oh meu deus ultra trail serra da estrela k100+ · 2015-06-23 · primeira vez que ia estar em prova...

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Oh Meu Deus Ultra Trail Serra da Estrela K100+ Frase-Chave: "Com o destino a conduzir a carroça de tudo, pela estrada de nada" Prólogo desta Aventura O Oh Meu Deus é uma prova de montanha, a primeira prova de 100 quilómetros em Portugal Continental, que percorre os recantos e encantos da Serra da Estrela (a cadeia montanhosa mais alta de Portugal). Foi idealizada pelo Paulo Alexandre Garcia e faz parte do conjunto de provas de Trail Running que a Empresa Horizontes organiza anualmente. Este ano festejava-se a 5ª edição da pioneira. Como tal, a organização decidiu reestruturar o percurso, aumentar o grau de dificuldade, e ainda, marcar esta edição com umas "inovações". Saliento a criação de um pódio com cinco lugares, a criação de medalhas com três cores diferentes (do 1º ao 10º atleta a medalha era na cor ouro, do 11º ao 20º a medalha era na cor prata e do 21º em diante a medalha era na cor bronze), a criação de um Buff alusivo a esta edição e T-shirts de cores diferentes para cada uma das provas. É conhecida por ser uma prova dura e técnica, sujeita às diferenças climáticas que a Serra da Estrela propícia à prática deste tipo de desportos.

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Oh Meu Deus Ultra Trail Serra da Estrela

K100+

Frase-Chave: "Com o destino a conduzir a carroça de tudo, pela estrada de nada"

Prólogo desta Aventura

O Oh Meu Deus é uma prova de montanha, a primeira prova de 100 quilómetros em

Portugal Continental, que percorre os recantos e encantos da Serra da Estrela (a

cadeia montanhosa mais alta de Portugal). Foi idealizada pelo Paulo Alexandre Garcia

e faz parte do conjunto de provas de Trail Running que a Empresa Horizontes

organiza anualmente.

Este ano festejava-se a 5ª edição da pioneira. Como tal, a organização decidiu

reestruturar o percurso, aumentar o grau de dificuldade, e ainda, marcar esta edição

com umas "inovações". Saliento a criação de um pódio com cinco lugares, a criação

de medalhas com três cores diferentes (do 1º ao 10º atleta a medalha era na cor ouro,

do 11º ao 20º a medalha era na cor prata e do 21º em diante a medalha era na cor

bronze), a criação de um Buff alusivo a esta edição e T-shirts de cores diferentes para

cada uma das provas.

É conhecida por ser uma prova dura e técnica, sujeita às diferenças climáticas que a

Serra da Estrela propícia à prática deste tipo de desportos.

OMD: o que significou para mim

A primeira prova de fogo deste ano...um objetivo com uma magnitude inexplicável...um

querer mais que tudo...uma dedicação absoluta...um "não há não terminar"...a

promessa de concluir esta prova e dedicá-la a duas pessoas muito importantes.

Considero que esta é uma daquelas experiências que devemos fazer, pelo menos,

uma vez na vida. Sensações únicas, inimagináveis, com um poder de transformação

brutal, que nos despertam para outras realidades, que nos tocam de uma forma

especial e que só atravessando por elas é que conseguimos dar valor a outras tantas.

O meu Oh Meu Deus começou no dia 1 de maio de 2014. Vi o folheto desta prova e

prometi que em 2015 seria "a prova". Era na Serra da Estrela, local onde habitam os

meus avós maternos e como tal, disse que a sua conclusão seria uma homenagem a

eles.

No dia 14 de setembro de 2014, estava eu a regressar do I Douro Réccua Trail,

quando recebi o e-mail de pré-inscrição na prova. Inscrevi-me de imediato e efetivei o

pagamento. O dorsal 635 ficou-me destinado pouco tempo depois.

Agora tinha 9 meses para preparar "o grande dia"! Ohhhh Meu Deussss!!!!

Hehehehe!!!! 9 meses?? Tantooooo tempo.... Pois é, parece que é muito tempo mas

digo-vos que passou a voar! O meu target era terminar! Concluir a prova sem lesões e

sem tempos definidos. Mas sentia o peso da responsabilidade…

A primeira prova de 100 quilómetros, a primeira vez que ia iniciar uma prova à noite, a

primeira vez que ia estar em prova na Serra que amo, a primeira vez que teria os

meus avós à minha espera na meta, a primeira vez que era exequível estar em prova

24h e que teria de gerir a minha alimentação o melhor possível...tantas primeiras

vezes... Engraçado como, quase um ano após me ter iniciado no Trail Running, ainda

havia lugar a estreias.

05.06.2015: “O Grande Dia”

Sete da manhã do dia mais aguardado do ano...o sol espreita tímido por entre as

frestas do estore...o despertador nem chega a tocar porque acordo um minuto antes

da hora estipulada…chegou o grande dia!!!

Desperto serena e confiante. Sei que estou bem preparada. Levanto-me e equipo-me

para o último dia de marcações. O Paulo e o Borges não queriam que eu fosse mas a

minha teimosia prevaleceu. Era necessário terminar de marcar a garganta de Loriga e

o Borges não podia ir sozinho. Além disso, sabia que tinha capacidade para o fazer e

para umas horas depois iniciar a minha prova. Ambos temiam pela minha resistência.

Estava desde terça-feira a efetuar marcações com o Borges, das 9 da manhã às 9 da

noite, com uma alimentação precária e hidratação duvidosa. Mas viam-me satisfeita,

motivada e sempre com o meu habitual sorriso nos lábios. Tinha tudo planeado!

Marcar a garganta de manhã e cochilar a meio da tarde.

Um pequeno parêntesis para explicar o porquê de ter ajudado nas marcações do

OMD. O Paulo Garcia sofreu uma lesão na perna esquerda, em abril, quando efetuava

a limpeza do terreno e reconhecimento dos percursos. Desde então não conseguia

correr, tinha dificuldade em andar e deixou de "estar no terreno". Na semana antes da

prova falei com ele e soube que estava com dificuldades em arranjar uma equipa para

efetuar a marcação do K160. Disponibilizei-me de imediato a ajudar. Selecionariam as

partes que quisessem que eu marcasse, imiscuindo-se os problemas éticos

associados. Fiz equipa com o Paulo Borges e juntos percorremos 150 quilómetros em

6 dias, dos quais quatro dias de marcações e dois dias a retirar fitas.

Ganhei vantagem sobre os restantes

atletas? Não. A única vantagem que tive

“no terreno” foi efetuar as marcações no

Km Vertical e na Garganta de Loriga, o

que me permitiu conhecer a dureza

daquela parte do percurso e ter

consciência que precisava de estar bem

hidratada e nutrida para efetuar aqueles

empenantes 20K. As restantes marcações

que fiz foram no percurso do K160,

nomeadamente de Póvoa Nova a Vale

Rossim passando por Aldeias, Folgosinho

e Rota dos Galhardos. Mas deter

conhecimento não fez com que não passasse lá, e com a agravante de já ter 90 Km

nas pernas quando iniciei a minha prova. Por isso, ao invés de fazer apenas um Km

Vertical e uma garganta de Loriga, eu fiz dois Km Verticais e três gargantas de Loriga.

Top! E acredito piamente que foi “esta preparação” que também me ajudou a

manter o corpo ativo e os músculos conscientes do percurso que iam trilhar.

Retomando…às 14h dirigi-

me ao Secretariado da prova

para ver os atletas do K160,

para levantar o meu Kit de

Atleta e para desejar um

"Boa Sorte" ao Pedro

Cordas, um dos atletas do

Clube Millennium bcp a

efetuar esta distância.

Almocei e fui descansar. Ou melhor...tentei. O corpo estava elétrico das marcações da

manhã, a cabeça a mil pois os neurónios reviam todo o material obrigatório e

aconselhado que iriam colocar na mochila, os músculos recordavam a cada segundo

os alimentos que eu tinha de levar para se poderem nutrir, as hormonas

bombardeavam o corpo estimulando-o para as próximas 24h, uma corrente de energia

fluía da raiz dos cabelos à ponta dos pés fazendo-me sofrer de "bicho

carpinteiro". Acho que cochilei...não foi o sono profundo que almejava, mas foi o elixir

que o corpo precisava. Às 18h30 despertei naturalmente e comecei a "montar a

mochila". Depois dispus toda a roupa que iria utilizar em cima da colcha e escolhi o

material que pretendia colocar no saco de Unhais (no final explico quais os locais de

apoio aos atletas e o porquê de existirem dois locais para o K100+).

Jantei num restaurante típico, bastante

acolhedor, e esperei que o Fernando Mota

Sousa chegasse a Seia com o meu

tesouro. Fernando, uma vez mais, o meu

profundo agradecimento por teres trazido a

pessoa mais importante da minha vida

para um dos dias mais importantes do meu

currículo atlético.

Equipada, dirigi-me para o local da partida. Por momentos pensei "será que me

enganei no sítio??...o NOS Alive será hoje? Vou ver os Muse ao vivo?? Hehehe!!!

O local da partida estava montado em frente à Câmara Municipal de Seia, tínhamos

luzes psicadélicas, um DJ e uma passadeira vermelha. A disposição de todos estes

elementos estava muito bem conseguida. Muitos atletas foram unânimes em afirmar

que a partida do K100 foi a mais bonita e a mais original das quatro provas.

Encontrei os atletas do Clube que também iam efetuar a prova, de seus nomes,

Fernando Alcides, Hélder Baptista, Virgílio Costa, Fernando Mota e Sousa, Miguel

Cruz e José Farinha, a equiparem-se.

Dirigimo-nos para a linha de partida, fizemos o controlo zero, tirámos as fotos da

praxe, contámos até dez, com o retroprojetor a assinalar a hora, e ao som da

trombeta, partimos.

57 atletas, guiados por um carro da polícia, partiram da Câmara Municipal de Seia às

00h do dia 6 de junho de 2015, com o objetivo comum de percorrer 102 quilómetros e

regressar ao ponto de partida dentro do tempo limite.

1º Abastecimento: 10.325 metros até ao Sabugueiro com um D+689 e D-177

As luzes da cidade iluminaram-nos nos quilómetros iniciais até à entrada no trilho e,

daqui em diante, os frontais foram os nossos guias. A maioria dos atletas levava

bastões e como se começava logo a subir, o "toc toc" ecoou na noite.

Percorremos um trilho florestal até entrar na vila de Póvoa Nova. Aqui fomos

brindados pela hospitalidade dos locais. 4 Km após iniciar a prova tínhamos uma mesa

recheada com pedaços de melancia, cerejas, bolinhos, tostas, queijo, água, chá e

café. Um mimo!!! São gestos como os destes aldeões que nos marcam e que

recordamos com elevada estima.

Continuámos para o Sabugueiro num percurso por trilhos de montanha de baixa

dificuldade técnica mas com alguma oscilação nos desníveis acumulados e

irregularidades naturais do terreno. A lua esteve sempre à minha direita e foi uma

companhia constante nos noturnos quilómetros que percorri. À medida que subia em

altitude, o vento fazia-se sentir cada vez mais gélido.

À saída da Póvoa Velha, desembocámos numa estrada e passados uns metros

voltámos a entrar num trilho, sob indicação de um carro de bombeiros. Seguimos na

direção do Sabugueiro.

O Sabugueiro é um dos melhores pontos de partida para se conhecer a magnífica

Serra da Estrela pois é uma das mais extensas freguesias de todo o Parque Natural,

situa-se a 1.100 metros de altitude e é a meio caminho do ponto mais alto do Planalto

Central. O abastecimento era de líquidos e sólidos, bastante farto.

Bebi água, comi uma banana e sem grandes demoras, segui.

2º Abastecimento: 7.650 metros até Vale Rossim com D+445 e D-224

Do Sabugueiro seguíamos para o Vale Rossim. Descemos a vila e começamos a subir

por um trilho arbustivamente fechado, com uma linha de água bem conservada e

pincelada com pedras de vários tamanhos e feitios. A terra estava húmida e em alguns

locais, o pé enterrava-se. Era uma subida ligeira e exequível de fazer num trote

moderado mas optei por seguir a andar para ver onde punha os pés. Escalámos umas

rochas, saltitámos entre cedros, zimbros, carvalhos e alguns pinheiros bravos e

desembocámos num trilho com uma vegetação baixa, maioritariamente giestas.

Parecia uma autoestrada. Largo, piso de terra seca e "sempre a direito". Ora, bastante

corrível. Dei corda às sapatilhas e mantive o pace. A lua passou a acompanhar-me

pela esquerda minutos antes de chegar ao Vale Rossim.

Sito nas Penhas Douradas, junto ao maior vale glaciar da Europa, é um local único em

termos científicos, ambientais e paisagísticos e possui algumas infraestruturas de

apoio, numa das quais estava o segundo abastecimento de sólidos. Muitos atletas não

se aperceberam mas este seria o último abastecimento de sólidos antes da chegada a

Unhais da Serra. Voltei a beber água, comi outra banana e levei uma na mochila. Por

ser um local "descampado", sentia-se uma aragem fria e por momentos ponderei tirar

o softshell.

3º Abastecimento: 15.860 metros até Vale Glaciar com D+470 e D-820

Segui as indicações dos voluntários e fui conduzida pelas marcações florescentes

colocadas à volta do vale. Nem dois minutos depois de sair do abastecimento...terra

húmida...água gelada!!! Brrrrr!!! Segui com os pés gelados uns quilómetros porque o

percurso contornava o vale glaciar até entrar novamente num trilho florestal.

O abastecimento seguinte situar-se-ia no Vale Glaciar mas antes de lá chegar

deparar-nos-íamos com a mítica travessia pela Nave da Mestra (1.650 metros).

Quando me aproximei da dita até me assustei! Umas luzes verdes intermitentes

assinalavam algo...naquele momento nem me ocorreu o que era. Constato que os

atletas estão abrandar e quando me aproximo vejo a mítica fenda. Segui

cautelosamente atrás deles. Por ser menina oiço sempre "precisa de ajuda?", já com a

mão suspensa na minha direção. Sorri e agradeci a amabilidade mas já estava quase

no fim.

Aqui tínhamos "uma surpresa". Um posto de controlo para confirmar que os atletas

seguiam o percurso e não "aldrabavam" a organização. Esta foi outra das inovações

que a quinta edição do OMD teve. Colocar três postos de controle em locais

estratégicos para assegurar que o percurso era seguido na íntegra, garantir que as

classificações eram justas e confirmar a idoneidade dos atletas.

Seguimos quase em plano. Entre o Vale Rossim e o Vale Glaciar, o trilho era bastante

corrível. O que poderia apelar a que o atleta se entusiasmasse e gastasse muita

energia e pernas neste trajeto. Eu, como tinha absorvido as informações do Paulo,

sabia que nesta parte do percurso tinha de "refrear" o ímpeto. Corri, mas numa

velocidade confortável. Um registo que conseguisse manter durante muito tempo para

não me cansar antes da verdadeira prova se iniciar. O meu objetivo era chegar a

Unhais "fresca" e quase sem acusar 52K nas pernas. Só assim conseguiria ter força

para terminar a prova.

Depois de atravessar a Nave da Mestra tive um percalço. O meu frontal, que

supostamente estava cheio de carga, começou a fraquejar. Vi a minha luz reduzir a

um terço do que estava e logo naquele troço!! Iria começar a descida técnica do Vale

do Zêzere...

Bom...só havia uma solução...descer com muita prudência, ainda mais do que já é

costume, e tentar aproveitar a luz de outros atletas para ver as irregularidades do

percurso. Sei que fui ultrapassada por vários atletas nesta parte e psicologicamente

não foi benéfico mas sabia que não podia abusar da sorte. Desci com muita calma

porque era noite cerrada, e, no meio da farta vegetação, num trilho estreito e em

ziguezague, salpicado por troncos pequenos e duvidosos, quase imperceptíveis,

pedras soltas e mal posicionadas, e terra seca com troços escorregadios, todo o

cuidado era pouco. Felizmente não aconteceu nada. Descíamos todos em fila indiana,

alertando para os perigos que se interpunham no nosso caminho. Os bastões serviam

para eu calcar a terra, testar a existência de troncos e/ou raízes, apoiar-me e progredir

no trilho. Dois atletas estrangeiros rasparam o traseiro no chão mas sem lesões a

salientar. No final deste trilho esperava-nos um estradão larguíssimo, quase sempre a

descer, pelo meio da floresta. Abri a passada. O frontal desligou-se mas como estava

num estradão calculei que existiriam poucos perigos. Fiei-me nas sapatilhas e na

capacidade do corpo reagir caso lhe fosse exigido. E soube muito bem! Ultrapassei

todos, um por um, mas sem forçar os músculos. Aquele "ram ram" tinha criado uma

tensão excessiva no corpo. E esta era a melhor forma de descomprimir e libertar

novamente os músculos.

O terceiro abastecimento situava-se na língua glaciar de maior dimensão da Serra da

Estrela, precisamente no meio do "U". Tínhamos feito a descida de um lado do Vale

Glaciar e iniciaríamos a subida do lado oposto até Alforfa. Ao chegar ao

abastecimento, contemplo o Sol nascer sobre a Vila de Manteigas. Um cenário

apaixonante e que ficará gravado para sempre na minha memória fotográfica.

Tons rosa forte e laranja pálido no horizonte, uma ténue luz que percorre toda a

extensão do vale e nos conduz por verdejantes prados, por linhas de água e

laguachos com uma vegetação arbustiva baixa, alguns elementos rochosos e casas

típicas da Serra.

4º Abastecimento: 8.625 até Vale de Alforfa com D+504 e D-111

Percorri um caminho de singular beleza, junto ao Rio Zêzere com as suas águas frias

e cristalinas, num quadro emoldurado pelo azul do céu e o verde do Vale. Enquanto

corria, contemplei os afloramentos graníticos - Cântaro Magro e Cântaro Gordo e os

covões, especialmente o Covão d'Ametade. Este situava-se na minha linha de

horizonte e sorria de forma marota. Mas não, não íamos por lá.

Atravessámos umas quintas e hortas bem cultivadas, uma linha de água fresquinha,

pusemos os pés na lama, subimos uma ladeira que desembocava num trilho fabuloso

e que me fazia recordar a floresta laurissilva da Madeira, rastejei por baixo de dois

troncos, saltitei nuns degraus em madeira, rompi por entre as giestas, afastei as

coloridas flores que fechavam o trilho (parecia que ninguém lá tinha passado antes) e

brinquei ao equilibrismo em umas pedras redondas e lisas.

No final da subida, um poderoso contraste entre um modelado granítico e xistento e

entre uma farta vegetação e um deserto arbustivo impõem-se no horizonte. Era o trilho

do Major que me conduziria para o vale de Alforfa.

Impus ritmo, forte, e lá fui

eu! Tinha de completar os

40K em menos de 8H e

tinha em mente chegar a

Unhais dentro das 9H.

Trilhos técnicos, caminhos

florestais, trilhos da grande

rota, estradões e alguns

metros de estrada foi o

percurso que palmilhámos

até chegar ao quarto abastecimento. Na projeção oposta ao vale de Manteigas (Vale

do Zêzere) encontrámos o Vale Glaciar de Alforfa com as suas acumulações

desordenadas de rochas e blocos erráticos de grandes dimensões. Era uma visão

"quase desértica" comparada com outros troços pelos quais tínhamos passado umas

horas antes.

5º Abastecimento: 9.5 metros até Unhais da Serra com D+125 e D-822

Descemos o aglomerado de calhaus do

tubo da central hidroelétrica, corremos ao

lado da linha de água, atravessamos

terrenos adubados com "bosta de vaca",

saltitámos entre as margens da ribeira,

ladeámos a central de Alforfa, afundámo-

nos num caudal da ribeira (soube muito

bem para refrescar e para limpar a

porcaria dos pés e das pernas),

descemos num verdejante prado, fui

observada pelas pachorrentas vacas

(deviam pensar "mas o que é que se passa hoje aqui? só vejo pessoas a correr...") e

desemboquei num antigo trilho de pastores, constituído por pedras soltas e algumas

firmes que nos guiava até à vila de Unhais, mais precisamente ao jardim.

Quando estou a contornar o jardim vejo um fotógrafo de amarelo no lado oposto. Olho

para o relógio e penso:

- "9 horas, dentro do tempo que estipulaste...muito bem menina Filipa!!!" Sorrio de

orgulho.

Olho em frente e vejo que afinal o fotógrafo era o Rui! Hahaha! Um amigo meu,

residente na Covilhã, que se predispôs a levar a minha alimentação a alguns

abastecimentos para que não sofresse tanto do estômago. Tínhamos combinado em

Unhais e lá estava ele. Surpreso por me ver tão cedo e tão fresca. Estava tudo a

correr como planeado. E mais importante de tudo, eu estava extremamente feliz!!

Pedi-lhe que avisasse a minha mãe que tinha chegado ao abastecimento de Unhais e

que agora sim, finda a Era Pré-Glaciar, começaria realmente a prova OMD.

Antes de dar início à minha prova, tinha dito à minha mãe:

- “Eu aviso-te assim que chegar a Unhais da Serra, mas não esperes receber notícias

minhas antes das 10h”.

Dou sempre uma margem, no caso de alguma eventualidade.

Unhais da Serra, freguesia do concelho da Covilhã, sita na base da vertente sudeste

da Serra da Estrela, é conhecida como a "Sintra da Covilhã" e por estar no meio de

um vale glaciar oferece um termalismo de qualidade.

O abastecimento era dos mais fartos que vi. Dois tipos de sopa, vários tipos de queijo,

sandes mistas, de presunto, ou simples, broa, batatas fritas, tomate, sal, frutas

variadas, bolos, bebidas frescas e quentes...um verdadeiro banquete! E justificava-se,

afinal ali era o meio da prova e o primeiro posto de apoio aos atletas.

Alimentei-me bem e tomei o meu primeiro redrat para assegurar que restabelecia os

sais que o corpo tinha perdido durante a noite. Atestei a mochila com água e adicionei

outro redrat a um dos soft flasks, a fim de, me preparar para a exposição solar que iria

apanhar na subida para o Alvôco.

6º Abastecimento: 8.850 metros até Alvôco da Serra com D+733 e D-680

Parti a trotar. Trotei mais de dois quilómetros até

que me deparo com “a parede”!

5K de subida num corta-fogo árido, cor de tijolo,

com pouca vegetação, constituído por pedra

xistosa de vários tamanhos e feitios, uma

exposição solar total, com vários patamares de

subida, diferentes graus de inclinação em cada

um dos patamares, um "nunca visualizar o fim"

(porque há trilhos circundantes e não é fácil de

deslindar por onde é que o atleta deverá seguir),

e quando se está quase a ver o fim, numa ligeira

depressão, somos brindados com mais "um empeno".

Ouvi muitas reclamações (durante e depois da subida), observei muitas caras de

desespero e vi muitos atletas "mortos" nesta escalada, alguns dos quais me questionei

como chegariam ao fim…mas, uma coisa é certa, a 5ª edição do OMD será sempre

recordada por esta parede e pela que se seguiu.

Finda a empenante subida, tínhamos uma descida “quebra-joelhos”!! 5K em

ziguezague, igualmente expostos ao sol, constituídos por terra seca e alguns calhaus.

O corpo queria voar e aproveitar o embalo mas os joelhos diziam para não confiar na

descida. Se me “atirasse” ali, ia fustigar as pernas, consumir imensa energia,

desgastar os joelhos e os 40K que ainda remanesciam tornar-se-iam um pesadelo.

Ouvi a voz da razão e desci a trotar “em slow motion” mas sem travar demasiado para

também não criar uma tensão desnecessária.

Cheguei a Alvôco da Serra hiper

mega super desidratada e

esfomeada. Ataquei a broa com

queijo, devorei duas tijelas de

sopa, atestei o reservatório de

água e comi vários pedaços de

melancia.

Em Alvôco situava-se o sexto

abastecimento e era o segundo

posto de apoio aos atletas.

7º Abastecimento: 8.4K até à Torre com D+1044 e D-1

De baterias recarregadas e mentalizada que ia fazer o segundo Km Vertical “dentro de

um braseiro”, parti! Passei na escola para dar o meu número de dorsal para efeitos de

contabilização de tempos e segui. Conhecia aquele percurso, sabia onde estavam as

marcações, os “perigos” e os nomes que o Borges tinha empregue para batizar

aquelas pedras Não ia ser pêra doce! Ainda estava a processar os alimentos e não

tinha consumido carboidratos de alto índice glicémico suficientes.

2H40 foi o tempo que demorei a subir o Km Vertical! A início com alguma dificuldade

mas consegui manter a constância, depois comecei a ganhar ritmo e a ultrapassar

alguns atletas. Ganhei ânimo e propus-me a ultrapassar a terceira atleta do K100

(quando passei na escola a dar o meu número de dorsal disseram-me que a 3ª atleta

do K100+ estava uns “bons minutos” à minha frente).

Quando saiu de Alvôco tinha uma boa diferença de mim, e no início da subida via-a

sempre bastante afastada…mas…lentamente, eu estava a ganhar terreno. Vi-a parar

várias vezes. Entendia perfeitamente o que estava a passar. O calor era excessivo, a

exposição solar demolidora e o esforço físico tremendo. “Escalar” aquela parede

dentro de uma câmara com mais de 30 graus, subir de uma cota de 900 metros para

uma de 1940 em pouco mais de cinco quilómetros, aguentar o corpo a pedir água e ter

de racioná-la o melhor possível, controlar as alterações fisiológicas imediatas da

subida em altitude (das quais, a hiperventilação, o aumento do débito cardíaco e o

consumo máximo de oxigénio) e sentir os músculos das pernas protestar sempre que

a inclinação empinava mais. Sim, que não a subida não é constante! Existem troços

com uma inclinação mais acentuada que outros. E o facto de umas zonas serem de

predominância rochosa e em outras termos uns paus enormes e secos no meio do

percurso também não permite que consigamos manter a velocidade constante e é

nestas transições que a cabeça cede e diz “pára um pouco”. Segundo estudos

efetuados, em vários tipos de desportos, há uma diminuição na performance do atleta,

em mais de dois minutos quando se treina em altitude. Daí, este tipo de treino ser

fundamental quando se pretende completar provas de montanha.

Consegui nunca parar. Mas repetia inúmeras vezes “está quase…parar é pior…já

fizeste esta subida…tu aguentas…imagina-te a chegar à Torre…já vais beber água

mas por agora temos de controlar a sua ingestão…na Torre bebes um duplo…pensa

na mamã…pensa na tua Angel…observa a beleza da paisagem…”.

Seguia de olhos fixos no chão e absorta nos meus pensamentos quando vejo que, a

200-300 metros de mim, estava a terceira atleta. Estava parada a olhar para mim.

Aproximei-me, perguntei como se sentia e disse que estávamos quase, para não

desanimar. Disse-me que estava com dores nos quadríceps. Aconselhei-a a dar essa

indicação no abastecimento da torre e a ingerir sais. Segui no meu ritmo. Ela ficou

parada um pouco mais e depois seguiu-me.

Confesso que “ultrapassar” os atletas que iam à minha frente foi uma injeção de

adrenalina no corpo. E ainda mais, naquela subida!

Quase no topo, olho para trás e vejo-os distantes. O psicológico detonou todas as

dores que sentia e fui inundada por uma onda colossal de energia! Estava quase no

fim! Estava tão próxima da Torre…

No topo da subida vejo um “camisola amarela” deitado debaixo de uma rocha (LOL) e

digo:

- “Nunca me soube tão bem ver-te!!! Estou cheia de sede, tens água?”

Bebi quase 1 litro de água e depois relatei “a minha conquista!”. Tinha ultrapassado

vários atletas, a “minha adversária francesa” e seguia cheia de pica, sem nunca baixar

o ritmo. O Rui teve de acelerar o passo para me conseguir apanhar! Estava elétrica!

A alegria imensa de chegar ao topo, de ver as míticas torres, de olhar para trás e não

ver os outros atletas, o consumo de oxigénio que aos poucos era mais eficiente e os

músculos a dizerem “vamos, vamos…temos que chegar a Seia pelas 20h”

Encontrei o Paulo Garcia no sentido contrário ao meu. Ia levar garrafões de água aos

atletas pois havia muitas queixas de desidratação na chegada à Torre. Ficou

estupefactamente radiante por me ver ali e desejou uma boa continuação.

2K era o que me separava daquelas duas torres…pareciam tão perto mas eu sabia

que ainda estavam longe!

Na Torre optei por comer o que o Rui tinha na geladeira para mim. Começava a sentir

dificuldade em escolher e interpretar as necessidades do corpo…mas ataquei o

iogurte com chia e refastelei-me com um duplo!!! Soube pela vida!!!

8º Abastecimento: 11.85 metros até Loriga com D+103 e D-1331

Despedi-me do Rui e corri que “nem uma desalmada” pela encosta rochosa abaixo! Ia

à conquista da terceira garganta de Loriga!

Confesso-vos que eu voava!! Saltitava de rocha em rocha sem medos e quase não

assentava os pés para me manter sempre no ar e equilibrada. Estava tão tão feliz!!

A garganta de Loriga é um trono onde a natureza é soberana. Onde contemplamos

embevecidos um reino de esplendor. As gigantescas montanhas quase que arranham

os céus. Os socalcos verdejantes ficam guardados na retina. O ar da serra lava os

pulmões. Inúmeros lagos surgem por entre as rochas. O coaxar das rãs perturba o

plácido silêncio de um local que nos faz sentir pequenos face à grandiosidade do que

a nossa vista alcança. Os trilhos dos pastores e dos seus rebanhos conduzem-nos em

altitude. As mariolas e as marcações pedestres orientam o nosso percurso.

Atravessamos “gargantas” que desafiam a nossa estabilidade. E, no meio do trilho,

encontramos escadas que nos transportam ao MIUT por breves instantes.

Este é um dos sete vales glaciares do Parque Natural da Serra da Estrela e é

constituído pelo Covão do Boeiro, do Meio, da Nave e da Areia.

Durante a descida vislumbram-se inúmeros depósitos de sedimentos que se dispõem

sobre a forma de degraus. Parece “arte humana” mas não é. São denominados de

ombiliques.

Superfícies polidas, blocos de granito, cristãs graníticas, blocos alóctones, rochas

xistosas, uma barragem e inúmeras estrias compõem a “técnica e temível descida de

Loriga”. Concordo que é uma descida técnica, que é necessário ter bastante cuidado

onde colocamos os pés e como os colocamos, que recruta todos os nossos sentidos e

que dois quilómetros parecem uma eternidade. Para mim foi um grande treino pois

desde que sofri as duas entorses, sou bastante regrada nas descidas, especialmente

em descidas técnicas. E por ter completado esta descida três vezes recuperei alguma

da confiança perdida.

Muitos atletas nem se aperceberam do

majestático cenário que atravessaram. Uns

porque vinham de noite, outros porque

estavam muito focados no chão, alguns pelo

cansaço que o tecnicismo da descida impõe,

outros pelo cansaço acumulado da prova, ou

ainda, a acusar algum grau de desidratação.

Foram quase 10K de uma descida com

vários graus de tecnicismo. Os restantes 2K

eram “a abrir” num estradão de areia fina e

seca (mas sem derrapar), protegido por

frondosas árvores e arbustos com mais de um metro e meio de altura, até culminar na

vila de Loriga. Quase 2H30 depois de ter saído da Torre “travei a fundo” no oitavo

abastecimento. No meio do vale tinha sofrido enjoos e necessidade de vomitar, mas

aguentei o melhor que pude.

A vila de Loriga é circundada por “montes” que lhe ornam a fronte e situa-se num

abismo de íngremes cerros. Honestamente, “não lhe acho grande piada” mas sei que

é uma vila extremamente conhecida na Serra da Estrela.

Fui muito bem recebida e acolhida no abastecimento. O Rui estava, uma vez mais, à

minha espera de “máquina fotográfica em riste”.

Bebi muita água, tomei dois redrats, comi uma banana com um bocado de arroz tufado

e retomei a prova. Começava a ter “falta de apetite” e já sabia o que aquilo significava.

9º Abastecimento: 12.100 metros até Lapa dos Dinheiros com D+700 e D-702

Descemos, subimos, descemos, subimos…foi este o percurso que nos levou até à

rotunda de Cabeça antes de entrarmos no trilho mais bonito de todo o OMD.

O K160+ passava na primeira vila LED de Portugal – aldeia de Cabeça – e percorria

um trilho de levadas fabuloso, numa das zonas que mais adoro na Serra da Estrela.

Uma coisa fascinante no Parque Natural da Serra da Estrela é que apresenta um

variado mosaico de habitats com elementos representativos de diferentes regiões

biogeográficas. Até aos 900 metros tem uma influência mediterrânea, dos 900 aos

1600 metros domina o carvalho, os soutos, as giestas, o pinheiro bravo, o abeto e o

cedro e no andar superior, o zimbro, os cervunais e as lagoas. Toda esta

biodiversidade esteve patente nas três principais provas do OMD.

Os últimos 20 quilómetros de prova foram escolhidos como “o happy ending”.

Pretendia-se que os atletas “se fundissem” com os elementos da natureza, com a

diversidade que iam encontrar e “esquecessem” que ainda faltava um pouco para

chegar a Seia. Estes quilómetros eram um misto de várias serras de Portugal.

Levadas como na floresta da Madeira, casas de Xisto como na Serra da Lousã, trilhos

tubulares como na Serra da Arrábida, mata florestal como na Serra de Sintra, trilhos

pedrestes pincelados por troncos e/ou perigosas raízes como em Monsanto, uma

biodiversidade vegetacional como na Serra do Bucaço, trilhos constituídos por

arbustos densos e pedras soltas como na Serra de Aire e Candeeiros, subidas em

socalcos como na Serra de Cinfães e zonas fluviais no meio dos trilhos como se

estivéssemos na Serra do Gerês.

Percorri estes 12K, praticamente, a trotar. Na subida antes de chegar à rotunda andei

a um ritmo forte, apoiada pelos bastões, mas, da rotunda em diante, segui sempre a

trotar. Os quilómetros iniciais eram a descer. O verde luminoso das árvores

contrastava com o verde escuro dos arbustos, o arco-íris não estava no céu mas sim

nas flores, o canto dos passarinhos acompanhava-me naquele mundo de magia, os

enormes fios das teias das aranhas colavam-se ao meu corpo, observava intrigada a

seiva das árvores que se acumulava em latas de alumínio, olhava para a esquerda e

contemplava o Mundo…

Montes a perder de vista, trilhos que circundavam os cerros, “mantos de verde”,

algumas vilas no meio dos abismos, corta-fogos alucinantes, “tufos de árvores de

grande porte”, o Sol que brilhava no horizonte…uma obra de arte natural!

A aldeia de Lapa dos Dinheiros surpreendeu-me com a sua ponte românica, com o

buraco da Moura e pelos extensos cursos de água natural. Atravessámos locais de

cultivo e uma zona de socalcos suportados por muros de granito até chegar ao nono e

último abastecimento antes de atravessar a meta.

Quando lá cheguei estava de rastos. O meu estômago parecia uma bola de fogo que

consumia as paredes internas como se fossem lenha. Hidratei-me e comi fruta fresca.

Por descargo de consciência (pois não conseguia tolerar nada) comi iogurte com chia

e canela. Despedi-me do Rui e disse:

- “Até já! Encontramo-nos em Seia.”

Sabia que ia avisar a minha mãe. Sabia também que teria as três pessoas mais

importantes da minha vida, encostadas às grades, ansiosas por me avistar no

horizonte.

10º Abastecimento: 9.900 metros até Seia com D+413 e D-537

Quando sai do abastecimento vi uma subida…bem…sabia que não era sempre a

descer! Tínhamos três grandes subidas, contornávamos a Serra até à Cabeça da

Velha e, a partir daí, é que começávamos a descer.

Foi um suplício pelas lancinantes dores que tinha. Praguejava muito, mas nada de

coisas ofensivas ou menos próprias. Tentava perceber o que tinha falhado para estar

assim…mas, no fundo, eu sabia. “Praguejar” é um dos sinais que o meu corpo dá

quando está em défice calórico e/ou com o limiares de dor/de tolerância muito abaixo

do desejável. Fisicamente estava bem. Os músculos respondiam bem ao trote e, em

alguns troços, corri com um pouco mais de velocidade. Mas nas subidas poupava-me.

Sabia que tinha 4K de descida até Seia e que ainda iria correr ao lado de uma linha de

água mais de um quilómetro e meio.

O percurso da Lapa dos Dinheiros até à Cabeça da Velha é, para mim, dos troços

mais bonitos do OMD. A farta vegetação, as cores do arvoredo, a diversidade da flora,

os recantos que descobrimos, a paisagem que nos acompanha, as ocasionais pedras

que nos desafiam, o intenso amarelo das giestas, as nascentes de água fresca e pura,

a praia fluvial, os montes repletos de zimbreiros, as formações graníticas…

Descemos até ao início de uma levada que

nos conduzia ao misterioso rochedo dos

Cornos do Diabo, atravessámos a praia

fluvial da Caniça e voltámos a subir em cota até encontrar a levada de água do Rio

Alva que nos conduzia no sentido da Senhora do Desterro.

Na Mata do Desterro corri! Eram mais de 2K a contornar a Serra, em plano e sem

qualquer dificuldade técnica. O fim do dia estava próximo…o Sol estava a pôr-se no

horizonte e a luz desapareceria em pouco mais de meia hora. Tinha deixado o meu

frontal no saco de Unhais, segura que chegaria de dia, e para me “obrigar” a ter esse

objetivo em mente. Como tal, “tinha de dar corda às sapatilhas” e esquecer as dores.

Pensava “Filipa, a dor é passageira, a glória é eterna! Por isso, dá o teu melhor nesta

parte! A luz está a escassear, não tens frontal, e estás no meio da mata do Desterro..”.

Cheguei à Senhora do Desterro e cumprimentei uns aldeões que amavelmente me

disseram:

- “Força menina, está quase! Só faltam 6K e os últimos quatro é sempre a descer!”.

Sorri, agradeci as palavras e desejei felicidades.

A última “grande” subida estava ali! A grandiosidade dela não se traduz no D+ mas por

ser a última, por ser em calçada, por ser inclinada, por estar situada no K98 e porque

eu sabia que só terminava na Cabeça da Velha. Maldita velha! LOL!!

Vejam lá se eu não tenho razão!! Estou eu a aproximar-me, e ela a esboçar um sorriso

de gozo Virei-me para ela e disse:

- “A última já conquistei! Já só me faltam 4K até à meta e agora sim, sempre abrir

porque a noite está a chegar, e eu tenho de terminar antes das 21h30 de prova!!”

Fiz por voar! Desci sem medos, sem travões, sem pensar nos joelhos, nas pedras ou

nos paus. Desemboquei na estrada. Já via a cidade, as luzes, o estádio…

No último quilómetro e meio atravessei pelo meio de uma horta, vi cabrinhas a fugir de

medo de mim e aproximei-me dos primeiros prédios. Vi o primeiro lance de escadas,

virei à direita e encontrei o segundo lance de escadas. No final das escadas estava

quase lá! Os bombeiros iam aparecer à minha direita e depois era sempre a direito até

à rotunda. Conheço tão bem Seia! Sabia por onde ia passar na perfeição. A sapataria,

o Hotel Camelo, a casinha de produtos regionais, a papelaria que vende as lotarias, o

estabelecimento que vende os casacos de pele, a placa do Museu do Pão, a praça de

táxis, e enfim, a rotunda! Estou a aproximar-me e reconheço uma carrinha. Era o

Borges! Dá-me força para os últimos metros. Ver uma cara conhecida no fim é sempre

muito bom! Mas melhor que isso foi ver o “meu maridão lindo” estacionado a porta do

balcão do Millennium bcp a olhar para mim Adoro o meu FO! É o meu mais-que-

tudo material. E se ele estava ali, alguém muito muito importante para mim estava lá

também. Estava com um grande sorriso nos lábios! Por dentro nem conto

Vi o insuflável verde, vi a passadeira vermelha e vi ao fundo, junto às grades, as três

pessoas que nunca me podem faltar…mãe, avó e avô. Já estava de noite mas o último

objetivo ia ser cumprido! Chegar antes das 21h30 de prova

Conclui a 5ª edição do Oh Meu Deus Serra da Estrela em 21h28m56seg. Atravessei a

meta em sprint e parei a frente do pódio. Virei-me, automaticamente, para a esquerda

e desabei num pranto no colo da minha mãe! Chorei durante uns minutos. Não era de

dor, mas sim de alegria. Alegria por ter concluído 100 quilómetros, por a ter ali, por

estar bem fisicamente, por ter conseguido atingir quase todos os objetivos a que me

tinha proposto, por prestar esta homenagem aos meus avós maternos e porque a

minha chegada refletia todo o trabalho, dedicação, horas de treino, concessões e

empenho que tinha dispensado.

“Babei” a minha mãe, a minha avó, dei beijinhos ao meu avô e agradeci todo o

trabalho que o Rui teve em acompanhar-me posto a posto.

Ainda estava no colo da minha mãe quando me dizem que sou a segunda classificada

do K100+. Não queria acreditar! Mas eu tinha ultrapassado a terceira…tinha de ser a

terceira…não a segunda…

Foram confirmar de novo. Era oficial. Eu era a segunda atleta do K100+ da 5ª edição

do OMD.

Foi “um baque”!! Wowwww…eu ia mesmo ao pódio?? Um pódio na minha Serra?? O

meu corpo tremia de emoção, pulsava de liberdade, sentia-se um conquistador, sentia

que afinal não era assim tão pequeno…que tinha sido um guerreiro nos últimos

tempos e em particular, nos últimos dias.

Terminei esta prova com as endorfinas no auge, e as reacções químicas intensas e

stressantes a que o corpo foi sujeito no decorrer daquelas vinte e uma horas,

resultaram numa onda de sentimentos grandiosos e avassaladores. Sentia-me

fisicamente forte mas hídrica e mineralmente debilitada. O primeiro sintoma tinha sido

o ataque estomacal e o segundo, as náuseas, enjoos e falta de apetite. Estava num

pico de forma, sentia-o.

O Paulo Garcia aproximou-se e parabenizou-me pelo feito.

Despedi-me de toda a organização e encaminhei-me para o “meu maridão” com a

minha família.

Vi a terceira atleta do K100 a chegar e dei-lhe a mão em sinal de parabenização pelo

feito. Sorrimos muito felizes uma para a outra.

Vi quase todos os atletas que tinha ultrapassado chegarem à meta. Bati palmas e

gritei força. Estava feliz por eles! Éramos todos vencedores!

57 atletas chegaram ao Sabugueiro mas só 37 terminaram a prova em Seia.

As Classificações Oficiais da Equipa do Millennium bcp no K100+:

Nome do Atleta Tempo Oficial Posição na Classificação

Filipa Alexandra Vilar 21:28:56 17 da Geral

Miguel António Cruz 23:48:51 30 da Geral

Fernando Alcides Rodrigues 23:49:02 31 da Geral

José Farinha 23:49:12 32 da Geral

Hélder Manuel Baptista 23:49:17 33 da Geral

Virgílio Costa 25:07:09 34 da Geral

No Domingo dirigi-me, novamente, a Seia para “ir ao pódio”.

Recebi a medalha cor de prata por ter concluído na 17ª posição da geral, o cajado

(símbolo dos Pastores da Serra da Estrela), um prémio criado em exclusivo para os

atletas por uma casa de beneficência e uma garrafa de vinho da Quinta do Escudial

(premiado com duas medalhas de prata no Wine Masters Challenge 2014).

O primeiro classificado do K100+ do OMD terminou a prova em 17:01:35 e a primeira

classificada em 20:41:43.

Para mim, o Parque Natural da Serra da Estrela é o maior monumento natural, a

minha paz de espírito, o meu lar, as minhas raízes, o local onde encontro um

bocadinho de todas as Serras de Portugal, o local onde vivi verdadeiramente a minha

meninice e a Serra que me deu um pódio que muito me orgulho.

Espero que, no futuro, mais atletas do Clube possam conhecer esta maravilhosa Serra

e confirmar “a minha tendenciosa visão”.

A Minha Dedicatória

Dedico esta superação a 5 pessoas:

Ao meu bisavô, porque nasceu no dia 6 de junho e acredito piamente que me

orientou e acompanhou nesta demanda na Serra onde nasceu, cresceu, viveu e

faleceu;

Ao meu avô e avó maternos, pois são o meu porto de abrigo, os únicos avós que

conheci verdadeiramente e que reconheço como tal;

À única pessoa com a qual tenho e sei que terei uma ligação eterna: a minha mãe.

Eu sei que te "dou cabo da cabeça" com tudo o que faço, com as opções que tomo,

com as insanidades atléticas a que me proponho, mas tu foste, és e serás toda a

minha vida, a pessoa mais importante para mim. Foi a pensar na tua colossal força

que superei os últimos 21K à mercê de insuportáveis dores estomacais, o teu sorriso e

salva de palmas que me fez "sprintar" nos últimos metros e foi no teu colo que chorei

de alegria na meta.

A alguém que eu não conheci mas que acredito que existe. A uma santidade que

me acompanha, que me encaminha no meu destino, que me protege de tudo (porque

como muitos dizem "eu abuso da sorte") e que me ajuda a crescer como pessoa,

atleta, mulher. Eu acredito nos sinais, acredito que são a expressão do caminho que

devemos trilhar e muitas pessoas me ouviram dizer "é a quinta edição, é o meu

destino, é a minha sorte, é a minha conquista"... O resultado alcançado espelha que a

minha interpretação estava correta. Eu concluí esta prova sem lesões, feliz por ter as

pessoas mais importantes para mim à minha espera na meta, e ainda fui abençoada

com um pódio. Não ligo a este tipo de condecorações mas confesso que este pódio no

OMD foi a chegada ao Olimpo.

Locais de Apoio

A organização tinha seleccionado dois locais distintos para que os atletas pudessem

trocar de roupa e/ou sapatilhas. O primeiro situava-se em Unhais da Serra e o

segundo, em Alvôco da Serra.

Unhais da Serra foi escolhido como primeiro local de mudança de roupa porque:

Era, precisamente, o abastecimento do meio da prova do K100+ (Km 51);

Era a primeira barreira horária que os atletas do K100+ tinham (os atletas tinha de

partir de Unhais até as 12:00);

Era o segundo abastecimento com sólidos após o início da prova (o primeiro

situava-se no Vale do Rossim ao K18);

Nos últimos doze quilómetros, atravessávamos uma zona de pastorícia, fortemente

adubada com "bosta de vaca" onde era impossível manter o calçado limpo;

A descida do Vale de Alforfa brindava-nos com inúmeros riachos e/ou cursos de

água, atravessando entre as margens da ribeira, pelo menos, três vezes;

Era a partir deste abastecimento que se iniciava verdadeiramente a prova OMD

K100+.

Alvôco da Serra foi definido como segundo local de mudança de roupa porque:

Unhais e Alvôco da Serra estão "separadas" por uma colossal parede ou como nós

dizemos, por um corta-fogo sem fim. E de Alvôco à Torre é necessário retemperar

energias para enfrentar a segunda parede. Ora, este posto foi estrategicamente

definido para permitir aos atletas recuperarem do que tinham efetuado e para

"ganharem" força para chegar a Loriga. Citando as palavras do Paulo Garcia "se fosse

eu...hidratava-me e alimentava-me bem e depois trocava de roupa e de sapatilhas

sem pressa, a fim de, retemperar forças para a monumental subida do Km Vertical";

Subir de Unhais a Alvôco no pino do dia fez com que muitos atletas desidratassem

e perdessem uma quantidade assustadora de sais. Por este motivo, muitos optaram

por fazerem a mudança de roupa neste posto;

Em Alvôco, o abastecimento e o posto de mudança de roupa encontravam-se em

locais distintos. O posto de mudança de roupa situava-se numa escola, a 500 metros

do abastecimento. Dispunha de duches quentes e diversas salas para que o atleta

pudesse ter privacidade e ainda, cochilar, caso assim entendesse;

Segundo cálculos matemáticos efetuados pelos engenheiros e organização da

prova, a maioria dos atletas chegaria a Alvôco da Serra com metade do tempo limite

de prova definido. Justificando-se assim a inclusão deste posto.