objetos de estimação

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1 Objetos de estimação, os estranhos e enigmáticos relicários de Jeanete Musatti. Artigo completo submetido a [26] de [janeiro] de [2014] Resumo: Este artigo aborda as relações humanas afetivas com o objeto cotidiano, estes artefatos industrializados que nos cercam de maneira incisiva, expressas através da obra da artista brasileira Jeanete Musatti, criadora de pequenos universos transformados em relicários a partir da percepção especial sobre pequenos objetos tornando-os estimados, significantes e por vezes estranhos. Palavras chave: Jeanete Musatti, objeto cotidiano, relicários, arte contemporânea. Title: Affective objects, strange and enigmatic reliquaries of Jeanete Musatti. Abstract: This paper discusses the emotional human relationships with the ordinary object, these industrialized artifacts that surround us incisively expressed through the work of Brazilian artist Jeanete Musatti, creator of universes transformed into small reliquaries from the special perception of small objects making them estimates, significant and sometimes strangers. Keywords: Jeanete Musatti, ordinary objects, reliquarie, contemporary art. Introdução Objeto na vida, objeto na arte. É fato na nossa realidade cotidiana que os objetos nos cicundam, sendo muito difícil imaginar uma vida sem eles, desde os mais banais como alfinete de costura ou a escova de cabelos até os objetos mais tecnológicos como aparelhos celulares e similares que ampliam as relações humanas e tendem a facilitar as funções diárias. Mas como lidamos com as coisas? Gostamos, odiamos, ou nem percebemos? Será que temos consciência o quão invasiva é a presença dos objetos? Talvez em relação às coisas grandes seja mais fácil. Como não notar uma mesa, uma escada ou um prédio? Mas e aquelas coisas mais banais e pequenas? Botões, ganchos de roupas, pregos agulhas de costura, chaves, pedaços de coisas, são exemlos de objetos banais que muitas vezes nem sabemos onde estão, mas basta surgir a necessidade de uso que corremos em busca deles. É possivel que os encontremos em fundos de gavetas, em caixas de armários junto a outros objetos que pelo seu tamanho tendem a insignificância. Com tantos deles se proliferando, podem-se sugerir vários sistemas de organização destes objetos, assim como já o fez Jean Baudrillard. O autor questiona se seria possível classificar “a imensa vegetação dos objetos como uma flora ou uma fauna, com suas espécies tropicais, glaciais, suas mutações bruscas, suas espécies em vias de desaparição?”(Baudrillard, 2000: 9). Seguindo este pensamento, poderíamos separá-

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Artigo revista Gama Roseli Nery

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    Objetos de estimao, os estranhos e enigmticos relicrios de Jeanete

    Musatti.

    Artigo completo submetido a [26] de [janeiro] de [2014]

    Resumo: Este artigo aborda as relaes humanas afetivas com o objeto cotidiano, estes

    artefatos industrializados que nos cercam de maneira incisiva, expressas atravs da obra da

    artista brasileira Jeanete Musatti, criadora de pequenos universos transformados em

    relicrios a partir da percepo especial sobre pequenos objetos tornando-os estimados,

    significantes e por vezes estranhos.

    Palavras chave: Jeanete Musatti, objeto cotidiano, relicrios, arte contempornea.

    Title: Affective objects, strange and enigmatic reliquaries of Jeanete Musatti.

    Abstract: This paper discusses the emotional human relationships with the ordinary object,

    these industrialized artifacts that surround us incisively expressed through the work of

    Brazilian artist Jeanete Musatti, creator of universes transformed into small reliquaries from

    the special perception of small objects making them estimates, significant and sometimes

    strangers.

    Keywords: Jeanete Musatti, ordinary objects, reliquarie, contemporary art.

    Introduo

    Objeto na vida, objeto na arte. fato na nossa realidade cotidiana que os objetos nos

    cicundam, sendo muito difcil imaginar uma vida sem eles, desde os mais banais como

    alfinete de costura ou a escova de cabelos at os objetos mais tecnolgicos como aparelhos

    celulares e similares que ampliam as relaes humanas e tendem a facilitar as funes dirias.

    Mas como lidamos com as coisas? Gostamos, odiamos, ou nem percebemos? Ser que temos

    conscincia o quo invasiva a presena dos objetos? Talvez em relao s coisas grandes

    seja mais fcil. Como no notar uma mesa, uma escada ou um prdio? Mas e aquelas coisas

    mais banais e pequenas? Botes, ganchos de roupas, pregos agulhas de costura, chaves,

    pedaos de coisas, so exemlos de objetos banais que muitas vezes nem sabemos onde esto,

    mas basta surgir a necessidade de uso que corremos em busca deles. possivel que os

    encontremos em fundos de gavetas, em caixas de armrios junto a outros objetos que pelo seu

    tamanho tendem a insignificncia. Com tantos deles se proliferando, podem-se sugerir vrios

    sistemas de organizao destes objetos, assim como j o fez Jean Baudrillard. O autor

    questiona se seria possvel classificar a imensa vegetao dos objetos como uma flora ou

    uma fauna, com suas espcies tropicais, glaciais, suas mutaes bruscas, suas espcies em

    vias de desapario?(Baudrillard, 2000: 9). Seguindo este pensamento, poderamos separ-

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    los por tamanho, por utilidade, por beleza ou at mesmo pelo afeto. Certos objetos, para

    alguns podem ser insignificantes e inteis, mas para outros so o que lhes representa o que

    compe sua identidade e so ativadores de memria. Roland Barthes j mencionou que os

    objetos so a nossa assinatura no mundo (Farias, 2007), e Abraham Moles aborda o objeto

    como tendo a funo de estabeler contato entre as pessoas, so condutores de mensagens

    funcionais e simblicas, o objeto mais ou menos personalizado, mais ou menos assinado,

    menos por seu criador que por seu remetente (Moles, 1972: 12). Assim so os objetos de

    Jeanete Musatti, elas a identificam, so coisas insignificantes a primeira vista, mas o olhar

    mais atento nos faz encolher, abre caminho para relaes afetivas, memrias e lembranas

    coletivas delicadamente organizadas em pequenos espaos de um universo minsculo que nos

    aproxima e convida-nos para adentrar neste pequeno mundo fantasioso de coisas estranhas e

    por vezes enigmticas.

    Este artigo aborda o objeto cotidiano na vida e na arte organizado em pequenos

    universos atravs da obra da brasileira Jeanete Musatti.

    1. A artista. Jeanete Musatti nasceu em So Paulo em 1944. Filha de poloneses

    descobriu sua identidade judaica da qual aprendeu a se orgulhar, atravs de sua me. Cresceu

    num ambiente familiar afortunado com acesso a cultura e a arte. Na juventude frequentou a

    escola Brasil atravs de Wesley Duke Lee. A partir do desenho conheceu a colagem, criou

    mquinas e pendulos cibernticos aps ter trabalhado na metalrgica Montalto (SP) aprendeu

    a soldar e polir lato o que a despertou para a tridimensionalidade na arte. A partir da a

    descoberta da expresso tridimensional aparece em sua obra atravs de caixas e em todas as

    suas variaes de trabalho at hoje. Sempre foi coletora e colecionadora, e estas aes foram

    se agigantando quando percebeu o potencial esttico de inmeros objetos de afeto que

    guardou em envelopes, caixas e gavetas (Figura 1), como desenhos, fotos, fragmentos escritos

    e pedras aos quais foi acrescentando miniaturas ou diferentes pequenas coisas que colhe

    durante seus percursos por antiqurios, casas de familia, ruas das cidades, praias ou matas.

    Segundo a artista, seus objetos so dirios que no cabem em cadernos e ento os coloco em

    caixas (Musatti, 2009:259).

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    Figura 1. Gavetas de Jeanete Musatti. Frame do documentrio Jeanete Musatti. Fonte: Soares (2002).

    As caixas dirios de Jeanete Musatti ressaltam a preciosidade dos objetos banais

    transformando-se em relicrios, objetos de afeto de intenso valor simblico e ativadores da

    memria coletiva.

    2. Relicrios da memria e da afetividade.

    Relicarios so recipientes que guardam coisas preciosas, de valor simblico, emocional

    ou afetivo. Os objetos de Jeanete so assim, coisas sem valor deslocadas de sua funo

    tornam-se relquias ordenadas no espao expositivo para apreciao do pblico. Ao mesmo

    tempo em que so preciosos, so inquitantes pela estranhesa das combinaes poticas

    propostas pela artista. Tesouras, prolas e miniaturas compartilham espaos criando um

    sistema inquietante aos olhos do pblico (Figuras 2 e 3). Escotilhas da alma como definiu a

    sua obra Roberto Gambini (Musatti, 2009:179) oferece lentes para o olhar diferenciado em

    relao s coisas do mundo.

    Figura 2. Jeanete Musatti. Renascimento, 2000. Detalhe. Caixas, miniaturas 4,2 cm (caixa); 4,2 x 25,2 x 1,7

    cm (instalao). Fonte: Musatti (2009)

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    Figura 3. Jeanete Musatti. Japo, 2000. Caixas, prolas atificiais e gravura. 4,2 cm (caixa); 4,2 x 42 x 1,7 cm (instalao). Fonte: Musatti (2009).

    Ao apropriar-se de objetos a primeira vista inteis, a artista discute a afetividade com o

    objeto e coloca-o como ativador da memria coletiva. Alan Radley apresenta um estudos de

    objetos pessoais que mostra que os objetos so usados para estabilizar uma conexo com o

    passado e ajudam a sustentar a prpria identidade no decorrer da vida, assim, o mundo dos

    objetos, o registro tangvel da atividade humana, tanto social como individual (Radley,

    1994: 48). Desta forma, os relicrios de Jeanete Musatti asseguram a sua identidade e sua

    assinatura no mundo como sugeriu Roland Barthes em relao aos nossos objetos (Farias,

    2007) e convida a compartilhar nossas memrias.

    3. Escala das coisas. A falsa insignificncia dos objetos da artista quando inseridos em

    mini-ambientes ativa a curiosidade e provoca o deslocamento do espectador para perto numa

    tentativa de que a proximidade favorea o compartilhamento da intimidade da artista, como

    uma invaso de seu dirio vivo. Ricardo Resende diz que, devido tamanho da obra da artista,

    estar na sua presena coloca-nos numa situao de movimento que funciona como recurso de

    aproximao e distanciamento das lentes de uma cmera fotogrfica (Musatti, 2009, p.13).

    Este vai e vem ativa a percepo a respeito das dimenses e ressalta as noes de escala entre

    pessoas e coisas, colocando-nos na condio simulada de miniatura. Ora, estar na condio de

    miniatura, possibilita entrar no universo paralelo de Jeanete onde tudo pequeno, as relaes

    de tamanho so outras e pode-se ter a noo de nossa insignificncia frente s coisas do

    mundo e a partir da mudar a percepo daquilo que nos rodeia. Assim como Alice encolheu

    para transpor a porta que a levou ao Pas das Maravilhas (Carrol, 1998), o trabalho da artista

    um convite para adentrar a um pequeno mundo fantasioso e enigmtico.

    Concluso

    Atravs de sua obra, a artista Jeanete Musatti valoriza as coisas banais, seu olhar

    diferenciado permite a criao de relquias a partir de minuscias do cotidiano s vezes

    invisveis e insignificantes. Ao apropriar-se destas coisas a artista desloca o objeto de sua

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    funo original e lhes d diferente significado que aos olhos do outro transcende para

    compartilhar experincias e memrias.

    Sua obra encontra ressonncia em outras produes contemporneas como as pequenas

    intervenes urbanas do artista Slinkachu (Inglaterra, 1979) que da mesma forma cria

    situaes em que a figura humana se coloca em escala reduzida frente ao ambiente e ao

    cotidiano (Figura 4) . Assim como no trabalho de Jeanete, sua obra necessita de proximidade

    para melhor fruio da experincia esttica.

    Figura 4. Slinkachu. Local Amenities For Children, 2008. Fonte: http://slinkachu.com/little-

    people.

    Estas produes contemporneas propem a suspenso do tempo, a diminuio do ritmo

    cotidiano e a mudana de percepo do tempo e do espao. Tudo parece quieto e quase

    silencioso. H uma voz calma que convida a transpor uma pequena passagem, que a chave

    para adentrar metaforicamente a diferentes mini-universos onde se pode ter a verdadeira

    noo de escala do nosso corpo frente s coisas do mundo.

    Referncias

    Baudrillard, Jean (2000) O sistema dos objetos. Srie Debates, 4a. ed. So Paulo: Perspectiva. ISBN:

    85-273-0104-0.

    Carroll, Lewis (1998) Alice no pas das maravilhas. So Paulo: L&PM editores, 172p. ISBN: 97-88-

    525-40943-0.

    Farias, Agnaldo (2007) As lies das coisas. Desgnio - Revista de Histria da Arquitetura e do

    Urbanismo 7/8. So Paulo, Annablume.178p.

    Moles, Abraham et al. (1972) Semiologia dos objetos. Petrpolis, Vozes.

    Musatti, Jeanete (2009). So Paulo: DBA Artes Grficas. 304p. ISBN: 978-85-7234-405-0.

    Radley, Alan (1990) Artefacts, memory and sense of the past. In: Collective remembering. David

    Middleton, Derek Edwards. Sage Publications. Universidade de Michigan.2ed. . 230p.

    Soares, Paulo Csar (2002) Jeanete Musatti. [Consult. 2014-01-28] Documentrio. 12min. Disponivel

    em .