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OS LIVROS DA FUVEST NOVE NOITES BERNARDO TEIXEIRA DE CARVALHO Análise da obra, seleção de textos e questionário MARIA DE LOURDES DA CONCEIÇÃO CUNHA

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OS LIVROS DA FUVEST

NOVE NOITES

BERNARDO TEIXEIRA DE CARVALHO

Análise da obra, seleção de textos e questionário

MARIA DE LOURDES DA CONCEIÇÃO CUNHA

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1. BIOGRAFIA DO AUTOR

Bernardo Teixeira de Carvalho nasceu em 1960, no Rio de Janeiro,

onde, em 1983, formou-se em jornalismo pela Pontifícia Universidade

Católica. Romancista, contista, tradutor, Bernardo Carvalho mudou-se para

São Paulo na década de 1980, passando a trabalhar no jornal Folha de São

Paulo a partir de 1986, desempenhando várias funções na redação até tornar-se

diretor do caderno de ensaios Folhetim.

Em 1993, o autor obteve o grau de Mestre em Cinema pela Escola de

Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com a dissertação

sobre a obra do cineasta Win Wenders. Nesse mesmo ano, Bernardo

Carvalho publicou a coletânea de contos Aberração, sua estreia literária. O

primeiro romance, Onze, foi lançado em 1995 e, no ano seguinte publicou

Bêbados e Sonâmbulos.

O autor trabalhou também como correspondente internacional em Paris

e Nova York, além de colunista fixo do caderno de cultura Ilustrada da Folha

de São Paulo, jornal para o qual escreve até hoje. Entre 1998 e 2008,

Bernardo Carvalho consolidou sua carreira de escritor com a publicação de

Teatro (1998), As Iniciais (1999), Medo de Sade (2000), Nove Noites (2002),

considerado pela crítica seu romance melhor trabalhado, obra com a qual foi

agraciado com o Prêmio Portugal Telecom de Literatura.

Em 2003, Carvalho publicou Mongólia, premiado pela Associação

Paulista de Críticos de Arte (APCA), na categoria romance, e o Prêmio

Jabuti, em 2004, na mesma categoria. São também obras do autor: O Mundo

dos Eixos (2005), O Sol se põe em São Paulo (2007), O Filho da Mãe

(2009), Reprodução (2013) e Simpatia pelo Demônio (2016).

2. RESUMO DE NOVE NOITES

O romance Nove noites1 é construído a partir de dois relatos basilares:

a carta-testamento deixada por Manoel Perna, engenheiro-sertanejo e amigo

do antropólogo suicida, Buell Quain, e o enredo criado pelo narrador-

investigador-jornalista, inominado. As duas narrativas vão se intercalando

ao longo do romance sem haver uma ligação textual entre elas. A fim de fa -

cilitar a compreensão do livro, optou-se, neste breve resumo, pela sepa ração

dos dois relatos. Assim, primeiramente, veremos o que diz a carta-tes ta -

mento de Manoel Perna.1 O título do romance, Nove noites, será indicado pela abreviação NN neste trabalho.

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2.1. A CARTA-TESTAMENTO DE MANOEL PERNA

12. Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá

que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não

têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios (...)

O antropólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de

2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem

explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma violência

assustadora. Que se maltratou, a despeito das súplicas dos dois índios

que o acompanhavam na sua última jornada de volta da aldeia para

Carolina e que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. Que

se cortou e se enforcou. Que deixou cartas impressionantes mas que

nada explicam. (NN, 2002, p. 7, 8)

(...) Amanhã pego a balsa de volta para Carolina. Mas antes deixo este

testamento para quando você vier e deparar com a incerteza mais

absoluta. Seja bem-vindo. Vão lhe dizer que tudo foi muito abrupto e

inesperado. Que o suicídio pegou todo mundo de surpresa. Vão lhe dizer

muitas coisas. Sei o que espera de mim. E o que deve estar pensando.

Mas não me peça o que nunca me deram, o preto no branco, a hora

certa. Terá que contar apenas com o imponderável e a precariedade do

que agora lhe conto, assim como tive de contar com o relato dos índios

e a incerteza das traduções do professor Pessoa. As histórias dependem

antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de

interpretá-las. E quando vier você estará desconfiado. O dr. Buell, à sua

maneira, também era incrédulo. Resistiu o quanto pôde. Precisamos de

razões para acreditar. (NN, 2002, p. 8)

(...) Desde o início, embora não pudesse prever a tragédia, fui o único

a ver nos olhos dele3 o desespero que tentava dissimular mas nem

sempre conseguia, e cuja razão, que cheguei a intuir antes mesmo que

ela me fosse revelada, preferi ignorar, ou fingir que ignorava, nem que

fosse só para aliviá-lo. Acho que assim eu o ajudei como pude. (...)

Podia ser meu filho. Nada me abalou tanto. Nem mesmo quando fui

destituído das funções de encarregado do posto indígena Manoel da

2 Os números que antecedem as passagens do livro são indicativos dos capítulos da obra. Como,inicialmente, estudaremos a carta-testamento de Manoel Perna e, depois, o relato do narrador-investigador-jornalista, a numeração dos capítulos não será apresentada em sequência lógica.3 Manoel Perna refere-se aos olhos de Buell Quain.

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Nóbrega pelo sr. Cildo Meireles (...). E nem mesmo o massacre da aldeia

de Cabeceira Grossa, que o dr. Buell talvez tivesse podido impedir se

ainda estivesse vivo e entre eles quando os fazendeiros prepararam a

emboscada um ano depois do seu suicídio. Nada me entristeceu tanto

quanto o fim do meu amigo, cuja memória decidi honrar. Eu o acolhi

quando chegou. Nada do que tenha pensado ou escrito pode me causar

rancor, nunca esperei nada em troca, porque sei que, no fundo, fui a

última pessoa com quem ele pôde contar. (NN, 2002, p. 10, 11)

(...)

No dia 9 de agosto daquele ano, cinco meses depois de ele ter chegado

a Carolina, uma comitiva de vinte índios entrou na cidade no final da

tarde. Traziam a triste notícia e, na bagagem, os objetos de uso pessoal

do dr. Buell, que eu mesmo recebi e contei, com lágrimas nos olhos: dois

livros de música, uma Bíblia, um par de sapatos, um par de chinelos, três

pijamas, seis camisas, duas gravatas, uma capa preta, uma toalha,

quatro lenços, dois pares de meias, um suspensório, dois ternos de brim,

dois ternos de casimira, duas cuecas e um envelope com fotografias. O

seu retrato não estava entre elas (...). Os índios não tocaram em nada.

Foram à minha casa sem parar nem falar com ninguém pelo caminho

— estavam com medo, achavam que pudessem ser incriminados —, o

que não impediu que a notícia logo se espalhasse, e em pouco tempo

uma pequena multidão de curiosos cercava a minha modesta morada.

Mandei chamar o professor Pessoa às pressas, que depois de ler uma

das cartas deixadas pelo infeliz, em inglês, acalmou os índios e garantiu

a todos que eles não tinham nenhuma responsabilidade na trágica

ocorrência. (NN, 2002, p. 11, 12)

Desde então eu o esperei, seja você quem for. Sabia que viria em busca

do que era seu, a carta que ele lhe escrevera antes de se matar e que, por

segurança, me desculpe, guardei comigo, desconfiado, já que não podia

compreender4 o que ali estava escrito — embora suspeitasse — nem

correr o risco de pedir ao professor Pessoa que me traduzisse aquelas

linhas. Foi a única que não remeti ao Rio de Janeiro. (...) Guardei

comigo esta única carta, para protegê-lo, e aos índios. Jurei que

ninguém além de você poria os olhos nela. Mandei-lhe um bilhete no

lugar da carta, um bilhete cifrado, é verdade, em código, que o professor

Pessoa me ajudou a redigir em inglês, sem saber a quem me dirigia ou

4 Manoel Perna não conhece a Língua Inglesa e, portanto, seria impossível para elecompreender o que estaria escrito na carta.

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com que objetivo, pensando que se tratava de um parente do morto, uma

vez que anteriormente já lhe pedira ajuda para escrever uma carta de

pêsames que decidira enviar à mãe. Nunca pude me certificar de que

você tenha recebido esse bilhete, ou que o tenha compreendido, já que

não veio atrás do que lhe pertencia. Faz anos que o espero, mas já não

posso me arriscar ou desafiar a morte. Este mês começam as chuvas.

Amanhã pego a balsa de volta para Carolina, mas antes deixo este

testamento para quando você vier. (NN, 2002, p. 12, 13)

Os fragmentos apresentados anteriormente fazem parte da primeira

carta-testamento escrita por Manoel Perna, amigo de Buell Quain,

antropólogo norte-americano, que chegou à cidade de Carolina, no

hidroavião Condor, em março de 1939, momento tido como grande

acontecimento e registrado em fotografias, como se pode ver a seguir:

(O Globo, 18 ago. 1939, Primeira Seção, 3-Nacional p.1. )

Segundo Manoel Perna, Buell Quain considerou a cidade morta e, cinco

meses depois de sua chegada, ninguém mais se lembrava do evento, exceto

Manoel Perna que jamais se esqueceu do amigo norte-americano:

3. Isto é para quando você vier. Foram apenas nove noites5. Se agi como

se ignorasse os motivos que o levaram ao suicídio foi para evitar o

inquérito. A polícia tomou conhecimento do caso e fez o inventário dos

fatos e do espólio a pedido dos americanos. Não me julgue mal. Não

teria podido responder a nada. O silêncio foi um peso que carreguei

durante anos, enquanto estive à sua espera. Já não posso me arriscar a

que tudo desapareça comigo. (NN, 2002, p. 24)

5 Manoel Perna e Buell Quain conviveram durante nove noites não seguidas cronologicamente.

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lobo

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Manoel Perna recebeu algumas correspondências destinadas a Buell

Quain, quando ele viajara para a selva e, conforme o combinado entre

ambos, Perna encaminhou as missivas ao antropólogo, mas afirma que, se

soubesse do conteúdo das cartas destinadas ao norte-americano, ele mesmo

teria as levado e, assim, trazido Buell Quain de volta para Carolina em

segurança. Segundo o engenheiro, uma das cartas enviadas para a aldeia era

de um dos destinatários das missivas deixadas por Buell Quain antes de ele

se matar:

Os índios disseram que ele passou a viver num estado de absorção

terrível depois de receber a última correspondência que eu havia

mandado pelo meu irmão, um retraimento desconhecido durante a sua

vida pregressa na aldeia. Foram as cartas que ele queimou na sua

última jornada de volta a Carolina e com as quais obteve o fogo e a luz

de que precisava para escrever as que deixou, chorando copiosamente,

antes de se suicidar no meio da noite. (NN, 2002, p. 25)

Segundo Buell Quain, as cartas que recebera traziam péssimas notícias

da família nos Estados Unidos, além de ele estar com uma doença

contagiosa e ter sido traído pela esposa com o irmão. Destaque-se que ele

tinha apenas uma irmã, o que é contraditório ao que o antropólogo informa.

Manoel Perna, em sua carta-testamento, alerta seu destinatário que:

6. Isto é para quando você vier e sentir o temor de continuar

procurando, mesmo já tendo ido longe demais. Ele6 deve ter lhe falado

dos portos que visitou, do que viu pelo mundo, sempre um pouco mais

além numa busca sem fim e circular, e do que trouxe para casa, não os

objetos que passaram a assombrar a mãe depois da sua morte, mas o

que lhe marcou os olhos para sempre, deixando-lhe aquela expressão

que ele tentava disfarçar em vão e que eu apreendi quando chegou a

Carolina na distração do seu cansaço, os olhos que traziam o que ele

tinha visto pelo mundo, a morte de um ladrão a chibatadas numa cidade

da Arábia, o terror de um menino operado pelo próprio pai, a entrega

dos que lhe pediam que os levasse com ele, para onde quer que fosse,

como se dele esperassem a salvação (NN, 2002, p. 42)

6 O pronome refere-se a Buell Quain.

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Na véspera da partida de Quain para a expedição, Manoel Perna

convidou-o para ir à sua casa. Seria a primeira das nove noites em que

conversariam:

8. Isto é para quando você vier. Se é que realmente quer saber. Ao

sairmos da festa, eu me adiantei e convidei o dr. Buell a passar em casa.

Ele mal me reconheceu. Perguntei se estava apreensivo com a partida

no dia seguinte. Tentou recusar o meu convite. Eu insisti. Aceitou por

cerimônia, por não dominar os códigos do lugar, por não saber quem eu

era. Estava cansado. Bebemos e conversamos. (...) Se faço as contas,

vejo que foram apenas nove noites. Mas foram como a vida toda. A

primeira, na véspera de sua partida para a aldeia. Depois, mais sete

durante a sua passagem por Carolina em maio e junho, quando vinha

à minha casa em busca de abrigo, e a última quando o acompanhei pelo

primeiro trecho de sua volta à aldeia, quando pernoitamos no mato,

debaixo do céu de estrelas. A última noite foi por minha conta. Ele não

havia requisitado a minha companhia, mas senti que devia acompanhá-lo

a cavalo, nem que fosse apenas no primeiro trecho do percurso, como

se de alguma maneira soubesse o que àquela altura não podia saber, que

nunca mais o veria. (NN, 2002, p. 46, 47)

Buell Quain contou a Manoel Perna sua viagem à ilha no Pacífico, onde

os índios são negros; o abandono da faculdade de zoologia para embarcar

atrás de seu sonho; a fase em que foi marinheiro numa viagem para Xangai;

a história de um chinês que queria sair de seu país e foi ajudado por ele a

embarcar clandestinamente em navio americano, mas acabou expulso no

primeiro porto, e os quatro meses que passou entre os índios Trumai, entre

agosto e novembro de 1938, até ser chamado de volta ao Rio de Janeiro,

em dezembro do mesmo ano.

O convívio de Buell Quain com os índios brasileiros havia sido

desagradável e conflituoso, segundo Manoel Perna:

10. Isto é para quando você vier. A ele, só restava observar, que em

princípio era a única razão da sua presença entre os Trumai. Quando

chegou aqui, estava cansado desse papel. Mas também tinha horror da

ideia de ser confundido com as culturas que observava. Me contou que,

entre os nativos com que convivera na sua ilha da Melanésia, não podia

haver pior desgraça para um rapaz do que ser acusado de espreitar as

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mulheres. Era um sinal de infantilidade: diziam dos que espreitavam

que não eram capazes de alcançar a satisfação sexual pelas vias de fato.

Ele estava cansado de observar, mas nada podia lhe causar maior

repulsa do que ter que viver como os índios, comer sua comida,

participar da vida cotidiana e dos rituais, fingindo ser um deles.

Sobre o comportamento dos índios, Buell Quain falou com Manoel

Perna sobre um garoto que

Nunca participava das lutas que os outros meninos organizavam. Como

não havia meninas adolescentes, os jogos sexuais aconteciam entre

meninos ou entre meninos e homens, quase sempre por iniciativa dos

primeiros, que os adultos não reprimiam. Observou que o órfão tinha

um interesse especial por esses jogos. Costumava procurar os homens

mais velhos, que não o rechaçavam. Não sei se esse menino também o

procurou e por isso me contava a história, mas outro garoto, logo depois

da primeira ereção, compareceu uma noite a casa do dr. Buell para se

vangloriar e certa vez chegou a copular com uma menina, sob os olhos

do antropólogo, de propósito, para se mostrar, sabendo que era

observado. 0 sexo assombrava a solidão do meu amigo. (NN, 2002, p.

55, 56)

12.Você quer saber o que o dr. Buell fez na aldeia. É provável que nada.

E se houvesse alguma coisa, não seria dos índios que você iria arrancar

uma resposta. Também não sei de nada. Mas posso imaginar, e você

também pode imaginar, como imaginei a cada vez que ele me contou as

suas histórias, pela intensidade da sua solidão, que na noite do suicídio

ele estivesse fugindo.

Quando voltou a Carolina, mais de dois meses depois de ter partido

com os índios e mais de dois meses antes de se matar, achava-se num

estado deplorável. Preferia se esconder. Disse que não confiava em

ninguém. Mas não podia desconfiar de mim, tanto que me procurou.

Devia se lembrar da primeira noite em que veio à minha casa, logo que

chegou à cidade, quando me falou dos Trumai. Chegou sujo e sem

sapatos. Estava envergonhado, intimidado pelos brancos que antes

havia desprezado e aos quais já não ousava se dirigir em português,

com medo de não conseguir se expressar. Eu só o ouvia.

(...)

Durante a sua estada em Carolina, vinha à minha casa no final da tarde

e conversávamos noite adentro. Muitas vezes não entendi o que dizia,

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mas ainda assim compreendia o que estava querendo dizer. Eu

imaginava. Ele só precisava conversar com alguém. Numa das vezes em

que me falou de suas viagens pelo mundo, perguntei aonde queria

chegar e ele me disse que estava em busca de um ponto de vista. Eu lhe

perguntei: “Para olhar o quê?”. Ele respondeu: “Um ponto de vista em

que eu já não esteja no campo de visão”.

(...)

O certo é que, ao deixar a aldeia pela última vez, ele estava fugindo. E

isso eu já lhe disse, mas repito, porque quero que guarde bem. Quando

muito, haverá um lugar para uma única causa e uma única imagem na

sua cabeça. (...) Via-se como um estrangeiro e, ao viajar, procurava

apenas voltar para dentro de si, de onde não estaria mais condenado a

se ver. Sua fuga foi resultado do seu fracasso. De certo modo, ele se

matou para sumir do seu campo de visão, para deixar de se ver. (NN,

2002, p. 110 a 112)

14. Isto é para quando você vier. Ele voltou a Carolina sem sapatos.

Queria passar o aniversário na cidade. Naquela noite, me falou de outra

ilha. Me disse que eu não podia imaginar. Eu já não tinha imaginado

antes, quando me falara da ilha onde havia passado dez meses entre os

nativos do Pacífico, já fazia quatro anos, do outro lado do mundo.

Agora, já não falava da mesma. Não era a ilha em que adormecera sob

as estrelas, embalado pelas histórias que um nativo lhe contava do

crepúsculo à aurora, ao longo de semanas ininterruptas. (NN, 2002, p.

114, 115)

Manoel Perna descreve as viagens de Quain desde os quinze anos,

destacando

Uma ilha que conheceu adulto. Falou de uma casa com vários quartos,

todos ocupados por amigos. Já não se expressava com tristeza nem com

alegria. E eu não saberia dizer que sentimentos guardava daquela

lembrança. Contou de uma tarde em que, voltando de uma caminhada

solitária na praia, onde abandonara os colegas, deparou com a casa

excepcionalmente vazia e um homem sentado na cozinha. E que, antes

de poder se apresentar, o estranho, saindo da sombra, sacou de uma

máquina fotográfica e registrou para sempre o espanto e o desconforto

do antropólogo recém-chegado de um passeio na praia, surpreendido

pelo desconhecido. Numa das noites em que veio à minha casa durante

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a sua passagem por Carolina, no final de maio, o dr. Buell confessou que

viera ao Brasil com a missão de contrariar a imagem revelada naquele

retrato. Como um desafio e uma aposta que fizera consigo mesmo.

Havia sido traído pelo intruso e sua câmera. Não podia admitir que

aquela fosse a sua imagem mais verdadeira: a expressão de espanto

diante do desconhecido. Havia sido pego de surpresa pelo fotógrafo,

antes de poder dizer qualquer coisa. E embora depois tenham se tornado

amigos, por muito tempo o estranho não conseguiria tirar outra foto

dele. Até irromper um dia em seu apartamento, sem avisar, decidido a

fotografá-lo de qualquer jeito, depois de ter sabido que ele estava de

partida para o Brasil. Queria uma lembrança do amigo antes de

embarcar para a selva da América do Sul. Eu só sei que esse estranho

era você. (NN, 2002, p. 116 a 117)

16. Isto é para quando você vier. (...) O que eu tenho a dizer só pode

fazer sentido junto com o que você já sabe. Também teria muito a lhe

perguntar. Sobre as lembranças que ele guardava da ilha a duas horas

da cidade, por exemplo. Ele me falou da casa na praia e eu procurei

imaginar, e foi assim que vi uma construção de madeira e vidro entre as

dunas na frente do mar e dois vultos numa janela do sótão ao cair de

uma tarde de chuva, depois da revelação que modificou para sempre a

vida de ambos. Só você pode saber do que estou falando. Só pode ter

sido na casa da praia que ele lhe falou dela pela primeira vez. Se não,

por que teria associado, bêbado, numa das noites em que me procurou

em Carolina, o mar e a chuva à decepção que infligia aos que o

amaram? Devem ter discutido sobre aquela mulher. Ele pensava que

você não soubesse dela. E foi quando se revelou a traição. Pois naquela

noite chuvosa você lhe disse não apenas que sabia de tudo, mas que

também estava envolvido com ela. E para ele foi um choque cujas

consequências você não podia imaginar. Tenho cá para mim que no

fundo nada pode surpreender quem se permite ouvir nos outros a

própria voz. Ele me falava de você sem me dizer o seu nome. Ele me

falava do homem que o havia traído. Mas, se isso puder ajudá-lo, saiba

que ele reconheceu a sua amizade. O que ele chamou de traição era no

fundo o que o atormentava nos seus próprios atos. Saiba que, de um

modo ou de outro, ele reconheceu que também o havia traído. (NN,

2002, p. 122)

(…)

O que ele não sabia até então é que você também estava envolvido com

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ela. Suponho quais foram as suas razões. Você pensava que assim ele a

abandonaria. Não queria perdê-lo. E ele sumiu. Quando você acordou,

a casa estava vazia.

(…)

O estranho é que havia me dito logo na primeira noite que não era

casado. Cheguei a achar que pudesse estar falando da própria esposa

quando falava dela, mas só até ele me contar de uma noite na cidade

quando, de volta para casa —para dizer a verdade, não falou em casa

mas em hotel —, a mulher que o acompanhava ficou tão perturbada

diante da visão de uma moça pequenina no vagão em que estavam —

uma moça que não chegou a vê-los entre os outros passageiros —,

enfim, ficou tão atordoada, que o obrigou a descer quatro estações antes

de chegarem ao destino e continuar a pé. (NN, 2002, p. 123 a 124)

Sobre a moça, Manoel Perna relata:

Ao chegar a Nova York, vinda do sul dos Estados Unidos para estudar

e vencer no mundo da música, a moça se hospedara inadvertidamente

num prostíbulo, agradecida à sorte por acreditar, na mais completa

ingenuidade, que era aceita numa pensão de moças. E foi ali que as

duas se conheceram, a sulista recém chegada e a veterana, que entre os

índios ele chamou de esposa nos seus últimos dias. Percebendo a

ingenuidade da sulista, ela se oferecera não só para lhe mostrar a

condução que devia pegar até a escola de música, mas também para

ser guardiã do seu dinheiro, e nem é preciso dizer que, ao dar por si, a

pobre moça entendeu ao mesmo tempo que a companheira de pensão

havia desaparecido com todas as suas economias e que o que acreditara

ser uma pensão era na realidade um prostíbulo. As duas nunca mais se

viram. Aquela que o dr. Buell chamava de mulher nunca podia ter

imaginado que reencontraria a outra numa cidade tão grande, até vê-la

no vagão do trem, como uma aparição, entre os outros passageiros. (NN,

2002, p. 123, 124)

Manoel Perna acompanhou Buell Quain no primeiro dia da volta dele

à aldeia. Durante a noite, o antropólogo se embriagou com cachaça e falou

sobre as estrelas consideradas pelos nativos de Fiji como fogueiras acesas

pelos índios que ficaram presos no céu. Quain contou a Perna que aguardava

a chegada de uma carta importante dos Estados Unidos e pediu ao amigo

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que a remetesse para a aldeia. Depois, ele começou a falar sobre suas

aventuras:

O dr. Buell também me falou de ter visto uma vez, em suas andanças

pelo Rio de Janeiro, entre a Lapa e o Catete, um templo de colunas em

cujo portão estava inscrita a frase: “Os vivos são sempre e cada vez

mais governados pelos mortos”. Perguntou se eu já tinha pensado

naquilo, se eu fazia ideia do que aquilo queria dizer. Perguntou se eu já

estivera no Rio de Janeiro durante o Carnaval. Estava cada vez mais

bêbado. Eu também não estava sóbrio. E nem sei tudo o que ouvi. (NN,

2002, p. 127)

Buell Quain contou a Manoel Perna que, ao chegar ao Rio de Janeiro,

no Carnaval de 1938, envolveu-se com uma mulher fantasiada de

enfermeira. Na manhã seguinte, ao acordar, ele encontrou, deitado em sua

cama, um negro forte e nu. O antropólogo estava muito doente e,

balbuciando para Manoel Perna disse “Toda morte é assassínio”, dormindo

em seguida. Perna esclarece ao destinatário de sua carta-testamento que

18. O que ele queria dizer era outra coisa. Não sei se você se dá conta

das consequências do que ele me contou, do que aquilo podia provocar

se chegasse aos ouvidos das autoridades. Imaginariam o pior, tudo seria

pretexto para concluir que ele teria cometido atos na aldeia que,

contrários à natureza humana, justificavam que os índios o matassem.

O mais fácil era perseguir os índios. Você não pode imaginar a

responsabilidade que ele me pôs nos ombros: por vias tortas, me deixou

a incumbência de fazer chegar às mãos dos destinatários as cartas que

escreveu à beira da morte, como os marinheiros que levavam a

correspondência dos mortos para terra firme, na história do navio

assombrado que me contou naquela noite. (NN, 2002, p. 130, 131)

Buell Quain escreveu algumas cartas que foram guardadas por Manoel

Perna, o qual se preocupava com o conteúdo delas e a possibilidade de se

extraviarem:

Entre as cartas que deixou, só estavam fechadas as que endereçara ao

pai, ao cunhado e a você. As outras não isentam apenas os índios de

toda responsabilidade; elas eximem o etnólogo da própria culpa e o

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põem acima de qualquer suspeita. O suicídio elimina não apenas a

hipótese do homicídio, mas os motivos de quem tivesse razões para

matá-lo, um pai ou uma mãe vingando o filho, um marido vingando a

mulher, irmãos vingando um irmão. (NN, 2002, p. 131, 132)

Não me resta outra opção. Decidi dar um fim a esta carta que lhe

pertence e cujo conteúdo desconheço, em parte por ignorância, em parte

por precaução (não podia pedir a ninguém que a traduzisse), e que até

agora tinha guardado com o único intuito de protegê-los, a ele e aos

índios, fazendo-a chegar intacta ao seu destinatário. Só podia entregá-la

em mãos. Foi a herança que ele me deixou. (NN, 2002, p. 132)

Isto é para quando você vier. É preciso que esteja preparado. (...) Depois

da morte dele, saí à procura dessa árvore, tentando compreender. Os

índios me levaram até o túmulo cercado de talos de buriti. Podia estar

diante de qualquer árvore. Tive que acreditar que havia sido ali. A

comprovação eu só teria se exumasse o cadáver com as próprias mãos.

Muita coisa não se pode desenterrar. Sozinho eu não tinha forças. (NN,

2002, p. 132, 133)

Para Manoel Perna, Buell Quain

Era um homem orgulhoso e eu sabia que iria até o fim. Mas eu não

podia interferir, ainda mais depois da nossa última conversa, depois da

última noite no mato. Talvez por já ter percebido a sua instabilidade,

decidi acompanhá-lo a cavalo durante o primeiro trecho do percurso

— mas só isso —, quando ele me disse o que hoje eu teria preferido não

ouvir, pois só pode aumentar o meu remorso e o arrependimento de tê-lo

deixado seguir em frente. Tente me entender. A consciência que ele me

deu sobre o seu estado foi também o que me impediu de intervir. A minha

ação teria sido uma ofensa e uma traição. Seria como tornar real o

fantasma do homicídio que o assombrava. O que ele me contou era para

eu guardar como se não tivesse ouvido. E foi o que fiz. Era a minha

herança. Peço que procure me entender e me perdoar assim como

entendi que você não podia imaginar os efeitos que a sua última carta

teria sobre um homem naquele estado de solidão e desamparo.

O que lhe conto é uma combinação do que ele me contou e do que

imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe

contar ou escrever. (NN, 2002, p. 133, 134)

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2.2. RELATO DO NARRADOR-INVESTIGADOR-JORNA -LISTA

O segundo relato presente no romance Nove Noites, envolvendo a

história de Buell Quain, é redigido pelo narrador-investigador-jornalista,

que o inicia explicando o motivo de ter se dedicado à pesquisa em torno do

antropólogo norte-americano:

2. Ninguém nunca me perguntou. E por isso também nunca precisei

responder. Não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar nele, mas a

verdade é que não fazia a menor ideia de quem ele era até ler o nome

de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal7, na manhã de 12

de maio de 2001, um sábado, quase sessenta e dois anos depois da sua

morte às vésperas da Segunda Guerra. O artigo saiu meses antes de

outra guerra ser deflagrada. Hoje as guerras parecem mais pontuais,

quando no fundo são permanentes. Li várias vezes o mesmo parágrafo

e repeti o nome em voz alta para me certificar de que não estava

sonhando, até entender — ou confirmar, já não sei — que o tinha ouvido

antes. O artigo tratava das cartas de outro antropólogo, que também

havia morrido entre os índios do Brasil, em circunstâncias ainda hoje

debatidas pela academia, e citava de passagem, em uma única frase,

por analogia, o caso de “Buell Quain, que se suicidou entre os índios

krahô, em agosto de 1939”.

Procurei a antropóloga que havia escrito o artigo. A princípio, foi seca

no telefone. Deve ter achado estranho que alguém lhe telefonasse por

causa de um detalhe do texto, mas não disse nada. Trocamos alguns

e-mails, que serviram como uma aproximação gradual. (NN, 2002, p.

13, 14)

Assim, o narrador-investigador-jornalista começou a reunir dados

espalhados pelo Brasil e Estados Unidos, fez alguns contatos e iniciou a

montagem da elucidação do que seria um grande mistério. Segundo ele,

Buell Quain se matou na noite de 2 de agosto de 1939 — no mesmo dia

em que Albert Einstein enviou ao presidente Roosevelt a carta histórica

em que alertava sobre a possibilidade da bomba atômica, três semanas

antes da assinatura do pacto de não agressão entre Hitler e Stalin, o

7 O artigo foi escrito por Mariza Corrêa e encontra-se no apêndice deste trabalho.

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sinal verde para o início da Segunda Guerra e, para muitos, uma das

maiores desilusões políticas do século XX.

(...)

Quando se matou, tentava voltar a pé da aldeia de Cabeceira Grossa

para Carolina, na fronteira do Maranhão com o que na época ainda

fazia parte de Goiás e hoje pertence ao estado do Tocantins. Tinha vinte

e sete anos. Deixou pelo menos sete cartas, que escreveu, aos prantos,

nas últimas horas que precederam o suicídio. Queria deixar o mundo em

ordem, a julgar pelo conteúdo das quatro a que tive acesso, endereçadas

a sua orientadora, Ruth Benedict, da Universidade Columbia, em Nova

York; a dona Heloísa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional, no

Rio de Janeiro; a Manoel Perna, um engenheiro de Carolina de quem

se tornara amigo, e ao capitão Ângelo Sampaio, delegado de polícia da

cidade. Queria isentar os índios de qualquer culpa, constituir seus

executores testamentários e instruí-los sobre a disposição de seus bens.

São cartas em que dá instruções aos vivos sobre como proceder depois

da sua morte. Entre as que não consegui encontrar, no entanto, sei que

havia pelo menos uma endereçada ao pai médico, dr. Eric P. Quain,

recém-divorciado e hospedado no Annex Hotel, em Bismarck, na Dakota

do Norte; outra ao reverendo Thomas Young, missionário americano

instalado com a mulher em Taunay, em Mato Grosso, e uma terceira ao

cunhado Charles C. Kaiser, marido de sua irmã, Marion. (NN, 2002, p.

15, 16)

Buell Quain chegou ao Brasil em fevereiro de 1938, para estudar os

índios Karajá, expedição que foi realizada por William Lipkind e esposa. Em

1939, quando o antropólogo se suicidou, alguns colegas da Universidade

Columbia acreditavam que ele teria vindo ao Brasil para se matar, enquanto

outros amigos levantavam a hipótese de ele ter sido assassinado.

A pesquisa de Quain, no entanto, volta-se para os índios Trumai, que

viviam praticamente inacessíveis, no alto Xingu, e em vias de extinção. Por

problemas com o Estado Novo, o antropólogo norte-americano interrompeu

sua pesquisa e voltou, abalado, ao Rio de Janeiro. O retorno dele coincidiu

com a chegada de Charles Wagley e a vinda de Ruth Landes para estudar os

negros e o candomblé da Bahia, todos alunos de Ruth Benedict.

Buell Halvor Quain nasceu em 31 de maio de 1912, às 11h53 da noite,

no hospital de Bismarck, capital da Dakota do Norte. Seu pai chamava-se

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Eric P. Quain, nascido na Suécia, médico-cirurgião, formado em 1898 e, a

mãe, Fannie Dunn Quain, foi a primeira mulher a obter diploma em

medicina em Dakota do Norte, Estados Unidos, mas abandonou a profissão

para se dedicar à família.

Pouco antes do suicídio de Buell Quain, seus pais se separaram. O

antropólogo chegou a mencionar em suas cartas as questões familiares que

o obrigavam a interromper suas pesquisas sobre os índios e voltar aos

Estados Unidos. Mas, em carta a dona Heloísa, o antropólogo escreveu:

“Prezada dona Heloísa,

“Estou morrendo de uma doença contagiosa. A senhora receberá esta

carta depois da minha morte. A carta deve ser desinfetada. Pedi que as

minhas notas e o gravador (me desculpe, sem nenhuma gravação)

fossem enviados ao Museu. Por favor, remeta as notas para Columbia.

“Não pense o pior de mim. Apreciei a sua amizade. Mas não posso

terminar o catálogo da coleção que os índios vão encaixotar e lhe

enviar. Pedi que dois contos lhe fossem remetidos por conta do meu

fracasso. No entanto, se a senhora receber alguma peça da coleção, por

favor, lembre-se dos índios e mande o que achar adequado para Manoel

Perna, de Carolina. “Espero que Lipkind e Wagley cumpram com as

suas expectativas.

“Sinceramente,

“Buell Quain (NN, 2002, p. 22, 23)

Porém, os índios João e Ismael, que acompanharam o antropólogo em

sua última viagem pelo Brasil, contaram a Manoel Perna que Buell Quain

não apresentava sintoma de doença alguma, apenas parecia perturbado

psicologicamente. O narrador-investigador-jornalista não se convence das

explicações apresentadas e afirma:

4. Ninguém nunca me perguntou, e por isso também não precisei

responder. Todo mundo quer saber o que sabem os suicidas. No início,

deixei-me levar pela suposição fácil de que aquela só podia ter sido uma

morte passional e concentrei a minha busca nesses vestígios. Devia

haver outra pessoa envolvida. Ninguém pode estar totalmente só no

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mundo. Tinha que haver uma carta em que ele revelasse os seus desejos

e sentimentos. Na manhã de 8 de março de 1939, enquanto esperava as

mulas e os mantimentos para a caminhada de seis dias até a aldeia de

Cabeceira Grossa, Quain aproveitou para pôr em dia a

correspondência, sentado à máquina de escrever. Pretendia isolar-se na

aldeia por um período inicial de três meses. Não podia contar com a

eventual ida de um mensageiro ou portador nesse meio-tempo. Não

pensava em voltar a Carolina antes de junho. Li três dessas cartas. A

mais longa era endereçada a Ruth Landes, sua colega de Columbia que

estava no Brasil estudando o candomblé. Nas outras duas, ele se dirigia

a dona Heloísa e à assistente dela, Maria Júlia Pourchet, que conhecera

ao passar pelo Rio de Janeiro. Na carta para a diretora do Museu

Nacional, Quain tratava de questões práticas, de seu registro junto à

polícia de São Luís, de remessas de dinheiro e dos gastos com os

presentes para os índios. A Maria Júlia Pourchet, ele descrevia, com

mesuras, as primeiras impressões de Carolina.

Eu não soube da existência dessa carta até me aconselharem a procurar

uma professora de antropologia da Universidade de São Paulo cuja tia,

também antropóloga e falecida, teria visitado a mãe de Quain, nos

Estados Unidos, em 1940, pouco depois da morte do etnólogo. (NN,

2002, p. 27).

Destaque-se que para Buell Quain, conforme escreveu em carta para

sua colega Ruth Landes, Carolina era um lugar tedioso, repleto de

analfabetos e intelectuais afetados, com os quais ele teve contato numa

homenagem a Humberto de Campos.

5. O narrador-investigador-jornalista partiu para suas pesquisas sobre o

caso Buell Quain e, em Niterói, foi recebido pelo professor Luiz de Castro

Faria, o qual o intrigou com a apresentação de uma fotografia em que

estavam presentes dona Heloísa Alberto Torres, Charles Wagley, Raimundo

Lopes, Edson Carneiro, Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes e o próprio Luiz

de Castro Faria:

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(NN, 2002, p. 31)

Todos os fotografados conheceram Buell Quain e alguns de seus

segredos e, segundo Castro Faria, eles não teriam se abalado com o suicídio

do antropólogo, salvo a preocupação de dona Heloísa por ter sido a

responsável pelas pesquisas dele. Ainda em conversa com Castro Faria, o

narrador-investigador-jornalista soube que Buell Quain era muito rico e o

dinheiro incomodava-o, tendo chegado a doar uma quantia em segredo a

Charles Wagley, como se fosse uma bolsa de estudos.

Segundo Castro Faria, Buell Quain não queria ser identificado como

rico e não tinha esposa, porque, se fosse casado, a teria levado com ele na

expedição, comportamento comum aos pesquisadores da cultura indígena,

mas acreditava na instabilidade emocional de Buell Quain em decorrência

de um possível divórcio.

O narrador-investigador-jornalista soube que os pais de Quain eram

médicos bem-sucedidos no Meio-Oeste dos Estados Unidos, mas não

pareciam milionários, e que Buell Quain acreditava ter contraído sífilis,

resultado de uma aventura com uma moça, durante o Carnaval no Rio de

Janeiro. Segundo informações colhidas pelo narrador-investigador-jorna -

lista, Claude Lévi-Strauss teria aconselhado o antropólogo norte-americano

a voltar para o Rio de Janeiro e tratar-se da sífilis. No entanto, após o

suicídio de Quain, houve rumores de que ele teria lepra.

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Segundo Castro Faria, um problema intenso que havia naquela época

era a atividade dos antropólogos ser cerceada pelo Estado Novo:

7. A situação dos estrangeiros no Brasil do Estado Novo era delicada.

A impressão era que estavam sob vigilância permanente. Dos jovens

antropólogos de Columbia que trabalhavam no país no final dos anos

30, Ruth Landes foi provavelmente a que mais sentiu na pele o clima de

ignorância e o horror, uma vez que estava envolvida pessoal e

profissionalmente com os intelectuais baianos perseguidos, presos e

intimidados pelo regime sob a acusação de serem comunistas. Foram

eles que facilitaram o seu acesso aos rituais de candomblé, objeto da

sua pesquisa. A correspondência dela com Ruth Benedict é reveladora.

Numa carta de maio de 1938, Landes menciona à orientadora ter

recebido “notícias pesarosas” de Quain — que estava retido em Cuiabá

com uma infecção no ouvido — mas que ele próprio revelaria mais

detalhes a Benedict em carta a ser remetida pela Bolívia por razões de

segurança. Landes se desculpa pela linguagem “um tanto canhestra”,

explicando que é obrigada a escrever dessa maneira também por razões

de segurança. (NN, 2002, p. 43)

Além disso, a situação dos antropólogos no Brasil era agravada por

doenças tropicais:

9. Em carta de 1.º de novembro de 1940 a Heloísa Alberto Torres, a mãe

de Quain conta a história dos missionários do rio Coliseu. À falta de

quinino, e com os homens morrendo de malária, os americanos

começaram a rezar. “Foi quando viram um homem com a cabeça

raspada, calças esfarrapadas e uma velha jaqueta vindo do rio na sua

direção. Acharam que fosse um prisioneiro em fuga, até que ele lhes

sorriu.” No delírio do seu pesadelo, devem ter visto um condenado com

correntes nos pés e nas mãos, saindo de dentro de algum pântano da

Louisiana ou do Mississippi. Ou pelo menos foi assim que imaginei as

visões febris e apavoradas dos pobres missionários quando li a carta da

mãe do etnólogo. Segundo ela, Quain lhes teria dado um novo remédio,

que, como por milagre, logo os tirou daquele estado — o que, aos olhos

dessa gente, fez dele naturalmente uma espécie de salvador enviado em

resposta às preces e à fé dos desesperados. O jovem antropólogo teria

obtido o medicamento e por sorte o incluíra na sua bagagem depois de

a mãe ter lido um artigo numa revista médica e lhe mandado o recorte

para o Rio de Janeiro. (NN, 2002, p. 49, 50)

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Buell Quain passou três semanas com os missionários em meio a um

clima de medo, principalmente por parte dos Trumai, que estavam em

extinção e temiam o ataque de outras tribos. O antropólogo, porém, preferiu

permanecer entre os Trumai e o convívio deles foi difícil em decorrência

do choque de culturas. A integração levou dois meses.

Duas situações complicadas vividas por Quain quase desencadearam

um conflito social: o antropólogo se indispôs com duas crianças Trumai:

bateu na mão de um menino que lhe roubava a farinha e, em outra ocasião,

Quain, sem querer, pisou no pé de outro garoto. Outro problema vivido pelo

antropólogo era a aproximação das mulheres indígenas, as quais eram

afastadas por Quain que as ameaçava de estupro, gerando gargalhadas das

índias.

Continuando a investigação, o narrador soube que

11. De volta a Cuiabá, Buell Quain sofreu um ataque de malária.

Enquanto convalescia, escreveu a Ruth Benedict o relato da sua

convivência com os Trumai: “Toda morte é assassínio. Ninguém espera

passar da próxima estação das chuvas. Não é raro haver ataques

imaginários. Os homens se juntam aterrorizados no centro da aldeia —

o lugar mais exposto de todos — e esperam ser alvejados por flechas

que virão da mata escura”.

Ninguém nunca me8 perguntou, e por isso nunca precisei responder que

a representação do inferno, tal como a imagino, também fica, ou ficava,

no Xingu da minha infância. (NN, 2002, p. 60)

A partir desse momento, o narrador-investigador-jornalista começou a

relatar sua aventura pelo ambiente desagradável do Xingu em companhia do

pai, imprudente a ponto de pilotar à noite sem ter autorização e ser preso ao

aterrissar em uma propriedade, despertando a suspeita de um ataque

terrorista.

A primeira vez que o narrador-investigador-jornalista teve contato com

a selva foi em 1967, ocasião em que seu pai procurava uma fazenda para

comprar, valendo-se dos incentivos financeiros da época do Estado Novo

para o desenvolvimento da Amazônia, com a distribuição de subsídios para

a implantação do projeto agropecuário a partir de 1970.

8 Observe que o narrador-investigador-jornalista apresenta sua opinião sobre o Xingu e suarelação com o local na infância.

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Em uma das viagens ao Xingu, o narrador-investigador-jornalista e seu

pai se hospedaram em um hotel, onde havia atores gravando uma fotono -

vela. O pai apresentou a todos o narrador-investigador-jornalista como

bisneto do marechal Rondon por parte de mãe, constrangendo o garoto. Em

outra ocasião, o pai do narrador-investigador-jornalista levantou voo com os

vidros do avião embaçados e sofreu um acidente juntamente com o filho.

Socorridos pelo administrador de uma fazenda, depois de alimentados e

cuidados, ambos foram levados até um local onde tomariam um táxi-aéreo:

No dia em que acordei, a manchete dos jornais era a tragédia de um

avião da Varig9 que se incendiara misteriosamente na rota de descida

para Orly, matando boa parte dos tripulantes e todos os passageiros, à

exceção de um. O jornal trazia as fotos das celebridades mortas. E de

alguma forma associei a grande tragédia ao nosso pequeno acidente,

como se houvesse alguma conexão incompreensível entre os dois. O

Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem

do inferno. Não entendia o que dera na cabeça dos índios para se

instalarem lá, o que me parecia de uma burrice incrível, se não um

masoquismo e mesmo uma espécie de suicídio. (NN, 2002, p. 72,73)

Prosseguindo na pesquisa sobre o que teria levado Buell Quain ao

suicídio, o narrador-investigador-jornalista buscou por informações sobre

os índios Krahô:

Comecei a procurar informações sobre os Krahô pouco depois de ter

lido pela primeira vez sobre o suicídio de Quain no artigo de jornal. Na

madrugada de 25 de agosto de 1940, um domingo, um ano depois do

suicídio do etnólogo, a aldeia em que havia passado os seus últimos

meses sofreu um ataque de onze homens armados com rifles, sob o

comando de dois fazendeiros, José Santiago e João Gomes, do

município de Pedro Afonso, na época pertencente ao estado de Goiás,

9 No dia 11 de julho de 1973, um Boeing 707-345C da Varig, voo RG-820, vindo do AeroportoAntônio Carlos Jobim (Rio de Janeiro), pousou em chamas em uma plantação próxima aoaeroporto de Orly (França). Embora a manobra dos pilotos tenha sido perfeita, apenassobreviveram dez tripulantes e um passageiro no acidente, em decorrência do incêndio quehavia se instalado dentro da aeronave, desencadeando intoxicação por monóxido de carbonoe ácido cianídrico. Segundo investigações, o incêndio foi provocado por uma ponta de cigarroacesa jogada no banheiro do avião. As máscaras não puderam ser usadas pelos passageiros, poiso oxigênio intensificaria o fogo. Várias celebridades estavam a bordo, como, por exemplo, ocantor Agostinho dos Santos.

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que arquitetaram a emboscada com minúcias de traição e perversidade,

como vingança, para dar uma lição aos índios que roubavam seu gado.

No cômputo final da chacina, que também teve por alvo outra aldeia,

morreram vinte e seis índios, entre homens, mulheres e crianças. (NN,

2002, p.73)

Ao serem os índios atacados, o chefe da aldeia Luís Balbino tentou

dialogar com os fazendeiros, mas foi assassinado também. Os mandantes do

massacre foram condenados, mas cumpriram a sentença em liberdade

condicional.

O narrador-investigador-jornalista marcou um encontro com um casal

de antropólogos de São Paulo e, por meio deles, soube da existência de João

Canuto Ropkà, já idoso, um dos dois índios que acompanhou o antropólogo

Buell Quain na noite de seu suicídio:

No tempo em que viveram entre os Krahô, os dois antropólogos mais

de uma vez foram abordados pelo velho João Canuto Ropkà, a lhes

perguntar se não tinham ouvido falar do dr. Quain Buele, o etnólogo

americano cuja morte ele havia presenciado. (...) Para o velho, era

incrível que brancos não soubessem quem tinha sido o dr. Quain Buele,

me disse o casal de antropólogos quando nos encontramos, numa sala

repleta de pilhas de papéis, arquivos e de mapas com demarcações de

terras indígenas espalhados pelas paredes.

Àquela altura, eu já estava completamente obcecado, não conseguia

pensar em outra coisa, e como todos os que eu havia procurado antes,

eles também não quiseram saber por quê. Ninguém me perguntava a

razão. Eu dizia que queria escrever um romance.

(...) O antropólogo me disse que, por coincidência, estava com uma

viagem marcada para Carolina. (...) Tinha prometido aos Krahô levar

o filho mais velho para a aldeia quando acabasse a reunião em

Carolina. (...) Por uma estranha coincidência, já que a assembleia

timbira acabou sendo marcada para os dias 31 de julho e 1.º de agosto,

a nossa ida para a aldeia teria que ficar para 2 de agosto, o mesmo dia

em que Buell Quain se suicidara, sessenta e dois anos antes, quando

tentava fazer o caminho inverso. O antropólogo e o filho já estavam

havia alguns dias em Carolina quando cheguei (...)

Carolina é um lugar morto, como disse Quain ao desembarcar ali pela

primeira vez, mas que tem a sua graça, ainda mais hoje, por ser

resultado de uma tranquila decadência e abandono, como se tudo

tivesse parado e sido preservado no tempo. (...) Quando o rio, caudaloso

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mesmo na estiagem, se abriu à nossa frente, conforme descíamos para

pegar a balsa, e eu pude ver o pequeno porto na margem oposta e o

estaleiro Pipes, imediatamente tomado por uma sensação sinistra de

reconhecimento, como se eu já tivesse avistado aquela paisagem antes.

Era exatamente o mesmo cenário de fundo que eu tinha visto na foto da

chegada de Quain à cidade, publicada na primeira página da edição

de 18 de agosto de 1939 d’O Globo10, que noticiava com algum atraso

a morte do etnólogo: “Flagrantes sensacionais do cientista suicida nas

selvas do Brasil”. (NN, 2002, p.75, 76)

O narrador-investigador-jornalista encontrou-se com velho Diniz, o

qual, de imediato, pediu um gravador de presente, que poderia ser comprado

em São Paulo e enviado para ele pelo correio. Muito discretamente, o

10

(O Globo, 18 ago. 1939, Primeira Seção, 3-Nacional p.1. )

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narrador-investigador-jornalista perguntou sobre Buell Quain ao índio e

descobriu que o norte-americano fora apelidado como “Cãmtwýon” pelo

índio Craviro.

Luís Balbino era o chefe indígena que levou Buell Quain até a aldeia e

hospedou-o na casa de Mundico, um dos índios que falavam melhor a língua

portuguesa. Nessa época, Diniz era apenas um menino que observava Buell

Quain, o qual não comia com os índios nem aceitava a comida deles, fumava

e escrevia muito. Segundo Diniz, Quain enlouquecera depois de ter recebido

cartas e, por isso, suicidou-se, no entanto, havia muitas contradições no

relato do velho Diniz em comparação com o que o narrador-investigador-

jornalista já apurara sobre o norte-americano.

João Canuto contou que, ao voltar para o acampamento, encontrou

Quain todo cortado com navalha e ensanguentado e, ao perguntar-lhe o

motivo de se machucar, ouviu do antropólogo que ele precisava amenizar

o sofrimento, extinguir a sua dor cruciante (NN, 2002, p. 84). João Canuto

saiu em busca de ajuda e, quando retornou na manhã seguinte, juntamente

com o fazendeiro Balduíno e outros vaqueiros, encontrou Buell Quain

dependurado numa árvore, sendo ali mesmo enterrado, conforme ele havia

pedido.

Nenhuma autoridade jamais foi ao local, o corpo de Quain não foi

exumado e não houve inquérito, sendo os processos, anteriores ao ano de

1980, queimados. Quain deixou sua herança para a irmã Marion, a qual

pediu a Ruth Benedict que empregasse o dinheiro na pesquisa antropológica,

de acordo com o desejo do irmão.

O narrador-investigador-jornalista seguiu rumo ao local em que Quain

teria sido enterrado:

Viajamos durante cinco horas pelo cerrado, atravessando rios e areais.

A certa altura, a trilha de terra começa a seguir paralela ao rio

Vermelho, que no final é preciso cruzar a pé, com água acima da cintura

e as malas na cabeça. Mas aí já estávamos a quinhentos metros da

aldeia Nova. A aldeia inteira nos esperava na margem do rio. Ouviram

o barulho do carro. Os índios ouvem tudo. O rio Vermelho é verde. Os

índios costumavam beber aquelas águas, pescar e se banhar nelas, até

o dia em que começaram a cair doentes, um depois do outro, e foram

morrendo sem explicação. (NN, 2002, p. 89)

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Hospedado na aldeia, o narrador-investigador-jornalista não suportava

o cheiro do local, a comida, o choro das crianças, os roncos e os sons de

intimidade sexual. Ao descobrir que passaria por uma espécie de batismo,

o narrador-investigador-jornalista recusou-se em participar de cerimônias,

principalmente de seu batismo, mas não conseguiu fugir à pintura do corpo

e à colaboração na busca das toras para o revezamento, embora não tenha

conseguido erguê-las do chão.

Ao retornar a São Paulo, o narrador-investigador-jornalista começou a

receber telefonemas dos índios pedindo presentes e dinheiro.

13. A saída de Buell Quain da aldeia pela última vez lembra uma fuga.

Sua caminhada pela mata acompanhado de dois rapazes que havia

contratado para guiá-lo até Carolina se parece com uma luta contra o

tempo ou contra alguma coisa no seu encalço. Se estava realmente

louco, e a despeito do clichê psicológico, era então uma fuga de si

mesmo, do duplo que o mataria na eventualidade de uma nova crise,

que se aproximava. Deve ter sentido a iminência de uma nova crise e

decidido ir embora antes que fosse tarde demais. Na solidão, vivia

acompanhado dos seus fantasmas, via a si mesmo como a um outro de

quem tentava se livrar.

(...) Para mim, a resposta só podia estar numa das cartas que escreveu

antes de morrer, as quais desapareceram com os seus destinatários. (...)

Foi quando comecei a acalentar a suposição de que devia haver (ou ter

havido) uma oitava carta.

Cada um lê os poemas como pode e neles entende o que quer, aplica o

sentido dos versos à sua própria experiência acumulada até o momento

em que os lê. Num fim de semana na praia, durante uma noite de

insônia, semanas depois de começar a investigar a morte de Quain, e o

mistério que a meu ver tinha ficado adormecido por sessenta e dois

anos, abri ao acaso uma antologia do Drummond na página da “Elegia

1938”:

“Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,/ onde as formas e as

ações não encerram nenhum exemplo./ Praticas laboriosamente os

gestos universais,/ sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo

sexual./ [...] Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/

e adiar para outro século a felicidade coletiva./ Aceitas a chuva, a

guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes,

sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”. (NN, 2002, p. 112 a 114)

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Segundo o narrador-investigador-jornalista,

15. Em outubro de 1939, aos sessenta e cinco anos, Fannie Quain

mandou três fotos do filho para Heloísa Alberto Torres. A maior delas

tinha sido feita num estúdio de Minneapolis, em 1935, antes de ele ir

para Fiji. Os outros dois retratos, um de perfil e o outro de frente, foram

tirados em 1937, quando Buell Quain estava trabalhando no seu

apartamento, em Nova York, provavelmente nos últimos retoques dos

dois livros sobre Fiji que seriam publicados após a morte dele, graças

aos esforços de sua mãe e de Ruth Benedict.

“Um amigo, um artista de Nova York que tinha como hobby esse tipo de

coisas, fez Buell prometer que um dia o deixaria fotografá-lo. O amigo

se cansou de esperar e foi ao apartamento de Buell sem lhe dar a chance

de se barbear ou trocar de roupa”, esclarecia a mãe, sempre tão zelosa

da imagem do filho. Foram esses os retratos que o etnólogo trouxe para

o Brasil e aqui deixou como lembrança, nas mãos de quem o conheceu.

(NN, 2002, p. 117)

Buell Quain chegou ao Brasil em 1938, hospedou-se numa pensão na

rua do Riachuelo, na Lapa carioca, bairro conhecido pela prostituição. Nesse

ano, Carmen Miranda ganhava a fama com o filme “Banana da terra” e,

nesse mesmo Carnaval,

(...) um dos principais personagens da mitologia local, expoente da

malandragem, do crime e da homossexualidade do bairro, ganhou o

concurso do baile do teatro República, próximo à praça Tiradentes, com

uma fantasia de lantejoulas inspirada num morcego do Nordeste, de

onde vinha, e daí em diante passou a ser chamado Madame Satã, por

associação ao filme homônimo de Cecil B. DeMille. (NN, 2002, p. 121)

Em fevereiro de 1947, Bernard Mishkin encontrou-se com o

antropólogo franco-suíço Alfred Métraux, e declarou sobre Buell Quain,

falecido há oito anos, que

“Filho de pai alcoólatra, mas rico, e de mãe neurótica e dominadora.

Obriga-se à homossexualidade com negros, dos quais ele tem horror.

Garoto de talento, poeta”. Métraux não se conteve em suas notas:

“Como caluniador, não há ninguém melhor do que Mishkin”. (NN,

2002, p. 130)

NOVE NOITES

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BERNARDO TEIXEIRA DE CARVALHO

130

Manoel Perna faleceu em 1946, vítima de afogamento no rio Tocantins,

ao tentar salvar a neta e,

19. (...) deixou sete filhos, três homens e quatro mulheres. (...) Os dois

filhos mais velhos, que me garantiram que ele não deixou nenhum papel

ou testamento, nenhuma palavra sobre Buell Quain. (...) Francisco era

um menino quando o antropólogo frequentou a casa do pai: “Ele era

alto, vermelho e muito querido. Era amigo do meu pai. Era muito calmo

e educado. Foi uma surpresa o seu suicídio”. A filha mais velha,

Raimunda Perna Coelho, também se lembra do etnólogo, das vezes em

que ele visitava o pai em Carolina: “Eles conversavam muito. Ou saíam

a cavalo”. (...) Pedi que me dissesse o que sabia sobre a morte de

Quain: “Ele não quis mais comer desde que recebeu as últimas cartas

de casa. E disse aos índios que havia sido abandonado pela mulher, que

ela o teria traído com o cunhado. Que ela lhe teria desobedecido, indo

trabalhar num jornal da América do Norte. Antes de morrer, para poder

escrever as últimas cartas, queimou tudo, roupas e papéis, já que não

tinha luz. (...) O etnólogo chegou a atribuir o seu suicídio às dificuldades

da família. Nesse caso, era possível que, aos seus olhos perturbados, o

cunhado o tivesse “traído” simplesmente por deixar a irmã e a sobrinha

em má situação financeira, embora Marion Kaiser tenha negado

qualquer dificuldade, não sem uma ponta de orgulho ferido, na carta

que escreveu a Ruth Benedict depois do suicídio do irmão. Manoel

Perna não deixou nenhum testamento, e eu imaginei a oitava carta. (NN,

2002, p. 134. 135)

O pai do narrador-investigador-jornalista teve muitas mulheres, dinhei -

ro, mas era um inconsequente e morreu solitário numa unidade semi-inten -

siva, vítima do mal de Creutzfeld-Jakob11. Ao lado do leito do pai, havia um11 O mal de Creutzfeldt-Jakob (DCJ) é uma doença neurodegenerativa, caracterizada porprovocar uma desordem cerebral com perda de memória e tremores. É de rápida evolução e,de forma inevitável, leva à morte do paciente. A doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ) é um tipode Encefalopatia Espongiforme Transmissível (EET) que acomete os humanos. As EETs sãochamadas assim por causa do seu poder de transmissibilidade e suas característicasneuropatológicas que provocam alterações espongiformes no cérebro das pessoas (aspectosesponjosos). Assim como outras (EETs), a Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ) é caracterizadapor uma alteração espongiforme visualizada ao exame microscópico do cérebro. A causa etransmissão dessa doença estão ligadas a uma partícula proteinácea infectante denominada de“PRÍON” (do inglês Proteinaceous Infections Particles). Os príons são agentes infecciosos detamanho menor que os dos vírus, formados apenas por proteínas altamente estáveis e resistentesa diversos processos físico-químicos. Os primeiros casos dessa doença – a forma VDCJ –surgiram no Reino Unido em 1996 e, diferentemente da forma tradicional (DCJ esporádica),

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americano de oitenta anos, em seus últimos dias de vida, sem nenhum

familiar, embora o hospital tivesse procurado seu filho, mas encontraram

dificuldade em localizá-lo. O americano parecia esperar a chegada de uma

visita que não aparecia nunca e sua única companhia era a de um rapaz que

sempre vinha ler, em inglês, para ele.

Enquanto acompanhava a agonia do pai, o narrador-investigador-

jornalista, aproximou-se do leito do americano:

Abri as cortinas e perguntei de novo se precisava de alguma coisa. E ele

repetiu o nome. Me chamava “Bill”, ou pelo menos foi isso que entendi.

Tentava estender o braço na minha direção. Segurei a mão dele. Ele

apertou a minha com a força que lhe restava e começou a falar em

inglês, com esforço, mas ao mesmo tempo num tom de voz de quem está

feliz e admirado de rever um amigo: “Quem diria? Bill Cohen! Até que

enfim! Rapaz, você não sabe há quanto tempo estou esperando”. (NN,

2002, p. 146)

Com a chegada da irmã para tomar conta do pai, o narrador-

investigador-jornalista partiu para Paris, onde ficou por três anos. Ao

regressar a São Paulo, leu um artigo da antropóloga Mariza Corrêa, no qual

havia uma referência a Buell Quain, lembrou-se do nome falado pelo

americano moribundo, pouco antes de morrer, e associou-o ao nome do

antropólogo citado no artigo de Mariza Corrêa: Buell Quain e Bill Cohen.

O narrador-investigador-jornalista, então, contatou o rapaz que lia para

o americano no hospital, a fim de obter informações sobre o idoso e ficou

sabendo que o americano se chamava Andrew Parsons, um fotógrafo

chegado ao Brasil por volta de 1940.

Andrew Parsons só tinha um filho nos Estados Unidos, o qual veio ao

Brasil para os procedimentos legais e herdar do pai apenas uma mala com

fotografias e papéis velhos:

acomete, predominantemente, pessoas jovens, abaixo dos 30 anos. Com características clínicase patológicas diferentes da DCJ, também apresenta um perfil genético particular do gene daproteína priônica. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a definição de um casosuspeito da doença se baseia nas análises dos exames, sinais e sintomas e históriaepidemiológica do paciente. Desta forma, o caso pode ser definido como possível, provável edefinitivo, mas a confirmação final só pode ser feita por meio da necropsia com a análiseneuropatológica de fragmentos do cérebro. (Disponível em: https://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/doenca-de-creutzfeldt-jakob-dcj. Acesso em: 10 set. 2020.)

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BERNARDO TEIXEIRA DE CARVALHO

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De posse da informação, escrevi uma carta ao filho do fotógrafo, em

Nova York, na tentativa de esclarecer a relação entre o velho e Buell

Quain, se é que havia alguma, porque em momento nenhum deixei de

desconfiar da possibilidade, ainda que pequena, de uma confusão ou

de um delírio da minha parte. Podia ter ouvido errado, os meses que

precederam a morte do meu pai foram especialmente tensos, e eu não

andava com a cabeça no lugar. Esperei em vão uma resposta. Nesse

meio-tempo, minha pesquisa me levou para outras frentes: vasculhei o

arquivo de Heloísa Alberto Torres, fui a Carolina e visitei os Krahô. Ao

voltar sem respostas da aldeia, em setembro, achei que só a família de

Quain poderia me esclarecer o que faltava no meu quebra-cabeça. Tudo

o que eu precisava era do teor de uma suposta oitava carta, além das

que o etnólogo enviara ao pai, a um missionário e ao cunhado antes de

morrer (por que não teria escrito antes à irmã? Ou teria escrito uma

oitava carta à irmã?), e de um eventual diário que, segundo a mãe, ele

sempre mantinha. A oitava carta e o diário explicariam tudo. (NN, 2002,

p. 153, 154)

O narrador-investigador-jornalista começou sua busca pelos familiares

de Quain nos Estados Unidos, escrevendo mais de cento e cinquenta cartas

a todos que pudessem ter alguma relação com Buell Quain, ou informações

sobre ele, mas tudo fora em vão:

(...) liguei em desespero de causa para uma amiga em Nova York e ela

me pôs em contato com uma produtora de televisão reputada por

desenterrar o que ninguém mais conseguia descobrir. Tinha um nome

exótico. Era filha de indianos que haviam imigrado para o Canadá.

Trocamos alguns e-mails e já tínhamos chegado mais ou menos a um

acordo sobre o custo e o tempo da pesquisa (como era empregada de

uma grande rede de televisão, teria que trabalhar para mim nas horas

vagas), quando dois aviões de passageiros, diante dos olhos atônitos de

todo o planeta, atingiram e derrubaram as duas torres do World Trade

Center12. Os jornais diziam que o mundo nunca mais seria o mesmo. O

fato é que nunca mais consegui falar com a produtora. (NN, 2002, p. 154)

12 World Trade Center (WTC), inaugurado em 4 de abril de 1973, era um complexo de seteedifícios com 110 andares, na região de Lower Manhattan, Nova York, Estados Unidos,destacado pelas “Torres Gêmeas”. Foi destruído em 11 de setembro de 2001, juntamente como World Trade Center 7 e o Marriott World Trade Center, nos ataques terroristas em queaeronaves colidiram contra os edifícios.

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Muitas das cartas que ele escreveu retornaram, pois havia um grande

pânico nos Estados Unidos decorrente das cartas anônimas contaminadas

com antraz13, enviadas a políticos, celebridades e cidadãos comuns

americanos. Restava ao narrador-investigador-jornalista encontrar o filho

do fotógrafo Andrew Parsons:

(...) Àquela altura dos acontecimentos, depois de meses lidando com

papéis de arquivos, livros e anotações de gente que não existia, eu

precisava ver um rosto, nem que fosse como antídoto à obsessão sem

fundo e sem fim que me impedia de começar a escrever o meu suposto

romance (o que eu havia dito a muita gente), que me deixava paralisado,

com o medo de que a realidade seria sempre muito mais terrível e

surpreendente do que eu podia imaginar e que só se revelaria quando

já fosse tarde, com a pesquisa terminada e o livro publicado. Porque

agora eu já estava disposto a fazer dela realmente uma ficção. Era o que

me restava, à falta de outra coisa. (NN, 2002, p. 157)

O narrador-investigador-jornalista viajou para Nova York e ao chegar

em frente à moradia do filho de Andrew Parsons:

(...) toquei o interfone para me certificar de que ele estava em casa.

Pensei em tocar e ficar mudo, nem que fosse só para ouvir a sua voz. Atendeu

a voz de um homem, que não parecia especialmente velho, podia ser dele ou

não, quem sabe de um filho dele, e foi quando me ocorreu inventar uma

história qualquer, que tinha uma encomenda para lhe entregar, por exemplo.

Precisava vê-lo, nem que para isso tivesse que fazê-lo descer para em

seguida me esconder atrás de um carro. Ficaria a observá-lo do outro lado

da rua. Eu não podia perder a oportunidade. Perguntei pelo sr. Schlomo

Parsons. Era o próprio. E antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, ele

abriu a porta e me mandou subir. (NN, 2002, p. 159)

13 Em 18 de setembro de 2001, cinco cartas foram enviadas a emissoras de televisão e aredações de jornais dos Estados Unidos contendo um pó branco, que contaminaria os quetivessem contato com ele pela bactéria Antraz. Outras correspondências foram recebidas emedifícios do governo norte-americano e por Tom Daschle e Patrick Leahy, senadoresdemocratas, nos dias seguintes, contendo a mesma substância. O Antraz é uma infecçãocutânea, pulmonar ou intestinal, provocada pelo contato com os esporos da bactéria Bacillusanthracis, e foi usado, inicialmente, como arma biológica na Primeira Guerra Mundial, porfinlandeses que buscavam libertar seu país do domínio da Rússia czarista, em 1916. A bactéria,que sobrevive no solo, foi testada também pelo exército do Japão durante a Guerra daManchúria contra a China, na década de 1930. No período da Guerra Fria, os Estados Unidose a extinta União Soviética produziram e estocaram antraz para empregarem-no em combate,mas não houve utilização da substância e os estoques foram, oficialmente, destruídos. Deacordo com Segundo Centro de Controle de Doenças dos EUA, por ano são registrados de 2mil a 22 mil casos de contaminação por antraz no mundo e 90% deles são do tipo cutâneo.

NOVE NOITES

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BERNARDO TEIXEIRA DE CARVALHO

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Schlomo Parsons, que aguardava por um carregador, recebe o narrador-

investigador-jornalista acreditando que ele seria o rapaz responsável por

levar as caixas a serem despachadas para Chicago, para onde um velho

amigo havia mudado, dando a entender que teriam vivido juntos. Schlomo

perguntou ao narrador-investigador-jornalista se era brasileiro e, após a

reposta afirmativa disse: Brasil! Esse país me persegue (NN, 2002, p. 160),

iniciando-se uma conversa, durante a qual Parsons revelou que sua mãe

morrera alguns meses após ele ter nascido e fora criado pelos avós paternos.

Schlomo mostrou ao narrador-investigador-jornalista uma pasta em que

havia uma série de fotografias do Brasil nos anos de 1950, 1960, informando

que seu pai era fotógrafo e tinha passado a vida no Brasil:

“Por que o seu pai foi para o Brasil?”

“Ninguém nunca soube direito. Meus avós nunca quiseram falar no

assunto. Ele trabalhava para um jornal. Pode ter ido fazer uma

reportagem. Como desapareceu às vésperas da guerra e nunca mais

voltou, corria a história de que tinha desertado, que tinha decidido não

voltar quando a guerra estourou. Minha mãe morreu menos de um ano

depois de eu nascer. Teve uma leucemia galopante, uma doença muito

rara. Foi o que me disseram. Também não a conheci. Meu pai foi

embora logo depois (...) Meu pai me entregou aos pais dele e

desapareceu. Sempre odiei os meus avós. Quando fiz dezessete anos,

meu avô me chamou e disse que eu tinha que saber algumas verdades.

Minha avó era muito passiva. Ficava sempre à sombra dele, ouvindo o

que o marido dizia. Meu avô estava com um papel na mão. Nunca

entendi se tinham esperado até aquele dia para me revelar o que sempre

souberam ou se também tinham sido pegos de surpresa, como eu. Meu

avô chamou minha mãe de puta, disse que ela sempre tinha sido uma

vadia, que eu não era filho do meu pai e que, portanto, não havia

nenhuma razão para continuar vivendo com eles. Eu era o filho da puta.

Podia esperar qualquer coisa deles, mas nunca teria pensado numa

história daquelas. Não achei que fossem capazes de me expulsar. Ele

estava com muita raiva, transtornado e trêmulo. Também fiquei sem

palavras. Me estendeu o papel. Era uma carta do meu pai, a primeira

que ele mandava em dezessete anos. Estava endereçada a mim, mas eles

a tinham aberto e lido”. (NN, 2002, p. 163,164)

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Na carta, o pai dizia que Schlomo não era seu filho, mas sim de um

homem que morrera no coração do Brasil, quando tentava voltar aos Estados

Unidos para conhecê-lo. Entre as fotografias que Parsons mostrou, não havia

nenhuma que pudesse ser associada a Buell Quain e o narrador-investigador-

jornalista partiu carregando as caixas:

Para minha sorte, quando desci com a caixa, o homem da companhia

de transportes estava chegando com o carrinho para pegar a

encomenda. Antes que ele pudesse tocar o interfone, eu lhe abri a porta

e entreguei a caixa do sr. Parsons.

Resolvi adiantar a minha volta para o dia seguinte. Queria ir embora

no primeiro avião. Não tinha mais o que fazer ali. A realidade é o que se

compartilha. Os voos para o Brasil costumam ser noturnos. O meu saía

às dez da noite. Cheguei cedo ao aeroporto e fui um dos primeiros a

entrar no avião. Faltavam dez minutos para a decolagem quando um

rapaz ruivo, muito alto e magro, entrou esbaforido, a mochila esbarrando

pelos encostos das poltronas, conforme avançava para o fundo do avião.

Acomodou sua mochila no compartimento de bagagens acima da minha

poltrona e pediu licença para sentar ao meu lado, na janela. Tinha o cabelo

cacheado, o nariz adunco e um olhar simpático, embora fosse muito feio. O

avião decolou às dez em ponto. Voamos mais de seis horas sem nos dirigirmos

a palavra. Eu não conseguia dormir. O rapaz ao meu lado também não. Lia

um livro. Era dele a única luz acesa entre as de todos os passageiros. Estavam

todos dormindo. Eu não conseguia ler nada. Liguei o vídeo no encosto da

poltrona à minha frente. Por coincidência, sobrevoávamos a região onde

Quain havia se matado. Foi quando o rapaz, pela primeira vez, fez uma pausa

e me perguntou se estava me incomodando com a luz de leitura. Respondi

que não, de qualquer jeito não conseguia dormir em aviões. Ele sorriu e disse

que com ele era a mesma coisa. Estava muito excitado com a viagem para

poder dormir. Era a sua primeira vez na América do Sul. Perguntei se vinha

a turismo. Ele sorriu de novo e respondeu orgulhoso e entusiasmado: “Vou

estudar os índios do Brasil”. Não consegui dizer mais nada. E, diante do meu

silêncio e da minha perplexidade, ele voltou ao livro que tinha acabado de

fechar, retomando a leitura. Nessa hora, me lembrei sem mais nem menos de

ter visto uma vez, num desses programas de televisão sobre as antigas

civilizações, que os Nazca do deserto do Peru cortavam as línguas dos mortos

e as amarravam num saquinho para que nunca mais atormentassem os vivos.

Virei para o outro lado e, contrariando a minha natureza, tentei dormir, nem

que fosse só para calar os mortos. (NN, 2002, p. 166 a 168)

NOVE NOITES

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BERNARDO TEIXEIRA DE CARVALHO

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3. BREVE ANÁLISE DO ROMANCE – Isto é para se vocêquiser ler!

3.1. A ORIGEM DE NOVE NOITES

Mariza Corrêa, antropóloga, professora da Universidade Estadual de

Campinas, falecida em 2016, publicou em 12 de maio de 2001, na coluna

de Resenhas do Jornal Folha de São Paulo, uma matéria sobre Curt

Nimuendajú14, na qual ela citou a morte de Buell Quain durante suas

pesquisas sobre os índios em terras brasileiras.

O narrador-investigador-jornalista (seria ele o próprio Bernardo

Carvalho?) de Nove Noites, após ler a resenha de Mariza Corrêa, vinculou

o nome do citado antropólogo Buell Quain a uma situação pessoal vivida

por ocasião da doença, e consequente internação, de seu pai, que tinha no

leito ao lado um idoso aguardando seus últimos dias em decorrência de um

câncer já muito avançado. Pouco antes de morrer, ele olhou para o narrador-

investigador-jornalista e disse-lhe em tom baixo de voz moribunda: Bill

Cohen.

A semelhança entre os nomes despertou no narrador-investigador-

jornalista um desejo de, numa revisitação ao passado, buscar

incessantemente os motivos que teriam levado Buell Quain ao suicídio

durante o período em que se encontrava no Brasil, numa investigação

policial repleta de entrevistas (ou quase interrogatórios), pesquisas

documentais, consultas a arquivos e viagens.

Essa espécie de predestinação leva o narrador-investigador-jornalista a

reviver passagens de sua própria vida, a partir das várias semelhanças entre

a experiência de Buell Quain com os índios nas matas brasileiras, suas rela -

ções familiares, crises existenciais e a infância complicada ao lado do pai.

As incertezas, os segredos e mistérios que envolvem a vida de morte do

antropólogo norte-americano são o leitmotiv do romance, mas, logo no

início da narrativa nota-se que a verdade sobre o que aconteceu a Buell

Quain estaria longe de ser elucidada. Assim, o leitor mais inocente, que

identifica a história com o enredo de um romance policial, se decepcionará,

pois os mistérios que envolvem o motivo do suicídio de Quain não serão

esclarecidos, tal como seria o comum de ocorrer em histórias detetivescas.

14 O artigo de Mariza Corrêa encontra-se, na íntegra, no anexo deste trabalho.

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E quais seriam esses enigmas a serem elucidados? Inicialmente, o

mistério basilar do romance é o motivo que levou Quain ao suicídio, mas,

a partir da investigação sobre o caso, outros questionamentos surgem:

1. Quem foi realmente Buell Quain?

2. Buell Quain enlouqueceu?

3. Quain era casado?

4. Quain era homossexual e temia represálias por isso? Ou era bissexual

e não aceitava a possibilidade de ser?

5. Quain sofria algum tipo de ameaça que o levou ao suicídio?

6. Quain era rico herdeiro?

7. Por que Buell Quain enviou cartas a dona Heloísa e Ruth Benedict,

solicitando a desinfecção da correspondência?

8. Quain tinha alguma doença contagiosa? Sífilis? Lepra?

9. Por que o local em que o corpo de Buell Quain teria sido enterrado

não foi demarcado e não houve inquérito policial apurado sobre o

caso?

10. Haveria uma oitava carta escrita por Buell Quain que revelaria o

motivo do suicídio?

O romance Nove Noites constrói-se a partir da ideia constitutiva de um

romance-reportagem investigativo, em que o narrador-investigador-

jornalista relaciona pistas confusas e ambíguas sobre a vida e a morte de

Buell Quain. Sem índice, epígrafe, com capítulos apenas numerados e uma

dedicatória à memória de Fábio T. Carvalho e Mariza Corrêa, o livro

apresenta dois narradores distintos, em primeira pessoa, cujos relatos se

intercalam não sequencialmente, em forma de correspondência e romance.

Os capítulos da obra são organizados de modo fragmentado e ambíguo,

em que situações, por vezes desconexas, vão se completando ou

confundindo, gerando algumas informações contraditórias quanto a quem e

como era Buell Quain e o motivo que o teria levado a cometer suicídio.

Destaque-se, no entanto, que a arquitetura complexa do romance é atenuada

por meio do emprego de diferentes tipos de letras, recurso gráfico que

facilita ao leitor a identificação do discurso de Manoel Perna e o do

narrador-investigador-jornalista.

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BERNARDO TEIXEIRA DE CARVALHO

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Nove Noites principia com a carta-testamento, em estilo literário emetafórico, grafada em itálico (talvez por ser um tipo de letra que seaproxime mais dos manuscritos antigos, em que a grafia costumava ser maisinclinada), atribuída a Manoel Perna, engenheiro de Carolina e amigo deBuell Quain, que destina a missiva a alguém que está por vir (um namoradoou amigo do antropólogo norte-americano): “Isto é para quando você vier”.

Já o romance propriamente dito, numa forma composicional próximaà linguagem jornalística, é grafado em letra redonda, composto por umnarrador-investigador-jornalista inominado (talvez um alter ego deBernardo Carvalho, que se projeta no metarrelato como personagemficcional), seduzido pelo mistério do suicídio de Buell Quain.

Além dos tipos de letras, Nove Noites, numa variedade de gênerostextuais que vão de cartas a textos jornalísticos, apresenta também elemen -tos como fotografias, com a finalidade de explicitarem comprovações dosfatos investigados, configurando-se a narrativa como polifônica,memorialista, híbrida entre ficção e realidade e intimista, no que concerneà busca do autoconhecimento por parte do narrador-investigador-jornalista.

A estratégia empregada por Bernardo Carvalho, de apenas revelar nodesfecho que a obra é um romance ficcional, surpreende o leitor, o qual é leva -do a crer, até então, ter em suas mãos um livro de cunho jornalístico-inves -tigativo, alicerçado em textos, como as diversas correspondências (reais ouficcionais), que colaboram para a manutenção da ilusão do leitor quanto aogênero de Nove Noites.

A ambiguidade, quanto ao gênero textual e, também, em relação aoutras passagens do enredo, é uma característica frequente em obrasautoficcionais. No romance em questão, o narrador-investigador-jornalistavale-se do empreendimento em descobrir o real motivo do suicídio de BuellQuain para revisitar seu próprio passado, isto é, razões particulares estariampor trás de todo o levantamento investigativo em torno da história doantropólogo norte-americano.

Desse modo, a ideia de que o narrador-investigador-jornalista estavapredestinado a desvendar o mistério da morte de Buell Quain é, na verdade,um subterfúgio encontrado para o seu desabafo pessoal, principalmente, noque envolve suas relações com o pai, figura em torno da qual giram váriosmomentos da narrativa.

Coincidentemente, ou não, o antropólogo norte-americano também

viveu uma relação conturbada com sua família, em especial com o pai. Há,

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no enredo, outros conflitos envolvendo a paternidade, por exemplo, quando

Schlomo Parsons relata ao narrador-investigador-jornalista que era filho de

um homem que veio para o Brasil na década de 1930 (talvez fosse Buell

Quain o seu pai?).

As relações familiares, tumultuadas moral e financeiramente, fazem

com que o convívio entre pai e filho, tanto no caso do antropólogo, quanto

no do narrador-investigador-jornalista, seja insustentável, o que justificaria

a escolha profissional de Buell Quain em viver pesquisando pelo mundo e

a do narrador-investigador-jornalista de voltar ao exterior e deixar o pai no

hospital sob os cuidados da irmã.

No entanto, a relação com a figura materna não apresenta conflitos tão

intensos. No caso do narrador-investigador-jornalista, ele pouco se refere à

mãe, mas Buell Quain parece preocupar-se com a sua, Fannie Dunn Quain,

principalmente após o fim de seu casamento com Eric P. Quain, conflito

familiar que poderia ser arrolado como motivo para o desequilíbrio mental

do antropólogo norte-americano e estopim de seu suicídio.

Segundo o narrador-investigador-jornalista, após a morte do Buell

Quain, sua mãe ocupou-se na preservação da memória do filho, sem buscar

esclarecimentos quanto ao ato tresloucado do suicídio dele por, talvez,

recear descobrir algo que quebrasse a imagem idealizada que tinha do

antropólogo.

Buell Quain poderia realmente ter motivos para ocultar certas

experiências de sua vida, principalmente se considerarmos a época em que

ele viveu no Brasil, período de fortes tensões desencadeadas pelo exercício

do Estado Novo.

Cronologicamente, o romance percorre os anos de 1938 a 2002,

respectivamente, o tempo em que Buell Quain viveu no Brasil e o das

pesquisas do narrador-investigador-jornalista, sendo, evidentemente, a data

do suicídio do antropólogo norte-americano a indicação de tempo primordial

ao desenvolvimento do romance. É desse período que temos as fotos de

Buell Quain, as cartas da diretora do Museu Nacional do Rio de Janeiro,

Heloísa Alberto Torres, da mãe e irmã do antropólogo, de Ruth Benedict e

Ruth Landes, a fotografia do jornal registrando a chegada de Buell Quain à

cidade de Carolina, a referência Claude Lévi-Strauss e sua obra Tristes

Trópicos, e, dentre outras, o principal motor do romance: a carta-testamento

de Manoel Perna.

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BERNARDO TEIXEIRA DE CARVALHO

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Com relação à indicação temporal que envolve Manoel Perna, notam-se

as nove noites passadas com Buell Quain e, posteriormente, o momento em

que o engenheiro escreve sua carta-testamento, seis anos após a morte do

antropólogo norte-americano, às vésperas de falecer afogado em um

acidente em 1945.

Embora haja, no romance, dois tempos basilares, isto é, o período de

Buell Quain no Brasil e o momento de pesquisa do narrador-investigador-

jornalista, registram-se, em Nove Noites, três fases históricas: os anos de

1930 e 1940, a década de 1960/1970 e os anos iniciais do século XXI.

Os anos de 1930/1945, como já destacado, referem-se à experiência de

Buell Quain na selva brasileira e à posterior redação da carta-testamento

por Manoel Perna.

Dos anos de 1960, Nove Noites destaca a fase em que o narrador-

investigador-jornalista, ainda criança, viajava ao Xingu em companhia do

pai, o qual obtivera a concessão de terras em pleno tempo de regime militar

e projeto Rondon e, de 2001/2002, a data do artigo de jornal escrito por

Mariza Corrêa (12/5/2001) e a viagem do narrador-investigador-jornalista

ao Xingu e aos Estados Unidos (que viviam em constante medo decorrente

dos ataques ao World Trade Center), em busca de informações sobre Buell

Quain.

Note-se que, no romance de Bernardo Carvalho, quase todas as

referências temporais estão relacionadas a outros fatos ocorridos na mesma

época, como, por exemplo, a data da morte de Buell Quain (2/8/1939)

vincula-se à data da carta que Einstein escreveu a Roosevelt, e o período em

que o narrador-investigador-jornalista viaja aos Estados Unidos, ao medo

generalizado em relação a novos ataques terroristas ou, ainda, à possibi -

lidade de mais cartas contaminadas com antraz serem enviadas a figuras

políticas importantes e demais cidadãos norte-americanos.

3.2. ESTRATÉGIAS DA TEIA NARRATIVA DE NOVE NOITES

O romance Nove Noites constrói-se a partir de dois relatos estruturais

em que os narradores se envolvem, por motivos diferentes, nas razões que

teriam levado o Buell Quain ao suicídio, durante o período em que esteve

no Brasil estudando os índios Krahô, em Carolina, Maranhão.

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Como já se viu, ambos os narradores, em primeira pessoa, elaboram

discursos que levam o leitor a acreditar na solução do caso do antropólogo

norte-americano, mas, ao longo do romance, percebe-se que o propósito

deles gira em torno da transposição de seus próprios conflitos para as

atitudes de Buell Quain e seus problemas existenciais, isto é, o relato da

história do antropólogo desencadeia os relatos das vivências de Manoel

Perna e do narrador-investigador-jornalista, passando o drama do

antropólogo a ser um pretexto para que o engenheiro e o narrador-

investigador-jornalista falem deles próprios.

Cada uma das narrativas desencadeia detalhes filtrados pelos olhares

dos narradores e suas conclusões e reflexões sobre a vida e morte de Buell

Quain, o único que não se pronuncia no romance, uma vez que tudo é

relatado após a morte dele. Desse modo, há que se considerar a subjetividade

dos narradores, além do caráter intimista das associações feitas entre a

experiência de Buell Quain e as de Manoel Perna e do narrador-inves -

tigador-jornalista, exprimindo-se as angústias mais íntimas e os conflitos

com as normas da sociedade.

O emprego da primeira pessoa torna-se, então, fundamental em Nove

Noites e, embora o núcleo narrativo seja em torno de uma terceira pessoa,

Buell Quain, a organização dos fatos do tempo e do espaço da obra é dirigida

por Manoel Perna e pelo narrador-investigador-jornalista. Simplificando, o

ponto de partida da narrativa é a história do antropólogo, mas a linha de

chegada é a vida dos dois narradores em seus medos e inseguranças

existenciais.

O primeiro narrador, Manoel Perna, amigo de Buell Quain, mesmo

tendo ambos convivido por apenas nove noites, compõe uma carta-testa -

mento pouco antes de falecer, ou seja, seis anos após a morte do

antropólogo. Assim, o engenheiro relata as confidências que Buell Quain

teria feito a ele para, talvez, se redimir da falta cometida em não acompanhar

o antropólogo em sua última viagem. Angustiado com sua possível falha,

Manoel Perna tenta, uma última vez, o contato com o amigo, ou amante, de

Buell Quain, que aguardava chegar para lhe entregar a última carta do

antropólogo, no entanto, a espera é vã.

Logo no princípio, Manoel Perna apresenta a possibilidade de que a

verdade, quanto ao caso Buell Quain, não seria encontrada, uma vez que,

segundo ele, o leitor estaria entrando em um mundo em que a verdade e a

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BERNARDO TEIXEIRA DE CARVALHO

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mentira se confundiriam e a tentativa de desvendar o passado seria inútil:

Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os

sentidos que o trouxeram até aqui. (...) A verdade está perdida entre

todas as contradições e os disparates. Quando vier à procura do que o

passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em

que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único

bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa

aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja

pela suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade.

(...) Guardei comigo esta única carta, para protegê-lo, e aos índios. Jurei

que ninguém além de você poria os olhos nela. Mandei-lhe um bilhete

no lugar da carta, um bilhete cifrado, é verdade, em código, que o

professor Pessoa me ajudou a redigir em inglês, sem saber a quem me

dirigia ou com que objetivo, pensando que se tratava de um parente do

morto, uma vez que anteriormente já lhe pedira ajuda para escrever

uma carta de pêsames que decidira enviar à mãe. Nunca pude me

certificar de que você tenha recebido esse bilhete, ou que o tenha

compreendido, já que não veio atrás do que lhe pertencia. Faz anos que

o espero, mas já não posso me arriscar ou desafiar a morte. (NN, 2002,

p. 7, 8)

Enquanto Manoel Perna se vale do testemunho pessoal para elaborar

sua carta-testamento, o narrador-investigador-jornalista busca por

documentos como fotografias, cartas e depoimentos, para obsessivamente

desvendar o motivo secreto do suicídio de Buell Quain e, à medida em que

a narrativa evolui, nota-se que ele passa a integrar a história, pois fala de si

mesmo e de suas experiências pelo Xingu, tanto na infância quanto na fase

adulta, quando retorna à selva amazônica em busca de informações sobre

Buell Quain.

Assim, a apresentação inicial de jornalista-investigativo vai se diluindo

e surge o narrador-investigador-jornalista-personagem, que compõe sua

autobiografia, recuperando o passado e confessando suas tão dolorosas

experiências quanto as de Buell Quain. Convém considerarmos, também,

que o autor Bernardo Carvalho, jornalista como o narrador-investigador-

jornalista, projeta-se na ficção de Nove Noites, o que configura a técnica da

autoficção, na qual o autor cria seu duplo ficcional, revelando por meio dele

sua interioridade e experiências de vida.

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O narrador-investigador-jornalista, então, aproxima-se, de um narrador

pós-moderno, que, recorrendo à verossimilhança, retoma suas perdas e

experiências pessoais como matéria estrutural do romance, valendo-se das

semelhanças entre ele e a personagem Buell Quain. Ainda refletindo sobre

a semelhança entre Bernardo Carvalho e o narrador-investigador-jornalista,

faz-se mister observar que ambos eram filhos de latifundiários, os quais, na

década de 1960, se valeram de benefícios governamentais para ocupação

de terras no Araguaia e Xingu, além de serem, também, bisnetos do

marechal Rondon e jornalistas que tiveram experiência no convívio com os

índios. Talvez, assim, o autor Bernardo Carvalho procure mais compreender

o que em sua vida fosse conflito do que escrever o romance Nove Noites.

Constata-se, portanto, que o narrador-investigador-jornalista do

romance rompe com as características do tradicional narrador em primeira

pessoa, revelando-se a partir da experiência do outro, ou de seu duplo. Ao

lado da apresentação de fatos, ou vivências experimentadas tanto por Buell

Quain, quanto pelo narrador-investigador-jornalista, ou ainda, pelo autor

Bernardo Carvalho, a manifestação da criatividade da ficção é também

motor do romance.

Destaque-se que o narrador-investigador-jornalista busca os fatos para

a composição de seu relato a partir não do que viveu, mas sim do que

pesquisou sobre Buell Quain, enquanto Manoel Perna conta a sua própria

experiência ao lado do antropólogo. Assim, enquanto o primeiro parece ser

imparcial e neutro no que escreve, o segundo deixa-se levar pela

subjetividade e, também, pelas falhas que o tempo pode ter desencadeado

em sua memória. Desse modo, o leitor é levado a crer na veracidade do

relato do narrador-investigador-jornalista, na logicidade de seu discurso

referencial, mas esse contrato de fidelidade aos fatos narrados será desfeito

nas armadilhas criadas por Bernardo Carvalho.

Enquanto Manoel Perna coloca em dúvida o que é a verdade, o

narrador-investigador-jornalista procura por ela, mas chega a mesma dúvida

que o engenheiro apresenta logo no início de sua carta-testamento. Desse

modo, os dois relatos, de Manoel Perna e do narrador-investigador-

jornalista, vão se complementando ao longo do romance, mas, por outro

lado, também se contradizem quando a investigação deste último avança

sobre Buell Quain e a antropologia, a partir do acesso a cartas sobre o

antropólogo, da viagem a Carolina e aos Estados Unidos.

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A importância da carta-testamento de Manoel Perna vai perdendo

destaque ao longo da narrativa, e o clima de mistério, em torno dos motivos

que levaram Buell Quain ao suicídio, se intensifica, mas não são

esclarecidos, como aguarda o leitor, uma vez que as peças finais da obra

não se encaixam no quebra-cabeça criado por Bernardo Carvalho.

O ponto culminante para o leitor se sentir perdido no emaranhado de

fatos é a revelação de que a carta-testamento de Manoel Perna nem sequer

existiu, sendo ela uma artimanha dentro da ficção de Nove Noites. O leitor,

que se acreditava uma espécie de detetive coadjuvante, passa a ser apenas

o espectador, ou receptor, de uma história ficcional manipuladora de fatos,

em que a verdade é o menos importante. Como já se viu, há várias passagens

alertando o leitor sobre seu ingresso no mundo da ficção, mas, mesmo

assim, ele aceita o desafio de desvendar o caso Buell Quain, até mesmo após

a leitura final do romance.

O pronome “você”, empregado por Manoel Perna em sua carta-testa -

mento (Isto é para quando você vier, Jurei que ninguém além de você poria

os olhos nela, Amanhã pego a balsa de volta para Carolina, mas antes deixo

este testamento para quando você vier, dentre outras), faz com que o leitor

sinta-se como o destinatário da carta ou, também, como personagem da

investigação, em decorrência da ambiguidade semântica do dêitico, pois

pode se referir tanto ao destinatário da carta-testamento de Manoel Perna,

uma personagem sem nome e sem ação dentro da história, mas que teria a

chave para desvendar o mistério de Buell Quain, quanto ao leitor do

romance Nove Noites.

Seduzido pelo segredo do suicídio do antropólogo, o leitor aceita

participar da narrativa e, mesmo percebendo as ambiguidades e contradições

relatadas, identifica-se com o papel de codetetive, procurando, nas

entrelinhas e incoerências das provas apresentadas a solução do caso.

Assim, é a voz do narrador-investigador-jornalista que se destaca num

aparente diálogo instaurado entre ele o leitor, ou ainda, entre Manoel Perna

e o leitor. As vozes dos dois narradores, grafadas por meio de tipos de letras

diferentes, itálico e redondo, vão se intercalando e desencadeando a

presença de outras vozes.

Mikhail Bakhtin, teórico russo, define polifonia como a diversidade de

vozes verbais dentro de um texto, isto é, os diálogos de personagens que

apresentam concepções distintas, ou não, em torno de um mesmo fato. Essas

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vozes narrativas, no romance Nove Noites, vão se multiplicando à medida

em que a investigação, em torno dos motivos que levaram Buell Quain ao

suicídio, avança. São as opiniões dos antropólogos, dos índios, dos

conhecidos dos familiares de Buell Quain, do narrador-investigador-

jornalista, de Manoel Perna, que se espalham pelo romance, versando sobre

assuntos desencadeados pelo fator principal, mas que levam a discussões,

por exemplo, sobre como a opressão branca vitimou os índios, os interesses

econômicos na região amazônica, o poder do Estado Novo, a manipulação

na criação da região do Xingu, o terrorismo que assolava os Estados Unidos

por ocasião dos ataques ao World Trade Center, dentre outras.

Para Bakhtin, as diferentes falas fortalecem o enredo de um romance

polifônico, contribuindo para a ampliação dos sentidos que envolvem fatos,

ficcionais ou reais, como os presentes no romance de Bernardo Carvalho,

sem que as diversas vozes estejam sujeitas à manipulação do narrador

principal. Constatação disso está nas divergências de opiniões sobre a

personalidade de Buell Quain por meio de subvozes (considerando-se que

as principais são as de Manoel Perna e do narrador-investigador-jornalista),

que colaboram na elaboração da teia narrativa de Nove Noites, portanto, um

romance polifônico, o qual, democraticamente, apresenta as variações de

análise dos fatos que envolvem os motivos do motor do romance: o suicídio

de Buell Quain.

3.3. METAFICÇÃO: O QUE É REAL E FICCIONAL EMNOVE NOITES?

A metalinguagem é recurso amplamente empregado por Bernardo

Carvalho no romance Nove Noites. A carta-testamento de Manoel Perna

configura-se como texto metalinguístico a partir do momento em que ela se

revela como ficção. Além disso, o engenheiro deixa seu texto a um futuro

destinatário, indicado pelo pronome “você”, o qual, como já se viu, pode

referir-se ao próprio leitor, elemento fundamental no efeito da carta-testa -

mento.

O narrador-investigador-jornalista também se vale do jogo

metalinguístico ao referir-se, por exemplo, que a interpretação dos poemas,

no caso, uma explicação sobre “Elegia 1938”, de Carlos Drummond de

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Andrade, depende dos referenciais do leitor. No entanto, os elementos

intertextuais não se limitam ao poema de Drummond. Em Nove Noites, um

leitor profissional, que acompanha Andrew Parsons, o idoso à beira da

morte, internado no leito de uma UTI, ao lado do pai do narrador-investi -

gador-jornalista, lê as obras O Companheiro Secreto (The Secret Sharer)

Lord Jim, de Joseph Conrad, e Moby Dick, de Melville, para o paciente

moribundo.

Conrad era o autor preferido de Andrew Parsons e, em O Companheiro

Secreto, título conforme tradução apresentada em Nove Noites, o enredo

gira em torno de um capitão inexperiente que, em seu primeiro comando de

viagem, vê no convés da embarcação um homem dependurado, nu e

tranquilo. Legatt, o clandestino, fugira de outra embarcação, Séphora, após

ter, acidentalmente, assassinado um homem e, a partir da conversa com o

jovem capitão, inicia-se uma proximidade entre ambos, acrescida de forte

intimidade, a qual desperta a desconfiança da tripulação. O comandante do

Séphora busca pelo assassino e, numa manobra arriscada, Legatt consegue

fugir graças à ajuda do jovem capitão.

Segundo Antonio Candido (2000, p. 57 a 93), O Companheiro Secreto

aborda o tema do duplo, pois o jovem capitão encontra em Legatt aquele

com quem pode partilhar as suas sensações, medos e ideias, tal qual ocorre

com o narrador-investigador-jornalista, que vê em Buell Quain um reflexo

de suas angústias, principalmente as experimentadas em meio à selva

brasileira.

Em Lord Jim, Joseph Conrad conta a história de Jim, o qual abandonou

a embarcação Patna à beira de afundar com todos os tripulantes. Na obra, o

narrador Marlow tenta entender a personalidade de Jim e, para isso,

aproxima-se dele numa relação de amizade, semelhante ao que ocorre entre

Manoel Perna e Buell Quain.

No romance Moby Dick, inspirado em um naufrágio real, o narrador

Ismael relata suas aventuras no navio Pequod e a obsessão do capitão, Ahab,

na busca por Moby Dick, a baleia, talvez, um paralelo à ideia fixa do

narrador-investigador-jornalista em descobrir o motivo do suicídio de Buell

Quain.

Destaque-se que o tema abordado pelas obras O Companheiro Secreto,

Lord Jim e Moby Dick é a viagem e os mistérios que a envolvem, o mundo

ignorado cercado de medos, assunto também presente em Nove Noites.

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Além disso, a vida de Buell Quain envolve situações associadas a

embarcações, vide a história, que ele mesmo conta a Manoel Perna, da

situação do chinês clandestino em um navio americano, que foi auxiliado

pelo antropólogo.

Outra referência intertextual é a analogia que o narrador-investigador-

jornalista faz entre sua infância e as viagens ao Xingu com o seriado

Perdidos no Espaço, produzido de 1965 a 1968:

Não me lembro nem da cara do Chiquinho da Vitoriosas, mas guardei

a notícia da sua morte num acidente de avião. Não sei se agora apenas

imagino, mas tenho a impressão de ter visto o meu pai debruçado sobre

alguém, talvez a viúva, a lhe dar esperanças, a lhe dizer que ainda havia

chances de encontrarem o aviãozinho desaparecido fazia dias. Lembro

de uma casa escura, de gente armada, de mulheres recolhidas e caladas,

e de um céu carregado, com raios e nuvens negras, sempre que

visitávamos a Vitoriosas. Isso quando o sol não estava escondido por

uma névoa que fazia lembrar a atmosfera de um planeta inóspito em

Perdidos no espaço ou em algum filme de ficção científica. (NN, 2002,

p. 62)

Mas, a intertextualidade vai além das referências às obras de Melville,

Conrad, Drummond e o seriado de TV. A carta-testamento de Manoel Perna,

entremeada à pesquisa do narrador-investigador-jornalista, como também

outras missivas de autores variados (como da mãe de Buell Quain, Ruth

Benedict, Ruth Landes, Heloísa Torres), apresentam interrelação ao que está

sendo narrado, além de exercerem uma função dialógica no romance.

Há, também, a referência ao artigo de Mariza Corrêa, documento real,

desencadeador das pesquisas do narrador-investigador-jornalista, já que foi

por meio da matéria da antropóloga que ele tomou conhecimento do suicídio

de Buell Quain. A resenha de Mariza Corrêa classifica-se, dentro do

contexto do romance Nove Noites, como paratexto, isto é, um ingrediente

acessório à narrativa retirado de documento exterior a ela.

Outros paratextos presentes na obra de Bernardo Carvalho são as

dedicatórias, os e-mails, os agradecimentos finais e as fotografias, que,

embora tenham um caráter documental, como se ratificassem a verdade do

texto, ganham aspecto ficcional no processo de composição do romance

Nove Noites. Assim, os paratextos tornam-se ingredientes indispensáveis

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para a instauração no leitor da verdade relatada e, embora eles legitimem a

base da realidade do romance, também encaminham a narrativa para a

vertente ficcional, pois muitas informações que surgem a partir deles são

viáveis de questionamentos.

Exemplo disso são as duas fotografias impressas de Buell Quain, tiradas

de surpresa por um fotógrafo misterioso. Em uma delas o antropólogo

aparece de perfil e, na outra, de frente para a câmera, lembrando as

fotografias que, geralmente, são tiradas pelos indivíduos acusados de delitos

judiciais, ou melhor, criminais, o que aproximaria o antropólogo da

perspectiva de ser um assassino de si mesmo.

Uma segunda fotografia presente na obra traz sete pessoas (Heloísa

Torres, Charles Wagley, Raimundo Lopes, Edson Carneiro, Claude Lévi-

Strauss, Ruth Landes e Luiz Castro Faria), identificadas pelo narrador-

investigador-jornalista, e que funciona como forma de validar a verdade

narrada por meio da imagem, já que é reprodução fiel de um momento.

Além das fotografias impressas no corpo do texto de Nove Noites, há

também uma referência de Manoel Perna ao retrato tirado por ocasião da

chegada de Buell Quain a Carolina, fotografia esta que pode ser vista no

jornal O Globo em matéria sobre o suicídio do referido antropólogo.

Embora haja uma edição de bolso de Nove Noites, da editora

Companhia das Letras, que traz uma capa alaranjada, com duas figuras

humanas em hachuras, que poderiam ser os dois narradores centrais do

romance, encontra-se também uma outra edição da mesma Companhia das

Letras, em que a capa apresenta uma fotografia de Bernardo Carvalho, ainda

menino, de mão dada com um índio.

Segundo uma live recente do próprio autor com o editor da Companhia

das Letras, Luiz Schwarcz, a fotografia é da época em que Bernardo

Carvalho acompanhava o pai em suas viagens ao Xingu, experiência

também vivida pelo narrador-investigador-jornalista de Nove Noites, o que

o aproximaria do autor real.

Todos esses paratextos levam o leitor a acreditar em um romance

autobiográfico de Bernardo Carvalho, mas a realidade vai se desfazendo ao

longo da obra e a ficção prevalece:

Porque agora eu já estava disposto a fazer dela realmente uma ficção.

Era o que me restava, à falta de outra coisa. O meu maior pesadelo era

imaginar os sobrinhos de Quain aparecendo da noite para o dia, gente

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que sempre esteve debaixo dos meus olhos sem que eu nunca a tivesse

visto, para me entregar de bandeja a solução de toda a história, o

motivo real do suicídio, o óbvio que faria do meu livro um artifício

risível. (NN, 2002, p. 157)

Convenhamos que a documentação explicitada por meio dos paratextos

parece muito mais autenticar a veracidade dos fatos do que os ficcionalizar.

Segundo Linda Hutcheon (1991), a metaficção historiográfica constitui-se

de um enredo mesclado por história, ficção e realidade. Se considerarmos,

basicamente, que metaficção é a ficção dela mesma, ou seja, a ficção sobre

a ficção, Nove Noites corresponderia às características de metaficção

historiográfica, pois conduz a trama ficcional por meio de veículos da

verdade, como a resenha de Mariza Corrêa, as fotografias, as cartas, enfim,

os paratextos, além das referências a figuras históricas como Einstein,

Roosevelt, Hitler, Stalin, Claude Lévi-Strauss, Ruth Benedict, Franz Boas,

Eric P. Quain, Fannie Dunn Quain, Thomas Young e, logicamente, Buell

Quain.

É inegável que o alicerce do romance é de origem histórica, mas isso

não obriga a obra a ser comprometida com os fatos verídicos e, assim, se

valer deles para confirmar os relatos apresentados, mesmo que

instrumentalizados artisticamente, pois, a realidade é o que se compartilha

(NN, 2002, p. 166 a 168) e não o que realmente acontece.

Considerando-se, então, Nove Noites um romance pós-moderno, é

pertinente que nele haja uma mistura entre ficção e historiografia,

simultaneamente trabalhadas e subvertidas para serem criados os efeitos de

mistério insolucionável dos motivos que levaram Buell Quain ao suicídio.

Desse modo, muitas vezes, o leitor é levado a acreditar em tudo o que está

sendo relatado e, inclusive, considerar os pontos de partida do romance

como verdades inquestionáveis.

Assim sendo, a resenha escrita por Mariza Corrêa, que é texto real e de

pesquisa apoiada em critérios de verdade, tem o mesmo valor científico da

carta-testamento de Manoel Perna, uma missiva de falso testemunho

revelada como fictícia, no desfecho do romance, a partir da declaração dos

filhos do engenheiro de que Manoel Perna não havia deixado nenhum

documento falando sobre Buell Quain.

Percebe-se, portanto, que os textos documentais, apresentados na obra,

não têm valor informativo, como ocorre com os textos históricos, mas

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atendem apenas à necessidade da dinâmica do romance.

Elenquemos aqui alguns momentos da História que são compatíveis

com os dos fatos relatados na obra e que servem de alicerce à narrativa de

Nove Noites: o suicídio do antropólogo Buell Quain entre os índios Krahô,

em 2 de agosto de 1939, coincide com o mesmo dia em que Einstein enviou

ao presidente Roosevelt uma carta alertando sobre a possibilidade de bomba

atômica; a implantação do Estado Novo no Brasil e suas perseguições aos

antropólogos, vistos como espiões; a figura do marechal Rondon e sua

gestão no Serviço de Proteção ao Índio (SPI); a política do regime militar

dos anos de 1970 e o período conhecido como o do “milagre econômico”;

a fundação do Museu Nacional do Índio (1953) e o projeto Xingu (1961);

a queda do avião da Varig, voo 820 e o pequeno acidente do pai do narrador-

investigador-jornalista; os ataques terroristas ao World Trade Center em

11/9/2001; e o artigo de Mariza Corrêa publicado em 12/5/2001, no jornal

Folha de São Paulo.

Numa avaliação temporal dos fatos, percebe-se que a trama de Nove

Noites ocorre entre duas guerras: Segunda Guerra Mundial, que se iniciou

em setembro de 1939 (pouco mais de um mês após a morte de Buell Quain),

e vai até 1945 (fase em que Manoel Perna escreve sua carta-testamento e

morre acidentalmente), e a guerra dos Estados Unidos ao Iraque, após o

atentado de 11 de setembro de 2001.

Desse entremeio temporal, 1939 a 2001, o romance de Bernardo

Carvalho alicerça-se em outros fatos que se vinculam à proposta do enredo

de fazer-se entender como a verdade. Não é à toa que em Nove Noites há

uma referência ao poema “Elegia 1938”, em A Rosa do Povo, de Carlos

Drummond de Andrade: além de o livro referir-se, predominantemente, a

fatos e consequências da Segunda Guerra Mundial, foi justamente em 1938

que Buell Quain chegou ao Brasil. Outro traço a ser destacado é o de que,

no poema, Drummond refere-se à impossibilidade de se dinamitar à ilha de

Manhattan, centro capitalista mundial, exatamente o espaço que sofreu os

ataques de 11 de setembro de 2001. Portanto, “Elegia 1938”, vincula-se a

dois tempos formadores de Nove Noites: 1938 e 2001.

O Estado Novo de Getúlio Vargas, dentre outras atitudes de valores

questionáveis, vigiava os antropólogos estrangeiros que vinham ao Brasil,

incluindo a possibilidade de expulsão do indivíduo do País, como ocorreu

com a antropóloga Ruth Landes, citada por Bernardo Carvalho.

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No ano da morte de Buell Quain, 1939, marechal Rondon volta a dirigir

o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), expandindo-o para vários territórios

brasileiros e, em 1945, o governo Vargas cria a Expedição Roncador-Xingu

como parte do processo de interiorização do Brasil, a “Marcha para o

Oeste”, chefiada, depois, pelos irmãos Villas Boas.

Na opinião de Darcy Ribeiro (1987, p. 127,128), por volta de 1910,

muitas lutas sangrentas exterminaram tribos inteiras, situação que era

amplamente debatida pelas autoridades brasileiras, cientistas, serviços

filantrópicos, sendo providências exigidas de imediato para a resolução do

problema. Além disso, as populações da região exigiam as estradas de ferro,

que garantiriam a locomoção dos sertanejos na exploração de novas terras

para a plantação de café, e a segurança de vida já que eles eram ameaçados

pelos índios mais hostis.

Rondon passou a ser considerado um herói brasileiro, chamado de “o

pacificador”, “civilizador dos Sertões”, dentre outros epítetos. Os irmãos

Villas Boas, por sua vez, fundaram postos de acessos à região, como as

pistas de pouso, o que desencadeou consequentemente a invasão branca ao

território indígena, propagando-se doenças, o que alterou o rumo do projeto

e, ao invés de se instalarem núcleos de povoamento para os brancos, passou-se

a manter a preservação da integridade dos territórios dos índios.

O retrato da situação dos índios pode ser observado em carta da mãe de

Buell Quain, citada em Nove Noites, em que ela relata a propagação da

malária, falta de assistência médica e abandono dos habitantes da selva

amazônica. A apropriação de terras no Amazonas teve em Rondon veículo

para os interesses políticos da época, proporcionando, por um lado, o

desmoronamento do povo indígena, levado à condição de objeto de estudo

científico, principalmente por parte dos antropólogos estrangeiros. Em 1961,

foi criado o Parque Indígena do Xingu pelo presidente Jânio Quadros.

Algum tempo depois, o projeto de desenvolvimento do Amazonas

ganhou proporções imensas. Nesse cenário, o pai do narrador-investigador-

jornalista de Nove Noites conseguiu subsídios do governo federal, adqui -

rindo uma fazenda, onde o projeto agropecuário expandiu-se, valendo-se

dos benefícios da política de ocupação da Amazônia, quando as matas foram

transformadas em pastagens de fazendas.

Os anos de 1970 registraram o domínio militar por meio de ações

violentas e repressoras, enquanto o mundo vivia a reestruturação do

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capitalismo, vinculado à ideia de progresso e bem-estar da sociedade, o que,

de certo modo, aconteceu ao pai do narrador-investigador-jornalista, que

viajava frequentemente ao Xingu em companhia do filho menino, voando

em seu avião precário.

Em 1973, houve um grande acidente aéreo com o voo 820 da Varig,

tragédia que levou à morte mais de uma centena de passageiros, ocorrido

justamente no dia seguinte a um pequeno acidente aéreo, em decorrência

da irresponsabilidade do pai do narrador-investigador-jornalista ao voar:

No dia em que acordei, a manchete dos jornais era a tragédia de um

avião da Varig que se incendiara misteriosamente na rota de descida

para Orly, matando boa parte dos tripulantes e todos os passageiros, à

exceção de um. O jornal trazia as fotos das celebridades mortas. E de

alguma forma associei a grande tragédia ao nosso pequeno acidente,

como se houvesse alguma conexão incompreensível entre os dois. O

Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem

do inferno. (NN, 2002, p. 72)

Os acidentes aéreos em Nove Noites, que envolvem Chiquinho das

Vitórias, narrador-investigador-jornalista e seu pai são espelhados no voo da

Varig de 11 de julho de 1973. Após pouco mais de 11 horas de voo, a

aeronave fez um pouso de emergência em decorrência de um incêndio em

seu interior. Conforme investigações, o fogo, provocado por uma ponta de

cigarro acesa jogada no cesto do sanitário traseiro, espalhou-se rapidamente,

produzindo densa fumaça pelas cabines.

Enquanto o material plástico da aeronave entrava em combustão,

desprendendo gás cianídrico que, combinado à hemoglobina impede o

transporte de oxigênio pelo corpo humano, os pilotos, bravamente,

pousavam o Boing 707, prefixo PP-VJZ, em uma região próxima a um

minuto do aeroporto de Orly (Paris). No entanto, o gás, espalhado pelas

tubulações do ar-condicionado do avião, já havia envenenado 123 pessoas.

Considerado um dos principais acidentes aéreos ocorridos na França, o voo

820 da Varig resultou na morte de diversas personalidades ilustres

brasileiras, como destacado pelo narrador-investigador-jornalista.

Percebe-se que no romance há uma certa insistência em problemas

envolvendo aviões. Na época em que o narrador-investigador-jornalista

começa sua obsessiva pesquisa sobre o Buell Quain, os Estados Unidos

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viviam o que o presidente George W. Bush denominou “ataque a

civilização”: o atentado terrorista de 11 de setembro às Torres Gêmeas do

World Trade Center15. O mundo, atônito, via dois jatos Boeing 767 colidindo

contra os 110 andares dos edifícios na região de Wall Street. Mohamed Atta,

membro da organização fundamentalista Al-Qaeda, provável líder do

atentado de 11/9/2001, fez das Torres Gêmeas pó em segundos, provocando

um grande colapso em toda a região de Manhattan, justamente o símbolo

capitalista impossível de ser dinamitado por um só homem, segundo o

poema “Elegia 1938” de Carlos Drummond de Andrade.

Nove Noites registra, portanto, entre 1938 e 2001, os fundos históricos

que envolvem a época de Buell Quain no Brasil e o período de meninice e

fase adulta do narrador-investigador-jornalista. Os anos de 1930/1940 são

marcados pelo grande conflito da Segunda Guerra Mundial e os primeiros

anos do século 21 registrados a partir de uma violência, até então

inimaginável, repleta de guerras de uma luta infinita contra o terrorismo.

Mas, a verdade dos fatos relatados, principalmente os que envolvem a

vida de Buell Quain, é, muitas vezes, questionável dentro do enredo da obra

de Bernardo Carvalho. Jornalisticamente, as informações valem como

recurso para garantir um pacto de compromisso entre o leitor e a obra,

fortalecido por meio do emprego dos paratextos, da citação precisa de datas,

da presença de personagens reais, do registro integral de documentos do

arquivo do Museu Nacional, das cartas de Heloísa Alberto Torres, da

participação de figuras reais como Ruth Landes e Luiz Castro Faria, este

último, inclusive entrevistado pelo narrador-investigador-jornalista.

Supondo-se que os enredos baseados no relato de fatos reais são de

grande procura pelos leitores, como se viu no século XIX, com a

disseminação dos romances históricos, Nove Noites atende perfeitamente

seu público-alvo. Mas, é necessário também que o texto literário

desencadeie a satisfação artística do seu destinatário e é nesse ponto que a

ficção do referido livro se instaura, deixando de lado a biografia oficial de

Buell Quain e os dados jornalísticos e históricos.

Manoel Perna, logo no início de sua carta-testamento, alerta o leitor

para o ingresso no mundo em que a verdade e a mentira não se distinguem,

sendo ele a única personagem do romance a problematizar a diferença entre

15 A título de conhecimento, o World Trade Center já havia sido alvo de um ataque em 26 defevereiro de 1993, quando um caminhão, carregado com 682 quilogramas de dinamite,estacionado por Ramzi Yousef, explodiu na garagem do complexo.

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história e ficção. Desse modo, ficção, e não a mentira, uma vez que se trata

de uma obra literária, passa a ter valor de complemento da realidade

observada, muitas vezes embaralhando-se com possíveis situações

verossímeis. O que realmente importa ao leitor de Nove Noites é como a

obra apresenta o fato e não como realmente ele ocorreu, portanto, é a

invenção de uma verdade literária, ou uma alternativa artística na avaliação

da realidade, que tem importância na narrativa.

A solução encontrada por Bernardo Carvalho, definir sua obra como

um romance ficcional, resolve todas as contradições e ambiguidades

apresentadas ao longo do romance, invertendo a expectativa do leitor quanto

a Nove Noites tratar de um fato verídico que seria solucionado, isto é, a

morte de Buell Quain, e inserindo-se, desse modo, na categoria conceituada

por Umberto Eco como obra aberta, já que no romance não se chega a

nenhuma conclusão precisa quanto ao suicídio do antropólogo.

Talvez a saída encontrada pelo narrador-investigador-jornalista, o qual,

por não conseguir desvendar o mistério de Buell Quain compõe um romance

ao invés de uma matéria documental embasada em fatos reais, tenha

decepcionado o leitor mais ingênuo ou menos atento. Destaque-se que desde

o início da obra têm-se vários elementos indicativos de que ela é um

romance ficcional e o leitor inocente, crédulo e pouco desconfiado, talvez

se sinta enganado pelo narrador de Nove Noites, mas, também é necessário

notar que esse ludíbrio se dá por conta da habilidade do autor em jogar com

os elementos constitutivos da narrativa. O jornalismo perdeu uma grande

reportagem, mas a literatura ganhou um romance excepcionalmente bem

escrito.

3.4. A IMAGEM DO ÍNDIO EM NOVE NOITES E O CHOQUECULTURAL

Literariamente, no século XIX, os indígenas eram caracterizados como

heróis, moralmente corretos e incorruptíveis em romances como os de José

de Alencar e poemas de Gonçalves Dias. Porém, essa visão idealizada do

indígena é desconstruída em Nove Noites, em que o índio ganha contornos

de homens que se habituaram a viver a partir dos recursos oferecidos pelo

Estado, sem preocupação com o trabalho e afeitos à exploração de quem

deles se aproximar.

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Desse modo, o romance de Bernardo Carvalho distancia o indígena dabeleza, valentia e pureza românticas, avaliando-o a partir de um olhar sócio-político e retratando-o pelo comportamento violento, interesseiro,manipulador, longe do “Bom selvagem” de Rousseau, mas próximo darealidade em que eles deixam de ser vítimas do sistema para se integrarema ele e dele tirarem proveito.

As transformações na região amazônica, a partir dos projetos deexpansão agrícola e o decorrente desflorestamento, intensifica-se muito apartir da década de 1950, assim como a vida dos índios sofre fortesalterações em sua rotina.

A região demarcada do Xingu, para onde os índios foram, de certomodo empurrados, também não é apresentada em Nove Noites como umespaço tranquilo, pelo contrário, lá os mecanismos de sobrevivência incluemlutas, hostilidade e ausência de virtudes indígenas. O jogo de interesses temdois participantes ativamente astutos: de um lado o Estado, fazendo seupapel de pai dos órfãos índios da terra brasileira, de outro os índios fazendo-sede vítimas da orfandade para tirarem proveito do explorador branco.

Entenda-se essa orfandade indígena como reflexo da situação indefesados indígenas, os quais tomam então o Estado como aquele que deveproporcionar benefícios às comunidades. Essa imagem do índio, presente noromance de Bernardo Carvalho, parece ser muito mais próxima da realidadedo que aquela propagada pelos romances românticos que, em certa medida,seriam responsáveis pela visão que muitas pessoas fazem dos indígenascomo vítimas inocentes da sociedade branca.

O indianismo às avessas de Nove Noites coloca o índio como alvoconstante de pesquisas estrangeiras, justamente por causa da vitimizaçãoque lhe é atribuída, reproduzindo uma visão antipática dos “mausselvagens”, semelhante à que Buell Quain tem em relação aos índios queencontrou no Brasil nos anos da década de 1930.

Considere-se, no entanto, que a época durante a qual o antropólogonorte-americano permaneceu no Brasil, os indígenas viviam mais isoladose menos contaminados de cultura branca e, por isso, passavam a ser assuntointeressante para antropologia, principalmente estrangeira. Mas, Buell Quainnão gostava dos índios brasileiros, considerando-os feios e sujos,diferentemente dos povos de Fiji com os quais ele também teve contato.

Os índios Trumai estavam em vias rápidas de extinção, e, já naquela

ocasião, a tribo contava com apenas 43 integrantes. Talvez, um dos fatores

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da mortandade Trumai decorresse do envenenamento das águas do Rio

Vermelho, no qual eram despejados detritos de lixo hospitalar.

Em trabalho escrito por Buell Quain e Robert Murphy (1986, p. 11,12),

não citado no romance Nove Noites, relata-se que os Trumai viviam em

pânico e temiam seus principais adversários, os índios Kamayurá e os Suyá

e, no período noturno, qualquer barulho da mata causava medo nos Trumai,

aterrorizados pelos boatos de que haveria um ataque a qualquer momento.

Os Kamayurá procuravam desestabilizar psicologicamente os Trumai e

amedrontar Buell Quain por ele tê-los preterido, ficando junto aos Trumai,

que, por sua vez, acusavam os Kamayurá de aprisionarem suas vítimas e

comerem-lhe os miolos.

A antipatia de Buell Quain em relação aos índios brasileiros pode ser

percebida nos textos que o antropólogo redigiu sobre eles. Tudo nos

indígenas brasileiros parecia irritar Quain: ausências de atitude e de ímpeto,

a espera do destino, a intimidade com os estranhos, os jogos de interesse, a

manipulação em busca da obtenção de favores, o medo paranoico, as

relações incestuosas, a inconstância comportamental, os ritos de passagem.

A primeira pesquisa de Buell Quain sobre os Trumai foi interrompida

por questões de segurança já que os agentes do Estado Novo, em defesa da

segurança nacional, acreditavam que antropólogos e etnógrafos estrangeiros

estariam no Brasil a serviço da espionagem de seus países. O antropólogo

norte-americano, então, seguiu viagem ao Rio de Janeiro, onde chegou às

vésperas do Carnaval, instalando-se na pensão “Gustavo”, situada na Lapa,

bairro caracterizado pelas amplas possibilidades de satisfação sexual, à rua

Riachuelo, número 107, antiga rua de Matacavalos, citada por Machado de

Assis em sua obra Dom Casmurro.

Buell Quain, então, tem contato com alguns valores da cultura carioca

como o Carnaval, Carmen Miranda, a vida boêmia e noturna da Lapa do

Rio de Janeiro. Naquele Carnaval de 1939, Madame Satã (nome inspirado

no filme homônimo de Cecil B. DeMille), ou João Francisco dos Santos, um

travesti associado à malandragem, ao crime e à homossexualidade cariocas,

ganhou um concurso do baile do teatro República com uma fantasia de

lantejoulas vermelhas inspirada na imagem de um morcego do nordeste.

No mesmo Carnaval de 1939, Carmen Miranda despontava com a

música “O que é que a baiana tem?”, de Dorival Caymmi, do filme Banana

da Terra, vestida com uma saia rodada e badulaques exagerados, uma

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evidente caricatura da cultura brasileira. Enquanto Madame Satã transgredia

as normas desafiando os tabus da sociedade da década de 1930, Carmen

Miranda correspondia ao desejo comercial da indústria do consumo. E qual

a relação que se pode estabelecer entre Satã, Carmen Miranda e Buell

Quain? A oposição de comportamento dos dois artistas citados encontra

reflexo dentro do antropólogo norte-americano, que, por um lado, questiona

padrões e, por outro, segue-os sem peso algum.

De volta à selva amazônica, em julho de 1939, Buell Quain instala-se

na tribo Krahô, mas se apresenta já um homem angustiado e inquieto,

comportamentos desencadeados, talvez, pela experiência homossexual, a

qual teve no Rio de Janeiro, durante o Carnaval regado a muito álcool, o que

teria favorecido o equívoco do antropólogo em relacionar-se sexualmente

com um homem fantasiado de enfermeira acreditando ser uma mulher.

A causa do desequilíbrio emocional de Buell Quain pode também estar

relacionada com os problemas familiares desencadeados pela separação de

seus pais, ou, ainda, um conflito amoroso do antropólogo com uma

namorada, ou namorado, deixados nos Estados Unidos.

Seja qual for o motivo do transe psiquiátrico de Buell Quain, em sua

última jornada pelas selvas brasileiras, a insatisfação, a angústia e a perda

de sentido de seus projetos o perseguiam, causando-lhe um estranhamento

incômodo. As incompreensões do antropólogo norte-americano, quanto ao

comportamento do indígena brasileiro, se acentuam e o choque cultural

principia nele uma forma de medo com relação ao que encontraria pela

frente.

Torna-se especialmente difícil para Buell Quain, um norte-americano

dotado de valores da civilização ocidental, aceitar a cultura dos índios, mas,

ao mesmo tempo que esse mal-estar o distanciava dos indígenas, também o

aproximava: os Trumai, temerosos dos ataques de outras tribos, viviam em

constante vigília e receosos de que fossem exterminados a qualquer

momento, enquanto Buell Quain vivia o medo de si mesmo, de seu duplo,

isto é, do outro que passou a persegui-lo interiormente, e a paranoia com a

morte, perceptível na repetição frequente de uma frase que lera, “toda morte

é assassínio”.

O ritual de passagem para a vida adulta em que a pele do jovem Trumai

era esfolada com a carapaça do tatu, deixando o corpo ensanguentado e

repleto de cicatrizes que eram admiradas com orgulho pelos indígenas,

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aproxima-se à cicatriz que Buell Quain tem de seu tórax à barriga, oriunda

de uma cirurgia feita pelo pai, e à martirização que ele submeteu seu corpo

antes de se enforcar, uma forma de rito de passagem, não para a fase adulta,

mas sim para a morte.

A trágica experiência de Buell Quain com os índios Trumai e Krahô,

guardadas as devidas diferenças, também encontra espelhamento na vida

do narrador-investigador-jornalista. Em suas buscas sobre os motivos que

teriam levado o antropólogo ao suicídio, o narrador-investigador-jornalista

viajou ao Xingu, onde teve uma experiência ímpar no contato com os índios.

O choque cultural se estabelece, principalmente, quando ocorrem as

cerimônias para aproximar o narrador-investigador-jornalista aos costumes

da aldeia Krahô. Nesse convívio de três dias com os índios, ele perdeu sua

independência, pois passou a necessitar dos índios para tudo e, embora,

mostrar-se receptivo aos costumes deles ser imprescindível, no episódio que

envolveu a alimentação, o narrador-investigador-jornalista recusou-se a

comer o intragável paparuto, espécie de bolo de mandioca com banha e

carne de porco, que lhe causava nojo.

Outra situação desagradável vivida pelo narrador-investigador-jorna -

lista foi o ritual da pintura do corpo, espécie de batismo, em que ele se

inscreveria na cultura Krahô, autorizando-o, por exemplo, a manter relações

sexuais com as mulheres da tribo. A cerimônia, da qual ele foge

inicialmente, concretizaria a possibilidade de integração com os índios, mas,

frente ao comportamento amedrontado, o narrador-investigador-jornalista

passa a ser ridicularizado pelos índios.

Assim, a relação entre narrador-investigador-jornalista e os índios

perdeu o valor de reciprocidade e ele partiu da tribo sem as informações

que buscava. Acreditando haver algo que os índios não lhe contaram, porque

não houve integração do narrador-investigador-jornalista com os costumes

Krahô, ele aventa a possibilidade de que os índios tivessem algo importante

a ser revelado sobre Buell Quain, mas, como vingança, mantiveram o

segredo que ele tanto buscava.

A incapacidade de entender, e até aceitar, a cultura indígena é

característica comum a Buell Quain e o narrador-investigador-jornalista.

São questionadas por ambos as relações de parentescos entre os índios, a

pintura corporal, a comensalidade, o interesse por presentes (inclusive

solicitados por telefone ao narrador-investigador-jornalista, depois de seu

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retorno a São Paulo, pois os índios entendiam que ele lhes devia algo por

terem-no adotado na sua tribo), a atividade sexual sem reservas e entre

familiares, a falta de sinceridade dos índios, e a conversão da selva de Locus

Amoenus para Locus Horrendus.

Tanto Buell Quain quanto o narrador-investigador-jornalista cavaram

um abismo nas relações entre eles e os índios, mas o antropólogo norte-ame -

ricano mergulhou nele, enquanto o narrador-investigador-jornalista

conseguiu fugir antes de cair nas profundezas.

3.5. BUELL QUAIN REAL E FICCIONAL: QUEM ERA OANTROPÓLOGO NORTE-AMERICANO?

Em 1938, chegavam ao Brasil antropólogos norte-americanos para

investigarem a cultura indígena das tribos do interior do País. Entre os

membros desse grupo estava o jovem Buell Quain de 27 anos, o qual, já de

início, classificou os índios Trumai como chatos e sujos, muito opostos aos

nativos com quem ele conviveu em Fiji, modelos de comportamento digno.

Conforme já se viu, após o bloqueio a sua pesquisa, impetrado pelo

Estado Novo, Buell Quain viajou ao Rio de Janeiro, e, posteriormente,

retornou à selva para investigar os índios Krahô. Inesperadamente, o antro -

pólogo, durante sua viagem de retorno do interior da selva, suicidou-se, por

motivos ignorados, segundo fontes oficiais, em 2 de agosto de 1939,

deixando escritas algumas cartas destinadas a familiares e amigos.

Se consultarmos bases de informação sobre Buell Quain, os dados a

respeito dele não vão muito além do que essa biografia anterior apresenta.

Bernardo Carvalho, autor de Nove Noites, amplia significativamente os

detalhes da vida do antropólogo norte-americano ao recriar, ficcionalmente,

o que ele viveu no Brasil e como as experiências dele teriam sido

traumáticas. Para isso o autor dá voz ao narrador-investigador-jornalista

que, como já se relatou, busca por informações sobre Buell Quain, após ter

lido uma matéria sobre antropólogos no jornal.

A partir daí, instaura-se um processo longo de coleta de dados e

pesquisas in loco, na busca por informações que revelassem o motivo do

suicídio de Buell Quain. É necessário destacar que os fatos históricos,

fotografias, referências a personalidades são elementos contextualizados,

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manipulados pelo narrador-investigador-jornalista, criado por Bernardo

Carvalho, com o interesse final de compor um romance ficcional.As primeiras descrições do antropólogo são apresentadas por Manoel

Perna em sua carta-testamento. É por meio dela que conhecemos asdificuldades enfrentadas por Buell Quain no Brasil, principalmentedesencadeadas pelos impactos culturais, por problemas familiares e pelasdúvidas de orientação sexual. Dessa maneira, sabe-se que os mesesantecedentes ao suicídio de Buell Quain, passados em companhia dos índiosKrahô e de Manoel Perna, desequilibraram o antropólogo psicologicamente.

Na carta-testamento, um engenheiro de Carolina reproduz as conversastravadas com Buell Quain durante nove noites não consecutivas, regadas aálcool desencadeador de embriaguez, estado em que ambos talvez tenhamimaginado muitos dos fatos relatados, gerando a possibilidade de que asinformações estejam deturpadas no relato de Manoel Perna.

De qualquer maneira, o que Buell Quain contou a Manoel Perna quasesempre se vincula às dificuldades de socialização do antropólogo e àconstante sensação de medo que ele procurava superar. Distante da pátria,espaço desenvolvido e totalmente diferente da precariedade brasileira, oantropólogo norte-americano isolava-se cada vez mais, como se fugisse nãosó de todos, mas, principalmente, de si mesmo. Essa solidão é amenizada,no entanto, quando Buell Quain divide suas experiências com Manoel Pernae, também, ao escrever as cartas em que, hipoteticamente, dialoga com osseus destinatários.

O antropólogo parece temer o domínio de seu outro eu, seu duplofantasmagórico, que ganhou contornos mais firmes após a experiênciavivida no Rio de Janeiro, do qual ele tenta se livrar, ideia que vai seconsolidando quando ele retorna à selva, culminando no suicídio.

Nos relatos que o antropólogo faz de sua convivência com os índiosTrumai, cada vez mais se intensifica sua repugnância pelos costumes,comportamentos, aparência, hábitos, comidas, atividades sexuais, principal -mente no que concerne às relações incestuosas e homossexuais.

O antropólogo norte-americano conta a Manoel Perna sobre um jovemTrumai que o teria procurado para práticas sexuais, situação da qual doisproblemas surgiram: as práticas sexuais entre os estrangeiros pesquisadorese os indígenas não eram admitidas, e a homossexualidade que Buell Quainrejeita, principalmente por ele ser de família tradicional americana, a qual,na opinião dele, não poderia entenderia sua orientação sexual.

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Ainda nos Estados Unidos o antropólogo norte-americano envolveu-se

com o fotógrafo, o qual tirou dele duas fotografias inesperadas, e também

com uma amiga que mantinha um caso com o mesmo fotógrafo. A

homossexualidade, heterossexualidade ou bissexualidade de Buell Quain

indefine-se inicialmente, mas, no transcorrer das conversas que tem com

Manoel Perna, parece ser a atividade homossexual a mais perturbatória para

o norte-americano.

Além do mais, a vigilância constante do Estado Novo às atividades dos

antropólogos estrangeiros fazia Buell Quain sentir-se espionado o tempo

todo e, talvez, teria sido esse mesmo regime de controle rígido que tivesse

feito Manoel Perna esconder uma das cartas escritas pelo antropólogo, pois,

nela poderia estar revelada a homossexualidade de Buell Quain e, o que

seria extremamente agravante, praticada com os índios.

No momento em que as índias se oferecem sexualmente ao

antropólogo, sua reação é de ameaçá-las, afirmando que iria violentá-las, o

que provoca os risos das indígenas. O comportamento ridicularizador a que

é submetido Buell Quain pode ser interpretado como um escárnio, pois, para

as índias ele não seria ativo sexualmente e, por isso, não teria perigo algum

de estupro, duvidando-se, portanto, de sua heterossexualidade.

Mas, por outro lado, o antropólogo declara a algumas pessoas que era

casado e sua esposa o havia traído, além de ficar sugerido nas pesquisas do

narrador-investigador-jornalista que ele teria um filho nos Estados Unidos,

criado pelos pais de seu amante, o que teria coerência com o fato de Buell

Quain ter sido traído pelo fotógrafo e pela namorada simultaneamente.

Para Manoel Perna, problemas sexuais levaram o antropólogo ao

suicídio, sejam eles decorrentes da homossexualidade reprimida, sejam

motivados pela doença aventada pelo próprio antropólogo. Segundo o

enredo de Nove Noites, Buell Quain teria amizade com o Claude Lévi-

Strauss, com o qual chegou a conversar sobre a suspeita de ter contraído

sífilis16, por ocasião da sua vinda ao Rio de Janeiro, num relacionamento

16 Sífilis, ou lues, é uma infecção sexualmente transmissível causada pela bactéria Treponemapallidum. Pode também ser transmitida verticalmente, da mãe para o feto, por transfusão desangue ou por contato direto com sangue contaminado. Se não for tratada precocemente, podecomprometer vários órgãos como olhos, pele, ossos, coração, cérebro e sistema nervoso. Operíodo de incubação, em média, é de três semanas, mas pode variar de dez a 90 dias.(Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/sifilis. Acesso em: 9 set.2020.)Atualmente a sífilis é considerada uma doença reemergente, devido ao grande aumento da suaincidência nos países em desenvolvimento, enquanto nos países desenvolvidos é atualmente

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casual com uma enfermeira.

Sabe-se que, na versão do antropólogo, a tal enfermeira era, na verdade,

um homem fantasiado de mulher e o suposto equívoco teria resultado numa

atividade homossexual. A possibilidade de Buell Quain ter contraído sífilis

no meio indígena também é levantada. Em carta a Heloísa Torres, o

antropólogo informa sua retirada da tribo em decorrência de sua doença, de

problemas com o serviço de proteção aos índios, e de uma situação sexual

envolvendo os indígenas, que fez o tenente-coronel Vicente de Paulo

Teixeira da Fonseca Vasconcelos expulsá-lo da região Trumai.

Note-se que a ida de Buell Quain ao Rio de Janeiro é posterior a sua

retirada da tribo Trumai, então, talvez ele já tivesse viajado ao Rio de Janeiro

com sífilis contraída em meio aos índios. Além disso, os indígenas já haviam

percebido que o antropólogo norte-americano tinha sintomas de alguma

doença e, em carta a Ruth Landes, ele comenta que os dentes da arcada

superior dos Trumai eram limados, denominados “dentes de Hutchinson17”,

sintoma comum de sífilis.

Ao retornar ao Xingu, em sua nova pesquisa sobre os índios Krahô,

Buell Quain já estava bastante debilitado. Batizado como Cãmtwýon (Cãm-

significa o momento presente e -tuýon, lesma ou caracol e seu rastro) pelos

Krahô, o antropólogo associou, de certo modo, o nome a sua personalidade,

pois ele parecia circular em torno de seus conflitos e refugiar-se em seu

interior como um caracol.

Tudo se agrava quando Buell Quain recebe notícias da família dos

Estados Unidos, que parecem intensificar a loucura da qual, segundo alguns

colegas, o antropólogo, por ter se isolado em um local inóspito e solitário,

foi vítima e acabou suicidando-se. A última caminhada de Buell Quain pelas

matas, quando retornava a Carolina com o propósito de voltar aos Estados

Unidos, onde seu filho nascera e sua mãe sofria com a separação do marido,

assemelha-se a uma fuga desesperada de algo que o perseguia

considerada epidemiologicamente estável. Essa clássica doença sexualmente transmissível(DST) pode ser evitada e controlada por meio de medidas voltadas para a população em geralquanto à prática do sexo seguro. (Disponível em: http://www.hse.rj.saude.gov.br/profissional/revista/37/ sifilis.asp. Acesso em: 9 set. 2020.)

17 Na cavidade bucal podem aparecer os incisivos centrais superiores, com aspecto de barril oucravelha. São os dentes de Hutchinson. Os primeiros molares inferiores podem apresentarcúspides múltiplas e mal formadas chamadas “molares em amora”. Os defeitos da formaçãodo esmalte acarretam cáries sucessivas e a subsequente destruição dos dentes. (Disponível em:http://www.hse.rj.saude.gov.br/profissional/revista/37/sifilis.asp. Acesso em: 9 set. 2020.)

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incomodamente, isto é, de seu duplo que o mataria e estava em seu encalço.

O antropólogo parecia temer tudo, todos e a si próprio, ou melhor, seu

outro eu, o seu duplo, que lhe despertava aflições e conflitos identitários. O

medo de aceitar sua personalidade real, apresentada pelo seu duplo, é

patente em Buell Quain, intensificado pelo ambiente de trevas em que vive

com os Trumai e com os Krahô.

Para Perna, o antropólogo precisava livrar-se da identidade de seu outro

eu que o afligia e, por isso, teria vindo ao Brasil, afastando-se da civilização

norte-americana, mas a metamorfose não ocorreu como ele esperava, pelo

contrário, Buell Quain ainda se identificou, por exemplo, com o medo

desesperador de extinção dos Trumai.

O antropólogo, ao se suicidar, destrói o seu duplo que rejeita, enforca

seu outro para livrar-se dele e, matando-o, deixa a incógnita que o romance

não consegue decifrar: quem era realmente Buell Quain e por que se matou?

3.6. CARTAS, CARTAS E MAIS CARTAS

Durante nove noites, repletas de cachaça e escuridão, Manoel Perna

conversou com Buell Quain em meio à selva amazônica. Ouvinte paciente,

o engenheiro de Carolina tornou-se confidente do antropólogo e guardião de

uma de suas cartas, que parece conter a resposta ao mistério da morte do

antropólogo.

No primeiro capítulo do romance, o leitor já toma contato com a

carta-testamento escrita por Manoel Perna anos após a morte do norte-ame -

ricano. Aparentemente, o discurso de Manoel Perna aproxima-se de uma

possível sinceridade, mas as contradições vão surgindo ao longo do relato

em decorrência da memória dos fatos ter se misturado ao que realmente

ocorreu e ao que foi imaginado por Buell Quain e Manoel Perna.

O engenheiro de Carolina dirige sua carta-testamento a um receptor

tratado por “você”, a quem o antropólogo teria deixado uma carta escrita em

inglês, e que poderia esclarecer o real motivo de seu suicídio, mas jamais

entregue ao destinatário. O discurso de Manoel Perna é repleto de

subjetividade, justificável pela emoção que sente ao se recordar do amigo

morto e, também, ao pensar que poderia tê-lo impedido de se suicidar caso

lhe tivesse levado pessoalmente as últimas cartas recebidas.

Assim, o leitor vai aguardando o momento em que o destinatário da

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carta-testamento de Manoel Perna receberá a missiva de Buell Quain e todo

o mistério será resolvido. O que o leitor não espera é a revelação final do

narrador-investigador-jornalista de que as cartas de Manoel Perna e a última

de Buell Quain são criações ficcionais. Mesmo assim, é a carta-testamento

de Manoel Perna que alicerça todo o romance Nove Noites e mantém o

suspense, além de indicar que o engenheiro sabia o motivo do suicídio do

antropólogo:

Se agi como se ignorasse os motivos que o levaram ao suicídio foi para

evitar o inquérito. A polícia tomou conhecimento do caso e fez o

inventário dos fatos e do espólio a pedido dos americanos. Não me

julgue mal. Não teria podido responder a nada. O silêncio foi um peso

que carreguei durante anos, enquanto estive à sua espera. Já não posso

me arriscar a que tudo desapareça comigo. (NN, 2002, p. 24)

As nove noites, de que trata o título do romance, compreendem um

intervalo de cinco meses da estada de Buell Quain no Brasil, desde o dia em

que conheceu Manoel Perna até o momento da viagem do antropólogo à

tribo Krahô. São essas nove noites que fazem Manoel Perna compor a

carta-tes tamento, já que a confiança de Buell Quain, ao lhe contar sua vida,

merecia ser documentada.

Existem também as cartas que Buell Quain escreveu, antes de decidir

se matar, para Ruth Benedict, Eric P. Quain, Charles Kaiser (seu cunhado),

Heloísa Alberto Torres, reverendo Thomas Young, capitão Ângelo Sampaio

e Manoel Perna. O narrador-investigador-jornalista vale-se da leitura atenta

delas, mas constata algumas contradições entre o que Manoel Perna conta

e o que o antropólogo escreve.

Na carta a antropóloga Heloísa Torres, Buell Quain revela estar com

uma doença contagiosa e, na enviada a Ruth Benedict, ele recomenda

desinfecção da correspondência, o que indicaria de fato a doença do

antropólogo. Outra carta importante no enredo de Nove Noites é a que Buell

Quain recebe dos Estados Unidos, trazendo notícias desencadeadoras do

desesperado retorno dele para Carolina.

Para complementar a relação de cartas distribuídas ao longo do

romance, há aquelas escritas pelo narrador-investigador-jornalista e

enviadas aos Estados Unidos em busca de familiares de Buell Quain, a fim

de descobrir algo que pudesse esclarecer suas dúvidas. No entanto, das cerca

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de 150 cartas enviadas, o narrador-investigador-jornalista recebeu cerca de

20 respostas apenas sendo, talvez, o motivo de não obtenção de retorno o

fato de os Estados Unidos viverem o temor das cartas contaminadas por

antraz, que levaram seus receptores à morte.

Enquanto a carta-testamento de Manoel Perna é apresentada com letras

em itálico, as demais são marcadas por aspas, o que corresponderia a serem

elas documentos reais. No entanto, nenhuma correspondência chega a

esclarecer definitivamente o porquê do suicídio de Buell Quain, embora,

durante uma conversa do narrador-investigador-jornalista com Raimundo

Perna, filho do engenheiro, ele passe a acreditar na existência de uma oitava

missiva e/ou de um diário do antropólogo.

A oitava carta escrita por Buell Quain não existe, é irreal acreditar nela

como a possibilidade de resposta a todos os mistérios que o romance Nove

Noites apresenta. O diário do antropólogo não é encontrado, sendo apenas

aventada a possibilidade de sua existência. A pesquisa científica do narrador-

investigador-jornalista também não ganhou forma textual, apenas foi

desejada, e sua realização inviável pelos enigmas indecifráveis da vida de

Buell Quain.

A ficcionalização da realidade criada habilmente por Bernardo

Carvalho, ou a mentira do romance, é o elemento concreto que recupera a

figura esquecida de Buell Quain até mesmo nos meios da antropologia,

dando-lhe uma nova vida no mundo da ficção. Em nossos agradecimentos

do romance, Bernardo Carvalho refere-se a pessoas de identidades reais que

o auxiliaram na elaboração da obra e, salvaguarda-se de possíveis processos

judiciais:

Este é um livro de ficção, embora esteja baseado em fatos, experiências

e pessoas reais. É uma combinação de memória e imaginação – como

todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta.

Ao longo da pesquisa que o precedeu, contei com o auxílio de várias

pessoas, a começar por Mariza Corrêa. Sem ela, provavelmente eu

nunca teria sabido da existência de Buell Quain e este livro não

existiria. (...) Nenhuma dessas pessoas tem responsabilidade pelo

conteúdo ou pelo resultado final da obra. (NN, 2002, p.169, 170)

Para acreditar nos relatos do romance Nove Noites é necessário que o

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leitor estabeleça um pacto de credibilidade com o narrador-investigador-jor -

nalista para, assim, vivenciar toda a ficção da obra como se fosse a verdade

absoluta e, magicamente, se surpreender quando, no desfecho do romance,

tudo o que foi anteriormente relatado é dissolvido no ar, mas mantendo

Buell Quain personagem ficcional vivo, mesmo que o narrador-inves -

tigador-jornalista afirme:

(...) me lembrei sem mais nem menos de ter visto uma vez, num desses

programas de televisão sobre as antigas civilizações, que os Nazca do

deserto do Peru cortavam as línguas dos mortos e as amarravam num

saquinho para que nunca mais atormentassem os vivos. Virei para o

outro lado e, contrariando a minha natureza, tentei dormir, nem que

fosse só para calar os mortos. (NN, 2002, p. 167, 168)

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4. EXERCÍCIOS

1. No romance Nove Noites, fato e ficção, verdade e mentira são conceitos

frequentemente discutidos por Manoel Perna e pelo narrador-investigador-

jornalista. Explique em que medida, dentro do contexto da obra, ocorre a

ficcionalização da realidade.

2. Quais relações podem se estabelecer entre Buell Quain, o narrador-

investigador-jornalista e o autor Bernardo Carvalho?

3. Em algumas obras consagradas da literatura brasileira, como Memórias

Póstumas de Brás Cubas, Angústia, Iracema, Vidas Secas, nota-se que a

estrutura composicional dos romances é alicerçada na proposta de narrativa

circular, isto é, o desfecho do romance vincula-se ao princípio dele, criando

a possibilidade de uma leitura sem fim. Em Nove Noites, o recurso de eterno

retorno aparece, mas de uma forma mais ampla. Explique-a.

4. O Grande Dicionário Houaiss assim define o sentido do vocábulo

“terror”:

substantivo masculino 1 estado de medo intenso; pavor

2 o que inspira medo ou se faz sentir como grande ameaça ‹Lampião foi

o t. da caatinga› ‹as gangues espalharam o t. pela cidade›

2.1 m.q. terrorismo (POL) ‹o governo dos E.U.A. tomará duras medidas

contra o t.›

2.2 CINE, LIT, RÁD, TEAT, TV gênero ficcional cujo objetivo é provocar

medo ou susto ‹filmes de t.›

3 HIST período da Revolução Francesa, entre 31 de maio de 1793 e 27

de julho de 1794, em que se efetuaram prisões e execuções de

opositores inicial. maiúsc.

4 p.ext. qualquer época de perseguições, morticínios etc. por motivos

políticos

Cite duas acepções do vocábulo “terror” empregadas no romance Nove

Noites.

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5. A partir das informações coletadas pelo narrador-investigador-jornalista

sobre Buell Quain, assinale (V) verdadeiro ou (F) falso, conforme o enredo

do romance Nove Noites:

a) ( ) A mãe de Buell Quain, Fannie Quain, era uma mulher aflita e

atormentada com o final de seu casamento.

b) ( ) Buell Quain teria uma doença misteriosa, possivelmente sífilis.

c) ( ) Os amigos de Buell Quain, da Universidade de Columbia,

especulavam a possibilidade de assassinato do antropólogo.

d) ( ) Mariza Corrêa, antropóloga do artigo, ao ser procurada pelo

narrador-investigador-jornalista, deduz que ele estaria em busca de

material para compor um romance.

e) ( ) Manoel Perna sugere que conflitos sexuais estariam por trás do

suicídio de Buell Quain.

f) ( ) O discurso de Manoel Perna é marcado por impressões subjetivas

e pela letra em itálico.

g) ( ) Os discursos de Manoel Perna e do narrador-investigador-jornalista

frequentemente se contradizem ou desautorizam suas verdades,

principalmente porque o de Manoel Perna vincula-se à ficção, e o

do narrador-investigador-jornalista, prima pela verdade, pois,

inicialmente se trata de pesquisa embasada em provas documentais.

h) ( ) Manoel Perna declara que é impossível a recuperação do passado

e a solução do mistério do suicídio de Buell Quain, alertando o

leitor, desde o início, sobre o território ficcional em que ele estaria

ingressando.

i) ( ) “Isto é para quando você vier”, frase comumente escrita por

Manoel Perna em sua carta-testamento, pode ser interpretada como

a espera do namorado de Buell Quain ou a espera do leitor, pois o

dêitico “você” ganha aspectos de ambiguidade.

j) ( ) O índio Krahô Diniz, ao ser questionado pelo narrador-investi -

gador-jornalista sobre Buell Quain, apresenta informações

distorcidas em relação às versões oficiais, fortalecendo a

perspectiva de que o romance se converterá realmente em ficção.

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RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS

1. Durante todo o romance, o autor Bernardo Carvalho associa o discurso

jornalístico ao literário, apontando elementos que tornam a verdade do

relato insustentável. O narrador-investigador-jornalista, em sua

pesquisa sobre os motivos que levaram Buell Quain ao suicídio, elenca

fatos e versões oscilantes em busca de uma verdade única, a qual não

é alcançada. O que, inicialmente, seria um trabalho de pesquisa

documental, torna-se enredo de um romance ficcional, no qual será

mantido o mistério acerca do que houve no percurso de Buell Quain da

tribo Krahô até a cidade de Carolina.

2. O narrador-investigador-jornalista, após ler um artigo sobre

antropologia no jornal, interessa-se pelo mistério que envolve o suicídio

de Buell Quain e principia uma exaustiva pesquisa envolvendo

documentação, entrevistas e viagens, a respeito do assunto. Durante o

relato feito sobre o antropólogo, o narrador-investigador-jornalista

retoma momentos da sua infância, passada em parte no Xingu, ao lado

do pai, e, avaliando sua relação com os índios e a figura paterna, elabora

reflexões íntimas reveladoras de seus conflitos, aproximando o relato

ficcional a certas experiências vividas também pelo autor Bernardo

Carvalho. Assim, o narrador-investigador-jornalista projeta sua

vivência na de Buell Quain, e Bernardo Carvalho o faz também por

meio da figura ficcional do narrador-investigador-jornalista. Embora

Bernardo Carvalho e o narrador-investigador-jornalista sejam ambos

jornalistas e bisnetos do marechal Rondon, o que afastaria a obra da

classificação de autoficção é o fato de que o narrador-investigador-

jornalista não partilha da mesma identidade nominal do autor,

mantendo-se inominado em todo o romance.

3. Na cena final de Nove Noites, durante a viagem de volta dos Estados

Unidos para o Brasil, ao lado do narrador-investigador-jornalista,

derrotado pela impossibilidade de decifrar o mistério Buell Quain,

senta-se um jovem americano pesquisador das tribos indígenas

brasileiras, que, entusiasmado com sua nova tarefa, estabelece uma

pequena conversa com o narrador-investigador-jornalista, justamente

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no momento em que a aeronave sobrevoava a região de mata onde

Buell Quain havia se suicidado. A sensação de eterno retorno no

romance de Bernardo Carvalho, então, não se configura por uma

narrativa que induza o leitor a voltar ao início da obra, em decorrência

da circularidade viciosa do enredo, mas sim no sentido de que a história

sem fim de Buell Quain se projeta no novo estudante, tão entusiasmado

quanto o norte-americano, morto em 1939, e vindo ao Brasil em um

projeto semelhante ao dele. Outro fator a ser destacado é que o

narrador-investigador-jornalista parece ser perseguido pelo fantasma

de Buell Quain. Vejamos: o antropólogo norte-americano, que surge na

vida do narrador-investigador-jornalista por meio do artigo de Mariza

Corrêa, teve experiências no Xingu, como o narrador, foi fotografado

por Andrews Parsons, que chamou o narrador-investigador-jornalista

de Buell Quain (Bill Conhen, como ele entendeu) e, no desfecho do

romance, “renasce” na figura do jovem pesquisador do avião. Daí a

frase calar os mortos, citada pelo narrador-investigador-jornalista, no

final do romance, exercer dupla significação: é necessário calar Buell

Quain para que o futuro de investigações antropológicas sobre os índios

do Xingu brasileiro continue sem causar pânico nos pesquisadores,

como, também, permita ao narrador-investigador-jornalista a

tranquilidade de não ser mais perseguido pelo fantasma do antropólogo

norte-americano.

4. Nove Noites é construído a partir de situações ocorridas em tempos

distintos: o período de Buell Quain no Brasil, entre 1938 e 1939, e o

momento em que o narrador-investigador-jornalista resgata a figura do

antropólogo em suas pesquisas, 2001, e retoma, por meio delas, sua

infância no Xingu na década de 1970. Assim, no período de 1938/39,

o terror estaria vinculado, historicamente, ao domínio Vargas, aos

efeitos da Segunda Guerra Mundial e ao convívio nada agradável de

brancos com os índios brasileiros que despertavam medo no

antropólogo. Os anos de 1970 configuram o sentido de terror aplicado

pelo regime militar no Brasil e, também, as experiências horripilantes

do narrador-investigador-jornalista em suas viagens ao Xingu em

companhia do pai. Finalmente, o sentido explícito da palavra “terror”,

desdobrado em terroristas, aparece nas referências ao ataque de 11 de

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setembro ao World Trade Center e às cartas com antraz, situações

causadoras de milhares mortes.

5. Todas as alternativas apresentam informações verdadeiras.

5. BIBLIOGRAFIA

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6. ANEXOS

6.1. São Paulo, sábado, 08 de março de 2003

jornal de resenha

FOLHA DE S.PAULO | ÍNDICE GERAL

Crítico discute o embate entre ficção e realidade em “Nove Noites”, de

Bernardo Carvalho

Segredos e distorções

Nove Noites

Bernardo Carvalho

Cia das Letras

(Tel. 0/xx/11/3167-0801)

176 págs., R$ 28,00

ALCIR PÉCORA

Ao escrever neste Jornal de Resenhas a respeito de “Nove Noites”,

novo romance de Bernardo Carvalho, alguma circularidade se instala, pois

ele começa justamente com a referência à leitura de um “artigo de jornal”.

O nome do jornal, o título ou o autor do artigo em questão não são

explicitados no romance, mas não é difícil descobri-los, desde que o livro

está dedicado a Mariza Corrêa, conhecida antropóloga da Unicamp, e a data

do tal “artigo de jornal” é dada como 12 de maio de 2001, um segundo

sábado do mês. Com efeito, nesse dia, o “Jornal de Resenhas” publicava

“Paixão Etnológica”, resenha da própria Mariza Corrêa a respeito do livro

“Cartas do Sertão – De Curt Nimuendajú para Carlos Estevão de Oliveira”

(Museu Nacional de Etnologia/ Assírio & Alvim).

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Logo ao início de sua resenha, Mariza escrevia que, entre os poucos

casos de morte de antropólogos no “campo”, estavam “os de Buell Quain,

que se suicidou entre os índios krahôs, em 1939, e o de Curt Nimuendajú,

que morreu durante uma visita aos índios ticunas, em 1945, em

circunstâncias até hoje debatidas pelos etnólogos”. Referindo-se à morte do

norte-americano Quain, principal assunto do romance, Mariza escreve

apenas mais um parágrafo, mas ele é suficientemente intrigante para que

Bernardo Carvalho possa apresentá-lo como o primeiro indício do “plot”

orquestrado por seu romance: “A comoção causada por sua morte foi sentida

lá e aqui, e durante muitos anos esse foi um dos segredos da história da

etnologia”.

A frase pode ser lida de modo a favorecer a intriga armada pelo

romance, que, em termos rápidos, organiza-se em torno da pergunta pelos

motivos que teriam levado Quain, aos 27 anos, a cometer um suicídio brutal,

no qual flagelara o próprio corpo com uma navalha antes de se enforcar, em

plena selva, quando voltava da aldeia krahô para a cidade de Carolina, no

atual Estado de Tocantins.

Inquietação e desconfiança

Isso posto, pode-se dizer que o livro de Bernardo Carvalho se apresenta

como um misto de romance-reportagem e de romance policial, selado pela

obsessão investigativa do narrador-jornalista e pelo suspense do andamento

das descobertas, que é, em parte, sustentado pelo minucioso balizamento

das datas e circunstâncias da investigação. A certa altura da leitura, comecei

a rodear com lápis as inúmeras referências temporais e geográficas aplicadas

aos menores acontecimentos e percebi que é rara a página na qual não se

encontra alguma delas.

O procedimento ostensivo cria alguma inquietação ou mesmo certa

desconfiança derivativa e paranoica, tal como a explorada na série “Arquivo

X”, por exemplo, quando estar no deserto do Arizona numa certa hora,

minuto e segundo parece se articular a um processo irresistível que

culminará com uma invasão alienígena a milhares de anos e quilômetros

dali. A analogia pode parecer desmerecedora para o romance, e talvez o seja,

pelo que me desculpo, mas ela dá uma ideia razoável da criação do clima

conspiratório, sub-reptício naquela frase inspiradora de Mariza Corrêa, e

dramaticamente manifesto no livro inteiro de Bernardo Carvalho.

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Posso usar uma comparação menos popular. O tratamento dado pelo

romancista ao caso da morte de Quain vai no sentido oposto àquele que o

antropólogo Roque de Barros Laraia, da Universidade de Brasília (UnB),

imprimiu ao seu artigo “As Mortes de Nimuendajú” (“Ciência Hoje”, vol.8,

n.º 44, de 1988), quando procura demonstrar, a contrapelo das várias

hipóteses de assassinato do antropólogo alemão Curt Unkel, rebatizado

pelos índios como Nimuendajú, que ela teria sido “apenas uma morte

natural”, não importa quanta decepção causasse à imaginação romântica

das pessoas. Em “Nove Noites”, ao contrário, tudo é ou se torna suspeito;

todas as personagens aparentam saber mais do que dizem; toda a

investigação parece estar fadada a não descobrir e mesmo determinada a

deliberadamente encobrir. Aliás, no andamento do romance, fica claro que

o próprio narrador-jornalista, o único parceiro de ignorância e curiosidade

sincera do leitor, não está ele mesmo isento de suspeitas e de motivos

secretos.

Arquitetura complexa

O que fiz até agora, como disse, foi apenas tomar uma via rápida de

apresentação do romance. Pois a sua arquitetura é bem mais complexa e

está assentada na alternância de uma dupla narração, muito diferente entre

si – traço comum aos romances de Bernardo Carvalho. Assim, o repórter

que escreve em 2002 não é o único a ocupar a posição de narrador: há ainda

um contemporâneo de Quain, um engenheiro-sertanejo, morador de

Carolina, que se tornara amigo do antropólogo.

Este escreve em meados dos anos 40, quando pressente a iminência da

própria morte e relembra as “nove noites” em que estivera com o americano,

bebendo e conversando, num intervalo de cinco meses a contar do dia em

se conheceram até aquele em que o engenheiro o acompanhou em parte de

sua última viagem à aldeia krahô. O texto desse narrador é, assim, uma

espécie de carta-testamento, cujo destinatário particular seria um antigo

amante de Quain, que estaria no centro da causa de seu suicídio e cuja

chegada é esperada para breve.

Nesse ponto, são tantos os detalhes de construção do mistério, que

confesso ser difícil dar dele qualquer imagem aproximada e ao mesmo

tempo suficientemente embaçada para não ser um estraga-prazer dos futuros

leitores do romance. Fiquem, pois, apenas esses indícios.

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A narração epistolar do engenheiro não tem a mesma paranoia de

objetividade que apontei na do jornalista. Ela é alusiva, sinuosa e remete

com estranha intimidade a fatos que não são conhecidos ou que são apenas

imaginados, o que produz um efeito de cumplicidade solene e tácita (e, em

seus maus momentos, sentenciosa e kitsch) entre o narrador e o destinatário

ausente.

E produz não apenas uma cumplicidade entre eles. O destinatário

secreto, referido pelo engenheiro como um simples “você”, produz o tipo de

ambiguidade insolúvel dos dêiticos – termos da linguagem usual que não

têm sentido fixo ou lexical, mas sim dependente do conhecimento da

posição de quem fala –, quando empregados fora de uma situação oral

particular. Assim, virtualmente, o “você” a quem a carta se dirige inclui não

apenas o esperado amante de Quain, como também qualquer um que esteja

em posição de lê-la: exatamente aquela em que está o leitor do romance.

Bernardo Carvalho joga firme nessa ambiguidade. Todas as frases

apontam e incluem os leitores na cumplicidade dissimulada em torno da

morte trágica e de sua herança de “segredo”. Cada frase da carta, cujo

“você” é potencialmente preenchido pelo leitor, acaba por enredá-lo no

coração da intriga, sem que saiba exatamente qual seja ela ou qual o papel

provavelmente escuso que ocupa aí.

A morte de Quain não apenas não é “natural”, como contamina e destrói

toda ideia de naturalidade assumida pelas personagens e pelos narradores.

No limite, resta a suspeita de que mesmo o leitor que busca uma explicação

para os acontecimentos narrados não pode ser inteiramente inocente, como

certamente não pode sê-lo o narrador da carta-testemunho que lhe escreve

confessando ter feito tudo o que pôde, até aquele momento, para esconder

a suposta explicação de todos.

Três tempos

Para avançar, será preciso retomar o narrador-jornalista e notar que a

sua própria narração se desdobra em três tempos diferentes. O mais atual,

para simplificar, é contemporâneo do ambiente de desconfiança

generalizada que se seguiu à queda do World Trade Center. O mais recuado

passa-se ao final dos anos 60, quando o jornalista é ainda uma criança e

viaja com o pai fazendeiro pelo alto Xingu, aterrorizando-se com os voos

precários, a promiscuidade paterna e o contato canhestro e mal-intencionado

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com os indígenas.

Há ainda um tempo intermediário, situado no início dos anos 90,

quando o pai já foi atingido por uma doença degenerativa do cérebro e o nar -

rador passa com ele alguns dias em seu quarto de hospital, interessando-se

simultaneamente por outro paciente em estado terminal, norte-americano

como Quain, que parece esperar, há anos, um antigo amigo, cujo nome,

pronunciado em delírio, soa como “Bill Cohen”.

Percebe-se então, em algum instante súbito da leitura, que os três

tempos da narração do jornalista absorvem ou ecoam as principais situações

e acontecimentos assinalados pelo enigma de Quain, de modo que o objeto

de sua investigação se confunde com a memória mais irreparavelmente

dolorosa de quem o investiga. Esse é o ponto sem retorno da investigação:

aquele em que a causa do suicídio, sem se esclarecer pela explicação, volta

a pulsar no cerne da narração. A eventual loucura da aniquilação do corpo

no passado remoto se reinstala como vírus da linguagem no presente.

Por esse entrecho, pode-se perceber quão certeiras permanecem as

palavras de Luís Costa Lima quando notava a propósito de “Teatro”, outro

romance de Bernardo Carvalho, a sua “extrema habilidade de duplicar,

distorcer e deformar cada figura ou acidente de sua trama”. Também em

“Nove Noites”, como naquele livro, com o “cruzamento da óptica dos dois

narradores (...), desestabilizam-se as ideias de referência e realidade”. O

resultado é que “o mundo da realidade virtual amplia o presente para

convertê-lo em pesadelo”. Criticável em “Teatro”, para Costa Lima, era o

esforço de Bernardo Carvalho para encaixar todas as peças de seu

quebra-cabeça narrativo, extremando-se em “transformar o inverossímil em

verossímil” e “em não deixar brechas para uma leitura adversa”. “Nove

Noites”, a meu ver, está livre dessa falha. Pois o narrador-epistolar parece

justamente significar uma resposta a esse tipo de crítica, ao produzir a sua

escrita como uma “combinação” daquilo que Buell Quain lhe contou e

daquilo que ele próprio imaginou, liberando igualmente o “você” a quem se

dirige para imaginar o que nunca chegou a escrever.

Seja como for, o encaixe das peças da morte de Buell Quain –

deformado em “Bill Cohen” (cujas iniciais são as mesmas do autor) ou até

em um simples “Quem” – nunca chega a ser completa ou sequer satisfatória.

O leitor está obrigado a imaginar hipóteses precariamente capazes de dar

sentido aos dados apresentados com minúcia alucinada, sem que nenhum

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deles adquira jamais o estatuto de “evidência”. São mais alegações

interessadas, autodescrições empenhadas, no caso do narrador-jornalista, e

racionalizações afetivas, no caso do narrador-testemunho. Os “fatos” –

principalmente os “fatos” – são os grandes inverossímeis de “Nove Noites”.

6.2. São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001

jornal de resenha

Paixão etnológica

Cartas do guru da etnologia brasileira

MARIZA CORRÊA

Alguns anos atrás, um colega, cujo filho ia fazer pesquisa de campo

entre os índios do Brasil, me perguntou: “Não é perigoso?”. Respondi,

automaticamente, “não, nunca ninguém morreu no campo, no Brasil”. Mas

não era bem verdade, pensei depois, lembrando, entre os poucos casos que

conheço, os de Buell Quain, que se suicidou entre os índios krahôs, em

1939, e o de Curt Nimuendajú, que morreu durante uma visita aos índios

ticunas, em 1945, em circunstâncias até hoje debatidas pelos etnólogos.

Buell Quain era um antropólogo norte-americano, orientado por Ruth

Benedict, dentre aqueles que tinham vindo fazer pesquisa no Brasil no

âmbito de um acordo informal entre o Museu Nacional e a Universidade

Columbia: a comoção causada por sua morte foi sentida lá e aqui e durante

muitos anos esse foi um dos segredos da história da etnologia.

Curt Nimuendajú, um antropólogo alemão nascido em Jena em 1883,

tinha originalmente o nome de Curt Unkel, adotando depois o que lhe foi

dado pelos índios guarani, e veio para o Brasil em 1903, tendo tido

“residência permanente”, como ele dizia, em São Paulo até 1913 e depois,

até sua morte, em Belém, no Pará. 1

Autodidata, construiu sua trajetória na etnologia brasileira pesquisando,

pesquisando, pesquisando. Talvez tenha sido o último daquela “falange

brilhante de etnógrafos viajantes”, mencionada por Herbert Baldus, que

vieram ao Brasil para se embrenhar nas selvas e conhecer os verdadeiros

nativos do país. Andarilho por definição, recolheu o que pôde sobre a cultura

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material dos índios brasileiros – material espalhado pelo mundo, em vários

museus – e anotou, com minúcia de naturalista interessado no detalhe

etnográfico, também o que pôde sobre os rituais, mitos e modos de viver dos

grupos com os quais conviveu e aos quais sempre voltava. Mapeou uma

série de questões teóricas, ao fazer as suas observações que, anos depois,

seriam retomadas por Claude Lévi-Strauss, David Maybury-Lewis, Roberto

DaMatta e Eduardo Viveiros de Castro, entre tantos.

O livro que acaba de ser publicado em Portugal começa a pagar uma

das tantas dívidas que os antropólogos contemporâneos sentem ter com

Nimuendajú: há anos os etnólogos mais velhos, como Darcy Ribeiro e Egon

Schaden, reclamavam da falta de suas publicações em português, o que

começou a ser remediado desde a tradução de suas observações sobre os

sipáias e os guaranis 2.

Tekla Hartman, que foi professora de etnologia da USP, põe agora à

disposição dos antropólogos e outros interessados na questão indígena uma

série de cartas que ele enviou ao também antropólogo Carlos Estevão de

Oliveira, então diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi, entre 1923 e 1942.

As cartas foram doadas pela filha de Carlos Estevão a Egon Schaden,

etnólogo da Universidade de São Paulo, também rebatizado pelos guaranis,

na mesma família que recebera Nimuendajú, o que o fazia considerá-lo seu

irmão mais velho. Foram depois depositadas no Museu Paulista e passaram

à guarda do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, com a fusão das

coleções arqueológicas e etnográficas.

Território etnológico

O livro é fascinante. Todos aqueles que, como eu, se interessam pela

história da antropologia no país, sentem um calafrio ao lê-lo: é a sensação,

sobre a qual alguém já falou, de estar ali, espiando por sobre o ombro de

quem escreve e sentindo, outra vez, coisas sentidas por quem escreve. Uma

por uma, as cartas vão esboçando o território de uma história da etnologia

que não está escrita (ainda) em nenhum lugar. É como se fosse o mapa, em

palavras, a ser sobreposto ao mapa etnológico que Nimuendajú também ia

desenhando ao longo dos anos e que levou tanto tempo para ser publicado.

Uma por uma, elas vão mostrando as ligações entre os pontos dessas

redes de relações que, de fato, faziam a história da etnologia naquele

momento. Há uma rede, uma trama, na qual Nimuendajú se movia à vontade

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– composta de agentes de postos indígenas, de figurões importantes nas

instituições conhecidas no país (Museu Emílio Goeldi, Museu Nacional,

Serviço de Proteção aos Índios, Conselho de Fiscalização das Expedições

Artísticas e Científicas no Brasil) e no exterior (museus de Hamburgo, de

Leipzig, de Dresden, de Berlim, de Gotemburgo), de antropólogos nacionais

e internacionais, dos inimigos dos índios e, principalmente, dos próprios

índios, eles mesmos agentes nessa rede. Rede que vinculava marcos

topográficos, tribais, institucionais e pessoais.

Uso da fotografia

Tendo sido funcionário da fábrica Zeiss na Alemanha, não é de admirar

a constante referência ao uso da fotografia em suas andanças: e é com olho

de fotógrafo que Nimuendajú descreve várias cenas para Carlos Estevão.

Por exemplo, a cena do funeral de uma moça entre os canelas, tão amada por

todos que os guerreiros jovens a fizeram dançar com eles depois de morta:

“Choravam todos, homens, mulheres e crianças. E, no meio desses rostos

desfeitos pelo pranto, o rosto pálido e sereno da Pepkwéi morta, em pé,

dançando...”. São muitas suas menções a fotografias, uma das quais é

reproduzida no volume: mostra Nimuendajú e uma índia canela, que vestira

luto em sua ausência, com os corpos cobertos de penas, numa cerimônia de

reintegração à sociedade.

É bonito observar, ao longo de toda a correspondência, um continuado

interesse e paixão pelos grupos indígenas que Nimuendajú visitava: ele vai

registrando suas rixas com os fazendeiros ou outros mandões locais, com os

vendedores de cachaça para os índios e sua impaciência para com os brancos

que invadiam as cerimônias indígenas que a custo ele conseguia ajudar a

recriar.

Nimuendajú era tão bom observador dos grupos nativos quanto dos

nativos de sua terra: ao viajar à Alemanha, em 1934, registrou numa carta:

“Causou-me pena o aspecto atual das vitrines das livrarias na Alemanha,

porque creio que elas formam em toda parte um índice bastante seguro para

o nível intelectual de um povo. Hoje elas são transformadas em meras

agências de propaganda do nacional-socialismo, formando um contraste

desagradável com o que se vê em outros países germânicos, como a

Inglaterra, a Dinamarca e a Suécia. Todo esse nacional-socialismo,

justamente pelas suas pretensões supergermânicas, tem para mim um

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aspecto estranhamente não germânico: ele me parece um fenômeno

nitidamente patológico”. E compara Hitler a um médico que, tendo salvo um

paciente da gangrena, narcotizando-o e cortando-lhe a perna, resolva-se a

mantê-lo para sempre em estado de narcose...

Parece, assim, uma ironia histórica o fato de ele ser perseguido no país

em que escolhera viver, por sua origem alemã: não só sua correspondência

com o antropólogo de origem alemã, trabalhando nos EUA, Robert Lowie,

passa a ser censurada no período da guerra, como o próprio Nimuendajú

seria vítima de boatos na região dos ticunas e acabaria preso: sua prisão é

sobriamente narrada na última carta desse volume.

Às vésperas da última viagem que fez aos ticunas, ele ainda fazia troça

da imagem que dele tinham as autoridades locais, numa carta para Heloísa

Alberto Torres, diretora do Museu Nacional: “ (...) Assim que eu reaparecer

na região, recomeçará imediatamente a campanha de calúnias: a câmera

fotográfica se transformará em metralhadora, a máquina de escrever em

estação de rádio, o radiotelegrafista de Benjamin Constant captará

mensagens misteriosas que só podem ter sido emitidas por mim, se

instigarão os índios (a) assassinar-me, e os subdelegados, inspetores de

quarteirão e comandantes de destacamentos serão assediados com pedidos

de providências. Finalmente o clamor chegará aos ouvidos das autoridades

civis e militares de Manaus, que despacharão ordens para prender o perigoso

espião. Tudo isso já me tem acontecido”.

Uma vida aventurosa que certamente contribuiu, junto com seu

minucioso trabalho de pesquisa, para transformá-lo no guru que ele é,

merecidamente, da etnologia brasileira. Quem acompanha as também

aventurosas peripécias dos pesquisadores que se têm dedicado a registrar

sua trajetória, espera que muitas outras cartas se sigam à bem-vinda

publicação dessas.

Notas

1. Thekla Hertmann refere o sentido do nome Nimuendajú, tantas vezes

citado na bibliografia etnológica, como sendo “aquele que soube abrir

o seu próprio caminho neste mundo e conquistou o seu lugar”.

2. “Fragmentos de Religião e Tradição dos Índios Sipáia – Contribuições

ao Conhecimento das Tribos da Região do Xingu, Brasil Central”.

Versão traduzida e apresentada por E. Viveiros de Castro e Charlotte

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Emmerich. In “Religião e Sociedade”, 7, São Paulo, 1981, CER/ISER.

“As Lendas da Criação e Destruição do Mundo como Fundamentos da

Religião dos Apapocúva-Guarani”. São Paulo, Hucitec/Edusp, 1987.

Apresentação de E. Viveiros de Castro.

Cartas do Sertão – De Curt Nimuendajú para Carlos Estevão de Oliveira

Apresentação e notas: Thekla Hartmann

Museu Nacional de Etnologia/

Assírio & Alvim (Lisboa)

396 págs., 4.500 escudos

Onde encomendar:

livraria Portugal

(Tel. 0/xx/11/3104-1748)

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