oh meu deus – o que valem 100 milhas de serra (k160+)€¦ · de viagem; levantar o kit de...

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OH MEU DEUS – O QUE VALEM 100 MILHAS DE SERRA (K160+) Quando se começa no trail, há distâncias que são míticas, quase inalcançáveis…no entanto… A suposta prova que supostamente deveria ser uma aventura, foi realmente; e começou logo na ida para a Seia - local da partida. Viagem de comboio na véspera, dormida no solo duro dos bombeiros, dia da prova a descansar e a relaxar…foi assim? Não! Alterações de última hora complicaram tudo. Viagem no dia da prova – levantar às 5 da manhã -, chegar ao meio-dia a Nelas, almoçar duas bifanas - porque a alternativa eram rojões ou jaquinzinhos…ambos com arroz de feijão; esperar uma hora e tal pela camioneta para Seia; chegar a Seia e ter que subir (mas subir já a sério) até ao largo da Câmara pelas 14 horas com um calor abrasador e com a mala de viagem; levantar o kit de prova…e ter que continuar a subir até aos bombeiros – aqui já devia estar com um ar tão estourado que uma das pessoas da organização, a Sandra, levou-me no carro dela até lá. Obrigado! Portanto chego aos bombeiros pelas 14h30…a prova começa às 16h!! Tenho menos de hora e meia para preparar os dois sacos para as mudas, a mochila de prova, equipar, basicamente…tudo. Se calhar não vou conseguir descansar nada, penso… Bem, uma das coisas que tinha feito na véspera era dividir o que queria distribuir em cada saco para os pontos de vida (zona de muda de roupa), portanto foi uma tarefa relativamente rápida – uma ou duas mudanças relativo ao que tinha planeado, com o gráfico da prova à frente e tendo em atenção às condições climatéricas previstas para a prova. Também o equipar foi rápido, assim como a preparação da mochila de prova - ainda consigo estar 5 minutinhos com o corpo esticado, um verdadeiro tesouro! Não é, mas eu faço por acreditar que sim, para enganar o corpo. Lá sigo para a zona de partida – dois sacos de muda, mochila de prova e bastões! Cruzo-me com a Filipa que tinha chegado das marcações (ainda??!!) e ido levantar o dorsal dela para a prova dos 100kms. Deseja-me sorte e eu agradeço, e retribuo, já estamos os dois lá bem para cima, para a Torre. Ao entregar os sacos vejo as etiquetas nos outros sacos…esqueci-me das minhas nos Bombeiros. Volto aos

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OH MEU DEUS – O QUE VALEM 100 MILHAS DE SERRA (K160+)

Quando se começa no trail, há distâncias que são míticas, quase inalcançáveis…no

entanto…

A suposta prova que supostamente deveria ser uma aventura, foi realmente; e

começou logo na ida para a Seia - local da partida. Viagem de comboio na véspera,

dormida no solo duro dos bombeiros, dia da prova a descansar e a relaxar…foi assim?

Não! Alterações de última hora complicaram tudo. Viagem no dia da prova – levantar

às 5 da manhã -, chegar ao meio-dia a Nelas, almoçar duas bifanas - porque a

alternativa eram rojões ou jaquinzinhos…ambos com arroz de feijão; esperar uma

hora e tal pela camioneta para Seia; chegar a Seia e ter que subir (mas subir já a

sério) até ao largo da Câmara pelas 14 horas com um calor abrasador e com a mala

de viagem; levantar o kit de prova…e ter que continuar a subir até aos bombeiros –

aqui já devia estar com um ar tão estourado

que uma das pessoas da organização, a

Sandra, levou-me no carro dela até lá.

Obrigado!

Portanto chego aos bombeiros pelas 14h30…a

prova começa às 16h!! Tenho menos de hora

e meia para preparar os dois sacos para as mudas, a mochila de prova, equipar,

basicamente…tudo. Se calhar não vou conseguir descansar nada, penso…

Bem, uma das coisas que tinha feito na véspera era dividir o que queria distribuir em

cada saco para os pontos de vida (zona de muda de roupa), portanto foi uma tarefa

relativamente rápida – uma ou duas mudanças relativo ao que tinha planeado, com o

gráfico da prova à frente e tendo em atenção às condições climatéricas previstas

para a prova. Também o equipar foi rápido, assim como a preparação da mochila de

prova - ainda consigo estar 5 minutinhos com o corpo esticado, um verdadeiro

tesouro! Não é, mas eu faço por acreditar que sim, para enganar o corpo.

Lá sigo para a zona de partida – dois sacos de muda, mochila de prova e bastões!

Cruzo-me com a Filipa que tinha chegado das marcações (ainda??!!) e ido levantar o

dorsal dela para a prova dos 100kms. Deseja-me sorte e eu agradeço, e retribuo, já

estamos os dois lá bem para cima, para a Torre. Ao entregar os sacos vejo as

etiquetas nos outros sacos…esqueci-me das minhas nos Bombeiros. Volto aos

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Bombeiros, a pé. Passo novamente pela Filipa, que vai numa carrinha, aceno-lhe e

ela também…eu devo estar com uma face tão fechada que ela faz uma cara quase de

pavor ao ver-me, qualquer coisa assim: “Este tipo só vai fazer um quilómetro! Não

está nada bem!”. Levo as etiquetas, são três, mas eu só trago duas, as que necessito;

na zona de partida verifico que as etiquetas têm o nome dos postos, uma vem

enganada…pego numa caneta e altero, nem pergunto nada a ninguém, e meto os

sacos no monte, está feito, sinceramente, naquele momento já não queria saber

nada daquilo – é um erro, mas as coisas não tinham sido fáceis até ali; os sacos vão

estar lá durante a prova, penso, otimista.

O que se pensa nos momentos antes de uma prova destas…sinceramente, eu não

pensei em nada de especial. É mais uma prova. É claro que se está tenso. É claro que

pesam as 100 milhas (mais de 160kms), mas tinha a plena consciência dos

quilómetros e isso nunca me importunou ou atemorizou; sabia o que tinha de fazer e

o que queria fazer; também sabia que tinha a experiência adquirida ao longo de

outras provas; além disso estou rodeado de caras conhecidas, muitas já passaram

algumas coisas comigo. Portanto era começar, e meter para trás das costas todas as

peripécias da viagem. Ainda assim, é um salto no desconhecido…

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Partida e primeiros kms

Um dos presentes na partida é o Fernando Vilela, também atleta do clube, diz-me

para ir com ele e com outro amigo dele – passinho calminho; creio que todos nós

tínhamos isso presente, gerir tudo muito bem!

Dos cerca de 90 inscritos na

prova apenas 66 partiram às 16

horas do dia 05 de Junho de

2015, do Largo da Câmara de

Seia. As primeiras centenas de

metros de prova foram feitas

pelas ruas de Seia, com um

carro da GNR à frente, tudo

muito lento, num trote curtinho,

parecia um treino…mas não era. Pela frente tínhamos 164kms com um desnível com

cerca de D+9000m.

Como disse atrás, todos vamos com um ritmo muito lento, sem forçar nada; quer se

vá para resultados, quer se vá para acabar. Temos assim o privilégio de partilhar

alguns quilómetros com atletas de topo do trail nacional, inclusive com elementos da

seleção nacional. Depois começa-se a fazer a seleção natural destas coisas, é assim.

Eu começo logo bem! Pago a fatura de partir apenas com as duas bifanas que tinha

comido em Nelas, consequência…falta de força e fome – não tinha comido nada

desde essa altura e com a confusão antes da partida não fiz o reforço que devia.

Acabo por parar. Preciso de comer para não acontecer o mesmo que no UTSM (em

que passei bastante mal com dores

de estômago e má disposição,

embora que por razões diferentes);

além disso, o primeiro

abastecimento com sólidos é só aos

30kms. Como umas barras e um gel,

e continuo: atrás de mim devem de

vir apenas duas atletas…lá está,

começo logo bem. Nesta

brincadeira de comer depois de

começar a prova, gasto logo uma garrafa de água, fico com 0,5lt para cerca de 12kms

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- manifestamente pouco. Mas eis que acontece algo que talvez tenha mudado a

minha prova, entre o quilómetro 4 e 5, há um abastecimento que as gentes da terra

montaram espontaneamente – tem fruta da horta (laranjas feias…das verdadeiras),

bolos, bolachas, tudo o que eu precisava. E ainda água! Muita água. Como mais e

reponho a água, e ainda levo uns bolos para o caminho! E animo! Explicam-me que

vão ficar ali para todos os concorrentes. Espetacular! Há coisas que nos marcam e

surgem em alturas ideais sem se saber como, esta foi uma delas.

Aldeias e Folgozinho

Os primeiros 40kms são relativamente fáceis a nível técnico – basicamente são

estradões e algum alcatrão. As poucas partes técnicas são todas bastante acessíveis.

A maior dificuldade residia no acumulado de altimetria, que quase chegava aos

2000+, basicamente, foi um aquecimento para a prova. Passo por várias paisagens –

engraçado que conseguimos perceber bem as mudanças de altitude por causa da

vegetação; aquela que me marcou mais foi a floresta cerrada sempre com água a

correr, fresca. Nestes quilómetros também se formou uma trovoada nas cotas mais

altas, felizmente “andou” sempre atrás, é que, ainda mais chato do que apanhar

com uma tempestade na serra, é levar bastões de carbono e ouvir o trovejar

constante, deixa-nos desconfortáveis, sempre a pensar quando passaremos a ser um

para-raios móvel.

Faço o trajeto sempre sozinho –

embora me cruze com outros

atletas nos abastecimentos,

quando chego eles estão a sair;

assim, em prova, vejo quase

sempre gente à distância, à minha

frente, nas encostas onde irei

passar; para trás vejo a

determinada altura dois vultos muito ao longe, penso que são as duas atletas que

vêm atrás de mim.

Lá chego a Folgozinho. Há pessoal a descansar. E a desistir. Levamos cerca de 30kms

e eu sinto-me bem. Alimento-me bem – como queijo da serra para a energia e pão,

fruta, e um pouco de sopa. Aqui encontro o Diogo, um amigo meu que está a

preparar uma prova em equipa no Mont Blanc (PTL) – está ele e os dois companheiros

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da equipa dele. Combinamos encontrar-nos em Unhais da Serra. Não demoro muito

tempo e saio sozinho.

Covão da Ponte e Manteigas…início da noite

À saída do Folgozinho encontramos uma calçada romana, que subimos. O início é

feito ainda de dia, mas anoitece bastante depressa e ainda antes de chegar a meio já

levo o frontal posto. Acredito que a paisagem seja bastante interessante pelo pouco

que consigo vislumbrar à noite, mas nesta altura o que vejo é essencialmente um

ponto de luz à minha frente. Sinto a subida nas pernas, e sei que ainda tenho de

subir um bom bocado, mas vou com um bom ritmo e acabo por passar dois atletas –

nesta altura já consigo perceber o corpo para o resto da prova, e estou a sentir-me

bem a subir, o que é bom para o que ainda aí vem.

Depois de subirmos a calçada romana temos uma descida extensa, em estradão, não

é técnica mas tem muita pedra solta e o piso é abrasivo, à minha frente vejo frontais

a alguma distância; atrás também vejo frontais ao longe. Vamos portanto a bailar

pelas encostas abaixo. Eu não arrisco nada, mas vou ganhando algum terreno a quem

vai à frente; atrás de mim vejo três frontais, nervosos, a encurtar distância

rapidamente; este jogo do gato e do rato mais não é que manter-nos com objetivos

durante a prova – tentamos ultrapassar quem vai à nossa frente…e tentamos não ser

ultrapassados; bem, o objetivo principal é terminar, mas não deixa de ser uma

prova…

Acabo por ser alcançado pelos

três atletas que vinham atrás de

mim – é o Diogo e os colegas dele

– que vêm numa correria

desenfreada pela encosta abaixo.

Eles seguem e eu continuo no

meu passo, não quero arriscar

aqui e também não quero

queimar energia. E assim chego

ao abastecimento de Covão da Ponte. Lá encontro os dois atletas que vinham à

minha frente e a equipa do Diogo. É um posto só de líquidos perdido no meio do nada

– um carro, um holofote, uns garrafões de água e algumas garrafas de sumo e cola. O

próximo abastecimento é Manteigas a cerca de 20kms, é uma grande tirada.

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Saio do abastecimento com companhia e faço uma parte do trajeto a saber como vai

ser a aventura do Mont Blanc. Eles têm um ritmo muito certo e rápido, eu apanho a

boleia na equipa e vou com eles durante algum tempo. Atravessamos agora uma zona

agrícola, de quintas, sem grande desnível, sempre a correr, com o cheiro das ervas

que o fresco e humidade da noite ajuda a acentuar. Infelizmente faço toda esta

parte de noite, e não vejo grande coisa. Sei que passo por uma seara. Por rebanhos.

Mas a Lua não é muito forte e não dá para ver grande coisa.

Já sozinho novamente, acabo por chegar a um bosque, onde começa a descida para

Manteigas. Mais uma descida extensa, mas esta técnica, pelo meio das árvores. Muito

bom! Dá para serpentear por entre as árvores, aproveitar para me divertir bastante.

É uma zona bastante agradável. Com a vista das luzes da vila lá em baixo.

Lá chego ao abastecimento de Manteigas, aos 60kms, onde se encontra o primeiro

saco de muda de roupa; basicamente, reponho as barras energéticas e pouco mais.

Neste abastecimento há sopa e o normal (bolos, frutas secas, fruta, líquidos); aqui

acho que devia existir algo mais: proteína, umas bifanas, por exemplo. Como, hidrato

e descanso um pouco.

Encontro novamente a equipa do Diogo, estiveram a dormitar por vinte minutos e

saem um pouco antes de mim. Eles estão com uma tática diferente, fazem trajetos

rápidos para descansarem mais tempo nos abastecimentos. Eu pelo contrário tenho a

prova dividida em terços, isto é, tenho três trajetos de 55 kms e tento manter uma

média uniforme que me permita fazer um determinado tempo/média em cada um

incluindo as paragens nos abastecimentos, que não são tão longas; o que leva a que

por vezes vá mais lento mas sem gastar tanta energia – são abordagens diferentes

para um objetivo semelhante.

Vale do Rossim, Vale Glaciar e…Torre pela primeira vez

Saio de Manteigas e começo a subir. Daqui até ao Vale do Rossim vai ser sempre a

subir, em menos de 10kms vamos ganhar mais de 800 metros em desnível positivo –

alguém no abastecimento tinha dito que íamos começar o OMD a sério. Terei menos

de um quilómetro percorrido e encontro um atleta que se tinha sentido mal em

Manteigas; está a voltar e vai desistir. Eu vou bem, continuo e mesmo de noite

consegue-se perceber o volume negro da encosta que tenho pela frente para de

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subir; por vezes consigo vislumbrar um frontal lá mais para cima, pelo meio do

arvoredo, quase que a pairar no ar, tal é o desnível.

Vou com um bom ritmo e acabo por alcançar novamente a equipa do Diogo, que

abrandou o ritmo porque um dos elementos vai mal disposto e sem conseguir comer –

em Manteigas já lhe tinha dado comprimidos para o enjoo – pelo que tentam que ele

se recomponha. Mas acabam por parar e dizem-me que vão descansar um pouco ali,

eu vou bem por isso continuo.

Quando saí de Manteigas vesti o meu corta-vento, tinha feito toda a prova até ali em

manga curta, nem sequer usei manguitos – para mim a temperatura está agradável.

Durante a subida também não tenho frio, mas mantenho o corta-vento, pois é

madrugada e sei que não está assim tanto calor e começa a cair uma cacimba; o

cansaço vai sendo grande e para todos os efeitos estou quase há 24 horas acordado;

com o efeito de conforto do corta-vento começo a sentir sonolência…o que não é

bom. Vou avançando e cada vez tenho mais sono! A sensação é idêntica aquela de ir

a conduzir e ter um “apagar” de um ou dois segundos. Bem, ainda estou a subir mas

já não falta muito, as alternativas são tirar o casaco, para voltar a sentir o fresco da

noite e espertar, ou bivacar (dormir ao relento) durante um pouco. Opto pela

segunda. Encosto-me a uma pedra e acabo por estar ali a dormitar durante 10, 15

minutos. Quando acordo não estou novo mas serviu para fazer um “reset” ao sistema;

também começa a aclarar e eu opto por continuar, dispo o corta-vento e vou até ao

Vale do Rossim.

Chego lá ao nascer do dia e sou presenteado com uma excelente paisagem oferecida

pelo espelho de água e pelas cores da alvorada; o abastecimento é num

bar/restaurante/apoio de desportos aquáticos; está um dos elementos da

organização cá fora, num puf, a dormir enrolado no saco-cama, acordo-o e dou-lhe o

meu número de dorsal; lá dentro está outro elemento. A mesa está composta e

explica-me que todas as provas passam por ali – por isso ainda esperam muitos

atletas. Como bem. Muito bem até. O próximo abastecimento com comida é daí a

cerca de 33 kms, segundo o gráfico da organização.

Quando estou a sair aparece a rapaziada do Mont Blanc, será a última vez que me

cruzo com eles (infelizmente não concluíram a prova). Eu sigo ao longo da margem

da barragem, e passo por sítios cheios de lama e água, já muito pisados por quem lá

tinha passado anteriormente; contornada a barragem, sigo agora para um terreno de

características diferentes, composto de muita rocha, vegetação rasteira, tufos de

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erva, buracos escondidos, lama, água…um planalto pantanoso. Para além da

dificuldade do terreno, parar em qualquer lugar significa ficar com as pernas cheias

de melgas…são aos milhares!! – em andamento não importunavam.

As marcações da prova são feitas com fitas de tecido laranja (a maior parte com

material refletor para a noite) e por bandeiras amarelas, e é isso que temos de

seguir; e eu vou sempre seguindo as marcações, e como não existem grandes relevos,

em determinadas alturas tenho a possibilidade de ter um grande campo de visão;

portanto tenho sempre em linha de vista as marcações e, mesmo quando não consigo

ver a fita/bandeira, existem uns montes de pedras que vão assinalando os percursos

das caminhadas e que eu vejo que acompanham o nosso percurso – portanto ou as

fitas ou as pedras, ou ambas. Acabo por começar a ver o Vale Glaciar à esquerda,

que eu sei que tenho de descer, mas as marcações não me levam para lá, levam-me

a contorná-lo. Corro, salto, ando, tropeço nos buracos escondidos, levanto nuvens de

melgas por todo o lado, vejo os quilómetros a passarem e nunca mais chego à beira

do Vale para o começar a descer. E continuo sempre a seguir marcações. Chego a

parar numa rocha alta enquanto as melgas deixam para ver se vejo alguém, nada. A

certa altura começo a ver grandes áreas de uma matéria branca, parece neve, mas

não pode ser. É gelo, ou melhor, são restos de granizo (na véspera tinha caído uma

grande quantidade de granizo, resultante da trovoada que eu tinha visto no início da

prova), estão ali a aguentar e para continuar. Do Vale Glaciar…nada. Vou muito

cansado porque a progressão é mesmo muito difícil e, confesso, desanimado. Vou

farto daquele terreno. Para além disso, pela informação dos quilómetros no meu GPS

deveria estar a chegar ao abastecimento, e eu ainda não comecei a descer sequer.

De repente um baque…tenho a Torre à minha direita! Estou na Torre quando devia

estar no fundo do Vale Glaciar. Nem acredito! Sigo até lá e tento entender o que se

passa…pelo caminho penso que tenho a prova completamente estragada e falo

comigo próprio (não posso reproduzir aqui as palavras que disse).

Chego à Torre. Encontram-se lá elementos da Cruz Vermelha (que também fazem o

serviço da organização) e da GNR. Olham para mim e dizem-me que sou o primeiro a

chegar…pois. Mas também dizem que venho pelo lado contrário…óbvio. A primeira

coisa que digo é que me desorientei e que há algo com as marcações pois vim parar

ao percurso dos 70kms. Depois peço que me tirem uma foto ao relógio GPS para ter

um registo do meu tempo de prova e quilómetros quando lá cheguei. De seguida peço

para me indicarem onde devo ir ter para retomar a prova – aqui, confusão geral. Que

não posso, que os postos estão fechados, que não dá…no UTAX passei muito tempo a

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discutir nos abastecimentos por coisas fúteis, com pessoas voluntárias que tentavam

fazer o melhor que podiam com os meios que lhes tinham disponibilizado, deu-me

tarimba, já sei que não leva a lado nenhum, aqui mantenho-me sereno; peço para

falar com alguém da organização (não com os elementos da Cruz de Vermelha que

dão apoio), não conseguem falar com ninguém via rádio por haver falha nas

comunicações, também o telemóvel não é grande ajuda por que a rede é fraca…só

me resta esperar. Pergunta-me se quero comer alguma coisa e eu digo que sim,

levam-me para a zona de abastecimento – uma mesa fausta! Parece uma mesa de

aperitivos de um casamento! Ao menos por isto valeu a pena.

Finalmente conseguem falar com o responsável da prova, e ele vai ter comigo à

Torre. Eu conheço-o e ele ao chegar começa logo a rir-se; explico-lhe o que

aconteceu. Explico-lhe que só pretendo fazer a distância, nem me preocupa o

tempo, que se puderem que me deixem nos 85 kms que eu sigo daí ou, em

alternativa, que me diga como posso ir apanhar novamente o trilho. Acabamos por

chegar a uma solução; ele vai levar-me até um ponto numa estrada de alcatrão,

depois desço um bom bocado dessa estrada até encontrar as marcações e sigo daí –

basicamente coloca-me no início da subida depois do posto do Vale Glaciar - volto

aos meus 85kms…mas o relógio esteve sempre a contar, por isso tenho de recalcular

tudo para não falhar os tempos de controlo.

Despeço-me do pessoal da Cruz Vermelha e da GNR e prometo que volto daí a umas

horas para os ver.

Alforfa e Unhais da Serra

Desço pela estrada de alcatrão e quando nivela na cota mais baixa encontro à direita

as bandeiras de marcação da prova. Começo uma subida que não é nada fácil, pelo

meio de um arvoredo com um verde intenso de vários tons; não sei se por causa da

paragem, se por ter estado mais alto e depois descido, ou até pela motivação de

poder continuar em prova, a verdade é que subi rapidamente, quando dou por mim

estou novamente numa estrada de ligação a descer em direção ao abastecimento de

Alforfa.

Baseado na informação que tinha, este seria um abastecimento apenas de líquidos,

mas não é assim! É um abastecimento farto, com tudo e mais alguma coisa, até um

género de bôla lá têm. Com o que tinha vivido anteriormente ainda confirmo se ali é

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mesmo o abastecimento de Alforfa, e confirmam-me que sim. Alimento-me

novamente bem e estou um pouco na cavaqueira com as pessoas que lá estão –

dizem-me que tenho sorte porque tinham acabado de renovar o stock, que era para

ser um abastecimento de líquidos mas a junta de freguesia forneceu mais coisas e

tem estado sempre a repor.

Sigo para Unhais da Serra que são a cerca de 10kms, com a garantia das pessoas do

abastecimento que são fáceis e acessíveis; e são tão “fáceis” que começo logo com

uma descida a pique ao lado de um aqueduto, deixa-me na dúvida da simplicidade de

todo o percurso até lá…mas não, são realmente acessíveis, vamos descendo o vale de

forma suave por terrenos agrícolas, levadas, ribeiros, alguns singles técnicos e vacas.

Encontro finalmente alguém em prova! Acompanho um bocado e depois sigo, vou

com um ritmo mais rápido. Aqui o que acaba por ser mais difícil de ultrapassar é ver

Unhais sempre à mesma distância, nunca mais lá

chego.

Alvôco e Torre…segunda vez e para validar

Unhais da Serra é, aos 103,5kms, o meu segundo posto de vida (ou de muda de

roupa, se preferirem), e é, também, o meu primeiro posto de controlo de tempo,

onde tenho de controlar até às 24h de prova…eu chego quase com 22h – mais do que

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tinha previsto fazer mas com uma margem ainda razoável de duas horas; também

tinha previsto fazer aqui uma paragem maior, mas que tive de encurtar com receio

de me atrasar.

Encontro novamente alguns atletas, e encontro também caras conhecidas, pessoal

que anda a acompanhar a prova e sei informações de outras pessoas.

Aqui as condições são bastante boas – casa de banho, zonas para descansar, uma

verdadeira zona de mudança de roupa e ponto de vida. Mudo de sapatos e meias –

ainda estive para não o fazer mas os que trazia tinham-se rasgado há alguns

quilómetros atrás e não tive alternativa. Aqui também posso fazer uma refeição

normal; como sopa, bolonhesa com esparguete, gelatina, fruta e mais algumas

coisas…

Como cheguei perto das 22 horas de prova, significa que são cerca das duas da tarde,

também significa que irei apanhar uma das zonas mais difíceis nas horas de maior

calor. Alvôco e Torre.

Como disse atrás, encurto o tempo que estou em Unhais. Sentia-me bem, estava

alimentado e hidratado, e atrasar a partida mais 30 minutos não achei que me fosse

beneficiar grandemente. Peço duas garrafas de água (33cl) para ter mais líquidos por

causa do calor e sigo…ainda ouço alguém a dizer que alguns atletas à minha frente

tinham previsto fazer cerca de 6 horas até à Torre a partir do Alvôco, por isso quero

despachar-me o quanto antes e passa-me pela cabeça coisas muito estranhas…

A saída em direção ao Alvôco é feita pelas ruas da vila, depois por umas azinhagas, e

depois desembocamos em algo que eu já tinha visto ao longe…um corta-fogo com um

desnível enorme; começo a subida e tento manter um ritmo constante, como já

esperava, para além do desnível, para além dos quilómetros que trago nas pernas,

para além do piso abrasivo, junto ainda o peso do calor, que é bastante – não

existem muitas sombras, e eu vou tentando fazer por trechos, de sobra em sobra, a

tática é: água/sobra, seguir, seguir, seguir, água/sobra, seguir, seguir… E assim vou

seguindo, e consigo levar um ritmo bem bom dadas as circunstâncias. Depois do

corta-fogo continuamos a subir, por estradão, sempre com desnível, serão cerca de

4/5kms a subir…e a seguir descemos, a mesma distância, com o mesmo piso difícil e

abrasivo, com mais quilómetros nas pernas e com o mesmo desnível, acreditem que

descer nem sempre é mais fácil. Por isso vou descendo de forma rápida mas

controlada, além disso já vejo a encosta que tenho de subir a seguir, e aquilo nunca

mais acaba. A certa altura ouço uma mota, alguém traz um garrafão de água fresca –

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é um habitante de Alvôco – e pergunta-me se não está ninguém lá em cima a

distribuir água, digo-lhe que não, faz uma cara de caso e diz: ”Aquela malta de

Unhais…!”…luta de aldeias a ver quem melhor recebe! Senti sempre isso na Serra,

gostam de receber e bem! Ainda tinha água, mas abasteço com água fresca. O rapaz

pergunta-me se ainda vem mais alguém e eu digo-lhe que não vi ninguém. Ele olha

para o desnível, para a mota, e diz-me que fica por ali…

Eu sigo sempre a descer, a serpentear pela encosta, pelo estradão que nos leva até à

aldeia. Ainda passo por outro rapaz de moto com água, a quem apenas aceno. O

abastecimento é num café/restaurante; ao chegar pergunto se querem o número do

dorsal, mas o controlo é apenas à saída da aldeia quando sairmos para a Torre. Aqui

igualo o meu record de distância numa prova, cerca de 112 kms; daqui em diante

será sempre um território desconhecido para o meu corpo, e nada melhor do que

começar com uma subida ao ponto mais alto de Portugal Continental!

Não demoro muito tempo embora o abastecimento tenha bastante qualidade - aqui

também é um ponto de muda de roupa para a minha prova, mas eu não tenho aqui

nenhum saco. Também se pode tomar banho. Encontro atletas que conheço, da prova

de 100kms, que desistiram e estão à espera de transporte para Seia. Falamos um

pouco enquanto como e depois sigo.

Encontro o controlo à saída da aldeia, e será a partir daqui que começa a contar a

subida até à Torre (aquela que eu tenho na ideia que poderá demorar 6 horas…).

Passo por umas senhoras que me dizem que só vou chegar de noite à Torre…são 6 da

tarde.

Vai um grupo de vários atletas que eu conheço à minha frente – levam cerca de 100

metros – e eu hesito em apanhá-los para os acompanhar ou seguir com esta distância

e gerir a minha passada; e vou nisto, mantenho a distância, outras vezes chego mais

perto; acabarei por me juntar a eles quando começa a inclinação a sério.

Este trajeto até à Torre é onde se realiza uma prova que se chama “Quilómetro

Vertical”, e aqui vamos ganhar um desnível de D+1000 em pouco mais de oito

quilómetros de distância, portanto será sempre a subir e, por vezes, com graus de

inclinação impressionantes…com a agravante de já termos mais de 100kms nas

pernas!

A subida em si é técnica, mas, mais uma vez, sinto-me bem a subir; consigo

encontrar um ritmo – as vezes que paro é para me alimentar, beber água e respirar

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um pouco. Vou passando outros atletas; outras vezes passam-me a mim; e vamos

neste bailado até acabar a inclinação mais acentuada, onde se encontram alguns

membros da organização com água, que me dizem que já falta pouco para a Torre e

que já não é uma inclinação tão acentuada. E assim é, a última parte é numa zona de

planalto com algumas rochas à mistura, bastante fácil. E estou novamente na Torre,

mas desta vez a contar! Fiz um tempo de cerca de 2h38m, longe das 6 horas que

tinha ouvido e ainda de dia! Dou o meu número do dorsal à rapariga do controlo…diz-

me que só estavam à minha espera para fechar o posto, por causa de me ter perdido

sabem que eu venho em último…mas eu explico-lhe que não pode fechar o posto

porque vem mais pessoal atrás, que eu vim a passar outros atletas, que já não venho

em último, mas ela insiste que tem fechar, mas lá acaba por “entender” que não

pode de todo fechar o posto.

Na Torre encontro vários atletas. Bastantes, até. Encontro também algumas das

pessoas que estavam lá de manhã, que fazem quase uma festa quando me vêm. A

comida a esta hora está ligeiramente mais fraca, circunstâncias de andar cá para

trás. Não demoro muito, agora tenho a descida até Loriga e quero aproveitar a luz do

dia enquanto puder. Sou portanto um dos primeiros a sair daquele grupo que lá se

juntou – seremos uns 10 a 15 atletas. Encontro também o Vilela, que tem uma dor no

joelho e está a tentar recuperar, digo-lhe que vou e ele diz-me que vais sair dai a

pouco, que já me apanha.

Loriga, Cabeça e “déjá vu”

A importância da subida à Torre prendia-se com a necessidade de chegar a Loriga até

às 3 da manhã de domingo por causa do controlo de tempo; sair depois da meia-noite

da Torre podia tornar-se uma grande dor de cabeça, pois seria difícil chegar dentro

do tempo máximo.

Eu não conheço o trilho. Tinha visto umas fotografias e o que conseguia descortinar

era um amontoado de rochas. Sei que vou descer bastante, cerca de D-1.331m em

cerca de 12kms, mas não contava com o que encontrei: parece o local de descarga

de entulho de quem construiu a Serra! São pedras por todo o lado! Lá se vai a descida

rápida. Ainda para mais, começo a ter episódios de “déjá vu” – tenho a sensação que

já fiz uma prova por aqui, que já aqui passei, que conheço o caminho…mais tarde,

por curiosidade, li que era normal esta situação ocorrer em casos de cansaço

extremo, e eu ia a caminho das 48 horas sem dormir…

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Aproveito a luz do dia o mais que posso, sigo sempre com um ritmo elevado – à minha

frente vai um atleta que não consigo alcançar mas que me serve de referência. Nem

olho para trás, só quero

despachar-me.

Acabo por ter que tirar o

frontal da mochila; atrás

de mim vêm dois ou três

atletas próximos, e um

deles acaba por me

alcançar fazemos os dois

a descida da Garganta de

Loriga.

Aqui não há muito a dizer: cada quilómetro é um martírio; cada pedra dá quase para

contar uma história. Entre os dois vamos desbravando o trilho o mais rápido que

podemos e refilando - são pedras a mais para descer com tantos quilómetros nas

pernas. Com tanto refilar com o trilho, acabo por me distrair, perco o foco e caio

pela primeira vez na prova - por sorte escorrego pela rocha sem me aleijar; mas

contínuo sem ir focado, e aqui os erros pagam-se caros, num salto prendo o pé entre

duas rochas e torço o joelho direito, tenho dores lancinantes, mas o joelho não

incha, o que pode ser um bom sinal, mas dói-me a cada passada, e neste terreno esta

é uma articulação que está sempre a ser solicitada, decido que depois de chegar a

Loriga logo analiso o estado em que está, e volto a concentrar-me para evitar mais

infortúnios.

Até Loriga – que começamos a ver à distância mas que parece nunca mais se deixar

conquistar - continuamos de pedra em pedra, depois, na parte final – talvez 3 a 4

quilómetros – temos estradão; fico sozinho novamente porque não consigo

acompanhar o atleta que vem comigo, e, assim, depois de cruzar as ruas desertas da

localidade, chego sozinho ao abastecimento de Loriga com muito tempo antes da

hora final do controlo, 3 da manhã.

No abastecimento faço várias coisas: testo o joelho, e verifico que não agravou,

mesmo a dor não passa agora de uma ligeira moinha, por isso posso continuar; mudo

as pilhas do frontal que já vinham a ficar fracas; como e bebo. Aqui sinto o pessoal

elétrico, há duas raparigas que têm uma energia contagiante – em conversa percebo

que tinham começado o “turno” delas no abastecimento.

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Demoro algum tempo no abastecimento; troco algumas palavras com uma das

raparigas que ficou lá dentro - a outra foi lá para com os outros elementos aguardar

por outros atletas – e percebo que existe uma alegria enorme em estarem ali, a

promover a terra e a ajudar em algo que promove a região. Para mim também é útil

falar com alguém ao início da madrugada da segunda noite, consegue tornar-me mais

lúcido - por outro lado tem o condão de nos “amolecer” pelo que também não

devemos perder muito tempo. Agradeço a hospitalidade e amabilidade com que me

receberam e dizem-me que estarão na entrega dos prémios em Seia – e estarão, com

os familiares, porque a

cerimónia importante para

a Serra, e acenam-me

satisfeitas por verem que

cheguei ao fim.

Depois da Garganta de

Loriga, penso que o mais

difícil está feito…engano

puro! Vou agora para a

área que considerei mais

perigosa e sem sentido na

prova. Se virem o mapa de altimetria, são apenas uns 6kms, a descer e plano, por

isso, simples; o problema é que nos fizeram contornar uma levada, que em certos

sítios tem bem menos que 1 metro de largura e ao lado temos declives enormes –

com cerca de 30, 40 metros; para ajudar, estamos como mais de 130 kms e numa

segunda noite de prova, muitos de nós, sem dormir. Faço tudo a andar e, em certos

sítios, encosto-me o

máximo que posso ao canal,

detestei esta parte do

percurso, a zona é bonita,

mas nas condições em que

lá passei acho arriscar em

demasia (as fotos que tenho

no texto arranjei na

internet com o objetivo de

perceberem por onde

passámos).

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Lá chego a Cabeça. Mais uma vez muito bem recebido. Explico que a zona da levada

está muito perigosa e que nós vimos muito cansados. Peço-lhes para controlar bem se

algum atleta demorar a aparecer. Aqui também descanso um pouco e como bem. Há

um atleta espanhol que lá está a dormir e que entretanto parte enquanto lá estou. E

eu faço o mesmo passado algum tempo. Faltam apenas 24 kms e serão nesta altura

cerca de 3 da manhã.

Lapa dos Pinheiros e “déjá vu”…e Meta

Próximo destino, Lapa dos Pinheiros; começo por subir uma estrada em alcatrão,

durante algum tempo; depois entro num estradão largo, e vai ser sempre assim em

quase todos os quilómetros até ao próximo abastecimento; como vou sozinho esta é

uma etapa que custa a passar; é chata, sempre igual, e de noite ainda pior; estradão

ladeado por eucaliptos e pinheiros; primeiro subimos e subimos, chego a um tanque

cor de laranja, estranho, mas percebo que serve de apoio aos helicópteros que

combatem os incêndios; a sensação que tenho é que andei por ali às voltas, chego

mesmo a pensar que já passei por alguns sítios, mas deve ser do cansaço…

Os pés também não ajudam, as bolhas começam a importunar e o dedo mindinho do

pé esquerdo deve ir muito mal tratado, mas não quero descalçar-me. E quando

começo a descer novamente, as dores tornam-se mais intensas; e continuo com os

episódios de “déjá vu”.

O abastecimento é numa aldeia - isso eu sei – por isso cada vez que vejo algum sinal

que me posso estar a aproximar de uma o ânimo aumenta, pelo que ao ver uma

aldeia à minha frente, mesmo com as luzes todas apagadas, inclusive as das ruas

porque começa a aclarar, penso que já estou no abastecimento, e que depois é Seia,

e a meta. Numa descida sinto que vem alguém atrás de mim, é o Vilela! Mas vem a

correr bem e eu não consigo acompanhar, ele ainda me incentiva, mas naquela altura

não dá. Entro na aldeia. Parece uma aldeia fantasma; não há luzes, não há som, não

há movimento. Nem galos se ouvem a cantar. Do abastecimento, nada. Na

encruzilhada das ruas de pedra encontro novamente o Vilela, também ele procura o

abastecimento. Eu num acesso de “déjá vu” penso que sei onde é, mas não é, claro!

Acabamos por sair da aldeia sem nunca encontrar ninguém nem ver uma luz acesa.

Penso que é uma grande falha da organização, e grave! – mais à frente perceberei

que estava enganado…

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À saída da aldeia acabo por me juntar com o Vilela - faremos o resto da prova juntos.

Falamos sobre a falta do abastecimento, mas, por outro lado sabemos que agora é

até à meta, ou pensamos que é. O terreno não é muito difícil e vamos avançando.

Vamos cansados e em modo automático.

Vamos ter novamente a uma aldeia,

já com vida. Vamos seguindo as

marcas e percorrendo ruas, de

repente um posto de controlo:

estamos na Lapa dos Dinheiros! O

abastecimento é aqui, pensávamos

que estávamos mais à frente do que

na realidade estamos. Comemos e

descansamos um pouco.

A partir daqui sim…vamos até Seia;

ainda temos umas subidas e uma levada final que custa a fazer pelo cansaço e dores

nos pés que levamos; ainda temos

umas voltas e mais voltas; ainda

passamos pela Cabeça da Velha,

uma rocha que tem essa

aparência: e depois temos a

descida final até Seia, difícil nas

condições em que íamos por causa

dos pés, mas ainda conseguimos

correr, pouco mas alguma coisa;

finalmente passamos pelo campo de futebol e depois entramos nas ruas de Seia, que

fazemos a trotar, até que chegamos ao largo da Câmara, onde tudo tinha começado

na sexta à tarde…hoje é domingo de manhã. Percorremos os últimos metros no

tapete vermelho e cortamos a meta lado a lado. Tínhamos acabado de entrar no

grupo restrito das 100 milhas.

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Epílogo

Tínhamos à nossa espera o pessoal da organização; também tínhamos outras pessoas

que tinham familiares em prova; outros atletas que tinham acabado mais cedo; ou

simples curiosos. Há alguém que me dá uma cerveja. Há no ar uma alegria enorme,

quer se seja familiar ou atleta ou simples espetador.

Como calculei o meu dedo mindinho do pé esquerdo está uma lástima (poupo-vos os

pormenores e as imagens) e não o querem tratar na zona de pedologia; tenho de ir

ao hospital para ser tratado num ambiente esterilizado. Fora isso não estou mal

fisicamente; estou cansado por estar há mais de 48 horas acordado.

A entrega de prémios foi feita pela hora do almoço, o que acabou por ser uma

excelente iniciativa; seguida de um beberete com muitas das coisas que esta região

tem de bom - tudo impecável!

Para mim foi uma grande experiência. Será para repetir? Talvez. Vamos aguardar

para ver o que o ano de 2016 traz.

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TEMPOS PARCIAIS E META:

LINK FILME DA PROVA:

https://www.youtube.com/watch?v=Sd_8nf5abL8