obras da fuvest e unicamp 2022 - objetivo
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OS LIVROS DA FUVEST
NOVE NOITES
BERNARDO TEIXEIRA DE CARVALHO
Análise da obra, seleção de textos e questionário
MARIA DE LOURDES DA CONCEIÇÃO CUNHA
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1. BIOGRAFIA DO AUTOR
Bernardo Teixeira de Carvalho nasceu em 1960, no Rio de Janeiro,
onde, em 1983, formou-se em jornalismo pela Pontifícia Universidade
Católica. Romancista, contista, tradutor, Bernardo Carvalho mudou-se para
São Paulo na década de 1980, passando a trabalhar no jornal Folha de São
Paulo a partir de 1986, desempenhando várias funções na redação até tornar-se
diretor do caderno de ensaios Folhetim.
Em 1993, o autor obteve o grau de Mestre em Cinema pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com a dissertação
sobre a obra do cineasta Win Wenders. Nesse mesmo ano, Bernardo
Carvalho publicou a coletânea de contos Aberração, sua estreia literária. O
primeiro romance, Onze, foi lançado em 1995 e, no ano seguinte publicou
Bêbados e Sonâmbulos.
O autor trabalhou também como correspondente internacional em Paris
e Nova York, além de colunista fixo do caderno de cultura Ilustrada da Folha
de São Paulo, jornal para o qual escreve até hoje. Entre 1998 e 2008,
Bernardo Carvalho consolidou sua carreira de escritor com a publicação de
Teatro (1998), As Iniciais (1999), Medo de Sade (2000), Nove Noites (2002),
considerado pela crítica seu romance melhor trabalhado, obra com a qual foi
agraciado com o Prêmio Portugal Telecom de Literatura.
Em 2003, Carvalho publicou Mongólia, premiado pela Associação
Paulista de Críticos de Arte (APCA), na categoria romance, e o Prêmio
Jabuti, em 2004, na mesma categoria. São também obras do autor: O Mundo
dos Eixos (2005), O Sol se põe em São Paulo (2007), O Filho da Mãe
(2009), Reprodução (2013) e Simpatia pelo Demônio (2016).
2. RESUMO DE NOVE NOITES
O romance Nove noites1 é construído a partir de dois relatos basilares:
a carta-testamento deixada por Manoel Perna, engenheiro-sertanejo e amigo
do antropólogo suicida, Buell Quain, e o enredo criado pelo narrador-
investigador-jornalista, inominado. As duas narrativas vão se intercalando
ao longo do romance sem haver uma ligação textual entre elas. A fim de fa -
cilitar a compreensão do livro, optou-se, neste breve resumo, pela sepa ração
dos dois relatos. Assim, primeiramente, veremos o que diz a carta-tes ta -
mento de Manoel Perna.1 O título do romance, Nove noites, será indicado pela abreviação NN neste trabalho.
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2.1. A CARTA-TESTAMENTO DE MANOEL PERNA
12. Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá
que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não
têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios (...)
O antropólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de
2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem
explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma violência
assustadora. Que se maltratou, a despeito das súplicas dos dois índios
que o acompanhavam na sua última jornada de volta da aldeia para
Carolina e que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. Que
se cortou e se enforcou. Que deixou cartas impressionantes mas que
nada explicam. (NN, 2002, p. 7, 8)
(...) Amanhã pego a balsa de volta para Carolina. Mas antes deixo este
testamento para quando você vier e deparar com a incerteza mais
absoluta. Seja bem-vindo. Vão lhe dizer que tudo foi muito abrupto e
inesperado. Que o suicídio pegou todo mundo de surpresa. Vão lhe dizer
muitas coisas. Sei o que espera de mim. E o que deve estar pensando.
Mas não me peça o que nunca me deram, o preto no branco, a hora
certa. Terá que contar apenas com o imponderável e a precariedade do
que agora lhe conto, assim como tive de contar com o relato dos índios
e a incerteza das traduções do professor Pessoa. As histórias dependem
antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de
interpretá-las. E quando vier você estará desconfiado. O dr. Buell, à sua
maneira, também era incrédulo. Resistiu o quanto pôde. Precisamos de
razões para acreditar. (NN, 2002, p. 8)
(...) Desde o início, embora não pudesse prever a tragédia, fui o único
a ver nos olhos dele3 o desespero que tentava dissimular mas nem
sempre conseguia, e cuja razão, que cheguei a intuir antes mesmo que
ela me fosse revelada, preferi ignorar, ou fingir que ignorava, nem que
fosse só para aliviá-lo. Acho que assim eu o ajudei como pude. (...)
Podia ser meu filho. Nada me abalou tanto. Nem mesmo quando fui
destituído das funções de encarregado do posto indígena Manoel da
2 Os números que antecedem as passagens do livro são indicativos dos capítulos da obra. Como,inicialmente, estudaremos a carta-testamento de Manoel Perna e, depois, o relato do narrador-investigador-jornalista, a numeração dos capítulos não será apresentada em sequência lógica.3 Manoel Perna refere-se aos olhos de Buell Quain.
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Nóbrega pelo sr. Cildo Meireles (...). E nem mesmo o massacre da aldeia
de Cabeceira Grossa, que o dr. Buell talvez tivesse podido impedir se
ainda estivesse vivo e entre eles quando os fazendeiros prepararam a
emboscada um ano depois do seu suicídio. Nada me entristeceu tanto
quanto o fim do meu amigo, cuja memória decidi honrar. Eu o acolhi
quando chegou. Nada do que tenha pensado ou escrito pode me causar
rancor, nunca esperei nada em troca, porque sei que, no fundo, fui a
última pessoa com quem ele pôde contar. (NN, 2002, p. 10, 11)
(...)
No dia 9 de agosto daquele ano, cinco meses depois de ele ter chegado
a Carolina, uma comitiva de vinte índios entrou na cidade no final da
tarde. Traziam a triste notícia e, na bagagem, os objetos de uso pessoal
do dr. Buell, que eu mesmo recebi e contei, com lágrimas nos olhos: dois
livros de música, uma Bíblia, um par de sapatos, um par de chinelos, três
pijamas, seis camisas, duas gravatas, uma capa preta, uma toalha,
quatro lenços, dois pares de meias, um suspensório, dois ternos de brim,
dois ternos de casimira, duas cuecas e um envelope com fotografias. O
seu retrato não estava entre elas (...). Os índios não tocaram em nada.
Foram à minha casa sem parar nem falar com ninguém pelo caminho
— estavam com medo, achavam que pudessem ser incriminados —, o
que não impediu que a notícia logo se espalhasse, e em pouco tempo
uma pequena multidão de curiosos cercava a minha modesta morada.
Mandei chamar o professor Pessoa às pressas, que depois de ler uma
das cartas deixadas pelo infeliz, em inglês, acalmou os índios e garantiu
a todos que eles não tinham nenhuma responsabilidade na trágica
ocorrência. (NN, 2002, p. 11, 12)
Desde então eu o esperei, seja você quem for. Sabia que viria em busca
do que era seu, a carta que ele lhe escrevera antes de se matar e que, por
segurança, me desculpe, guardei comigo, desconfiado, já que não podia
compreender4 o que ali estava escrito — embora suspeitasse — nem
correr o risco de pedir ao professor Pessoa que me traduzisse aquelas
linhas. Foi a única que não remeti ao Rio de Janeiro. (...) Guardei
comigo esta única carta, para protegê-lo, e aos índios. Jurei que
ninguém além de você poria os olhos nela. Mandei-lhe um bilhete no
lugar da carta, um bilhete cifrado, é verdade, em código, que o professor
Pessoa me ajudou a redigir em inglês, sem saber a quem me dirigia ou
4 Manoel Perna não conhece a Língua Inglesa e, portanto, seria impossível para elecompreender o que estaria escrito na carta.
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com que objetivo, pensando que se tratava de um parente do morto, uma
vez que anteriormente já lhe pedira ajuda para escrever uma carta de
pêsames que decidira enviar à mãe. Nunca pude me certificar de que
você tenha recebido esse bilhete, ou que o tenha compreendido, já que
não veio atrás do que lhe pertencia. Faz anos que o espero, mas já não
posso me arriscar ou desafiar a morte. Este mês começam as chuvas.
Amanhã pego a balsa de volta para Carolina, mas antes deixo este
testamento para quando você vier. (NN, 2002, p. 12, 13)
Os fragmentos apresentados anteriormente fazem parte da primeira
carta-testamento escrita por Manoel Perna, amigo de Buell Quain,
antropólogo norte-americano, que chegou à cidade de Carolina, no
hidroavião Condor, em março de 1939, momento tido como grande
acontecimento e registrado em fotografias, como se pode ver a seguir:
(O Globo, 18 ago. 1939, Primeira Seção, 3-Nacional p.1. )
Segundo Manoel Perna, Buell Quain considerou a cidade morta e, cinco
meses depois de sua chegada, ninguém mais se lembrava do evento, exceto
Manoel Perna que jamais se esqueceu do amigo norte-americano:
3. Isto é para quando você vier. Foram apenas nove noites5. Se agi como
se ignorasse os motivos que o levaram ao suicídio foi para evitar o
inquérito. A polícia tomou conhecimento do caso e fez o inventário dos
fatos e do espólio a pedido dos americanos. Não me julgue mal. Não
teria podido responder a nada. O silêncio foi um peso que carreguei
durante anos, enquanto estive à sua espera. Já não posso me arriscar a
que tudo desapareça comigo. (NN, 2002, p. 24)
5 Manoel Perna e Buell Quain conviveram durante nove noites não seguidas cronologicamente.
O G
lobo
/ E
dito
ra G
lobo
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Manoel Perna recebeu algumas correspondências destinadas a Buell
Quain, quando ele viajara para a selva e, conforme o combinado entre
ambos, Perna encaminhou as missivas ao antropólogo, mas afirma que, se
soubesse do conteúdo das cartas destinadas ao norte-americano, ele mesmo
teria as levado e, assim, trazido Buell Quain de volta para Carolina em
segurança. Segundo o engenheiro, uma das cartas enviadas para a aldeia era
de um dos destinatários das missivas deixadas por Buell Quain antes de ele
se matar:
Os índios disseram que ele passou a viver num estado de absorção
terrível depois de receber a última correspondência que eu havia
mandado pelo meu irmão, um retraimento desconhecido durante a sua
vida pregressa na aldeia. Foram as cartas que ele queimou na sua
última jornada de volta a Carolina e com as quais obteve o fogo e a luz
de que precisava para escrever as que deixou, chorando copiosamente,
antes de se suicidar no meio da noite. (NN, 2002, p. 25)
Segundo Buell Quain, as cartas que recebera traziam péssimas notícias
da família nos Estados Unidos, além de ele estar com uma doença
contagiosa e ter sido traído pela esposa com o irmão. Destaque-se que ele
tinha apenas uma irmã, o que é contraditório ao que o antropólogo informa.
Manoel Perna, em sua carta-testamento, alerta seu destinatário que:
6. Isto é para quando você vier e sentir o temor de continuar
procurando, mesmo já tendo ido longe demais. Ele6 deve ter lhe falado
dos portos que visitou, do que viu pelo mundo, sempre um pouco mais
além numa busca sem fim e circular, e do que trouxe para casa, não os
objetos que passaram a assombrar a mãe depois da sua morte, mas o
que lhe marcou os olhos para sempre, deixando-lhe aquela expressão
que ele tentava disfarçar em vão e que eu apreendi quando chegou a
Carolina na distração do seu cansaço, os olhos que traziam o que ele
tinha visto pelo mundo, a morte de um ladrão a chibatadas numa cidade
da Arábia, o terror de um menino operado pelo próprio pai, a entrega
dos que lhe pediam que os levasse com ele, para onde quer que fosse,
como se dele esperassem a salvação (NN, 2002, p. 42)
6 O pronome refere-se a Buell Quain.
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Na véspera da partida de Quain para a expedição, Manoel Perna
convidou-o para ir à sua casa. Seria a primeira das nove noites em que
conversariam:
8. Isto é para quando você vier. Se é que realmente quer saber. Ao
sairmos da festa, eu me adiantei e convidei o dr. Buell a passar em casa.
Ele mal me reconheceu. Perguntei se estava apreensivo com a partida
no dia seguinte. Tentou recusar o meu convite. Eu insisti. Aceitou por
cerimônia, por não dominar os códigos do lugar, por não saber quem eu
era. Estava cansado. Bebemos e conversamos. (...) Se faço as contas,
vejo que foram apenas nove noites. Mas foram como a vida toda. A
primeira, na véspera de sua partida para a aldeia. Depois, mais sete
durante a sua passagem por Carolina em maio e junho, quando vinha
à minha casa em busca de abrigo, e a última quando o acompanhei pelo
primeiro trecho de sua volta à aldeia, quando pernoitamos no mato,
debaixo do céu de estrelas. A última noite foi por minha conta. Ele não
havia requisitado a minha companhia, mas senti que devia acompanhá-lo
a cavalo, nem que fosse apenas no primeiro trecho do percurso, como
se de alguma maneira soubesse o que àquela altura não podia saber, que
nunca mais o veria. (NN, 2002, p. 46, 47)
Buell Quain contou a Manoel Perna sua viagem à ilha no Pacífico, onde
os índios são negros; o abandono da faculdade de zoologia para embarcar
atrás de seu sonho; a fase em que foi marinheiro numa viagem para Xangai;
a história de um chinês que queria sair de seu país e foi ajudado por ele a
embarcar clandestinamente em navio americano, mas acabou expulso no
primeiro porto, e os quatro meses que passou entre os índios Trumai, entre
agosto e novembro de 1938, até ser chamado de volta ao Rio de Janeiro,
em dezembro do mesmo ano.
O convívio de Buell Quain com os índios brasileiros havia sido
desagradável e conflituoso, segundo Manoel Perna:
10. Isto é para quando você vier. A ele, só restava observar, que em
princípio era a única razão da sua presença entre os Trumai. Quando
chegou aqui, estava cansado desse papel. Mas também tinha horror da
ideia de ser confundido com as culturas que observava. Me contou que,
entre os nativos com que convivera na sua ilha da Melanésia, não podia
haver pior desgraça para um rapaz do que ser acusado de espreitar as
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mulheres. Era um sinal de infantilidade: diziam dos que espreitavam
que não eram capazes de alcançar a satisfação sexual pelas vias de fato.
Ele estava cansado de observar, mas nada podia lhe causar maior
repulsa do que ter que viver como os índios, comer sua comida,
participar da vida cotidiana e dos rituais, fingindo ser um deles.
Sobre o comportamento dos índios, Buell Quain falou com Manoel
Perna sobre um garoto que
Nunca participava das lutas que os outros meninos organizavam. Como
não havia meninas adolescentes, os jogos sexuais aconteciam entre
meninos ou entre meninos e homens, quase sempre por iniciativa dos
primeiros, que os adultos não reprimiam. Observou que o órfão tinha
um interesse especial por esses jogos. Costumava procurar os homens
mais velhos, que não o rechaçavam. Não sei se esse menino também o
procurou e por isso me contava a história, mas outro garoto, logo depois
da primeira ereção, compareceu uma noite a casa do dr. Buell para se
vangloriar e certa vez chegou a copular com uma menina, sob os olhos
do antropólogo, de propósito, para se mostrar, sabendo que era
observado. 0 sexo assombrava a solidão do meu amigo. (NN, 2002, p.
55, 56)
12.Você quer saber o que o dr. Buell fez na aldeia. É provável que nada.
E se houvesse alguma coisa, não seria dos índios que você iria arrancar
uma resposta. Também não sei de nada. Mas posso imaginar, e você
também pode imaginar, como imaginei a cada vez que ele me contou as
suas histórias, pela intensidade da sua solidão, que na noite do suicídio
ele estivesse fugindo.
Quando voltou a Carolina, mais de dois meses depois de ter partido
com os índios e mais de dois meses antes de se matar, achava-se num
estado deplorável. Preferia se esconder. Disse que não confiava em
ninguém. Mas não podia desconfiar de mim, tanto que me procurou.
Devia se lembrar da primeira noite em que veio à minha casa, logo que
chegou à cidade, quando me falou dos Trumai. Chegou sujo e sem
sapatos. Estava envergonhado, intimidado pelos brancos que antes
havia desprezado e aos quais já não ousava se dirigir em português,
com medo de não conseguir se expressar. Eu só o ouvia.
(...)
Durante a sua estada em Carolina, vinha à minha casa no final da tarde
e conversávamos noite adentro. Muitas vezes não entendi o que dizia,
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mas ainda assim compreendia o que estava querendo dizer. Eu
imaginava. Ele só precisava conversar com alguém. Numa das vezes em
que me falou de suas viagens pelo mundo, perguntei aonde queria
chegar e ele me disse que estava em busca de um ponto de vista. Eu lhe
perguntei: “Para olhar o quê?”. Ele respondeu: “Um ponto de vista em
que eu já não esteja no campo de visão”.
(...)
O certo é que, ao deixar a aldeia pela última vez, ele estava fugindo. E
isso eu já lhe disse, mas repito, porque quero que guarde bem. Quando
muito, haverá um lugar para uma única causa e uma única imagem na
sua cabeça. (...) Via-se como um estrangeiro e, ao viajar, procurava
apenas voltar para dentro de si, de onde não estaria mais condenado a
se ver. Sua fuga foi resultado do seu fracasso. De certo modo, ele se
matou para sumir do seu campo de visão, para deixar de se ver. (NN,
2002, p. 110 a 112)
14. Isto é para quando você vier. Ele voltou a Carolina sem sapatos.
Queria passar o aniversário na cidade. Naquela noite, me falou de outra
ilha. Me disse que eu não podia imaginar. Eu já não tinha imaginado
antes, quando me falara da ilha onde havia passado dez meses entre os
nativos do Pacífico, já fazia quatro anos, do outro lado do mundo.
Agora, já não falava da mesma. Não era a ilha em que adormecera sob
as estrelas, embalado pelas histórias que um nativo lhe contava do
crepúsculo à aurora, ao longo de semanas ininterruptas. (NN, 2002, p.
114, 115)
Manoel Perna descreve as viagens de Quain desde os quinze anos,
destacando
Uma ilha que conheceu adulto. Falou de uma casa com vários quartos,
todos ocupados por amigos. Já não se expressava com tristeza nem com
alegria. E eu não saberia dizer que sentimentos guardava daquela
lembrança. Contou de uma tarde em que, voltando de uma caminhada
solitária na praia, onde abandonara os colegas, deparou com a casa
excepcionalmente vazia e um homem sentado na cozinha. E que, antes
de poder se apresentar, o estranho, saindo da sombra, sacou de uma
máquina fotográfica e registrou para sempre o espanto e o desconforto
do antropólogo recém-chegado de um passeio na praia, surpreendido
pelo desconhecido. Numa das noites em que veio à minha casa durante
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a sua passagem por Carolina, no final de maio, o dr. Buell confessou que
viera ao Brasil com a missão de contrariar a imagem revelada naquele
retrato. Como um desafio e uma aposta que fizera consigo mesmo.
Havia sido traído pelo intruso e sua câmera. Não podia admitir que
aquela fosse a sua imagem mais verdadeira: a expressão de espanto
diante do desconhecido. Havia sido pego de surpresa pelo fotógrafo,
antes de poder dizer qualquer coisa. E embora depois tenham se tornado
amigos, por muito tempo o estranho não conseguiria tirar outra foto
dele. Até irromper um dia em seu apartamento, sem avisar, decidido a
fotografá-lo de qualquer jeito, depois de ter sabido que ele estava de
partida para o Brasil. Queria uma lembrança do amigo antes de
embarcar para a selva da América do Sul. Eu só sei que esse estranho
era você. (NN, 2002, p. 116 a 117)
16. Isto é para quando você vier. (...) O que eu tenho a dizer só pode
fazer sentido junto com o que você já sabe. Também teria muito a lhe
perguntar. Sobre as lembranças que ele guardava da ilha a duas horas
da cidade, por exemplo. Ele me falou da casa na praia e eu procurei
imaginar, e foi assim que vi uma construção de madeira e vidro entre as
dunas na frente do mar e dois vultos numa janela do sótão ao cair de
uma tarde de chuva, depois da revelação que modificou para sempre a
vida de ambos. Só você pode saber do que estou falando. Só pode ter
sido na casa da praia que ele lhe falou dela pela primeira vez. Se não,
por que teria associado, bêbado, numa das noites em que me procurou
em Carolina, o mar e a chuva à decepção que infligia aos que o
amaram? Devem ter discutido sobre aquela mulher. Ele pensava que
você não soubesse dela. E foi quando se revelou a traição. Pois naquela
noite chuvosa você lhe disse não apenas que sabia de tudo, mas que
também estava envolvido com ela. E para ele foi um choque cujas
consequências você não podia imaginar. Tenho cá para mim que no
fundo nada pode surpreender quem se permite ouvir nos outros a
própria voz. Ele me falava de você sem me dizer o seu nome. Ele me
falava do homem que o havia traído. Mas, se isso puder ajudá-lo, saiba
que ele reconheceu a sua amizade. O que ele chamou de traição era no
fundo o que o atormentava nos seus próprios atos. Saiba que, de um
modo ou de outro, ele reconheceu que também o havia traído. (NN,
2002, p. 122)
(…)
O que ele não sabia até então é que você também estava envolvido com
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ela. Suponho quais foram as suas razões. Você pensava que assim ele a
abandonaria. Não queria perdê-lo. E ele sumiu. Quando você acordou,
a casa estava vazia.
(…)
O estranho é que havia me dito logo na primeira noite que não era
casado. Cheguei a achar que pudesse estar falando da própria esposa
quando falava dela, mas só até ele me contar de uma noite na cidade
quando, de volta para casa —para dizer a verdade, não falou em casa
mas em hotel —, a mulher que o acompanhava ficou tão perturbada
diante da visão de uma moça pequenina no vagão em que estavam —
uma moça que não chegou a vê-los entre os outros passageiros —,
enfim, ficou tão atordoada, que o obrigou a descer quatro estações antes
de chegarem ao destino e continuar a pé. (NN, 2002, p. 123 a 124)
Sobre a moça, Manoel Perna relata:
Ao chegar a Nova York, vinda do sul dos Estados Unidos para estudar
e vencer no mundo da música, a moça se hospedara inadvertidamente
num prostíbulo, agradecida à sorte por acreditar, na mais completa
ingenuidade, que era aceita numa pensão de moças. E foi ali que as
duas se conheceram, a sulista recém chegada e a veterana, que entre os
índios ele chamou de esposa nos seus últimos dias. Percebendo a
ingenuidade da sulista, ela se oferecera não só para lhe mostrar a
condução que devia pegar até a escola de música, mas também para
ser guardiã do seu dinheiro, e nem é preciso dizer que, ao dar por si, a
pobre moça entendeu ao mesmo tempo que a companheira de pensão
havia desaparecido com todas as suas economias e que o que acreditara
ser uma pensão era na realidade um prostíbulo. As duas nunca mais se
viram. Aquela que o dr. Buell chamava de mulher nunca podia ter
imaginado que reencontraria a outra numa cidade tão grande, até vê-la
no vagão do trem, como uma aparição, entre os outros passageiros. (NN,
2002, p. 123, 124)
Manoel Perna acompanhou Buell Quain no primeiro dia da volta dele
à aldeia. Durante a noite, o antropólogo se embriagou com cachaça e falou
sobre as estrelas consideradas pelos nativos de Fiji como fogueiras acesas
pelos índios que ficaram presos no céu. Quain contou a Perna que aguardava
a chegada de uma carta importante dos Estados Unidos e pediu ao amigo
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que a remetesse para a aldeia. Depois, ele começou a falar sobre suas
aventuras:
O dr. Buell também me falou de ter visto uma vez, em suas andanças
pelo Rio de Janeiro, entre a Lapa e o Catete, um templo de colunas em
cujo portão estava inscrita a frase: “Os vivos são sempre e cada vez
mais governados pelos mortos”. Perguntou se eu já tinha pensado
naquilo, se eu fazia ideia do que aquilo queria dizer. Perguntou se eu já
estivera no Rio de Janeiro durante o Carnaval. Estava cada vez mais
bêbado. Eu também não estava sóbrio. E nem sei tudo o que ouvi. (NN,
2002, p. 127)
Buell Quain contou a Manoel Perna que, ao chegar ao Rio de Janeiro,
no Carnaval de 1938, envolveu-se com uma mulher fantasiada de
enfermeira. Na manhã seguinte, ao acordar, ele encontrou, deitado em sua
cama, um negro forte e nu. O antropólogo estava muito doente e,
balbuciando para Manoel Perna disse “Toda morte é assassínio”, dormindo
em seguida. Perna esclarece ao destinatário de sua carta-testamento que
18. O que ele queria dizer era outra coisa. Não sei se você se dá conta
das consequências do que ele me contou, do que aquilo podia provocar
se chegasse aos ouvidos das autoridades. Imaginariam o pior, tudo seria
pretexto para concluir que ele teria cometido atos na aldeia que,
contrários à natureza humana, justificavam que os índios o matassem.
O mais fácil era perseguir os índios. Você não pode imaginar a
responsabilidade que ele me pôs nos ombros: por vias tortas, me deixou
a incumbência de fazer chegar às mãos dos destinatários as cartas que
escreveu à beira da morte, como os marinheiros que levavam a
correspondência dos mortos para terra firme, na história do navio
assombrado que me contou naquela noite. (NN, 2002, p. 130, 131)
Buell Quain escreveu algumas cartas que foram guardadas por Manoel
Perna, o qual se preocupava com o conteúdo delas e a possibilidade de se
extraviarem:
Entre as cartas que deixou, só estavam fechadas as que endereçara ao
pai, ao cunhado e a você. As outras não isentam apenas os índios de
toda responsabilidade; elas eximem o etnólogo da própria culpa e o
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põem acima de qualquer suspeita. O suicídio elimina não apenas a
hipótese do homicídio, mas os motivos de quem tivesse razões para
matá-lo, um pai ou uma mãe vingando o filho, um marido vingando a
mulher, irmãos vingando um irmão. (NN, 2002, p. 131, 132)
Não me resta outra opção. Decidi dar um fim a esta carta que lhe
pertence e cujo conteúdo desconheço, em parte por ignorância, em parte
por precaução (não podia pedir a ninguém que a traduzisse), e que até
agora tinha guardado com o único intuito de protegê-los, a ele e aos
índios, fazendo-a chegar intacta ao seu destinatário. Só podia entregá-la
em mãos. Foi a herança que ele me deixou. (NN, 2002, p. 132)
Isto é para quando você vier. É preciso que esteja preparado. (...) Depois
da morte dele, saí à procura dessa árvore, tentando compreender. Os
índios me levaram até o túmulo cercado de talos de buriti. Podia estar
diante de qualquer árvore. Tive que acreditar que havia sido ali. A
comprovação eu só teria se exumasse o cadáver com as próprias mãos.
Muita coisa não se pode desenterrar. Sozinho eu não tinha forças. (NN,
2002, p. 132, 133)
Para Manoel Perna, Buell Quain
Era um homem orgulhoso e eu sabia que iria até o fim. Mas eu não
podia interferir, ainda mais depois da nossa última conversa, depois da
última noite no mato. Talvez por já ter percebido a sua instabilidade,
decidi acompanhá-lo a cavalo durante o primeiro trecho do percurso
— mas só isso —, quando ele me disse o que hoje eu teria preferido não
ouvir, pois só pode aumentar o meu remorso e o arrependimento de tê-lo
deixado seguir em frente. Tente me entender. A consciência que ele me
deu sobre o seu estado foi também o que me impediu de intervir. A minha
ação teria sido uma ofensa e uma traição. Seria como tornar real o
fantasma do homicídio que o assombrava. O que ele me contou era para
eu guardar como se não tivesse ouvido. E foi o que fiz. Era a minha
herança. Peço que procure me entender e me perdoar assim como
entendi que você não podia imaginar os efeitos que a sua última carta
teria sobre um homem naquele estado de solidão e desamparo.
O que lhe conto é uma combinação do que ele me contou e do que
imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe
contar ou escrever. (NN, 2002, p. 133, 134)
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2.2. RELATO DO NARRADOR-INVESTIGADOR-JORNA -LISTA
O segundo relato presente no romance Nove Noites, envolvendo a
história de Buell Quain, é redigido pelo narrador-investigador-jornalista,
que o inicia explicando o motivo de ter se dedicado à pesquisa em torno do
antropólogo norte-americano:
2. Ninguém nunca me perguntou. E por isso também nunca precisei
responder. Não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar nele, mas a
verdade é que não fazia a menor ideia de quem ele era até ler o nome
de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal7, na manhã de 12
de maio de 2001, um sábado, quase sessenta e dois anos depois da sua
morte às vésperas da Segunda Guerra. O artigo saiu meses antes de
outra guerra ser deflagrada. Hoje as guerras parecem mais pontuais,
quando no fundo são permanentes. Li várias vezes o mesmo parágrafo
e repeti o nome em voz alta para me certificar de que não estava
sonhando, até entender — ou confirmar, já não sei — que o tinha ouvido
antes. O artigo tratava das cartas de outro antropólogo, que também
havia morrido entre os índios do Brasil, em circunstâncias ainda hoje
debatidas pela academia, e citava de passagem, em uma única frase,
por analogia, o caso de “Buell Quain, que se suicidou entre os índios
krahô, em agosto de 1939”.
Procurei a antropóloga que havia escrito o artigo. A princípio, foi seca
no telefone. Deve ter achado estranho que alguém lhe telefonasse por
causa de um detalhe do texto, mas não disse nada. Trocamos alguns
e-mails, que serviram como uma aproximação gradual. (NN, 2002, p.
13, 14)
Assim, o narrador-investigador-jornalista começou a reunir dados
espalhados pelo Brasil e Estados Unidos, fez alguns contatos e iniciou a
montagem da elucidação do que seria um grande mistério. Segundo ele,
Buell Quain se matou na noite de 2 de agosto de 1939 — no mesmo dia
em que Albert Einstein enviou ao presidente Roosevelt a carta histórica
em que alertava sobre a possibilidade da bomba atômica, três semanas
antes da assinatura do pacto de não agressão entre Hitler e Stalin, o
7 O artigo foi escrito por Mariza Corrêa e encontra-se no apêndice deste trabalho.
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sinal verde para o início da Segunda Guerra e, para muitos, uma das
maiores desilusões políticas do século XX.
(...)
Quando se matou, tentava voltar a pé da aldeia de Cabeceira Grossa
para Carolina, na fronteira do Maranhão com o que na época ainda
fazia parte de Goiás e hoje pertence ao estado do Tocantins. Tinha vinte
e sete anos. Deixou pelo menos sete cartas, que escreveu, aos prantos,
nas últimas horas que precederam o suicídio. Queria deixar o mundo em
ordem, a julgar pelo conteúdo das quatro a que tive acesso, endereçadas
a sua orientadora, Ruth Benedict, da Universidade Columbia, em Nova
York; a dona Heloísa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional, no
Rio de Janeiro; a Manoel Perna, um engenheiro de Carolina de quem
se tornara amigo, e ao capitão Ângelo Sampaio, delegado de polícia da
cidade. Queria isentar os índios de qualquer culpa, constituir seus
executores testamentários e instruí-los sobre a disposição de seus bens.
São cartas em que dá instruções aos vivos sobre como proceder depois
da sua morte. Entre as que não consegui encontrar, no entanto, sei que
havia pelo menos uma endereçada ao pai médico, dr. Eric P. Quain,
recém-divorciado e hospedado no Annex Hotel, em Bismarck, na Dakota
do Norte; outra ao reverendo Thomas Young, missionário americano
instalado com a mulher em Taunay, em Mato Grosso, e uma terceira ao
cunhado Charles C. Kaiser, marido de sua irmã, Marion. (NN, 2002, p.
15, 16)
Buell Quain chegou ao Brasil em fevereiro de 1938, para estudar os
índios Karajá, expedição que foi realizada por William Lipkind e esposa. Em
1939, quando o antropólogo se suicidou, alguns colegas da Universidade
Columbia acreditavam que ele teria vindo ao Brasil para se matar, enquanto
outros amigos levantavam a hipótese de ele ter sido assassinado.
A pesquisa de Quain, no entanto, volta-se para os índios Trumai, que
viviam praticamente inacessíveis, no alto Xingu, e em vias de extinção. Por
problemas com o Estado Novo, o antropólogo norte-americano interrompeu
sua pesquisa e voltou, abalado, ao Rio de Janeiro. O retorno dele coincidiu
com a chegada de Charles Wagley e a vinda de Ruth Landes para estudar os
negros e o candomblé da Bahia, todos alunos de Ruth Benedict.
Buell Halvor Quain nasceu em 31 de maio de 1912, às 11h53 da noite,
no hospital de Bismarck, capital da Dakota do Norte. Seu pai chamava-se
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Eric P. Quain, nascido na Suécia, médico-cirurgião, formado em 1898 e, a
mãe, Fannie Dunn Quain, foi a primeira mulher a obter diploma em
medicina em Dakota do Norte, Estados Unidos, mas abandonou a profissão
para se dedicar à família.
Pouco antes do suicídio de Buell Quain, seus pais se separaram. O
antropólogo chegou a mencionar em suas cartas as questões familiares que
o obrigavam a interromper suas pesquisas sobre os índios e voltar aos
Estados Unidos. Mas, em carta a dona Heloísa, o antropólogo escreveu:
“Prezada dona Heloísa,
“Estou morrendo de uma doença contagiosa. A senhora receberá esta
carta depois da minha morte. A carta deve ser desinfetada. Pedi que as
minhas notas e o gravador (me desculpe, sem nenhuma gravação)
fossem enviados ao Museu. Por favor, remeta as notas para Columbia.
“Não pense o pior de mim. Apreciei a sua amizade. Mas não posso
terminar o catálogo da coleção que os índios vão encaixotar e lhe
enviar. Pedi que dois contos lhe fossem remetidos por conta do meu
fracasso. No entanto, se a senhora receber alguma peça da coleção, por
favor, lembre-se dos índios e mande o que achar adequado para Manoel
Perna, de Carolina. “Espero que Lipkind e Wagley cumpram com as
suas expectativas.
“Sinceramente,
“Buell Quain (NN, 2002, p. 22, 23)
Porém, os índios João e Ismael, que acompanharam o antropólogo em
sua última viagem pelo Brasil, contaram a Manoel Perna que Buell Quain
não apresentava sintoma de doença alguma, apenas parecia perturbado
psicologicamente. O narrador-investigador-jornalista não se convence das
explicações apresentadas e afirma:
4. Ninguém nunca me perguntou, e por isso também não precisei
responder. Todo mundo quer saber o que sabem os suicidas. No início,
deixei-me levar pela suposição fácil de que aquela só podia ter sido uma
morte passional e concentrei a minha busca nesses vestígios. Devia
haver outra pessoa envolvida. Ninguém pode estar totalmente só no
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mundo. Tinha que haver uma carta em que ele revelasse os seus desejos
e sentimentos. Na manhã de 8 de março de 1939, enquanto esperava as
mulas e os mantimentos para a caminhada de seis dias até a aldeia de
Cabeceira Grossa, Quain aproveitou para pôr em dia a
correspondência, sentado à máquina de escrever. Pretendia isolar-se na
aldeia por um período inicial de três meses. Não podia contar com a
eventual ida de um mensageiro ou portador nesse meio-tempo. Não
pensava em voltar a Carolina antes de junho. Li três dessas cartas. A
mais longa era endereçada a Ruth Landes, sua colega de Columbia que
estava no Brasil estudando o candomblé. Nas outras duas, ele se dirigia
a dona Heloísa e à assistente dela, Maria Júlia Pourchet, que conhecera
ao passar pelo Rio de Janeiro. Na carta para a diretora do Museu
Nacional, Quain tratava de questões práticas, de seu registro junto à
polícia de São Luís, de remessas de dinheiro e dos gastos com os
presentes para os índios. A Maria Júlia Pourchet, ele descrevia, com
mesuras, as primeiras impressões de Carolina.
Eu não soube da existência dessa carta até me aconselharem a procurar
uma professora de antropologia da Universidade de São Paulo cuja tia,
também antropóloga e falecida, teria visitado a mãe de Quain, nos
Estados Unidos, em 1940, pouco depois da morte do etnólogo. (NN,
2002, p. 27).
Destaque-se que para Buell Quain, conforme escreveu em carta para
sua colega Ruth Landes, Carolina era um lugar tedioso, repleto de
analfabetos e intelectuais afetados, com os quais ele teve contato numa
homenagem a Humberto de Campos.
5. O narrador-investigador-jornalista partiu para suas pesquisas sobre o
caso Buell Quain e, em Niterói, foi recebido pelo professor Luiz de Castro
Faria, o qual o intrigou com a apresentação de uma fotografia em que
estavam presentes dona Heloísa Alberto Torres, Charles Wagley, Raimundo
Lopes, Edson Carneiro, Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes e o próprio Luiz
de Castro Faria:
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(NN, 2002, p. 31)
Todos os fotografados conheceram Buell Quain e alguns de seus
segredos e, segundo Castro Faria, eles não teriam se abalado com o suicídio
do antropólogo, salvo a preocupação de dona Heloísa por ter sido a
responsável pelas pesquisas dele. Ainda em conversa com Castro Faria, o
narrador-investigador-jornalista soube que Buell Quain era muito rico e o
dinheiro incomodava-o, tendo chegado a doar uma quantia em segredo a
Charles Wagley, como se fosse uma bolsa de estudos.
Segundo Castro Faria, Buell Quain não queria ser identificado como
rico e não tinha esposa, porque, se fosse casado, a teria levado com ele na
expedição, comportamento comum aos pesquisadores da cultura indígena,
mas acreditava na instabilidade emocional de Buell Quain em decorrência
de um possível divórcio.
O narrador-investigador-jornalista soube que os pais de Quain eram
médicos bem-sucedidos no Meio-Oeste dos Estados Unidos, mas não
pareciam milionários, e que Buell Quain acreditava ter contraído sífilis,
resultado de uma aventura com uma moça, durante o Carnaval no Rio de
Janeiro. Segundo informações colhidas pelo narrador-investigador-jorna -
lista, Claude Lévi-Strauss teria aconselhado o antropólogo norte-americano
a voltar para o Rio de Janeiro e tratar-se da sífilis. No entanto, após o
suicídio de Quain, houve rumores de que ele teria lepra.
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Segundo Castro Faria, um problema intenso que havia naquela época
era a atividade dos antropólogos ser cerceada pelo Estado Novo:
7. A situação dos estrangeiros no Brasil do Estado Novo era delicada.
A impressão era que estavam sob vigilância permanente. Dos jovens
antropólogos de Columbia que trabalhavam no país no final dos anos
30, Ruth Landes foi provavelmente a que mais sentiu na pele o clima de
ignorância e o horror, uma vez que estava envolvida pessoal e
profissionalmente com os intelectuais baianos perseguidos, presos e
intimidados pelo regime sob a acusação de serem comunistas. Foram
eles que facilitaram o seu acesso aos rituais de candomblé, objeto da
sua pesquisa. A correspondência dela com Ruth Benedict é reveladora.
Numa carta de maio de 1938, Landes menciona à orientadora ter
recebido “notícias pesarosas” de Quain — que estava retido em Cuiabá
com uma infecção no ouvido — mas que ele próprio revelaria mais
detalhes a Benedict em carta a ser remetida pela Bolívia por razões de
segurança. Landes se desculpa pela linguagem “um tanto canhestra”,
explicando que é obrigada a escrever dessa maneira também por razões
de segurança. (NN, 2002, p. 43)
Além disso, a situação dos antropólogos no Brasil era agravada por
doenças tropicais:
9. Em carta de 1.º de novembro de 1940 a Heloísa Alberto Torres, a mãe
de Quain conta a história dos missionários do rio Coliseu. À falta de
quinino, e com os homens morrendo de malária, os americanos
começaram a rezar. “Foi quando viram um homem com a cabeça
raspada, calças esfarrapadas e uma velha jaqueta vindo do rio na sua
direção. Acharam que fosse um prisioneiro em fuga, até que ele lhes
sorriu.” No delírio do seu pesadelo, devem ter visto um condenado com
correntes nos pés e nas mãos, saindo de dentro de algum pântano da
Louisiana ou do Mississippi. Ou pelo menos foi assim que imaginei as
visões febris e apavoradas dos pobres missionários quando li a carta da
mãe do etnólogo. Segundo ela, Quain lhes teria dado um novo remédio,
que, como por milagre, logo os tirou daquele estado — o que, aos olhos
dessa gente, fez dele naturalmente uma espécie de salvador enviado em
resposta às preces e à fé dos desesperados. O jovem antropólogo teria
obtido o medicamento e por sorte o incluíra na sua bagagem depois de
a mãe ter lido um artigo numa revista médica e lhe mandado o recorte
para o Rio de Janeiro. (NN, 2002, p. 49, 50)
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Buell Quain passou três semanas com os missionários em meio a um
clima de medo, principalmente por parte dos Trumai, que estavam em
extinção e temiam o ataque de outras tribos. O antropólogo, porém, preferiu
permanecer entre os Trumai e o convívio deles foi difícil em decorrência
do choque de culturas. A integração levou dois meses.
Duas situações complicadas vividas por Quain quase desencadearam
um conflito social: o antropólogo se indispôs com duas crianças Trumai:
bateu na mão de um menino que lhe roubava a farinha e, em outra ocasião,
Quain, sem querer, pisou no pé de outro garoto. Outro problema vivido pelo
antropólogo era a aproximação das mulheres indígenas, as quais eram
afastadas por Quain que as ameaçava de estupro, gerando gargalhadas das
índias.
Continuando a investigação, o narrador soube que
11. De volta a Cuiabá, Buell Quain sofreu um ataque de malária.
Enquanto convalescia, escreveu a Ruth Benedict o relato da sua
convivência com os Trumai: “Toda morte é assassínio. Ninguém espera
passar da próxima estação das chuvas. Não é raro haver ataques
imaginários. Os homens se juntam aterrorizados no centro da aldeia —
o lugar mais exposto de todos — e esperam ser alvejados por flechas
que virão da mata escura”.
Ninguém nunca me8 perguntou, e por isso nunca precisei responder que
a representação do inferno, tal como a imagino, também fica, ou ficava,
no Xingu da minha infância. (NN, 2002, p. 60)
A partir desse momento, o narrador-investigador-jornalista começou a
relatar sua aventura pelo ambiente desagradável do Xingu em companhia do
pai, imprudente a ponto de pilotar à noite sem ter autorização e ser preso ao
aterrissar em uma propriedade, despertando a suspeita de um ataque
terrorista.
A primeira vez que o narrador-investigador-jornalista teve contato com
a selva foi em 1967, ocasião em que seu pai procurava uma fazenda para
comprar, valendo-se dos incentivos financeiros da época do Estado Novo
para o desenvolvimento da Amazônia, com a distribuição de subsídios para
a implantação do projeto agropecuário a partir de 1970.
8 Observe que o narrador-investigador-jornalista apresenta sua opinião sobre o Xingu e suarelação com o local na infância.
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Em uma das viagens ao Xingu, o narrador-investigador-jornalista e seu
pai se hospedaram em um hotel, onde havia atores gravando uma fotono -
vela. O pai apresentou a todos o narrador-investigador-jornalista como
bisneto do marechal Rondon por parte de mãe, constrangendo o garoto. Em
outra ocasião, o pai do narrador-investigador-jornalista levantou voo com os
vidros do avião embaçados e sofreu um acidente juntamente com o filho.
Socorridos pelo administrador de uma fazenda, depois de alimentados e
cuidados, ambos foram levados até um local onde tomariam um táxi-aéreo:
No dia em que acordei, a manchete dos jornais era a tragédia de um
avião da Varig9 que se incendiara misteriosamente na rota de descida
para Orly, matando boa parte dos tripulantes e todos os passageiros, à
exceção de um. O jornal trazia as fotos das celebridades mortas. E de
alguma forma associei a grande tragédia ao nosso pequeno acidente,
como se houvesse alguma conexão incompreensível entre os dois. O
Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem
do inferno. Não entendia o que dera na cabeça dos índios para se
instalarem lá, o que me parecia de uma burrice incrível, se não um
masoquismo e mesmo uma espécie de suicídio. (NN, 2002, p. 72,73)
Prosseguindo na pesquisa sobre o que teria levado Buell Quain ao
suicídio, o narrador-investigador-jornalista buscou por informações sobre
os índios Krahô:
Comecei a procurar informações sobre os Krahô pouco depois de ter
lido pela primeira vez sobre o suicídio de Quain no artigo de jornal. Na
madrugada de 25 de agosto de 1940, um domingo, um ano depois do
suicídio do etnólogo, a aldeia em que havia passado os seus últimos
meses sofreu um ataque de onze homens armados com rifles, sob o
comando de dois fazendeiros, José Santiago e João Gomes, do
município de Pedro Afonso, na época pertencente ao estado de Goiás,
9 No dia 11 de julho de 1973, um Boeing 707-345C da Varig, voo RG-820, vindo do AeroportoAntônio Carlos Jobim (Rio de Janeiro), pousou em chamas em uma plantação próxima aoaeroporto de Orly (França). Embora a manobra dos pilotos tenha sido perfeita, apenassobreviveram dez tripulantes e um passageiro no acidente, em decorrência do incêndio quehavia se instalado dentro da aeronave, desencadeando intoxicação por monóxido de carbonoe ácido cianídrico. Segundo investigações, o incêndio foi provocado por uma ponta de cigarroacesa jogada no banheiro do avião. As máscaras não puderam ser usadas pelos passageiros, poiso oxigênio intensificaria o fogo. Várias celebridades estavam a bordo, como, por exemplo, ocantor Agostinho dos Santos.
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que arquitetaram a emboscada com minúcias de traição e perversidade,
como vingança, para dar uma lição aos índios que roubavam seu gado.
No cômputo final da chacina, que também teve por alvo outra aldeia,
morreram vinte e seis índios, entre homens, mulheres e crianças. (NN,
2002, p.73)
Ao serem os índios atacados, o chefe da aldeia Luís Balbino tentou
dialogar com os fazendeiros, mas foi assassinado também. Os mandantes do
massacre foram condenados, mas cumpriram a sentença em liberdade
condicional.
O narrador-investigador-jornalista marcou um encontro com um casal
de antropólogos de São Paulo e, por meio deles, soube da existência de João
Canuto Ropkà, já idoso, um dos dois índios que acompanhou o antropólogo
Buell Quain na noite de seu suicídio:
No tempo em que viveram entre os Krahô, os dois antropólogos mais
de uma vez foram abordados pelo velho João Canuto Ropkà, a lhes
perguntar se não tinham ouvido falar do dr. Quain Buele, o etnólogo
americano cuja morte ele havia presenciado. (...) Para o velho, era
incrível que brancos não soubessem quem tinha sido o dr. Quain Buele,
me disse o casal de antropólogos quando nos encontramos, numa sala
repleta de pilhas de papéis, arquivos e de mapas com demarcações de
terras indígenas espalhados pelas paredes.
Àquela altura, eu já estava completamente obcecado, não conseguia
pensar em outra coisa, e como todos os que eu havia procurado antes,
eles também não quiseram saber por quê. Ninguém me perguntava a
razão. Eu dizia que queria escrever um romance.
(...) O antropólogo me disse que, por coincidência, estava com uma
viagem marcada para Carolina. (...) Tinha prometido aos Krahô levar
o filho mais velho para a aldeia quando acabasse a reunião em
Carolina. (...) Por uma estranha coincidência, já que a assembleia
timbira acabou sendo marcada para os dias 31 de julho e 1.º de agosto,
a nossa ida para a aldeia teria que ficar para 2 de agosto, o mesmo dia
em que Buell Quain se suicidara, sessenta e dois anos antes, quando
tentava fazer o caminho inverso. O antropólogo e o filho já estavam
havia alguns dias em Carolina quando cheguei (...)
Carolina é um lugar morto, como disse Quain ao desembarcar ali pela
primeira vez, mas que tem a sua graça, ainda mais hoje, por ser
resultado de uma tranquila decadência e abandono, como se tudo
tivesse parado e sido preservado no tempo. (...) Quando o rio, caudaloso
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mesmo na estiagem, se abriu à nossa frente, conforme descíamos para
pegar a balsa, e eu pude ver o pequeno porto na margem oposta e o
estaleiro Pipes, imediatamente tomado por uma sensação sinistra de
reconhecimento, como se eu já tivesse avistado aquela paisagem antes.
Era exatamente o mesmo cenário de fundo que eu tinha visto na foto da
chegada de Quain à cidade, publicada na primeira página da edição
de 18 de agosto de 1939 d’O Globo10, que noticiava com algum atraso
a morte do etnólogo: “Flagrantes sensacionais do cientista suicida nas
selvas do Brasil”. (NN, 2002, p.75, 76)
O narrador-investigador-jornalista encontrou-se com velho Diniz, o
qual, de imediato, pediu um gravador de presente, que poderia ser comprado
em São Paulo e enviado para ele pelo correio. Muito discretamente, o
10
(O Globo, 18 ago. 1939, Primeira Seção, 3-Nacional p.1. )
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narrador-investigador-jornalista perguntou sobre Buell Quain ao índio e
descobriu que o norte-americano fora apelidado como “Cãmtwýon” pelo
índio Craviro.
Luís Balbino era o chefe indígena que levou Buell Quain até a aldeia e
hospedou-o na casa de Mundico, um dos índios que falavam melhor a língua
portuguesa. Nessa época, Diniz era apenas um menino que observava Buell
Quain, o qual não comia com os índios nem aceitava a comida deles, fumava
e escrevia muito. Segundo Diniz, Quain enlouquecera depois de ter recebido
cartas e, por isso, suicidou-se, no entanto, havia muitas contradições no
relato do velho Diniz em comparação com o que o narrador-investigador-
jornalista já apurara sobre o norte-americano.
João Canuto contou que, ao voltar para o acampamento, encontrou
Quain todo cortado com navalha e ensanguentado e, ao perguntar-lhe o
motivo de se machucar, ouviu do antropólogo que ele precisava amenizar
o sofrimento, extinguir a sua dor cruciante (NN, 2002, p. 84). João Canuto
saiu em busca de ajuda e, quando retornou na manhã seguinte, juntamente
com o fazendeiro Balduíno e outros vaqueiros, encontrou Buell Quain
dependurado numa árvore, sendo ali mesmo enterrado, conforme ele havia
pedido.
Nenhuma autoridade jamais foi ao local, o corpo de Quain não foi
exumado e não houve inquérito, sendo os processos, anteriores ao ano de
1980, queimados. Quain deixou sua herança para a irmã Marion, a qual
pediu a Ruth Benedict que empregasse o dinheiro na pesquisa antropológica,
de acordo com o desejo do irmão.
O narrador-investigador-jornalista seguiu rumo ao local em que Quain
teria sido enterrado:
Viajamos durante cinco horas pelo cerrado, atravessando rios e areais.
A certa altura, a trilha de terra começa a seguir paralela ao rio
Vermelho, que no final é preciso cruzar a pé, com água acima da cintura
e as malas na cabeça. Mas aí já estávamos a quinhentos metros da
aldeia Nova. A aldeia inteira nos esperava na margem do rio. Ouviram
o barulho do carro. Os índios ouvem tudo. O rio Vermelho é verde. Os
índios costumavam beber aquelas águas, pescar e se banhar nelas, até
o dia em que começaram a cair doentes, um depois do outro, e foram
morrendo sem explicação. (NN, 2002, p. 89)
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Hospedado na aldeia, o narrador-investigador-jornalista não suportava
o cheiro do local, a comida, o choro das crianças, os roncos e os sons de
intimidade sexual. Ao descobrir que passaria por uma espécie de batismo,
o narrador-investigador-jornalista recusou-se em participar de cerimônias,
principalmente de seu batismo, mas não conseguiu fugir à pintura do corpo
e à colaboração na busca das toras para o revezamento, embora não tenha
conseguido erguê-las do chão.
Ao retornar a São Paulo, o narrador-investigador-jornalista começou a
receber telefonemas dos índios pedindo presentes e dinheiro.
13. A saída de Buell Quain da aldeia pela última vez lembra uma fuga.
Sua caminhada pela mata acompanhado de dois rapazes que havia
contratado para guiá-lo até Carolina se parece com uma luta contra o
tempo ou contra alguma coisa no seu encalço. Se estava realmente
louco, e a despeito do clichê psicológico, era então uma fuga de si
mesmo, do duplo que o mataria na eventualidade de uma nova crise,
que se aproximava. Deve ter sentido a iminência de uma nova crise e
decidido ir embora antes que fosse tarde demais. Na solidão, vivia
acompanhado dos seus fantasmas, via a si mesmo como a um outro de
quem tentava se livrar.
(...) Para mim, a resposta só podia estar numa das cartas que escreveu
antes de morrer, as quais desapareceram com os seus destinatários. (...)
Foi quando comecei a acalentar a suposição de que devia haver (ou ter
havido) uma oitava carta.
Cada um lê os poemas como pode e neles entende o que quer, aplica o
sentido dos versos à sua própria experiência acumulada até o momento
em que os lê. Num fim de semana na praia, durante uma noite de
insônia, semanas depois de começar a investigar a morte de Quain, e o
mistério que a meu ver tinha ficado adormecido por sessenta e dois
anos, abri ao acaso uma antologia do Drummond na página da “Elegia
1938”:
“Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,/ onde as formas e as
ações não encerram nenhum exemplo./ Praticas laboriosamente os
gestos universais,/ sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo
sexual./ [...] Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/
e adiar para outro século a felicidade coletiva./ Aceitas a chuva, a
guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes,
sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”. (NN, 2002, p. 112 a 114)
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Segundo o narrador-investigador-jornalista,
15. Em outubro de 1939, aos sessenta e cinco anos, Fannie Quain
mandou três fotos do filho para Heloísa Alberto Torres. A maior delas
tinha sido feita num estúdio de Minneapolis, em 1935, antes de ele ir
para Fiji. Os outros dois retratos, um de perfil e o outro de frente, foram
tirados em 1937, quando Buell Quain estava trabalhando no seu
apartamento, em Nova York, provavelmente nos últimos retoques dos
dois livros sobre Fiji que seriam publicados após a morte dele, graças
aos esforços de sua mãe e de Ruth Benedict.
“Um amigo, um artista de Nova York que tinha como hobby esse tipo de
coisas, fez Buell prometer que um dia o deixaria fotografá-lo. O amigo
se cansou de esperar e foi ao apartamento de Buell sem lhe dar a chance
de se barbear ou trocar de roupa”, esclarecia a mãe, sempre tão zelosa
da imagem do filho. Foram esses os retratos que o etnólogo trouxe para
o Brasil e aqui deixou como lembrança, nas mãos de quem o conheceu.
(NN, 2002, p. 117)
Buell Quain chegou ao Brasil em 1938, hospedou-se numa pensão na
rua do Riachuelo, na Lapa carioca, bairro conhecido pela prostituição. Nesse
ano, Carmen Miranda ganhava a fama com o filme “Banana da terra” e,
nesse mesmo Carnaval,
(...) um dos principais personagens da mitologia local, expoente da
malandragem, do crime e da homossexualidade do bairro, ganhou o
concurso do baile do teatro República, próximo à praça Tiradentes, com
uma fantasia de lantejoulas inspirada num morcego do Nordeste, de
onde vinha, e daí em diante passou a ser chamado Madame Satã, por
associação ao filme homônimo de Cecil B. DeMille. (NN, 2002, p. 121)
Em fevereiro de 1947, Bernard Mishkin encontrou-se com o
antropólogo franco-suíço Alfred Métraux, e declarou sobre Buell Quain,
falecido há oito anos, que
“Filho de pai alcoólatra, mas rico, e de mãe neurótica e dominadora.
Obriga-se à homossexualidade com negros, dos quais ele tem horror.
Garoto de talento, poeta”. Métraux não se conteve em suas notas:
“Como caluniador, não há ninguém melhor do que Mishkin”. (NN,
2002, p. 130)
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Manoel Perna faleceu em 1946, vítima de afogamento no rio Tocantins,
ao tentar salvar a neta e,
19. (...) deixou sete filhos, três homens e quatro mulheres. (...) Os dois
filhos mais velhos, que me garantiram que ele não deixou nenhum papel
ou testamento, nenhuma palavra sobre Buell Quain. (...) Francisco era
um menino quando o antropólogo frequentou a casa do pai: “Ele era
alto, vermelho e muito querido. Era amigo do meu pai. Era muito calmo
e educado. Foi uma surpresa o seu suicídio”. A filha mais velha,
Raimunda Perna Coelho, também se lembra do etnólogo, das vezes em
que ele visitava o pai em Carolina: “Eles conversavam muito. Ou saíam
a cavalo”. (...) Pedi que me dissesse o que sabia sobre a morte de
Quain: “Ele não quis mais comer desde que recebeu as últimas cartas
de casa. E disse aos índios que havia sido abandonado pela mulher, que
ela o teria traído com o cunhado. Que ela lhe teria desobedecido, indo
trabalhar num jornal da América do Norte. Antes de morrer, para poder
escrever as últimas cartas, queimou tudo, roupas e papéis, já que não
tinha luz. (...) O etnólogo chegou a atribuir o seu suicídio às dificuldades
da família. Nesse caso, era possível que, aos seus olhos perturbados, o
cunhado o tivesse “traído” simplesmente por deixar a irmã e a sobrinha
em má situação financeira, embora Marion Kaiser tenha negado
qualquer dificuldade, não sem uma ponta de orgulho ferido, na carta
que escreveu a Ruth Benedict depois do suicídio do irmão. Manoel
Perna não deixou nenhum testamento, e eu imaginei a oitava carta. (NN,
2002, p. 134. 135)
O pai do narrador-investigador-jornalista teve muitas mulheres, dinhei -
ro, mas era um inconsequente e morreu solitário numa unidade semi-inten -
siva, vítima do mal de Creutzfeld-Jakob11. Ao lado do leito do pai, havia um11 O mal de Creutzfeldt-Jakob (DCJ) é uma doença neurodegenerativa, caracterizada porprovocar uma desordem cerebral com perda de memória e tremores. É de rápida evolução e,de forma inevitável, leva à morte do paciente. A doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ) é um tipode Encefalopatia Espongiforme Transmissível (EET) que acomete os humanos. As EETs sãochamadas assim por causa do seu poder de transmissibilidade e suas característicasneuropatológicas que provocam alterações espongiformes no cérebro das pessoas (aspectosesponjosos). Assim como outras (EETs), a Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ) é caracterizadapor uma alteração espongiforme visualizada ao exame microscópico do cérebro. A causa etransmissão dessa doença estão ligadas a uma partícula proteinácea infectante denominada de“PRÍON” (do inglês Proteinaceous Infections Particles). Os príons são agentes infecciosos detamanho menor que os dos vírus, formados apenas por proteínas altamente estáveis e resistentesa diversos processos físico-químicos. Os primeiros casos dessa doença – a forma VDCJ –surgiram no Reino Unido em 1996 e, diferentemente da forma tradicional (DCJ esporádica),
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americano de oitenta anos, em seus últimos dias de vida, sem nenhum
familiar, embora o hospital tivesse procurado seu filho, mas encontraram
dificuldade em localizá-lo. O americano parecia esperar a chegada de uma
visita que não aparecia nunca e sua única companhia era a de um rapaz que
sempre vinha ler, em inglês, para ele.
Enquanto acompanhava a agonia do pai, o narrador-investigador-
jornalista, aproximou-se do leito do americano:
Abri as cortinas e perguntei de novo se precisava de alguma coisa. E ele
repetiu o nome. Me chamava “Bill”, ou pelo menos foi isso que entendi.
Tentava estender o braço na minha direção. Segurei a mão dele. Ele
apertou a minha com a força que lhe restava e começou a falar em
inglês, com esforço, mas ao mesmo tempo num tom de voz de quem está
feliz e admirado de rever um amigo: “Quem diria? Bill Cohen! Até que
enfim! Rapaz, você não sabe há quanto tempo estou esperando”. (NN,
2002, p. 146)
Com a chegada da irmã para tomar conta do pai, o narrador-
investigador-jornalista partiu para Paris, onde ficou por três anos. Ao
regressar a São Paulo, leu um artigo da antropóloga Mariza Corrêa, no qual
havia uma referência a Buell Quain, lembrou-se do nome falado pelo
americano moribundo, pouco antes de morrer, e associou-o ao nome do
antropólogo citado no artigo de Mariza Corrêa: Buell Quain e Bill Cohen.
O narrador-investigador-jornalista, então, contatou o rapaz que lia para
o americano no hospital, a fim de obter informações sobre o idoso e ficou
sabendo que o americano se chamava Andrew Parsons, um fotógrafo
chegado ao Brasil por volta de 1940.
Andrew Parsons só tinha um filho nos Estados Unidos, o qual veio ao
Brasil para os procedimentos legais e herdar do pai apenas uma mala com
fotografias e papéis velhos:
acomete, predominantemente, pessoas jovens, abaixo dos 30 anos. Com características clínicase patológicas diferentes da DCJ, também apresenta um perfil genético particular do gene daproteína priônica. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a definição de um casosuspeito da doença se baseia nas análises dos exames, sinais e sintomas e históriaepidemiológica do paciente. Desta forma, o caso pode ser definido como possível, provável edefinitivo, mas a confirmação final só pode ser feita por meio da necropsia com a análiseneuropatológica de fragmentos do cérebro. (Disponível em: https://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/doenca-de-creutzfeldt-jakob-dcj. Acesso em: 10 set. 2020.)
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De posse da informação, escrevi uma carta ao filho do fotógrafo, em
Nova York, na tentativa de esclarecer a relação entre o velho e Buell
Quain, se é que havia alguma, porque em momento nenhum deixei de
desconfiar da possibilidade, ainda que pequena, de uma confusão ou
de um delírio da minha parte. Podia ter ouvido errado, os meses que
precederam a morte do meu pai foram especialmente tensos, e eu não
andava com a cabeça no lugar. Esperei em vão uma resposta. Nesse
meio-tempo, minha pesquisa me levou para outras frentes: vasculhei o
arquivo de Heloísa Alberto Torres, fui a Carolina e visitei os Krahô. Ao
voltar sem respostas da aldeia, em setembro, achei que só a família de
Quain poderia me esclarecer o que faltava no meu quebra-cabeça. Tudo
o que eu precisava era do teor de uma suposta oitava carta, além das
que o etnólogo enviara ao pai, a um missionário e ao cunhado antes de
morrer (por que não teria escrito antes à irmã? Ou teria escrito uma
oitava carta à irmã?), e de um eventual diário que, segundo a mãe, ele
sempre mantinha. A oitava carta e o diário explicariam tudo. (NN, 2002,
p. 153, 154)
O narrador-investigador-jornalista começou sua busca pelos familiares
de Quain nos Estados Unidos, escrevendo mais de cento e cinquenta cartas
a todos que pudessem ter alguma relação com Buell Quain, ou informações
sobre ele, mas tudo fora em vão:
(...) liguei em desespero de causa para uma amiga em Nova York e ela
me pôs em contato com uma produtora de televisão reputada por
desenterrar o que ninguém mais conseguia descobrir. Tinha um nome
exótico. Era filha de indianos que haviam imigrado para o Canadá.
Trocamos alguns e-mails e já tínhamos chegado mais ou menos a um
acordo sobre o custo e o tempo da pesquisa (como era empregada de
uma grande rede de televisão, teria que trabalhar para mim nas horas
vagas), quando dois aviões de passageiros, diante dos olhos atônitos de
todo o planeta, atingiram e derrubaram as duas torres do World Trade
Center12. Os jornais diziam que o mundo nunca mais seria o mesmo. O
fato é que nunca mais consegui falar com a produtora. (NN, 2002, p. 154)
12 World Trade Center (WTC), inaugurado em 4 de abril de 1973, era um complexo de seteedifícios com 110 andares, na região de Lower Manhattan, Nova York, Estados Unidos,destacado pelas “Torres Gêmeas”. Foi destruído em 11 de setembro de 2001, juntamente como World Trade Center 7 e o Marriott World Trade Center, nos ataques terroristas em queaeronaves colidiram contra os edifícios.
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Muitas das cartas que ele escreveu retornaram, pois havia um grande
pânico nos Estados Unidos decorrente das cartas anônimas contaminadas
com antraz13, enviadas a políticos, celebridades e cidadãos comuns
americanos. Restava ao narrador-investigador-jornalista encontrar o filho
do fotógrafo Andrew Parsons:
(...) Àquela altura dos acontecimentos, depois de meses lidando com
papéis de arquivos, livros e anotações de gente que não existia, eu
precisava ver um rosto, nem que fosse como antídoto à obsessão sem
fundo e sem fim que me impedia de começar a escrever o meu suposto
romance (o que eu havia dito a muita gente), que me deixava paralisado,
com o medo de que a realidade seria sempre muito mais terrível e
surpreendente do que eu podia imaginar e que só se revelaria quando
já fosse tarde, com a pesquisa terminada e o livro publicado. Porque
agora eu já estava disposto a fazer dela realmente uma ficção. Era o que
me restava, à falta de outra coisa. (NN, 2002, p. 157)
O narrador-investigador-jornalista viajou para Nova York e ao chegar
em frente à moradia do filho de Andrew Parsons:
(...) toquei o interfone para me certificar de que ele estava em casa.
Pensei em tocar e ficar mudo, nem que fosse só para ouvir a sua voz. Atendeu
a voz de um homem, que não parecia especialmente velho, podia ser dele ou
não, quem sabe de um filho dele, e foi quando me ocorreu inventar uma
história qualquer, que tinha uma encomenda para lhe entregar, por exemplo.
Precisava vê-lo, nem que para isso tivesse que fazê-lo descer para em
seguida me esconder atrás de um carro. Ficaria a observá-lo do outro lado
da rua. Eu não podia perder a oportunidade. Perguntei pelo sr. Schlomo
Parsons. Era o próprio. E antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, ele
abriu a porta e me mandou subir. (NN, 2002, p. 159)
13 Em 18 de setembro de 2001, cinco cartas foram enviadas a emissoras de televisão e aredações de jornais dos Estados Unidos contendo um pó branco, que contaminaria os quetivessem contato com ele pela bactéria Antraz. Outras correspondências foram recebidas emedifícios do governo norte-americano e por Tom Daschle e Patrick Leahy, senadoresdemocratas, nos dias seguintes, contendo a mesma substância. O Antraz é uma infecçãocutânea, pulmonar ou intestinal, provocada pelo contato com os esporos da bactéria Bacillusanthracis, e foi usado, inicialmente, como arma biológica na Primeira Guerra Mundial, porfinlandeses que buscavam libertar seu país do domínio da Rússia czarista, em 1916. A bactéria,que sobrevive no solo, foi testada também pelo exército do Japão durante a Guerra daManchúria contra a China, na década de 1930. No período da Guerra Fria, os Estados Unidose a extinta União Soviética produziram e estocaram antraz para empregarem-no em combate,mas não houve utilização da substância e os estoques foram, oficialmente, destruídos. Deacordo com Segundo Centro de Controle de Doenças dos EUA, por ano são registrados de 2mil a 22 mil casos de contaminação por antraz no mundo e 90% deles são do tipo cutâneo.
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Schlomo Parsons, que aguardava por um carregador, recebe o narrador-
investigador-jornalista acreditando que ele seria o rapaz responsável por
levar as caixas a serem despachadas para Chicago, para onde um velho
amigo havia mudado, dando a entender que teriam vivido juntos. Schlomo
perguntou ao narrador-investigador-jornalista se era brasileiro e, após a
reposta afirmativa disse: Brasil! Esse país me persegue (NN, 2002, p. 160),
iniciando-se uma conversa, durante a qual Parsons revelou que sua mãe
morrera alguns meses após ele ter nascido e fora criado pelos avós paternos.
Schlomo mostrou ao narrador-investigador-jornalista uma pasta em que
havia uma série de fotografias do Brasil nos anos de 1950, 1960, informando
que seu pai era fotógrafo e tinha passado a vida no Brasil:
“Por que o seu pai foi para o Brasil?”
“Ninguém nunca soube direito. Meus avós nunca quiseram falar no
assunto. Ele trabalhava para um jornal. Pode ter ido fazer uma
reportagem. Como desapareceu às vésperas da guerra e nunca mais
voltou, corria a história de que tinha desertado, que tinha decidido não
voltar quando a guerra estourou. Minha mãe morreu menos de um ano
depois de eu nascer. Teve uma leucemia galopante, uma doença muito
rara. Foi o que me disseram. Também não a conheci. Meu pai foi
embora logo depois (...) Meu pai me entregou aos pais dele e
desapareceu. Sempre odiei os meus avós. Quando fiz dezessete anos,
meu avô me chamou e disse que eu tinha que saber algumas verdades.
Minha avó era muito passiva. Ficava sempre à sombra dele, ouvindo o
que o marido dizia. Meu avô estava com um papel na mão. Nunca
entendi se tinham esperado até aquele dia para me revelar o que sempre
souberam ou se também tinham sido pegos de surpresa, como eu. Meu
avô chamou minha mãe de puta, disse que ela sempre tinha sido uma
vadia, que eu não era filho do meu pai e que, portanto, não havia
nenhuma razão para continuar vivendo com eles. Eu era o filho da puta.
Podia esperar qualquer coisa deles, mas nunca teria pensado numa
história daquelas. Não achei que fossem capazes de me expulsar. Ele
estava com muita raiva, transtornado e trêmulo. Também fiquei sem
palavras. Me estendeu o papel. Era uma carta do meu pai, a primeira
que ele mandava em dezessete anos. Estava endereçada a mim, mas eles
a tinham aberto e lido”. (NN, 2002, p. 163,164)
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Na carta, o pai dizia que Schlomo não era seu filho, mas sim de um
homem que morrera no coração do Brasil, quando tentava voltar aos Estados
Unidos para conhecê-lo. Entre as fotografias que Parsons mostrou, não havia
nenhuma que pudesse ser associada a Buell Quain e o narrador-investigador-
jornalista partiu carregando as caixas:
Para minha sorte, quando desci com a caixa, o homem da companhia
de transportes estava chegando com o carrinho para pegar a
encomenda. Antes que ele pudesse tocar o interfone, eu lhe abri a porta
e entreguei a caixa do sr. Parsons.
Resolvi adiantar a minha volta para o dia seguinte. Queria ir embora
no primeiro avião. Não tinha mais o que fazer ali. A realidade é o que se
compartilha. Os voos para o Brasil costumam ser noturnos. O meu saía
às dez da noite. Cheguei cedo ao aeroporto e fui um dos primeiros a
entrar no avião. Faltavam dez minutos para a decolagem quando um
rapaz ruivo, muito alto e magro, entrou esbaforido, a mochila esbarrando
pelos encostos das poltronas, conforme avançava para o fundo do avião.
Acomodou sua mochila no compartimento de bagagens acima da minha
poltrona e pediu licença para sentar ao meu lado, na janela. Tinha o cabelo
cacheado, o nariz adunco e um olhar simpático, embora fosse muito feio. O
avião decolou às dez em ponto. Voamos mais de seis horas sem nos dirigirmos
a palavra. Eu não conseguia dormir. O rapaz ao meu lado também não. Lia
um livro. Era dele a única luz acesa entre as de todos os passageiros. Estavam
todos dormindo. Eu não conseguia ler nada. Liguei o vídeo no encosto da
poltrona à minha frente. Por coincidência, sobrevoávamos a região onde
Quain havia se matado. Foi quando o rapaz, pela primeira vez, fez uma pausa
e me perguntou se estava me incomodando com a luz de leitura. Respondi
que não, de qualquer jeito não conseguia dormir em aviões. Ele sorriu e disse
que com ele era a mesma coisa. Estava muito excitado com a viagem para
poder dormir. Era a sua primeira vez na América do Sul. Perguntei se vinha
a turismo. Ele sorriu de novo e respondeu orgulhoso e entusiasmado: “Vou
estudar os índios do Brasil”. Não consegui dizer mais nada. E, diante do meu
silêncio e da minha perplexidade, ele voltou ao livro que tinha acabado de
fechar, retomando a leitura. Nessa hora, me lembrei sem mais nem menos de
ter visto uma vez, num desses programas de televisão sobre as antigas
civilizações, que os Nazca do deserto do Peru cortavam as línguas dos mortos
e as amarravam num saquinho para que nunca mais atormentassem os vivos.
Virei para o outro lado e, contrariando a minha natureza, tentei dormir, nem
que fosse só para calar os mortos. (NN, 2002, p. 166 a 168)
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3. BREVE ANÁLISE DO ROMANCE – Isto é para se vocêquiser ler!
3.1. A ORIGEM DE NOVE NOITES
Mariza Corrêa, antropóloga, professora da Universidade Estadual de
Campinas, falecida em 2016, publicou em 12 de maio de 2001, na coluna
de Resenhas do Jornal Folha de São Paulo, uma matéria sobre Curt
Nimuendajú14, na qual ela citou a morte de Buell Quain durante suas
pesquisas sobre os índios em terras brasileiras.
O narrador-investigador-jornalista (seria ele o próprio Bernardo
Carvalho?) de Nove Noites, após ler a resenha de Mariza Corrêa, vinculou
o nome do citado antropólogo Buell Quain a uma situação pessoal vivida
por ocasião da doença, e consequente internação, de seu pai, que tinha no
leito ao lado um idoso aguardando seus últimos dias em decorrência de um
câncer já muito avançado. Pouco antes de morrer, ele olhou para o narrador-
investigador-jornalista e disse-lhe em tom baixo de voz moribunda: Bill
Cohen.
A semelhança entre os nomes despertou no narrador-investigador-
jornalista um desejo de, numa revisitação ao passado, buscar
incessantemente os motivos que teriam levado Buell Quain ao suicídio
durante o período em que se encontrava no Brasil, numa investigação
policial repleta de entrevistas (ou quase interrogatórios), pesquisas
documentais, consultas a arquivos e viagens.
Essa espécie de predestinação leva o narrador-investigador-jornalista a
reviver passagens de sua própria vida, a partir das várias semelhanças entre
a experiência de Buell Quain com os índios nas matas brasileiras, suas rela -
ções familiares, crises existenciais e a infância complicada ao lado do pai.
As incertezas, os segredos e mistérios que envolvem a vida de morte do
antropólogo norte-americano são o leitmotiv do romance, mas, logo no
início da narrativa nota-se que a verdade sobre o que aconteceu a Buell
Quain estaria longe de ser elucidada. Assim, o leitor mais inocente, que
identifica a história com o enredo de um romance policial, se decepcionará,
pois os mistérios que envolvem o motivo do suicídio de Quain não serão
esclarecidos, tal como seria o comum de ocorrer em histórias detetivescas.
14 O artigo de Mariza Corrêa encontra-se, na íntegra, no anexo deste trabalho.
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E quais seriam esses enigmas a serem elucidados? Inicialmente, o
mistério basilar do romance é o motivo que levou Quain ao suicídio, mas,
a partir da investigação sobre o caso, outros questionamentos surgem:
1. Quem foi realmente Buell Quain?
2. Buell Quain enlouqueceu?
3. Quain era casado?
4. Quain era homossexual e temia represálias por isso? Ou era bissexual
e não aceitava a possibilidade de ser?
5. Quain sofria algum tipo de ameaça que o levou ao suicídio?
6. Quain era rico herdeiro?
7. Por que Buell Quain enviou cartas a dona Heloísa e Ruth Benedict,
solicitando a desinfecção da correspondência?
8. Quain tinha alguma doença contagiosa? Sífilis? Lepra?
9. Por que o local em que o corpo de Buell Quain teria sido enterrado
não foi demarcado e não houve inquérito policial apurado sobre o
caso?
10. Haveria uma oitava carta escrita por Buell Quain que revelaria o
motivo do suicídio?
O romance Nove Noites constrói-se a partir da ideia constitutiva de um
romance-reportagem investigativo, em que o narrador-investigador-
jornalista relaciona pistas confusas e ambíguas sobre a vida e a morte de
Buell Quain. Sem índice, epígrafe, com capítulos apenas numerados e uma
dedicatória à memória de Fábio T. Carvalho e Mariza Corrêa, o livro
apresenta dois narradores distintos, em primeira pessoa, cujos relatos se
intercalam não sequencialmente, em forma de correspondência e romance.
Os capítulos da obra são organizados de modo fragmentado e ambíguo,
em que situações, por vezes desconexas, vão se completando ou
confundindo, gerando algumas informações contraditórias quanto a quem e
como era Buell Quain e o motivo que o teria levado a cometer suicídio.
Destaque-se, no entanto, que a arquitetura complexa do romance é atenuada
por meio do emprego de diferentes tipos de letras, recurso gráfico que
facilita ao leitor a identificação do discurso de Manoel Perna e o do
narrador-investigador-jornalista.
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Nove Noites principia com a carta-testamento, em estilo literário emetafórico, grafada em itálico (talvez por ser um tipo de letra que seaproxime mais dos manuscritos antigos, em que a grafia costumava ser maisinclinada), atribuída a Manoel Perna, engenheiro de Carolina e amigo deBuell Quain, que destina a missiva a alguém que está por vir (um namoradoou amigo do antropólogo norte-americano): “Isto é para quando você vier”.
Já o romance propriamente dito, numa forma composicional próximaà linguagem jornalística, é grafado em letra redonda, composto por umnarrador-investigador-jornalista inominado (talvez um alter ego deBernardo Carvalho, que se projeta no metarrelato como personagemficcional), seduzido pelo mistério do suicídio de Buell Quain.
Além dos tipos de letras, Nove Noites, numa variedade de gênerostextuais que vão de cartas a textos jornalísticos, apresenta também elemen -tos como fotografias, com a finalidade de explicitarem comprovações dosfatos investigados, configurando-se a narrativa como polifônica,memorialista, híbrida entre ficção e realidade e intimista, no que concerneà busca do autoconhecimento por parte do narrador-investigador-jornalista.
A estratégia empregada por Bernardo Carvalho, de apenas revelar nodesfecho que a obra é um romance ficcional, surpreende o leitor, o qual é leva -do a crer, até então, ter em suas mãos um livro de cunho jornalístico-inves -tigativo, alicerçado em textos, como as diversas correspondências (reais ouficcionais), que colaboram para a manutenção da ilusão do leitor quanto aogênero de Nove Noites.
A ambiguidade, quanto ao gênero textual e, também, em relação aoutras passagens do enredo, é uma característica frequente em obrasautoficcionais. No romance em questão, o narrador-investigador-jornalistavale-se do empreendimento em descobrir o real motivo do suicídio de BuellQuain para revisitar seu próprio passado, isto é, razões particulares estariampor trás de todo o levantamento investigativo em torno da história doantropólogo norte-americano.
Desse modo, a ideia de que o narrador-investigador-jornalista estavapredestinado a desvendar o mistério da morte de Buell Quain é, na verdade,um subterfúgio encontrado para o seu desabafo pessoal, principalmente, noque envolve suas relações com o pai, figura em torno da qual giram váriosmomentos da narrativa.
Coincidentemente, ou não, o antropólogo norte-americano também
viveu uma relação conturbada com sua família, em especial com o pai. Há,
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no enredo, outros conflitos envolvendo a paternidade, por exemplo, quando
Schlomo Parsons relata ao narrador-investigador-jornalista que era filho de
um homem que veio para o Brasil na década de 1930 (talvez fosse Buell
Quain o seu pai?).
As relações familiares, tumultuadas moral e financeiramente, fazem
com que o convívio entre pai e filho, tanto no caso do antropólogo, quanto
no do narrador-investigador-jornalista, seja insustentável, o que justificaria
a escolha profissional de Buell Quain em viver pesquisando pelo mundo e
a do narrador-investigador-jornalista de voltar ao exterior e deixar o pai no
hospital sob os cuidados da irmã.
No entanto, a relação com a figura materna não apresenta conflitos tão
intensos. No caso do narrador-investigador-jornalista, ele pouco se refere à
mãe, mas Buell Quain parece preocupar-se com a sua, Fannie Dunn Quain,
principalmente após o fim de seu casamento com Eric P. Quain, conflito
familiar que poderia ser arrolado como motivo para o desequilíbrio mental
do antropólogo norte-americano e estopim de seu suicídio.
Segundo o narrador-investigador-jornalista, após a morte do Buell
Quain, sua mãe ocupou-se na preservação da memória do filho, sem buscar
esclarecimentos quanto ao ato tresloucado do suicídio dele por, talvez,
recear descobrir algo que quebrasse a imagem idealizada que tinha do
antropólogo.
Buell Quain poderia realmente ter motivos para ocultar certas
experiências de sua vida, principalmente se considerarmos a época em que
ele viveu no Brasil, período de fortes tensões desencadeadas pelo exercício
do Estado Novo.
Cronologicamente, o romance percorre os anos de 1938 a 2002,
respectivamente, o tempo em que Buell Quain viveu no Brasil e o das
pesquisas do narrador-investigador-jornalista, sendo, evidentemente, a data
do suicídio do antropólogo norte-americano a indicação de tempo primordial
ao desenvolvimento do romance. É desse período que temos as fotos de
Buell Quain, as cartas da diretora do Museu Nacional do Rio de Janeiro,
Heloísa Alberto Torres, da mãe e irmã do antropólogo, de Ruth Benedict e
Ruth Landes, a fotografia do jornal registrando a chegada de Buell Quain à
cidade de Carolina, a referência Claude Lévi-Strauss e sua obra Tristes
Trópicos, e, dentre outras, o principal motor do romance: a carta-testamento
de Manoel Perna.
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Com relação à indicação temporal que envolve Manoel Perna, notam-se
as nove noites passadas com Buell Quain e, posteriormente, o momento em
que o engenheiro escreve sua carta-testamento, seis anos após a morte do
antropólogo norte-americano, às vésperas de falecer afogado em um
acidente em 1945.
Embora haja, no romance, dois tempos basilares, isto é, o período de
Buell Quain no Brasil e o momento de pesquisa do narrador-investigador-
jornalista, registram-se, em Nove Noites, três fases históricas: os anos de
1930 e 1940, a década de 1960/1970 e os anos iniciais do século XXI.
Os anos de 1930/1945, como já destacado, referem-se à experiência de
Buell Quain na selva brasileira e à posterior redação da carta-testamento
por Manoel Perna.
Dos anos de 1960, Nove Noites destaca a fase em que o narrador-
investigador-jornalista, ainda criança, viajava ao Xingu em companhia do
pai, o qual obtivera a concessão de terras em pleno tempo de regime militar
e projeto Rondon e, de 2001/2002, a data do artigo de jornal escrito por
Mariza Corrêa (12/5/2001) e a viagem do narrador-investigador-jornalista
ao Xingu e aos Estados Unidos (que viviam em constante medo decorrente
dos ataques ao World Trade Center), em busca de informações sobre Buell
Quain.
Note-se que, no romance de Bernardo Carvalho, quase todas as
referências temporais estão relacionadas a outros fatos ocorridos na mesma
época, como, por exemplo, a data da morte de Buell Quain (2/8/1939)
vincula-se à data da carta que Einstein escreveu a Roosevelt, e o período em
que o narrador-investigador-jornalista viaja aos Estados Unidos, ao medo
generalizado em relação a novos ataques terroristas ou, ainda, à possibi -
lidade de mais cartas contaminadas com antraz serem enviadas a figuras
políticas importantes e demais cidadãos norte-americanos.
3.2. ESTRATÉGIAS DA TEIA NARRATIVA DE NOVE NOITES
O romance Nove Noites constrói-se a partir de dois relatos estruturais
em que os narradores se envolvem, por motivos diferentes, nas razões que
teriam levado o Buell Quain ao suicídio, durante o período em que esteve
no Brasil estudando os índios Krahô, em Carolina, Maranhão.
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Como já se viu, ambos os narradores, em primeira pessoa, elaboram
discursos que levam o leitor a acreditar na solução do caso do antropólogo
norte-americano, mas, ao longo do romance, percebe-se que o propósito
deles gira em torno da transposição de seus próprios conflitos para as
atitudes de Buell Quain e seus problemas existenciais, isto é, o relato da
história do antropólogo desencadeia os relatos das vivências de Manoel
Perna e do narrador-investigador-jornalista, passando o drama do
antropólogo a ser um pretexto para que o engenheiro e o narrador-
investigador-jornalista falem deles próprios.
Cada uma das narrativas desencadeia detalhes filtrados pelos olhares
dos narradores e suas conclusões e reflexões sobre a vida e morte de Buell
Quain, o único que não se pronuncia no romance, uma vez que tudo é
relatado após a morte dele. Desse modo, há que se considerar a subjetividade
dos narradores, além do caráter intimista das associações feitas entre a
experiência de Buell Quain e as de Manoel Perna e do narrador-inves -
tigador-jornalista, exprimindo-se as angústias mais íntimas e os conflitos
com as normas da sociedade.
O emprego da primeira pessoa torna-se, então, fundamental em Nove
Noites e, embora o núcleo narrativo seja em torno de uma terceira pessoa,
Buell Quain, a organização dos fatos do tempo e do espaço da obra é dirigida
por Manoel Perna e pelo narrador-investigador-jornalista. Simplificando, o
ponto de partida da narrativa é a história do antropólogo, mas a linha de
chegada é a vida dos dois narradores em seus medos e inseguranças
existenciais.
O primeiro narrador, Manoel Perna, amigo de Buell Quain, mesmo
tendo ambos convivido por apenas nove noites, compõe uma carta-testa -
mento pouco antes de falecer, ou seja, seis anos após a morte do
antropólogo. Assim, o engenheiro relata as confidências que Buell Quain
teria feito a ele para, talvez, se redimir da falta cometida em não acompanhar
o antropólogo em sua última viagem. Angustiado com sua possível falha,
Manoel Perna tenta, uma última vez, o contato com o amigo, ou amante, de
Buell Quain, que aguardava chegar para lhe entregar a última carta do
antropólogo, no entanto, a espera é vã.
Logo no princípio, Manoel Perna apresenta a possibilidade de que a
verdade, quanto ao caso Buell Quain, não seria encontrada, uma vez que,
segundo ele, o leitor estaria entrando em um mundo em que a verdade e a
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mentira se confundiriam e a tentativa de desvendar o passado seria inútil:
Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os
sentidos que o trouxeram até aqui. (...) A verdade está perdida entre
todas as contradições e os disparates. Quando vier à procura do que o
passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em
que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único
bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa
aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja
pela suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade.
(...) Guardei comigo esta única carta, para protegê-lo, e aos índios. Jurei
que ninguém além de você poria os olhos nela. Mandei-lhe um bilhete
no lugar da carta, um bilhete cifrado, é verdade, em código, que o
professor Pessoa me ajudou a redigir em inglês, sem saber a quem me
dirigia ou com que objetivo, pensando que se tratava de um parente do
morto, uma vez que anteriormente já lhe pedira ajuda para escrever
uma carta de pêsames que decidira enviar à mãe. Nunca pude me
certificar de que você tenha recebido esse bilhete, ou que o tenha
compreendido, já que não veio atrás do que lhe pertencia. Faz anos que
o espero, mas já não posso me arriscar ou desafiar a morte. (NN, 2002,
p. 7, 8)
Enquanto Manoel Perna se vale do testemunho pessoal para elaborar
sua carta-testamento, o narrador-investigador-jornalista busca por
documentos como fotografias, cartas e depoimentos, para obsessivamente
desvendar o motivo secreto do suicídio de Buell Quain e, à medida em que
a narrativa evolui, nota-se que ele passa a integrar a história, pois fala de si
mesmo e de suas experiências pelo Xingu, tanto na infância quanto na fase
adulta, quando retorna à selva amazônica em busca de informações sobre
Buell Quain.
Assim, a apresentação inicial de jornalista-investigativo vai se diluindo
e surge o narrador-investigador-jornalista-personagem, que compõe sua
autobiografia, recuperando o passado e confessando suas tão dolorosas
experiências quanto as de Buell Quain. Convém considerarmos, também,
que o autor Bernardo Carvalho, jornalista como o narrador-investigador-
jornalista, projeta-se na ficção de Nove Noites, o que configura a técnica da
autoficção, na qual o autor cria seu duplo ficcional, revelando por meio dele
sua interioridade e experiências de vida.
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O narrador-investigador-jornalista, então, aproxima-se, de um narrador
pós-moderno, que, recorrendo à verossimilhança, retoma suas perdas e
experiências pessoais como matéria estrutural do romance, valendo-se das
semelhanças entre ele e a personagem Buell Quain. Ainda refletindo sobre
a semelhança entre Bernardo Carvalho e o narrador-investigador-jornalista,
faz-se mister observar que ambos eram filhos de latifundiários, os quais, na
década de 1960, se valeram de benefícios governamentais para ocupação
de terras no Araguaia e Xingu, além de serem, também, bisnetos do
marechal Rondon e jornalistas que tiveram experiência no convívio com os
índios. Talvez, assim, o autor Bernardo Carvalho procure mais compreender
o que em sua vida fosse conflito do que escrever o romance Nove Noites.
Constata-se, portanto, que o narrador-investigador-jornalista do
romance rompe com as características do tradicional narrador em primeira
pessoa, revelando-se a partir da experiência do outro, ou de seu duplo. Ao
lado da apresentação de fatos, ou vivências experimentadas tanto por Buell
Quain, quanto pelo narrador-investigador-jornalista, ou ainda, pelo autor
Bernardo Carvalho, a manifestação da criatividade da ficção é também
motor do romance.
Destaque-se que o narrador-investigador-jornalista busca os fatos para
a composição de seu relato a partir não do que viveu, mas sim do que
pesquisou sobre Buell Quain, enquanto Manoel Perna conta a sua própria
experiência ao lado do antropólogo. Assim, enquanto o primeiro parece ser
imparcial e neutro no que escreve, o segundo deixa-se levar pela
subjetividade e, também, pelas falhas que o tempo pode ter desencadeado
em sua memória. Desse modo, o leitor é levado a crer na veracidade do
relato do narrador-investigador-jornalista, na logicidade de seu discurso
referencial, mas esse contrato de fidelidade aos fatos narrados será desfeito
nas armadilhas criadas por Bernardo Carvalho.
Enquanto Manoel Perna coloca em dúvida o que é a verdade, o
narrador-investigador-jornalista procura por ela, mas chega a mesma dúvida
que o engenheiro apresenta logo no início de sua carta-testamento. Desse
modo, os dois relatos, de Manoel Perna e do narrador-investigador-
jornalista, vão se complementando ao longo do romance, mas, por outro
lado, também se contradizem quando a investigação deste último avança
sobre Buell Quain e a antropologia, a partir do acesso a cartas sobre o
antropólogo, da viagem a Carolina e aos Estados Unidos.
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A importância da carta-testamento de Manoel Perna vai perdendo
destaque ao longo da narrativa, e o clima de mistério, em torno dos motivos
que levaram Buell Quain ao suicídio, se intensifica, mas não são
esclarecidos, como aguarda o leitor, uma vez que as peças finais da obra
não se encaixam no quebra-cabeça criado por Bernardo Carvalho.
O ponto culminante para o leitor se sentir perdido no emaranhado de
fatos é a revelação de que a carta-testamento de Manoel Perna nem sequer
existiu, sendo ela uma artimanha dentro da ficção de Nove Noites. O leitor,
que se acreditava uma espécie de detetive coadjuvante, passa a ser apenas
o espectador, ou receptor, de uma história ficcional manipuladora de fatos,
em que a verdade é o menos importante. Como já se viu, há várias passagens
alertando o leitor sobre seu ingresso no mundo da ficção, mas, mesmo
assim, ele aceita o desafio de desvendar o caso Buell Quain, até mesmo após
a leitura final do romance.
O pronome “você”, empregado por Manoel Perna em sua carta-testa -
mento (Isto é para quando você vier, Jurei que ninguém além de você poria
os olhos nela, Amanhã pego a balsa de volta para Carolina, mas antes deixo
este testamento para quando você vier, dentre outras), faz com que o leitor
sinta-se como o destinatário da carta ou, também, como personagem da
investigação, em decorrência da ambiguidade semântica do dêitico, pois
pode se referir tanto ao destinatário da carta-testamento de Manoel Perna,
uma personagem sem nome e sem ação dentro da história, mas que teria a
chave para desvendar o mistério de Buell Quain, quanto ao leitor do
romance Nove Noites.
Seduzido pelo segredo do suicídio do antropólogo, o leitor aceita
participar da narrativa e, mesmo percebendo as ambiguidades e contradições
relatadas, identifica-se com o papel de codetetive, procurando, nas
entrelinhas e incoerências das provas apresentadas a solução do caso.
Assim, é a voz do narrador-investigador-jornalista que se destaca num
aparente diálogo instaurado entre ele o leitor, ou ainda, entre Manoel Perna
e o leitor. As vozes dos dois narradores, grafadas por meio de tipos de letras
diferentes, itálico e redondo, vão se intercalando e desencadeando a
presença de outras vozes.
Mikhail Bakhtin, teórico russo, define polifonia como a diversidade de
vozes verbais dentro de um texto, isto é, os diálogos de personagens que
apresentam concepções distintas, ou não, em torno de um mesmo fato. Essas
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vozes narrativas, no romance Nove Noites, vão se multiplicando à medida
em que a investigação, em torno dos motivos que levaram Buell Quain ao
suicídio, avança. São as opiniões dos antropólogos, dos índios, dos
conhecidos dos familiares de Buell Quain, do narrador-investigador-
jornalista, de Manoel Perna, que se espalham pelo romance, versando sobre
assuntos desencadeados pelo fator principal, mas que levam a discussões,
por exemplo, sobre como a opressão branca vitimou os índios, os interesses
econômicos na região amazônica, o poder do Estado Novo, a manipulação
na criação da região do Xingu, o terrorismo que assolava os Estados Unidos
por ocasião dos ataques ao World Trade Center, dentre outras.
Para Bakhtin, as diferentes falas fortalecem o enredo de um romance
polifônico, contribuindo para a ampliação dos sentidos que envolvem fatos,
ficcionais ou reais, como os presentes no romance de Bernardo Carvalho,
sem que as diversas vozes estejam sujeitas à manipulação do narrador
principal. Constatação disso está nas divergências de opiniões sobre a
personalidade de Buell Quain por meio de subvozes (considerando-se que
as principais são as de Manoel Perna e do narrador-investigador-jornalista),
que colaboram na elaboração da teia narrativa de Nove Noites, portanto, um
romance polifônico, o qual, democraticamente, apresenta as variações de
análise dos fatos que envolvem os motivos do motor do romance: o suicídio
de Buell Quain.
3.3. METAFICÇÃO: O QUE É REAL E FICCIONAL EMNOVE NOITES?
A metalinguagem é recurso amplamente empregado por Bernardo
Carvalho no romance Nove Noites. A carta-testamento de Manoel Perna
configura-se como texto metalinguístico a partir do momento em que ela se
revela como ficção. Além disso, o engenheiro deixa seu texto a um futuro
destinatário, indicado pelo pronome “você”, o qual, como já se viu, pode
referir-se ao próprio leitor, elemento fundamental no efeito da carta-testa -
mento.
O narrador-investigador-jornalista também se vale do jogo
metalinguístico ao referir-se, por exemplo, que a interpretação dos poemas,
no caso, uma explicação sobre “Elegia 1938”, de Carlos Drummond de
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Andrade, depende dos referenciais do leitor. No entanto, os elementos
intertextuais não se limitam ao poema de Drummond. Em Nove Noites, um
leitor profissional, que acompanha Andrew Parsons, o idoso à beira da
morte, internado no leito de uma UTI, ao lado do pai do narrador-investi -
gador-jornalista, lê as obras O Companheiro Secreto (The Secret Sharer)
Lord Jim, de Joseph Conrad, e Moby Dick, de Melville, para o paciente
moribundo.
Conrad era o autor preferido de Andrew Parsons e, em O Companheiro
Secreto, título conforme tradução apresentada em Nove Noites, o enredo
gira em torno de um capitão inexperiente que, em seu primeiro comando de
viagem, vê no convés da embarcação um homem dependurado, nu e
tranquilo. Legatt, o clandestino, fugira de outra embarcação, Séphora, após
ter, acidentalmente, assassinado um homem e, a partir da conversa com o
jovem capitão, inicia-se uma proximidade entre ambos, acrescida de forte
intimidade, a qual desperta a desconfiança da tripulação. O comandante do
Séphora busca pelo assassino e, numa manobra arriscada, Legatt consegue
fugir graças à ajuda do jovem capitão.
Segundo Antonio Candido (2000, p. 57 a 93), O Companheiro Secreto
aborda o tema do duplo, pois o jovem capitão encontra em Legatt aquele
com quem pode partilhar as suas sensações, medos e ideias, tal qual ocorre
com o narrador-investigador-jornalista, que vê em Buell Quain um reflexo
de suas angústias, principalmente as experimentadas em meio à selva
brasileira.
Em Lord Jim, Joseph Conrad conta a história de Jim, o qual abandonou
a embarcação Patna à beira de afundar com todos os tripulantes. Na obra, o
narrador Marlow tenta entender a personalidade de Jim e, para isso,
aproxima-se dele numa relação de amizade, semelhante ao que ocorre entre
Manoel Perna e Buell Quain.
No romance Moby Dick, inspirado em um naufrágio real, o narrador
Ismael relata suas aventuras no navio Pequod e a obsessão do capitão, Ahab,
na busca por Moby Dick, a baleia, talvez, um paralelo à ideia fixa do
narrador-investigador-jornalista em descobrir o motivo do suicídio de Buell
Quain.
Destaque-se que o tema abordado pelas obras O Companheiro Secreto,
Lord Jim e Moby Dick é a viagem e os mistérios que a envolvem, o mundo
ignorado cercado de medos, assunto também presente em Nove Noites.
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Além disso, a vida de Buell Quain envolve situações associadas a
embarcações, vide a história, que ele mesmo conta a Manoel Perna, da
situação do chinês clandestino em um navio americano, que foi auxiliado
pelo antropólogo.
Outra referência intertextual é a analogia que o narrador-investigador-
jornalista faz entre sua infância e as viagens ao Xingu com o seriado
Perdidos no Espaço, produzido de 1965 a 1968:
Não me lembro nem da cara do Chiquinho da Vitoriosas, mas guardei
a notícia da sua morte num acidente de avião. Não sei se agora apenas
imagino, mas tenho a impressão de ter visto o meu pai debruçado sobre
alguém, talvez a viúva, a lhe dar esperanças, a lhe dizer que ainda havia
chances de encontrarem o aviãozinho desaparecido fazia dias. Lembro
de uma casa escura, de gente armada, de mulheres recolhidas e caladas,
e de um céu carregado, com raios e nuvens negras, sempre que
visitávamos a Vitoriosas. Isso quando o sol não estava escondido por
uma névoa que fazia lembrar a atmosfera de um planeta inóspito em
Perdidos no espaço ou em algum filme de ficção científica. (NN, 2002,
p. 62)
Mas, a intertextualidade vai além das referências às obras de Melville,
Conrad, Drummond e o seriado de TV. A carta-testamento de Manoel Perna,
entremeada à pesquisa do narrador-investigador-jornalista, como também
outras missivas de autores variados (como da mãe de Buell Quain, Ruth
Benedict, Ruth Landes, Heloísa Torres), apresentam interrelação ao que está
sendo narrado, além de exercerem uma função dialógica no romance.
Há, também, a referência ao artigo de Mariza Corrêa, documento real,
desencadeador das pesquisas do narrador-investigador-jornalista, já que foi
por meio da matéria da antropóloga que ele tomou conhecimento do suicídio
de Buell Quain. A resenha de Mariza Corrêa classifica-se, dentro do
contexto do romance Nove Noites, como paratexto, isto é, um ingrediente
acessório à narrativa retirado de documento exterior a ela.
Outros paratextos presentes na obra de Bernardo Carvalho são as
dedicatórias, os e-mails, os agradecimentos finais e as fotografias, que,
embora tenham um caráter documental, como se ratificassem a verdade do
texto, ganham aspecto ficcional no processo de composição do romance
Nove Noites. Assim, os paratextos tornam-se ingredientes indispensáveis
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para a instauração no leitor da verdade relatada e, embora eles legitimem a
base da realidade do romance, também encaminham a narrativa para a
vertente ficcional, pois muitas informações que surgem a partir deles são
viáveis de questionamentos.
Exemplo disso são as duas fotografias impressas de Buell Quain, tiradas
de surpresa por um fotógrafo misterioso. Em uma delas o antropólogo
aparece de perfil e, na outra, de frente para a câmera, lembrando as
fotografias que, geralmente, são tiradas pelos indivíduos acusados de delitos
judiciais, ou melhor, criminais, o que aproximaria o antropólogo da
perspectiva de ser um assassino de si mesmo.
Uma segunda fotografia presente na obra traz sete pessoas (Heloísa
Torres, Charles Wagley, Raimundo Lopes, Edson Carneiro, Claude Lévi-
Strauss, Ruth Landes e Luiz Castro Faria), identificadas pelo narrador-
investigador-jornalista, e que funciona como forma de validar a verdade
narrada por meio da imagem, já que é reprodução fiel de um momento.
Além das fotografias impressas no corpo do texto de Nove Noites, há
também uma referência de Manoel Perna ao retrato tirado por ocasião da
chegada de Buell Quain a Carolina, fotografia esta que pode ser vista no
jornal O Globo em matéria sobre o suicídio do referido antropólogo.
Embora haja uma edição de bolso de Nove Noites, da editora
Companhia das Letras, que traz uma capa alaranjada, com duas figuras
humanas em hachuras, que poderiam ser os dois narradores centrais do
romance, encontra-se também uma outra edição da mesma Companhia das
Letras, em que a capa apresenta uma fotografia de Bernardo Carvalho, ainda
menino, de mão dada com um índio.
Segundo uma live recente do próprio autor com o editor da Companhia
das Letras, Luiz Schwarcz, a fotografia é da época em que Bernardo
Carvalho acompanhava o pai em suas viagens ao Xingu, experiência
também vivida pelo narrador-investigador-jornalista de Nove Noites, o que
o aproximaria do autor real.
Todos esses paratextos levam o leitor a acreditar em um romance
autobiográfico de Bernardo Carvalho, mas a realidade vai se desfazendo ao
longo da obra e a ficção prevalece:
Porque agora eu já estava disposto a fazer dela realmente uma ficção.
Era o que me restava, à falta de outra coisa. O meu maior pesadelo era
imaginar os sobrinhos de Quain aparecendo da noite para o dia, gente
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que sempre esteve debaixo dos meus olhos sem que eu nunca a tivesse
visto, para me entregar de bandeja a solução de toda a história, o
motivo real do suicídio, o óbvio que faria do meu livro um artifício
risível. (NN, 2002, p. 157)
Convenhamos que a documentação explicitada por meio dos paratextos
parece muito mais autenticar a veracidade dos fatos do que os ficcionalizar.
Segundo Linda Hutcheon (1991), a metaficção historiográfica constitui-se
de um enredo mesclado por história, ficção e realidade. Se considerarmos,
basicamente, que metaficção é a ficção dela mesma, ou seja, a ficção sobre
a ficção, Nove Noites corresponderia às características de metaficção
historiográfica, pois conduz a trama ficcional por meio de veículos da
verdade, como a resenha de Mariza Corrêa, as fotografias, as cartas, enfim,
os paratextos, além das referências a figuras históricas como Einstein,
Roosevelt, Hitler, Stalin, Claude Lévi-Strauss, Ruth Benedict, Franz Boas,
Eric P. Quain, Fannie Dunn Quain, Thomas Young e, logicamente, Buell
Quain.
É inegável que o alicerce do romance é de origem histórica, mas isso
não obriga a obra a ser comprometida com os fatos verídicos e, assim, se
valer deles para confirmar os relatos apresentados, mesmo que
instrumentalizados artisticamente, pois, a realidade é o que se compartilha
(NN, 2002, p. 166 a 168) e não o que realmente acontece.
Considerando-se, então, Nove Noites um romance pós-moderno, é
pertinente que nele haja uma mistura entre ficção e historiografia,
simultaneamente trabalhadas e subvertidas para serem criados os efeitos de
mistério insolucionável dos motivos que levaram Buell Quain ao suicídio.
Desse modo, muitas vezes, o leitor é levado a acreditar em tudo o que está
sendo relatado e, inclusive, considerar os pontos de partida do romance
como verdades inquestionáveis.
Assim sendo, a resenha escrita por Mariza Corrêa, que é texto real e de
pesquisa apoiada em critérios de verdade, tem o mesmo valor científico da
carta-testamento de Manoel Perna, uma missiva de falso testemunho
revelada como fictícia, no desfecho do romance, a partir da declaração dos
filhos do engenheiro de que Manoel Perna não havia deixado nenhum
documento falando sobre Buell Quain.
Percebe-se, portanto, que os textos documentais, apresentados na obra,
não têm valor informativo, como ocorre com os textos históricos, mas
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atendem apenas à necessidade da dinâmica do romance.
Elenquemos aqui alguns momentos da História que são compatíveis
com os dos fatos relatados na obra e que servem de alicerce à narrativa de
Nove Noites: o suicídio do antropólogo Buell Quain entre os índios Krahô,
em 2 de agosto de 1939, coincide com o mesmo dia em que Einstein enviou
ao presidente Roosevelt uma carta alertando sobre a possibilidade de bomba
atômica; a implantação do Estado Novo no Brasil e suas perseguições aos
antropólogos, vistos como espiões; a figura do marechal Rondon e sua
gestão no Serviço de Proteção ao Índio (SPI); a política do regime militar
dos anos de 1970 e o período conhecido como o do “milagre econômico”;
a fundação do Museu Nacional do Índio (1953) e o projeto Xingu (1961);
a queda do avião da Varig, voo 820 e o pequeno acidente do pai do narrador-
investigador-jornalista; os ataques terroristas ao World Trade Center em
11/9/2001; e o artigo de Mariza Corrêa publicado em 12/5/2001, no jornal
Folha de São Paulo.
Numa avaliação temporal dos fatos, percebe-se que a trama de Nove
Noites ocorre entre duas guerras: Segunda Guerra Mundial, que se iniciou
em setembro de 1939 (pouco mais de um mês após a morte de Buell Quain),
e vai até 1945 (fase em que Manoel Perna escreve sua carta-testamento e
morre acidentalmente), e a guerra dos Estados Unidos ao Iraque, após o
atentado de 11 de setembro de 2001.
Desse entremeio temporal, 1939 a 2001, o romance de Bernardo
Carvalho alicerça-se em outros fatos que se vinculam à proposta do enredo
de fazer-se entender como a verdade. Não é à toa que em Nove Noites há
uma referência ao poema “Elegia 1938”, em A Rosa do Povo, de Carlos
Drummond de Andrade: além de o livro referir-se, predominantemente, a
fatos e consequências da Segunda Guerra Mundial, foi justamente em 1938
que Buell Quain chegou ao Brasil. Outro traço a ser destacado é o de que,
no poema, Drummond refere-se à impossibilidade de se dinamitar à ilha de
Manhattan, centro capitalista mundial, exatamente o espaço que sofreu os
ataques de 11 de setembro de 2001. Portanto, “Elegia 1938”, vincula-se a
dois tempos formadores de Nove Noites: 1938 e 2001.
O Estado Novo de Getúlio Vargas, dentre outras atitudes de valores
questionáveis, vigiava os antropólogos estrangeiros que vinham ao Brasil,
incluindo a possibilidade de expulsão do indivíduo do País, como ocorreu
com a antropóloga Ruth Landes, citada por Bernardo Carvalho.
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No ano da morte de Buell Quain, 1939, marechal Rondon volta a dirigir
o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), expandindo-o para vários territórios
brasileiros e, em 1945, o governo Vargas cria a Expedição Roncador-Xingu
como parte do processo de interiorização do Brasil, a “Marcha para o
Oeste”, chefiada, depois, pelos irmãos Villas Boas.
Na opinião de Darcy Ribeiro (1987, p. 127,128), por volta de 1910,
muitas lutas sangrentas exterminaram tribos inteiras, situação que era
amplamente debatida pelas autoridades brasileiras, cientistas, serviços
filantrópicos, sendo providências exigidas de imediato para a resolução do
problema. Além disso, as populações da região exigiam as estradas de ferro,
que garantiriam a locomoção dos sertanejos na exploração de novas terras
para a plantação de café, e a segurança de vida já que eles eram ameaçados
pelos índios mais hostis.
Rondon passou a ser considerado um herói brasileiro, chamado de “o
pacificador”, “civilizador dos Sertões”, dentre outros epítetos. Os irmãos
Villas Boas, por sua vez, fundaram postos de acessos à região, como as
pistas de pouso, o que desencadeou consequentemente a invasão branca ao
território indígena, propagando-se doenças, o que alterou o rumo do projeto
e, ao invés de se instalarem núcleos de povoamento para os brancos, passou-se
a manter a preservação da integridade dos territórios dos índios.
O retrato da situação dos índios pode ser observado em carta da mãe de
Buell Quain, citada em Nove Noites, em que ela relata a propagação da
malária, falta de assistência médica e abandono dos habitantes da selva
amazônica. A apropriação de terras no Amazonas teve em Rondon veículo
para os interesses políticos da época, proporcionando, por um lado, o
desmoronamento do povo indígena, levado à condição de objeto de estudo
científico, principalmente por parte dos antropólogos estrangeiros. Em 1961,
foi criado o Parque Indígena do Xingu pelo presidente Jânio Quadros.
Algum tempo depois, o projeto de desenvolvimento do Amazonas
ganhou proporções imensas. Nesse cenário, o pai do narrador-investigador-
jornalista de Nove Noites conseguiu subsídios do governo federal, adqui -
rindo uma fazenda, onde o projeto agropecuário expandiu-se, valendo-se
dos benefícios da política de ocupação da Amazônia, quando as matas foram
transformadas em pastagens de fazendas.
Os anos de 1970 registraram o domínio militar por meio de ações
violentas e repressoras, enquanto o mundo vivia a reestruturação do
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capitalismo, vinculado à ideia de progresso e bem-estar da sociedade, o que,
de certo modo, aconteceu ao pai do narrador-investigador-jornalista, que
viajava frequentemente ao Xingu em companhia do filho menino, voando
em seu avião precário.
Em 1973, houve um grande acidente aéreo com o voo 820 da Varig,
tragédia que levou à morte mais de uma centena de passageiros, ocorrido
justamente no dia seguinte a um pequeno acidente aéreo, em decorrência
da irresponsabilidade do pai do narrador-investigador-jornalista ao voar:
No dia em que acordei, a manchete dos jornais era a tragédia de um
avião da Varig que se incendiara misteriosamente na rota de descida
para Orly, matando boa parte dos tripulantes e todos os passageiros, à
exceção de um. O jornal trazia as fotos das celebridades mortas. E de
alguma forma associei a grande tragédia ao nosso pequeno acidente,
como se houvesse alguma conexão incompreensível entre os dois. O
Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem
do inferno. (NN, 2002, p. 72)
Os acidentes aéreos em Nove Noites, que envolvem Chiquinho das
Vitórias, narrador-investigador-jornalista e seu pai são espelhados no voo da
Varig de 11 de julho de 1973. Após pouco mais de 11 horas de voo, a
aeronave fez um pouso de emergência em decorrência de um incêndio em
seu interior. Conforme investigações, o fogo, provocado por uma ponta de
cigarro acesa jogada no cesto do sanitário traseiro, espalhou-se rapidamente,
produzindo densa fumaça pelas cabines.
Enquanto o material plástico da aeronave entrava em combustão,
desprendendo gás cianídrico que, combinado à hemoglobina impede o
transporte de oxigênio pelo corpo humano, os pilotos, bravamente,
pousavam o Boing 707, prefixo PP-VJZ, em uma região próxima a um
minuto do aeroporto de Orly (Paris). No entanto, o gás, espalhado pelas
tubulações do ar-condicionado do avião, já havia envenenado 123 pessoas.
Considerado um dos principais acidentes aéreos ocorridos na França, o voo
820 da Varig resultou na morte de diversas personalidades ilustres
brasileiras, como destacado pelo narrador-investigador-jornalista.
Percebe-se que no romance há uma certa insistência em problemas
envolvendo aviões. Na época em que o narrador-investigador-jornalista
começa sua obsessiva pesquisa sobre o Buell Quain, os Estados Unidos
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viviam o que o presidente George W. Bush denominou “ataque a
civilização”: o atentado terrorista de 11 de setembro às Torres Gêmeas do
World Trade Center15. O mundo, atônito, via dois jatos Boeing 767 colidindo
contra os 110 andares dos edifícios na região de Wall Street. Mohamed Atta,
membro da organização fundamentalista Al-Qaeda, provável líder do
atentado de 11/9/2001, fez das Torres Gêmeas pó em segundos, provocando
um grande colapso em toda a região de Manhattan, justamente o símbolo
capitalista impossível de ser dinamitado por um só homem, segundo o
poema “Elegia 1938” de Carlos Drummond de Andrade.
Nove Noites registra, portanto, entre 1938 e 2001, os fundos históricos
que envolvem a época de Buell Quain no Brasil e o período de meninice e
fase adulta do narrador-investigador-jornalista. Os anos de 1930/1940 são
marcados pelo grande conflito da Segunda Guerra Mundial e os primeiros
anos do século 21 registrados a partir de uma violência, até então
inimaginável, repleta de guerras de uma luta infinita contra o terrorismo.
Mas, a verdade dos fatos relatados, principalmente os que envolvem a
vida de Buell Quain, é, muitas vezes, questionável dentro do enredo da obra
de Bernardo Carvalho. Jornalisticamente, as informações valem como
recurso para garantir um pacto de compromisso entre o leitor e a obra,
fortalecido por meio do emprego dos paratextos, da citação precisa de datas,
da presença de personagens reais, do registro integral de documentos do
arquivo do Museu Nacional, das cartas de Heloísa Alberto Torres, da
participação de figuras reais como Ruth Landes e Luiz Castro Faria, este
último, inclusive entrevistado pelo narrador-investigador-jornalista.
Supondo-se que os enredos baseados no relato de fatos reais são de
grande procura pelos leitores, como se viu no século XIX, com a
disseminação dos romances históricos, Nove Noites atende perfeitamente
seu público-alvo. Mas, é necessário também que o texto literário
desencadeie a satisfação artística do seu destinatário e é nesse ponto que a
ficção do referido livro se instaura, deixando de lado a biografia oficial de
Buell Quain e os dados jornalísticos e históricos.
Manoel Perna, logo no início de sua carta-testamento, alerta o leitor
para o ingresso no mundo em que a verdade e a mentira não se distinguem,
sendo ele a única personagem do romance a problematizar a diferença entre
15 A título de conhecimento, o World Trade Center já havia sido alvo de um ataque em 26 defevereiro de 1993, quando um caminhão, carregado com 682 quilogramas de dinamite,estacionado por Ramzi Yousef, explodiu na garagem do complexo.
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história e ficção. Desse modo, ficção, e não a mentira, uma vez que se trata
de uma obra literária, passa a ter valor de complemento da realidade
observada, muitas vezes embaralhando-se com possíveis situações
verossímeis. O que realmente importa ao leitor de Nove Noites é como a
obra apresenta o fato e não como realmente ele ocorreu, portanto, é a
invenção de uma verdade literária, ou uma alternativa artística na avaliação
da realidade, que tem importância na narrativa.
A solução encontrada por Bernardo Carvalho, definir sua obra como
um romance ficcional, resolve todas as contradições e ambiguidades
apresentadas ao longo do romance, invertendo a expectativa do leitor quanto
a Nove Noites tratar de um fato verídico que seria solucionado, isto é, a
morte de Buell Quain, e inserindo-se, desse modo, na categoria conceituada
por Umberto Eco como obra aberta, já que no romance não se chega a
nenhuma conclusão precisa quanto ao suicídio do antropólogo.
Talvez a saída encontrada pelo narrador-investigador-jornalista, o qual,
por não conseguir desvendar o mistério de Buell Quain compõe um romance
ao invés de uma matéria documental embasada em fatos reais, tenha
decepcionado o leitor mais ingênuo ou menos atento. Destaque-se que desde
o início da obra têm-se vários elementos indicativos de que ela é um
romance ficcional e o leitor inocente, crédulo e pouco desconfiado, talvez
se sinta enganado pelo narrador de Nove Noites, mas, também é necessário
notar que esse ludíbrio se dá por conta da habilidade do autor em jogar com
os elementos constitutivos da narrativa. O jornalismo perdeu uma grande
reportagem, mas a literatura ganhou um romance excepcionalmente bem
escrito.
3.4. A IMAGEM DO ÍNDIO EM NOVE NOITES E O CHOQUECULTURAL
Literariamente, no século XIX, os indígenas eram caracterizados como
heróis, moralmente corretos e incorruptíveis em romances como os de José
de Alencar e poemas de Gonçalves Dias. Porém, essa visão idealizada do
indígena é desconstruída em Nove Noites, em que o índio ganha contornos
de homens que se habituaram a viver a partir dos recursos oferecidos pelo
Estado, sem preocupação com o trabalho e afeitos à exploração de quem
deles se aproximar.
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Desse modo, o romance de Bernardo Carvalho distancia o indígena dabeleza, valentia e pureza românticas, avaliando-o a partir de um olhar sócio-político e retratando-o pelo comportamento violento, interesseiro,manipulador, longe do “Bom selvagem” de Rousseau, mas próximo darealidade em que eles deixam de ser vítimas do sistema para se integrarema ele e dele tirarem proveito.
As transformações na região amazônica, a partir dos projetos deexpansão agrícola e o decorrente desflorestamento, intensifica-se muito apartir da década de 1950, assim como a vida dos índios sofre fortesalterações em sua rotina.
A região demarcada do Xingu, para onde os índios foram, de certomodo empurrados, também não é apresentada em Nove Noites como umespaço tranquilo, pelo contrário, lá os mecanismos de sobrevivência incluemlutas, hostilidade e ausência de virtudes indígenas. O jogo de interesses temdois participantes ativamente astutos: de um lado o Estado, fazendo seupapel de pai dos órfãos índios da terra brasileira, de outro os índios fazendo-sede vítimas da orfandade para tirarem proveito do explorador branco.
Entenda-se essa orfandade indígena como reflexo da situação indefesados indígenas, os quais tomam então o Estado como aquele que deveproporcionar benefícios às comunidades. Essa imagem do índio, presente noromance de Bernardo Carvalho, parece ser muito mais próxima da realidadedo que aquela propagada pelos romances românticos que, em certa medida,seriam responsáveis pela visão que muitas pessoas fazem dos indígenascomo vítimas inocentes da sociedade branca.
O indianismo às avessas de Nove Noites coloca o índio como alvoconstante de pesquisas estrangeiras, justamente por causa da vitimizaçãoque lhe é atribuída, reproduzindo uma visão antipática dos “mausselvagens”, semelhante à que Buell Quain tem em relação aos índios queencontrou no Brasil nos anos da década de 1930.
Considere-se, no entanto, que a época durante a qual o antropólogonorte-americano permaneceu no Brasil, os indígenas viviam mais isoladose menos contaminados de cultura branca e, por isso, passavam a ser assuntointeressante para antropologia, principalmente estrangeira. Mas, Buell Quainnão gostava dos índios brasileiros, considerando-os feios e sujos,diferentemente dos povos de Fiji com os quais ele também teve contato.
Os índios Trumai estavam em vias rápidas de extinção, e, já naquela
ocasião, a tribo contava com apenas 43 integrantes. Talvez, um dos fatores
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da mortandade Trumai decorresse do envenenamento das águas do Rio
Vermelho, no qual eram despejados detritos de lixo hospitalar.
Em trabalho escrito por Buell Quain e Robert Murphy (1986, p. 11,12),
não citado no romance Nove Noites, relata-se que os Trumai viviam em
pânico e temiam seus principais adversários, os índios Kamayurá e os Suyá
e, no período noturno, qualquer barulho da mata causava medo nos Trumai,
aterrorizados pelos boatos de que haveria um ataque a qualquer momento.
Os Kamayurá procuravam desestabilizar psicologicamente os Trumai e
amedrontar Buell Quain por ele tê-los preterido, ficando junto aos Trumai,
que, por sua vez, acusavam os Kamayurá de aprisionarem suas vítimas e
comerem-lhe os miolos.
A antipatia de Buell Quain em relação aos índios brasileiros pode ser
percebida nos textos que o antropólogo redigiu sobre eles. Tudo nos
indígenas brasileiros parecia irritar Quain: ausências de atitude e de ímpeto,
a espera do destino, a intimidade com os estranhos, os jogos de interesse, a
manipulação em busca da obtenção de favores, o medo paranoico, as
relações incestuosas, a inconstância comportamental, os ritos de passagem.
A primeira pesquisa de Buell Quain sobre os Trumai foi interrompida
por questões de segurança já que os agentes do Estado Novo, em defesa da
segurança nacional, acreditavam que antropólogos e etnógrafos estrangeiros
estariam no Brasil a serviço da espionagem de seus países. O antropólogo
norte-americano, então, seguiu viagem ao Rio de Janeiro, onde chegou às
vésperas do Carnaval, instalando-se na pensão “Gustavo”, situada na Lapa,
bairro caracterizado pelas amplas possibilidades de satisfação sexual, à rua
Riachuelo, número 107, antiga rua de Matacavalos, citada por Machado de
Assis em sua obra Dom Casmurro.
Buell Quain, então, tem contato com alguns valores da cultura carioca
como o Carnaval, Carmen Miranda, a vida boêmia e noturna da Lapa do
Rio de Janeiro. Naquele Carnaval de 1939, Madame Satã (nome inspirado
no filme homônimo de Cecil B. DeMille), ou João Francisco dos Santos, um
travesti associado à malandragem, ao crime e à homossexualidade cariocas,
ganhou um concurso do baile do teatro República com uma fantasia de
lantejoulas vermelhas inspirada na imagem de um morcego do nordeste.
No mesmo Carnaval de 1939, Carmen Miranda despontava com a
música “O que é que a baiana tem?”, de Dorival Caymmi, do filme Banana
da Terra, vestida com uma saia rodada e badulaques exagerados, uma
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evidente caricatura da cultura brasileira. Enquanto Madame Satã transgredia
as normas desafiando os tabus da sociedade da década de 1930, Carmen
Miranda correspondia ao desejo comercial da indústria do consumo. E qual
a relação que se pode estabelecer entre Satã, Carmen Miranda e Buell
Quain? A oposição de comportamento dos dois artistas citados encontra
reflexo dentro do antropólogo norte-americano, que, por um lado, questiona
padrões e, por outro, segue-os sem peso algum.
De volta à selva amazônica, em julho de 1939, Buell Quain instala-se
na tribo Krahô, mas se apresenta já um homem angustiado e inquieto,
comportamentos desencadeados, talvez, pela experiência homossexual, a
qual teve no Rio de Janeiro, durante o Carnaval regado a muito álcool, o que
teria favorecido o equívoco do antropólogo em relacionar-se sexualmente
com um homem fantasiado de enfermeira acreditando ser uma mulher.
A causa do desequilíbrio emocional de Buell Quain pode também estar
relacionada com os problemas familiares desencadeados pela separação de
seus pais, ou, ainda, um conflito amoroso do antropólogo com uma
namorada, ou namorado, deixados nos Estados Unidos.
Seja qual for o motivo do transe psiquiátrico de Buell Quain, em sua
última jornada pelas selvas brasileiras, a insatisfação, a angústia e a perda
de sentido de seus projetos o perseguiam, causando-lhe um estranhamento
incômodo. As incompreensões do antropólogo norte-americano, quanto ao
comportamento do indígena brasileiro, se acentuam e o choque cultural
principia nele uma forma de medo com relação ao que encontraria pela
frente.
Torna-se especialmente difícil para Buell Quain, um norte-americano
dotado de valores da civilização ocidental, aceitar a cultura dos índios, mas,
ao mesmo tempo que esse mal-estar o distanciava dos indígenas, também o
aproximava: os Trumai, temerosos dos ataques de outras tribos, viviam em
constante vigília e receosos de que fossem exterminados a qualquer
momento, enquanto Buell Quain vivia o medo de si mesmo, de seu duplo,
isto é, do outro que passou a persegui-lo interiormente, e a paranoia com a
morte, perceptível na repetição frequente de uma frase que lera, “toda morte
é assassínio”.
O ritual de passagem para a vida adulta em que a pele do jovem Trumai
era esfolada com a carapaça do tatu, deixando o corpo ensanguentado e
repleto de cicatrizes que eram admiradas com orgulho pelos indígenas,
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aproxima-se à cicatriz que Buell Quain tem de seu tórax à barriga, oriunda
de uma cirurgia feita pelo pai, e à martirização que ele submeteu seu corpo
antes de se enforcar, uma forma de rito de passagem, não para a fase adulta,
mas sim para a morte.
A trágica experiência de Buell Quain com os índios Trumai e Krahô,
guardadas as devidas diferenças, também encontra espelhamento na vida
do narrador-investigador-jornalista. Em suas buscas sobre os motivos que
teriam levado o antropólogo ao suicídio, o narrador-investigador-jornalista
viajou ao Xingu, onde teve uma experiência ímpar no contato com os índios.
O choque cultural se estabelece, principalmente, quando ocorrem as
cerimônias para aproximar o narrador-investigador-jornalista aos costumes
da aldeia Krahô. Nesse convívio de três dias com os índios, ele perdeu sua
independência, pois passou a necessitar dos índios para tudo e, embora,
mostrar-se receptivo aos costumes deles ser imprescindível, no episódio que
envolveu a alimentação, o narrador-investigador-jornalista recusou-se a
comer o intragável paparuto, espécie de bolo de mandioca com banha e
carne de porco, que lhe causava nojo.
Outra situação desagradável vivida pelo narrador-investigador-jorna -
lista foi o ritual da pintura do corpo, espécie de batismo, em que ele se
inscreveria na cultura Krahô, autorizando-o, por exemplo, a manter relações
sexuais com as mulheres da tribo. A cerimônia, da qual ele foge
inicialmente, concretizaria a possibilidade de integração com os índios, mas,
frente ao comportamento amedrontado, o narrador-investigador-jornalista
passa a ser ridicularizado pelos índios.
Assim, a relação entre narrador-investigador-jornalista e os índios
perdeu o valor de reciprocidade e ele partiu da tribo sem as informações
que buscava. Acreditando haver algo que os índios não lhe contaram, porque
não houve integração do narrador-investigador-jornalista com os costumes
Krahô, ele aventa a possibilidade de que os índios tivessem algo importante
a ser revelado sobre Buell Quain, mas, como vingança, mantiveram o
segredo que ele tanto buscava.
A incapacidade de entender, e até aceitar, a cultura indígena é
característica comum a Buell Quain e o narrador-investigador-jornalista.
São questionadas por ambos as relações de parentescos entre os índios, a
pintura corporal, a comensalidade, o interesse por presentes (inclusive
solicitados por telefone ao narrador-investigador-jornalista, depois de seu
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retorno a São Paulo, pois os índios entendiam que ele lhes devia algo por
terem-no adotado na sua tribo), a atividade sexual sem reservas e entre
familiares, a falta de sinceridade dos índios, e a conversão da selva de Locus
Amoenus para Locus Horrendus.
Tanto Buell Quain quanto o narrador-investigador-jornalista cavaram
um abismo nas relações entre eles e os índios, mas o antropólogo norte-ame -
ricano mergulhou nele, enquanto o narrador-investigador-jornalista
conseguiu fugir antes de cair nas profundezas.
3.5. BUELL QUAIN REAL E FICCIONAL: QUEM ERA OANTROPÓLOGO NORTE-AMERICANO?
Em 1938, chegavam ao Brasil antropólogos norte-americanos para
investigarem a cultura indígena das tribos do interior do País. Entre os
membros desse grupo estava o jovem Buell Quain de 27 anos, o qual, já de
início, classificou os índios Trumai como chatos e sujos, muito opostos aos
nativos com quem ele conviveu em Fiji, modelos de comportamento digno.
Conforme já se viu, após o bloqueio a sua pesquisa, impetrado pelo
Estado Novo, Buell Quain viajou ao Rio de Janeiro, e, posteriormente,
retornou à selva para investigar os índios Krahô. Inesperadamente, o antro -
pólogo, durante sua viagem de retorno do interior da selva, suicidou-se, por
motivos ignorados, segundo fontes oficiais, em 2 de agosto de 1939,
deixando escritas algumas cartas destinadas a familiares e amigos.
Se consultarmos bases de informação sobre Buell Quain, os dados a
respeito dele não vão muito além do que essa biografia anterior apresenta.
Bernardo Carvalho, autor de Nove Noites, amplia significativamente os
detalhes da vida do antropólogo norte-americano ao recriar, ficcionalmente,
o que ele viveu no Brasil e como as experiências dele teriam sido
traumáticas. Para isso o autor dá voz ao narrador-investigador-jornalista
que, como já se relatou, busca por informações sobre Buell Quain, após ter
lido uma matéria sobre antropólogos no jornal.
A partir daí, instaura-se um processo longo de coleta de dados e
pesquisas in loco, na busca por informações que revelassem o motivo do
suicídio de Buell Quain. É necessário destacar que os fatos históricos,
fotografias, referências a personalidades são elementos contextualizados,
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manipulados pelo narrador-investigador-jornalista, criado por Bernardo
Carvalho, com o interesse final de compor um romance ficcional.As primeiras descrições do antropólogo são apresentadas por Manoel
Perna em sua carta-testamento. É por meio dela que conhecemos asdificuldades enfrentadas por Buell Quain no Brasil, principalmentedesencadeadas pelos impactos culturais, por problemas familiares e pelasdúvidas de orientação sexual. Dessa maneira, sabe-se que os mesesantecedentes ao suicídio de Buell Quain, passados em companhia dos índiosKrahô e de Manoel Perna, desequilibraram o antropólogo psicologicamente.
Na carta-testamento, um engenheiro de Carolina reproduz as conversastravadas com Buell Quain durante nove noites não consecutivas, regadas aálcool desencadeador de embriaguez, estado em que ambos talvez tenhamimaginado muitos dos fatos relatados, gerando a possibilidade de que asinformações estejam deturpadas no relato de Manoel Perna.
De qualquer maneira, o que Buell Quain contou a Manoel Perna quasesempre se vincula às dificuldades de socialização do antropólogo e àconstante sensação de medo que ele procurava superar. Distante da pátria,espaço desenvolvido e totalmente diferente da precariedade brasileira, oantropólogo norte-americano isolava-se cada vez mais, como se fugisse nãosó de todos, mas, principalmente, de si mesmo. Essa solidão é amenizada,no entanto, quando Buell Quain divide suas experiências com Manoel Pernae, também, ao escrever as cartas em que, hipoteticamente, dialoga com osseus destinatários.
O antropólogo parece temer o domínio de seu outro eu, seu duplofantasmagórico, que ganhou contornos mais firmes após a experiênciavivida no Rio de Janeiro, do qual ele tenta se livrar, ideia que vai seconsolidando quando ele retorna à selva, culminando no suicídio.
Nos relatos que o antropólogo faz de sua convivência com os índiosTrumai, cada vez mais se intensifica sua repugnância pelos costumes,comportamentos, aparência, hábitos, comidas, atividades sexuais, principal -mente no que concerne às relações incestuosas e homossexuais.
O antropólogo norte-americano conta a Manoel Perna sobre um jovemTrumai que o teria procurado para práticas sexuais, situação da qual doisproblemas surgiram: as práticas sexuais entre os estrangeiros pesquisadorese os indígenas não eram admitidas, e a homossexualidade que Buell Quainrejeita, principalmente por ele ser de família tradicional americana, a qual,na opinião dele, não poderia entenderia sua orientação sexual.
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Ainda nos Estados Unidos o antropólogo norte-americano envolveu-se
com o fotógrafo, o qual tirou dele duas fotografias inesperadas, e também
com uma amiga que mantinha um caso com o mesmo fotógrafo. A
homossexualidade, heterossexualidade ou bissexualidade de Buell Quain
indefine-se inicialmente, mas, no transcorrer das conversas que tem com
Manoel Perna, parece ser a atividade homossexual a mais perturbatória para
o norte-americano.
Além do mais, a vigilância constante do Estado Novo às atividades dos
antropólogos estrangeiros fazia Buell Quain sentir-se espionado o tempo
todo e, talvez, teria sido esse mesmo regime de controle rígido que tivesse
feito Manoel Perna esconder uma das cartas escritas pelo antropólogo, pois,
nela poderia estar revelada a homossexualidade de Buell Quain e, o que
seria extremamente agravante, praticada com os índios.
No momento em que as índias se oferecem sexualmente ao
antropólogo, sua reação é de ameaçá-las, afirmando que iria violentá-las, o
que provoca os risos das indígenas. O comportamento ridicularizador a que
é submetido Buell Quain pode ser interpretado como um escárnio, pois, para
as índias ele não seria ativo sexualmente e, por isso, não teria perigo algum
de estupro, duvidando-se, portanto, de sua heterossexualidade.
Mas, por outro lado, o antropólogo declara a algumas pessoas que era
casado e sua esposa o havia traído, além de ficar sugerido nas pesquisas do
narrador-investigador-jornalista que ele teria um filho nos Estados Unidos,
criado pelos pais de seu amante, o que teria coerência com o fato de Buell
Quain ter sido traído pelo fotógrafo e pela namorada simultaneamente.
Para Manoel Perna, problemas sexuais levaram o antropólogo ao
suicídio, sejam eles decorrentes da homossexualidade reprimida, sejam
motivados pela doença aventada pelo próprio antropólogo. Segundo o
enredo de Nove Noites, Buell Quain teria amizade com o Claude Lévi-
Strauss, com o qual chegou a conversar sobre a suspeita de ter contraído
sífilis16, por ocasião da sua vinda ao Rio de Janeiro, num relacionamento
16 Sífilis, ou lues, é uma infecção sexualmente transmissível causada pela bactéria Treponemapallidum. Pode também ser transmitida verticalmente, da mãe para o feto, por transfusão desangue ou por contato direto com sangue contaminado. Se não for tratada precocemente, podecomprometer vários órgãos como olhos, pele, ossos, coração, cérebro e sistema nervoso. Operíodo de incubação, em média, é de três semanas, mas pode variar de dez a 90 dias.(Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/sifilis. Acesso em: 9 set.2020.)Atualmente a sífilis é considerada uma doença reemergente, devido ao grande aumento da suaincidência nos países em desenvolvimento, enquanto nos países desenvolvidos é atualmente
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casual com uma enfermeira.
Sabe-se que, na versão do antropólogo, a tal enfermeira era, na verdade,
um homem fantasiado de mulher e o suposto equívoco teria resultado numa
atividade homossexual. A possibilidade de Buell Quain ter contraído sífilis
no meio indígena também é levantada. Em carta a Heloísa Torres, o
antropólogo informa sua retirada da tribo em decorrência de sua doença, de
problemas com o serviço de proteção aos índios, e de uma situação sexual
envolvendo os indígenas, que fez o tenente-coronel Vicente de Paulo
Teixeira da Fonseca Vasconcelos expulsá-lo da região Trumai.
Note-se que a ida de Buell Quain ao Rio de Janeiro é posterior a sua
retirada da tribo Trumai, então, talvez ele já tivesse viajado ao Rio de Janeiro
com sífilis contraída em meio aos índios. Além disso, os indígenas já haviam
percebido que o antropólogo norte-americano tinha sintomas de alguma
doença e, em carta a Ruth Landes, ele comenta que os dentes da arcada
superior dos Trumai eram limados, denominados “dentes de Hutchinson17”,
sintoma comum de sífilis.
Ao retornar ao Xingu, em sua nova pesquisa sobre os índios Krahô,
Buell Quain já estava bastante debilitado. Batizado como Cãmtwýon (Cãm-
significa o momento presente e -tuýon, lesma ou caracol e seu rastro) pelos
Krahô, o antropólogo associou, de certo modo, o nome a sua personalidade,
pois ele parecia circular em torno de seus conflitos e refugiar-se em seu
interior como um caracol.
Tudo se agrava quando Buell Quain recebe notícias da família dos
Estados Unidos, que parecem intensificar a loucura da qual, segundo alguns
colegas, o antropólogo, por ter se isolado em um local inóspito e solitário,
foi vítima e acabou suicidando-se. A última caminhada de Buell Quain pelas
matas, quando retornava a Carolina com o propósito de voltar aos Estados
Unidos, onde seu filho nascera e sua mãe sofria com a separação do marido,
assemelha-se a uma fuga desesperada de algo que o perseguia
considerada epidemiologicamente estável. Essa clássica doença sexualmente transmissível(DST) pode ser evitada e controlada por meio de medidas voltadas para a população em geralquanto à prática do sexo seguro. (Disponível em: http://www.hse.rj.saude.gov.br/profissional/revista/37/ sifilis.asp. Acesso em: 9 set. 2020.)
17 Na cavidade bucal podem aparecer os incisivos centrais superiores, com aspecto de barril oucravelha. São os dentes de Hutchinson. Os primeiros molares inferiores podem apresentarcúspides múltiplas e mal formadas chamadas “molares em amora”. Os defeitos da formaçãodo esmalte acarretam cáries sucessivas e a subsequente destruição dos dentes. (Disponível em:http://www.hse.rj.saude.gov.br/profissional/revista/37/sifilis.asp. Acesso em: 9 set. 2020.)
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incomodamente, isto é, de seu duplo que o mataria e estava em seu encalço.
O antropólogo parecia temer tudo, todos e a si próprio, ou melhor, seu
outro eu, o seu duplo, que lhe despertava aflições e conflitos identitários. O
medo de aceitar sua personalidade real, apresentada pelo seu duplo, é
patente em Buell Quain, intensificado pelo ambiente de trevas em que vive
com os Trumai e com os Krahô.
Para Perna, o antropólogo precisava livrar-se da identidade de seu outro
eu que o afligia e, por isso, teria vindo ao Brasil, afastando-se da civilização
norte-americana, mas a metamorfose não ocorreu como ele esperava, pelo
contrário, Buell Quain ainda se identificou, por exemplo, com o medo
desesperador de extinção dos Trumai.
O antropólogo, ao se suicidar, destrói o seu duplo que rejeita, enforca
seu outro para livrar-se dele e, matando-o, deixa a incógnita que o romance
não consegue decifrar: quem era realmente Buell Quain e por que se matou?
3.6. CARTAS, CARTAS E MAIS CARTAS
Durante nove noites, repletas de cachaça e escuridão, Manoel Perna
conversou com Buell Quain em meio à selva amazônica. Ouvinte paciente,
o engenheiro de Carolina tornou-se confidente do antropólogo e guardião de
uma de suas cartas, que parece conter a resposta ao mistério da morte do
antropólogo.
No primeiro capítulo do romance, o leitor já toma contato com a
carta-testamento escrita por Manoel Perna anos após a morte do norte-ame -
ricano. Aparentemente, o discurso de Manoel Perna aproxima-se de uma
possível sinceridade, mas as contradições vão surgindo ao longo do relato
em decorrência da memória dos fatos ter se misturado ao que realmente
ocorreu e ao que foi imaginado por Buell Quain e Manoel Perna.
O engenheiro de Carolina dirige sua carta-testamento a um receptor
tratado por “você”, a quem o antropólogo teria deixado uma carta escrita em
inglês, e que poderia esclarecer o real motivo de seu suicídio, mas jamais
entregue ao destinatário. O discurso de Manoel Perna é repleto de
subjetividade, justificável pela emoção que sente ao se recordar do amigo
morto e, também, ao pensar que poderia tê-lo impedido de se suicidar caso
lhe tivesse levado pessoalmente as últimas cartas recebidas.
Assim, o leitor vai aguardando o momento em que o destinatário da
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carta-testamento de Manoel Perna receberá a missiva de Buell Quain e todo
o mistério será resolvido. O que o leitor não espera é a revelação final do
narrador-investigador-jornalista de que as cartas de Manoel Perna e a última
de Buell Quain são criações ficcionais. Mesmo assim, é a carta-testamento
de Manoel Perna que alicerça todo o romance Nove Noites e mantém o
suspense, além de indicar que o engenheiro sabia o motivo do suicídio do
antropólogo:
Se agi como se ignorasse os motivos que o levaram ao suicídio foi para
evitar o inquérito. A polícia tomou conhecimento do caso e fez o
inventário dos fatos e do espólio a pedido dos americanos. Não me
julgue mal. Não teria podido responder a nada. O silêncio foi um peso
que carreguei durante anos, enquanto estive à sua espera. Já não posso
me arriscar a que tudo desapareça comigo. (NN, 2002, p. 24)
As nove noites, de que trata o título do romance, compreendem um
intervalo de cinco meses da estada de Buell Quain no Brasil, desde o dia em
que conheceu Manoel Perna até o momento da viagem do antropólogo à
tribo Krahô. São essas nove noites que fazem Manoel Perna compor a
carta-tes tamento, já que a confiança de Buell Quain, ao lhe contar sua vida,
merecia ser documentada.
Existem também as cartas que Buell Quain escreveu, antes de decidir
se matar, para Ruth Benedict, Eric P. Quain, Charles Kaiser (seu cunhado),
Heloísa Alberto Torres, reverendo Thomas Young, capitão Ângelo Sampaio
e Manoel Perna. O narrador-investigador-jornalista vale-se da leitura atenta
delas, mas constata algumas contradições entre o que Manoel Perna conta
e o que o antropólogo escreve.
Na carta a antropóloga Heloísa Torres, Buell Quain revela estar com
uma doença contagiosa e, na enviada a Ruth Benedict, ele recomenda
desinfecção da correspondência, o que indicaria de fato a doença do
antropólogo. Outra carta importante no enredo de Nove Noites é a que Buell
Quain recebe dos Estados Unidos, trazendo notícias desencadeadoras do
desesperado retorno dele para Carolina.
Para complementar a relação de cartas distribuídas ao longo do
romance, há aquelas escritas pelo narrador-investigador-jornalista e
enviadas aos Estados Unidos em busca de familiares de Buell Quain, a fim
de descobrir algo que pudesse esclarecer suas dúvidas. No entanto, das cerca
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de 150 cartas enviadas, o narrador-investigador-jornalista recebeu cerca de
20 respostas apenas sendo, talvez, o motivo de não obtenção de retorno o
fato de os Estados Unidos viverem o temor das cartas contaminadas por
antraz, que levaram seus receptores à morte.
Enquanto a carta-testamento de Manoel Perna é apresentada com letras
em itálico, as demais são marcadas por aspas, o que corresponderia a serem
elas documentos reais. No entanto, nenhuma correspondência chega a
esclarecer definitivamente o porquê do suicídio de Buell Quain, embora,
durante uma conversa do narrador-investigador-jornalista com Raimundo
Perna, filho do engenheiro, ele passe a acreditar na existência de uma oitava
missiva e/ou de um diário do antropólogo.
A oitava carta escrita por Buell Quain não existe, é irreal acreditar nela
como a possibilidade de resposta a todos os mistérios que o romance Nove
Noites apresenta. O diário do antropólogo não é encontrado, sendo apenas
aventada a possibilidade de sua existência. A pesquisa científica do narrador-
investigador-jornalista também não ganhou forma textual, apenas foi
desejada, e sua realização inviável pelos enigmas indecifráveis da vida de
Buell Quain.
A ficcionalização da realidade criada habilmente por Bernardo
Carvalho, ou a mentira do romance, é o elemento concreto que recupera a
figura esquecida de Buell Quain até mesmo nos meios da antropologia,
dando-lhe uma nova vida no mundo da ficção. Em nossos agradecimentos
do romance, Bernardo Carvalho refere-se a pessoas de identidades reais que
o auxiliaram na elaboração da obra e, salvaguarda-se de possíveis processos
judiciais:
Este é um livro de ficção, embora esteja baseado em fatos, experiências
e pessoas reais. É uma combinação de memória e imaginação – como
todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta.
Ao longo da pesquisa que o precedeu, contei com o auxílio de várias
pessoas, a começar por Mariza Corrêa. Sem ela, provavelmente eu
nunca teria sabido da existência de Buell Quain e este livro não
existiria. (...) Nenhuma dessas pessoas tem responsabilidade pelo
conteúdo ou pelo resultado final da obra. (NN, 2002, p.169, 170)
Para acreditar nos relatos do romance Nove Noites é necessário que o
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leitor estabeleça um pacto de credibilidade com o narrador-investigador-jor -
nalista para, assim, vivenciar toda a ficção da obra como se fosse a verdade
absoluta e, magicamente, se surpreender quando, no desfecho do romance,
tudo o que foi anteriormente relatado é dissolvido no ar, mas mantendo
Buell Quain personagem ficcional vivo, mesmo que o narrador-inves -
tigador-jornalista afirme:
(...) me lembrei sem mais nem menos de ter visto uma vez, num desses
programas de televisão sobre as antigas civilizações, que os Nazca do
deserto do Peru cortavam as línguas dos mortos e as amarravam num
saquinho para que nunca mais atormentassem os vivos. Virei para o
outro lado e, contrariando a minha natureza, tentei dormir, nem que
fosse só para calar os mortos. (NN, 2002, p. 167, 168)
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4. EXERCÍCIOS
1. No romance Nove Noites, fato e ficção, verdade e mentira são conceitos
frequentemente discutidos por Manoel Perna e pelo narrador-investigador-
jornalista. Explique em que medida, dentro do contexto da obra, ocorre a
ficcionalização da realidade.
2. Quais relações podem se estabelecer entre Buell Quain, o narrador-
investigador-jornalista e o autor Bernardo Carvalho?
3. Em algumas obras consagradas da literatura brasileira, como Memórias
Póstumas de Brás Cubas, Angústia, Iracema, Vidas Secas, nota-se que a
estrutura composicional dos romances é alicerçada na proposta de narrativa
circular, isto é, o desfecho do romance vincula-se ao princípio dele, criando
a possibilidade de uma leitura sem fim. Em Nove Noites, o recurso de eterno
retorno aparece, mas de uma forma mais ampla. Explique-a.
4. O Grande Dicionário Houaiss assim define o sentido do vocábulo
“terror”:
substantivo masculino 1 estado de medo intenso; pavor
2 o que inspira medo ou se faz sentir como grande ameaça ‹Lampião foi
o t. da caatinga› ‹as gangues espalharam o t. pela cidade›
2.1 m.q. terrorismo (POL) ‹o governo dos E.U.A. tomará duras medidas
contra o t.›
2.2 CINE, LIT, RÁD, TEAT, TV gênero ficcional cujo objetivo é provocar
medo ou susto ‹filmes de t.›
3 HIST período da Revolução Francesa, entre 31 de maio de 1793 e 27
de julho de 1794, em que se efetuaram prisões e execuções de
opositores inicial. maiúsc.
4 p.ext. qualquer época de perseguições, morticínios etc. por motivos
políticos
Cite duas acepções do vocábulo “terror” empregadas no romance Nove
Noites.
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5. A partir das informações coletadas pelo narrador-investigador-jornalista
sobre Buell Quain, assinale (V) verdadeiro ou (F) falso, conforme o enredo
do romance Nove Noites:
a) ( ) A mãe de Buell Quain, Fannie Quain, era uma mulher aflita e
atormentada com o final de seu casamento.
b) ( ) Buell Quain teria uma doença misteriosa, possivelmente sífilis.
c) ( ) Os amigos de Buell Quain, da Universidade de Columbia,
especulavam a possibilidade de assassinato do antropólogo.
d) ( ) Mariza Corrêa, antropóloga do artigo, ao ser procurada pelo
narrador-investigador-jornalista, deduz que ele estaria em busca de
material para compor um romance.
e) ( ) Manoel Perna sugere que conflitos sexuais estariam por trás do
suicídio de Buell Quain.
f) ( ) O discurso de Manoel Perna é marcado por impressões subjetivas
e pela letra em itálico.
g) ( ) Os discursos de Manoel Perna e do narrador-investigador-jornalista
frequentemente se contradizem ou desautorizam suas verdades,
principalmente porque o de Manoel Perna vincula-se à ficção, e o
do narrador-investigador-jornalista, prima pela verdade, pois,
inicialmente se trata de pesquisa embasada em provas documentais.
h) ( ) Manoel Perna declara que é impossível a recuperação do passado
e a solução do mistério do suicídio de Buell Quain, alertando o
leitor, desde o início, sobre o território ficcional em que ele estaria
ingressando.
i) ( ) “Isto é para quando você vier”, frase comumente escrita por
Manoel Perna em sua carta-testamento, pode ser interpretada como
a espera do namorado de Buell Quain ou a espera do leitor, pois o
dêitico “você” ganha aspectos de ambiguidade.
j) ( ) O índio Krahô Diniz, ao ser questionado pelo narrador-investi -
gador-jornalista sobre Buell Quain, apresenta informações
distorcidas em relação às versões oficiais, fortalecendo a
perspectiva de que o romance se converterá realmente em ficção.
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RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS
1. Durante todo o romance, o autor Bernardo Carvalho associa o discurso
jornalístico ao literário, apontando elementos que tornam a verdade do
relato insustentável. O narrador-investigador-jornalista, em sua
pesquisa sobre os motivos que levaram Buell Quain ao suicídio, elenca
fatos e versões oscilantes em busca de uma verdade única, a qual não
é alcançada. O que, inicialmente, seria um trabalho de pesquisa
documental, torna-se enredo de um romance ficcional, no qual será
mantido o mistério acerca do que houve no percurso de Buell Quain da
tribo Krahô até a cidade de Carolina.
2. O narrador-investigador-jornalista, após ler um artigo sobre
antropologia no jornal, interessa-se pelo mistério que envolve o suicídio
de Buell Quain e principia uma exaustiva pesquisa envolvendo
documentação, entrevistas e viagens, a respeito do assunto. Durante o
relato feito sobre o antropólogo, o narrador-investigador-jornalista
retoma momentos da sua infância, passada em parte no Xingu, ao lado
do pai, e, avaliando sua relação com os índios e a figura paterna, elabora
reflexões íntimas reveladoras de seus conflitos, aproximando o relato
ficcional a certas experiências vividas também pelo autor Bernardo
Carvalho. Assim, o narrador-investigador-jornalista projeta sua
vivência na de Buell Quain, e Bernardo Carvalho o faz também por
meio da figura ficcional do narrador-investigador-jornalista. Embora
Bernardo Carvalho e o narrador-investigador-jornalista sejam ambos
jornalistas e bisnetos do marechal Rondon, o que afastaria a obra da
classificação de autoficção é o fato de que o narrador-investigador-
jornalista não partilha da mesma identidade nominal do autor,
mantendo-se inominado em todo o romance.
3. Na cena final de Nove Noites, durante a viagem de volta dos Estados
Unidos para o Brasil, ao lado do narrador-investigador-jornalista,
derrotado pela impossibilidade de decifrar o mistério Buell Quain,
senta-se um jovem americano pesquisador das tribos indígenas
brasileiras, que, entusiasmado com sua nova tarefa, estabelece uma
pequena conversa com o narrador-investigador-jornalista, justamente
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no momento em que a aeronave sobrevoava a região de mata onde
Buell Quain havia se suicidado. A sensação de eterno retorno no
romance de Bernardo Carvalho, então, não se configura por uma
narrativa que induza o leitor a voltar ao início da obra, em decorrência
da circularidade viciosa do enredo, mas sim no sentido de que a história
sem fim de Buell Quain se projeta no novo estudante, tão entusiasmado
quanto o norte-americano, morto em 1939, e vindo ao Brasil em um
projeto semelhante ao dele. Outro fator a ser destacado é que o
narrador-investigador-jornalista parece ser perseguido pelo fantasma
de Buell Quain. Vejamos: o antropólogo norte-americano, que surge na
vida do narrador-investigador-jornalista por meio do artigo de Mariza
Corrêa, teve experiências no Xingu, como o narrador, foi fotografado
por Andrews Parsons, que chamou o narrador-investigador-jornalista
de Buell Quain (Bill Conhen, como ele entendeu) e, no desfecho do
romance, “renasce” na figura do jovem pesquisador do avião. Daí a
frase calar os mortos, citada pelo narrador-investigador-jornalista, no
final do romance, exercer dupla significação: é necessário calar Buell
Quain para que o futuro de investigações antropológicas sobre os índios
do Xingu brasileiro continue sem causar pânico nos pesquisadores,
como, também, permita ao narrador-investigador-jornalista a
tranquilidade de não ser mais perseguido pelo fantasma do antropólogo
norte-americano.
4. Nove Noites é construído a partir de situações ocorridas em tempos
distintos: o período de Buell Quain no Brasil, entre 1938 e 1939, e o
momento em que o narrador-investigador-jornalista resgata a figura do
antropólogo em suas pesquisas, 2001, e retoma, por meio delas, sua
infância no Xingu na década de 1970. Assim, no período de 1938/39,
o terror estaria vinculado, historicamente, ao domínio Vargas, aos
efeitos da Segunda Guerra Mundial e ao convívio nada agradável de
brancos com os índios brasileiros que despertavam medo no
antropólogo. Os anos de 1970 configuram o sentido de terror aplicado
pelo regime militar no Brasil e, também, as experiências horripilantes
do narrador-investigador-jornalista em suas viagens ao Xingu em
companhia do pai. Finalmente, o sentido explícito da palavra “terror”,
desdobrado em terroristas, aparece nas referências ao ataque de 11 de
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setembro ao World Trade Center e às cartas com antraz, situações
causadoras de milhares mortes.
5. Todas as alternativas apresentam informações verdadeiras.
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6. ANEXOS
6.1. São Paulo, sábado, 08 de março de 2003
jornal de resenha
FOLHA DE S.PAULO | ÍNDICE GERAL
Crítico discute o embate entre ficção e realidade em “Nove Noites”, de
Bernardo Carvalho
Segredos e distorções
Nove Noites
Bernardo Carvalho
Cia das Letras
(Tel. 0/xx/11/3167-0801)
176 págs., R$ 28,00
ALCIR PÉCORA
Ao escrever neste Jornal de Resenhas a respeito de “Nove Noites”,
novo romance de Bernardo Carvalho, alguma circularidade se instala, pois
ele começa justamente com a referência à leitura de um “artigo de jornal”.
O nome do jornal, o título ou o autor do artigo em questão não são
explicitados no romance, mas não é difícil descobri-los, desde que o livro
está dedicado a Mariza Corrêa, conhecida antropóloga da Unicamp, e a data
do tal “artigo de jornal” é dada como 12 de maio de 2001, um segundo
sábado do mês. Com efeito, nesse dia, o “Jornal de Resenhas” publicava
“Paixão Etnológica”, resenha da própria Mariza Corrêa a respeito do livro
“Cartas do Sertão – De Curt Nimuendajú para Carlos Estevão de Oliveira”
(Museu Nacional de Etnologia/ Assírio & Alvim).
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Logo ao início de sua resenha, Mariza escrevia que, entre os poucos
casos de morte de antropólogos no “campo”, estavam “os de Buell Quain,
que se suicidou entre os índios krahôs, em 1939, e o de Curt Nimuendajú,
que morreu durante uma visita aos índios ticunas, em 1945, em
circunstâncias até hoje debatidas pelos etnólogos”. Referindo-se à morte do
norte-americano Quain, principal assunto do romance, Mariza escreve
apenas mais um parágrafo, mas ele é suficientemente intrigante para que
Bernardo Carvalho possa apresentá-lo como o primeiro indício do “plot”
orquestrado por seu romance: “A comoção causada por sua morte foi sentida
lá e aqui, e durante muitos anos esse foi um dos segredos da história da
etnologia”.
A frase pode ser lida de modo a favorecer a intriga armada pelo
romance, que, em termos rápidos, organiza-se em torno da pergunta pelos
motivos que teriam levado Quain, aos 27 anos, a cometer um suicídio brutal,
no qual flagelara o próprio corpo com uma navalha antes de se enforcar, em
plena selva, quando voltava da aldeia krahô para a cidade de Carolina, no
atual Estado de Tocantins.
Inquietação e desconfiança
Isso posto, pode-se dizer que o livro de Bernardo Carvalho se apresenta
como um misto de romance-reportagem e de romance policial, selado pela
obsessão investigativa do narrador-jornalista e pelo suspense do andamento
das descobertas, que é, em parte, sustentado pelo minucioso balizamento
das datas e circunstâncias da investigação. A certa altura da leitura, comecei
a rodear com lápis as inúmeras referências temporais e geográficas aplicadas
aos menores acontecimentos e percebi que é rara a página na qual não se
encontra alguma delas.
O procedimento ostensivo cria alguma inquietação ou mesmo certa
desconfiança derivativa e paranoica, tal como a explorada na série “Arquivo
X”, por exemplo, quando estar no deserto do Arizona numa certa hora,
minuto e segundo parece se articular a um processo irresistível que
culminará com uma invasão alienígena a milhares de anos e quilômetros
dali. A analogia pode parecer desmerecedora para o romance, e talvez o seja,
pelo que me desculpo, mas ela dá uma ideia razoável da criação do clima
conspiratório, sub-reptício naquela frase inspiradora de Mariza Corrêa, e
dramaticamente manifesto no livro inteiro de Bernardo Carvalho.
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Posso usar uma comparação menos popular. O tratamento dado pelo
romancista ao caso da morte de Quain vai no sentido oposto àquele que o
antropólogo Roque de Barros Laraia, da Universidade de Brasília (UnB),
imprimiu ao seu artigo “As Mortes de Nimuendajú” (“Ciência Hoje”, vol.8,
n.º 44, de 1988), quando procura demonstrar, a contrapelo das várias
hipóteses de assassinato do antropólogo alemão Curt Unkel, rebatizado
pelos índios como Nimuendajú, que ela teria sido “apenas uma morte
natural”, não importa quanta decepção causasse à imaginação romântica
das pessoas. Em “Nove Noites”, ao contrário, tudo é ou se torna suspeito;
todas as personagens aparentam saber mais do que dizem; toda a
investigação parece estar fadada a não descobrir e mesmo determinada a
deliberadamente encobrir. Aliás, no andamento do romance, fica claro que
o próprio narrador-jornalista, o único parceiro de ignorância e curiosidade
sincera do leitor, não está ele mesmo isento de suspeitas e de motivos
secretos.
Arquitetura complexa
O que fiz até agora, como disse, foi apenas tomar uma via rápida de
apresentação do romance. Pois a sua arquitetura é bem mais complexa e
está assentada na alternância de uma dupla narração, muito diferente entre
si – traço comum aos romances de Bernardo Carvalho. Assim, o repórter
que escreve em 2002 não é o único a ocupar a posição de narrador: há ainda
um contemporâneo de Quain, um engenheiro-sertanejo, morador de
Carolina, que se tornara amigo do antropólogo.
Este escreve em meados dos anos 40, quando pressente a iminência da
própria morte e relembra as “nove noites” em que estivera com o americano,
bebendo e conversando, num intervalo de cinco meses a contar do dia em
se conheceram até aquele em que o engenheiro o acompanhou em parte de
sua última viagem à aldeia krahô. O texto desse narrador é, assim, uma
espécie de carta-testamento, cujo destinatário particular seria um antigo
amante de Quain, que estaria no centro da causa de seu suicídio e cuja
chegada é esperada para breve.
Nesse ponto, são tantos os detalhes de construção do mistério, que
confesso ser difícil dar dele qualquer imagem aproximada e ao mesmo
tempo suficientemente embaçada para não ser um estraga-prazer dos futuros
leitores do romance. Fiquem, pois, apenas esses indícios.
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A narração epistolar do engenheiro não tem a mesma paranoia de
objetividade que apontei na do jornalista. Ela é alusiva, sinuosa e remete
com estranha intimidade a fatos que não são conhecidos ou que são apenas
imaginados, o que produz um efeito de cumplicidade solene e tácita (e, em
seus maus momentos, sentenciosa e kitsch) entre o narrador e o destinatário
ausente.
E produz não apenas uma cumplicidade entre eles. O destinatário
secreto, referido pelo engenheiro como um simples “você”, produz o tipo de
ambiguidade insolúvel dos dêiticos – termos da linguagem usual que não
têm sentido fixo ou lexical, mas sim dependente do conhecimento da
posição de quem fala –, quando empregados fora de uma situação oral
particular. Assim, virtualmente, o “você” a quem a carta se dirige inclui não
apenas o esperado amante de Quain, como também qualquer um que esteja
em posição de lê-la: exatamente aquela em que está o leitor do romance.
Bernardo Carvalho joga firme nessa ambiguidade. Todas as frases
apontam e incluem os leitores na cumplicidade dissimulada em torno da
morte trágica e de sua herança de “segredo”. Cada frase da carta, cujo
“você” é potencialmente preenchido pelo leitor, acaba por enredá-lo no
coração da intriga, sem que saiba exatamente qual seja ela ou qual o papel
provavelmente escuso que ocupa aí.
A morte de Quain não apenas não é “natural”, como contamina e destrói
toda ideia de naturalidade assumida pelas personagens e pelos narradores.
No limite, resta a suspeita de que mesmo o leitor que busca uma explicação
para os acontecimentos narrados não pode ser inteiramente inocente, como
certamente não pode sê-lo o narrador da carta-testemunho que lhe escreve
confessando ter feito tudo o que pôde, até aquele momento, para esconder
a suposta explicação de todos.
Três tempos
Para avançar, será preciso retomar o narrador-jornalista e notar que a
sua própria narração se desdobra em três tempos diferentes. O mais atual,
para simplificar, é contemporâneo do ambiente de desconfiança
generalizada que se seguiu à queda do World Trade Center. O mais recuado
passa-se ao final dos anos 60, quando o jornalista é ainda uma criança e
viaja com o pai fazendeiro pelo alto Xingu, aterrorizando-se com os voos
precários, a promiscuidade paterna e o contato canhestro e mal-intencionado
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com os indígenas.
Há ainda um tempo intermediário, situado no início dos anos 90,
quando o pai já foi atingido por uma doença degenerativa do cérebro e o nar -
rador passa com ele alguns dias em seu quarto de hospital, interessando-se
simultaneamente por outro paciente em estado terminal, norte-americano
como Quain, que parece esperar, há anos, um antigo amigo, cujo nome,
pronunciado em delírio, soa como “Bill Cohen”.
Percebe-se então, em algum instante súbito da leitura, que os três
tempos da narração do jornalista absorvem ou ecoam as principais situações
e acontecimentos assinalados pelo enigma de Quain, de modo que o objeto
de sua investigação se confunde com a memória mais irreparavelmente
dolorosa de quem o investiga. Esse é o ponto sem retorno da investigação:
aquele em que a causa do suicídio, sem se esclarecer pela explicação, volta
a pulsar no cerne da narração. A eventual loucura da aniquilação do corpo
no passado remoto se reinstala como vírus da linguagem no presente.
Por esse entrecho, pode-se perceber quão certeiras permanecem as
palavras de Luís Costa Lima quando notava a propósito de “Teatro”, outro
romance de Bernardo Carvalho, a sua “extrema habilidade de duplicar,
distorcer e deformar cada figura ou acidente de sua trama”. Também em
“Nove Noites”, como naquele livro, com o “cruzamento da óptica dos dois
narradores (...), desestabilizam-se as ideias de referência e realidade”. O
resultado é que “o mundo da realidade virtual amplia o presente para
convertê-lo em pesadelo”. Criticável em “Teatro”, para Costa Lima, era o
esforço de Bernardo Carvalho para encaixar todas as peças de seu
quebra-cabeça narrativo, extremando-se em “transformar o inverossímil em
verossímil” e “em não deixar brechas para uma leitura adversa”. “Nove
Noites”, a meu ver, está livre dessa falha. Pois o narrador-epistolar parece
justamente significar uma resposta a esse tipo de crítica, ao produzir a sua
escrita como uma “combinação” daquilo que Buell Quain lhe contou e
daquilo que ele próprio imaginou, liberando igualmente o “você” a quem se
dirige para imaginar o que nunca chegou a escrever.
Seja como for, o encaixe das peças da morte de Buell Quain –
deformado em “Bill Cohen” (cujas iniciais são as mesmas do autor) ou até
em um simples “Quem” – nunca chega a ser completa ou sequer satisfatória.
O leitor está obrigado a imaginar hipóteses precariamente capazes de dar
sentido aos dados apresentados com minúcia alucinada, sem que nenhum
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deles adquira jamais o estatuto de “evidência”. São mais alegações
interessadas, autodescrições empenhadas, no caso do narrador-jornalista, e
racionalizações afetivas, no caso do narrador-testemunho. Os “fatos” –
principalmente os “fatos” – são os grandes inverossímeis de “Nove Noites”.
6.2. São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001
jornal de resenha
Paixão etnológica
Cartas do guru da etnologia brasileira
MARIZA CORRÊA
Alguns anos atrás, um colega, cujo filho ia fazer pesquisa de campo
entre os índios do Brasil, me perguntou: “Não é perigoso?”. Respondi,
automaticamente, “não, nunca ninguém morreu no campo, no Brasil”. Mas
não era bem verdade, pensei depois, lembrando, entre os poucos casos que
conheço, os de Buell Quain, que se suicidou entre os índios krahôs, em
1939, e o de Curt Nimuendajú, que morreu durante uma visita aos índios
ticunas, em 1945, em circunstâncias até hoje debatidas pelos etnólogos.
Buell Quain era um antropólogo norte-americano, orientado por Ruth
Benedict, dentre aqueles que tinham vindo fazer pesquisa no Brasil no
âmbito de um acordo informal entre o Museu Nacional e a Universidade
Columbia: a comoção causada por sua morte foi sentida lá e aqui e durante
muitos anos esse foi um dos segredos da história da etnologia.
Curt Nimuendajú, um antropólogo alemão nascido em Jena em 1883,
tinha originalmente o nome de Curt Unkel, adotando depois o que lhe foi
dado pelos índios guarani, e veio para o Brasil em 1903, tendo tido
“residência permanente”, como ele dizia, em São Paulo até 1913 e depois,
até sua morte, em Belém, no Pará. 1
Autodidata, construiu sua trajetória na etnologia brasileira pesquisando,
pesquisando, pesquisando. Talvez tenha sido o último daquela “falange
brilhante de etnógrafos viajantes”, mencionada por Herbert Baldus, que
vieram ao Brasil para se embrenhar nas selvas e conhecer os verdadeiros
nativos do país. Andarilho por definição, recolheu o que pôde sobre a cultura
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material dos índios brasileiros – material espalhado pelo mundo, em vários
museus – e anotou, com minúcia de naturalista interessado no detalhe
etnográfico, também o que pôde sobre os rituais, mitos e modos de viver dos
grupos com os quais conviveu e aos quais sempre voltava. Mapeou uma
série de questões teóricas, ao fazer as suas observações que, anos depois,
seriam retomadas por Claude Lévi-Strauss, David Maybury-Lewis, Roberto
DaMatta e Eduardo Viveiros de Castro, entre tantos.
O livro que acaba de ser publicado em Portugal começa a pagar uma
das tantas dívidas que os antropólogos contemporâneos sentem ter com
Nimuendajú: há anos os etnólogos mais velhos, como Darcy Ribeiro e Egon
Schaden, reclamavam da falta de suas publicações em português, o que
começou a ser remediado desde a tradução de suas observações sobre os
sipáias e os guaranis 2.
Tekla Hartman, que foi professora de etnologia da USP, põe agora à
disposição dos antropólogos e outros interessados na questão indígena uma
série de cartas que ele enviou ao também antropólogo Carlos Estevão de
Oliveira, então diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi, entre 1923 e 1942.
As cartas foram doadas pela filha de Carlos Estevão a Egon Schaden,
etnólogo da Universidade de São Paulo, também rebatizado pelos guaranis,
na mesma família que recebera Nimuendajú, o que o fazia considerá-lo seu
irmão mais velho. Foram depois depositadas no Museu Paulista e passaram
à guarda do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, com a fusão das
coleções arqueológicas e etnográficas.
Território etnológico
O livro é fascinante. Todos aqueles que, como eu, se interessam pela
história da antropologia no país, sentem um calafrio ao lê-lo: é a sensação,
sobre a qual alguém já falou, de estar ali, espiando por sobre o ombro de
quem escreve e sentindo, outra vez, coisas sentidas por quem escreve. Uma
por uma, as cartas vão esboçando o território de uma história da etnologia
que não está escrita (ainda) em nenhum lugar. É como se fosse o mapa, em
palavras, a ser sobreposto ao mapa etnológico que Nimuendajú também ia
desenhando ao longo dos anos e que levou tanto tempo para ser publicado.
Uma por uma, elas vão mostrando as ligações entre os pontos dessas
redes de relações que, de fato, faziam a história da etnologia naquele
momento. Há uma rede, uma trama, na qual Nimuendajú se movia à vontade
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– composta de agentes de postos indígenas, de figurões importantes nas
instituições conhecidas no país (Museu Emílio Goeldi, Museu Nacional,
Serviço de Proteção aos Índios, Conselho de Fiscalização das Expedições
Artísticas e Científicas no Brasil) e no exterior (museus de Hamburgo, de
Leipzig, de Dresden, de Berlim, de Gotemburgo), de antropólogos nacionais
e internacionais, dos inimigos dos índios e, principalmente, dos próprios
índios, eles mesmos agentes nessa rede. Rede que vinculava marcos
topográficos, tribais, institucionais e pessoais.
Uso da fotografia
Tendo sido funcionário da fábrica Zeiss na Alemanha, não é de admirar
a constante referência ao uso da fotografia em suas andanças: e é com olho
de fotógrafo que Nimuendajú descreve várias cenas para Carlos Estevão.
Por exemplo, a cena do funeral de uma moça entre os canelas, tão amada por
todos que os guerreiros jovens a fizeram dançar com eles depois de morta:
“Choravam todos, homens, mulheres e crianças. E, no meio desses rostos
desfeitos pelo pranto, o rosto pálido e sereno da Pepkwéi morta, em pé,
dançando...”. São muitas suas menções a fotografias, uma das quais é
reproduzida no volume: mostra Nimuendajú e uma índia canela, que vestira
luto em sua ausência, com os corpos cobertos de penas, numa cerimônia de
reintegração à sociedade.
É bonito observar, ao longo de toda a correspondência, um continuado
interesse e paixão pelos grupos indígenas que Nimuendajú visitava: ele vai
registrando suas rixas com os fazendeiros ou outros mandões locais, com os
vendedores de cachaça para os índios e sua impaciência para com os brancos
que invadiam as cerimônias indígenas que a custo ele conseguia ajudar a
recriar.
Nimuendajú era tão bom observador dos grupos nativos quanto dos
nativos de sua terra: ao viajar à Alemanha, em 1934, registrou numa carta:
“Causou-me pena o aspecto atual das vitrines das livrarias na Alemanha,
porque creio que elas formam em toda parte um índice bastante seguro para
o nível intelectual de um povo. Hoje elas são transformadas em meras
agências de propaganda do nacional-socialismo, formando um contraste
desagradável com o que se vê em outros países germânicos, como a
Inglaterra, a Dinamarca e a Suécia. Todo esse nacional-socialismo,
justamente pelas suas pretensões supergermânicas, tem para mim um
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aspecto estranhamente não germânico: ele me parece um fenômeno
nitidamente patológico”. E compara Hitler a um médico que, tendo salvo um
paciente da gangrena, narcotizando-o e cortando-lhe a perna, resolva-se a
mantê-lo para sempre em estado de narcose...
Parece, assim, uma ironia histórica o fato de ele ser perseguido no país
em que escolhera viver, por sua origem alemã: não só sua correspondência
com o antropólogo de origem alemã, trabalhando nos EUA, Robert Lowie,
passa a ser censurada no período da guerra, como o próprio Nimuendajú
seria vítima de boatos na região dos ticunas e acabaria preso: sua prisão é
sobriamente narrada na última carta desse volume.
Às vésperas da última viagem que fez aos ticunas, ele ainda fazia troça
da imagem que dele tinham as autoridades locais, numa carta para Heloísa
Alberto Torres, diretora do Museu Nacional: “ (...) Assim que eu reaparecer
na região, recomeçará imediatamente a campanha de calúnias: a câmera
fotográfica se transformará em metralhadora, a máquina de escrever em
estação de rádio, o radiotelegrafista de Benjamin Constant captará
mensagens misteriosas que só podem ter sido emitidas por mim, se
instigarão os índios (a) assassinar-me, e os subdelegados, inspetores de
quarteirão e comandantes de destacamentos serão assediados com pedidos
de providências. Finalmente o clamor chegará aos ouvidos das autoridades
civis e militares de Manaus, que despacharão ordens para prender o perigoso
espião. Tudo isso já me tem acontecido”.
Uma vida aventurosa que certamente contribuiu, junto com seu
minucioso trabalho de pesquisa, para transformá-lo no guru que ele é,
merecidamente, da etnologia brasileira. Quem acompanha as também
aventurosas peripécias dos pesquisadores que se têm dedicado a registrar
sua trajetória, espera que muitas outras cartas se sigam à bem-vinda
publicação dessas.
Notas
1. Thekla Hertmann refere o sentido do nome Nimuendajú, tantas vezes
citado na bibliografia etnológica, como sendo “aquele que soube abrir
o seu próprio caminho neste mundo e conquistou o seu lugar”.
2. “Fragmentos de Religião e Tradição dos Índios Sipáia – Contribuições
ao Conhecimento das Tribos da Região do Xingu, Brasil Central”.
Versão traduzida e apresentada por E. Viveiros de Castro e Charlotte
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Emmerich. In “Religião e Sociedade”, 7, São Paulo, 1981, CER/ISER.
“As Lendas da Criação e Destruição do Mundo como Fundamentos da
Religião dos Apapocúva-Guarani”. São Paulo, Hucitec/Edusp, 1987.
Apresentação de E. Viveiros de Castro.
Cartas do Sertão – De Curt Nimuendajú para Carlos Estevão de Oliveira
Apresentação e notas: Thekla Hartmann
Museu Nacional de Etnologia/
Assírio & Alvim (Lisboa)
396 págs., 4.500 escudos
Onde encomendar:
livraria Portugal
(Tel. 0/xx/11/3104-1748)
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