objetividade e subjetividade - a construção da imagem de che guevara pela revista veja

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Neste trabalho, apresentaremos uma análise da matéria “Che – há quarenta anos morria o homem e nascia a farsa”, publicada pela revista Veja, em três de outubro de 2007. Tomaremos como base, em relação ao jornalismo, algumas considerações a respeito do conceito de objetividade jornalística, a partir do ponto de vista de alguns teóricos do assunto. Não intentamos apresentar soluções ou explicações definitivas para os desafios que cercam a confecção e a difusão do discurso jornalístico na pós-modernidade. Nosso objetivo principal é apresentar uma análise lingüístico-discursiva que possa contribuir para uma interpretação do texto da reportagem. Neste sentido, procederemos a uma investigação a respeito da imagem do médico e guerrilheiro argentino Ernesto “Che” Guevara construída pela revista Veja, de acordo com a situação de comunicação e com o estatuto dos interlocutores, em consonância com o instrumental oferecido pela Análise do Discurso; a partir, principalmente, da Teoria Semiolinguística. Faremos ainda algumas considerações sobre a história da Análise do Discurso, sobre o conceito de Ideologia, e sobre algumas teorias relacionadas à Retórica e à Argumentação.

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Rodrigo da Fonseca Faleiro

OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADEA construo da imagem de Che Guevara pela revista Veja

Monografia apresentada ao curso de Graduao da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Bacharel em Lngua Portuguesa.

rea de concentrao: Lingustica Linha de pesquisa: Anlise do Discurso Orientadora: Prof. Dr. Helcira Maria Lima Rodrigues

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SUMRIO

Agradecimentos.............................................................................................. Resumo.......................................................................................................... Abstract.......................................................................................................... Introduo....................................................................................................... Captulo 1....................................................................................................... 1.1. O relato de fatos........................................................................... 1.2. Objetividade e parcialidade: o papel dos jornalistas................... 1.3. Objetividade e parcialidade: fontes (testemunhos)..................... Captulo 2....................................................................................................... 2.1. Breve percurso pela histria da Anlise do Discurso.................. 2.2. A Ideologia................................................................................. 2.3. O Sujeito...................................................................................... 2.4. A Teoria Semiolingustica........................................................... 2.5. Argumentao e Retrica............................................................. Captulo 3....................................................................................................... 3.1. 1 parte da anlise........................................................................ 3.2. 2 parte da anlise........................................................................ 3.3. 3 parte da anlise........................................................................ Concluso....................................................................................................... Referncias bibliogrficas.............................................................................. Anexo.............................................................................................................

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AGRADECIMENTOS

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minha filha, por toda alegria que trouxe para minha vida.

minha famlia, pela ajuda inestimvel.

Prof. Helcima Lima, que acolheu a proposta e colaborou decisivamente na orientao e organizao do trabalho.

aos colegas que por meio de conversas e questionamentos ajudaram a iluminar os difceis caminhos trilhados na pesquisa desenvolvida neste trabalho.

Universidade Federal de Minas Gerais, em vista da oportunidade de participar na difcil trilha da construo do conhecimento.

banca examinadora, que contribui para a divulgao e avaliao dos resultados da pesquisa.

luz gerada pela solidariedade de todos que de alguma forma contriburam para a produo do presente trabalho.

a meus amigos, aqueles que se foram, aqueles que ainda so, e aos que generosamente a vida trouxer.

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RESUMO

Neste trabalho, apresentaremos uma anlise da matria Che h quarenta anos morria o homem e nascia a farsa, publicada pela revista Veja, em trs de outubro de 2007. Tomaremos como base, em relao ao jornalismo, algumas consideraes a respeito do conceito de objetividade jornalstica, a partir do ponto de vista de alguns tericos do assunto. No intentamos apresentar solues ou explicaes definitivas para os desafios que cercam a confeco e a difuso do discurso jornalstico na psmodernidade. Nosso objetivo principal apresentar uma anlise lingstico-discursiva que possa contribuir para uma interpretao do texto da reportagem. Neste sentido, procederemos a uma investigao a respeito da imagem do mdico e guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara construda pela revista Veja, de acordo com a situao de comunicao e com o estatuto dos interlocutores, em consonncia com o instrumental oferecido pela Anlise do Discurso; a partir, principalmente, da Teoria Semiolingustica. Faremos ainda algumas consideraes sobre a histria da Anlise do Discurso, sobre o conceito de Ideologia, e sobre algumas teorias relacionadas Retrica e Argumentao.

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ABSTRACT

In this paper, we will present an analysis of the news story Che H quarenta anos morria o homem e nascia a farsa",1 published by Veja magazine on October 3, 2007. We will take as our basis, in relation to journalism, some considerations about the concept of objectivity in journalism, from the point of view of some theorists of the subject. It is not our intention to present definitive solutions or explanations for the challenges surrounding the creation and dissemination of the journalism discourse in postmodernity. Our main goal is to present a linguistic-discoursive analysis that can contribute to a certain interpretation of that news story text. In this sense, we will proceed to an investigation about the image of the argentine physician and guerilla fighter Ernesto Che Guevara constructed by Veja magazine, according to the communicative situation and the status of the interlocutors, in line with the instruments provided by the Discourse Analysis, based primarily on the Semiolinguistic Theory. We will still make some considerations about the history of Discourse Analysis, the concept of ideology, and on some theories related to rhetoric and argumentation.

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Che forty years ago the man died and was born the farce

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INTRODUO

O jornalista no responsvel pelas consequncias da divulgao de uma verdade de interesse pblico, seja ela qual for. Mas responsvel e at cmplice das conseqncias de no ter socializado essa verdade de interesse pblico. [...] Se o jornalista comea a ponderar sobre as consequncias das verdades que tem a dizer, sobre a convenincia de revelar parte das verdades e omitir outra, comea a assumir um outro papel social, deixa de ser jornalista para ser um censor e um juiz daquilo que o povo deve ou no saber. Bernardo Kucinski

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Inicialmente, importante ressaltar que procederemos neste trabalho anlise de uma parte da matria Che h quarenta anos morria o homem e nascia a farsa, publicada pela revista Veja, em trs de outubro de 2007. Tal matria ainda apresenta uma entrevista com o agente da CIA Flix Rodrigues, a qual no ser analisada, tampouco sero analisadas as imagens apresentadas pela matria. O objetivo do trabalho apresentar uma anlise lingstico-discursiva que venha a contribuir para uma certa interpretao do texto da reportagem, em face da situao de comunicao e do estatuto dos interlocutores, a partir do instrumental oferecido pela Anlise do Discurso, especificamente da Teoria Semiolingustica. Por essa via, intentamos apresentar uma anlise da representao discursiva que a revista Veja faz de Ernesto Che Guevara, ou seja, como foi construda sua imagem ao longo do texto. Para auxiliar nesse projeto, vamos recorrer ainda a consideraes sobre a histria da Anlise do Discurso, sobre o conceito de Ideologia, e sobre teorias relacionadas Retrica e Argumentao. No primeiro captulo, apresentaremos algumas teorias sobre o jornalismo, baseadas principalmente no conceito de objetividade jornalstica, em contraposio ao conceito de parcialidade. Em vista da complexidade do tema, procuramos reunir os estudos de alguns tericos. Nosso objetivo no esgotar o assunto, mas apresent-lo como instrumental para que possamos compreender melhor a feitura do discurso veiculado pela reportagem, em vista das teorias do jornalismo e da importncia social dos veculos de comunicao. No segundo captulo, vamos tratar do plano discursivo, introduzindo conceitos relativos Anlise do Discurso, doravante AD, e Retrica. Dentre as tendncias histricas da AD, optamos por eleger a Teoria Semiolingustica, cujo principal representante o linguista francs Patrick Charaudeau, como principal substrato terico.

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Em relao anlise do aspecto retrico do discurso, vamos recorrer chamada Trade retrica, analisando os conceitos de Logos, Ethos e Pathos. Alm disso, tambm faremos um pequeno percurso sobre a histria do conceito de Ideologia ao longo do tempo. No terceiro captulo, faremos a anlise propriamente dita do texto da reportagem. Dividiremos o texto em trs blocos, para tornar mais clara a anlise, facilitando, assim, a compreenso dos recursos utilizados para a construo do discurso. No primeiro bloco, sero analisados os Modos de Organizao do Discurso, as marcas lingsticas enunciativas e a caracterizao da Trade retrica. No segundo bloco, sero analisados principalmente os tipos de efeitos de sentido que podem ser veiculados pelo discurso. No ltimo bloco, retomaremos a anlise empreendida ao longo do primeiro bloco.

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CAPTULO 1

O poder do jornalismo no est s (nem principalmente) no seu poder de declarar as coisas como sendo verdadeiras, mas no seu poder de fornecer as formas nas quais as declaraes aparecem. Michael Schudson

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1.1. O relato de fatos A identificao entre discursos quaisquer sobre fatos e acontecimentos2 e a chamada realidade objetiva parece ser um dos mais polmicos assuntos em torno das prticas jornalsticas. O tema encontra-se relacionado com a prpria funo social do jornalismo, sua importncia como profisso e sua utilidade como campo de investigao dos fatos e das relaes humanas; vinculando-se ainda interao entre os indivduos, forma como se estruturam suas prticas culturais, e maneira como lidam com a memria e com o discurso histrico. Em seu livro Conceitos de Jornalismo, Kunczik (2001) cita uma passagem do livro Histria da Guerra do Peloponeso, escrita pelo historiador ateniense Tucdides, para tentar expressar a dificuldade inerente associao entre fatos e suas diversas representaes.No me permiti anotar o que realmente aconteceu na guerra com base nos primeiros ou no melhor informante, nem segundo a minha opinio, mas fiz, com toda a minudncia e a maior preciso, um relato de experincias pessoais e notcias de terceiros. Essa investigao foi difcil porque os depoimentos sobre os diversos fatos no foram todos descritos do mesmo modo, mas esmiuados segundo seus pontos de vista ou da maneira como os lembraram. (Tucdides, Histria da Guerra do Peloponeso, 1, 22 apud Kunczik, 2001, 223)

Surge, a partir das reflexes de Tucdides, uma importante questo: qual grau de exatido uma narrativa, um relato, um discurso qualquer pode manter com a realidade objetiva? Ao observarmos o trecho supracitado, a metodologia adotada pelo historiador grego nesse sentido foi reunir um relato de experincias pessoais e notcias de terceiros.

Segundo o dicionrio Houaiss (verso digital), uma das acepes de fato informao apresentada como baseada numa realidade objetiva. Sobre a noo de acontecimento, O que conta como acontecimento determinado socialmente: os acontecimentos so aquilo a que geralmente prestamos ateno. [...] As ocorrncias tornam-se acontecimentos de acordo com sua utilidade para um indivduo (ou organizao) querendo ordenar a experincia. (HACKET, 2002, 108)

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H que se observar: Tucdides foi contemporneo aos fatos que empreendeu narrar.3 Mesmo assim, o historiador ateniense salienta que sua descrio dos fatos no se constituiu apenas segundo sua opinio, mas tambm segundo as notcias de terceiros. comum ao jornalista (assim como ao historiador) no ter presenciado o que narra. Existem acontecimentos e afirmaes cuja verdade no pode ser comprovada porque se encontram fora da experincia pessoal do jornalista. (KUNCZIK, 2001, 270) Ainda que o tenha feito, haveria provavelmente uma variedade de relatos diferentes dos seus, que tampouco coincidiriam ipsis uerbis entre si. Se apenas um indivduo tivesse supostamente testemunhado os fatos, isso no evitaria que surgissem dvidas sobre o que de fato ocorrera, j que no haveria como se proceder a uma comparao entre verses. Como assevera Tucdides no trecho supracitado, os depoimentos sobre os diversos fatos no foram todos descritos do mesmo modo, mas esmiuados segundo seus pontos de vista ou da maneira como os lembraram. Assim como o historiador, que compara verses para clarificar os fatos, tambm os jornalistas precisam que os diversos relatos sobre fatos e acontecimentos provenham de fontes variadas, que lhes possam apresentar uma viso mais ampla do que pretendem narrar. Do contrrio, sua narrativa correria o risco de parecer parcial, afastando-se do ideal da objetividade jornalstica. H que se analisar, ento, os conceitos de parcialidade e objetividade tanto no discurso dos prprios jornalistas, quanto naqueles das fontes consultadas para fundamentar as informaes. Inicialmente, procederemos apresentao de algumas teorias sobre os relatos, ou discurso, no plano dos jornalistas, apreciando posteriormente algumas questes sobre o relato das fontes.A Guerra do Peloponeso transcorreu aproximadamente entre os anos 431 e 404 a.C., envolvendo a Liga de Delos, liderada pela cidade-estado de Atenas, em confronto com a Liga do Peloponeso, comandada por Esparta.3

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1.2. Objetividade e parcialidade O papel dos jornalistas Devido controvrsia em torno do assunto, tentaremos apresentar as questes pela tica de alguns estudiosos, com o intuito de ampliar o panorama da discusso sobre os temas. Kunkzik (2001) considera a objetividade como a identificao entre um fato e a sua descrio mediante a informao. (KUNCZIK, 2001, 224) E afirma que Nesse sentido, a objetividade jornalstica est ligada qualidade de um produto jornalstico. (Idem, Ibidem) Traquina (2002) afirma que as transformaes do jornalismo ao longo do sculo XIX, de um jornalismo ostensivamente partidrio para uma modalidade factual um privilegiando opinies, outro fatos contriburam tambm para a importncia da objetividade no jornalismo.A objetividade constitui um valor crucial do jornalista profissional, pelo menos nos pases ocidentais, e est associada ao desenvolvimento do jornalismo enquanto profisso nesses mesmos pases. [...] Aqui, necessrio ter em considerao a evoluo do jornalismo, em particular [...] a apresentao de um produto que privilegia fatos e no opinies e implica um novo conceito de notcia, em termos dos interesses de uma nova classe de leitores. (TRAQUINA, 2002, 23)

Kunczik (2001) argumenta ainda que a imparcialidade (ou objetividade) reside em algum lugar na relao entre o fato e sua representao como informao, o maior grau de identificao entre um e outro opera como um ndice de qualidade do discurso jornalstico. A objetividade deve subsistir como um mtodo operativo normatizado, utilizado na produo do discurso. Alm disso, a relao entre parcialidade e objetividade deve tambm ser considerada sob o prisma dos conflitos de interesses, internos s diversas sociedades.[...] a objetividade de uma informao o grau de identidade entre o fato e a sua descrio mediante a informao. Nesse sentido, a objetividade jornalstica est ligada qualidade de um produto jornalstico. Tambm se utiliza o termo para descrever uma norma jornalstica que requer certos tipos de comportamento. J a imparcialidade ou o equilbrio que se exigem da reportagem se relacionam com o contedo global de um veculo de comunicao, com os interesses existentes numa sociedade que dentro desse

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veculo compete com algum outro em torno da opinio pblica. (KUNCZIK, 2001, 224)

A objetividade estaria relacionada a um recurso metodolgico empregado pelo profissional jornalista para atribuir excelncia ao seu produto. A reportagem objetiva entendida como desapaixonada, sem preconceitos, imparcial, isenta de sentimentalismo e conforme a realidade. (KUNCZIK, 2001, 227) Algo que diferenciaria a simples opinio de uma anlise mais acurada, isenta, munida de um arcabouo mnimo de informaes acerca do assunto, que possibilitasse alguma identificao entre a representao elaborada de um fato e a realidade objetiva. Por outro lado, a parcialidade seria a produo de textos eivados de opinies pessoais, inclinaes classistas e interesses pessoais, paixes e preferncias. Para Traquina (2002), de acordo com a citao supracitada, o bom jornalismo privilegia fatos e no opinies, sendo imprescindvel a adoo dessa metodologia para a profissionalizao do jornalista, bem como para a qualidade do produto. Todavia, a idia de reportagem desapaixonada, sem preconceitos, imparcial, isenta de sentimentalismo e conforme a realidade. (KUNCZIK, 2001, 227) parece apresentar a objetividade como um atributo do jornalista e no do texto que produz. Segundo Pena (2006),[...] o mtodo que deveria ser objetivo, no o jornalista. [...] A sociedade confunde a objetividade do mtodo com a do profissional, e este jamais deixar de ser subjetivo. [...] esse esforo fundamental no s para melhorar a imagem da profisso perante a sociedade, mas para o entendimento dos jornalistas sobre o prprio ofcio. (PENA, 2006, 51-52)

O jornalista, segundo Pena (2006), deve buscar a objetividade como mtodo de construo textual. Na produo de textos de carter cientfico, o uso de uma metodologia imprescindvel, e ela explicitada. Certamente que o jornalista no escreve limitado ao mundo acadmico-cientfico, mas se busca um mnimo de profissionalismo, seu texto precisa de um diferencial, do contrrio, seria apenas

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opinio, afetando a informatividade4 da notcia, e mesmo o prestgio da profisso de jornalista. Segundo Kunczik (2001),A objetividade prpria do procedimento cientfico e define a possibilidade da verificao intersubjetiva. Essa definio da objetividade pode aplicar-se tambm ao jornalismo, o que quer dizer que deve ser abandonada a noo frequentemente discutida na literatura de que a objetividade esteja ligada relao existente entre afirmao e realidade. Essa definio faz da objetividade uma marca da investigao e da informao profissional sempre e quando se procura separar notcia de comentrio, de modo desapaixonado, imparcial e no-manipulador. (KUNCZIK, 2001, 230)

Para Pena (2006), a objetividade seria principalmente um mtodo de pesquisa, elaborao e estruturao do discurso jornalstico, relacionado complexidade dos fatos, variedade de opinies que anseiam explicar os fenmenos da realidade objetiva. Um expediente operativo de construo do texto jornalstico.[O] verdadeiro significado [da objetividade] est ligado idia de que os fatos so construdos de forma to complexa que no se pode cultu-los como a expresso absoluta da realidade. Pelo contrrio, preciso desconfiar desses fatos e criar um mtodo que assegure algum rigor cientfico ao report-los. (PENA, 2006, 50)

Tuchman (2002) procura aprofundar a reflexo introduzindo o que chama de fatores inter-relacionados que podem ser analisados como ndices de objetividade, em uma matria jornalstica: a forma, o contedo e as relaes interorganizacionais. No que diz respeito forma, Tuchman chama a ateno para quatro procedimentos estratgicos formais, que podem ser utilizados convencionalmente para a caracterizao de um relato como objetivo ou parcial. A autora, todavia, assume uma posio crtica sobre esses procedimentos. Assim, em relao a cada um das teses contrape uma anttese:

A informatividade est relacionada capacidade dos veculos de informao de corresponderem s expectativas da comunidade. No entanto, essas informaes devem guardar alguma identificao com o real. Espera-se que a informao seja relevante no s para indivduos particulares, mas para a sociedade como um todo.

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PROCEDIMENTOS ESTRATGICOS:

CONTRAPONTO:

1. Apresentar verses diferentes de uma 1. Constitui um convite percepo mesma realidade: seletiva: o jornalista, ao investigar um fato ou a apresentao de vrias opinies uma circunstncia qualquer, deve sobre um assunto no significa que apresentar mais de um ponto de vista uma delas seja, de fato, a mais sobre o assunto, de preferncia coerente com a realidade objetiva. conflitantes, para que o leitor possa Cada uma das verses apresenta formar sua prpria opinio. pretenses de verdade impossveis de verificar, representando cada uma delas uma possvel realidade. (TUCHMAN, 2002, 80) 2. Apresentar provas suplementares 2. Insistncia equivocada na idia de que para fundamentar um fato: os fatos falam por si: diz respeito presuno de que os a avaliao e a aceitao de fatos fatos falam por si. Representao extremamente dependente dos dos diversos relatos de testemunhas, processos sociais. (TUCHMAN, as quais possam comprovar as 2002, 80) Os fatos no falam por si, afirmaes dos jornalistas. pois a representao deles influenciada pela realidade social de quem os investiga e interpreta. 3. Usar judiciosamente as aspas: 3. Instrumento de descrdito e um meio Tuchman argumenta que as citaes do jornalista fazer passar a sua de opinies de outras pessoas [so] opinio: Ao acrescentar mais nomes uma forma de prova suplementar. e citaes, o reprter pode tirar as suas (TUCHMAN, 2002, 81) opinies da notcia, conseguindo que outros digam o que ele prprio pensa. (TUCHMAN, 2002, 82) 4. Estruturar a informao numa 4. Limitado pela poltica editorial de sequncia apropriada: uma determinada organizao principalmente a estruturao da jornalstica: informao nos moldes da chamada a estrutura da informao definida notcia estruturada como pirmide pela poltica editorial da empresa onde invertida (lead). o jornalista trabalha.

J pela perspectiva do contedo, argumenta-se que os jornalistas muitas vezes publicam fatos indocumentados, baseando-se apenas no chamado senso comum. Digamos, guisa de exemplo, que um jornalista produza uma reportagem na qual argumenta que determinado texto um artigo, uma reportagem, um livro, etc pode ser

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taxado como propaganda comunista.5 Digamos que ele o faa, pois h ali referncias ao livro O Capital. A mera presena de uma referncia como esta, na argumentao do jornalista que interpreta ou comenta o texto, justificaria tal rtulo, j que aquela obra associada, pelo senso comum, antes ao comunismo do que a um livro que verse sobre questes de teoria econmica.O senso comum desempenha um papel importante na avaliao do contedo noticioso, uma vez que o contedo de uma notcia composto de numerosos fatos, e o senso comum determina se uma informao pode ser aceite como fato. [...] Os jornalistas no publicaro como fatos afirmaes que contradigam o senso comum. (TUCHMAN, 2002, 87)

As notcias publicadas pelos jornalistas se adaptam realidade scio-cultural da comunidade. Elas apresentariam, em seu contedo, fatos que refletem a viso da comunidade a respeito da realidade que a cerca, agindo de acordo com uma certa previsibilidade, e adequando-se ao senso comum dos indivduos. O jornalista seria uma espcie de reprodutor da realidade social. Em seu discurso ecoariam as expectativas que a comunidade tem a respeito do que l, se tais informaes seriam interessantes ou importantes de se saber. Tuchman argumenta que o contedo de uma notcia prope-se como fato em consonncia com a realidade social. No entanto, a autora alerta que a adequao do contedo realidade social pode servir como uma defesa antecipada a possveis crticas. O chamado lead, ou seis servidores bsicos de uma notcia, alm de um recurso formal para produzir notcias com objetividade, est tambm associado ao contedo. O lead a exposio sinttica dos acontecimentos no incio do texto, apresentando as questes bsicas que um leitor necessita saber: o quem, o qu, o quando, o onde, o porqu e o como. Representa a base invertida da pirmide da notcia. Segundo

Vale lembrar que o artigo de Tuchman foi publicado no incio da dcada de 1970, no perodo da chamada Guerra Fria.

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Tuchman se o jornalista puder afirmar que foi atrs das coisas mais materiais, ele pode dizer que foi objetivo. (TUCHMAN, 2002, 83) Exemplo de um leadO tenente Manuel Bandeira matou o bancrio Afrnio (quem) (o qu) (quem)

Peixoto, ontem, s 23 horas, na Ladeira da Memria, (quando) (onde)

Com o dorso de um dicionrio, por questes gramaticais. (como) (porqu) (SANTANNA, 2007, 69)

Todavia, tambm aqui surgem dificuldades quanto questo da objetividade. Os jornais e os reprteres podem no estar de acordo na identificao dos fatos materiais; (TUCHMAN, 2002, 84) e h considerveis chances de que nem os diversos leitores. O lead apresenta uma espcie de resumo do contedo da notcia, estruturado de acordo com aquilo que o autor, o jornalista, julgar mais importante ou interessante, e que vir explcito no incio do texto. Ainda sobre a questo do contedo, outro recurso utilizado pelos jornalistas seria a diferenciao entre notcias objetivas e notcias de anlise, empregado nos jornais, de acordo com a poltica de cada empresa, para criar uma fronteira entre o que fato e o que seria opinio. A autora afirma que Os jornalistas usam o rtulo de notcia de anlise para colocar uma barreira entre o artigo controverso e os outros artigos das pginas de informao geral. (TUCHMAN, 2002, 84) Entretanto, h uma questo: em que exatamente diferem notcia objetiva e notcia de anlise? Os jornalistas, em relao chamada notcia de anlise, lanando mo do chamado news judgment (perspiccia profissional), alegam que sua anlise representa os fatos de forma convincente, ponderada e definitiva, pois foi elaborada tendo como esteio, [...] sua experincia e senso comum que lhe permitem atribuir aos fatos o valor de importante e interessante. (TUCHMAN, 2002, 85) Discute-se novamente a

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questo da opinio e do senso comum. O prprio jornalista, na elaborao e estruturao do texto, quem define o que interessante ou imprescindvel saber. A diferena entre os dois tipos de informao (de anlise ou objetiva), segundo a autora, que ao rotular uma notcia como de anlise, o jornalista admite apresentar os fatos de acordo com sua opinio pessoal, e usa como justificativa para este procedimento a experincia profissional e a capacidade privilegiada para analisar os fatos apresentados na notcia. Pareceria que o news judgment o conhecimento sagrado, a capacidade secreta do jornalista que o diferencia das outras pessoas. (TUCHMAN, 2002, 85) Sobre as relaes interorganizacionais, argumenta-se que os jornalistas consideram que a fiabilidade das fontes s quais recorrem para obteno de informaes pode ser auferida de acordo com trs generalizaes que assumem: primeiro, a utilizao de um mtodo de ensaio e erro (por parte dos corpos editoriais); segundo, alguns indivduos (fontes), em posies privilegiadas, tm acesso a um nmero maior de fatos; e finalmente, as organizaes tm polticas de defesa para salvaguardar a si e aos seus funcionrios. A autora afirma que os jornalistas usam estes pressupostos de forma generalizada, em meio a essa diversidade de fontes, buscando uma verso que faa mais sentido. A experincia do jornalista com as relaes interorganizacionais, as suas relaes com a sua prpria organizao permitem-lhe reivindicar este news judgment assim como a objetividade. (TUCHMAN, 2002, 85) A crtica parece referir-se, sobretudo, s presunes sobre os fatos, os quais no so relatados necessariamente de forma objetiva, mas de acordo com o crivo e os interesses das organizaes, que definem procedimentos padronizados, os quais, muitas vezes, superpem-se aos fatos.

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importante observar que a utilizao destes procedimentos (a adequao formal das informaes, o destaque de certos aspectos especficos do contedo, alm da utilizao de um modus operandi, estabelecido pela poltica editorial das empresas, que padroniza as relaes interorganizacionais) serviria, primordialmente, na argumentao de Tuchman (2002), como um meio de defesa dos jornalistas e das empresas de comunicao contra possveis crticas, por parte da opinio pblica, quanto idoneidade do jornalismo que praticam. Tuchman no apresenta tais estratgias como meios plenamente efetivos de se alcanar uma pretensa objetividade, enquanto aproximao entre discurso e realidade; mas, principalmente, como uma noo operativa de objetividade para minimizar os riscos impostos pelos prazos de entrega de material, pelos processos difamatrios e pelas reprimendas superiores. (TUCHMAN, 2002, 76) Hacket (2002), por sua vez, prefere falar de orientao estruturada e efetividade ideolgica para anlise da produo jornalstica, argumentando que os conceitos de parcialidade e objetividade devem ser mais objetos de investigao que padres de avaliao. (HACKET, 2002, 102) Segundo o autor, a parcialidade geralmente vista como a intromisso da opinio pessoal do jornalista no texto que produz, principalmente, quando no h uma distino clara entre o que se declara fato objetivo e o que abertamente opinio.[...] a maioria das definies em linguagem comum consideram a parcialidade noticiosa como a intruso de opinio subjetiva do reprter ou da organizao jornalstica no que pretensamente um relato factual [...] quando um artigo no faz a distino clara entre as interpretaes do seu autor e os fatos relatados, estamos perante uma notcia parcial ou tendenciosa. (HACKET, 2002, 103)

Segundo Hacket, considera-se geralmente que h dois momentos de parcialidade noticiosa: o desequilbrio, quando da narrao dos fatos e a distoro da realidade.

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Equilbrio Igual Neutro Justo

Desequilbrio Preferencial Unilateral Parcial

Realidade Franco Factual Exato Verdico

Distoro Indireto Deturpado Distorcido Estereotipado

O equilbrio relaciona-se adoo, por parte do jornalista, de testemunhos de fontes diversas, que sejam preferencialmente contraditrios. Por outro lado, a fidelidade realidade est relacionada independncia do jornalista, que no estaria submetido a nenhum outro compromisso que no o de narrar os fatos de acordo com a realidade objetiva. O autor introduz em sua anlise sobre o assunto alguns conceitos que denomina pressupostos convencionais investigao sobre a parcialidade jornalstica, (HACKET, 2002, 101) sobre os quais destaca algumas questes. Optamos, devido extenso das reflexes do autor, por apresentar dois desses pressupostos, os quais nos pareceram mais relevantes para a natureza deste trabalho: PRESSUPOSTOS QUESTES a

descobrir 1. A parcialidade no contedo noticioso 1.Conseguimos parcialidade na notcia? pode ser detectada atravs da existncia de mtodos de leitura; 2. A forma mais importante da parcialidade 2. Da parcialidade ideologia. o partidarismo.

Procederemos a uma breve discusso sobre cada um dos dois itens apresentados por Hacket (2002).

1. Conseguimos descobrir a parcialidade na notcia? A questo da objetividade e da parcialidade est frequentemente associada, como j vimos acima, s posturas pessoais dos jornalistas. Todavia, a objetividade deve estar no 21

mtodo de elaborao do discurso, no na pessoa que o produz. (...) a parcialidade tem de ser encontrada no artigo, no no esprito daquele que o escreve. (HACKET, 2002, 114). partindo deste pressuposto que o autor vai analisar a questo.[...] a maioria das investigaes em torno da parcialidade centram-se mais no contedo das notcias do que nas suas condies de produo. Para que tal trabalho seja vivel, uma terceira pressuposio tem de ser considerada: a de que a parcialidade no contedo pode ser definida operacionalmente, e podem adotar-se apropriadas medidas empricas para avaliar a sua presena. (HACKET, 2002, 114)

Seguindo nesse sentido, Hacket procede a uma investigao sobre a chamada anlise de contedo, um tipo de anlise que busca destacar elementos avaliativos manifestos no contedo do discurso, baseada na caracterizao desses elementos no texto. A anlise de contedo opera por meio de alguns ndices que poderiam revelar a parcialidade: elementos quantitativos como a extenso de uma matria sobre determinado tema ou o espao ali disponvel para cada uma das partes confrontantes; como tambm a proporo de afirmaes em prol e contra determinado indivduo ou assunto. Haveria, segunda a viso de Hacket, um elemento behaviorista na anlise de contedo.[...] segundo o qual a repetio das unidades do contedo est associada ao impacto na audincia. Assim, a tabulao de frequncias suposta ser um indicador til da mensagem que o pblico est a receber. (HACKET, 2002, 114)

Todavia, embora se queira uma tcnica neutra de descrio do contedo, essa modalidade de anlise busca detectar as motivaes do comunicador, na forma de mensagens introduzidas intencionalmente no discurso. Na anlise de contedo devem ser consideradas apenas as marcas explcitas no texto, num processo de anlise do enunciado, no da enunciao. Vale dizer, uma leitura que busca os significados denotativos das unidades lingusticas, em que no se deve ler nas entrelinhas.

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Como alternativa anlise de contedo, o autor prope outra modalidade de anlise, a qual denomina de estrutural. Essa anlise, baseada na lingustica estrutural e na semitica, prope uma associao entre o cdigo lingustico e a ideologia. O cdigo ou a estrutura latente que produz as unidades de significao, e est imanente nelas, considerado equivalente ideologia.6 (HACKET, 2002, 115) Essa modalidade de anlise busca a significao na estruturao interna do discurso, nas interrelaes entre os signos. Em suma, os cdigos culturais (anlogos s lnguas) que estabelecem as combinaes possveis de elementos que geram significado num texto particular ou num conjunto de textos so o objeto da anlise. (HACKET, 2002, 115) Essa abordagem se posiciona contra a restrio de que os signos devem ser considerados apenas pela sua acepo denotativa.A limitao denotao [...], em certo aspecto, uma falha. A anlise de contedo tem de presumir que a denotao no problemtica, que universal, e que os significantes querem dizer a mesma coisa para toda a gente. (HACKET, 2002, 116)

O autor sugere que, ao invs de considerar a quantificao ou repetio de elementos lingsticos para o estabelecimento da significao, esta seja estabelecida na estruturao do texto (discurso) como um todo, no a partir de uma srie de componentes fragmentados. Sugerindo que a posio dos elementos lingsticos no todo textual mais relevante que sua mera repetio, ele afirma que:No h razo para se considerar que o item que se repete mais frequentemente o mais importante ou o mais significante, pois um texto , evidentemente, um todo estruturado, e o lugar ocupado pelos diferentes elementos mais importante do que o nmero de vezes que eles se repetem. (HACKET, 2002, 115)

Alm disso, tese de que haveria um discurso universalmente partilhado, contrapese a idia de uma luta de classes interna linguagem. A anlise de contedo, ao ocupar-se de elementos isolados, desconsidera problemas concernentes codificao e6

O conceito de ideologia ser estudado mais detidamente no prximo captulo.

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decodificao da linguagem. A mensagem recebida pode no ser a pretendida. (HACKET, 2002, 116) A idia central da anlise de contedo detectar a parcialidade na manipulao daquele conjunto partilhado de significados, especialmente na repetio de determinadas estruturas (palavras, conceitos, referncias), o que tornaria claras as intenes do comunicador. Todavia, a idia de uma parcialidade pr-concebida se encontra vulnervel devido essencialmente questo do rudo que existe nas interaes, fazendo com que a mensagem pretendida no seja necessariamente a recebida. Segundo Hacket, essas consideraes dificultam a associao entre produo jornalstica e ideologia, se por ideologia se entender o resultado (assim como um determinante) de prticas sociais estruturadas, aquilo que se exprime atravs de textos especficos. (HACKET, 2002, 117)

2. Da parcialidade ideologia7 A noo de que existam estruturas ideolgicas subjacentes ao discurso jornalstico amplia e, de certa forma, pode at contradizer a idia de que haja uma manipulao tendenciosa das notcias por parte dos jornalistas. A ideologia, enquanto diretriz de prticas sociais estruturadas, estaria inelutavelmente presente no discurso. Quer o jornalista tenha conscincia ou no, quer tenha ou no a inteno de propagar determinadas formaes ideolgicas. Devido variedade de possveis definies a respeito do conceito de ideologia, Hacket procede apresentao de trs noes sobre o tema. importante ressaltar que as trs noes, segundo a viso desse autor, esto fundamentadas numa concepo da sociedade estruturada em segmentos, onde haveria uma luta de classes em torno doO tema ideologia ser discutido de forma mais ampla no prximo captulo. A sua insero neste momento visa apresentar a orientao das reflexes de Hacket (2002) sobre o estudo da objetividade no jornalismo.7

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poder, na qual a ideologia representa formaes discursivas que podem legitimar a hegemonia de uma classe sobre outra. Para o autor, as trs concepes de ideologia so: ideologia como enquadramento, ideologia como naturalizao e ideologia como interpelao.

2.1 A ideologia como enquadramento De acordo com a primeira concepo, a ideologia seria um processo de reproduo de quadros do mundo, produzidos e mantidos por determinadas classes, com vistas manuteno e perpetuao de sua hegemonia poltico-econmica: a subordinao da imprensa a sistemas organizados de procedimentos polticos, como o imperialismo ou o socialismo; o silenciamento sobre assuntos constrangedores; o destaque a determinados fatos; o uso de rotulaes; e at mesmo a apresentao consciente de informaes falsas. Segundo o autor, nessa primeira concepo, a ideologia seria algo como.Um sistema de idias, valores e proposies que caracterstico de uma classe social especfica, e/ou que expressa os interesses polticos e econmicos dessa classe. Na medida em que estas idias so entendidas como distores das verdadeiras relaes sociais, ou, em alternativa, como contrrias aos verdadeiros interesses de classe, o termo falsa conscincia pode ser-lhes aplicado. (HACKET, 2002, 119)

H uma semelhana com o conceito jornalstico de enquadramento noticioso, definido como padres persistentes de cognio, interpretao, apresentao, seleo, nfase e excluso, atravs dos quais aqueles que trabalham os smbolos organizam geralmente o discurso, tanto verbal como visual. (HACKET, 2002, 120-121) Mais importante que o equilbrio seria esse enquadramento que estipularia significaes dominantes. Esses processos de enquadramento poderiam disfarar, sob a forma aparente de neutralidade e parcialidade, as estruturas ideolgicas subjacentes ao discurso. Assim, a apresentao de opinies contraditrias, por exemplo, poderia servir para ocultar as

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reais motivaes dos agentes produtores de notcia: a apresentao do tema problematizado nestes ou naqueles termos, ou a legitimidade que tem os indivduos representantes de determinadas organizaes para tratar de uma temtica especfica.

2.2 A ideologia como naturalizao Nesta segunda concepo, a ideologia serviria para naturalizar as relaes sociais. Aquelas regras de conduta e regulao da vida scio-econmica, que so definidas pelos grupos que detm o poder poltico-econmico na sociedade, so naturalizadas pela ideologia. (HACKET, 2002, 120) Entretanto, essa naturalizao de prticas artificiais funciona como um elemento de dissimulao de fatores determinantes das relaes sociais, ocultando os fundamentos antagnicos do sistema. (...) a dominao de classes, a natureza exploradora do sistema, a fonte desta expropriao fundamental na esfera da produo, a determinncia neste modo de produo do econmico. (HACKET, 2002, 120) Os media, produtores e distribuidores de informao, serviriam como clulas operativas de dissimulao das relaes sociais, atuando como elementos fundamentais para o prprio funcionamento do sistema ideolgico, produzindo um discurso que ajuda a legitimar as relaes polticas e econmicas. Nesse cenrio, enquanto algumas vozes, legitimadas pelo poder poltico-econmico, teriam acesso privilegiado aos meios de comunicao, podendo efetivar e amplificar seus pontos de vista, outras seriam relegadas a segundo plano, tratadas como irracionais ou ilegtimas. Todavia, adverte o autor, no discurso dos media, essa postura no apresentaria uma cobertura ideologicamente tendenciosa (parcial) dos fatos e das relaes sociais. Ao contrrio, os meios de comunicao estariam, alegadamente, representando fielmente as estruturas de poder. No haveria distoro na representao da realidade, tal distoro

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estaria nos processos polticos, internos s relaes de poder. [...] os media refletem e representam, com exatido, a estrutura prevalecente e um modo de poder. na poltica e no Estado, no nos media, que o poder distorcido. (HACKET, 2002, 122) Hacket critica tais consideraes, argumentando que um cenrio como esse, em que determinados centros de poder silenciariam vozes contraditrias, s seria possvel em sociedades onde a estruturao e a representao do poder poltico no fossem efetivamente democrticas. Haveria, do mesmo modo, um deslocamento deliberado do poder social, que efetivamente os meios de comunicao detm, para a esfera estatal, isentando os media de qualquer responsabilidade sobre o que publicam. Hacket acena para uma lgica traioeira operando atravs dessa concepo ideolgica: uma contrao dos espaos pblicos de debate, disfarada pela iluso de que haja objetividade na apresentao das informaes. Tais consideraes apontam para uma funo ideolgica da imparcialidade. Alegando representar fielmente a estrutura scio-poltico-econmica, os media dissimulariam suas prprias motivaes, isentando-se de suas responsabilidades enquanto centros de difuso de informao orientada, e atribuindo ao sistema possveis distores dos mecanismos que efetivamente determinam as relaes sociais.

2.3 A ideologia como interpelao Nesta ltima concepo de ideologia apresentada, a ateno se volta para uma estratgia jornalstica que interpela os indivduos a formarem seus prprios pontos de vista a respeito das informaes que recebem. Segundo Althusser (1980), os sistemas ideolgicos so orientandos para indivduos concretos ou sujeitos. Para o autor:[...] toda a ideologia interpela os indivduos concretos como sujeitos concretos, pelo funcionamento da categoria de sujeito. [...] Sugerimos ento

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que a ideologia age ou funciona de tal forma que recruta sujeitos entre os indivduos (recruta-os a todos), ou transforma os indivduos em sujeitos (transforma-os a todos) por esta operao muito precisa a que chamamos a interpelao. (ALTHUSSER, 1980, 98-99)

O indivduo sentir-se-ia sujeito ativo na apreciao dos fatos, interagindo com as informaes apresentadas pelos media e formando sua opinio a partir delas. Segundo Hacket, o principal instrumento usado pelo discurso jornalstico para garantir essa possibilidade aos consumidores de notcias seria a apresentao de uma estrutura textual alegadamente realista. O realismo procura assim estabelecer uma identidade (ou, pelo menos, uma equivalncia) entre os significantes (grosso modo, as palavras ou outros smbolos), significados (conceitos), e outros referentes

extralingsticos do mundo real.8 (HACKET, 2002, 124) Na elaborao do texto, o jornalista procuraria apagar as marcas de sua confeco, estabelecendo entre as significaes produzidas pela linguagem e a realidade objetiva uma identidade evidente.9 Contudo, numa mesma lngua, um significante pode apontar para significados, sentidos ou referentes diversos. A significao no estvel, mas se efetiva no uso dos elementos lexicais de uma lngua. Alm disso, as diferentes lnguas podem gerar grupos diversos de significados, que entrecortam a realidade de vrias maneiras. (HACKET, 2002, 124) A linguagem seria utilizada como se referindo aos fatos de forma exata, como se falasse por si prpria, e no atravs do autor do discurso. Hacket sugere que a linguagem realista estabelece uma hierarquia entre as vozes presentes no texto, numa situao em que uma voz seria a dominante e todas as outras fossem subordinadas a ela, funcionando como perspectivas parciais.

A questo da significao, segundo os estudos de semntica, bastante complexa. Limitamo-nos a apresentar, ipsis literis, as palavras do autor, considerando que um detalhamento do tema extrapolaria os objetivos deste trabalho. 9 Segundo Althusser [...] as evidncias como evidncias, que no podemos deixar de reconhecer, e perante as quais temos a inevitvel reaco de exclamarmos (em voz alta ou no silncio da conscincia): evidente! isso! No h dvida!. (ALTHUSSER, 1980, 101)

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Hacket prope que se examine as conseqncias efetivas da implementao de estratgias de objetividade por parte de organizaes de comunicao. Em outras palavras, indaga o autor, o ideal da objetividade, quando da elaborao e produo dos textos pelos jornalistas, poderia efetivamente sobrepujar as presses oriundas de executivos e donos de empresas que pretendem impor uma determinada ideologia? Posteriormente, o autor sugere a substituio do conceito de parcialidade pelo de orientao estruturada.Ao abandonar a noo de comunicao imparcial, podemos evitar ser afastados dos nossos propsitos pela busca de padres de equilbrio e imparcialidade. Em vez disso, analisamos os vrios tipos de orientaes e relaes sistemticas que, inevitavelmente, estruturam os relatos noticiosos. Estes fatores podem, decerto, incluir o favoritismo partidrio ou os preconceitos polticos. (HACKET, 2002, 128)

Hacket sugere que se lance mo daquelas concepes de ideologia apresentadas para orientar o estudo a respeito dos padres de produo de informao jornalstica: os enquadramentos ou conjunto de pressuposies sociais fomentadas na notcia, a naturalizao das relaes sociais e a interpelao do pblico. (HACKET, 2002, 128) A orientao de Hacket que se busque as formaes ideolgicas presentes nas informaes noticiosas, considerando-se a presena da ideologia no discurso. O autor sugere que se analise no a postura particular de um reprter ou jornalista, quando da elaborao de seus textos e matrias, mas que se busque desvendar os padres de construo textual e orientao estruturada das empresas jornalsticas. Assim, o autor trata das investigaes tradicionais a respeito da objetividade, considerando temas como distoro da realidade e desequilbrio. Mas chama a ateno para a importncia de se investigar a orientao estruturada e a efetividade ideolgica nas notcias. O autor orienta as investigaes no sentido da anlise do texto como um todo, e de suas relaes com os centros de poder e com as ideologias.

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Atravs das diversas vozes convocadas, pretendemos apresentar, nesse captulo, reflexes de alguns estudiosos sobre o tema objetividade versus parcialidade na produo jornalstica. Inicialmente, apresentamos pontos de vista mais tradicionais sobre os temas, que consideram a objetividade como um mtodo de elaborao e estruturao da informao noticiosa, orientada na direo do profissionalismo, do prestgio social do jornalista na sociedade, e tambm da qualidade do produto final oferecido ao pblico. Grosso modo, esse seria o eixo central das perspectivas de Traquina, Kunczik e Pena. Posteriormente, apresentamos dois pontos de vista que procuram aprofundar as reflexes sobre o assunto, tratando de temas como adequao formal das informaes, anlise de contedo, relaes interorganizacionais, orientao estruturada e efetividade ideolgica, concepes discutidas por Tuchman e Hacket. No prximo item, vamos analisar mais detidamente a relao entre jornalistas e empresas de comunicao com suas fontes.

1.3. Objetividade e parcialidade fontes (testemunhos) A relao entre jornalistas e fontes determina, em certo aspecto, o contedo de uma notcia. O jornalista, como foi discutido no primeiro item, quase sempre trabalha com relatos sobre fatos os quais no presenciou. Sua viso destes fatos depende, em larga medida, das fontes as quais o jornalista ter acesso. As fontes nem sempre so testemunhais. Muitas vezes, so indivduos que tm posies privilegiadas, e por essa razo tem acesso a outros indivduos e relatos, os quais so considerados mais prximos aos fatos e acontecimentos. Assim, a representao dos fatos se d via uma cadeia de propagao dos relatos.Cada indivduo da cadeia informativa entende a realidade conforme seu prprio contexto e seu prprio enfoque de memria. [...] No difcil

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perceber que nenhum relato imediato. H diversos nveis de mediao. E no decorrer desse processo, os prprios jornalistas tornam-se fontes, pois fazem relatos para os outros produtores da notcia em escala industrial. (PENA, 2006, 59-60)

Tais relatos podem no coincidir entre si. Da a necessidade de se proceder investigao de um nmero variado de pontos de vista a respeito dos fatos, para, a partir da comparao entre eles, vislumbrar alguma identidade entre o que se relata e o que supostamente teria ocorrido de fato. As fontes so geralmente subdividas em primrias e secundrias, de acordo com sua relao com os fatos e acontecimentos. Deve-se destacar, ainda, as chamadas fontes testemunhais, aquelas que tiveram alguma relao direta com o fato.Na teoria do jornalismo, outra categoria de fonte a testemunhal. Como o prprio nome diz, ela tem relao direta com o fato, j que sua testemunha. Mas preciso lembrar que seu relato sempre estar mediado pela emoo, pelos preconceitos, pela memria e pela prpria linguagem. Testemunha apenas a perspectiva de um fato, jamais sua exata e fiel representao. Por sua relao direta com a informao, ela tambm est inserida na categoria de fonte primria. J a secundria o tipo de fonte usada para contextualizar a reportagem. Em uma matria sobre a Guerra do Iraque, por exemplo, soldados e moradores de Bagd seriam fontes primrias, enquanto cientistas polticos e analistas militares seriam fontes secundrias. (grifos nossos) (PENA, 2006, 64)

As fontes, de alguma forma, equivalem aos prprios fatos, j que representam a reconstruo, a recriao da realidade. Todavia, como salienta Pena, na citao anterior, [...] preciso lembrar que seu relato sempre estar mediado pela emoo, pelos preconceitos, pela memria e pela prpria linguagem. O relato das fontes no a reconstituio fiel dos fatos, mas representa, no mximo, um determinado conjunto de pontos de vista sobre eles. Como j foi salientando no item anterior, a forma de estruturao de um texto pode definir determinadas vozes (provenientes de fontes especficas) como reivindicantes de uma representao fiel da realidade, enquanto outras so vistas ou consideradas como ilegtimas ou irracionais.

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Kunczik (2001) afirma que pessoas influentes produzem relatos mais interessantes para os indivduos em geral, em decorrncia de sua posio social. O autor sugere que a credibilidade de uma fonte est estreitamente relacionada ao seu apelo enquanto figura pblica ou clebre, sendo este um fator determinante em sua legitimidade como fonte de informaes. Todavia, essa dependncia em relao s fontes pode provocar perda da autonomia.Para garantir um fluxo contnuo de informaes, h entre os jornalistas uma tendncia fundamental no sentido de adotar os pontos de vista de suas fontes ao se emitir a informao que delas se obteve. (KUNCZIK, 2001, 261).

Por outro lado, a objetividade pode servir como um mtodo de equilbrio na relao entre o jornalista e suas fontes. Busca-se objetividade ou a neutralidade citando-se tanto defensores como adversrios de uma mesma questo. (KUNCZIK, 2001, 261262) Segundo o autor, o mtodo de se investigar relatos contraditrios das diversas fontes poderia tambm ser criticado, tanto por ser superficial: o jornalista se limitaria a apresentar os relatos, sem uma anlise mais profunda sobre eles; quanto, em outra perspectiva, por estar limitado ao ponto de vista das fontes consideradas mais importantes, muitas vezes, por seu posicionamento social, pela legitimidade que um cargo ou uma posio lhe conferem. H outro dado bastante significativo introduzido por Kunczik (2001): a relao do jornalista com as fontes pode no ser propriamente investigativa, nem estar necessariamente pautada numa pretensa identificao entre um fato e sua representao discursiva. Por exemplo, um jornalista, quando se lhe apresenta o tema sobre o qual produzir seu texto (discurso), devido a questes relacionadas orientao polticoideolgica do meio de comunicao ao qual est vinculado, j teria em mente o tipo de relato que precisa para sustentar a narrativa. O profissionalismo do jornalista

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[consistiria] em saber com exatido como conseguir relatos que atendessem s necessidades e s normas da organizao. (KUNCZIK, 2001, 264-265) Esse tipo de reflexo apresentada pelo autor aponta tambm no sentido de uma investigao da orientao ideolgica das empresas de comunicao. Nessa perspectiva, a produo de notcias teria um carter teleolgico. A publicao de determinadas notcias, ou a no publicao de outras, a apresentao dos fatos nesse ou naqueles termos, poderiam servir a fins especficos, ideologicamente orientados. Assim, a produo e veiculao das notcias poderiam ser interpretadas como[...] um comportamento que visa a um fim determinado, noutras palavras, a notcia como realidade existe devido aos fins prticos a que serve, e no por sua importncia intrnseca ou objetiva. (KUNCZIK, 2001, 264).

Nesse panorama, determinadas fontes j estariam estrategicamente posicionadas em relao ao tema a ser desenvolvido. Caberia ao jornalista, de acordo com a orientao ideolgica do meio de comunicao ao qual est vinculado, definir quais fontes serviriam de forma mais adequada para a estruturao da notcia. No item anterior, j tratamos de questes relacionadas s fontes. Tuchman (2002) trata das relaes interorganizacionais dos jornalistas e empresas de comunicao. Essa relao estaria baseada em generalizaes que padronizam a informao. Por exemplo, a utilizao de um mtodo de ensaio e erro, baseada em procedimentos vinculados s relaes entre a empresa jornalstica e outras instituies da sociedade. A notcia seria balizada pela reao de determinados organismos sociais a possveis acontecimentos noticiveis. Assim, se os rgos de polcia, por exemplo, considerarem uma possvel veracidade em uma denncia, ou num acontecimento qualquer, as empresas jornalsticas teriam maior propenso a veicular o contedo daqueles fatos. A importncia ou interesse de uma notcia, ou do fato que a ela d origem, estariam condicionados ao posicionamento dos agentes propagadores.

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Outro aspecto tratado por Tuchman (2002) so as polticas de defesa adotadas pelas organizaes jornalsticas, as quais esto tambm estreitamente ligadas s relaes interorganizacionais. As empresas de jornalismo tm polticas editoriais que selecionam e estruturam as notcias. O prprio conceito de objetividade pode ser considerado uma dessas estratgias de defesa antecipada. Todavia, no caso das relaes interorganizacionais, a prpria relao das organizaes jornalsticas com a sociedade que est em jogo. Entretanto, como j foi discutido, as fontes tm uma importncia estratgica para o chamado contedo noticioso. Os relatos tendem a amplificar determinadas vozes que apresentam pontos de vista, formaes ideolgicas sobre a sociedade. importante, mais uma vez, investigar a orientao ideolgica de uma notcia. Segundo Traquina (2002) As decises tomadas pelo jornalista no processo de produo de notcias s podem ser entendidas inserindo o jornalista no seu contexto mais imediato, o da organizao para a qual ele ou ela trabalham. (TRAQUINA, 2002, 169) Procuramos, nesse ltimo item, demonstrar a importncia da relao entre uma organizao jornalstica e suas fontes, as quais, segundo Traquina, (...) nunca so desinteressadas. (TRAQUINA, 2002, 172) O acesso aos media estratificado socialmente, e sua importncia est intimamente ligada posio das fontes. No prximo captulo, apresentaremos posies tericas do campo da Anlise do Discurso, que serviro de amparo s anlises a serem realizadas.

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CAPTULO 2

Na verdade, a significao pertence a uma palavra enquanto trao de unio entre os interlocutores, isto , ela s se realiza no processo de compreenso ativa e responsiva. A significao no est na palavra nem na alma do falante, assim como tambm no est na alma do interlocutor. Ela o efeito da interao do locutor e do receptor produzido atravs do material de um determinado complexo sonoro. Mikhail Bakhtin

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2.1. Breve percurso sobre a histria da Anlise do Discurso Segundo Brando (2004), a partir de Harris (Discourse ananlysis, 1952) que surgem os primeiros esboos do que viria a ser chamado de Anlise do Discurso. Neste trabalho, o autor propunha uma lingstica que ultrapassasse o nvel frasal. Todavia, ainda no considerava questes de cunho social ou histrico nos estudos lingusticos, que seriam fundamentais ao desenvolvimento posterior da Anlise do Discurso. Por outro lado, Benveniste, segundo Brando (2004), ao tratar das relaes entre o locutor, o enunciado e o mundo, tambm antecedeu reflexes da AD. Essas duas correntes tericas viriam inaugurar duas maneiras diferentes de se pensar a teoria do discurso.Uma que a entende como uma extenso da lingstica (perspectiva norteamericana) e outra que considera o enveredar para a vertente do discurso o sintoma de uma crise interna da lingstica, principalmente na rea da semntica (perspectiva europia). (BRANDO, 2004, 14)

Essa crise da lingstica originou-se de reflexes sobre as limitaes de se pensar a lngua apenas em seu aspecto imanente, interior, enquanto estrutura fechada em si mesma. Essa viso estruturalista da linguagem deve-se, sobretudo, a Saussure e seu Curso de Lingstica Geral (1915).10 Saussure procurou isolar os elementos da lngua em unidades estruturais, a fim de compreender seu funcionamento dentro de um sistema. Nesse sentido, o linguista genebrino empreendeu uma separao entre lngua e fala, estabelecendo a primeira como objeto de estudo, enquanto a segunda era praticamente desconsiderada. O trabalho de Saussure revolucionou os estudos de linguagem, todavia, ao relegar a fala a um plano secundrio, excluiu os componentes sociais e histricos dos estudos lingsticos. Uma das primeiras vozes a chamar a ateno para essa limitao dos estudos lingusticos foi Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929). Em oposio idia de que a lngua fosse considerada apenas como uma manifestao abstrata,

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Publicado postumamente por alunos de Saussure.

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idealizada, homognea, e estudada apenas em um momento especfico (perspectiva sincrnica), Bakhtin postulou a idia de que a lngua seria um fenmeno concreto e de natureza social, revelando-se heterognea (fruto da manifestao individual de cada falante) e chamando a ateno para sua constituio histrica (perspectiva diacrnica). A partir da, a fala passou a ocupar um lugar importante nos estudos lingusticos. Em contraposio idia de que a fala seria um fenmeno individual e linguisticamente despropositado, Bakhtin formulou uma tese em que a situao de enunciao deve ser encarada como um componente fundamental para o entendimento da significao (semntica) de qualquer ato de natureza lingstica. O signo lingstico, de elemento idealizado e inerte, passa a ser visto como dialtico e dinmico. A linguagem passa a ser encarada como a conjuno entre uma dimenso propriamente lingstica e outra de cunho histrico-social.O percurso que o indivduo faz da elaborao mental do contedo, a ser expresso objetivao externa a enunciao desse contedo, orientado socialmente, buscando adaptar-se ao contexto imediato do ato de fala e, sobretudo, a interlocutores concretos. (BRANDO, 2004, 8)

A partir da, surgiu a idia de signo ideologicamente orientado, de acordo com as interaes sociais. A linguagem poderia apresentar-se ento como a manifestao concreta de uma ideologia.11 Essas reflexes ressaltaram a natureza social e interacional da linguagem, alm de seu aspecto formal. De um sistema de signos inertes, funcionando apenas como mecanismo de pensamento ou comunicao, a lngua passa a ser encarada como ponto de interseo entre duas dimenses coetneas: a lingstica e a situacional. E o ponto de contato entre esses dois aspectos seria o discurso. Desta forma, a partir dos anos de 1960, surgiu uma nova disciplina nos estudos lingusticos: a Anlise do Discurso.

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Trataremos do conceito de ideologia adiante.

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A AD se formou assim pelas contribuies da lingstica enunciativa e de Bakhtin e tambm pelas contribuies de Pcheux, com a movimentao poltica francesa dos anos de 1960. Por isso difcil explicitar um marco: foram vrios eventos que confluram no surgimento da AD. Consideram-se hoje dois momentos principais na histria da Anlise do Discurso. Num primeiro momento, surge a chamada Escola Francesa de Anlise do Discurso (ADF). Essa escola, segundo Brando (2004), procurou unir reflexes sobre o texto e a histria, articulando lingustica, marxismo e psicanlise o que demonstra a presena de um carter interdisciplinar j na gnese da disciplina com uma prtica escolar tpica na Frana, a interpretao e explicao de textos. O principal representante da anlise do discurso nesse primeiro momento Pcheux. Segundo Brando (2004), este autor desenvolveu (Pcheux, 1977) uma anlise centrada em trs conceitos bsicos: lngua, discurso e ideologia (formao social); uma base lingustica, que seria o prprio sistema lingustico, e os processos discursivoideolgicos, construdos sobre aquela base e tendo como esteio o conceito de formao discursiva, de acordo com Foucault (1969). Alm disso, Pcheux tambm considerou a instncia da subjetividade, pelo vis da psicanlise. A formao discursiva seria um sistema de relaes entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratgias, (BRANDO, 2004, 32) que permitiriam a passagem de discursos conceitualmente dispersivos para uma certa regularidade discursiva, compreendida a partir da anlise de enunciados constituintes dessas formaes discursivas. Pcheux procurou desenvolver uma crtica marxista, visando a uma articulao entre a concepo de discurso de Foucault12 e uma teoria materialista do discurso,12

Para Foucault um discurso um conjunto de enunciados que tem seus princpios de regularidade em uma mesma formao discursiva (Foucault, 1969 apud BRANDO, 2004, 33).

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(BRANDO, 2004, 38) baseada na idia de que a semntica um campo especial dos estudos lingsticos, no qual os processos de significao se encontram com a filosofia, a histria e a sociologia. Num segundo momento da anlise do discurso, temos como principal representante o linguista francs Patrick Charaudeau. Todavia, antes de tratarmos de sua Teoria Semiolingustica, doravante TS, vamos ampliar dois conceitos primordiais para o nosso trabalho: ideologia e sujeito.

2.2. A Ideologia13 Uma importante noo usada pela ADF relativa ideologia. Segundo Pcheux, considerado o pai da ADF, era preciso compreender o vis ideolgico dos discursos polticos franceses. Para isso, ele se vale das idias de Marx, Althusser e Lacan. No dicionrio Houaiss, a primeira acepo do conceito de Ideologia Cincia proposta pelo filsofo francs Destutt de Tracy (1754-1836) nos parmetros do materialismo iluminista, que atribui a origem das idias humanas s percepes sensoriais do mundo externo. No entanto, foi a partir de Marx e Engels que o termo comeou a se consolidar com um sentido pejorativo. Afirmavam eles que havia uma discrepncia entre pensamento e realidade nas reflexes filosficas na Alemanha de sua poca, uma lacuna entre a crtica e seu prprio meio material de consecuo. O conceito marxista de ideologia refere-se essencialmente a uma ideologia das classes dominantes. Estas, alm de deterem a fora produtiva material dominante, tambm detm a fora espiritual, no plano das idias. Em seu projeto de crtica ao sistema econmico capitalista, Marx e Engels identificaram uma ideologia burguesa. Esta serviria para legitimar a dominao de uma classe economicamente mais poderosa13

Neste item sobre ideologia, valemo-nos principalmente das consideraes a respeito do assunto apresentadas por Brando, 2004.

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sobre as outras, promovendo uma inverso da realidade. Ao invs de se partir da realidade para a formulao das idias, estas definiriam previamente como seria a realidade, criando esse efeito de distoro e inverso do real. Segundo Brando (2004), na viso marxista, a ideologia burguesa um instrumento de dominao de classe porque a classe dominante faz com que suas idias passem a ser idias de todos. Para isso eliminam-se as contradies entre fora de produo, relaes sociais e conscincia, resultantes da diviso social do trabalho material e intelectual. (BRANDO, 2004, 21)

A ideologia organiza-se ento como um sistema de pensamento, uma construo artificial e ilusria da realidade, mas que se apresenta como retrato fiel dessa mesma realidade. Neste percurso, o discurso ideolgico acaba por salientar determinadas formulaes, enquanto outras so silenciadas, ou apresentadas como ilegtimas ou irracionais. Essa viso da ideologia como representao mimtica, embora invertida, da sociedade, foi reformulada por Althusser, em seu ensaio Ideologia e aparelhos ideolgicos de estado (1980). Neste trabalho, o autor preconiza que, atravs do estado, a classe dominante cria Aparelhos Repressores ARE que compreendem a administrao governamental, o exrcitos, as polcias, os tribunais; e Aparelhos Ideolgicos AIE religio, escola, famlia, a cultura, a informao; no intuito de legitimar, tanto pela fora repressiva, quanto pela estruturas dissimuladas ou simblicas da ideologia, sua dominao sobre as outras classes. (BRANDO, 2004, 23) Althusser argumentou que os indivduos muitas vezes se relacionam com suas condies reais de existncia material por um processo imaginrio. Dessa forma, o discurso ideolgico alienante, funcionando como deformao dos processos psquicos de relao dos homens com as condies materiais de sua existncia. A ideologia serviria como um expediente produtivo de idias, criando formas simblicas que legitimariam a dominao, promovendo um distanciamento entre individuo e realidade. 40

Althusser tambm criticou a concepo de ideologia como elemento de existncia apenas espiritual. Para tanto, argumentou que a ideologia se materializa nos atos dos indivduos, permeando suas prticas sociais ritualsticas, constitudas no interior dos aparelhos ideolgicos concretos.[...] a ideologia se materializa nos atos concretos, assumindo com essa objetivao um carter moldador das aes. Isso leva Althusser a concluir que a prtica s existe numa ideologia e atravs de uma ideologia. (BRANDO, 2004, 25)

Esses indivduos, em outro aspecto do trabalho de Althusser, so interpelados pela ideologia a serem sujeitos.[...] toda a ideologia interpela os indivduos concretos como sujeitos concretos, pelo funcionamento da categoria de sujeito. [...] Sugerimos ento que a ideologia age ou funciona de tal forma que recruta sujeitos entre os indivduos (recruta-os a todos), ou transforma os indivduos em sujeitos (transforma-os a todos) por esta operao muito precisa a que chamamos a interpelao. (ALTHUSSER, 1980, 98-99)

Nesse processo de interpelao, os indivduos teriam a sensao de que so sujeitos ativos da sociedade. Esse processo se d principalmente atravs das prticas sociais e dos rituais nos quais os indivduos esto inseridos, prticas estas reguladas pelos AIE - aparelhos ideolgicos do estado. Um exemplo desta interpelao citado por Hacket (2002).Enquanto os anncios (publicitrios) evocam a insatisfao a fim de nos incitar ao consumo individualizado, os acontecimentos noticiosos [as notcias] so aquilo e nada mais. Ao afastar a nossa ateno das possibilidades da ao poltica, e direcion-la para o consumo privado, as notcias e os anncios so opostos complementares: ambos colocam os observadores na posio de consumidores despolitizados. (HACKET, 2002, 126)

Neste caso, Hacket v na estruturao dos tipos diferentes de informao pelos meios de comunicao uma estratgia para dar aos indivduos a impresso de que so sujeitos ativos no processo comunicacional. Hacket traa um paralelo entre a publicidade e o jornalismo, reconhecendo na forma como se intercalam notcias e anncios um processo de interpelao dos sujeitos.

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Seguindo o roteiro de Brando (2004), citamos finalmente a viso de Ricouer (1977) sobre a ideologia. Para este autor, seria redutora a viso da ideologia apenas como dispositivo de justificao da dominao de uma classe sobre outras. Reconhecendo que de fato ela pode ter esta funo, ele procurou refletir sobre trs dimenses da ideologia. No primeiro caso, Ricouer atribui ideologia a funo geral de mediadora na integrao social, na coeso do grupo. (BRANDO, 2004, 27) Posteriormente, chama a ateno para o carter de legitimao da autoridade por parte da ideologia. Ela serviria para que determinados discursos alcanassem aqueles indivduos onde falha a credibilidade na autoridade e nas instituies dominantes. Ao operar no campo de interseo entre a ideologia-integrao e a ideologia integrao-dominao, o discurso ideolgico adquiriria, finalmente, seu carter de distoro e dissimulao. guisa de concluso, Brando (2004) salienta que necessrio observar dois aspectos bsicos da ideologia e de sua relao com a linguagem. Por um lado, ela seria um dispositivo de dissimulao da realidade, ao apagar as contradies existentes nas sociedades. Em outro aspecto, ela representaria a prpria viso que as comunidades tm de si prprias, de sua cultura e de seus valores. A ideologia, nesta perspectiva, seria inerente ao carter arbitrrio do signo lingustico, j que est relacionada prpria reflexo da sociedade sobre si mesma, sobre sua histria e sobre suas instituies e valores. Todavia, se, nesse sentido, ela incrementaria as possibilidades semnticas da lngua, devido quele carter arbitrrio do signo lingustico, essa mesma liberdade tambm poderia ensejar a dissimulao e a distoro da realidade, ou tomar a imagem pelo real, o reflexo pelo original. (BRANDO, 2004, 29) A ideologia, nesse processo de inverso, mesmo representando uma forma legtima do pensamento, no refletiria necessariamente a realidade, pois se construiria de

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maneira fictcia ou essencialmente subjetiva. Por esta via, as formaes ideolgicas podem ser inconscientes: o indivduo vive na ideologia, mas no tm conscincia dessa situao. Por outro lado, quando a ideologia construda intencionalmente, ela lanaria mo de sua condio de representante de uma determinada classe social, em um dado momento histrico.Selecionando [...] os elementos da realidade e mudando as formas de articulao do espao da realidade, [escamoteando] o modo de ser do mundo. E esse modo de ser do mundo, veiculado por esses discursos, o recorte que uma determinada instituio ou classe social [dominante] num dado sistema [por exemplo, o capitalista] faz da realidade, retratando assim, ainda que de forma enviesada, uma viso de mundo. (BRANDO, 2004, 32)

A ideologia, neste aspecto, apresenta a viso que determinada classe tem sobre a realidade como se fosse o retrato fiel dessa mesma realidade. Ela age sobre os imaginrios dos indivduos, apresentando situaes provenientes da organizao e elaborao social da realidade como se fossem resultado de leis naturais. Nesse sentido, veremos que a reportagem da revista Veja apresenta-se essencialmente ideolgica. A seguir, faremos um breve percurso sobre o conceito de sujeito para os estudos da linguagem.

2.3. O Sujeito14 As reflexes sobre o estatuto do sujeito nos estudos da lngua remontam antiguidade clssica. A funo primordial da lngua poca era a representao do real, atravs da ao de dizer, ou nomear. Assim, os nomes representariam as categorias gramaticais por excelncia, cabendo aos nomes prprios a idia da representao pura. Tratava-se, portanto, de uma teoria representativa das idias. Nesta perspectiva, a questo da subjetividade no era relevante, pois o sujeito era uma categoria

Para tratarmos desse tpico, lanamos mo de conceitos aprendidos durante a graduao, na Faculdade de Letras da UFMG, na disciplina Introduo Anlise do Discurso, ministrada pela Prof. Helcira Lima, orientadora deste trabalho; alm de outras fontes, como as teorias apresentadas em Brando, 2004.

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representativa ideal, e sua concepo estava ancorada numa viso gramatical e formal da linguagem. O importante nesta perspectiva era que os nomes representassem a realidade. A partir do sculo XVII, na chamada escola de Port Royal, influenciada pelo racionalismo ps Idade Mdia, decorrente do Humanismo e do Renascimento na Europa, surge o conceito de sujeito cartesiano, em razo da clebre expresso atribuda a Descartes: Penso, logo existo (Cogito ergo sum). O sujeito, nessa perspectiva, habitado por uma conscincia que, quanto mais ampla for, isto , quanto mais estiver permeada pelo conhecimento, mais ser senhora de si e do mundo na qual estiver inserida. O sujeito passou ento a ser o centro da linguagem. Essa viso do sujeito cartesiano foi fortemente abalada a partir de Saussure (1915), no terreno da Lingustica. Na lingstica estrutural, o sujeito apenas um dos componentes do sistema da lngua, no sendo assim o centro da linguagem. Posteriormente, a lngua deixa de ser vista como um dispositivo de representao do real, que era a viso clssica, e os estudiosos da linguagem passam a observar a funo demonstrativa da lngua. Nesse sentido, a observao dos pronomes, enquanto marcadores de pessoas do discurso, ressaltou a importncia da figura do sujeito nos estudos da linguagem. De forma resumida, poderamos dizer que a concepo de sujeito na lingstica moderna possui trs fases principais: a primeira relacionada s idias de interao e harmonia conversacional entre um eu e um tu; na segunda fase, surge a idia da alteridade, de uma tenso na qual o tu determina o que o eu diz, numa tradio que segue a linha retrica clssica; na terceira fase, surgem as idias de contradio e incompletude do sujeito, que passa ento a ser analisado dentro do discurso, num espao localizado entre o eu e o tu.

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Foucault (1977), segundo Brando (2004), ainda no plano do enunciado, enxergou na categoria de sujeito uma funo vazia, um espao a ser preenchido por diferentes indivduos que o ocuparo ao formularem o enunciado, deve-se rejeitar qualquer concepo unificante do sujeito. (BRANDO, 2004, 35) O sujeito, nesta perspectiva, no a fonte geradora das significaes, e estas no so fruto de uma instncia unificada e ideal. A conscincia no um reflexo de si mesma, mas est profundamente permeada pelas posies de onde fala o sujeito, alm de sua dimenso psquica. Posteriormente surgiu a Teoria da Enunciao. Nesta perspectiva terica, o foco deixa de ser o enunciado, o texto, o estritamente lingstico-formal, e o olhar dos estudiosos volta-se para a enunciao. A partir da, passa a ser importante no apenas o que se diz, mas a forma como se diz, e o lugar de onde dito, Segundo Koch (2000), a enunciao um[...] evento nico e jamais repetido de produo de enunciado. Isto porque as condies de produo (tempo, lugar, papis representados pelos interlocutores, imagens recprocas, relaes sociais, objetivos visados na interlocuo) so constitutivas do sentido do enunciado. (KOCH, 2000, 113).

Benveniste (1966) desloca o foco do ato de linguagem do enunciado para a enunciao a lngua [...] uma possibilidade que ganha concretude somente no ato da enunciao. (BRANDO, 2000, 55) O ato linguageiro s se constitui de fato em sua relao com o mundo. Poderamos dizer ento que aquele que fala est profundamente presente no que diz, realando as questes da subjetividade, do significado, da referncia e do sentido. Para Benveniste, segundo Brando (2004), existem duas pessoas nos atos linguageiros: o eu, pessoa subjetiva, e o tu, pessoa no subjetiva; o ele, em sua viso, uma no-pessoa, pois no se refere a um indivduo especfico. O Ego (eu) seria, nessa perspectiva, o centro da enunciao. Seu sujeito homogneo e nico, e revela uma certa onipotncia, j que, sendo o centro da linguagem, o eu se prope como centro do

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discurso. Com o tempo, surgiram crticas a esta perspectiva terica que pressupunha o sujeito como fonte singular do discurso, condicionado apenas por sua conscincia; ainda que perpassado e tambm condicionado pela presena inevitvel do outro. Bakhtin (1995) postulou que o discurso seria eminentemente dialgico, interacional, ou seja, na prpria manifestao do locutor j estaria subentendida a presena do alocutrio (interlocutor). Ainda que se expresse, teoricamente, para ningum ou para si prprio, o produtor do discurso o constri para um alocutrio. Surgia ento o conceito de Dialogismo. Tal conceito baseava-se na idia de que o indivduo s adquire autoconscincia a partir do outro, portanto sua expresso j estaria marcada pela alteridade. Outro conceito fundamental desenvolvido por Bakhtin, e fundamental para a noo moderna de sujeito, o de Polifonia, no qual se reconhecem em um mesmo discurso vrios outros discursos veiculados, apontando para a presena de vozes que no so necessariamente a de um mesmo sujeito. Ducrot (1984), de acordo com Brando (2004), tambm procura refutar a tese da unicidade do sujeito. O autor desenvolve uma teoria polifnica da enunciao em que elabora uma tripartio da figura do sujeito: o autor do discurso, figura emprica, psicofisiolgica; o locutor, responsvel pela enunciao; o qual ainda pode se subdividir em dois (locutor enquanto tal e locutor enquanto ser do mundo), sendo um responsvel pela totalidade de um enunciado, e um outro, que Ducrot denomina enunciador, que um ponto de vista, dentro da enunciao, colocado em cena pelo locutor, e que pode ou no concordar com o ponto de vista deste. Para a ADF, o sujeito no o centro da enunciao, j que a ideologia (relaes de poder) e o inconsciente (relaes de desejo) exercem uma influncia determinante em seu discurso. Nessa perspectiva, o centro da relao no est nem no eu nem no tu, mas no espao discursivo criado entre ambos. O sujeito s constri sua identidade na

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interao com o outro. (BRANDO, 2004, 76) Para Pcheux (1975), de acordo com Brando (2004), a figura do sujeito e o sentido de uma palavra ou enunciado no existem em si mesmos, mas s se constituem no momento da enunciao, de acordo com as coordenadas sociais, histricas e ideolgicas da interao. Para explicar sua teoria, Pcheux introduz os conceitos de formao ideolgica, o que se pode pensar, e formao discursiva, o que e como se pode dizer. Essas formaes condicionariam o pensamento e o discurso do sujeito, revelando o carter cindido da posio do sujeito na enunciao, e salientando sua condio de assujeitamento. Salientando a condio de assujeitamento do indivduo, Pcheux ressalta:[...] os fundamentos reais de uma teoria no-subjetivista do sujeito, como teoria das condies ideolgicas da reproduo/transformao das relaes de produo, estabelecendo a relao entre inconsciente (no sentido freudiano) e ideologia (no sentido marxista). (Pcheux, 1975, 122, apud Brando, 2004, 78).

Possenti (2003), ao tratar da questo do sujeito, chama a ateno para o fato de que o sujeito no est totalmente livre, nem tampouco completamente subjugado. Existe um sistema que o obriga a fazer escolhas, as quais impem a ele um certo estilo, um modo de fazer. O autor argumenta que um mesmo significado pode ser materializado em sentidos diferentes, como no caso da parfrase. A originalidade [...] consiste em dizer de um modo prprio o que j foi dito, [...] trata-se menos de um discurso do que um estilo. (POSSENTI, 2003, 30) Em outras palavras, existiria um espao de subjetividade (ao nvel do texto) no qual se produzem efeitos de sentido. Longe de ser um sujeito livre, o sujeito teria um espao de manobra que, ainda que condicionado por seus desejos e por sua posio histrico-social, permitiria a ele atuar na realidade, no sendo assim totalmente subjugado. Podemos dizer, finalmente, que o sujeito no discurso processo, sendo composto por uma multiplicidade de vozes histrico-sociais que falam atravs dele, marcas 47

implcitas e explcitas que revelam o carter polifnico dos discursos. Sendo, pois, um processo, o sujeito no pode ser facilmente conceituado e, existindo em constante dilogo, j que sua natureza interacional, est condicionado por uma realidade espacial e temporal determinante para seu estatuto, que se traduz marcadamente em sua expresso e materialidade, ao nvel da enunciao e do enunciado. O sujeito no deve ser considerado, segundo a lingstica moderna, como homogneo ou onipotente, nico ou inteiramente consciente. No o sujeito cartesiano que desloca o ponto fixo do Ser para a conscincia, (MACHADO, 2003, 52) mas um produto da histria, de seu condicionamento biolgico, de suas contradies e incompletude. Sobretudo, o sujeito, ao dizer, expressa vrios discursos, de forma clara ou implcita, os quais representam sua prpria natureza diversificada e tambm os outros indivduos que o formaram e o vo formando ao longo do tempo e na amplitude do espao. De forma geral, pode-se dizer, enfim, que o sujeito na Anlise do Discurso,Nem totalmente livre, nem totalmente assujeitado, movendo-se entre o espao discursivo do Um e do Outro; entre a incompletude e o desejo de ser completo; entre a disperso do sujeito e a vocao totalizante do locutor em busca da unidade e coerncia textuais; entre o carter polifnico da linguagem e a estratgia monofonizante de um locutor marcado pela iluso do sujeito como fonte, origem do sentido. (BRANDO, 2004, 85)

A caracterizao do sujeito, do ponto de vista da Teoria Semiolingustica, ser apresentada no prximo item.

2.4. A Teoria Semiolingustica (TS) A TS considera que o sujeito uma abstrao (nem um indivduo coletivo, nem particular), uma espcie de entidade sede da produo-interpretao da significao, condicionada pelos lugares que ocupa nos atos de linguagem. A TS assevera que estes lugares dependem de uma relao contratual baseada em componentes do ato

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linguageiro: comunicacional, psicossocial e intencional. Poderamos dizer que estes trs nveis correspondem, de alguma forma, realidade ideolgica (imaginrios sciodiscursivos, grosso modo, para a TS) e ao inconsciente, na perspectiva da AD. Na TS, cujo principal terico o linguista francs Patrick Charaudeau, existem dois aspectos principais num ato discursivo: o lingustico, relacionado s regras e princpios que regem o funcionamento da linguagem verbal; e o situacional, relacionado ao comportamento social dos interlocutores. Desta forma, de acordo com a situao linguageira em que esto envolvidos, os sujeitos se submetem a diferentes tipos de contratos que intermedeiam o discurso. Em outras palavras, o ato linguageiro predeterminado por normas sociais pr-estabelecidas. Segundo Charaudeau, podemos resumir o conceito de contrato da seguinte forma:

contrato situacional determina o domnio do saber, o status dos parceiros e afinalidade de ao (objetivo) do locutor;

contrato de fala (ou contrato comunicacional) determina a identidade dos parceiros,as regras e os saberes (interdiscursividade) linguageiros que os interlocutores so levados a atualizar no momento da troca. Assim, o contrato comunicacional estabelecido atravs de estratgias discursivas as quais efetivam o projeto de fala. Este contrato possui quatro componentes fundadores: finalidade: determina porque a gente fala, expectativa do ato de comunicao; identidade: quem fala o qu entre os parceiros, em funo do status e dos lugares a serem ocupados pelos sujeitos a serem legitimados na situao de troca; propsito: de que se fala, domnio temtico; circunstncias: dados materiais do quadro de troca. Todo contrato comunicacional conjuga o espao do dizer com o do fazer.

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O ato de linguagem um fenmeno que combina o dizer e o fazer. O fazer o lugar da instncia situacional que se auto-define pelo espao que ocupam os responsveis deste ato. O dizer o lugar da instncia discursiva que se autodefine como uma encenao da qual participam seres de palavra. Esta dupla realidade do dizer e do fazer nos leva a considerar que o ato de linguagem uma totalidade que se compe de um circuito externo (fazer) e de um circuito interno (dizer), indissociveis um do outro. (CHARAUDEAU apud MARI, 2001, 28).

Em relao aos papis dos interlocutores na relao contratual que intermedeia os atos de linguagem, temos o seguinte esquema terico:

EUe TUd EUc Circuito interno - Dizer Circuito externo - Fazer O Circuito interno o da produo do discurso, o contrato de fala. O Circuito externo est relacionado ao contrato situacional. O EUc (Eu comunicante) ser psicossocial e histrico, existe na realidade, desempenha papis no espao externo. aquele que produz a enunciao. o ser dotado de intencionalidade. O EUe (Eu enunciador) o ser do discurso, existe apenas virtualmente, representa os papis propostos pelo EUc no circuito interno, o responsvel por colocar em cena a linguagem, mas a intencionalidade do EUc. O TUd (Tu destinatrio) tambm um ser do discurso, sua existncia tambm , portanto, virtual. Funciona como um TU ideal, j que representa uma compreenso ideal do discurso do sujeito comunicacional. O TUi (Tu interpretante) o ser psicossocial e histrico, contrapartida do EUc no universo da interpretao. Sua existncia real e sua interpretao varivel. O EUc e o EUe pertencem esfera da produo do discurso; o TUd e o TUi pertencem esfera da recepo. TUi

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Assim, o EUc responsvel por efetivar no mundo o ato de linguagem no circuito externo (fazer), este discurso ento encenado pelo EUe no circuito interno (dizer). Este ato de linguagem direcionado para um TUd ideal, que solicitado a acreditar naquele discurso. O TUi, no entanto, pode ou no acreditar nisso, residindo a as possibilidades de sucesso ou no do ato comunicacional. Ainda sobre a Teoria Semiolingustica, importante citar o conceito de Imaginrio Sociodiscursivo, o qual, de alguma forma, relaciona-se ao conceito de Ideologia.[...] entre a realidade e o potencial de percepo que um sujeito dela tem existe um processo de interpretao pelo qual a realidade construda em funo da posio do mesmo sujeito e das condies de produo que provm do contexto social em que ele se encontra. (CHARAUDEAU, 2006, 194)

Numa interpretao da realidade, o autor argumenta que h vrios tipos de saberes envolvidos: os da ordem praxeolgica, os da ordem do acontecimento, os da ordem institucional. No entanto, quando se busca dar tratamento a [...] representaes em termos de interpretao criadora de sentido, (CHARAUDEAU, 2006, 197) envereda-se por um tipo de saber que se constitui por maneiras de ver e maneiras de julgar, as quais elaboram sistemas de pensamento. Enquanto maneira de ver a realidade, falamos de saberes de conhecimento, os quais buscam discriminar e classificar (taxonomia); por outro lado, no aspecto do julgar, temos os saberes de crena, os quais buscam atribuir valorao (axiologia) aos elementos da realidade.Assim, saberes de conhecimento e saberes de crena estruturam as representaes sociais. Os primeiros, ao construrem representaes classificatrias do mundo; os ltimos, ao darem um tratamento axiolgico s relaes do homem com o mundo. (CHARAUDEAU, 2006, 198)

No entanto, a fronteira que divide estes dois tipos de saberes tnue. Neste entrelugar, os indivduos manipulam o ato de linguagem atravs de estratgias discursivas, as quais apresentam um tipo de saber em lugar de outro. A ideologia, por sua vez, pertence ao domnio dos saberes de crena, j que [...] funda-se em um

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sistema de valores de natureza afetiva e normativa que tende a definir as aspiraes humanas ao afirm-las como princpios e organiz-las em um discurso de racionalizao autojustificativa. (CHARAUDEAU, 2006, 201). O conceito de imaginrio sociodiscursivo busca construir uma interdisciplinaridade relacionada aos tipos de saberes. Assim, quando estes saberes apresentam o real como significao, no campo das representaes sociais, fala-se de imaginrios. Estes so representados no ato de linguagem, e so, portanto, discursivos. E ainda, como esto relacionados a agrupamentos sociais, podemos, enfim, classific-los como imaginrios scio-discursivos. Como se referem a um universo de valores, os imaginrios permeiam as relaes dos indivduos entres si e[...] enquanto produes simblicas, polissmicas e ambivalentes [...] contribuem para o consolidar de uma sociedade sem que a consolidao de seu mundo de significaes jamais possa ser demonstrada, nem mesmo postulada de maneira demonstrvel. (Bayart, 1996 apud CHARAUDEAU, 2006, 208).

Os imaginrios, ento, ou mascaram o real, travestindo um saber de crena como se fosse saber de conhecimento, ou buscam ideologizar a realidade, construindo um sistema de crenas que, posteriormente, ser apresentado como sistema de conhecimento. Para efetivar o seu projeto de fala (a finalidade de seu ato de comunicao) o sujeito (locutor) pode se valer de estratgias discursivas, as quais podem ser ordenadas, segundo a Teoria Semiolingustica, nos Modos de Organizao do Discurso MOD: MODE Modo de Organizao do Discurso Enunciativo: permite que, ao analisar os recursos lingusticos de modalizao, seja captado o tipo de relao que o sujeito falante estabelece com seu texto; MODD Modo de Organizao do Discurso Descritivo: descrio de forma demorada do objeto descrito, ressaltando sua existncia a partir de sua nomeao, localizao e qualificao; 52

MODN Modo de Organizao do Discurso Narrativo: narrao de eventos organizados de forma sucessiva e coerente. Parte de uma situao inicial, em seguida busca alcanar uma tomada de conscincia da falta de alguma coisa e parte para o resultado dessa busca; MODA Modo de Organizao do Discurso Argumentativo: instiga o interlocutor a refletir sobre uma proposio para convenc-lo de uma determinada verdade, recorrendo a uma tese que se estrutura numa proposta sobre o mundo, uma proposio que constitui a razo da proposta e de um ato de convencimento (a partir de estratgias discursivas) para validao da proposta. Postas estas consideraes sobre a TS, no prximo item, vamos tratar da questo da retrica e da argumentao, que tambm fazem parte do instrumental que escolhemos para a anlise da repo