objetividade- representatividade. miriam goldenberg

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OBJETIVIDADE, REPRESENTATIVIDADE E CONTROLE DE BiAS 16 NA PESQUISA QUALITATIVA Muitos cientistas sociais acusam a pesquisa qualitati- va de não apresentar padrões de objetividade, rigor e controle científico, já que não possui testes adequados de validade e fidedignidade, assim como não produz generalizações que visem à construção de um conjunto de leis do comportamento humano. Outra crítica diz respeito à falta de regras de procedimento rigorosas para guiar as atividades de coleta de dados, o que pode dar margem para que o bias do pesquisador venha a modelar os dados que coleta, que, portanto, não podem ser usados como evidência científica. Cientistas sociais como Max Weber, Pierre Bour- dieu e Howard Becker acreditam ser fundamental a explicitação de todos os passos da pesquisa para evi- 16 A utilização do termo em inglês é comum entre os cientistas sociais. Pode ser traduzido como viés, parcialidade, preconceito. A Arte de Pesquisar / 45 tar o bias do pesquisador. Recusam a suposta neutra- lidade do pesquisador quantitativista e propõem que o pesquisador tenha consciência da interferência de seus valores na seleção e no encaminhamento do pro- blema estudado. A tarefa do pesquisador é reconhe- cer o bias para poder prevenir sua interferência nas conclusões. Para os autores citados, não existe outra forma para excluir o bias nas ciências sociais do que enfrentar as valorações introduzindo as premissas valorativas de forma explícita nos resultados da pes- quisa. Não podendo ser realizada a objetividade nas pes- quisas sociais, e o conhecimento objetivo e fidedigno permanecendo como o ideal da ciência, o pesquisador deve buscar o que Pierre Bourdieu chama de objeti- vação: o esforço controlado de conter a subjetividade. Trata-se de um esforço porque não é possível realizá- lo plenamente, mas é essencial conservar-se esta meta, para não fazer do objeto construído um objeto inventa- do. A simples escolha de um objeto significa um jul- gamento de valor na medida em que ele é privilegiado como mais significativo entre tantos outros sujeitos à pesquisa. O contexto da pesquisa, a orientação teóri- ca, o momento sócio-histórico, a personalidade do pes- quisador, o ethos do pesquisado, influenciam o resul- tado da pesquisa. Quanto mais o pesquisador tem cons- ciência de suas preferências pessoais mais é capaz de evitar o bias, muito mais do que aquele que trabalha com a ilusão de ser orientado apenas por considera- ções científicas. Wright Mills, em A imaginação sociológica 17 , pro- põe que o cientista social seja autoconsciente, reco- nhecendo que, necessariamente, seus valores estão "C. Wright Mills. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.

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  • OBJETIVIDADE, REPRESENTATIVIDADEE CONTROLE DE BiAS16 NA

    PESQUISA QUALITATIVA

    Muitos cientistas sociais acusam a pesquisa qualitati-va de no apresentar padres de objetividade, rigor econtrole cientfico, j que no possui testes adequadosde validade e fidedignidade, assim como no produzgeneralizaes que visem construo de um conjuntode leis do comportamento humano. Outra crtica dizrespeito falta de regras de procedimento rigorosaspara guiar as atividades de coleta de dados, o que podedar margem para que o bias do pesquisador venha amodelar os dados que coleta, que, portanto, no podemser usados como evidncia cientfica.

    Cientistas sociais como Max Weber, Pierre Bour-dieu e Howard Becker acreditam ser fundamental aexplicitao de todos os passos da pesquisa para evi-

    16A utilizao do termo em ingls comum entre os cientistas sociais. Podeser traduzido como vis, parcialidade, preconceito.

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    tar o bias do pesquisador. Recusam a suposta neutra-lidade do pesquisador quantitativista e propem queo pesquisador tenha conscincia da interferncia deseus valores na seleo e no encaminhamento do pro-blema estudado. A tarefa do pesquisador reconhe-cer o bias para poder prevenir sua interferncia nasconcluses. Para os autores citados, no existe outraforma para excluir o bias nas cincias sociais do queenfrentar as valoraes introduzindo as premissasvalorativas de forma explcita nos resultados da pes-quisa.

    No podendo ser realizada a objetividade nas pes-quisas sociais, e o conhecimento objetivo e fidedignopermanecendo como o ideal da cincia, o pesquisadordeve buscar o que Pierre Bourdieu chama de objeti-vao: o esforo controlado de conter a subjetividade.Trata-se de um esforo porque no possvel realiz-lo plenamente, mas essencial conservar-se esta meta,para no fazer do objeto construdo um objeto inventa-do. A simples escolha de um objeto j significa um jul-gamento de valor na medida em que ele privilegiadocomo mais significativo entre tantos outros sujeitos pesquisa. O contexto da pesquisa, a orientao teri-ca, o momento scio-histrico, a personalidade do pes-quisador, o ethos do pesquisado, influenciam o resul-tado da pesquisa. Quanto mais o pesquisador tem cons-cincia de suas preferncias pessoais mais capaz deevitar o bias, muito mais do que aquele que trabalhacom a iluso de ser orientado apenas por considera-es cientficas.

    Wright Mills, em A imaginao sociolgica17, pro-pe que o cientista social seja autoconsciente, reco-nhecendo que, necessariamente, seus valores esto

    "C. Wright Mills. A imaginao sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.

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    envolvidos na escolha dos problemas estudados e, porisso, devem ser permanentemente explicitados. E pre-cisamente quando se pretende uma objetividade ab-soluta, quando se cr ter recolhido fatos objetivos,quando se eliminam dos resultados da pesquisa to-dos os traos da implicao pessoal no objeto de es-tudo, que se corre mais o risco de se afastar da obje-tividade possvel.

    Howard Becker um dos cientistas sociais que maistem se preocupado em refletir sobre a questo da obje-tividade nas cincias sociais. Para refutar a pretensaneutralidade dos surveys, Becker levanta o problema,bastante frequente, dos entrevistadores que induzemou falsificam seus dados com respostas imaginriaspara entrevistas que nunca foram realizadas. Mas se obias do pesquisador pode afetar os dados coletados empesquisas mais controladas, no afetar muito maisem pesquisas qualitativas, onde o pesquisador tem umnmero maior de oportunidades de escolher apenas asevidncias que lhe so convenientes? Os pesquisado-res qualitativos tm muito mais liberdade do que osentrevistadores de surveys e podem ter vrios tipos deatitudes que vo desde sorrisos at intervenes maisdiretas. Como, ento, podem ser consideradas objeti-vas as concluses baseadas em dados que podem tersido assim coletados?

    Becker lembra que o entrevistado de um survey abordado por algum que nunca viu antes e espera nun-ca mais ver de novo. Uma vez que ele no constrangi-do por nada alm das presses que surgem na situaoimediata da entrevista, estas presses tm grande pro-babilidade de exercer um efeito de bias sobre o que elediz. J as pessoas que um pesquisador qualitativo es-tuda, em geral, so observadas de diferentes maneiras

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    durante um longo perodo de tempo, o que torna maisdifcil que elas fabriquem o seu comportamento durantetoda a durao da pesquisa. A pesquisa qualitativa,atravs da observao participante e entrevistas emprofundidade, combate o perigo de bias, porque tornadifcil para o pesquisado a produo de dados que fun-damentem de modo uniforme uma concluso equivo-cada, e torna difcil para o pesquisador restringir suasobservaes de maneira a ver apenas o que sustentaseus preconceitos e expectativas.

    Para Becker, as tcnicas de pesquisa qualitativapermitem um maior controle do bias do pesquisadordo que as da pesquisa quantitativa. Por meio, porexemplo, da observao participante, por um longoperodo de tempo, o pesquisador coleta os dados atra-vs da sua participao na vida cotidiana do grupo ouda organizao que estuda, observa as pessoas paraver como se comportam, conversa para descobrir asinterpretaes que tm sobre as situaes que obser-vou, podendo comparar e interpretar as respostasdadas em diferentes situaes. Ele ter dificuldade deignorar as informaes que contrariam suas hip-teses, do mesmo modo que as pessoas que estuda te-riam dificuldade de manipular, o tempo todo, impres-ses que podem afetar sua avaliao da situao. Ob-servaes numerosas feitas durante um longo pero-do de tempo ajudam o pesquisador a se proteger con-tra seu bias, consciente ou inconsciente, contra "verapenas o que quer ver".

    Becker tambm discute a questo do bias do pes-quisador ao tratar da hierarquia de credibilidade dosinformantes da pesquisa qualitativa. Em geral, soentrevistados aqueles que esto nos nveis superio-res de uma organizao, que parecem "saber mais"

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    sobre o problema estudado, do que aqueles que estonos nveis inferiores. Uma das maneiras de evitar estebias entrevistar todos os envolvidos, comparandoas verses dos superiores com as dos subordinados,evitando, conscientemente, ficar a favor de um ladoou de outro. Outra maneira de evitar o bias assu-mir, tambm conscientemente, "de que lado o pesqui-sador est", explicitando esta escolha nas conclusesda pesquisa.

    Outro possvel bias decorre do fato da pesquisaficar restrita aos indivduos e organizaes que per-mitam ser pesquisados, deixando de lado aqueles quese recusam a ser estudados. Este fato pode ter sriasimplicaes nos resultados das pesquisas, j que aque-les que resolvem falar devem ter motivaes e inte-resses bastante diversos daqueles que se recusam afalar. Mais uma vez, a nica forma de tentar minimi-zar este problema explicitando detalhadamente oslimites das escolhas feitas. Alm disso, Becker enfa-tiza a necessidade de tornar explcitos os resultadosnegativos dos estudos, de mostrar as dificuldades eos (ds) caminhos percorridos pelo pesquisador atchegar aos resultados de sua pesquisa. Em geral, ospesquisadores "escondem" as suas dificuldades emseus relatrios de pesquisa, preferindo mostrar ape-nas "o que deu certo".

    Diferentemente dos dados estatsticos, que podemser resumidos em tabelas, os dados da pesquisa quali-tativa no se prestam a tal resumo. Um dos problemasda pesquisa qualitativa que os pesquisadores geral-mente no apresentam os processos atravs dos quaissuas concluses foram alcanadas. O pesquisador devetornar essas operaes claras para aqueles que no par-ticiparam da pesquisa, atravs de uma descrio expl-

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    cita e sistemtica de todos os passos do processo, des-de a seleo e definio dos problemas at os resulta-dos finais pelos quais as concluses foram alcanadase fundamentadas. Becker chama esta soluo para oproblema da apresentao dos resultados da pesquisaqualitativa de "histria natural" das concluses. Seeste mtodo for empregado, outros estudiosos serocapazes de acompanhar os detalhes da anlise e vercomo e em que bases o pesquisador chegou s suas con-cluses. Isso daria, ento, a oportunidade de outros pes-quisadores fazerem seus prprios julgamentos quanto adequao da prova e ao grau de confiana a seratribudo concluso.

    Na discusso sobre a representatividade dos dadoscoletados atravs de uma pesquisa qualitativa estembutida a questo da possibilidade (ou no) de suageneralizao, a partir do modelo das cincias natu-rais que se impe como paradigma. Nas abordagensque privilegiam a compreenso do significado dos fa-tos sociais, a questo da representatividade dos dados vista de forma diferente do positivismo.

    Partindo do princpio de que o ato de compreenderest ligado ao universo existencial humano, as abor-dagens qualitativas no se preocupam em fixar leis parase produzir generalizaes. Os dados da pesquisa qua-litativa objetivam uma compreenso profunda de cer-tos fenmenos sociais apoiados no pressuposto da maiorrelevncia do aspecto subjetivo da ao social. Contra-pem-se, assim, incapacidade da estatstica de darconta dos fenmenos complexos e da singularidade dosfenmenos que no podem ser identificados atravs dequestionrios padronizados.

    Enquanto os mtodos quantitativos supem umapopulao de objetos comparveis, os mtodos qualita-

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    tivos enfatizam as particularidades de um fenmenoem termos de seu significado para o grupo pesquisado. como um mergulho em profundidade dentro de umgrupo "bom para pensar" questes relevantes para otema estudado.

    O reconhecimento da especificidade das cinciassociais conduz elaborao de um mtodo que permi-ta o tratamento da subjetividade e da singularidadedos fenmenos sociais. Com estes pressupostos bsi-cos, a representatividade dos dados na pesquisa qua-litativa em cincias sociais est relacionada suacapacidade de possibilitar a compreenso do signi-ficado e a "descrio densa" dos fenmenos estuda-dos em seus contextos e no sua expressividade nu-mrica.

    A quantidade , ento, substituda pela intensida-de, pela imerso profundaatravs da observao par-ticipante por um perodo longo de tempo, das entrevis-tas em profundidade, da anlise de diferentes fontesque possam ser cruzadas que atinge nveis de com-preenso que no podem ser alcanados atravs de umapesquisa quantitativa. O pesquisador qualitativo bus-car casos exemplares que possam ser reveladores dacultura em que esto inseridos. O nmero de pessoas menos importante do que a teimosia em enxergar aquesto sob vrias perspectivas.

    Um motivo pelo qual as pessoas se preocupam coma possibilidade de as concluses das pesquisas qualita-tivas no serem objetivas que os pesquisadores svezes surgem com concluses bastante diferentes a res-peito de organizaes ou comunidades supostamentesemelhantes. Se os mtodos so objetivos, pergunta-seBecker, dois estudos do mesmo grupo no deveriamproduzir resultados semelhantes? No, ele mesmo res-

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    ponde, j que os pesquisadores podem ter se preocupa-do com questes e enfoques diferentes. A diferena deresultados indica no a falta de objetividade dos pes-quisadores mas que estavam observando coisas dife-rentes a partir de enfoques, tericos e metodolgicos,diferentes. No se deve esperar resultados semelhan-tes e sim que estes resultados sejam compatveis, queas concluses de um estudo no contradigam, implci-ta ou explicitamente, as de outro.

    Seja qual for o mtodo, qualitativo ou quantitati-vo, ele sempre dirige sua ateno apenas para certosaspectos dos fenmenos, os que parecem importantespara o pesquisador em funo de suas pressuposies.A totalidade de qualquer objeto de estudo uma cons-truo do pesquisador, definida em termos do que lheparece mais til para responder ao seu problema depesquisa. irreal supor que se pode ver, descrever edescobrir a relevncia terica de tudo. Na verdade, opesquisador acaba se concentrando em alguns pro-blemas especficos que lhe parecem de maior impor-tncia.

    Por fim, cabe assinalar as possveis consequnci-as de uma interao de longo prazo com o objeto deestudo, em que difcil evitar sentimentos de amiza-de, lealdade e obrigao, que podem provocar censu-ras nos resultados da pesquisa. O pesquisador, em suasconcluses, corre o risco de censurar dados conside-rados "negativos" pelo grupo, vistos como compro-metedores de sua imagem pblica ou sua auto-ima-gem. Este bias pode ser evitado reproduzindo cuida-dosamente um relato completo de todos os eventosobservados, em momentos diferentes do dia ou ano,procurando membros de grupos diferentes da comu-nidade ou organizao. Observar aspectos diferentes,

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    sob enfoques diferentes, pode no s contribuir parareduzir o ias da pesquisa como, tambm, propiciaruma compreenso mais profunda do problema es-tudado.

    PESQUISA QUALITATIVA: PROBLEMASTERICO-METODOLGICOS

    Grande parte dos problemas terico-metodolgicos dapesquisa qualitativa decorrente da tentativa de se tercomo referncia, para as cincias sociais, o modelopositivista das cincias naturais, no se levando em con-ta a especificidade dos objetos de estudo das cinciassociais. Os dados qualitativos consistem em descriesdetalhadas de situaes com o objetivo de compreenderos indivduos em seus prprios termos. Estes dados noso padronizveis como os dados quantitativos, obri-gando o pesquisador a ter flexibilidade e criatividade nomomento de colet-los e analis-los. No existindo re-gras precisas e passos a serem seguidos, o bom resulta-do da pesquisa depende da sensibilidade, intuio e ex-perincia do pesquisador. Mesmo os pesquisadores queusam mtodos de pesquisa qualitativa criticam a faltade regras de procedimento rigorosas para guiar as ati-vidades de coleta de dados e a ausncia de reflexo teri-ca, o que pode dar margem para que o bias do pesquisa-dor venha a modelar os dados que coleta.