a

foacutermula escolaacutestica da trindade temporal em mais algumas oportunidades No Discurso VII sobre

Bonifaacutecio VIII e Dante chega a escrever que ldquoLrsquoEacuteglise dans son essence avait un caractegravere absolu et

immuable comme la foi sur laquelle elle eacutetait fondeacutee mais en tant que reunion visible des fidegraveles elle

eacutetait reacutegie par un pouvoir visible lequel si lrsquoon considegravere son existence formelle ne pouvait ecirctre que

potentiel et progressifrdquo Ibidem pp 259-260 853 ldquoHugues de Montepellier et Rodolphe de Saxe [iriam mais longe] on alla mecircme jusqursquoagrave deacuteclarer

que le Nouveau Testament nrsquoavait pu conduire les acircmes agrave la perfection qursquoon ne devait pas imiter

Jeacutesus-Christ quand il prit la fuite ou quand il se cacha quand il posseacuteda de lrsquoargent enfin que le

premier devoir de lrsquohomme spirituel eacutetait de pratiquer la pauvreteacute volontairerdquo Ibidem p 226 Na

mesma paacutegina a tese de Fiori a respeito das idades do mundo eacute sintetizada como a seguir ldquoDieu a

diviseacute le monde en trois eacutepoques successives dans la premiegravere lrsquoaction du Pegravere se manifeste par

267

Esse ldquoespeacutecime antigo do comunismordquo encontrava refuacutegio em todos os

seacutequitos mais odiosos os quais teriam por regra comum o Evangelium Aeternum

texto de autoria disputada mas de inspiraccedilatildeo consensualmente atribuiacuteda a Joaquim de

Fiori Nele como no pregador de Consenza encontrar-se-ia a tal ldquopretensatildeo agrave

perfectibilidade sucessivardquo essa ideia que liga a consumatio ao tempus

transformando-a em um conceito de movimento submetido aos processos senoidais de

progresso e decadecircncia854 Como Cantugrave jaacute havia explicado na teologia dogmaacutetica

deveriamos ldquodistinguir o elemento imutaacutevel e substancialrdquo ndash entendido como a

ldquoverdade revelada e agravequilo que ela faz referecircnciardquo ndash e o ldquoelemento variaacutevel por assim

dizer acessoacuteriordquo

O primeiro natildeo estaacute sujeito nem agrave lei de decadecircncia

nem agrave lei de progresso o segundo varia com o tempo e

com os homens Aquele [o imutaacutevel e substancial] eacute

hoje o que foi nos tempos de Cristo e dos apoacutestolos de

quem recebeu a perfeiccedilatildeo e a consagraccedilatildeo este [o

variaacutevel] se modifica e se modificaraacute pela accedilatildeo

permanente do Espiacuterito Santo e por causas diversas855

A tentativa de filiaccedilatildeo intelectual de Cesar Cantugrave faz-se clara ao longo do

Discurso IV Tomaacutes de Aquino eacute saudado natildeo apenas como ldquoo maior filoacutesofo da

idade meacutediardquo como possivelmente tambeacutem dos ldquotempos modernosrdquo ldquoTriunfo da

lrsquoentremise des patriarches et des prophegravetes dans la seconde celle du Fills srsquoexerce par lrsquointermeacutediaire

des apocirctres et des disciples dans la troisiegraveme le Saint-Esprit exercera son influence au moyen des

ordres religieuxrdquo 854 ldquoTous ces sectaires les Beacuteguins les Begghards ou Bigots les Zeacuteleacutes et les Enfants de lrsquoEacutevangile

rentrent dans la secte des Fraticelles de la pauvre vie ou Fregraveres spirituels qui eut pour regravegle lrsquoEacutevangile

eacuteternel et qui consideacuterait pour son fondateur lrsquoabbeacute de Flora Joachim Ils eacutelurent mecircme un pape et il

nrsquoy eut pas de sceleacuteratesse qursquoon ne leur ait imputeacutee Ils attaquegraverent en faint les bases fondamentales de

la foi et de la justice ils nous offrent un speacutecimen antique du communismerdquo Ibidem p 233 ()rdquo On a

voulu lrsquoattribuer agrave lrsquoabbeacute Joachim par ce motif qursquoon y rencontre ainsi que nous lrsquoavons dit en parlant

de lui cette preacutetention agrave la perfectibiliteacute successive et cette assertion agrave savoir que lrsquoEvangile eacuteternel

est supeacuterieur agrave lrsquoAncient et au Nouveau Testament Suivant ce livre le Nouveau Testament devait finir

en 1260 pour ecirctre remplaceacute par le nouvel Eacutevangile qui serait tout esprit le pape nrsquoeacutetait pas chargeacute

drsquoexposer le commentaire spirituel de lrsquoEacutecriture sainte mais seulement drsquoen expliquer la lettrerdquo

Ibidem p 242 () ldquoQuel fut lrsquoauteur de lrsquoEvangelium aeternum Personne ne le sait pas mecircme le

reacutedacteur du bref de censure Fregravere Slimbene de Parme lrsquoattribue agrave fregravere Geacuterard de Borgo San Donnino

Mineur lecteur de theacuteologie agrave Paris et amateur passionneacute des doctrine de lrsquoabbeacute Joachim de Calabrerdquo

Ibidem 244 855 ldquoDans la theacuteologie dogmatique on doit distinguer lrsquoeacuteleacutement immuable et substantiel crsquoest-agrave-dire la

veacuteriteacute reacuteveacuteleacutee et ce qui srsquoy rapporte et lrsquoeacuteleacutement variable pour ainsi dire accessoire qui est le

deacuteveloppement scientifique de cette veacuteriteacute reacuteveacuteleacutee sa forme mecircme Le premier nrsquoest sujet ni agrave la loi de

deacutecadence ni agrave la loi de progregraves le second varie avec le temps et avec les hommes Celui-lagrave est

aujourdrsquohui ce qursquoil fut au temps du Christ et des apocirctres de qui il a reccedilu la perfection et la

conseacutecration celui-ci se modifie et se modifiera sous lrsquoaction permanente du Saint-Esprit et pour des

causes diversesrdquo Idem Discurso IV Les Patarins p 175 Grifos originais

268

razatildeo aplicada agrave revelaccedilatildeordquo a escolaacutestica ao menos em parte era uma doutrina

ldquoainda vivardquo856 Para essa perspectiva digamos noacutes neoescolaacutestica rebaixar a alma ao

estatuto de um elemento variaacutevel por consequecircncia acessoacuterio era insultar a obra de

Deus Natildeo foi o que certa vez cantou Luigi Pulci com o favor e o aplauso dos Meacutedici

ao comparar os debates sobre a imortalidade e transmigraccedilatildeo a disputas em torno de

um grande melatildeo Problema cosmoloacutegico ele certamente tambeacutem era poliacutetico e

moral negar a perfeiccedilatildeo da alma com o sacerdoacutecio de Melchizedeck ndash ignorando a

carta de Paulo aos Hebreus ndash era o mesmo que recusar a sacralidade do ministeacuterio

petrino reduzido-o ao tempus ao passo que corria-se igualmente o risco de lanccedilar os

homens devolta agrave ordem leviacutetica Tratava-se da negaccedilatildeo da doutrina do sacrifiacutecio

transubstanciado em memoacuteria (a commemoratio da vulgata) levado agrave cabo pela

ldquofalsificaccedilatildeordquo protestante das epiacutestolas de Paulo857

Na visatildeo neoescolaacutestica o movimento progressivo da alma tinha como

pressuposto a negaccedilatildeo da atemporalidade da consumatio do sacramente no altar

ldquocentro de todo o cultordquo e ldquocomunhatildeo iacutentima do homem com Deusrdquo no qual o

ldquomisteacuterio da feacute completa a razatildeordquo sendo ainda o instante em que ldquoa ordem

sobrenatural doa seu complemento inteiro agrave ordem naturalrdquo858 A perfeiccedilatildeo em outras

palavras jaacute estava dada no sacrifiacutecio da cruz cabia aos homens tatildeo somente praticar a

sua comemoraccedilatildeo reafirmando em ritual os benefiacutecios da Nova Alianccedila Pensar uma

alma que progrida de esfera em esfera como jaacute imaginavam Palmieri Rinuccini e

outros ldquopagatildeosrdquo do renascimento seria portanto uma heresia Cantugrave dessa forma

insinuava que o protestantismo teria origem na Academia Platocircnica no mundo de

elegacircncia cortesatilde e magia ritual sediado na Florenccedila dos Meacutedici e que o progresso da

856 ldquoEn somme la Scolastique dans la partie qui est encore vivante fut le triomphe de la raison

appliqueacutee agrave la reacuteveacutelation () Le plus grand honneur de cette entreprise revient de droit agrave celui qursquoon

peut appeler le plus grand philosophe du moyen acircge et peut-ecirctre mecircme des temps modernes agrave saint

Thomas (1227-74)rdquo Ibidem p 175 857 Ibidem p 628 Discours XVI ndash Progregraves et subdivisions des protestants ldquoDans cette derniegravere

[Hebraeus] lrsquoApocirctre entend nous enseigner que les peacutecheurs ne pouvaient eacuteviter la mort qursquoen offrant

agrave leur place une victime qui serait immoleacutee pour eux Tant qursquoils la remplacegraverent par des sacrifices

drsquoanimaux ils ne faisaient qursquoattester par lagrave qursquoils meacuteritaient la mort et comme la justice divine ne

pouvait pas y tromper une satisfaction deacutefinitive et complegravete on recommenccedilait chaque jour agrave immoler

un holocauste qui nrsquoeacutetait pas proporcionneacute agrave la reacuteparation Lorsque Jeacutesus-Christ fut mort pour nos

peacutecheacutes Dieu satisfait nrsquoeut plus agrave exiger drsquoautre prix pour notre rachat Il nrsquoeacutetait donc pas besoin de

sacrifier drsquoautres victimes apregraves le Christ et le Christ lui-mecircme ne devait ecirctre sacrifieacute qursquoune seule

foisrdquo Ibidem pp 628-629 858 ldquoOr le sacrament de lrsquoautel crsquoest le centre de tout le culte crsquoest la communion intime de lrsquohomme

avec Dieu drsquoougrave il suit que le mystegravere de la foi complegravete la raison et que lrsquoordre surnaturel donne son

entier compleacutemenet agrave lrsquoordre naturelrdquo Ibidem 630

269

alma era no final das contas nada mais do que uma versatildeo moderna da metempsicose

dos antigos 859

Eacute bem verdade que o mundo anglo-saxatildeo do seacuteculo XIX empilhava autores

teoacutelogos ou natildeo que mostravam-se fascinados com aquilo que Catherine Albanese

referindo-se aos ldquotranscedentalistas da Nova Inglaterrardquo chamou de ldquorevoluccedilatildeo

cineacuteticardquo860 Muito diferente do ceacuteu estaacutetico dos escolaacutesticos que imaginavam uma

Jerusalem Celeste poacutes-histoacuterica na qual os homens e os santos miravam a imagem

divina em imoacutevel concentraccedilatildeo o paraiacuteso agora era um lugar de trabalho mudanccedila e

aperfeiccediloamento Ralph Waldo Emerson que no Brasil encontrou em Ruy Barbosa

um ceacutelebre leitor parecia mesmo obcecado com todo siacutembolo de movimento

admirador dos antigos sem duacutevida ecoava ao longo de seus devaneios poeacuteticos o

Heraacuteclito da metaacutefora de um rio que nunca mais seria o mesmo Em 1840 chegou a

escrever a um amigo dizendo que ldquonatildeo em seus fins mas em sua transiccedilatildeo eacute grande o

homem e o mais verdadeiro estado mental em repouso converte-se em falsidaderdquo861

As imagens de um ceacuteu perfeito em sua imobilidade fixo como as estrelas mais

distantes alheio a toda loacutegica de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo e consumado pela evidecircncia

divina vinha chocar-se com a obsessatildeo protestante pela contagem do tempo Mas

para eles nuacutemeros positivos de mudanccedila soacute poderiam ser enunciados por uma alma

racional em eterno movimento o ceacuteu reformado natildeo era mais um ambiente de

descanso mas o espelho de uma eacutetica do trabalho endereccedilada ao aperfeccediloamento

constante A historicizacatildeo do cosmos natildeo se dava tampouco atraveacutes de um

movimento ciacuteclico e moralizador como um dia sonhara Cipiatildeo mas de um vetor

capaz de transcender a experiecircncia sublunar exonerando o agente empiacuterico da accedilatildeo e

assim produzindo progresso

No seacuteculo XVIII como vimos temos uma resposta catoacutelica ainda

conciliatoacuteria Bossuet exortava os protestantes a aceitarem a carta de Paulo aos

Hebraeus como ponte de inteligibilidade entre as duas margens do Reno No seacuteculo

XIX no entanto essas esperanccedilas pareciam um sonho distante e jaacute pouco nobre

859 Cantugrave retoma o ldquopaganismo renascentistardquo no Discours IX ndash Heacutereacutesie Scientifique et Litteacuteraire

principalmente pp 349-376 860 CATHERINE Albanese Corresponding Motion Transcedental Religion and the New America

Philadelphia Temple University Press 1977 principalmente pp 56-97 Citado por MCDANNELL

Collen LANG Bernhard Historia del Cielo De los autores biacuteblicos hasta nustros dias Taurus

Madrid 2001 p 504 obra da qual retiro agora algumas referecircncias 861 EMERSON RW Letters from Ralph Waldo Emerson to a Friend [Samuel G Ward c 1840]

1838-1853 Norton Charles Elliot Boston Haughton Mifflin 1899 p 30 apud MCDANNELL op cit

p 504

270

Cesar Cantugrave partiria para o ataque indo agravequilo que acreditava ser as raiacutezes do

protestantismo desbastando-as em meio aos pagos renascentistas Nesse sentido a

ldquolutardquo de Cantugrave relida no Brasil por Padre Maria poderia ser entendida como uma

tentativa de reafirmar a maacutexima medieval perfectio non in annis sed in animis862

Ora a perfeiccedilatildeo natildeo poderia ser contada pela passagem dos anos mas sentida no

movimento interior da alma que lembrava os pecados e ansiava pela salvaccedilatildeo Natildeo

havia contradiccedilatildeo portanto no fato de a Igreja Catoacutelica de finais do seacuteculo XIX

declarar-se ao mesmo tempo defensora dos progressos (tecnoloacutegicos) e campeatilde dos

costumes Como jaacute indicava o Borges da Histoacuteria da Eternidade conservar e criar

antagocircnicos na Terra podem muito bem ser sinocircnimos nos ceacuteus entre a Cidade dos

Homens e a Cidade de Deus o progresso e a conservaccedilatildeo deixavam de ser conceitos

antiteacuteticos ou assimeacutetricos

Franccedila 1794 No auge da revoluccedilatildeo o terror contava algumas dezenas de

milhares de viacutetimas Mas o assobio das guilhotinas natildeo era entretanto dirigido

apenas aos vivos o passado materializado em monumentos referentes ao Antigo

Regime reunia a fuacuteria de setores revolucionaacuterios Um ano antes a Assembleia

Nacional havia declarado natildeo ser mais crime destruiacute-los e incitados por grupos

jacobinos sans-cullottes saiacuteam agraves ruas dilapidando o bronze o maacutermore e todo tipo

de obras produzidas no uacuteltimo milhar de anos No 14 Fructidor do ano II da

ldquorepuacuteblica una e indivisiacutevelrdquo ndash lema jacobino que afirmava sua vitoacuteria frente ao

federalismo da gironda ndash aparece uma reaccedilatildeo a esse conjunto de eventos863 Era o 31

de outubro de 1794 e o abade Henri Greacutegoire (1750-1831) escreve um relato

endereccedilado agrave Convenccedilatildeo contendo um inventaacuterio da destruiccedilatildeo operada por aqueles

grupos

Junto ao documento o abade descrevia um conjunto de medidas relativas aos

ldquomeios de reprimiacute-losrdquo Tratava-se basicamente de uma defesa apaixonada dos

costumes ancestrais legado que cidadatildeos gostando ou natildeo era a memoacuteria de seus

pais de seus patriacutecios ainda uma heranccedila comum o ldquopatrimocircniordquo Greacutegoire

862 apud KOSELLECK 2002 p 224 863 Sobre o lema jacobino ver FOUCAULT Michel Microfiacutesica do Poder Graal Rio de Janeiro

1989 p 145

271

certamente natildeo vivia em um momento que desconhecesse a teacutecnica dos paralelos Ou

natildeo houve haacute mais de mil anos diria o abade um povo que cometeu esse tipo de

atrocidades contra a Cidade Eterna Esses eram os vacircndalos baacuterbaros germacircnicos

originaacuterios da fronteira norte do Impeacuterio que empurrados por outros povos

invadiram saquearam e pilharam a antes poderosa Roma864 Paralelo luminoso agrave

eacutepoca da revoluccedilatildeo evento que jaacute foi visto como uma uacuteltima querela ele no entanto

atribui agrave irracionalidade baacuterbara um ato que poderia ser lido como poliacutetico Atacar

monumentos obras de arte e mesmo bibliotecas como grifava o inventaacuterio de

Greacutegoire natildeo era um atentado contra agrave memoacuteria do antigo regime Natildeo seria demais

dizer que no relatoacuterio de 1794 o patrimocircnio ndash esse alterego da lembranccedila nos

dizeres de Hartog865 ndash estaacute para o vandalismo assim como a memoacuteria estaacute para o

esquecimento

O primeiro capiacutetulo desta tese conclui com os debates a respeito da elevaccedilatildeo

de personagens histoacutericos ao estatuto de patriacutecios da naccedilatildeo Mas apenas no ofiacutecio

comemorativo instacircncia de enunciaccedilatildeo da identidade nacional seria esperado que o

totem ciacutevico na expressatildeo de Carvalho natildeo antagonizasse ningueacutem Como veriacuteamos

mais tarde a proacutepria triacuteade ciacutevica que reuniria nos dizeres de Nabuco Tiradentes

Joseacute Bonifaacutecio e Benjamin Constant chegou a ser questionada Se refletindo a partir

de Maurice Halbwachs chegamos agrave compreensatildeo de que os grandes homens fazem as

vezes de deputados da identidade de quadros sociais da polecircmica com Marc Bloch

deveriacuteamos reter a comemoraccedilatildeo como momento de comunicaccedilatildeo geracional

Comunicaccedilatildeo pedagoacutegica de certo seu problema maior natildeo eram os maus alunos

mas o professor ao lado Inspirado por Renan que via na naccedilatildeo um ldquoplebiscito de

todos os diasrdquo pensei a agoniacutestica da memoacuteria coletiva a partir da candidatura e

eleiccedilatildeo dos grandes homens figuras que entre Carlyle Cousin e Emerson poderiam

ser entendidas como representantes de uma consciecircncia comum

Natildeo por acaso Eacutemile Durkheim viu nos ritos positivos dos selvagens da

Austraacutelia a oportunidade de reparaccedilatildeo moral de unir mais uma vez o indiviacuteduo agrave

coletividade Quem os oficiava ao imitar um totem natildeo era mais do que um bobo

864 GREacuteGOIRE Henri Rapport sur les destructions opeacutereacutees par le vandalisme et sur les moyens de le

reacuteprimer seacuteance du 14 fructidor lan second de la Reacutepublique une et indivisible suivi du Deacutecret de

la Convention nationale ([Reprod]) Convention nationale [reacuted] par Greacutegoire -[de lImpr nationale]

(Paris)-1794 Sobre o vandalismo revolucionaacuterio ver tambeacutem Baczko Bronislaw Vandalim In Furet

and Ozouf (eds) A Critical Dictionary of the French Revolution Cambridge Harvard University

Press 1989 pp 860-868 865 HARTOG 2013 passim

272

natildeo o mesmo Bobo de Herculano ainda assim uma testemunha de identidade e

alteridade Confiando nos ouvidos Durkheim ao escrever sobre costumes de povos

que jamais visitou antes que pudesse desagradar antropoacutelogos de geraccedilotildees posteriores

parecia irritar a alma de Poliacutebio Tanto Heroacutedoto ele natildeo teria encontrado um espelho

do ocidente em meio aos Warramunga e aos Arunta Algo como as formas

elementares do rito da eucaristia a partir do qual desde as cartas de Paulo o homem

consuma-se com a divindade Jaacute foi dito que eacute no ato da reparaccedilatildeo no tratamento da

doenccedila que ldquoo pensamento moral encontra-se com o projeto cientiacuteficordquo de Durkheim

Se a memoacuteria poderia ldquoconsertar a sociedaderdquo atraveacutes da commemoratio serviria ela

como fato social ldquotambeacutem para fazer ciecircnciardquo866 Isso natildeo seria exatamente comprar

o discurso do selvagem sobre a tribo mas do pastor sobre o rebanho

Eacutemile Durkheim recopilava bem o valor moral que a ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo

atribuiacutea em repertoacuterio compartilhado ao conceito de comemoraccedilatildeo Momento

reparador ele era tambeacutem um apelo agrave conciliaccedilatildeo coletiva O autor que procurava

Formas Elementares chegou a se perguntar se os chefes miacuteticos dos povos da

australia natildeo eram seres reencarnados Como heranccedila do espiritualismo republicano

francecircs jaacute tiacutenhamos a imagem que mais tarde uniraacute a velha commemoratio a outra

noccedilatildeo bem mais nova ideia que era pauta de discussotildees no Brasil de um projeto ou

concepccedilatildeo que objetivava oferecer ao paiacutes ldquouma identidade e uma imagem dele

mesmo () a ideia de naccedilatildeordquo 867

Do outro lado do Atlacircntico ldquoa revoluccedilatildeo natildeo era nada sem a revoluccedilatildeo

religiosardquo como diria Michelet em um momento dramaacutetico de sua obra Era hora

afinal de afirmar ldquouma lei da vidardquo dizer com pesar que ldquoela baixa caso natildeo

aumenterdquo E a revoluccedilatildeo natildeo havia aumentado ldquoo patrimocircnio de ideias vitaisrdquo legadas

pela filosofia iluminista Realizara alguma coisa aqui institucionalizara uma ideia laacute

mas no fundo acrescentara pouco de original E se natildeo contribuiu como deveria

866 ldquoNa ausecircncia da normalidade por exemplo quando ocorre a doenccedila deve intervir a ciecircncia afirma

Durkheim lsquoE aqui o pensamento moral se encontra com o projeto cientiacuteficorsquo Fica demonstrado em

consequecircncia que o conceito de fato social poderia bem servir para consertar a sociedade Mas serviria

tambeacutem para fazer ciecircnciardquo OLIVEIRA Maacutercio O conceito de representaccedilotildees coletivas uma

trajetoacuteria da Divisatildeo do Trabalho agraves Formas Elementares Debates do NER Porto Alegre Ano 13 n

22 JulDez 2012 p 75 A primeira citaccedilatildeo deve-se a COENEN-HUTHER Jacques Durkheim et

lacuteimpeacuteratif de reacuteduction de complexiteacute In CUIN Charles-Henry (sous la dirc) Durkheim dacuteun siegravecle

agrave lacuteautre PUF Paris 1997 p 125 867 CEZAR Temiacutestocles Lrsquoeacutecriture de lrsquohistoire au Breacutesil au XIX siegravecle Essai sur une rheacutetorique de

la nacionaliteacute Le cas Varnhagen Paris EHESS Tese de Doutorado 2002 pp 12-13

273

encontrava-se fadada agrave suspensatildeo e imoacutevel deixava transparecer possiacuteveis sinal de

corrupccedilatildeo

ldquoFecunda em leis esteacuteril em dogmas ela [a revoluccedilatildeo]

natildeo conteve a eterna fome da alma humana sempre

insaciada debilitada de Deus () Eh Bien Esses

terriacuteveis dramas esse horror esse sangue derramado

tudo aquilo natildeo satisfez o vazio infinito da alma

nacional Tudo a entediava igualmente ndash e ela

esperourdquo868

A alma nacional esperava entre olhares de teacutedio que as feridas da

conflagraccedilatildeo civil do sangue das guerras e das guilhotinas impingisse nos homens

algo aleacutem da discoacuterdia naturalizando-a enfim natildeo mais do que como uma cicatriz no

corpo da histoacuteria Eacute nesse instante que anseia pela conciliaccedilatildeo senatildeo jaacute pela

reparaccedilatildeo que uma revoluccedilatildeo religiosa remeteria agrave consumaccedilatildeo divina ao encontro

com o sublime na esperanccedila de salvar a ldquosubstacircncia francesardquo das memoacuterias do

terror A naccedilatildeo como alma seraacute uma imagem resgatada por Ernest Renan e como

vimos relacionada a um princiacutepio espiritual cindido entre um rico legado de

lembranccedilas e o desejo de viver junto Abaixo da lua como consciecircncia moral no

entanto a naccedilatildeo precisaria esquecer e do conflito entre memoacuterias coletivas nasce a

tarefa de harmonizaccedilatildeo ela mesmo conflituosa na reparaccedilatildeo identitaacuteria de uma

essecircncia originaacuteria de comeccedilos ficcionais que pinta a comemoraccedilatildeo nas cores

escolhidas no presente por uma geraccedilatildeo em luta contra o que considerava

corrompido869 Entre a coerecircncia do legado de lembranccedilas e o desejo de viver junto

entre passado e presente opta-se pelo segundo A comemoraccedilatildeo em seu imperativo

moral rogava pelo dever de esquecimento

Como vimos no segundo capiacutetulo no entanto antes que as vozes de Joaquim

Nabuco ou Ruy Barbosa pudessem calar diante da memoacuteria de suas proacuteprias lutas

868 ldquoCrsquoest une loi de la vie elle baisse si elle nrsquoaugmente () La Reacutevolution nrsquoaugmentait pas le

patrimoine drsquoideacutees vitales que lui avait leacutegueacutees la philosophie du siegravecle Elle reacutealisait en institutions

une partie de ces ideacutees mais elle y ajoutait peu Feacuteconde en lois steacuterile em dogmes elle ne contenait

pas lrsquoeacuteternelle faim de lrsquoacircme humaine toujours affameacutee alteacutereacutee de Dieu () Eh bien Ces drames

terribles cette horreur ce sang verseacute tout cela ne remplissait pas le vide infini de lrsquoacircme nationale

Tout lrsquoennuyait eacutegalement ndash et elle attendaitrdquo MICHELET Jules Histoire de la Reacutevolution Franccedilaise

T 7 Paris Abel Pilon 1869 p 168-169 Grifos meus 869 Sobre a ideia de naccedilatildeo como ficccedilatildeo oitocentista ver THIESSE Anne-Marie Ficccedilotildees criadoras as

identidades nacionais Anos 90 Porto Alegre n 15 p7-23 20012002 THIESSE Anne-Marie 1999

Tambeacutem CARVALHO Joseacute Murilo de Brasil naccedilotildees imaginadas In Pontos e Bordados Escritos

de Histoacuteria e Poliacutetica Belo Horizonte Editora da Universidade Federal de Minas Gerais 1998

principalmente pp 232-236

274

elas fariam escutar em alto tom a catalizaccedilatildeo de discursos morais Todas as

proviacutencias afinal chegavam a trazer oblaccedilotildees agrave memoacuteria dos abolicionistas

transubstanciando seu acircmago no ldquocoraccedilatildeo impessoal da paacutetriardquo A imagem da

decadecircncia moral encontra no repertoacuterio da geraccedilatildeo de 1870 aquelas relacionadas agraves

criacuteticas da escravidatildeo Da Alemanha de Mommsen agrave Ameacuterica de Goldwin passando

pela Franccedila de Condorcet o trabalho servir era visto da mesma forma que um dia

pensara o primeiro Bonifaacutecio como um misto de crime e de doenccedila A lei da alforria

no entanto natildeo parece ter abolido o diagnoacutestico de uma crise moral nem sequer o

tracircnsito ndash via geraccedilatildeo de 1870 lusitana ou mesmo da obra de um uacuteltimo e influente

Spencer ndash das noccedilotildees de decadecircncia e retrogradaccedilatildeo O mesticcedilo moral de Silvio

Romero certamente de tudo um pouco absorvia e se teriacuteamos que esperar o espaccedilo de

uma nova geraccedilatildeo em 22 para uma resposta antropofaacutegica seu caraacuteter oitocentista jaacute

mostrava-se fascinado pela dialeacutetica celeste que tambeacutem pensava em corrupccedilatildeo Seraacute

que o Brasil como que emulando o movimento aparente do planeta marte poderia

em um periacuteodo de ldquoluctas sangrentas e de desvarios lamentaacuteveisrdquo andar para traacutes

Pretendi ler essa questatildeo nas entrelinhas do ofiacutecio ldquootimistardquo proposto pela

autoproclamada geraccedilatildeo de 1900 para as comemoraccedilotildees daquele ano No palanque

muito se falava em progresso Nos bastidores sussuravam as vozes de toda uma

toacutepica decadentista Agrave consciecircncia da aceleraccedilatildeo do tempo somava-se uma leitura do

mundo que percebia resultados do progresso no filtro de uma desordem moral Era o

fim do regalismo e padres de alta hierarquia corriam para a tribuna do IHGB e do

grupo do Centenaacuterio Se espiacuteritas e protestantes pareciam mais preparados para

acreditar no ldquoprogresso da natureza humanardquo o repertoacuterio de padre Juacutelio Maria dava

outras respostas para o misteacuterio da perfeiccedilatildeo consumando-a como acordavam

Bossuet e Cantugrave ainda na Nova Alianccedila Era preciso reparar esse elo quebrado nos

anos do Impeacuterio pela submissatildeo da Igreja ao Estado periacuteodo da ldquodecadecircncia da

religiatildeordquo E se em Tayne a moral era um produto como o sulfato e o accedilucar ela

poderia muito bem ser recolocada no rumo de seu lugar natural

Paulo Frontin em um relato mais modesto sintetizaria as aspiraccedilotildees e temores

do projeto de 3 de maio que tambeacutem era uma concepccedilatildeo de naccedilatildeo Em seu discurso

registrado no Livro do Centenaacuterio incapaz de ver o Brasil no iacutendio ndash em uma tradiccedilatildeo

que os lia como inconstantes e por isso de certo desqualificados para marchar no

ritmo do progresso ndash o engenheiro exortava sua assimilaccedilatildeo pelo Estado Se natildeo

puder fazecirc-lo caberia em nome da evanescecircncia do mal exterminaacute-los Somada agrave

275

heranccedila liberal que julgava vaacutelido esquecer natildeo apenas a escravidatildeo mas a proacutepria

luta abolicionista poderia-se ler o ofiacutecio de um sacrifiacutecio ciacutevico isso caso aceitemos

as evidecircncias de que sua praacutetica enunciava uma representaccedilatildeo de um processo jaacute em

andamento como se a acelaraccedilatildeo do tempo fizesse as accedilotildees antecipar palavras A

ldquoraccedila amanterdquo e a ldquoraccedila nativardquo soacute poderiam ser brasileiras a partir da celebraccedilatildeo de

uma memoacuteria branca e europeacuteia

Enquanto isso o IHGB mantinha suas vozes independentes da organizaccedilatildeo do

Centenaacuterio pouco isoladas em debates acalorados sobre a matildeo de Deus guiando

Cabral timidas defesas do indianismo saquarema e querelas internas dos padres

contra tudo que chamavam de ldquomaterialismordquo Contribuiacutendo ao debate a respeito do

Jubileu Nacional um novato pocircde compilar as opiniotildees de um velho mestre lanccedilando

municcedilatildeo contra a data escolhida para o ofiacutecio do quadricentenaacuterio O tempo novo o

22 de abril seria a contribuiccedilatildeo da memoacuteria disciplinar de uma historiografia

monarquista da erudiccedilatildeo dos expoentes do IHGB que desacreditaria o polissecircmico 3

de maio em nome das normas do ofiacutecio do dever do historiador ou da reparaccedilatildeo da

verdade de seu objeto

A polecircmica do 3 de maio remete-nos ao problema do calendaacuterio ao tempo

novo da repuacuteblica mas tambeacutem agrave velha ordem lida nas estrelas Eacute na onda dos

centenaacuterios do final do seacuteculo XIX que conceitos de efemeacuterides e comemoraccedilotildees

tornam-se sinocircnimos imperfeitos No terceiro capiacutetulo vimos como as efemeacuterides na

geraccedilatildeo de Poliacutebio jaacute inscritas como um subgecircnero da histoacuteria designavam tambeacutem

em seu sentido grego narrativas dia-a-dia Eram registros diaacuterios dos feitos dos

homens mas tambeacutem do curso das estrelas Seria possiacutevel unir as duas praacuteticas de

certa maneira oferecendo uma saiacuteda indireta para o claustro particular ao qual o

capiacutetulo 9 da poeacutetica de Aristoacuteteles havia relegado a histoacuteria

Caso se respondesse positivamente no entanto essa seria uma histoacuteria que ao

se tornar superior escaparia para fora de si mesma refugiando-se em um mundo de

eternas revoluccedilotildees e de conjecturas de futuro lidas nos ceacuteus Os genethliaci dos quais

nos falava Agostinho unindo a filosofia moral agrave filosofia natural tornavam-se

conselheiros Para o saacutebio de Hipona no entanto essa natildeo era uma credencial

aceitaacutevel uma vez que o historiador deveria se pautar pela fidelidade de sua narraccedilatildeo

E como aceitar uma arte tatildeo incerta e aleacutem de tudo parcamente comemorada na

biacuteblia

276

Entre profecias e periodizaccedilotildees no entanto o cocircmputo astroloacutegico do

movimento das estrelas oferecia uma cronologia Com a escolaacutestica a fiacutesica de

Aristoacuteteles eacute retomada e a noccedilatildeo de que a natureza eacute sempre causa de ordem vai ler

nas efemeacuterides a medida numeacuterica da mudanccedila As vicissitudes podem ser lentas ou

raacutepidas e o tempo ajustado pelo grande reloacutegio celestial seraacute sempre o mesmo

servindo de reacutegua e controle A novidade em Satildeo Tomaacutes relacionava-se precisamente

ao problema de sua contagem mesmo que natildeo houvesse uma soacute alma humana na

Terra para medir a mudanccedila sempre existiraacute agravequela do fundador a administrador da

ordem do tempo Assim ao tempo submisso aos ciclos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo

sobrepunha-se a eternidade reino divino da perfeiccedilatildeo existindo ainda uma categoria

intermediaacuteria o aevum no qual Igreja e mesmo Estados ndash ideias consumadas em

Deus mas executadas em um plano inferior ndash modificam-se sem contudo alterar suas

substacircncias

Teacutecnicas cronosoacuteficas como o cocircmputo astroloacutegico das efemeacuterides

desenvolveram-se e se fizeram divulgar na esteira do retorno aos textos de Ptolomeu

no intercacircmbio com bizacircncio do desenvolvimento das observaccedilotildees celestes e da

popularizaccedilatildeo da imprensa O seacuteculo XVI tambeacutem a era da reforma e das guerras

religiosas foi marcado como vimos por episoacutedios de comoccedilatildeo causados pelos

prognoacutesticos e asserccedilotildees calculados atraveacutes das tabelas de movimentos estelares

Quando o diluacutevio natildeo veio o proacuteprio cosmos peripateacutetico jaacute parecia fazer aacutegua Uma

lenta mudanccedila de praacutetica no entanto deveria dar conta da crise de suas

representaccedilotildees O descompasso entre as esferas perfeitas da filosofia antiga e um

corpo celeste selenografaacutevel evidenciada pela arte telescoacutepica e transmitido ao

mundo letrado como se fosse uma mensagem das estrelas foi ainda seguido por

leituras prognoacutesticas do anuacutencio de uma dinastia italiana na Franccedila junto agrave descoberta

das luas mediacuteceas

A palavra impressa fazia circular novidades sobre a terra e sobre os ceacuteus Era

como se logo abaixo das esferas celestes uma esfera puacuteblica tendesse a se agitar em

resposta agrave influecircncia superior A disponibilidade de registros de atividades celestes

unia-se nos primeiros almanaques agraves fabulas aos fait divers agraves notiacutecias locais e aos

progoacutesticos Como indiquei ao final do terceiro capiacutetulo entre Louis Le Roy e Padre

Antocircnio Vieira a percepccedilatildeo de uma aceleraccedilatildeo dos ciclos naturais era acompanhada

de leituras que decodificavam nos astros sinais inscritos em textos autoritativos e

como um ldquobeco sem saiacutedardquo essa praacutetica chegou ao insight de uma possiacutevel desordem

277

na ordem natural peripateacutetica A escatologia daiacute derivada como modelo retoacuterico para a

soluccedilatildeo do impasse descreve os limites de um futuro que natildeo pocircde ser mais do que

uma antecipaccedilatildeo traacutegica de expectativas ancestrais malograda a tentativa de Vieira

em anunciar um Quinto Impeacuterio

Entre as rachaduras da antiga ordem natural observamos todo um conjunto de

praacuteticas que retomando modelos antigos criando pela imitaccedilatildeo e jogando com suas

foacutermulas editoriais vinham evidenciar no conflito de suas experiecircncias uma nova

relaccedilatildeo com o tempo A emergecircncia ainda tiacutemida mas presente em Louis le Roy da

ideia de que podem haver progressos acompanha no seacuteculo XVI de Montaigne a

elevaccedilatildeo da periodizaccedilatildeo por seacuteculos Incentivado pela cronologia da primeira

modernidade o bloco de cem anos comemorado nos jubileus catoacutelicos desde 1300

assumiriam caraacuteter explicativo jaacute no Seacuteculo de Luiacutes XIV com as primeiras filosofias

da histoacuteria

Se do outro lado do Reno a teologia protestante ignorando as epiacutestolas de

Paulo natildeo possuiria grandes entraves agraves imagens de uma alma que progride entre os

dois lados do canal percebemos no pragmatismo de Locke e Voltaire sua associaccedilatildeo

direta agrave memoacuteria Esse curto-circuito permitiria que o priacutencipe das letras saudasse a

crenccedila na doutrina da transmigraccedilatildeo como princiacutepio da manutenccedilatildeo dos costumes

como se os povos e suas plebes que precisam acreditar em algo para se manter em

ordem pudessem conquistar a identidade pelas vias de uma faacutebula

No quarto capiacutetulo vimos como nesse meio tempo as efemeacuterides retomam seu

sentido de diaacuterio ou narrativa dia-a-dia recolhendo experiecircncias individuais e mesmo

coletivas logo dicionarizando-se por vezes como sinocircnimos de um novo publicismo

Esse primeiro jornalismo das gazetas e almanaques que nos conflitos internos

ingleses natildeo deixavam de flertar com o uso de prognoacutesticos astroloacutegicos vatildeo no

periacuteodo preacute-revolucionaacuterio francecircs interferir em uma esfera puacuteblica atraveacutes da crenccedila

no poder da influecircncia de seus escriacutetos sobre o ldquoespiacuterito nacionalrdquo Era o momento em

que a percepccedilatildeo anterior de uma crise natural daacute lugar agrave evidecircncia da aceleraccedilatildeo do

tempo Os correspondentes da repuacuteblica das letras relegariam as efemeacuterides

astroloacutegicas os sarrabais e almanaques ao uacuteltimo degrau do gecircnio literaacuterio A

evidecircncia eacute clara tanto na Cyclopedia inglesa quanto Encyclopeacutedie de Diderot e

drsquoAlembert que fazem menccedilatildeo apenas agraves praacuteticas astronocircmicas associadas a elas870

870 Veja-se CHAMBERS Ephraim Cyclopaeligdia or An universal dictionary of arts and sciences

containing the definitions of the terms and accounts of the things signifyd thereby in the several arts

278

No seacuteculo das luzes Condorcet jaacute poderia redigir que considerando-se o

desenvolvimento das faculdades humanas seguidas ldquode geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo seria

possiacutevel apresentar ldquoum quadro do progresso do espiacuterito humanordquo Progresso

submetido agraves ldquomesmas leis gerais que observamos no desenvolvimento individual de

nossas faculdadesrdquo esse seria um ldquoquadro histoacutericordquo formado a partir da ldquoobservaccedilatildeo

sucessiva das sociedades humanas entre as diferentes eacutepocas que elas percorreramrdquo871

O otimismo de Condorcet que natildeo deixava espaccedilos para a retrogradaccedilatildeo era em certa

medida compartilhado pelo abade de Mably Para Gabriel Bonnot como vimos os

costumes e mesmo as raccedilas jaacute estavam submetidos agrave ordem do tempo de modo que

na Assembleia Nacional argumentos reacionaacuterios de que a nobreza francesa

antecedia o sistema feudal eram silenciados com um breve bordatildeo revolucionaacuterio

ldquoLeia Mablyrdquo872

Junto a Voltaire com seus proacuteprios repertoacuterios de questotildees e criacuteticas eacute

precisamente Mably quem vai polemizar com os fisiocratas reunidos em torno da

sugestivamente intitulada revista Efemeacuterides do Cidadatildeo Contra uma nova ordem da

natureza apregoada em obras referenciais tanto o pai da expressatildeo ldquofilosofia da

histoacuteriardquo quanto o historiador dos paralelos entre romanos e franceses abriram

both liberal and mechanical and the several sciences human and divine the figures kinds

properties productions preparations and uses of things natural and artificial the rise progress

and state of things ecclesiastical civil military and commercial with the several systems sects

opinions ampc among philosophers divines mathematicians physicians antiquaries criticks ampc the

whole intended as a course of antient and modern learning1728 Entrada ldquoEphemeridesrdquo ou

ldquoEphemerisrdquo pp 320 DIDEROT Denis Encyclopeacutedie ou Dictionnaire raisonneacute des sciences des arts

et des meacutetiers recueilli des meilleurs auteurs et particuliegraverement des dictionnaires anglois de

Chambers dHarris de Dyche etc par une socieacuteteacute de gens de lettres mis en ordre et publieacute par M

Diderot et quant agrave la partie matheacutematique par M dAlembert Dix volumes in-folio dont deux de

planches () Paris 1751 Bibliothegraveque nationale de France deacutepartement Litteacuterature et art FOL-Q-559

Entrada ldquoEacutepheacutemeacuteridesrdquo 871 Mais si lrsquoon considegravere ce mecircme deacuteveloppement das ses reacutesultats relativement agrave la masse des

individus qui co-exitent dans le mecircme temps sur um espace donneacute et si on le suit de geacuteneacuterations em

geacuteneacuterations il preacutesente alors le tableau des progregraves de lrsquoesprit humain Ce progregraves est soumis aux

mecircmes lois geacuteneacuterales qui srsquoobservent dans le deacuteveloppement individuel de nos faculteacutes () Ce tableu

est donc historique puisque assujeacuteti agrave de perpeacutetuelles variations il se forme par lrsquoobservation

successive des socieacuteteacutes humaines aux diffeacuterentes eacutepoques qursquoelles ont parcourues Il doit preacutesenter

lrsquoordre des changements exposer lrsquoinfluence qursquoexerce chaque instant sur celui qui le remplace () Tel

est le but de lrsquoouvrage que jrsquoai entrepris et dont le reacutesultat sera de montrer par le raisonnement et par

les faits qursquoil nrsquoa eacuteteacute marqueacute aucun terme au perfectionnement des faculteacutes humaines que la

perfectibiliteacute de lrsquohomme est reacuteelement indeacutefinie que le progregraves de cette perfectibiliteacute deacutesormais

indeacutependante de toute puissance qui voudroit les arrecircter nrsquoont drsquoautre terme que la dureacutee du globe ougrave

la nature nous a jeteacutes Sans doute ces progregraves pourrons suivre une marche plus ou moins rapide mais

jamais elle ne sera reacutetrograde du-moins tant que la terre occupera la mecircme place dans le systecircme de

lrsquounivers () CONDORCET Esquisse drsquoun tableau historique des progregraves de lrsquoesprit humain Suivie

de reacuteflexions sur lrsquoesclavage des negravegres Paris Masson et fils 1822 p 2-4 872 BAKER K M A Script for a French Revolution The Political Consciousness of the abbeacute Mably

In Inventing the French Revolution Essays on French Political Culture in the Eighteenth Century

Cambridge Cambridge University Press 1990 p 105

279

combate contra um grupo que em opiniatildeo ecoada por Adam Smith natildeo era mais do

que um seacutequito religioso A diatribe das efemeacuterides tambeacutem evidencia jaacute na resposta

das cortes uma tentativa de naturalizaccedilatildeo do passado nacional atraveacutes da vontade

poliacutetica de uma memoacuteria absolutista ao lado dos protestos da erudiccedilatildeo histoacuterica e dos

anseios de um sentido filosoacutefico e sinoacuteptico do tempo Dessa forma a polecircmica

representou em todos os planos uma batalha de memoacuteria

No periacuteodo revolucionaacuterio as fontes encontram nas Efemeacuterides de Noumlel um

modelo que seraacute bastante influente Fechado no ciacuterculo de um grande ano nelas a

histoacuteria universal desenrola-se pontuada por episoacutedios organizados pelos meses e dias

em que ocorreram Com a restauraccedilatildeo eacute no publicismo reacionaacuterio de Cyprien

Desmarais que constatamos a uniatildeo das efemeacuterides com o ofiacutecio dos grandes homens

Luiacutes XVIII eacute apresentado solenemente agrave histoacuteria como que predestinado a tornar-se o

capiacutetulo inicial e iacutendice balizador de toda a marcha de um seacuteculo nascente Derrotado

pela historiografia liberal contra a qual declarava guerra o moralismo de Desmarais eacute

tambeacutem um relato mais modesto das percepccedilotildees de uma geraccedilatildeo de derrotados como

Chateaubriand e Tocqueville a qual enunciava os sintomas de uma crise do tempo

marcada pela dissoluccedilatildeo dos sistemas antigos

No Brasil do IHGB a tarefa de redigir efemeacuterides encontra os obstaacuteculos da

escrita do tempo presente tiacutepicos de uma historiografia que amarrada pela monarquia

a um projeto de naccedilatildeo reluta em aceitar da mesma maneira esse misto de profecia e

periodizaccedilatildeo esboccedilado nas teacutecnicas cronosoacuteficas Falar do futuro da memoacuteria era um

expediente arriscado sobretudo em um paiacutes de proporccedilotildees continentais em risco

constante de secessatildeo No segundo reinado periacuteodo de maior estabilidade poliacutetica

aparecem algumas efemeacuterides regionais no que pese a resistecircncia do Instituto em

financiar algo que nesse preciso momento comeccedila a ser visto como o ofiacutecio

comemorativo de proviacutencias antes revoltosas Natildeo sem argumentos os mestres do

IHGB associam o gecircnero agraves folhas diaacuterias sentido presente com clareza nos

repertoacuterios do conceito de efemeacuteride ao menos desde a primeira modernidade

Certa atribuiccedilatildeo de prestiacutegio agraves efemeacuterides como ldquomateacuteria bruta da histoacuteriardquo

poderia ser lida na obra do Baratildeo de Rio Branco Originalmente publicadas na

imprensa as Efemeacuterides Brasileiras viriam chancelar o 22 de abril afastando a

cacofonia de significados presentes na escolha do 3 de maio como comemoraccedilatildeo

nacional pelo grupo do Centenaacuterio Elevado agrave presidecircncia do IHGB o maior

diplomatada brasileiro permitiria a conciliaccedilatildeo de personagens como Ramiz Galvatildeo e

280

Max Fleiuss que se durante o Jubileu Nacional pareciam ocupar trincheiras opostas

ao celebrar memoacuterias coletivas em conflito poderiam como narrou Luacutecia Paschoal

Guimaratildees apenas um pouco mais tarde formar junto a Afonso Celso a nova trindade

do silogeu De todo modo reunindo nobres por concessatildeo papal junto agrave catoacutelicos

convictos no papel da providecircncia o IHGB apoacutes 1907 jaacute seria nas palavras de Ramiz

Galvatildeo o ldquoAreoacutepago ilustrerdquo referecircncia agraves colina de Ares no qual por volta da

metade do seacuteculo I Satildeo Paulo debatia a boa nova e a promessa de ressurreiccedilatildeo dos

mortos com os filosofos atenienses873

Uma moral e uma cosmologia a traduccedilatildeo dos conceitos de comemoraccedilatildeo e

efemeacuteride em sinocircnimos imperfeitos acompanha o impacto dos centenaacuterios em praias

brasileiras O ofiacutecio comemorativo tarefa de uma ldquogeraccedilatildeordquo viria encontrar respaldo

em experiecircncias intelectuais compartilhadas Wilhelm Dilthey jaacute desnaturalizava o

conceito relacionando-a agraves eras e agraves eacutepocas que seguindo uma regra geral eram

caracterizadas por ldquotendecircncias que as permeiamrdquo874 Mais tarde Karl Mannheim vai

falar em geraccedilotildees como ldquogrupos concretosrdquo constituiacutedos pela memoacuteria de eventos

histoacutericos vivenciados ao longo de periacuteodos de formaccedilatildeo lembranccedilas que

possibilitam esses grupos a natildeo apenas aceitar valores caracteriacutesticos comuns mas

igualmente responder a novas situaccedilotildees e impressotildees a partir de seus filtros875 Por

sua vez Yves Renouard falaria em geraccedilotildees enquanto ldquogrupo de homens e mulheres

cujas ideias sentimentos e modos de vidardquo mostrariam-se os mesmos em termos

873 Sobre o providencialismo no IHGB de iniacutecios do seacuteculo XX assim como as menccedilotildees de Ramiz

Galvatildeo ao ldquoAreoacutepago ilustrerdquo retomo GUIMARAtildeES LMP 2007 principalmente cap 1 pp 61-63

Para os debates de Satildeo Paulo ver Atos 1724 874 DILTHEY W The Formation of the Historical World in the Human Sciences Vol 3 Selected

Works Princeton Princeton University Press 2002 p 198 Michel Winock lembra ao ler outra obra de

Dilthey que para o historiador alematildeo ldquoa geraccedilatildeo existe apenas para um pequeno nuacutemerordquo de pessoas

ligadas em um ldquotodo homogecircneordquo e dependentes de uma mesma cadeia de eventos e modificaccedilotildees que

ocorrem em um espaccedilo de tempo comum WINOCK Michel Les geacuteneacuterations intellectuelles In

Vingtiegraveme Siegravecle Revue dhistoire Ndeg22 avril-juin 1989 p 17 875 MANNHEIM Karl The sociological problem of generations in Essays on the sociology of

knowledge New York Oxford Universi8ty Press 1952 [1928] Principalmente pp 286-320

281

fiacutesicos intelectuais e morais 876 Natildeo seria um grande salto para Pierre Nora

retomando a uacuteltima definiccedilatildeo incluiacute-la no acircmbito dos ldquolugares de memoacuteriardquo877

Uma geraccedilatildeo pode ser entatildeo entendida como um grupo dotado de um espaccedilo

de experiecircncias formadoras comuns compartilhando repertoacuterios intelectuais e morais

Nesse caso ela seria tambeacutem um lugar de enunciaccedilatildeo da memoacuteria coletiva de um

quadro social Mesmo que diferentes ldquopontos de vistardquo para usar a expressatildeo de

Halbwachs aflorem nas memoacuterias individuais individuais a coerecircncia dos discursos

deveria manter-se perceptiacutevel No caso do grupo do Centenaacuterio ndash a autoproclamada

ldquogeraccedilatildeo de 1900rdquo ndash a correlaccedilatildeo de valores relacionava-se a um projeto editorial que

era ao mesmo tempo um projeto de naccedilatildeo Ideia que era devedora de ao menos todo

um seacuteculo de debates e querelas e que possuia em sua pauta como heranccedila particular

o esquecimento dos negros e a assimilaccedilatildeo ou extermiacutenio dos iacutendios

Se natildeo tivemos como lembra Temiacutestocles Cezar uma querela entre antigos e

modernos no Brasil Rodrigo Turin pocircde recentemente falar na existecircncia de uma

ldquoquerela sobre o selvagemrdquo878 O historiador refere-se com essa expressatildeo a toda

uma seacuterie de debates ocorridos por volta das deacutecadas de 1840 e de 1860 entre os

defensores da catequese preocupados com a dinacircmica da ldquodecadecircnciardquo de uma

civilizaccedilatildeo que consideravam algo como antiga e os que negavam sua validade ao

representar os selvagens como povos incapazes de abandonar o estado de natureza

Turin retoma a polecircmica entre Varnhagen ndash o qual nunca demonstrou apreccedilo pelos

nativos ndash e Gonccedilalves de Magalhatildees interessado com seus Indiacutegenas do Brasil

perante a Histoacuteria no tracejo de paralelos entre antigos e selvagens Para o uacuteltimo o

estado dos gentios da terra natildeo era resultado de uma natureza inferior ou inconstante

mas da ldquodecadecircncia a que se acham reduzidos os que por esses sertotildees se

refugiaramrdquo879

O debate nos remete ao pequeno tratado de Von Martius Como se deve

escrever a histoacuteria do Brasil o qual nas palavras de Manoel Salgado Guimaratildees

876 RENOUARD Yves La notion de geacuteneacuteration en histoire Revue historique ndeg 1 1953 apud

BURGUIEgraveRE Andreacute Les rapports entre geacuteneacuterations un problegraveme pour lhistorien In

Communications 59 1994 Geacuteneacuterations et filiation p 15 877 NORA Pierre La Geacuteneacuteration In Les Lieux de Meacutemoire Tomo III Paris Gallimard 1984 p 938 878 CEZAR Temiacutestocles Anciens Modernes Sauvages et lrsquoeacutecriture de lrsquohistoire au Breacutesil au xixe

siegravecle Le cas de lrsquoorigine des Tupis Anabases 8 2008 pp 43-65 TURIN Rodrigo Os antigos e a

naccedilatildeo algumas reflexotildees sobre os usos da antiguidade claacutessica no IHGB (1840-1860) In LrsquoAtelier du

Centre de recherches historiques 07 | 2011 URL disponiacutevel em httpacrhrevuesorg3748 Acesso

em 5 de maio de 2014 879 MAGALHAtildeES D J Gonccedilalves Os indiacutegenas do Brasil perante a Histoacuteria RIHGB Tomo XXIII

1860 p 51 apud TURIN op cit p 25

282

parecia ldquofornecer as pistas que permitiratildeo a elaboraccedilatildeo de uma narrativa dotada de um

enredo delineando com isso uma fisionomia da proacutepria naccedilatildeordquo880 Fisionomia cuja

geneacutetica era classificada por raccedilas e como vimos raccedilas que jaacute possuiam cor Como

escreveu Cezar Martius foi ldquoum dos primeiros talvez ateacute o principal precursor a

tentar resolver antes do movimento abolicionista de 1870 o lsquoproblema

epistemoloacutegicorsquo que representava o escravismo no Brasil ()rdquo881 O amaacutelgama das

trecircs raccedilas mesmo que moderados pela supremacia da cor ldquointeligenterdquo era celebrado

como positivo Quanto agrave perfecibilidade dos iacutendios no entanto seu ponto de vista

ainda eacute alvo de controveacutesias Se no relato de sua viagem Martius e Spix afirmavam

lastimavelmente natildeo concordarem com ldquoa opiniatildeo geral acerca da perfectibilidade da

raccedila dos Pele Vermelhasrdquo em Como se deve escrever a histoacuteria o naturalista dizia

que ldquoum historiador que mostra desconfiar da perfectibilidade de uma parte do gecircnero

humano autoriza o leitor a desconfiar que ecircle natildeo sabe colocar-se acima de vistas

parciais ou odiosasrdquo882

Em uma correspondecircncia endereccedilada a um cleacuterigo protestante cogitado como

tutor de seu uacutenico filho Martius no ano de 1848 deixava transparecer como a

questatildeo da perfectibilidade ndash esse movimento de aprimoraccedilatildeo da alma ndash o havia

atormentado ao longo dos anos O jovem declarava-se espiritualmente comprometido

com a elevaccedilatildeo constante de sua alma postura que o naturalista elogiava afinal

quem aos 23 ou 24 anos natildeo deveria buscar ainda o caminho da retidatildeo Quem

naquela tenra idade seria capaz de declarar-se ldquotatildeo consumado que poderia prometer

nada mais mudar em suas opiniotildees a respeito da essecircncia de nossa natureza e de nosso

propoacutesito espiritualrdquo Era necessaacuterio ponderava Martius que um jovem protestante

possuiacutesse um contrapeso ldquoum ponto de equiliacutebrio contra a inquieta e centriacutefuga

atividade espiritualrdquo ldquoNatildeo apenasrdquo continuava ldquouma crenccedila geral e filosoacutefica em

Deus mas uma feacute cristatilde mais especiacuteficardquo Ao final o cientista admitiria que ldquoo

testemunhordquo da carta ldquolembrou-me de minhas proacuteprias batalhas e levou-me agraves

laacutegrimas mas nesse quesito natildeo deixou minha mente descansarrdquo883

880 GUIMARAtildeES M L S Histoacuteria e natureza em Von Martius esquadrinhando o Brasil aacutera

construir a naccedilatildeo Histoacuteria Ciecircncias Sauacutede v 7 n 2 Jul-out- 2000 p 406-407 881 CEZAR Temiacutestocles Como deveria ser escrita a histoacuteria do Brasil no seacuteculo XIX Ensaio de

histoacuteria intelectual In Histoacuteria cultural experiecircncias de pesquisa PESAVENTO Sandra Jatahy (org)

Porto Alegre Editora da UFRGS 2003 p 184 882 Ver CEZAR 2003 nota 56 pp 191-193 para as referecircncias completas acerca dessa discussatildeo 883 ldquoYou manifest the fermentative elements of a youthfully zealous spirit interested in reform In and

of itself I can find no criterion by which this would prove unsuitable for that which I am seeking For

who is to say that a young man of 23 or 24 years should not still rank among the seekers Indeed who

283

Anos mais tarde ao falar sobre os iacutendios o discurso de Paulo Frontin no 3 de

maio parecia ecoar as longas querelas do seacuteculo que terminava Entre uma tradiccedilatildeo

que via os selvagens como inconstantes ndash algo incapazes de sair de seu estado de

natureza e assumirem a cadecircncia do progresso da naccedilatildeo ndash e outra que os percebia

como decadentes ndash sujeitos agrave reparaccedilatildeo moral ndash o engenheiro oferecia duas soluccedilotildees

Caso fossem eles fragmentos de uma civilizaccedilatildeo perdida oacuterfatildeos em situaccedilatildeo de

dissoluccedilatildeo moral e civil poderiam ser assimilados Estivessem fora da histoacuteria

eternamente envoltos em seus ciclos de vinganccedila caberia eliminaacute-los Em todos os

casos em 1900 o iacutendio natildeo fazia parte do projeto de naccedilatildeo

No repertoacuterio da segunda escolaacutestica o problema da perfectibilidade era

indissociaacutevel do debate teoloacutegico a respeito do destino das almas Cesar Cantugrave como

vimos chegava a atribuir agrave noccedilatildeo o estatuto de uma heresia No Brasil imaginado por

Padre Maria a comemoraccedilatildeo deveria prestar tributos natildeo a conceitos de movimento

como progresso mas em primeiro lugar agrave consumaccedilatildeo das almas com Deus

Deliberando pela reparaccedilatildeo de uma ordem natural cristatilde era possiacutevel alimentar a ideia

de uma naccedilatildeo que mesmo sujeita aos ciclos de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo fosse dotada de

uma substacircncia perfeita Como se natildeo possuiacutesse em sua essecircncia um anterior e um

posterior e como se as mudanccedilas sentidas em seu corpo fossem tatildeo somente

modificaccedilotildees ocasionais essa seria uma naccedilatildeo quase eterna Flutuando no tempo

intermediaacuterio do aevum ela estaria sempre pronta ao primeiro sinal de corrupccedilatildeo a

atender o chamado comemorativo e reparador de uma nova geraccedilatildeo Uma naccedilatildeo

assim mudaria apenas para se manter a mesma criando no compasso da conservaccedilatildeo

at that age has already declared himself to be so consummate that he could promise to change nothing

more in his views on the essence of our nature and our spiritual purpose And yet there is one thing

from the description that you present me of your spiritual life dear Sir which must be clear between us

before I could entrust my only son to you with confidence A certain exuberant striving - a general

inclination to that which is far away the unknown probably for the most part the unknowable - is

found in all highly gifted pure masculine temperaments But it must - at least I think so of a young

protestant clergyman - have a counterweight a balance against that restless centrifugal spiritual

activity not simply in a general philosophical belief in God but in a quite specific Christian faith I

will not conceal it from you the testimony of your letter reminded me of my own battles and brought

me to tears but on that one matter it has not yet set my mind at restrdquo MARTIUS Karl Friedrich von

Autograph letter signed Editorial Munich 1848 4 paacuteginas Traduccedilatildeo para o inglecircs disponiacutevel em

httpwwwiberlibrocomAutograph-letter-signed-4pp-Martius-Karl55864117bd

284

Referecircncias bibliograacuteficas

Fontes primaacuterias

AGENOT Marc Le centenaire de la reacutevolution 1989 La documentation

franccedilaise 1989 Direction de la documentation franccedilaise Collection ldquoLes meacutedias et

lrsquoeacuteveacutenementrsquo BNF Paris [8-g-23517]

ALLESTREE Richard A New Almanach for Prognostication for the yeere of

our Lord God 1629 and from the creation 5591 being the first frō leap-yeere

calculated and properly referred to the longitude amp sublimity of the pole articke of 52

amp 53 deg London Printed for the Company of Stationers 1628

ANDREAS Prediction merveillevse Du Sieur Andreas Astrologue amp

Mathematicien de Padouumle Sur lrsquoEclipse de Soleil qui se ser ale douziesme iour

drsquoAoust MDCLIV Avec son explication amp lrsquoapprobation drsquoEistadius Grand

Astrologue A Paris Par Iacques Beslay 1654

ARGOLO Andrea Avectore Exactissimae Caelestivm Motvvm Ephemerides

Ad Longitvdinem Almae Vrbis Et Tychonis Brahe Hypotheses AC Deductas Caelo

Accurat Observationes AB Anno 1641 Ad Annum 1700

ASSOCIACcedilAtildeO DO QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO

BRASIL O Livro do Centenaacuterio 1500-1900 Imprensa Nacional Rio de Janeiro

1900-1904 IV volumes

BAILLY LA FAYETTE Ordre de marche pour la confeacutederation qui aura

lieu le 14 juillet amp dispositions dans le Champ-de-Mars Paris 1790

BAYLE Pierre Penseacutees Diverses agrave lrsquooccasion drsquoun comegravete In Oeuvres

Diverses Tome III parte I La Haye Compagnie des libraires 1737

BAYLE Pierre La Cabale Chimeacuterique ou Refutation de lrsquoHistoire Fabulouse

In Oeuvres Diverses La Haye Par la Compagnie des Libraries 1737 Tomo II

BERNE Paul Souvenir du 14 Juillet 1880 Trois dates Fecircte nationale du 14

juillet 1880 Le 14 juillet 1789 Le 14 juillet 1790 Imp De Menaboeuf-Genin

Lyon 1880 Monographie imprimeacutee

Bulletin municipal officiel Paris 16 juillet 1891

285

BEVTHERI Michaelis Ephemeris historica Eivsdem de annorum mundi

concinna dispositione libellus Ex officina Michealis Fezandat et Roberti Grandion

Taberna Graphyana Paris 1551

CHASSIN Charles-Louis Les eacutelections et les cahiers de Paris Preacuteface tome

I

DOVE Jonathan Dove speculum anni aacute partu virginis MDCLXVII or an

almanack for the year of our Lord God 1667 Cambridge 1667

EXPOSITION UNIVERSELLE DE PARIS 1889 Empire du Bregravesil

Catalogue Officiel 6 mai 1889 BNF 8-v-21701-L 333-A

FERRIEgraveRES Meacutemoires du Marquis de Ferriegraveres Paris Baudouin Fils 1822

GOIS Projet de monumento et fecircte patriotique Paris 1790

GREacuteGOIRE Henri Rapport sur les destructions opeacutereacutees par le vandalisme

et sur les moyens de le reacuteprimer seacuteance du 14 fructidor lan second de la

Reacutepublique une et indivisible suivi du Deacutecret de la Convention nationale ([Reprod])

Convention nationale [reacuted] par Greacutegoire -[de lImpr nationale] (Paris)-1794

LINGUET Simon Adresse au peuple franccedilais concernant ce qursquoil faut faire

amp ce qursquoi faut pas faire pour fecircter la fecircte meacutemorable et nationale du 14 juillet 1790

Et sur-tout la neacuteceacutessiteacute de nrsquoy admettre aucun cheval Paris 1790

MARTIUS Karl Friedrich von Autograph letter signed Editorial Munich

1848 paacuteginas Traduccedilatildeo para o inglecircs disponiacutevel em

httpwwwiberlibrocomAutograph-letter-signed-4pp-Martius-Karl55864117bd

MD Les doutes eacuteclaircis ou reacuteponse a m lrsquoabbeacute de Mably In Eacutepheacutemeacuterides

du citoyen ou Chronique de lrsquoesprit national 1768 Tome Troisieme Seconde Partie

Critiques Raisonneacutees

NOEumlL Franccedilois-Joseph-Michel Eacutepheacutemeacuterides politiques litteraires et

religieuses preacutesentant pou chacun des jours de lrsquoanneacutee un tableau des eacuteveacutenements

remarquables qui datent de ce mecircme jour dans lrsquohistoire de tous les siegravecles et de tous

les pays et commencant au I septembre 1796 pour finir au I septembre 1797 Paris

1796 De limprimerie de Le Normant 1796

NOEumlL Franccedilois-Joseph-Michel Eacutepheacutemeacuterides politiques litteacuteraires et

religieuses preacutesentant pour chacun des jours de lanneacutee un tableau des eacuteveacutenemens

()Seconde eacutedition revue corrigeacutee et augmenteacutee Paris Le Normant 1803

PARLEMENT DE PARIS Arrecirct du parlement (qui enjoit agrave de La Harpe

auteur de lrsquoarticle intitule Diatribe agrave lrsquoauteur des eacutepheacutemeacuterides paru dans le

286

Mercure de France du moins drsquoaoucirct 1775 agrave Louvel censeur et agrave La Combe

imprimeur drsquoecirctre plus circonspects agrave lrsquoavenir Paris Imprimeur du Parlement 1775

HACKNEY Stower (printed for) Almanac for the Year 1386 Transcribed

Verbatin From the Original Antique Illuminated Manuscript in the Black Letter

1812

FINEacute Oronce Les canons amp documents tregraves amples touchant l`usage amp

practique des communs almanachz que lrsquoon nomme eacutepheacutemeacuterides Briefve amp

isagogique introduction sur la judiciaire astrologie avc un traicteacute drsquoAlcabice

touchant les conjonctions des planegravetes en chascun des 12 signes et de leur

prognostications Impr De R Chadiegravere Paris 1551 BNF Deacutepartemente Reacuteserve

des livres rares V-21376

REGIOMONTANUS Ioannis de Monteregio Tabulae Directionum

Profectionumque non tam astrologiae iudiciariae quam tabulis instrumentisque

innumeris fabricandis utiles ac necessariae eiusdem Regiomontani tabula sinuum

per singula minuta extensa universam sphaericorum triangulorum scientiam

complectens accesserunt his tabulae ascensionum obliquarum a 60 gradu elevationis

poli usque ad finem quadrantis per Erasmum Reinholdum () Supputae-

Imprimebantur in officina typographica Matthei Welack 1584

REGIOMONTANUS Ioannis de Monteregio Ephemerides sive almanach

perpetuus Impr Petri Liechtenstein Venetiis 1498

Sessatildeo ciacutevica em homenagem ao senador Joseacute Bonifaacutecio de Andrada e Silva

Realisada em noite de 8 de Dezembro de 1886 no Theatro S Joseacute Satildeo Paulo

Publicaccedilatildeo em favor da libertaccedilatildeo dos captivos Typographia King 1887

Perioacutedicos

BAUDEAU Nicolas Eacutepheacutemeacuterides du Citoyen ou Chronique de lrsquoEsprit

National T 1 4 de Novembro de 1765 Paris Augustin Delalain p 15

BADEAU Nicolas NEMOURS Dupont (et all) Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou

Chronique de lrsquoesprit national 1768 Tome Troisieme Seconde Partie Critiques

Raisonneacutees

Chronique de Paris 5 de Julho de 1790

Chronique de Paris 6 de julho de 1790

287

Frasersrsquos Magazine for Town And Country London John W Parker West

Strand Jan-Jun 1848 Vol XXXVII

Principes de tout gouvernement In Eacutepheacutemeacuterides du citoyen ou Chronique de

lesprit national Lacombe Paris 1767 T4 Parte 2

Reacutevolutions de Paris 17900703 (T4N52)-17900710

Mercure de France 8 Julliet 1790

Revista do IHGB t40 v2 1877

Revista do IHGB t 1 1839

Revista do IHGB t 19 1856

Revista do IHGB T6 v2 1865

Revista do IHGB T 64 v 1 e 2 1901

Revista do IHGB 3 (Suplemento) 1841

Revista do IHGB 2 (8) 1840

Revista do IHGB 1887 (2)

Revista do IHGB 1896 T 59 v II

Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutephico de Satildeo Paulo Tomo VI 1900-

1901

Instrumentos de pesquisa

BIBLIA SACRA Vulgatae Editionis Ex Officina Plantiniana Balthasaris

Moreti Antueacuterpia 1631

BIBLIA SAGRADA Contento o Velho e o Novo testamento Traduccedilatildeo da

Vulgata pelo Padre Antonio Pereira de Figueiredo (1725-1797) Lisboa Empreza da

Historia de Portugal 1902 3 volumes

BAILLY Histoire de lrsquoastronomie moderne depuis la fondation de lrsquoeacutecole

drsquoAlexandrie jusqrsquoagrave lrsquoeacutepoque de 1730 Tome 1 De Bure Paris 1785

CHAMBERS Ephraim Cyclopaeligdia or An universal dictionary of arts and

sciences containing the definitions of the terms and accounts of the things signifyd

thereby in the several arts both liberal and mechanical and the several sciences

human and divine the figures kinds properties productions preparations and

uses of things natural and artificial the rise progress and state of things

ecclesiastical civil military and commercial with the several systems sects

288

opinions ampc among philosophers divines mathematicians physicians antiquaries

criticks ampc the whole intended as a course of antient and modern learning1728

CUNHA Antocircnio Geraldo da Dicionaacuterio etimoloacutegico Nova Fronteira da

Liacutengua Portuguesa Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986

Colleccedilatildeo das Leis do Impeacuterio do Brasil Parte Primeira Rio de Janeiro

Typographia Nacional 1880

DE LA LANDE Jeacuterocircme Bibliographie astronomique avec lhistoire de

lastronomie depuis 1781 Jusqursquoaagrave 1802 Paris Imprimerie de la Reacutepublique 1803

DIDEROT Denis Encyclopeacutedie ou Dictionnaire raisonneacute des sciences des

arts et des meacutetiers recueilli des meilleurs auteurs et particuliegraverement des

dictionnaires anglois de Chambers dHarris de Dyche etc par une socieacuteteacute de gens

de lettres mis en ordre et publieacute par M Diderot et quant agrave la partie matheacutematique

par M dAlembert Dix volumes in-folio dont deux de planches () Paris 1751

Bibliothegraveque nationale de France deacutepartement Litteacuterature et art FOL-Q-559

GUIMARAtildeES Manuel Luiz Salgado Livro de Fontes de Historiografia

Brasileira Rio de Janeiro Eduerj 2010

HERENCIA Bernard Les Eacutepheacutemeacuterides du citoyen et les Nouvelles

Eacutepheacutemeacuterides eacuteconomiques (1765-1788) Documents et table complegravete Centre

international drsquoeacutetude du XVIIIe siegravecle Ferney-Voltaire 2014

HOUAISS Antocircnio VILLAR Mauro de Salles FRANCO Francisco Manoel

de Mello Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Riod e Janeiro Objetivo 2001

LAUROUSSE Pierre Grand dictionnaire universel du xix siecle Paris

Grand Dictionnaire Universel Verbete Eacutepheacutemeacuteride

MACHADO Joseacute Pedro Dicionaacuterio etimoloacutegico da liacutengua portuguesa com a

mais antiga documentaccedilatildeo escrita e conhecida de muitos dos vocaacutebulos estudados 2

ed Lisboa Confluecircncia 1967 3 v

PESSOA R C A ideia republicana no Brasil atraveacutes de documentos Satildeo

Paulo Alfa-Ocircmega 1973

SERRAtildeO Joel Dicionaacuterio de Histoacuteria de Portugal Vol 1 V

SILVA E (org) Ideacuteias poliacuteticas de Quintino Bocaiuacuteva BrasiacuteliaRio de

Janeiro Senado FederalCasa Rui Barbosa 1986

SIMPSON John WEINER Edmund (org) The Oxford English Dictionary

Clarendon Press Oxford 1989

289

WIEDLER Johan Friedrich Historia astronomiae Vitembergae Sumtibus

GH Schwartzii Bibliopolae 1741

Bibliografia geral

AGOSTINHO S Aureii De Doctrina Christiana Libri Quatuor et Enchiridion ad

Laurentium Editio Stereotypa Lipsiae Sumtibus et typis caroli tauchnitii

1838

___________ Confessions With an English Translatin by William Watts The Loeb

Classical Library London William Heinemann New York The

Macmillan co Vol II 1912

___________ Ouvres de Saint Augustin Paris Descleacutee de Brouwer 1996

Bibliothegraveque Augustinienne _________ Ouvres Complegravetes de Saint

Augustin M Raulx (trad) T 2 Bar-le-Duc 1868

AQUINAS Thomas Commentary on Aristotles Physics Book 4 Richard J

Blackwell Richard J Spath amp W Edmund Thirlkel (trans) Yale

University Press 1963

________________ Summa Theologiae Vol 2 (ia 2-11) Existence and Nature of

God McDermott Timothy (ed) Cambridge University Press Oct 26

2006

________________ Summa Contra Gentiles Vernon J Bouker (trad) New York

Hanover House 1955-57

ALONSO Acircngela Ideacuteias em movimento a geraccedilatildeo 1870 na crise do Brasil Impeacuterio

Satildeo Paulo Paz e Terra 2002

ANDERSON Benedict Imagined Communities Reflections on the Origin and

Spread of Nationalism ver Ed New York Verso 1991

ANDRADA E SILVA Joseacute Bonifaacutecio de Representaccedilatildeo aacute Assemblea Geral

Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil sobre a Escravatura

Paris Firmin Didot 1825

ARISTOacuteTELES Physique Texte eacutetabli et traduit par Henri Carteron Vol I 2ed

Paris Budeacute 1956

____________ De la Geacuteneacuteration et de la Corruption Paris Socieacuteteacute drsquoeacutedition 1966

____________ The works of Aristotle translated into English ROSS WD (ed)

Oxford Claredon 1931

290

____________ De lrsquoame J Vrin (dir) Paris Organon Librarie Philosophique 1947

____________ De Anima In The Complete Works of Aristotle Barnes J (ed)

Princeton Princeton University Press 1984

ATKINS Jed W A revoluctionary doctrine Cicerorsquos natural right teaching in

Mably and Burke Classical Receptions Journal 2014 6 (2)

Baczko Bronislaw Vandalim In Furet and Ozouf (eds) A Critical Dictionary of the

French Revolution Cambridge Harvard University Press 1989

BAKER K M A Script for a French Revolution The Political Consciousness of the

abbeacute Mably In Inventing the French Revolution Essays on French

Political Culture in the Eighteenth Century Cambridge Cambridge

University Press 1990 pp 86-106

BARBOSA Januaacuterio da Cunha ldquoDiscurso do Primeiro Secretaacuterio Perpeacutetuo do

Institutordquo Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro IHGB

1839 t1

BARNES R Prophecy and Gnosis Stanford Stanford University Press 1988

BECQUEMONT Daniel Herbert Spencer progregraves et deacutecadence In Mil neuf cent

No 14 1996

BEZZA Giuseppe Commento al primo libro della Tetrabiblos di Claudio Tolemeo

Nuovi Orizzonti Milano sp 19901992

BODIN Jean Agevin Meacutethode pour faciliter la connaissance de lrsquohistoire P

Mesnard (trad) Paris Martin le Jeune 1572

BOEIRA Luciana Fernandes Como salvar do esquecimento os atos bravos do

passado rio-grandense a Proviacutencia de Satildeo Pedro como um problema

poliacutetico-historiograacutefico no Brasil Imperial Tese de Doutorado UFRGS

2013

BOSSUET JB Projet de reacuteunion entre les Cathololiques amp les Protestants In

Oeuvres de Messire J Benigne Bossuet Tome Quatrorzieme Libraires

Associeacutes Liege 1767

BURGUIEgraveRE Andreacute Les rapports entre geacuteneacuterations un problegraveme pour lhistorien

In Communications 59 1994 Geacuteneacuterations et filiation

BILAC Olavo Antologia Poesias Satildeo Paulo Martin Claret 2002

BRAGA Teoacutefilo Os Centenaacuterios como synthese affectiva nas sociedades modernas

Porto Typographia de AJ da Silva Teixeira 1884

291

_____________ Plutarco Portuguez collecccedilatildeo de retratos e biographias dos

principaes vultos histoacutericos da civilizaccedilatildeo portugueza Desenhos de Julio

Costa e phototypias Emilio Biel amp Cia collaboradores drsquoeste volume

Theophilo Braga Oliveira Martins Joaquim Vasconcellos Julio de

Mattos e Paiva e Pona Pocircrto J Costa E Biel amp Cia 1881

BACZKO Bronislaw 1984 Le calendrier reacutepublicain In NORA Pierre (org) Les

lieux de meacutemoire Paris Gallimard

BAKHTIN M Rabelais and His World Bloomington 1984

BARBOSA Januaacuterio da Cunha Relatoacuterio do Secretaacuterio Perpeacutetuo Revista do IHGB

Rio de Janeiro 3 (Suplemento) 1841

BARBOSA Rui Elogio ao Poeta (1881) In Trabalhos diversos Rio de Janeiro

Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Cultura 1957 (Obras Completas de Rui

Barbosa v 8 1881 t 1)

BARTON Tamsyn S Power and Knowledge Astrology Physiognomics and

Medicine under the Roman Empire Ann Arbor The University of

Michigan Press 1994 [2002

BLOCH Marc Meacutemoire Collective Tradition et Coutume In Revue de synthegravese

historique T40 N14 Paris 1925 (12)

BLUMENBACH Friedrich Johan The Elements of Physiology Elliotson John

(trans) 4 ed London Longman Rees Orme Brown and Green

Paternoster-Row 1828

BERRINI Beatriz Brasil e Portugal A Geraccedilatildeo de 70 Campo das Letras Porto

2003

BOCAIUacuteVA Quintino A crise da lavoura In SILVA E (org) Ideacuteias poliacuteticas de

Quintino Bocaiuacuteva BrasiacuteliaRio de Janeiro Senado FederalCasa Rui

Barbosa 1986

BOLLEgraveME Geneviegraveve Les Almanachs Populaires aux XVIIe et XVIII siegravecles Essai

d`histoire sociale Paris Mouton 1969

BONNET Jean-Claude Naissance du Pantheacuteon Paris Fayar 1998

BOSSUET Discours sur lrsquoHistoire Universelle Garnier Fregraveres Paris

BOSANQUET Eustace F English seventeenth century almanacks In The Lybrary

10 1930

BUARQUE DE HOLANDA Seacutergio Raiacutezes do Brasil Rio de Janeiro Joseacute Olympio

1956 [1936]

292

BUESCU Ana Isabel Sentimento e Esperanccedilas de Portugal In A Restauraccedilatildeo e sua

eacutepoca Lisboa Cosmos 1993

BURKE Aedanus Considerations on the Society or Order of Cincinnati proving that

it creates a Race of Hereditary Patricians or Nobility Philadelphia

Robert Bell 1793

BURKE Edmund Reflection of the Revolution in France London John Sharpe

1820

CABRAL Alexandre Luiacutes de Camotildees Poeta do Povo e da Paacutetria Notas

oitocentistas ndash I Lisboa Horizonte 1980

CASSIO Dio GROS E (dir) Histoire Romaine de Dion Cassius Tome Neuviegraveme

Paris Virmin Didot 1867

CAMPION Nicholas The Great Year Astrology Millenarism and History in the

Western Tradition London Pinguin Books 1994

CANTUgrave Cesar Histoire universelle Lacombe Paris 1883

____________ La Reacuteforme en Italie Les preacutecurseurs Discours historiques Ancinet

Digard et Edond Martin (trad) Paris Adrien Le Clere 1867

CAPP Bernard English almanacs astrology and the popular press 1500-1800

Londres Farber amp Fauber 1979

CATROGA Fernando O culto dos mortos como uma poeacutetica da ausecircncia In

ArtCultura Uberlacircndia v 12 n 20 jan-jul 2010

___________________ Paacutetria naccedilatildeo e nacionalismo In SOBRAL Joseacute Manoel

VALA Jorge (Org) Identidades nacionais inclusatildeo e exclusatildeo Lisboa

ICS 2010

CARLYLE Thomas On Heroes Hero-Worship and the Heroic in History Reprint

of the Sterling Edition Echo Library 2007

________________ Romance of Portuguese Revolution March 1848 In Frasersrsquos

Magazine for Town And Country January to June 1848 London John W

Parker West Strand Vol XXXVII p 274

CAROLINO Luiacutes Miguel Ciecircncia Astrologia e Sociedade a Teoria da Influecircncia

Celeste em Portugal (1593-1755) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian Porto

2003

______________________ Astrologia e Sociedade a Teoria da Influecircncia Celeste

em Portugal (1593-1755) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian Porto 2003

293

_____________________ A escrita celeste almanaques astroloacutegicos em Portugal

nos seacuteculos XVII e XVIII Rio de Janeiro Access 2002

CARVALHO Joseacute Murilo de A formaccedilatildeo das almas o imaginaacuterio da Repuacuteblica no

Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993

_____________________ (org) Bernardo Pereira de Vasconcelos Editora 34 Satildeo

Paulo 1999

_____________________ Brasil naccedilotildees imaginadas In Pontos e Bordados

Escritos de Histoacuteria e Poliacutetica Belo Horizonte Editora da Universidade

Federal de Minas Gerais 1998

CASTRO ALVES Gonzaga ou a revoluccedilatildeo de minas Drama histoacuterico brazileiro

Rio de Janeiro Livraria Coutinho 1975

CASTRO Eduardo Viveiros de O maacutermore e a murta In A Inconstacircncia da Alma

Selvagem Cosacnaify Satildeo Paulo 2005

_________________________ Os pronomes cosmoloacutegicos e o perspectivismo

ameriacutendio In Mana 2(2)115-144 1996

CELSO Affonso Porque me ufano de meu paiacutes 11a ed Rio de Janeiro Briguet amp

Cia 1937

CEZAR Temiacutestocles Lrsquoeacutecriture de lrsquohistoire au Breacutesil au XIX siegravecle Essai sur une

rheacutetorique de la nacionaliteacute Le cas Varnhagen Paris EHESS Tese de

Doutorado 2002

_______________ Presentismo memoacuteria e poesia Noccedilotildees da escrita da Histoacuteria no

Brasil oitocentista In Sandra Jatahy Pesavento (Org) Escrita

Linguagem objetos Leituras de Histoacuteria cultural Bauru Edusc 2004

_______________ Anciens Modernes Sauvages et lrsquoeacutecriture de lrsquohistoire au Breacutesil

au xixe siegravecle Le cas de lrsquoorigine des Tupis Anabases 8 2008

_______________ Como deveria ser escrita a histoacuteria do Brasil no seacuteculo XIX

Ensaio de histoacuteria intelectual In Histoacuteria cultural experiecircncias de

pesquisa PESAVENTO Sandra Jatahy (org) Porto Alegre Editora da

UFRGS 2003

CHAPMAN Alison A Marking time Astrology Almanacs and English

Protestantism In Renaissance Quaterly Volume 60 Number 4 Winter

2007

CIacuteCERO Marco Tuacutelio Ouvres complegravetes de Ciceacuteron NISARD M (dir) Paris JJ

Dubochet 1841

294

___________ The Orations of Marcus Tullius Cicero Volume IV London Bell amp

Sons 1921

___________ Rhetorica ad Herennium Harry Clapman (transl) London-Cambridge

Harvard University Press 1954

COOPE Ursula Time for Aristotle Physics IV 10-14 Oxford Aristotle Studies

Clarenton Press Oxford 2008

COLOMB Fernand Histoire de la vie et des deacutecouvertes de Christophe Colomb

Muller Eugecircne (trad) Paris Maurice Dreyfous 1879

COLUMBUS Christopher The Diario of Christopher Columbusrsquos First Voyage to

America 1492-1493 Abstracted by Fray Bartolomeacute de las Casas O

Dunn JE Kelley Jr (trad) Library of Congress 1989

COMTE Auguste Sommaire exposition de la religion universelle en treize entreacutetiens

sistemaacutetiques entre une Femme et um Precirctre de lrsquohumaniteacute Paris Place

de lacuteEstrape 1891 (1845)

______________ Systegraveme de politique positive ou traiteacute de sociologie instituant la

reacuteligion de lrsquohumaniteacute Tome 3 Contenant la Dynamique Sociale ou le

traiteacute geacuteneacuteral du progregraves humain Paris 1853

CONDORCET A escravidatildeo dos negros (reflexotildees) Traduccedilatildeo do engenheiro civil

Aaratildeo Reis Rio de Janeiro Typ De Serafim Joseacute Alves 1881

__________ Esquisse drsquoun tableau historique des progregraves de lrsquoesprit humain Suivie

de reacuteflexions sur lrsquoesclavage des negravegres Paris Masson et fils 1822

CORUJA Antonio Alvares Pereira Anno Historico Sul-Rio-Grandense em Forma de

Ephemerides Editado por uma associaccedilatildeo de rio-grandenses do sul Rio

de Janeiro Typ De Joseacute Dias de Oliveira 1888 Primeiro Folheto 1 de

Janeiro a 31 de Marccedilo Proacutelogo sp

COUTINHO Afracircnio (Org) A polecircmica Alencar-Nabuco Rio de Janeiro Tempo

Brasileiro 1978

COTTRET Bernard HENNETON Lauric (org) Du bon usade des commeacutemorations

Histoire meacutemoire et identiteacute XVIe-XXIe siegravecle Rennes Presses

Universitaires 2010

CHIAPPETTA Angeacutelica Natildeo Diferem o Historiador e o Poeta O Texto Histoacuterico

como Instrumento e Objeto de Trabalho Liacutengua e Literatura 2 1996

Departamentos de Letras USP

295

CHARTIER Roger LrsquoOrdre des livres Lecteurs Auteurs Bibliothegraveques en Europe

entre XVI et XVIII siegravecle Alineacutea Aix-en-provence 1992

COUSIN Victor Introduction a lrsquohistoire de la philosophie Paris Imp Pillet Fils

Aineacute Librarie Acadeacutemique 1872

CUNHA Mafalda Soares da A questatildeo juriacutedica na crise dinaacutestica In Histoacuteria de

Portugal No Alvorecer da Modernidade Lisboa Estampa 1997

DARNTON Robert Boemia Literaacuteria e Revoluccedilatildeo O submundo das letras no

Antigo regime Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

DrsquoAILLY Pierre Ymago Mundi Edmond Buron (eacuted) Texte latin et traduction

franccedilaise des quatre traiteacutes cosmographiques de drsquoAilly et des notes

marginales de Christophe Colomb Tome I Librarie Orientale et

Ameacutericaine Paris 1930 Tome I

DELUMEAU Jean La Peur en Occident Paris Fayard 1978

______________ Voyage Pittoresque dans lrsquointeacuterieur de la chambre des deputes

suivi Du Temps Present ou essai sur lrsquohistoire de la civilization au dix-

neuviegraveme siegravecle Deuxiegraveme eacutedition Paris Ponthieu Librarie 1827

______________ Eacutepheacutemeacuterides Historiques et Politiques du Regravegne de Louis XVIII

depuis la restauration FM Maurice Librarie-Eacutediteur 1825

______________ Histoire des Histoires de la Reacutevolution Franccedilaise Pour servir de

compleacutement agrave tous les eacutecrits sur la mecircme eacutepoque Paris Paul Meacutequignon

1834

DILTHEY W The Formation of the Historical World in the Human Sciences Vol 3

Selected Works Princeton Princeton University Press 2002

DEUSEN Nancy van (org) Cicero refused to die Ciceronian influence through the

centuries Brill Leiden 2013

DOYLE W Aristocracy and its Enimies in the Age of Revolution Oxford Oxford

University Press 2009

DOOLEY Brandan (org) A companion to astrology in the Renaissance Brill 2014

DOBRZYCKI Jerzy KREMER Richard Peurbach and Maragha Astronomy The

Ephemeris of Johannes Angelus and their implications In Journal for the

History of Astronomy Provided by NASA Astrophysics Data System

Xxvii 1996

296

DRESCHER Seymour Capitalism and Antislavery British Mobilization in

Comparative Perspective New York amp Oxford Oxford University Press

1987

______________ Les formes eacuteleacutementaires de la vie religieuse Le systegraveme toteacutemique

en Australie Paris Les Presses universitaires de France 1968 (1921)

______________ Le suicide Paris Presses Universitaires de France 2007

______________ De la division du travail social Livre I Paris Les Presses

universitaires de France 1967 (1893)

DUBIEF Eugeacutene Le Journalisme Bibliothegraveque des Merveilles Librairie Hachette

Paris 1892

DREacuteVILLON Herveacute Lire et eacutecrire lrsquoavenir Lrsquoastrologie dans la France du Grand

Siegravecle (1610-1715) Seysell Champ Vallon 1996

ECO Umberto Os limites da representaccedilatildeo Perspectiva Satildeo Paulo 1990

ELIADE Mircea O mito do eterno retorno Satildeo Paulo Mercuryo 1992

EMERSON Ralph Waldo History In The Complete Works Vol II Essays First

SeriesBoston and New York Houghton Mifflin and Company 1904

______________ The Complete Works Uses of Great Men In Representative men

Vol IV Boston and New York Houghton Mifflin and Company 1904

______________ Character In Essays Second Series The Complete WorksVol

III Boston and New York Houghton Mifflin and Company 1904

ENDERS Armelle ldquoO Plutarco Brasileirordquo A Produccedilatildeo dos Vultos Nacionais no

Segundo Reinado In Estudos Histoacutericos 2000 25

______________ Os Vultos da Naccedilatildeo faacutebrica de heroacuteis e formaccedilatildeo de brasileiros

Rio de Janeiro FGV Editora 2014

ENGAMMARE Max Lrsquoordre du temps Lrsquoinvention de la poncutualiteacute au XVIe

siegravecle Droz Les seuils de la moderniteacute Vol 8 Genebra 2004

EISENSTEIN Elizabeth The printing press as an agent of change 2 vol Cambridge

1979

FARIA Julio Cezar de Joseacute Bonifaacutecio o moccedilo Companhia editora nacional Satildeo

Paulo 1944

FERREIRA Juliana Mesquita Hidalgo Propaganda e criacutetica social nas cronologias

dos almanaques astroloacutegicos durante a Guerra Civil inglesa no seacuteculo

XVII In Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo Dezembro de 2007 V

27 N 54

297

FOUCAULT Michel Arqueologia das Ciecircncias e Histoacuteria dos Sistemas de

Pensamento Manoel Barros da Motta (org) Rio de Janeiro Forense

Universitaacuteria 2000

_________________ Microfiacutesica do Poder Graal Rio de Janeiro 1989

FREDRICKSON George M Racism A Short History Princeton University Press

2002

FREEMAN Douglas Southall George Washington a Biography Volume Five

Victory with the help of France New York Charles Scribnerrsquos Sons

1952

FREYRE Gilberto Casa-grande e senzala (formaccedilatildeo da famiacutelia brasileiro sob o

regime de economia patriarcal) Rio de Janeiro Joseacute Olympo 1954

[1933]

FINDLEN Paula (org) Athanasius Kircher The Last Man Who Knew Everything

Routledge New York 2004

FLEIUSS Max Centenaacuterios do Brazil In RIHGB Rio de Janeiro Imprensa

Nacional 1901

FREIRE Felisbello Firmo de Oliveira Histoacuteria constitucional da Republica dos

Estados Unidos do Brasil Rio de Janeiro Typographia Moreira

Maximino amp C 1894-1895 3 Vol

GARIN Eugenio Astrology in the Renaissance The Zoodiac of Life Routledge amp

Kegan Paul London-Boston 1983

GAUTHIER Florence Agrave lrsquoorigine de la theacuteorie physiocrate du capitalisme la

plantation esclavagiste lrsquoexpeacuterience de Le Mercier de La Riviegravere

Intendant de la Martinique Presses Universitaires de France Actuel

Marx 20022 ndash no 32

GALVAtildeO Benjamin Franklin Ramiz O Centenaacuterio do Brasil Gazeta de Notiacutecias 27

de Maio de 1898

GICQUIAUD Greacutegory La balance de Clio reacuteflexions sur la poeacutetique et la

rheacutetorique du parallegravele In Marc Andreacute Bernier (org) Parallegravele des

anciens et des modernes Rheacutetorique histoire et estheacutetique au siegravecle des

Lumiegraveres Presses Universitaires Laval 2007

GILLIS John R (org) Commemorations the politics os national identity Princeton

University Press New Jersey 1994

298

GUIMARAtildeES Manoel Luis Salgado Historiografia e Naccedilatildeo no Brasil (1838-1857)

Rio de Janeiro Eduerj 2011

_________________ A disputa pelo passado na cultura histoacuterica oitocentista no

Brasil In CARVALHO Joseacute Murilo (Org) Naccedilatildeo e cidadania no

Impeacuterio novos horizontes Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo brasileira 2007

_________________ Histoacuteria e natureza em Von Martius esquadrinhando o Brasil

aacutera construir a naccedilatildeo Histoacuteria Ciecircncias Sauacutede v 7 n 2 Jul-out- 2000

GUIMARAtildeES Luacutecia Maria Paschoal Debaixo da imediata proteccedilatildeo de Sua

Majestade Imperial O Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (1838-

1889) Revista do IHGB Rio de Janeiro a 156 nordm 388 p 459-613 jul-

set 1995

_________________________ O Tribunal da Posteridade In PRADO Maria

Emiacutelia O Estado como vocaccedilatildeo Rio de Janeiro Acess 1999

_________________________Da Escola Palatina ao Silogeu Instituto Histoacuterico e

Geograacutefico Brasileiro (1889-1938) Rio de Janeiro Ed Museu da

Repuacuteblica 2007

GUIMARAtildeES Ribeiro J Summaacuterio de Varia Histoacuteria Narrativas Lendas

Biographias Descripccedilotildees de Templos e Mommentos Estatiacutesticas

Costumes Civis Poliacuteticos e Religiosos de outras eras Lisboa Rolland amp

Semiond 1873

GUIZOT Vie de Washington Correspondence et eacutecrits de Washington pub Drsquoapregraves

lrsquoeacutedition ameacutericaine et preacuteceacutedeacutes drsquoune introduction Paris Charles

Gosselin 1870

GELLIUS Aulus The Attic Nights John Carew Rolfe (ed) Cambridge London

Harvard University Press 2002

GONCcedilALVES Ana Teresa Marques Propaganda no Periacuteodo Severiano A

Construccedilatildeo da Imagem Imperial Tese de Doutorado Universidade de

Satildeo Paulo 2002

GONCcedilALVES Ana Teresa Marques Astrologia e poder o caso de Marcus

Manilius XXIV Simpoacutesio Nacional de Histoacuteria 2007

GINZBURG Carlo Relaccedilotildees de Forccedila Histoacuteria Retoacuterica Prova Compania das

Letras Satildeo Paulo 2000

GRAFTON Anthony What was history Cambridge University Press New York

Kindle Edition (sem paginaccedilatildeo) 2007

299

______________ Defenders of the Text The traditions of scholarship in an age of

science 1450-1800 Cambridge and London Harvard University Press

1991

______________ Starry Messengers Recent Work in the History of Western

Astrology Perspective on science Volume 8 n 1 spring 2000

______________ Cardanorsquos Cosmos The World and Works of a Renaissance

Astrologer Cambridge MA 1999

______________ WILLIAMS Megan Christianity and the Transformation of the

Book Origen Eusebius and the Library of Caesarea Cambridge Harvard

University Press 2006

______________ Joseph Scaliger 2 vol Oxford Clarendon Press

______________ Commerce with the Classics Ann Arbor University of Michigan

Press 1997

GRAFTON Anthony MOST Glenn SETTIS Salvatore The Classical Tradition

Harvard University Press 2010

GRANT Edward Planets Stars and Orbs The Medieval Cosmos 1200-1687

Cambridge Cambridge University Press 1994

______________ In Defense Of The Earths Centrality and Immobility Scholastic

Reaction To Copernicanism In The Seventeenth Century American

Philosophical Society 1984

GUNDERSHEIMER Werner L The Life and Works of Louis Le Roy Droz 1966

Genebra

HANDLER Richard Is ldquoIdentityrdquo a Useful Cross-Cultural Concept In GILLIS

John R (org) Commemorations the politics os national identity

Princeton University Press New Jersey 1994

HALBWACHS Maurice Les cadres sociaux de la meacutemoire Paris Feacutelix Alcan

1925 Collection Les Travaux de lrsquoAnneacutee sociologique

______________ La Memoacuteire Collective Paris Albin 1997 [1950]

HALL John Cicero to Lucceius (Fam512) In its Social Context Valde Bella In

Classical Philology 93 1998

______________ Regimes de historicidade presentismo e experiecircncias do tempo

Autecircntica Belo Horizonte

______________ Evidecircncia da Histoacuteria o que os historiadores veem Belo

Horizonte Autecircntica 2011

300

______________ Les Anciens les Modernes les Sauvages ou le Temps des

Sauvages In Chateaubriand le Tremblement du Temps Berchet Presses

Universitaires du Mirail Toulouse 1994

______________ Du parallegravele agrave la comparaison In Entretiens drsquoarcheacuteologie et

drsquohistoire Plutarque Grecs et Romans em questions 1998

______________ Anciens modernes sauvages Paris Galaade Eacuteditions 2005

______________ Plutarque entre les anciens et les modernes In PLUTARQUE

Vies Parallegraveles Paris Gallimard 2001

______________ Croire en lacuteHistoire Flammarion Paris 2013 Progregraves et

Reacutevolution

HARRIS John Leibniz and Locke on Innate Ideas In Ratio n 16 1974 pp 226-242

e WALL G Lockes Attack on Innate Knowledge In Philosophy 49

1974

HEGEL GWF Leccedilons sur la philosophie de lrsquohistoire Traduccedilatildeo francesa Paris

Vrin 1963

HERCULANO Alexandre Lendas e Narrativas II 1851

____________ Alexandre O Bobo Satildeo Paulo Saraiva 1959 Documento

digitalizado por Antonio de Padua Danesi Disponiacutevel em

httpwwwdominiopublicogovbr Acesso em 14 de Dezembro de 2013

p 2

HERDER Johann Gottfried Von Philosophical Writings Edited by Michael N

Forster Cambridge University Press Cambridge 2002

HERVEacute Dumez Sur les eacutepaules des geacuteants Quasi nanos gigantium humeris

insidentes) Le Libellio dAegis volume 5 2009 ndeg 2 eacuteteacute pp 1-3

Diversos autores da primeira modernidade a utilizaram glosaram

imitaram e parafrasearam Sobre essa questatildeo ver tambeacutem CIBOIS

Philippe ldquoSur les eacutepaules des geacuteantsrdquo La question du latin 25 novembre

2012 Disponiacutevel em httpenseignement-latinhypothesesorg6359

acesso em 18102013

HEAT-MOON William Least Columbus in the Americas John Wiley amp Sons New

Jersey 2010

HRUBY Hugo O templo das sagradas escrituras o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico

Brasileiro e a escrita da histoacuteria do Brasil (1889-1912) In histoacuteria da

historiografia nuacutemero 02 marccedilo 2009

301

HORATIUS Flaccus Q Carmen Saeculare In Horace Odes and Epodes Paul

Shorey Boston Benj H Sanborn amp Co 1898

HOUSTON Robert Literacy in Early Modern Europe Culture and Education 1500-

1800 London New York Longman 1988

HUGO Victor Les feuilles drsquoautomne J Hetzel amp cia Paris 1831

JAEGER Werner Paideacuteia a formaccedilatildeo do homem grego Martins Fontes Satildeo Paulo

1995

JUVENAL Satires de Juveacutenal et Perse LACROIX Jules (trad) Paris Firmin Didot

1846

_________ Satire VI WATSON Lindsay (org) Cambridge Greek and Latin

Classics Cambridge University Press 2014

JOHNSON J H Versailles mette les Halles masks carnival and the French

Revolution In Representations 73 2001

JOAtildeO Maria Isabel Percursos da memoacuteria centenaacuterios portugueses no seacuteculo XIX

In Revista de Letras e Culturas Lusoacutefonas Camotildees Nuacutemero 8 Janeiro-

Marccedilo de 2000

JEFFERSON Thomas The Writings of Thomas Jefferson 1892 ed Paul L Ford

vol 1

KENNEDY E S Ramification of the World-year concept in Islamic Astrology

Congress of the History of Science Paris 1962

KOSELLECK Reinhart (org) O Conceito de Histoacuteria Belo Horizonte Autecircntica

2013

______________ O Futuro Passado dos Tempos Modernos In Futuro Passado

Contribuiccedilatildeo agrave semacircntica dos tempos histoacutericos Rio de Janeiro

Contraponto 2006

______________ The practice of conceptual history timing history spacing

concepts Stanford University Press 2002

KNAUSS Paulo A festa da imagem a afirmaccedilatildeo da escultura puacuteblica no Brasil do

seacuteculo XIX 19amp20 Rio de Janeiro v V n 4 outdez 2010 Disponiacutevel

em lthttpwwwdezenovevintenetobraspknausshtmgt

KRAAY Hendrik Alferes Gamboa e a Sociedade Comemorativa da Independecircncia

do Impeacuterio 1869-1889 Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo v 31 n

61 2011

302

LACTANTIUS De la mort des perseacutecuteurs de lrsquoEglise In Choix des monuments

primitfs de lrsquoEacuteglise chreacutetienne Paris Socieacuteteacute du Pantheacuteon Litteacuteraire 1843

____________ Institutions Divines In Choix des monuments primitfs de lrsquoEacuteglise

chreacutetienne Paris Socieacuteteacute du Pantheacuteon Litteacuteraire 1843

LAFFITTE Pierre Les grands types drsquohumaniteacute Appreacuteciation systeacutematique des

principaux agents de lrsquoeacutevolution humaine Paris E Leroux 1875

LANG Helen S The Order of Nature in Aristotlersquos Physics Place and the elements

Cambridge University Press 1998

LEIBNIZ GW New Essays on Human Understanding P Remnant e J Bennett

(trans) Cambridge Cambridge University Press 1981 (1704)

LEGROS Allan (org) Beuther annoteacute par Montaigne Bibliothegraveques Virtuelles

Humanistes Eacutedition selon trois modes successifs 20022014 Disponiacutevel

em httpwwwbvhuniv-toursfrMONLOEBeutherasp Acesso em

09072014

LACOUTURE Jean Montaigne a Cavalo Record Rio de Janeiro 1998

LE MERCIER Pierre Paul de La Riviegravere Lrsquoordre naturel et essentiel des socieacuteteacutes

politiques T 1 Desaint ndash J Nourse Londres 1767

LE ROY Louis De la Vicissitude ou variete des choses en l`univers et concurrence

des armes et des lettres par les premieres et plus illustres nations du

monde depuis le temps ougrave agrave commenceacute la civiliteacute amp memoire humaine

jusques agrave present Paris Pierre l`Huilier 1575

LEITE Serafim As Primeiras Escolas do Brasil In Paacuteginas de Histoacuteria do Brasil col

ldquoBrasilianardquo vol 95 Companhia Editora Nacional 1937

____________ Histoacuteria da Companhia de Jesus no Brasil Tomo I Rio de Janeiro

Livraria Civilizaccedilatildeo Brasileira 1938

LEMAY Richard Abu Marsquoshar and Latin Aristotelianism in the Twelfth Century

The Recovery of Aristotlersquos Natural Philosophy through Arabic

Astrology Beirut American University of Beirut 1982

______________The Teaching of Astronomy in Medieval Universities principally at

Paris in the Fourteenth Century Manuscripta 1976

LEMOS Miguel (Org) O positivismo e a escravidatildeo moderna Rio de Janeiro Igreja

Positivista do Brasil 1884

LEWIS James R The Astrology Book The Encyclopedia of Heavenly Influences

Visible Ink Press 2013

303

LOURENCcedilO Eduardo Revisitaccedilatildeo da mitologia anteriana Prefaacutecio agraves Causas da

decadecircncia dos povos peninsulares nos uacuteltimos trecircs seacuteculos In

QUENTAL Antero Lisboa Tinta-da-china 2008

LOURENCcedilO Eduardo Mitologia da Saudade Cia das Letras Satildeo Paulo 1999

LORCH RP The Astrological History of Māshāallāh In The British Journal for the

History of Science Cambridge Mass Cambridge University Press 6 (4)

novembro de 2013

LOCKE John An Essay Concerning Human Understanding Peter Nidditch (org)

Oxford Clarendon Press 1975 (1690)

LOumlWITH Karl Meaning in History The University of Chicago Press Chicago

1949

LIVIUS Titus Histoire romaine de Tite Live Paris Panckoucke 1830-1833

MABLY Gabriel Bonnot abade de De l`eacutetude de l`histoire Paris Fayard 1988

_____________________________ Doutes proposeacutes aux Philosophes Eacuteconomistes

sur lrsquoOrdre Naturel et Essentiel des Socieacuteteacutes Politiques In Ouvres

Complegravetes de Lrsquoabbeacute de Mably Tome 11 Lyon Delamolliere 1792

_____________________________ Observations sur lrsquoHistoire de France In

Ouvres Complegravetes de LrsquoAbbeacute de Mably T 1

MACEDO Joaquim Manuel de Efemeacuteride Histoacuterica do Brasil O Globo ndash Oacutergatildeo

dedicado aos interesses do comeacutercio lavoura e induacutestria In STRZODA

Michelle O Rio de Janeiro de Joaquim Manuel de Macedo jornalismo e

literatura no seacuteculo XIX Antologia de Crocircnicas Casa da PalavraRio de

Janeiro 2010

MANNHEIM Karl The sociological problem of generations in Essays on the

sociology of knowledge New York Oxford Universi8ty Press 1952

[1928]

MANILIUS Astronomica GOOLD (ed) Cambridge Harvard University Press

1977

MANDUCO Alessandro Histoacuteria e Quinto Impeacuterio em Antocircnio Vieira In Topoi v

6 n 11 Jul-dez 2005

MALEBRANCHE Traiteacute de Morale IIIX In Ouvres Complegravetes Paris De Sapia

1837

304

MARSHALL John Vie de George Washington geacuteneacuteral en chef des armeacutees

ameacutericaines durant la guerre de lrsquoindependance et preacutesident des Eacutetats-

Unis drsquoAmeacuterique Paris Dentu 1807 Vol 5

________________ Camotildees Os Lusiacuteadas e a Renascenccedila em Portugal 4ordf ed

Lisboa Guimaratildees Ed 1986 (2ordf ed1891)

________________ Portugal Contemporacircneo 3ordf Ediccedilatildeo Lisboa Antocircnio Maria

Pereira 1895

________________ Histoacuteria de Portugal 7 ed T 1 Antonio Maria Pereira Lisboa

1908

________________ Histoacuteria da civilizaccedilatildeo ibeacuterica Lisboa Guimaratildees amp Cordf

Editores 1973 [1879]

MARTINS Roberto de Andrade A Influecircncia de Aristoacuteteles na obra astroloacutegica de

Ptolomeu (O Tetrabiblos) TransFormAccedilatildeo Satildeo Paulo 18 1995

MATTOS Joseacute Verissimo de A Instrucccedilatildeo e a Imprensa In ASSOCIACcedilAtildeO DO

QUARTO CENTENAacuteRIO DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL Livro

do Centenaacuterio (1500-1900) Imprensa Nacional Rio de Janeiro 1900 Vol

1

MAYEUR Jean-Marie ldquoLa Reacutevolution Franccedilaise est un blocrdquo Commentaire 45

primavera de 1989

MCDANNELL Collen LANG Bernhard Historia del Cielo De los autores biacuteblicos

hasta nustros dias Taurus Madrid 2001

MEEKS Wayne The Writings of St Paul Norton amp Company Inc New York and

London Second Edition 2007

METHUEN Charlotte The Role of the Heavens in the Thought of Philip

Melanchthon Journal of The History of Ideas 57 1996 pp 385-403

MICHELET Jules Histoacuteria da Revoluccedilatildeo Francesa da queda da Bastilha agrave Festa da

Federaccedilatildeo Trad Maria Luacutecia Machado Cia das Letras Satildeo Paulo 1989

____________ Histoire de la Reacutevolution Franccedilaise T 7 Paris Abel Pilon 1869

____________ Introduction a lrsquoHistoire Universelle Suivi du discours drsquoouverture

3a ed Paris L Hachette 1843

MIRABEAU Consideacuterations sur lrsquoOrdre de Cincinnatus ou Imitation drsquoun pamphlet

Anglo-Ameacutericain J Johnson Londres 1784

MOMIGLIANO Arnaldo As raiacutezes claacutessicas da historiografia moderna Bauru

EDUSC 2004

305

__________________ Time in Ancient Historiography History And Theory

Separate number 6 1966

MONTAIGNE Os Ensaios Pinguin Books Satildeo Paulo 2010

MORAES Abrahatildeo A Astronomia no Brasil Usp 1984

MOSLEY Adam Past Portents Predict Cometary historiae and catalogues in the

sixteenth and seventeenth centuries In TESSICINI D BONER PJ

(org) Celestial Novelties on the Eve of the Scientific Revolution 1540-

1630 Florencia Leo Olschki Museo Galileo 2013

MOSLEY Adam Regiomontanus and Astrology Cambridge University History and

Philosophy of Science Department 1999

MOTTA Marly Silva da A naccedilatildeo faz cem anos o centenaacuterio da independecircncia e a

questatildeo nacional no iniacutecio dos anos 20 Rio de Janeiro CPDOCFGV

1992

MUGLER Charles Deux thegravemes de la cosmlogia grecque Devenir cyclique et

pluraliteacute des monde Paris 1953

MURARI PIRES A Clio Tucideana entre Maquiavel e Hobbes (as figuraccedilotildees

heroicas do historiador) In Anos 90 Porto Alegre v 21 n 39 jul 2014

NABUCO Joaquim Camotildees Discurso pronunciado aacute 10 de junho de 1880 Rio de

Janeiro G Leuzinger amp Filhos 1880

________________ Camotildees e os Lusiacuteadas Rio de Janeiro Tipographia Imperial do

Instituto Artiacutestico 1872

________________ O Abolicionismo Ediccedilotildees do Senado Federal Vol 7 Brasiacutelia

2003

________________ Discurso de posse como soacutecio efetivo do IHGB na sessatildeo

ordinaacuteria de 25 de outubro de 1896 RIHGB 1896 Tomo LIX II

Namer Geacuterard La commeacutemoraton en France de 1945 agrave nos jours Logiques

Sociales lrsquoHarmattan Paris 1987

NICCOLI Ottavia Prophecy and People in Renaissance Italy Cochrane Princenton

University Press 1990

NOacuteBREGA Padre Manuel da Dialogo sobre a conversatildeo do Gentio MetaLibri Satildeo

Paulo 2006 [1556-1557]

NOVISNKY Anita Padre Antocircnio Vieira a Inquisiccedilatildeo e os Judeus Novos Estudos

Cebrap n o 29 Marccedilo de 1991

306

NETO Edgar Leite Ferreira O improviso da civilizaccedilatildeo a Naccedilatildeo Republicana e a

construccedilatildeo da ordem social no final do seacuteculo XIX Niteroacutei UFF 1989

(diss mestrado ndash mimeo)

NEWMANN William R GRAFTON Anthony (org) Secrets of Nature Astrology

and Alchemy in Early Modern Europe Cambridge MA 2001

NETTO Coelho Fagulhas Gazeta de Notiacutecias 25 de maio de 1898

NOUGUEacute Carlos COSTA Ricardo da O Sonho de Cipiatildeo de Marco Tuacutelio Ciacutecero

Notandum Jan-abr 2010 IJI-Universidade do Porto

NORA Pierre Lrsquoegravere de la commeacutemoraison In Les lieux de meacutemoire III Paris

Gallimard 1984 v 3

OLIVEIRA Luacutecia Lippi As festas que a Repuacuteblica manda guardar Estudos

Histoacutericos 2 1989

OLIVEIRA Maria da Gloacuteria de Escrever vidas narrar a histoacuteria a biografia como

problema historiograacutefico no Brasil oitocentista FGV Editora Rio de

Janeiro 2011

_________________________ Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade

biografia memoacuteria e experiecircncia da histoacuteria no Brasil oitocentista Varia

Histoacuteria Belo Horizonte vol 26 no 43

OLIVEIRA Maacutercio O conceito de representaccedilotildees coletivas uma trajetoacuteria da

Divisatildeo do Trabalho agraves Formas Elementares Debates do NER Porto

Alegre Ano 13 n 22 JulDez 2012

OLSTER Lester C Benjamin Franklins Vision of American Community A Study in

Rhetorical Iconology (Studies in RhetoricCommunication) University of

South Caroline 2004

OZOUF Mona La fecircte reacutevolutionnaire 1789-1799 Paris Gallimard 1976

____________ Le Pantheacuteon lrsquoEacutecole Normale des morts In Nora Pierre Lieux de

meacutemoire Vol 1 La Reacutepublique Paris Gallimard 1984

ORY Pascal Une Nation pour meacutemoire 1889 1939 1989 Trois jubileacutes

reacutevolutionnaires Presses de la Fondation Nationale des Sciences

Politiques Paris 1992

OVIacuteDIOOuvres complegravetes NISARD (dir) J-J Dubochet Eacutediteurs Paris 1838

PAVES Leonardo Acquaviva Historia Magistra Vitae Histoacuteria e Oratoacuteria em

Ciacutecero Satildeo Paulo USP 2011 Dissertaccedilatildeo de Mestrado

307

PEREIRA DE JESUS Ronaldo Cultura Associativa no seacuteculo XIX atualizaccedilatildeo do

repertoacuterio criacutetico dos registros de sociedades na cidade do Rio de

Janeiro (1841-1889) In Anais do XXVII Simpoacutesio Nacional de Histoacuteria

Conhecimento histoacuterico e diaacutelogo social Natal RN 22 a 26 de Julho de

2013

PEREIRA Angelo Balbino Soares A Teoria da Metempsicose Pitagoacuterica

Dissertaccedilatildeo de mestrado UNB 2010

PERRAULT Charles Paralelle des Anciens et des Modernes En ce qui regard les

arts et les sciences Nouvelle Edition augmenteacutee de quelques Dialogues

Tome I Paris Coignard 1663

PLATAtildeO Meno Warminster Aris amp Phillips 1991

________Phaedrus Cambridge Cambridge University Press 2011

PLUTARCO Les vies des hommes illustres Tome Troisiegraveme vie drsquoAlexandre

Traduc par Alexis Pierron (Bilingue) Paris Charpentier Libraire-Eacutediteur

1853

PLIacuteNIO o Velho Histoire Naturalle Tome Second Livre XXX Eacutemile Littre

(traduction) Paris JJ Dubochet Eacuteditors 1850

PIRES Antoacutenio Machado A Ideia de Decadecircncia na Geraccedilatildeo de 70 2 ed Lisboa

Vega 1992

POMIAN Krzystof Lrsquoordre du temps Paris Gallimard 1984

_______________ Les sciences les croyances occultes et les niveaux de culture en

Europe (XVIe-XVIIe siegravecle) In History European Ideas Vol 3 no 1

POUELLE E Les Tables alfonsines avec les Canons de Jean de Saxe Paris 1984

POCOCK J G A Historiography and Enlightenment a view of their History In

Modern Intellectual History 51 Cambridge University Press 2008

PUJOL Steacutephane O jogo do erro e da verdade nos diaacutelogos filosoacuteficos de Voltaire

In Doispontos Curitiba-Satildeo Carlos Vol 9 n3 dezembro de 2012

POLLAK Michael Memoacuteria e identidade social In Estudos Histoacutericos Rio de

Janeiro vol 5 n 10 1992

POLLAK Michael Memoacuteria esquecimento silecircncio In Estudos Histoacutericos Rio de

Janeiro vol 2 n 3 1989

PORTO ALEGRE Manuel de Arauacutejo Iconografia Brasileira RIHGB t 19 p 349-

350 1856

308

PTOLOMEU Ptolomy Tetrabiblos ROBBINS FE Loeb Classical Library No

435 1940

QUINTILIANO Inst Oratoire Paris CLF Panckoucke 1829-1840 V 3

QUENTAL Antero Causas da decadecircncia dos povos peninsulares nos uacuteltimos trecircs

seacuteculos Prefaacutecio de Eduardo Lourenccedilo Lisboa Tinta-da-china 2008

RABELAIS Franccedilois Prognoacutesticos Pantagrueacutelicos In ROSSI Paolo (org) Visotildees

do fim do mundo Renata Cordeiro (trad) Satildeo Paulo Landy Editora 2006

REEVES Eileen Evening News Optics Astronomy and Journalism in Early

Modern Europe University of Pennsylvania Press Philadelphia Kindle

version sp 2014

REVIGLIO Madame Marie-Claire Laval In Revue franccedilaise de science politique

37e anneacutee ndeg2 1987

RODRIGUES Vitor Luis Gaspar A decadecircncia da monarquia constitucional

portuguesa factores de afirmaccedilatildeo do ideaacuterio republicano Ponta Delgada

Universidade dos Accedilores 1986

RODRIGUES Joseacute Honoacuterio Introduccedilatildeo In Cataacutelogo da Exposiccedilatildeo de Histoacuteria do

Brasil Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1981 v1

RODRIGUES Francisco Histoacuteria da Companhia de Jesus na Assitecircncia de Portugal

Porto Apostolado da Imprensa 1931-1950 Tomo III vol I

ROSENBERG Daniel GRAFTON Anthony Cartographies of time A history of the

timeline Princenton Architectural Press New York 2010

RIBEIRO Maria Eurydice de Barros Memoacuteria em bronze ndash estaacutetua equestre de D

Pedro I In KNAUSS Paulo (Coord) Cidade vaidosa imagens urbanas

do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Sette Letras 1999

RIO BRANCO Baratildeo do Efemeacuterides Brasileiras Rodolfo Garcia (org) Senado

Federal Brasiacutelia 1999

RENAN Ernest Essais de morale et de critique Paris Calman Leacutevy 1859

____________ Correspondance 1846-1871 Paris 1926 Calmann-Leacutevy Eacutediteurs

____________ Reacuteponse au discours de reacuteception de Jules Claretie Discours

prononceacute dans la seacuteance publique le jeudi 21 feacutevrier 1889 Paris Palais de

lrsquoinstitut

RICOEUR Paul Entre meacutemoire et histoire In Projet no 248 1996-1997

_____________ Tempo e Narrativa Satildeo Paulo Martins Fontes 2010 Tomo I II e

III

309

RUSSEL Nicolas Collective Memory before and after Halbwachs In The French

Review Vol 79 No 4 March 2006

______________ Construction et repreacutesentation de la meacutemoire collective dans les

entreacutees triomphales au XVIe siegravecle In Renaissance et Reacuteforme 322

Printemps 2009

ROLFE John c Ammianus Marcellinus With An English Translation Cambridge

Cambridge Mass Harvard University Press London William

Heinemann Ltd

SANTOS Gisele Cunha dos amp MONTEIRO Fernanda Fonseca ldquoCelebrando a

fundaccedilatildeo do Brasil a inauguraccedilatildeo da Estaacutetua Equestre de D Pedro Irdquo

Revista Eletrocircnica de Histoacuteria do Brasil Juiz de Fora UFJF v 4 nordm 1

Juiz de Fora UFJF janjun 2000

SAWYER Joseph Dillaway George Washington 1732-1799 Bi-centennial ed

Boston Thomas W Best 1927 v 2

SENECA Ad Lucilium Epistulae Morales E Capps (org) The Loeb Classical

Library Richard M Gummere (transl) Vol III London William

Heinemann 1925

SENECA Naturales Quaestiones De Aquis Terrestribus Liber III-291 CLARKE

John (trans) Physical Science in the Time of Nero Being a translation of

the Quaestiones Naturales of Seneca Macmillan and co Limited

London 1910

SOMMERVILLE John C The secularization of Early Modern England from

religious culture to religious faith Oxford 1992

SOUTHEY Robert Histoacuteria do Brasil Primeiro Volume Ediccedilotildees do Senado

Federal Vol 133-A Brasiacutelia 2010

SOUZA Iara Lins de Carvalho Paacutetria coroada O Brasil como corpo poliacutetico

autocircnomo 1790-1831 Satildeo Paulo Unesp 1999

SOUSA E SILVA Joaquim Norberto de Discurso ao Instituto Histoacuterico e Geograacutefico

Brasileiro 23 de Novembro de 1860 In Histoacuteria da Conjuraccedilatildeo Mineira

Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Domiacutenio publico Original de 1873

SMITH Goldwin Does the Biblie Sanction American Slavery Oxford amp London

John Henry and James Parker 1863

SCHELLE Gustav Du Pont de Nemours et lrsquoEcole physiocratique Paris

Guillaumin 1888

310

SMOLLER Ackerman L History Prophecy and the Stars Princenton NJ

Princenton University Press 1994

SPILLMAN Lyn Nation and commemoration Creating national identities in the

United States and Australia Cambridge University Press New York

1997

SPENCER Herbert Progess Its Law and Causes In The Westminster Review Vol

67 (April 1857)

______________ Principles of Sociology Williams and Norgate London 1877

______________ The Man Versus the State Caxton Printers Idaho 1960 [1884]

SEIXAS Jacy Alves de Halbwachs e a memoacuteria-reconstruccedilatildeo do passado In

Histoacuteria Satildeo Paulo 20 2001

SILVA MAIA Emiacutelio Joaquim Elogio histoacuterico do conselheiro Joseacute Bonifaacutecio de

Andrada e Silva Revista do IHGB VIII 1846

SIQUEIRA Carla A Imprensa comemora a Repuacuteblica memoacuterias em luta no 15 de

novembro de 1890 Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro vol 7 n 14 1994

STAROBINSKI Jean Montaigne en mouvement Paris Gallimard 1982

TAINE H Histoire de la litteacuterature anglaise T 1 Paris Librarie de L Hachette

1866

TEIXEIRA Felipe Charbel Uma Construccedilatildeo de fatos e palavras Ciacutecero e a

concepccedilatildeo retoacuterica da histoacuteria In Varia Historia Belo Horizonte vol 24

n 40 juldez 2008

TEIXEIRA Antonio Epitome das noticias Astrologicas para a Medicina Lisboa

Officina de Ioam da Costa 1670

TIBURSKI Eliete Lucia Escrita da histoacuteria e tempo presente no Brasil oitocentista

Dissertaccedilatildeo de Mestrado UFRGS 2011

THOMAS Keith Religion and the Decline of Magic Studies in Popular Beliefs in

Sixteenth and Seventeenth-Century England Oxford University Press

Oxford 1971

THORNDIKE Lynn The true place of astrology in the History of Science Isis Vol

46 No 3 Setembro de 1955 pp 273-278 University of Chicago Press

________________ A history of magic and the experimental Science Vol II New

York Columbia University Press 1923

THURSTON Herbert SJ The Holy Year of Jubilee An account of the history and

ceremonial of the Roman jubilee London Sands amp Co 1900

311

THIESSE Anne-Marie La creacuteation des identiteacutes nationales Europe XVIII-XIX

siegravecles Paris Seuil 1999

__________________ Ficccedilotildees criadoras as identidades nacionais Anos 90 Porto

Alegre n 15 p7-23 20012002

TOCQUEVILLE Alexis de De la deacutemocratie en Ameacuterique I (deuxiegraveme partie) Les

classiques des sciences sociales version numeacuterique par Jean-Marie

Tremblay Disponiacutevel em httpclassiquesuqaccaclassiques Acesso em

Janeiro de 2014

TORNER Carles Shoah une pedagogie de la meacutemoire Les Eacuteditions de lrsquoAtelier

Paris 2001

TREacuteVIEN Claire Le Monde agrave lrsquoenvers the carnivalesque in prints of the

construction of the fecircte de la feacutedeacuteration of 1790 In French History Vol

26 No 1 2012

TURIN Rodrigo Os antigos e a naccedilatildeo algumas reflexotildees sobre os usos da

antiguidade claacutessica no IHGB (1840-1860) In LrsquoAtelier du Centre de

recherches historiques 07 | 2011 URL disponiacutevel em

httpacrhrevuesorg3748 Acesso em 5 de maio de 2014

TWAIN Mark A Connecticut Yankee in King Arthurrsquos Court Digireadscom

Publishing Stilwell 2004

VASCONCELLOS Bernardo Pereira de Carta aos Senhores Eleitores da Proviacutencia

de Minas Gerais Francisco Rodrigues de Paiva Rio de Janeiro 1899

VANDERKAM James The Book of Jubilees Guides to Apocrypha and

Pseudepigrapha Sheffield Sheffield Academic Press 2001

_______________ Textual and Historical Studies in the Book of Jubilees Harvard

Semitic monographs no 14 Scholars Press Missoula 1977

VAMPREacute Joatildeo Festas Tradicionais Revista do Instituto Histoacuterico e Geograacutephico de

Satildeo Paulo Tomo VI 1900-1901

VARNHAGEN Francisco Adolfo de Histoacuteria geral do Brasil antes de sua separaccedilatildeo

e independecircncia de Portugal Satildeo Paulo Melhoramentos Tomo I 1959

[1854]

____________ Francisco Adolfo Histoacuteria Geral do Brazil Rio de Janeiro

Laemmert 1854

VEIGA Joseacute Pedro Xavier da Ephemerides Mineiras (1664-1897) Volume II (Abril

a Junho) Ouro Preto Imprensa Official do Estado de Minas 1897

312

VEYNE Paul Como se escreve a histoacuteria Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

VENAYRE Sylvain Les Origines de la France quand les historiens racontaient la

nation LrsquoUnivers historique Paris Seuil 2013

VERNANT Jean-Pierre Aspectos miacuteticos da memoacuteria In Mito e pensamento entre

os gregos Paz e Terra 2002 Satildeo Paulo

VIEIRA Antonio Voz de Deos ao mundo a Portugal amp aacute Bahia Juizo do cometa

que nella foi visto em 27 de Outubro de 1695 amp continua ateacute hoje 9 do

Novembro do mesmo anno In Sermoens e Varios Discursos () da

Companhia de Jesu Pregravegador de Sua Magestade Tomo XIV Obra

posthuma dedicada a purissima Conceyccedilam da Virgem Maria Nossa

Senhora Lisboa Valentim da Costa Deslandes 1710

______________ Sermatildeo do Esposo da Matildee de Deus S Joseacute In Sermotildees XV

tomos Porto Lello amp Irmatildeo 1959 Vol VI

______________ Histoacuteria do Futuro Livro Ante-Primeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees e

Publicaccedilotildees Brasil 1937

VOLTAIRE Ouvres Complegravetes Philosophie Tome I Paris Antoine-Augustin

Renouard 1819

_________ Bleacute ou bled In In Ouvres Complegravetes T 18 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee

de la Vie de Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes biographiques

Garnier Fregraveres Paris 1877-1885

_________Oeuvres complegravetes T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de

Voltaire par Condorcet et dautres eacutetudes biographiquesGarnier Fregraveres

Paris 1877-1885

_________ Ouvres complegravetes Tome 61 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-

Typographique 1785 Recueil des lettres Lettre CLIII A M Le Comte

DrsquoArgental

_________ Essai sur les moeurs et lesprit des nations In Oeuvres complegravetes de

Voltaire T 16 1785 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-

Typographique

_________ Diatribe a lrsquoauteur des Eacutepheacutemeacuterides BNF Tolbiac - Rez-de-jardin ndash

magasin Cote RZ- 3182

_________ Deacutefense de Louis XIV [13 de outubro de 1769] In Ouvres Complegravetes de

Voltaire T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par

313

Condorcet et dautres eacutetudes biographiques Garnier Fregraveres Paris 1877-

1885

_________ Oeuvres complegravetes de Voltaire Dictionnaire philosophique I Jean-

Antoine-Nicolas de Caritat marquis de Condorcet Furne 1835

_________ De la Chine Chapitre Premier De la Chine de son antiquiteacute de ses

forces de ses lois de ses usages amp de ses sciences InOeuvres complegravetes

de Voltaire T 16 1785 de lImprimerie de la Socieacuteteacute Litteacuteraire-

Typographique

_________ Nouvelles Consideacuterations sur l`histoire 1744 In Ouvres historiques

Paris Bibliothegraveque de la Pleacuteiade 1957

_________ Treisiegraveme Lettre sur Mr Locke In Lettres eacutecrites de Londres sur les

Anglois et autres sujets Bowyer Londres 1734

_________ Oeuvres complegravetes de Voltaire Dictionnaire philosophique I Jean-

Antoine-Nicolas de Caritat marquis de Condorcet Furne 1835

_________ Entretiens Chinois In Dialogues et anecdotes philosophiques avec

introduction notes et rapprochements Raymond Naves (org) Garnier

Paris 1939

_________ Discours de lrsquoEmpereur Julian contre les Chretiens In Ouvres

Complegravetes T 287 nouvelle eacutedition preacuteceacutedeacutee de la Vie de Voltaire par

Condorcet et dautres eacutetudes biographiques Garnier Fregraveres Paris 1877-

1885

VOLTAIRE-BAZIN (pseud) Abbeacute La Philosophie de lrsquohistoire Amsterdam 1765

YATES Frances The Art of memory London Pimlico 1992

_____________ A The Life and Works of Louis Le Roy By Werner L

Gundersheimer Librairie Droz Geneva New York Review of Books

August 24 1967

WANDERLEY Marcelo da Rocha Jubileu Nacional A comemoraccedilatildeo do

Quadricentenaacuterio do Descobrimento do Brasil e a Refundaccedilatildeo da

Identidade Nacional (1900) UFRJ 1998

WARD Harry M The War for Independence and the Transformation of American

Society UCL Press London 1999

WEBSTER Noah Effects of slavery on morals and industry Cornell University

Library 1793

314

WILSON Woodrow George Washington fondateur des Eacutetats-Unis Paris Payot

1927 (1893)

WINOCK Michel Les geacuteneacuterations intellectuelles In Vingtiegraveme Siegravecle Revue

dhistoire Ndeg22 avril-juin 1989

ZAMBELLI Paola (org) Astrologi Hallucinati Stars and the End of the World in

Luthers Time Berlin New York De Gruyter 1986

ZANGARA Adriana Voir lrsquohistoire Theacuteories anciennes du reacutecit historique Paris

EHESS 2007

ZERUBAVEL Eviatar Time Maps Collective Memory and the Social Shape of the

Past The University of Chicago Press 2003 ChicagoLondres

ZERUBAVEL Eviatar Social Mindscapes An Invitation to Cognitive Sociology

Cambridge Mass Harvard University Press 1997

ZERUTUZA Hugo Andreacutes BOTALLA Horacio Centros e Maacutergenes Simboacutelicos

del Imperio Romano Buenos Aires UBA 1998

Page 3: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 4: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 5: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 6: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 7: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 8: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 9: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 10: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 11: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 12: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 13: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 14: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 15: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 16: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 17: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 18: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 19: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 20: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 21: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 22: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 23: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 24: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 25: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 26: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 27: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 28: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 29: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 30: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 31: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 32: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 33: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 34: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 35: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 36: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 37: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 38: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 39: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 40: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 41: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 42: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 43: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 44: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 45: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 46: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 47: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 48: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 49: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 50: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 51: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 52: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 53: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 54: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 55: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 56: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 57: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 58: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 59: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 60: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 61: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 62: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 63: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 64: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 65: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 66: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 67: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 68: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 69: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 70: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 71: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 72: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 73: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 74: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 75: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 76: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 77: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 78: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 79: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 80: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 81: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 82: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 83: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 84: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 85: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 86: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 87: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 88: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 89: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 90: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 91: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 92: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 93: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 94: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 95: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 96: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 97: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 98: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 99: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 100: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 101: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 102: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 103: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 104: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 105: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 106: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 107: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 108: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 109: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 110: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 111: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 112: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 113: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 114: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 115: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 116: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 117: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 118: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 119: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 120: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 121: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 122: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 123: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 124: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 125: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 126: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 127: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 128: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 129: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 130: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 131: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 132: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 133: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 134: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 135: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 136: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 137: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 138: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 139: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 140: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 141: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 142: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 143: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 144: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 145: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 146: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 147: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 148: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 149: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 150: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 151: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 152: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 153: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 154: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 155: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 156: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 157: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 158: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 159: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 160: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 161: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 162: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 163: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 164: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 165: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 166: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 167: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 168: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 169: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 170: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 171: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 172: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 173: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 174: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 175: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 176: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 177: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 178: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 179: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 180: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 181: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 182: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 183: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 184: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 185: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 186: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 187: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 188: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 189: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 190: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 191: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 192: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 193: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 194: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 195: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 196: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 197: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 198: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 199: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 200: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 201: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 202: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 203: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 204: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 205: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 206: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 207: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 208: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 209: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 210: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 211: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 212: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 213: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 214: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 215: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 216: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 217: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 218: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 219: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 220: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 221: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 222: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 223: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 224: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 225: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 226: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 227: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 228: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 229: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 230: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 231: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 232: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 233: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 234: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 235: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 236: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 237: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 238: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 239: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 240: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 241: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 242: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 243: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 244: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 245: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 246: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 247: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 248: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 249: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 250: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 251: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 252: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 253: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 254: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 255: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 256: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 257: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 258: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 259: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 260: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 261: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 262: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 263: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 264: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 265: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 266: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 267: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 268: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 269: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 270: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 271: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 272: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 273: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 274: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 275: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 276: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 277: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 278: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 279: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 280: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 281: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 282: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 283: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 284: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 285: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 286: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 287: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 288: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 289: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 290: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 291: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 292: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 293: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 294: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 295: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 296: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 297: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 298: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 299: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 300: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 301: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 302: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 303: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 304: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 305: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 306: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 307: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 308: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 309: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 310: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 311: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 312: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 313: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a
Page 314: Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a