de moto pela america do sul - ernesto che guevara

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  • DADOS DE COPYRIGHT

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

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  • DE MOTOPELA AMRICA DO SUL

    Dirio de viagem

  • ERNESTO CHE GUEVARA

  • DE MOTOPELA AMRICA DO SUL

    Dirio de viagem

    TraduoDiego Ambrosini

  • Ttulo do original em espanhol: Notas de Viaje

    2001 by Giangiacomo Feltrinelli Editore, Milano

    Traduo feita com base na edio publicada em ingls: The Motorcylcle Diaries, Verso Books, Londres, 1995 e na edioitaliana: Latinoamericana - Due diari per um viaggio in motocicletta, Feltrineli, Milo, 1993.

    O original Notas de viaje de Ernesto Guevara de la Serna parte do seu arquivo pessoal, guardado pelo Centro Latino-americano Che Guevara, em Havana, Cuba, sob a curadoria de sua viva, Aleida March de la Torre. O prlogo e o eplogode autoria de Ernesto Guevara Lynch foram extrados do livro Mi hijo, el Che - Editorial Arte y Literatura, La Havana, 1988.

    Coordenao editorial:Eliana S

    Capa:Manu

    Fotos de capa:Ernesto Che Guevara no balco de sua casa na Rua Arsoz, em Buenos Aires - Ernesto Guevara Lynch La Poderosa, a

    moto - arquivo pessoal Pescadores - Ernesto Che Guevara

    Preparao de texto:Mrcia Menin

    Diagramao:Eveline Albuquerque

    Catalogao na Fontedo Departamento Nacional do Livro

    G939d

    Guevara, Ernesto Che, 1928 - 1967.De moto pela Amrica do Sul - Dirio de Viagem /Ernesto Che Guevara - So Paulo: S / Rosari, 2001.192 p. ; 14x21cm.

    ISBN 85-88193-06-X (broch.)

    1. Guevara, Ernesto, 1928 -1967. I. Ttulo.

    CDD: B869.3

    Todos os direitos reservados.Direitos mundiais em lngua portuguesa

    para o Brasil cedidos S EDITORA

    Tel./Fax: (11) 5051-9085 / 5052-9112E-mail: [email protected]

    www.saeditora.com.br

    mailto:[email protected]://www.saeditora.com.br
  • SUMRIO

    ITINERRIO DA VIAGEMPRLOGODIRIO DE VIAGEM

    ESCLARECENDO AS COISASPRDOMOSDESCOBRINDO O OCEANOUM INTERLDIO ROMNTICOCORTANDO OS LTIMOS LAOSREMDIO PARA A GRIPE: CAMASAN MARTN DE LOS ANDESEXPEDIO CIRCULARA CAMINHO DE BARILOCHE: CARTA DE ERNESTO PARA SUA ME, JANEIRODE 1952A ESTRADA DOS SETE LAGOSSINTO MINHAS RAZES FLUTUANDO LIVRES, NUAS EOBJETOS DA CURIOSIDADEOS ESPECIALISTASAS DIFICULDADES AUMENTAMO FIM DA LINHA PARA LA PODEROSA IIBOMBEIROS VOLUNTRIOS, TRABALHADORES VOLUNTRIOS E COISAS DOGNEROO SORRISO DO LA GIOCONDAPASSAGEIROS CLANDESTINOSDESTA VEZ, FRACASSOCHUQUICAMATAQUILMETROS E QUILMETROS DE ARIDEZCHILE, O FIMCHILE EM RETROSPECTOTARATA, O NOVO MUNDONOS DOMNIOS DE PACHAMAMAO LAGO DO SOLVIAGEM AO CENTRO DA TERRAO CENTRO DO MUNDOA TERRA DOS INCASNOSSO SENHOR DOS TERREMOTOSLAR DOS VENCEDORESCUZCO EM RESUMO

  • HUAMBOAINDA EM DIREO AO NORTEATRAVS DO PERU CENTRALNOSSAS ESPERANAS SO FRUSTRADASA CIDADE DOS VICE-REISDESCENDO O UCAYALICARTA DE ERNESTO A SEU PAI: IQUITOS, 4 DE JUNHO DE 1952A COLNIA DE LEPROSOS DE SAN PABLODIA DE SO GUEVARANOSSO PEQUENO KONTIKICARTA DA COLMBIA: BOGOT, 6 DE JULHO DE 1952PARA CARACASESSE ESTRANHO SCULO XXREFLETINDO MELHOR

    EPLOGOERNESTO VAI PARA MIAMI E VOLTA A BUENOS AIRES

    RESUMO BIOGRFICO

  • Os dirios de viagem de Ernesto Guevara de la Serna, transcritos doArquivo Pessoal de Che Guevara em Havana, recontam as experincias, asvicissitudes e a grande aventura que foi a jornada de descobrimento de umjovem percorrendo a Amrica Latina. Ernesto comeou a escrever esse dirioquando, em dezembro de 1951, partiu com seu amigo Alberto Granado na toesperada viagem desde Buenos Aires, descendo pela costa atlntica daArgentina, passando atravs dos Pampas, atravessando os Andes para chegarao Chile, e depois rumo ao norte, em direo ao Peru e Colmbia, parafinalmente alcanar a capital venezuelana, Caracas.

    Os acontecimentos foram depois reescritos pelo prprio Ernesto, em formanarrativa, e oferecem ao leitor uma viso mais aprofundada da vida do Che,especialmente nesse momento to pouco conhecido. O relato revela detalhesda personalidade do Che, de sua bagagem cultural e de suas habilidadesnarrativas a gnese de um estilo que seria desenvolvido por ele em seusescritos posteriores.

    O leitor deste livro testemunhar tambm as extraordinrias mudanas queaconteceram com o narrador enquanto descobria a Amrica Latina. Mudanasque atingiram o Che no fundo do corao e o fizeram desenvolver umcrescente senso de latino-americanidad e transformandoo em um dosprecursores de uma nova histria da Amrica.

    ARQUIVO PESSOAL DE CHE GUEVARACentro Latino-Americano Che Guevara

    Havana, Cuba

  • ITINERRIO DA VIAGEM

    Argentina

    Crdoba, dezembro de 1951 Sada de Buenos Aires, sada em 4 de janeiro de 1952 Villa Gesell, 6 de janeiro Miramar, 13 de janeiro Necochea, 14 de janeiro Baha Blanca, chegada em 16 de janeiro, partida no dia 21 Caminho para Choele Choel, 22 de janeiro Choele Choel, 25 de janeiro Piedra del guila, 29 de janeiro San Martn de los Andes, 31 de janeiro Nahuel Hupi, 8 de fevereiro Bariloche, 11 de fevereiro

    Chile

    Peulla, 14 de fevereiro Temuco, 18 de fevereiro Lautauro, 21 de fevereiro Los Angeles, 27 de fevereiro Santiago do Chile, 1. de maro Valparaso, 7 de maro A bordo do San Antonio, 8-10 de maro Antofogasta, 11 de maro Baquedano, 12 de maro Chuquicamata, 13-15 de maro Iquique, 20 de maro. (Companhias de extrao de nitrato Toco, La Rica Aventura e

    Prosperidad.) Arica, 22 de maro

    Peru

    Tacna, 24 de maro Tarata, 25 de maro Puno, 26 de maro

  • Velejam o lago Titicaca no dia 27 de maro Juliaca, 28 de maro Sicuani, 30 de maro Cuzco, 31 de maro a 3 de abril Machu Picchu, 4-5 de abril Cuzco, 6-7 de abril Abancay, 11 de abril Huancarama, 13 de abril Huambo, 14 de abril Huancarama, 15 de abril Andahuaylas, 16-19 de abril Huanta Ayacucho, 22 de abril Huancayo La Merced, 25-26 de abril Entre Oxapampa e San Ramn, 27 de abril San Ramn, 28 de abril Tarma, 30 de abril Lima, 1-17 de maio Cerro de Pasco, 19 de maio Pucallpa, 24 de maio A bordo do La Cenepa, descem o rio Ucayali, afluente do Amazonas, 25-31 de maio Iquitos, 1-5 de junho A bordo do Cisne, dirigem-se para a colnia de leprosos de San Pablo, 6-7 de junho San Pablo, colnia de leprosos, 8-20 de junho A bordo do Mambo-Tango, navegam no Amazonas, 21 de junho

    Colmbia

    Leticia, 23 de junho a 1 de julho. Partem de avio no dia 2 de julho Em trnsito em Tres Esquinas, 2 de julho Madri, aeroporto militar a 30 km de Bogot Bogot, 2-10 de julho Ccuta, 12-13 de julho

    Venezuela

  • San Cristbal, 14 de julho Entre Barquisimento e Corona, 16 de julho Caracas, 17-26 de julho

  • PRLOGO

    A JORNADA DE ERNESTO E ALBERTO GRANADO

    POR ERNESTO GUEVARA LYNCH

    Alberto Granado, um bioqumico irmo dos amigos de escola de Ernesto, Toms eGregrio, sugeriu que meu filho o acompanhasse em uma viagem atravs da Amrica do Sul.Isso foi em 1951. Naquela poca, Ernesto namorava uma jovem simptica de Crdoba. Minhafamlia e eu estvamos convencidos de que ele iria se casar com ela.

    Um dia, ele anunciou: Estou partindo para a Venezuela, pai.Pode-se imaginar minha surpresa quando lhe perguntei quanto tempo ficaria longe, ao que

    ele respondeu: Por um ano.E quanto a sua namorada?, perguntei.Se ela me ama, vai esperar, veio a resposta.Eu j estava acostumado com os entusiasmos repentinos de meu filho, mas sabia tambm

    que ele gostava muito da jovem e pensei que isso faria diminuir sua sede por novoshorizontes. Fiquei intrigado. No conseguia entender Ernesto. Havia coisas sobre ele que euno conseguia penetrar. Coisas que s se tornaram mais claras com o passar do tempo. Eu nocompreendia na poca que sua obsesso por viagens era apenas outro lado de seu zelo peloestudo. Ele sabia que, para conhecer realmente as necessidades dos pobres, tinha de viajarpelo mundo no apenas como turista, parando aqui e ali para tirar belas fotos e apreciar apaisagem, mas da maneira como ele fez, compartilhando o sofrimento humano encontrado emcada curva da estrada e procurando as causas daquela misria. Suas viagens foram umaespcie de pesquisa social, saindo para ver o mundo com os prprios olhos, mas tentando, aomesmo tempo, aplacar um pouco do sofrimento humano, sempre que pudesse.

    Somente com esse tipo de determinao e de empatia, com um corao sem amargura e comdisposio para sacrificar-se pelos outros que ele poderia mergulhar naquela condiodestituda de humanidade que, tristemente, o fardo da maioria dos pobres deste mundo.Alguns anos mais tarde, refletindo sobre suas constantes viagens, eu percebi quanto elas oconvenceram de seu verdadeiro destino.

    Algum tempo depois da partida de Ernesto para a Venezuela, eu estava almoando comuma de minhas irms e um amigo dela, padre Cuchetti, um sacerdote bastante conhecido naArgentina por suas ideias liberais. Contei-lhe da viagem de Ernesto, a parte em que ele eGranado atravessaram a selva amaznica e o que fizeram na colnia de leprosos na vila deSan Pablo. Ele ouviu atentamente minha descrio da vida terrvel que os leprosos levavam edisse: Meu amigo, eu me sinto capaz de fazer qualquer sacrifcio pelo meu prximo, masposso garantir que viver em meio a leprosos, em condies pouco higinicas nos trpicos,

  • algo que eu no conseguiria fazer. Eu simplesmente no seria capaz. Tiro meu chapu para aintegridade humana de seu filho e do amigo dele, porque, para fazer o que eles esto fazendo, preciso algo mais do que coragem: uma vontade de ferro e uma alma cheia de compaixo eenormemente caridosa. Seu filho ir longe.

    Devo confessar que estava to acostumado a acompanhar Ernesto em suas viagens porminha imaginao que ainda no havia parado para ponderar seriamente sobre o que omotivava a empreend-las. Particularmente, acho que me deixei enganar pela maneira casualcomo ele contava suas histrias, como se fossem uma coisa simples, que qualquer um faria.Ele as narrava sem muito drama e, talvez para no preocupar a ns, da famlia, fingia serimpelido a faz-las por mera curiosidade.

    S bem depois, em suas cartas, passamos a entender que seguia um verdadeiro impulsomissionrio, que no o abandonaria jamais. Suas histrias, sempre muito vivas e interessantes,tinham um ar irnico que confundia o ouvinte e o impedia de saber se ele estava brincando oufalando srio.

    Lembro-me de quando ele nos escreveu do Peru, avisando que seguiria para o norte. Eraalgo mais ou menos assim: Se vocs no receberem notcias nossas durante um ano,procurem por nossas cabeas encolhidas em algum museu ianque, porque ns vamos cruzar oterritrio dos ndios jbaros, conhecidos por serem caadores de cabeas. Ns sabamosquem eram os jbaros, e sabamos tambm que, durante sculos, mantinham a tradio deencolher a cabea de seus inimigos. Dessa vez, as coisas eram ditas de maneira um poucodiferente: j no era mais uma piada; havia uma boa dose de verdade ali.

    Eu sofria em silncio todas as vezes que Ernesto decidia explorar o mundo. Quando ele mecontou da viagem planejada com Granado, puxei-o para um lado e disse: Voc vai ter deenfrentar experincias muito difceis agora. Como eu poderia ser contra que voc faa algoque eu mesmo sempre sonhei fazer? Mas lembre-se: se voc se perder na selva e eu no ouvirnotcias suas por um intervalo razovel, vou procur-lo, vou seguir seus passos, e no vousossegar enquanto no encontr-lo. Ele sabia que eu faria mesmo isso, e eu imaginava queesse motivo talvez pudesse inibir sua louca busca pelo perigo. Pedi que ele sempre deixassesinais de onde pudesse estar e nos enviasse seus itinerrios. Ele fez isso por meio de suascartas. Foi tambm por elas que ns viemos a perceber a verdadeira natureza da vocao denosso filho. Elas nos traziam uma anlise econmica, poltica e social de todos os pasespelos quais ele passou e incluam tambm pensamentos que sugeriam as crescentes ideiascomunistas dele.

    No se tratava de nenhum passatempo para Ernesto, e ns sabamos disso. Comeamosento, pouco a pouco, a apreciar a magnitude da tarefa da qual ele se incumbia. Ele tinhapotencial para fazer o que quer que desejasse, mas potencial nem sempre o suficiente;transformar, de fato, os sonhos, os planos e as esperanas em realidade a parte mais difcilde tudo. Ernesto tinha f em si mesmo, assim como a perseverana de um vencedor e umaenorme determinao para alcanar os objetivos que impunha a si mesmo. Junte-se a isso umainteligncia da qual deu todas as evidncias necessrias e pode-se entender como ele pderealizar tanto em to pouco tempo.

  • Ele agora partia com Alberto Granado para seguir as pegadas de tantos e lendriosexploradores das Amricas. Como estes, eles deixaram para trs o conforto, os laosemocionais e as famlias para seguir em busca de novos horizontes: Granado, talvez, paradescobrir novos mundos; Ernesto, com a mesma meta, mas tambm com uma certeza msticade seu prprio destino. E assim, Ernesto e seu amigo foram caminhar na trilha dosconquistadores; mas enquanto estes ltimos tinham sede de conquista, os dois primeirosseguiram com um propsito bem diferente.

  • DIRIO DE VIAGEM

    ESCLARECENDO AS COISAS

    Este no um conto de aventuras nem tampouco alguma espcie de relato cnico; pelomenos, no foi escrito para ser assim. apenas um pedao de duas vidas que correramparalelas por algum tempo, com aspiraes em comum e com sonhos parecidos. Durante otranscorrer de nove meses, um homem pode pensar em muitas coisas, desde o mais altoconceito filosfico at o desejo mais abjeto por um prato de sopa tudo de acordo com oestado de seu estmago. E se, ao mesmo tempo, esse homem for do tipo aventureiro, elepoder viver experincias que talvez interessem s demais pessoas e seu relato casual separecer com este dirio.

    Assim, a moeda foi lanada e girou no ar; s vezes apareciam caras, s vezes, coroas. Ohomem, que a medida de todas as coisas, fala atravs de mim e reconta por minhas palavraso que meus olhos viram. De dez caras possveis, eu talvez s tenha visto uma nica coroa, ouvice-versa: no h desculpa; minha boca fala o que meus olhos lhe disseram para falar. Terianossa viso sido estreita demais, preconceituosa demais ou apressada demais? Teriam nossasconcluses sido muito rgidas? Talvez, mas assim que a mquina de escrever interpreta osimpulsos desbaratados que me fizeram pressionar as teclas, e esses impulsos fugazes j estomortos. Alm disso, ningum pode responder por eles. A pessoa que tomou estas notas morreuno dia em que pisou novamente o solo argentino. A pessoa que est agora reorganizando epolindo estas mesmas notas, eu, no sou mais eu, pelo menos no sou o mesmo que era antes.Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiscula Amrica me transformou mais doque me dei conta.

    Qualquer manual de tcnicas de fotografia pode mostrar uma paisagem noturna com a luabrilhando no cu e um texto ao lado que revele os segredos dessa escurido iluminada. Mas oleitor deste livro no sabe que espcie de fluido sensitivo recobre minha retina, eu prpriono o sei com certeza, ento no possvel examinar os negativos para encontrar o exatomomento em que minhas fotos foram tiradas. Se eu mostrar uma foto noturna, voc, leitor, obrigado a aceit-la ou recus-la por inteiro, no importa o que pense. A menos que vocconhea as paisagens que eu fotografei em meu dirio, ser obrigado a aceitar minha versodelas. Agora, eu o deixo em companhia de mim, do homem que eu era

    PRDOMOS

    Era uma manh de outubro. Me aproveitei do feriado do dia 171 e fui para Crdoba.

  • Estvamos ento sob as parreiras da casa de Alberto Granado, tomando nosso chimarro,conversando sobre os ltimos acontecimentos em nossas vidas miserveis e mexendo nomotor de La Poderosa II2 de Alberto. Ele estava resmungando qualquer coisa sobre ter sidoobrigado a desistir de seu emprego na colnia de leprosos em San Francisco del Chaar esobre como estava recebendo pouco agora, no Hospital Espaol. Como ele, eu tambm tinhasado de meu antigo emprego, mas, ao contrrio dele, estava feliz por isso. Mesmo assim, eutambm andava inquieto, em grande parte porque era um sonhador e um esprito livre e noaguentava mais a escola de medicina, os hospitais e as provas que tinha de fazer.

    Nossas fantasias nos levavam a lugares distantes, a mares tropicais, a viagens atravs dasia. E, de repente, escorregando como se fizesse parte de uma dessas fantasias, veio apergunta: Por que ns no vamos para a Amrica do Norte?

    Amrica do Norte? Como assim?Com La Poderosa, cara.E foi assim que surgiu a ideia da viagem, que alis nunca se desviou do princpio-geral

    estabelecido naquela manh: a improvisao. Os irmos de Alberto se juntaram a ns e umaroda de mate selou nosso pacto de no desistir at que nosso sonho fosse realidade. Depois,veio o cansativo trabalho de correr atrs dos vistos, certificados e documentos necessrios ede saltar todos os obstculos com os quais as naes modernas tentam impedir a passagem depretensos viajantes. Para disfarar, s por precauo, decidimos dizer a todos que estvamosindo para o Chile. Minha principal obrigao antes da partida foi fazer as provas em todas asdisciplinas possveis na faculdade; a de Alberto, aprontar a moto para a longa jornada eestudar nossa rota de viagem. Naquele momento, ainda no imaginvamos o esforo queteramos de fazer para cumprir nossos objetivos, tudo o que enxergvamos era a estradapoeirenta nossa frente. Tudo o que vamos era ns dois em nossa moto, devorando osquilmetros rumo ao norte.

    DESCOBRINDO O OCEANO

    A lua cheia refletindo no mar pinta as ondas com fascas prateadas. Sentados em uma duna,observando o vai-e-vem contnuo da mar, ns dois estamos envoltos em nossos pensamentos.Para mim, o mar sempre foi uma espcie de confidente, um amigo que absorve tudo o que eulhe conto sem trair meus segredos e que sempre me d os melhores conselhos seu som podeser interpretado como se preferir. Para Alberto, um espetculo novo e estranhamenteperturbador, refletido na intensidade com a qual ele contempla cada onda que morre na praia.Com quase trinta anos de idade, Alberto v o Atlntico pela primeira vez na vida, e estinundado por uma descoberta que abre rotas infinitas para todos os pontos do globo. A brisaque sopra enche nossos sentidos com o poder que vem do mar e transforma tudo o que toca;at mesmo Come-back3 observa, com seu pequeno focinho apontando para a frente, a faixa deprata que se desenrola vrias vezes a cada minuto. Come-back um smbolo e um

  • sobrevivente: um smbolo do lao que exige meu retorno; e um sobrevivente dos percalos daviagem duas batidas, nas quais a bolsa onde ele estava caiu da moto, tendo sido uma dasvezes quase pisoteado por um cavalo, e uma persistente diarreia.

    Estamos em Villa Gesell, ao norte de Mar del Plata, sendo acolhidos por um tio meu econtabilizando nossos primeiros 1.200 quilmetros supostamente os mais fceis, mas que jnos ensinaram um respeito saudvel pelas distncias. Consigamos ou no ir at o final, no vaiser nada fcil, e isso j bvio agora. Alberto ri de seus planos detalhadssimos para aviagem, de acordo com os quais ns j deveramos estar na ltima volta da corrida, quando,na verdade, mal estamos no comeo.

    Deixamos Gesell bem providos de verduras e carne enlatada doadas por meu tio. Ele nospediu para enviar-lhe um telegrama caso cheguemos a Bariloche, porque quer comprar umbilhete de loteria com os nmeros do telegrama; um pouco de exagero, pensamos. Outrosdisseram que a moto uma boa desculpa para um passeio e coisas assim. Ns estamosdeterminados a provar que todos esto errados, mas uma apreenso natural nos impede depropagandear nossa confiana mtua.

    Na estrada que acompanha a costa, Come-back continua com sua afinidade pela aviao,mas sai ileso de mais uma queda de cabea no cho. A moto est muito difcil de controlar,porque o peso extra no bagageiro, atrs do centro de gravidade, levanta a roda da frente aomenor lapso de concentrao e nos manda para os ares. Paramos em um aougue e compramosalguma carne para assar e leite para o cachorro, que no quer beb-lo. Eu comeo a mepreocupar mais pela sade do animal do que pelo dinheiro que paguei por ele. Descobrimosque a carne que compramos de cavalo. doce demais, e no conseguimos comer. Cheio, eujogo um pedao para longe e o co o devora em questo de segundos. Espantado, jogo outropedao e a mesma coisa acontece. A dieta do leite tem ento decretado o seu fim. EmMiramar, em meio barulheira dos admiradores de Come-back, eu entro em

    UM INTERLDIO ROMNTICO

    O propsito deste dirio no o de contar os dias em Miramar, onde Come-back encontrouum novo lar, um lar em particular, a quem o nome do cozinho era dirigido. Mas a viagemoscilava em uma balana, dormia em um casulo, subordinada palavra que poderia consentirou amarrar.

    Alberto percebia o perigo e j comeava a se imaginar sozinho pelas estradas e caminhosda Amrica, mas no disse nada. A queda-de-brao era entre mim e ela. Por um momento, opoema de Otero Silva4 soou em meus ouvidos quando sa, como pensava, vitorioso:

    Yo escuchaba chapotear en el barcolos pies descalzosy presenta los rostros anochecidos de hambre.

  • Mi corazn fue un pndolo entra ella y la calle.Yo no s con qu fuerza me libr de sus ojosme zaf de sus brazos.Ella qued nublando de lgrimas su angustiatras de la lluvia y el cristalpero incapaz para gritarme: Esprame,yo me marcho contigo!5

    Depois, eu no tive mais certeza se uma madeira que flutua na mar tem o direito de dizersobrevivi quando alguma onda a joga finalmente na praia que ela tanto procurava; mas issofoi depois. E o depois no interessa por ora. Os dois dias que eu tinha planejado ficar alialongaram-se at se tornarem oito e, com o gosto doce-amargo da despedida misturando-se ameu hlito obstinado, eu finalmente me vi flutuando para longe, nos ventos da aventura.Flutuando em direo a mundos que eu imaginava mais estranhos do que realmente eram, emsituaes que eu fantasiava como muito mais normais do que se mostraram depois.

    Lembro-me do dia em que meu amigo, o mar, decidiu vir ajudar-me e me resgatar do limboonde eu estava. A praia estava deserta e uma brisa fria soprava. Minha cabea estava deitadano colo que me amarrava a este porto. Todo o universo flutuava ritmicamente, obedecendo aimpulsos de minha voz interior, que era ninada por tudo minha volta.

    De repente, um sopro mais forte do vento trouxe uma voz diferente vinda do mar; levanteiminha cabea, surpreso, mas no era nada, um alarme falso. Deitei novamente minha cabea,voltei outra vez meus sonhos para o colo carinhoso, apenas para ouvir o aviso do mar maisuma vez. Seu ritmo discordante martelava a fortaleza dentro de mim e ameaava minhaserenidade imposta. Ns ficamos com frio e deixamos a praia, fugindo da presenaperturbadora que se recusava a me deixar. Naquela pequena faixa de areia, o mar quebravaindiferente sua lei eterna e semeava uma nota de cautela, um aviso. Mas um homemapaixonado (Alberto costumava usar uma palavra mais apimentada, menos literria) no estem condies de dar ouvidos a esses tipos de aviso; dentro da grande barriga da baleia, olado burgus de meu universo ainda estava sendo construdo.

    O primeiro mandamento de todo grande explorador : uma expedio tem sempre doispontos o de partida e o de chegada. Se se deseja fazer o segundo ponto em teoria coincidircom o ponto real, no se deve hesitar a respeito dos meios (a expedio um espaohipottico que termina onde termina, ento devem existir tantos meios para chegar ao pontofinal quanto existem meios para se alcanar um fim dado. Quer dizer, os meios so infinitos).

    Lembrei-me ento da provocao de Alberto: A pulseira, ou ento voc no tudo isso oque voc diz.

    Suas mos desapareceram no vazio das minhas.Chichina, essa pulseira posso lev-la comigo, para me guiar e me lembrar de voc?Pobre criatura! Eu sei que no era o ouro que importava, apesar do que as pessoas dizem:

    os dedos dela estavam apenas medindo o amor que me fez pedir aquilo. Ao menos, isso queeu honestamente penso. Alberto costuma dizer (com uma pitada de maldade, acho) que no

  • preciso dedos muito sensveis para pesar os 29 quilates do meu amor.

    CORTANDO OS LTIMOS LAOS

    Nossa prxima parada foi em Necochea, onde um velho colega de faculdade de Albertotrabalhava. O trajeto no foi difcil, levamos apenas uma manh e chegamos l bem na hora doalmoo. Recebemos uma cordial acolhida do amigo de Alberto e uma no to cordial assim desua mulher, que antevia o perigo escondido em nossos modos decididamente bomios.

    Voc se forma na escola de medicina dentro de um ano e est partindo? E voc no tem amenor ideia de quando volta? Por qu?

    No conseguir arrancar uma resposta precisa para todos os seus porqus desesperadosarrepiou todos os seus cabelos. Ela nos tratou com cortesia, mas sua hostilidade era clara,apesar do fato de que ela sabia (ou pelo menos eu pensava que ela sabia) que a vitria erasua, que seu marido estava muito alm de qualquer salvao.

    Em Mar del Plata, ns havamos visitado um mdico amigo de Alberto que tinha ingressadono Partido6 com todos os privilgios envolvidos. Esse outro, aqui em Necochea, permaneciafiel ao seu partido os Radicais ainda que ns estivssemos to distantes de um quanto dooutro. O Radicalismo, que nunca havia sido uma posio poltica defensvel para mim,tambm comeava a perder seu encanto para Alberto, que durante uma poca tinha respeitadoalguns dos lderes do partido. Quando subimos outra vez em nossa moto, depois de agradecerao casal por haver nos brindado com trs dias de boa vida, seguimos para Baha Blanca, nossentindo um pouco entristecidos, mas bastante mais livres. Alguns amigos nos aguardavam alitambm, dessa vez amigos meus, e eles tambm nos ofereceram uma hospitalidade generosa ecordial.

    Passamos alguns dias nessa cidade porturia, consertando a moto e conhecendo o lugar.Estes foram os ltimos dias em que ns no tivemos de nos preocupar com dinheiro. Umadieta rgida de carne, polenta e po deveria ser seguida risca para esticar nossos patticosfundos monetrios. O po agora tinha gosto de aviso: Eu no vou ser to fcil de conseguirdaqui para a frente, amigo. E ns o mastigvamos ainda com mais gosto. Como camelos,queramos estocar reservas para o que viria mais frente.

    Na noite anterior nossa partida, eu comecei a sentir uma febre relativamente alta, o quenos fez ficar em Baha Blanca mais um dia. Finalmente deixamos a cidade s trs horas datarde, sob um sol escaldante que ficou ainda mais quente quando alcanamos as dunas perto deMdanos. A moto, com sua carga mal distribuda, continuava difcil de controlar e a roda dafrente girava em falso. Alberto entrou em um duelo ingrato com a areia, no qual at agora eleinsiste em dizer ter sido o vencedor. A verdade que ns acabamos com nossas costasdescansando confortavelmente na areia umas seis vezes, antes de conseguir sair andandodaquelas dunas. Mas terminamos saindo, entretanto, e este o principal argumento de meucamarada para reivindicar a vitria sobre Mdanos.

  • Na estrada outra vez, eu assumi o comando e acelerei ao mximo para descontar o tempoperdido. Uma fina camada de areia cobria um pedao da curva, e blam! A pior batida de todaa expedio. Alberto no teve nenhum arranho, mas o cilindro quente encostou em meu p eeu me queimei, o que me deixou um suvenir pouco agradvel durante um bom tempo, j que oferimento no cicatrizou.

    Um aguaceiro fortssimo nos obrigou a procurar abrigo em uma estncia7, mas para chegarat l ns tivemos de subir cerca de trezentos metros em uma estradinha enlameada, o que nosmandou pelos ares mais umas duas vezes. As boas-vindas foram excelentes, porm o saldo denossa primeira experincia em caminhos no-pavimentados foi alarmante: nove quedas em ums dia. Mesmo assim, deitados naquelas camas de campanha, alis o nico tipo de cama queveramos dali para a frente, exceto por La Poderosa, nosso lar mvel, olhvamos para o futurocom uma alegria impaciente. Parecamos respirar mais livremente, um ar mais leve, um ar deaventura. Pases distantes, feitos heroicos e belas mulheres davam voltas e voltas em nossasimaginaes turbulentas. Mas, em meus olhos cansados que, no entanto, se recusavam adormir, um par de pontos verdes que representavam o mundo que eu havia deixado zombavada liberdade que eu buscava, atando sua imagem a meus voos de fantasia atravs das terras edos mares do mundo.

    REMDIO PARA A GRIPE: CAMA

    A moto roncava com tdio pela longa estrada livre de acidentes, e ns roncvamos defadiga. Dirigir em uma estrada coberta de cascalho havia se transformado de uma farradivertida em uma tarefa exaustiva. E um dia inteiro de trocas de turnos na direo tinha,quando a noite caiu, nos deixado com uma vontade bem maior de dormir logo do que de fazerum esforo para chegar a Choele Choel, uma cidade um pouco maior, onde havia uma chancede conseguirmos alojamento grtis. Paramos ento em Benjamin Zorrilla e nos instalamosconfortavelmente em um quarto na estao de trem. Dormimos como pedras.

    Na manh seguinte, levantamos cedo, mas, quando eu fui ferver gua para nosso mate, umasensao estranha percorreu meu corpo, logo seguida por um calafrio. Dez minutos depois, euestava tremendo incontrolavelmente, como um homem possudo. Meus tabletes de quinina noadiantaram muito, minha cabea parecia um tambor gigante marcando ritmos estranhos, coresesquisitas passeavam disformes pelas paredes, e logo no pude evitar um vmito verde.Passei o resto do dia naquele estado, incapaz de comer qualquer coisa, at o comeo da noite,quando me senti forte o suficiente para subir na moto e, cochilando no ombro de Alberto,chegar a Choele Choel. Fomos direto ver o Dr. Barrera, diretor do pequeno hospital local edeputado. Ele nos recebeu amigavelmente e nos cedeu um quarto para dormir. E, para mim,ministrou uma dose de penicilina que baixou minha temperatura em apenas quatro horas. Noentanto, toda vez que ns mencionvamos qualquer coisa a respeito de partir, o mdicobalanava a cabea e dizia: Para gripe: cama. (Era esse o diagnstico, na falta de algo

  • melhor.) Ento, tivemos de passar vrios dias ali, sendo cuidados como se fssemos parte darealeza. Alberto tirou uma foto de mim em meu uniforme do hospital. Eu estava horrvel:abatido, com olhos enormes e com uma barba cuja aparncia ridcula no mudou muito nosmeses seguintes. uma pena que a tal foto no tenha ficado boa; ela registrou nossa mudanade circunstncia, nossos novos horizontes, livres das algemas da civilizao.

    At que, uma manh, o doutor no balanou sua cabea como de hbito e isso foi osuficiente. Partimos em menos de uma hora, seguindo para o oeste, na direo dos lagos, nossoprximo destino. Nossa moto lutava, dando sinais de que estava sentindo o peso do esforo,especialmente na carroceria, que ns tnhamos constantemente de consertar com uma daspeas sobressalentes preferidas de Alberto arame. No sei bem onde ele arranjou esseditado, que atribua a Oscar Glvez8: Sempre que um pedao de arame puder substituir umparafuso, eu fico com o arame, mais seguro. Nossas calas e mos imundas eram as provasde que estvamos do mesmo lado de Glvez, pelo menos no quesito arame.

    A noite havia cado e estvamos tentando alcanar algum lugar habitado por sereshumanos: no tnhamos luz, e passar a noite ao relento no muito agradvel. Ns andvamosbem devagar, levando uma tocha acesa, quando ouvimos um barulho estranho na moto, que noconseguimos identificar. A tocha no fornecia luz suficiente para descobrir a causa dobarulho, ento tivemos de acampar ali mesmo. Nos arrumamos para a noite da melhor maneirapossvel, armando nossa barraca e engatinhando para dentro dela, com esperana de esquecernossa fome e nossa sede (no havia gua corrente por perto, e ns tambm no tnhamos nadapara comer) com nosso sono dos justos. S que, em pouco tempo, a brisa da noite setransformou em um vendaval violento, que derrubou nossa barraca e nos exps ao rigor dotempo, ao frio mais gelado. Tivemos de amarrar a moto a um poste de telgrafo, cobrindo-acom a barraca para proteg-la melhor, e nos deitamos atrs dela. O semifuraco nos impediude usar nossas camas de campanha. No foi uma noite nada agradvel, mas o sono finalmentetriunfou sobre o frio, o vento e tudo o mais, e ns acordamos s nove da manh, com o solreluzindo sobre nossas cabeas.

    luz do dia, descobrimos que o tal barulho tinha sido provocado pelo quadro da rodadianteira da moto se partindo. Agora, tnhamos de consertar aquilo da melhor maneirapossvel, para tentar encontrar uma cidadezinha onde pudssemos soldar a barra quebrada.Nosso amigo, o arame, resolveu o problema provisoriamente. Arrumamos nossas coisas epartimos, sem saber muito bem onde encontraramos ajuda. Imagine nossa surpresa quando,logo depois da prxima curva, vimos uma casa. Os moradores nos receberam muito bem eaplacaram nossa fome com um delicioso cabrito assado. Dali, ns percorremos uns vintequilmetros at um lugar chamado Piedra del guila, onde soldamos a pea defeituosa. Mas,na hora de partir, j estava um pouco tarde, ento decidimos passar a noite na casa domecnico.

    Exceto por duas ou trs pequenas quedas, que no avariaram muito a moto, nscontinuamos calmamente a caminho de San Martn de los Andes. J estvamos quase l, e euestava dirigindo, quando tomamos nosso primeiro tombo no Sul, em uma bela curva cobertacom cascalho que contornava um riacho barulhento. Dessa vez, o chassi de La Poderosa ficou

  • avariado o suficiente para nos obrigar a parar e, para completar, chegou o momento que nsmais temamos: nosso pneu traseiro estava furado. Para poder consertar o furo, tivemos detirar toda a nossa bagagem, desamarrar todo o arame que segurava o bagageiro e depois lutarcom a cmera do pneu, que desafiava nossa chave-de-boca. Esse pneu furado (um serviobastante malfeito, admito) nos custou quase duas horas. Algum tempo depois, paramos em umaestncia cujos donos, uns alemes bem receptivos, j haviam, alguns anos antes, acolhido umtio meu, um velho e inveterado viajante, exemplo que eu agora seguia. Eles nos permitirampescar no rio que cortava a estncia. Alberto ento jogou sua linha e, antes que ele pudessesaber o que estava acontecendo, tinha uma forma esguia pulando de um lado para o outro ebrilhando sob a luz do sol, presa ao seu anzol. Era uma truta arcoris, um belo peixe, suculentoe bem gordo (ou pelo menos assim pareceu, quando ns o assamos e o temperamos com nossafome). Eu preparei o peixe enquanto Alberto jogou novamente sua linha, e mais uma vez, masno conseguiu nenhuma outra mordida, apesar das horas de insistncia. Depois disso,anoiteceu, ento tivemos de passar a noite na cozinha dos empregados da fazenda.

    s cinco da manh, o forno gigante que ocupa o centro desse tipo de cozinha tinha sidoaceso, e o lugar ficou completamente inundado de fumaa. Os empregados da fazenda estavambebendo seu mate amargo e comearam a gozar de nosso mate de mariquinhas, como eleschamam o mate-doce naquela regio. Eles no eram muito comunicativos, no geral, o que tpico da subjugada raa araucana, ainda desconfiada do homem branco que lhe trouxe tantoinfortnio no passado e que ainda a explora. Quando inquirimos a respeito da terra e de seutrabalho, eles responderam encolhendo os ombros e falando coisas como no sei outalvez, o que ps um fim conversa.

    Tambm tivemos chance de nos empanturrar com cerejas, tanto que, quando mudamos paraas ameixas, eu j tinha comido o suficiente e fui me deitar para digerir aquilo tudo. Albertocomeu algumas, para no parecer rude. Em cima das rvores, ns comemos como porcos,como se estivssemos apostando uma corrida para ver quem acabava primeiro. Um dos filhosdo dono pareceu achar aqueles mdicos mal vestidos e aparentemente famintos um tantoquanto estranhos, mas no disse nada, e nos deixou comer at ficarmos felizes, at termos deandar devagar para no acabar chutando nossos prprios estmagos.

    Consertamos ento a ignio da moto e alguns outros defeitinhos e partimos outra vez,chegando em San Martn de los Andes logo antes do anoitecer.

    SAN MARTN DE LOS ANDES

    A estrada serpenteia ao p da grande cordilheira dos Andes e depois desce bruscamenteat chegar a uma pequena cidade feia e triste, mas rodeada por montanhas maravilhosamentecobertas de rvores. San Martn fica nos declives verde-amarelados que terminam nasprofundezas azuis do lago Lacar, uma poa de gua com quinhentos metros de largura e 35quilmetros de comprimento. Os problemas de clima e de transporte da cidade foram

  • resolvidos no dia em que ela foi descoberta como um paraso turstico e teve seu po commanteiga assegurado.

    Nossa primeira tentativa, na clnica local, falhou miseravelmente, mas fomos aconselhadosa tentar a mesma ttica na sede do Parque Nacional. O superintendente do parque nos deupermisso para ficar em um dos depsitos de ferramentas. O vigia-noturno chegou ento, umhomem gordo, pesando 140 quilos mais ou menos, e com uma cara durssima. Mas ele foimuito gentil conosco e nos deixou cozinhar em sua cabana. Aquela primeira noite foi tima;dormimos em um monte de palha no galpo, macio e quentinho. Com certeza, essas coisas sonecessrias nos lugares onde as noites so geladas.

    Compramos um pedao de carne e samos para andar na beira do lago. Ali, sombra deumas rvores gigantescas, onde a imensido da natureza tinha impedido o avano dacivilizao, fizemos planos de montar um laboratrio quando voltssemos de nossa viagem.Imaginamos janelas enormes, voltadas para o lago, enquanto o inverno pintaria o cho todo debranco; um helicptero para nos locomover de um lado para o outro; pescar em um bote;excurses sem fim para dentro da floresta quase virgem.

    Muitas vezes durante a viagem, desejamos ficar em alguns dos lugares maravilhosos quevimos, mas s a floresta amaznica teve o mesmo poder sobre nossa faceta sedentria comoesse lugar teve. Eu sei agora, por conta dos fatos, que estou destinado a viajar, ou melhor, nsestamos, porque Alberto igualzinho a mim. Ainda assim, existem momentos em que eurecordo com uma saudade intensa aquelas paragens no sul da Argentina. Talvez um dia,quando estiver cansado de errar por a, eu volte para a Argentina e me assente nos lagosandinos, se no indefinidamente, pelo menos em trnsito para outra concepo de mundo.

    Comeamos a voltar para o galpo ao pr-do-sol e estava tudo escuro antes quechegssemos l. Tivemos uma surpresa agradvel quando descobrimos que Don Pedro Olate,o vigia, estava nos preparando um churrasco. Ns contribumos com vinho como forma deagradecer o gesto e comemos como lees, s para no perder o hbito. Ao falarmos de quantoa carne estava saborosa e sobre como ns logo, logo no poderamos comer to bem como naArgentina, Don Pedro nos contou que tinha sido convidado para organizar um churrasco nodomingo seguinte para os pilotos de uma corrida de carros que aconteceria no autdromolocal. Ele disse tambm que iria precisar de dois ajudantes para fazer o servio. Vocspodem at no receber pagamento em dinheiro, mas podem pegar toda a carne que quiserem.

    Parecia uma boa ideia, e ns aceitamos ento os cargos de Assistente Nmero Um eNmero Dois do Rei do Churrasco do Sul da Argentina.

    O domingo foi aguardado com dedicao quase religiosa por ns dois, os assistentes. sseis da manh, comeamos a carregar com lenha um caminho que ia para o local dochurrasco e continuamos a trabalhar at as onze horas, quando foi dado o sinal e todo mundose jogou vorazmente em cima das costelas suculentas.

    Quem dava as ordens era uma pessoa bastante estranha, que eu tratava respeitosamente porSenhora toda vez que lhe dirigia a palavra, at que um dos outros ajudantes me puxou delado e disse: Ei, garoto, no exagere assim com Don Pendn, ele vai se irritar.

    Quem Don Pendn?, eu indaguei, com um gesto que pode ser considerado, digamos,

  • rude. A resposta, de que Don Pendn era a tal Senhora, me deixou sem jeito, mas no pormuito tempo.

    Como sempre acontece em qualquer churrasco, havia carne demais para o nmero deconvidados, logo ns tivemos carta branca para seguir nossa vocao de camelos. Tambmpusemos em ao um plano cuidadosamente concebido. Eu fingi ficar cada vez mais bbado e,a cada ataque de nusea, ia correndo na direo do riacho com uma garrafa de vinho tintoescondida sob minha jaqueta de couro. Tive cinco ataques desses, e o mesmo nmero de litrosde vinho tinto foi escondido embaixo de um galho de salgueiro, gelando na gua fria. Quando afestana acabou e chegou o momento de empacotar tudo outra vez no caminho e voltar para acidade, eu, fiel a meu papel, trabalhei com m vontade, discuti com Don Pendn e, finalmente,fui deitar na grama, sem condies de dar mais um nico passo. Alberto, como o bom amigoque , pediu desculpas ao chefe pelo inconveniente e ficou para cuidar de mim, depois que ocaminho partiu. Quando o barulho do motor desapareceu na distncia, ns dois samos emdisparada para pegar o vinho que iria nos garantir alguns dias de comida irrigadaoligarquicamente. Alberto chegou l primeiro e se jogou embaixo do salgueiro. A cara que elefez daria um quadro. No havia uma garrafa sequer l. Algum no havia sido enganado pelomeu estado alterado, ou tinha me visto pegar as garrafas de vinho. O fato que ns estvamosde volta estaca zero, revirando em nossas lembranas os sorrisos que testemunharam minhatravessura beberrona para tentar encontrar algum trao de ironia que revelasse o ladro, masfoi em vo. Carregando os pedaos de po e de queijo que nos deram e uns poucos quilos decarne para passar a noite, tnhamos de andar de volta para a cidade, bem alimentados, verdade, mas bem deprimidos tambm; no tanto por causa da histria do vinho, mas portermos sido feitos de idiotas. Acho que d para imaginar

    O dia seguinte amanheceu frio e chuvoso. Ns achamos que a corrida iria ser suspensa eestvamos esperando a chuva ceder um pouco para ir assar um pedao de carne na beira dolago quando ouvimos a narrao da corrida atravs dos alto-falantes. Por termos ajudado nochurrasco, tnhamos ingressos de graa, ento fomos assistir a um bom racha de pilotosargentinos, confortavelmente instalados.

    Depois disso, ns bebamos mate na entrada do galpo onde estvamos alojados ediscutamos a respeito das diferentes rotas que podamos tomar para seguir nossa viagemquando encostou um jipe, de onde saltaram alguns amigos de Alberto, moradores da distante equase mstica Villa Concepcin del To. Os velhos amigos se abraaram efusivamente e nslogo samos para celebrar, enchendo nossas barrigas com lquidos fortes, como to comumem tais ocasies.

    Eles nos convidaram para visit-los na cidade onde estavam trabalhando, Junn de losAndes, e ns partimos, deixando nosso equipamento no galpo do Parque Nacional paradiminuir o peso da moto.

    EXPEDIO CIRCULAR

  • Junn de los Andes, menos afortunada do que sua vizinha San Martn, vegeta afastada dacivilizao. As tentativas de reativar a cidade e pr fim monotonia de sua existnciasonolenta construindo o quartel onde nossos amigos estavam trabalhando falhouclamorosamente. Eu digo nossos amigos porque rapidamente eles se tornaram meus amigostambm.

    Passamos a primeira noite relembrando o passado distante em Villa Concepcin, ajudadospor um estoque inesgotvel de vinho tinto. Tive de abandonar a partida pelo meio, devido minha falta de treinamento, mas dormi como um anjo, em honra da melhor cama que eu haviavisto nos ltimos dias.

    O dia seguinte foi gasto consertando-se alguns problemas com a moto, na oficina dosnossos amigos. E, naquela noite, eles nos presentearam com uma magnfica festa de despedidada Argentina: um churrasco de cabrito acompanhado de saladas e umas torradas excelentes.Assim, depois de alguns dias de festa, nos despedimos em meio a muitos abraos na estradaque vai para Carru, um outro lago da regio. A estrada era horrorosa e nossa moto roncavacada vez que eu tentava tir-la da areia. Os primeiros cinco quilmetros levaram uma hora emeia para serem percorridos, mas depois disso a estrada ficou um pouco melhor e nschegamos sem problemas a Carru Chico, um pequeno lago verde cercado de montes cobertosde bosques, e logo depois avistamos Carru Grande, um lago muito maior, mas inacessvelpara a moto, porque s possui um caminho de pedra que os contrabandistas locais utilizampara cruzar para o Chile.

    Deixamos ento a moto na cabana de um guarda-florestal, que por sinal no estava l, efomos escalar o pico prximo, de onde poderamos ver o lago. Era perto da hora do almoo enossas provises consistiam de um pedao de queijo e algumas conservas. Um pato sobrevoouo lago. Alberto calculou rapidamente a ausncia do guarda-florestal, a distncia do pssaro, apossibilidade de uma multa etc., e atirou. Por um incrvel golpe de sorte (no para o pato, claro), o bicho caiu no lago. Comeamos imediatamente uma discusso sobre quem iria pegara presa. Eu perdi e tive de mergulhar na gua. Senti como se dedos gelados agarrassem comfora todo o meu corpo, de maneira que eu no conseguisse me mexer. Alrgico como eu souao frio, nadar os vinte metros de ida e de volta para pegar o pato de Alberto me fez sofrercomo um beduno. Mas, no fim, o pato assado, temperado por nossa fome, como sempre,comps uma refeio saborosssima.

    Revigorados por nosso almoo, iniciamos entusiasmados a escalada. S que, juntoconosco, tambm comearam a subir umas moscas-varejeiras que nos cercaram e passaram anos morder a cada chance que tinham. A escalada foi difcil, porque no possuamos nemequipamento nem experincia, mas depois de algumas horas cansativas chegamos ao topo.Para nosso desapontamento, no havia vista panormica: as montanhas vizinhas bloqueavamtudo; em qualquer direo que olhssemos havia um pico mais alto no caminho.

    Depois de alguns minutos nos divertindo na neve que cobria o pico, comeamos a duratarefa de descer, apressados pelo fato de que logo seria noite.

    A primeira parte foi bem fcil, mas logo o riacho que ns estvamos acompanhando tornou-se um rio de corredeiras, com laterais lisas e pedras escorregadias, o que tornou difcil a

  • passagem. Tivemos de escalar atravs da mata de salgueiros na beira do rio at que,finalmente, chegamos a uma rea cheia de juncos, grossos e traioeiros. J era noite ento, ecom a escurido vieram milhares de sons misteriosos e uma sensao estranha de vazio, acada passo que dvamos no escuro. Alberto perdeu seu binculo e os fundos de minha calaficaram em frangalhos. Finalmente alcanamos uma fileira de rvores e cada passo tinha deser dado com o mais absoluto cuidado, porque naquela ausncia total de luz nosso sextosentido ficou to aguado que vamos abismos por todos os lados.

    Depois de uma eternidade pisando no cho enlameado, reconhecemos o riacho que nosguiou at o Carru, as rvores desapareceram e ns chegamos ao sop da montanha. A formainconfundvel de um veado lanouse atravs do riacho e seu corpo, prateado sob a luz da luacheia, desapareceu atrs dos arbustos. Esse relance da natureza fez nossos coraes bateremrapidamente. Ns diminumos o passo, para no perturbar ainda mais a paz daquele santurioselvagem, da qual ns agora comungvamos.

    Atravessamos com dificuldade o curso dgua, o que deixou nossas canelas formigando porcausa daqueles tais dedos gelados que eu tanto odeio, e fomos nos abrigar na cabana doguarda-florestal. Ele foi muito receptivo, nos ofereceu uma cuia de mate quente e algumaspeles de carneiro para dormir at a manh seguinte. Era meia-noite e meia.

    Voltamos para San Martn devagar, passando por lagos de uma beleza hbrida, secomparados com Carru, e chegamos finalmente a nosso destino. L, Don Pendn deu dezpesos a cada um de ns por nosso trabalho no churrasco, antes que continussemos nossaviagem mais para o sul.

  • A CAMINHO DE BARILOCHE: CARTA DE ERNESTO PARA SUA ME, JANEIRODE 1952

    Querida mame,Eu sei bem que voc no tem tido notcias minhas, mas, do mesmo modo, eu

    tambm no tive nenhuma sua, e estou preocupado. Contar-lhe tudo o que temacontecido a ns dois ultrapassaria o propsito destas poucas linhas; digo apenasque, logo depois de deixarmos Baha Blanca, dois dias depois, na verdade, eu tiveuma febre de 40 graus que me jogou na cama por um dia. Consegui me levantar nodia seguinte e acabei no hospital regional de Choele Choel, onde me recupereidepois de quatro dias e de uma dose de um remdio pouco conhecido: penicilina.

    Depois disso, atacados por milhares de problemas, que ns resolvemos comnossa usual abundncia de recursos, chegamos a San Martn de los Andes, um lugarmaravilhoso com um lago lindssimo no meio de uma floresta virgem. A senhoradeve ir v-lo, com certeza vale a pena. Nossos rostos esto adquirindo a textura dobronze. Temos pedido comida, alojamento e tudo o mais em qualquer casa com umjardim que encontremos pela estrada. Acabamos indo parar na estncia da famliaVon Putnamers, amigos de Jorge, especialmente o peronista, que est semprebbado e o melhor dos trs. Tive diagnosticado um tumor na regio occipital,provavelmente de origem hidtica. Vamos ver o que acontece. Dentro de dois outrs dias ns vamos para Bariloche, nos locomovendo em um passo mais relaxado.Se sua carta puder chegar l por volta de 10/12 de fevereiro, escreva-me na agnciados correios. Bem, me, a prxima pgina para Chichina. Muitos carinhos a todos,e me diga se papai est aqui no Sul ou no. Um abrao afetuoso de seu filho,

    Ernesto.

    A ESTRADA DOS SETE LAGOS

    Decidimos ir para Bariloche pela estrada dos Sete Lagos, assim chamada por causa doslagos que a estrada margeia antes de chegar cidade. La Poderosa percorreu os primeirosquilmetros com apenas alguns defeitinhos menores at que, j quase noite, ns usamos ovelho truque da lanterna quebrada para poder dormir na cabana de um mineiro. Essa, alis, foiuma deciso inteligente, porque estava particularmente frio naquela noite. To frio que umestranho logo apareceu para pedir um cobertor emprestado, porque ele e sua mulher,acampados na beira do lago, estavam congelando. Fomos ento dividir uma cuia de mate comesse par estico, que j morava nesses lagos h algum tempo, s com uma barraca e com ocontedo de suas mochilas. Eles fizeram a gente se sentir como dois ingnuos.

  • Continuamos depois por nossa trilha, rodeando lagos de diferentes tamanhos e passandopor florestas ancestrais, com os aromas da natureza acariciando nossas narinas. Mas logo aviso de lagos, bosques e casinhas solitrias com belos jardins comeou a rarear. Observar ocenrio superficialmente s permite capturar sua uniformidade entediante e no entrar de fatono esprito do campo; para tanto preciso passar diversos dias em um mesmo lugar.

    Finalmente, ns atingimos a extremidade norte do lago Nahuel Hupi, e dormimos em suamargem, felizes e estufados, depois de um bom assado. Mas, quando pegamos a estradanovamente, notamos que o pneu traseiro estava murcho outra vez, e uma cansativa batalha coma cmera interna do pneu comeou. Cada vez que ns consertvamos um furo de um lado,outro aparecia do lado oposto, at que acabaram nossos remendos e ns tivemos de pernoitarali mesmo. Um austraco que trabalhava como caseiro e que tinha sido piloto de corrida demotos em sua juventude nos deixou dormir em um galpo abandonado, dividido entre seudesejo de ajudar companheiros de motocicleta e o medo de seu patro.

    Com seu espanhol confuso ele nos avisou que havia um puma nas redondezas. Pumas somalvados. No tm medo de atacar pessoas e tm uma grande juba loira.

    Quando fomos fechar a porta do galpo, descobrimos que apenas a metade de baixofechava; era como a porta de um estbulo. Coloquei nosso revlver ao lado de minha cabea,para o caso de o leo da montanha que preenchia nossos medos decidir fazer uma visitanoturna sem ser chamado. Estava j amanhecendo quando eu acordei ao som de garrasarranhando a porta. Alberto estava em um apreensivo silncio. Minha mo, tensa, segurava orevlver. Dois olhos luminosos me olhavam da sombra das rvores. Eles saltavam para afrente como um gato feroz, enquanto a massa negra de seu corpo escorregava atravs da porta.Foi instintivo: os freios da inteligncia falharam e meu instinto de preservao puxou ogatilho. O estampido ressoou como um trovo pelas paredes do lugar por um momento e entoparou em uma tocha acesa na porta, com gritos desesperados vindo em nossa direo. Nossotmido silncio sabia a razo, ou pelo menos a adivinhou por conta dos resmungos poucoamigveis do caseiro e da choradeira histrica de sua mulher, ajoelhada ao lado do corpo deBobby, o cachorro nervoso dos dois.

    Alberto tinha ido at Angostura para consertar o pneu, e eu pensei que ia ter de dormir aorelento, porque no poderia pedir uma cama em uma casa onde ns ramos consideradosassassinos. Por sorte, nossa moto estava perto da casa de outro mineiro, e ele me colocou nacozinha, com um amigo dele. meia-noite ouvi o barulho da chuva e me levantei para cobrir amoto com uma lona. Com os pulmes irritados pela pele de carneiro que nos servia detravesseiro, decidi tomar umas baforadas de meu inalador para asma. Quando fui faz-lo, meucompanheiro de guarida acordou. Ao ouvir o rudo da inalao, ele fez um movimento rpidoe depois ficou em silncio. Eu percebi que seu corpo estava rgido sob o cobertor, segurandouma faca e a respirao. Depois da experincia da noite anterior, decidi ficar imvel, commedo de ser esfaqueado no caso de as miragens serem contagiosas naquelas paragens.

    Chegamos a San Carlos de Bariloche na noite do dia seguinte, e dormimos na delegacia depolcia, esperando o Modesta Victoria para navegar at a fronteira com o Chile.

  • SINTO MINHAS RAZES FLUTUANDO LIVRES, NUAS E

    Ns estvamos na cozinha da delegacia de polcia, abrigando-nos da tempestade que caado lado de fora. Eu lia e relia a inacreditvel carta. De repente, todos os meus sonhos de casa,amarrados aos olhos que me viram partir l em Miramar, foram estremecidos. Aparentemente,sem razo alguma. Um cansao terrvel se abateu sobre mim e, meio dormindo, eu ouvia anarrativa viva de um viajante tecendo milhares de tramas exticas, seguro de si ante aignorncia de sua audincia. Eu podia ouvir as palavras sedutoras enquanto os rostos ao redordele se inclinavam para a frente, para melhor ouvir o relato de suas histrias. Podia vertambm, como que atravs de uma neblina distante, um mdico norte-americano que nsconhecemos em Bariloche ponderando: Voc vai para onde sua cabea apontar, voc corajoso. Mas eu acho que voc vai ficar no Mxico. um belo pas.

    Eu me peguei ento velejando com o marinheiro para terras distantes, muito longe do meudrama atual. Uma sensao de desconforto profundo se abateu sobre mim; aquele drama nome afetava. Comecei a me preocupar comigo mesmo e tentei escrever uma carta chorosa, masno conseguia, no adiantava nada tentar.

    meia-luz, figuras mgicas pairavam no ar, mas ela no aparecia. Eu imaginava am-laat esse momento, quando percebi que no a sentia, e tinha de me forar a pensar nela paralembrar. Eu tinha de lutar por ela, ela era minha, minha, m ca no sono.

    Um sol clido anunciou o novo dia, o dia de nossa partida, nosso ltimo dia em soloargentino. Conseguir colocar a moto dentro do Modesta Victoria no foi nada fcil, mas nsconseguimos por fim. E tir-la de dentro do barco depois tambm foi um tanto difcil. De todomodo, l estvamos ns naquele pequeno vilarejo do outro lado do lago, que atendia pelonome pomposo de Puerto Blest. Percorremos uns poucos quilmetros, trs ou quatro nomximo, e voltamos para a gua, um lago esverdeado e sujo dessa vez, laguna Fras. Mais umpequeno trecho antes de finalmente chegar fronteira e passar pelo posto de imigrao chilenodo outro lado da cordilheira, que por sinal tem uma altitude muito menor nesta latitude.Depois, a estrada cruza ainda outro lago, onde desgua o rio Tronador, que nasce domajestoso vulco homnimo. Contrastando com os lagos argentinos, a gua neste aqui, lagoEsmeralda, quente e torna a tarefa de banhar-se um pouco mais agradvel; muito mais aonosso gosto, devo dizer. Subindo as montanhas, em um lugar chamado Casa Pangue, fica ummirante de onde se pode ter uma vista panormica do Chile. uma espcie de encruzilhada,ou pelo menos o foi para mim naquele momento em particular. Eu olhava para o futuro, paracima da faixa estreita do Chile, e tambm para o que ficava para trs, murmurando os versosdo poema de Otero Silva.

    OBJETOS DA CURIOSIDADE

  • O velho barco que levava nossa moto escorria gua por todos os poros. Minha imaginaovoava enquanto eu, ritmicamente, me inclinava sobre a bomba com a qual tinha de tirar a gua.Um mdico, que voltava de Peulla na lancha de passageiros que fazia a travessia do lagoEsmeralda, passou ao lado da engenhoca qual nossa moto estava amarrada e cujas passagensns estvamos pagando com o suor de nossas frontes. Sua cara era de espanto, olhando nossaluta para manter o barco boiando, os dois quase nus e totalmente cobertos com aquela guaoleosa da parte mais baixa do barco.

    Ns conhecemos muitos mdicos em nossa viagem pelo Chile, com os quais discutimosbastante o tema da leprologia, enfeitando um pouquinho aqui e ali. Nossos colegas do outrolado dos Andes ficavam impressionados porque, como no tinham esse problema em seu pas,eles no sabiam nada sobre a lepra ou sobre leprosos e admitiam jamais haver visto um. Elesnos falaram de uma colnia de leprosos que havia na Ilha de Pscoa, que tinha um pequenonmero de leprosos; uma ilha belssima, eles disseram, e nossos apetites cientficos ficaramexcitados. Esse mdico em particular nos ofereceu, generosamente, qualquer ajuda quepudssemos precisar em nossa jornada extremamente interessante. Mas, durante aquelesdias bem-aventurados no sul do Chile, antes que nossos estmagos fossem esvaziados e o solqueimasse nossas epidermes, ns apenas pedimos que ele nos apresentasse ao presidente daAssociao dos Amigos da Ilha de Pscoa, que morava prximo a Valparaso. Obviamente,ele ficou muito satisfeito em faz-lo.

    A travessia do lago terminou em Petrohu, onde nos despedimos de todos; mas no semantes posar para um monte de fotografias, com umas negras brasileiras muito simpticas que,com certeza, nos colocaram em seu lbum de recordaes do sul do Chile e com um ou outronaturalista deste ou daquele pas europeu que, cerimoniosamente, anotou nossos endereospara enviar depois as cpias das fotos.

    Um louco de Petrohu precisava que seu caminho fosse levado para Osorno, que era paraonde ns estvamos indo, e me pediu para dirigi-lo at l. Alberto me deu umas aulas rpidassobre a troca de marchas, e eu assumi, solenemente, meu posto. Como em um desenhoanimado, eu sa literalmente aos trancos e barrancos, seguindo Alberto, que estava na moto.Cada curva era um tormento: freio, embreagem, primeira, segunda, ajudem!, vru-um Aestrada passeava pela belssima paisagem que contornava o lago Osorno, com o vulco domesmo nome montando guarda ao longe, mas eu, nessa estrada acidentada, no estava emcondies de elogiar o cenrio. O nico acidente que tivemos, entretanto, aconteceu quandoum porquinho passou correndo na frente do caminho, antes que eu estivesse dominando bemessa histria toda de freio e embreagem.

    Depois que chegamos a Osorno, deixamos nossa carga e samos de Osorno, continuamosseguindo para o norte atravs do interior chileno, sempre dividido em pequenos lotes de terracultivada, em contraste com nosso sul rido.

    Os chilenos, um povo extremamente hospitaleiro e amigvel, nos davam as boas-vindas emtodo lugar a que chegvamos. Um domingo, por fim alcanamos o porto de Valdvia.Passeando pela cidade, passamos pelo jornal local, o Correo de Valdvia, que escreveu umartigo muito gentil a nosso respeito. Valdvia estava celebrando o quarto centenrio de sua

  • fundao, e ns dedicamos nossa jornada cidade, como uma homenagem ao grandeexplorador que d nome ao lugar.

    Eles nos convenceram a escrever uma carta para Molinas Luco, prefeito de Valparaso,preparando-o para nossa excurso Ilha de Pscoa.

    As docas, repletas de mercadorias que nunca havamos visto antes, o mercado onde eramvendidas as comidas mais variadas, as casas de madeira tipicamente chilenas, as roupas dosguasos9, tudo parecia totalmente diferente do que ns tnhamos em casa; havia algo degenuinamente americano, de indgena, intocado pelo exotismo que havia invadido os nossospampas. Isso, talvez, pelo fato de os imigrantes anglo-saxes no Chile no terem se misturado populao, preservando, assim, a pureza da raa indgena que, hoje em dia, praticamenteinexistente na Argentina.

    Mas, com todas as diferenas de costumes e de falares que distinguem a Argentina do nossomagro irmo do outro lado dos Andes, um grito em particular me parece internacional: oabram-alas com que todos me cumprimentavam ao ver minhas calas com a barra na alturado tornozelo, no por causa de alguma moda minha, mas por terem sido herdadas de um amigogeneroso, mas um pouco baixinho demais.

    OS ESPECIALISTAS

    A hospitalidade chilena, como eu no me canso de repetir, uma das coisas que tornou aviagem atravs de nosso vizinho to agradvel. E nos divertimos muito, como s ns podemossaber. Eu acordei preguiosamente sob os lenis, refletindo sobre o valor de uma boa cama ecalculando a quantidade de calorias do jantar da noite anterior. Relembrei os acontecimentosrecentes: o furo traioeiro no pneu de La Poderosa, que nos deixou empacados na estrada,debaixo da chuva; a ajuda generosa de Ral, dono da cama na qual ns dormamos agora; e aentrevista que concedemos a El Austral, em Temuco. Ral era um estudante de veterinria,aparentemente no muito srio, e dono do caminho onde ns metemos nossa pobre moto parachegar a esta cidadezinha pacata no meio do Chile. A bem da verdade, nosso amigo pode, emalgum momento, ter desejado jamais ter nos conhecido, j que ns lhe presenteamos com umanoite maldormida, mas foi ele quem cavou sua prpria cova, ao se vangloriar do dinheiro quegastava com as mulheres e ao nos convidar para uma noitada em um cabar; tudo pago porele, naturalmente. Isso levou a uma animada discusso, que durou horas e que foi a causa denossa estada na terra de Pablo Neruda ter sido prolongada. Ao fim da discusso, claro, veioo problema inescapvel de que ns teramos de adiar nossa visita quela casa de espetculosto atraente, mas, para compensar, conseguimos hospedagem e alimentao grtis. uma damanh, l estvamos ns, tranquilos como se pode imaginar, devorando tudo o que havia namesa, o que no era pouco, e mais um tanto que chegou depois. Em seguida, nos apropriamosda cama de nosso hospedeiro, j que seu pai estava se mudando para Santiago e no haviaquase nenhum mvel na casa.

  • Alberto, ainda morto para o mundo, desafiava o sol da manh a penetrar seu sono pesadoquando eu comecei a me vestir. Essa tarefa no era assim to difcil, j que a diferena entrenossos trajes diurno e noturno era basicamente o sapato. O jornal local tinha um nmeroconsidervel de pginas, to diferente de nossos pobres dirios, mas eu estava interessadosomente em um pequeno pedao das notcias locais, o qual eu encontrei com letras grandes naseo dois: DOIS ARGENTINOS ESPECILISTAS EM LEPROLOGIA VIAJAM PELAAMRICA DO SUL DE MOTOCICLETA. E mais abaixo, em letras menores: Eles esto emTemuco e querem visitar Rapa Nui.

    Em poucas palavras, era assim que nossa ousadia era descrita: ns, os especialistas,figuras-chave do campo da leprologia nas Amricas, com uma vasta experincia, j tendocurado mais de trs mil pacientes, familiarizados com todos os centros importantes docontinente e com suas condies sanitrias, tnhamos nos dignado a visitar esta cidadezinhapitoresca e melanclica. Ns imaginamos que eles iriam apreciar bastante nosso respeito pelacidade, mas no sabamos com certeza. Logo, toda a famlia estava reunida ao redor do artigoe todos os outros itens do jornal eram tratados com um desprezo olmpico. E assim, deleitadoscom a admirao de nossos anfitries, demos adeus a essas pessoas de quem hoje nolembramos nada, nem mesmo os nomes. Tnhamos pedido permisso para deixar a moto nagaragem de um homem que morava na sada da cidade e nos dirigimos para l. S que, agora,no ramos mais um par de quase-mendigos com uma moto a reboque. No, agora ns ramosos especialistas, e era assim que nos tratavam. Passamos o dia consertando a moto, e umaempregada mestia vinha sempre nos oferecer os mais variados petiscos. s cinco da tarde,depois de um lanche suntuoso oferecido por nosso anfitrio, nos despedimos de Temuco eseguimos para o norte.

    AS DIFICULDADES AUMENTAM

    Nossa sada de Temuco transcorreu sem dificuldades, at que, j na estrada, notamos que opneu traseiro estava mais uma vez furado e tivemos de parar para consert-lo. Demos duro,mas to logo colocamos o estepe para rodar percebemos que ele tambm tinha um furo.Parecia ento que ns teramos de passar a noite ao relento, j que no era mais possvelconsertar o pneu quela hora da noite. Entretanto, no ramos mais meros forasteiros, agoraramos os especialistas, e logo encontramos um ferrovirio que nos levou para sua casa,onde fomos tratados como reis.

    Bem cedo na manh seguinte, levamos o estepe e o pneu a uma borracharia, para retiraralguns pedaos de metal encravados na borracha e remendar o pneu mais uma vez. Era jperto do anoitecer quando terminamos o servio, mas, antes de deixar a casa do ferrovirio,fomos convidados para um banquete tipicamente chileno: tripas e outra coisa parecida,bastante apimentado, tudo bem irrigado com um delicioso vinho seco. Como sempre, ahospitalidade chilena nos deixou com as pernas bambas.10

  • Naturalmente, ns no conseguimos ir muito longe, e menos de oitenta quilmetros depoistivemos de parar e passar a noite na casa de um guarda-florestal que queria uma gorjeta emtroca de sua hospitalidade. Como no conseguiu o que tanto queria, ele no nos ofereceu cafna manh seguinte, ento partimos de mau humor, com a inteno de parar para acender umafogueira e preparar um mate depois de rodar alguns quilmetros. J tnhamos andado umpouco e eu estava procurando algum lugar para parar quando, sem nenhum aviso, a motosubitamente mudou de direo e nos jogou no cho. Alberto e eu, ilesos, nos levantamos efomos examinar a moto. Descobrimos que uma das colunas de direo havia se partido e, oque era ainda mais srio, a caixa de marchas estava amassada. Era impossvel continuar. Tudoo que podamos fazer era esperar pacientemente um caminhoneiro prestativo que pudesse noslevar para a cidade mais prxima.

    Um carro que vinha na direo contrria parou, e seus ocupantes desceram para ver o quehavia ocorrido, oferecendo seus servios. Disseram que teriam todo o prazer em ajudar osdois eminentes cientistas em tudo o que fosse possvel. Reconheci voc da foto no jornal,disse um deles. No havia nada que quisssemos, exceto uma carona na outra direo. Nsagradecemos e voltamos a tomar nosso mate quando o dono de um barraco prximo veio atonde estvamos e nos convidou para sua casa, onde bebemos mais alguns bons litros dechimarro. Ele nos apresentou seu charango, um instrumento musical composto por trs ouquatro cordas de cerca de dois metros de comprimento, esticadas sobre duas latas vaziascoladas a uma tbua. O msico tinha uma espcie de palheta de metal com a qual ele fazia soaras cordas, um som que se parecia com o de um violo de brinquedo. Por volta do meio-dia,uma caminhonete passou por ali e, depois de muita insistncia, o motorista concordou em noslevar para a prxima cidade, Lautauro. L chegando, conseguimos ser atendidos na melhoroficina da cidade, e o soldador, um homenzinho simptico chamado Luna, nos convidou paraalmoar em sua casa duas vezes. Tivemos de passar alguns dias na cidade, dividindo nossotempo entre consertar a moto e mendigar por alguma comida nas casas dos muitos curiososque vinham nos ver na oficina. Ao lado do estabelecimento morava uma famlia de alemesou, pelo menos, de origem alem, que nos tratou muito bem. Dormimos no quartel da cidade.

    Como a moto estava mais ou menos remendada e j nos preparvamos para deixar o lugarno dia seguinte, decidimos aceitar o convite para uns drinques que alguns de nossos novosamigos nos fizeram. O vinho chileno muito bom e eu o estava consumindo a uma taxaimpressionante. Assim, quando decidimos ir at o baile na prefeitura, eu me sentia pronto paraencarar qualquer coisa. Estava uma noite muito aconchegante e ns no paramos de enchernossas barrigas e mentes com vinho. Um dos mecnicos da oficina, um cara particularmentesimptico, me pediu para danar com sua esposa, porque tinha misturado as bebidas e no sesentia muito bem. Sua mulher era um pouco vulgar, e estava obviamente animada, ento eu,lotado de vinho chileno, peguei-a pela mo e fui saindo do salo onde todos estavam. Ela meseguiu docemente, mas logo percebeu que seu marido a estava olhando e mudou de ideia. Meuestado no me permitia ouvir a voz da razo e ns comeamos a discutir no meio do salo, oque me fez pux-la na direo de uma das portas, sob olhares atnitos. Ela tentou me chutar e,enquanto eu a puxava, perdeu o equilbrio e se esborrachou com tudo no cho. Eu e Alberto

  • tivemos de fugir correndo e, conforme desabvamos na direo da cidade, perseguidos por umenxame de danarinos enraivecidos, ele se lamentava por causa do vinho que o marido damoa poderia ter pago para a gente, no fosse o ocorrido.

    O FIM DA LINHA PARA LA PODEROSA II

    Levantamos cedo para dar os retoques finais na moto e deixar aquele que j no era umlugar muito hospitaleiro, mas no sem antes aceitar um ltimo convite para um lanche dafamlia vizinha oficina.

    Alberto teve uma premonio e no quis dirigir, por isso eu assumi os controles. Rodamosuns bons quilmetros antes de ter de parar para consertar a caixa de marchas. No muitotempo depois, quando fazamos uma curva fechada a uma velocidade um pouco alta, oparafuso que prende o freio traseiro se soltou, a cabea de uma vaca apareceu do outro ladoda curva, depois muitas outras, e eu acionei o freio manual, que, soldado de maneiraexemplar, quebrou tambm. Por um momento, no vi nada alm de vacas passando rpido portodos os lados, enquanto a pobre Poderosa ganhava velocidade ladeira abaixo. Por umabsoluto milagre, tudo o que tocamos foi a perna da ltima vaquinha. No entanto, mais aolonge, havia um rio onde cairamos com certeza. Eu consegui jogar a moto para a lateral dapista e ela subiu cerca de dois metros, terminando alojada entre duas pedras. Ns, felizmente,samos ilesos desta.

    Ainda colhendo os benefcios da carta de recomendao que a imprensa havia feito parans, fomos socorridos por um grupo de alemes que nos tratou muito bem. Durante a noite, eutive uma dor de barriga repentina e, sem querer deixar uma lembrancinha no pote debaixode minha cama, me posicionei na janela e livreime do contedo que me incomodava naescurido, l fora. Na manh seguinte, olhei pela janela para observar o resultado de minhaao e o que vi, dois metros mais abaixo, foi um grande telhado de metal com vrios pssegossecando ao sol; o toque adicionado por mim ao espetculo era, digamos, impressionante.Samos dali rapidamente.

    Ainda que, a princpio, o acidente no tivesse parecido muito grave, era claro agora quens o havamos subestimado. A moto fazia barulhos estranhos toda vez que subamos umaladeira. Comeamos a subir em direo a Malleco, onde existe uma ponte ferroviria que oschilenos costumam dizer ser a maior das Amricas. A moto morreu na metade da subida e nsdesperdiamos o resto do dia esperando que alguma alma caridosa em forma de caminhoneironos levasse at o topo. Dormimos na cidade de Cullipulli (depois que a carona apareceu) esamos de l bem cedo, j esperando pela catstrofe. Na primeira subida mais ngreme aprimeira de muitas outras na estrada La Poderosa finalmente deu seu ltimo suspiro. Umcaminho nos levou at Los Angeles, onde deixamos a moto no Corpo de Bombeiros, edormimos na casa de um tenente do exrcito chileno que parecia bastante honrado pelamaneira como havia sido tratado na Argentina e fez tudo para nos agradar. Foi nosso ltimo

  • dia como vagabundos motorizados; o prximo passo, o de vagabundos no-motorizados,parecia que ia ser um pouco mais difcil.

    BOMBEIROS VOLUNTRIOS, TRABALHADORES VOLUNTRIOS E COISAS DOGNERO

    No Chile no existem (at onde eu sei) brigadas no-voluntrias de combate a incndios,mas, ainda assim, um servio muito bom, porque assumir o posto de capito de uma brigada uma honra perseguida pelos homens mais capazes de cada vila ou cidade onde ela opera. Eno pensem que um trabalho apenas em teoria: no sul do pas, pelo menos, acontece umnmero considervel de incndios. No sei se isso se deve ao fato de que a maioria dasconstrues feita de madeira, ou se porque as pessoas so pobres e pouco educadas, oupor algum outro fator, ou por todos eles juntos. Tudo o que sei que, nos trs dias em queestivemos hospedados no quartel dos bombeiros, houve dois incndios de grandes proporese outro menor. (No quero dizer com isso que este ltimo foi de tamanho mdio, estou apenasrelatando os fatos.)

    Tenho de explicar que, depois de passar a noite na casa do tal tenente, ns decidimos irpara o Corpo de Bombeiros, atrados pelas trs filhas do zelador, exemplos acabados docharme da mulher chilena, que, seja bonita ou feia, tem certa espontaneidade e frescor que soimediatamente cativantes. Mas estou divagando Armamos nossas barracas em uma sala edormimos nosso usual sono dos mortos, o que quer dizer que ns no ouvimos a sirene. Osvoluntrios de servio no sabiam que ns estvamos l e saram apressados com oscaminhes de bombeiro, enquanto ns continuamos dormindo at o meio da manh. S quandoacordamos que soubemos o que aconteceu, e os fizemos prometer que nos acordariam daprxima vez. Ns j tnhamos arranjado um caminho para nos levar com a moto at Santiagodali a dois dias por uma pequena taxa, com a condio de que ajudssemos a carregar ocaminho com os mveis que eles tinham de transportar.

    ramos uma dupla bastante popular e sempre tnhamos bastante coisa para conversar comos voluntrios e com as filhas do zelador, de modo que os dias em Los Angeles passaramvoando. A meus olhos, entretanto, que insistem em rotular e classificar o passado, a cidade simbolizada pelas chamas furiosas de um incndio. Foi no ltimo dia de nossa estada, edepois de beber copiosamente para demonstrar nossa alegria pela despedida. Estvamosenrolados em nossos lenis, dormindo, quando a sirene (aquela pela qual ns tnhamosestado esperando) rasgou a noite chamando os voluntrios e Alberto pulou da cama comoum foguete. Ns logo tomamos nossas posies no caminho de bombeiros com a gravidadeapropriada. O Chile-Espanha (esse era o nome do caminho) deixou o quartel sem alarmarningum com o longo lamento de sua sirene, todo mundo estava muito acostumado com aquilopara que fosse alguma novidade.

    A casa de pau-a-pique tremia com cada jorro de gua em seu esqueleto flamejante,

  • enquanto a fumaa acre da madeira queimada desafiava o trabalho estico dos bombeiros,que, rugindo e gargalhando, protegiam as casas vizinhas com jatos dgua e outros meios. Danica parte da casa que as chamas no tinham alcanado veio o miado de um gato, que,aterrorizado pelo fogo, se recusava a fugir pelo pequeno espao livre. Alberto viu o perigo,mediu tudo em um piscar de olhos e, com um salto gil, passou por cima dos vinte centmetrosde fogo e salvou a pequena vida ameaada para entreg-la a seus donos. Ao receber oscumprimentos efusivos por sua coragem inigualvel, os olhos dele brilharam de prazer atrsdo capacete emprestado.

    Mas tudo tem sempre de chegar a um fim e Los Angeles finalmente nos deu adeus. OGrande Che e o Pequeno Che (Alberto e eu)11 apertamos as ltimas mos amigas no caminhoque partia para Santiago carregando o cadver de La Poderosa II.

    Chegamos a Santiago em um domingo e fomos direto para a oficina Austin. Tnhamos umacarta de recomendao para o dono, mas descobrimos, para nossa decepo, que a oficinaestava fechada. No entanto, ns conseguimos fazer com que o zelador aceitasse receber a motoe fomos pagar por nossa viagem com o suor de nossos rostos.

    Nosso trabalho de carregador tinha estgios diferentes: o primeiro, muito interessante,tomou a forma de dois quilos de uvas para cada um, consumidos em tempo recorde, ajudadopela ausncia dos donos da casa; o segundo foi a chegada destes ltimos e o subsequentepegar no pesado; o terceiro, a descoberta que Alberto fez de que o companheiro do motoristatinha uma opinio a respeito de si mesmo to exagerada quanto fora de lugar; o coitado ganhoutodas as apostas que ns fizemos com ele, carregando mais mveis do que ns e o dono dacasa juntos (este se fez de bobo com grande elegncia).

    Depois do servio, finalmente conseguimos encontrar nosso cnsul na cidade. Semexpresso alguma no rosto (o que era bastante compreensvel em um domingo), ele apareceuno que parecia ser um escritrio e nos deixou dormir no ptio. Depois de fazer um longodiscurso sobre nossos deveres como cidados etc., ele se excedeu em generosidade nosoferecendo duzentos pesos, que ns, do alto de nossa soberba, recusamos. Se ele nos tivesseoferecido a quantia trs meses mais tarde, a histria teria sido diferente. Que desperdcio!

    Santiago se parece bastante com Crdoba. O ritmo da vida mais rpido e o trnsito muito mais pesado, mas os prdios, as ruas, o clima e at mesmo as pessoas trazem mentenossa cidade interiorana. No chegamos a conhecer a cidade muito bem, porque s estivemosl uns poucos dias e tnhamos um monte de coisas urgentes para fazer antes de partirmos outravez.

    O consulado peruano se recusou a nos dar um visto sem uma carta de seu homlogoargentino. Este ltimo se recusava a escrever a tal carta porque dizia que a motoprovavelmente no aguentaria a viagem e ns teramos de pedir ajuda embaixada (mal sabiaele que a moto j tinha virado um defunto), mas, por fim, ele teve piedade e ns conseguimos ovisto para entrar no Peru, ao custo de quatrocentos pesos chilenos, uma soma bem pesada paranosso oramento.

    Naqueles dias, estava visitando Santiago o time de polo aqutico do Suqua, de Crdoba, emuitos dos integrantes eram nossos amigos. Ento, ns fizemos um telefonema de cortesia para

  • eles e fomos convidados para um daqueles jantares chilenos do tipo coma mais presunto,experimente um pouco de queijo, beba um pouco mais de vinho de onde voc levanta seconseguir esticando todos os msculos do trax que puder juntar. No dia seguinte, subimos aSanta Luca, uma formao rochosa no centro da cidade com uma histria toda peculiar, eestvamos tranquilamente tirando algumas fotos da cidade quando um grupo de membros doSuqua chegou acompanhado por algumas beldades do clube anfitrio. Os pobres carasficaram bem embaraados, porque no sabiam direito se nos apresentavam para as distintasdamas da sociedade chilena, como acabaram fazendo, ou se fingiam no nos conhecer(lembrem-se de nossas vestes idiossincrticas). Mas eles conseguiram manejar a situao coma melhor autoconfiana possvel, e foram bastante amigveis tanto quanto pessoas demundos to distantes como o deles e o nosso naquele momento particular de nossas vidaspodem ser.

    O grande dia finalmente chegou e duas lgrimas escorreram simbolicamente pelo rosto deAlberto quando, com um ltimo aceno, ns deixamos La Poderosa na oficina e partimos emdireo a Valparaso. Viajamos por uma magnfica estrada nas montanhas, uma das maioresmaravilhas que a civilizao pode oferecer em comparao com as naturais (intocadas pelamo humana, quero dizer), em um caminho que subiu a cordilheira bastante rpido, apesar dacarga extra (ns).

    O SORRISO DO LA GIOCONDA

    Este era um novo estgio de nossa aventura. Ns estvamos acostumados a atrair a atenodas pessoas com nossas roupas estranhas e com a prosaica figura de La Poderosa II, cujoronco asmtico inspirava pena em nossos anfitries. Ainda assim, ns tnhamos sido, pode-sedizer, cavalheiros da estrada. Tnhamos pertencido a uma honrada aristocracia de viajantes,portando nossos diplomas como cartes de visitas para impressionar as pessoas. No mais.Agora ns ramos apenas dois vagabundos com mochilas nas costas, a poeira da estrada noscobrindo, apenas sombras de nossos antigos egos aristocrticos. O caminhoneiro nos deixouna parte alta da cidade, e comeamos a andar carregando nossas mochilas pelas ruas, seguidospelos olhares espantados ou indiferentes dos transeuntes. Ao longe, barcos brilhavamsedutoramente no porto, enquanto o mar, negro e convidativo, chamava por ns com um cheiroforte que preenchia nossas narinas. Compramos po que parecia caro, mas que se mostroubarato quando fomos mais para o norte, e continuamos a caminhar, descendo a ladeira.Alberto estava obviamente cansado, e eu, ainda que tentasse esconder, tambm estava, quandochegamos a um estacionamento de caminhes. Assediamos o atendente com os detalheshorrendos das dificuldades que havamos passado no caminho desde Santiago e ele nos deixoudormir em cima de umas tbuas. Dormimos na companhia de uns parasitas cujos nomesterminam em hominis, mas pelo menos tnhamos um teto sobre nossas cabeas. Sem pensar emoutra coisa, capotamos no sono. A notcia de nossa chegada, entretanto, chegou aos ouvidos de

  • um patrcio nosso em um caf imundo prximo ao estacionamento, e ele queria nos ver.Encontrar-se no Chile significa hospitalidade e ns no estvamos em posio de recusar esseman vindo dos cus. Nosso compatriota provou estar profundamente imbudo do esprito daterra irm e foi extremamente generoso. Fazia sculos que eu no comia peixe, e o vinhoestava to delicioso, e nosso anfitrio to atencioso de todo jeito, ns nos alimentamos beme ele nos convidou para ir sua casa no dia seguinte.

    O La Gioconda abriu as portas bem cedo e ns comeamos a tomar nosso mate,conversando com o dono do estabelecimento, que se interessou bastante por nossa jornada.Depois disso, samos para explorar a cidade. Valparaso bem pitoresca. Construdadebruada sobre uma larga baa, ao crescer a cidade escalou os montes que descem at o mar.Sua estranha arquitetura de ferro enrugado, disposta em uma srie de fileiras ligadas porlances de escadas serpenteantes e por telefricos, tem sua beleza de museu da loucuraressaltada pelo contraste das casas de cores diferentes misturando-se com o azul-acinzentadoda baa. Como se estivssemos pacientemente dissecando a cidade, bisbilhotamos asescadarias imundas e os ptios escuros, conversando com a multido de mendigos; medimosas profundezas da cidade, os miasmas que nos puxavam. Nossas narinas dilatadas inalavam apobreza com uma intensidade sdica.

    Fomos at as docas para saber se havia algum barco partindo para a Ilha de Pscoa, mas asnotcias no eram muito encorajadoras: no havia navios para a ilha nos prximos seis meses.Pegamos alguns detalhes vagos sobre voos que faziam a rota uma vez por ms.

    A Ilha de Pscoa! Nossa imaginao ala voo, depois para e anda em crculos: L, ter umnamorado branco uma honra; Voc no precisa trabalhar, as mulheres fazem tudo vocs come, dorme, e as faz felizes. Aquele lugar maravilhoso, onde o clima ideal, as mulheresso ideais, a comida ideal, o trabalho ideal (na sua abenoada inexistncia). Quem seimporta se ns ficarmos l um ano, quem se importa com os estudos, o trabalho, a famlia etc.?Na vitrine de uma loja, uma lagosta enorme pisca para ns e, de sua cama feita com alfaces,todo seu corpo nos fala: Eu vim da Ilha de Pscoa, onde o clima ideal, as mulheres soideais

    Ns aguardvamos pacientemente que nosso compatriota aparecesse na porta de entrada doLa Gioconda quando o dono nos convidou para entrar e nos ofereceu um daqueles almoosincrveis, com peixe frito e sopa. Nunca mais vimos o tal argentino durante nossa estada emValparaso, mas nos tornamos amigos do dono do bar. Ele era um cara meio estranho,indolente e enormemente generoso com todos os tipos esquisitos que apareciam por l, pormfazia os clientes normais pagarem os olhos da cara pelas imundcies que servia. Ns nopagamos um nico centavo durante todo o tempo em que estivemos l e ele gastava suahospitalidade conosco. Hoje a sua vez, amanh ser a minha era seu ditado preferido; no muito original, mas funciona bem.

    Tentamos contatar os mdicos de Petrohu, mas, de volta ao trabalho e sem tempo paradesperdiar, eles no concordaram em nos receber formalmente. Pelo menos, tnhamos algumaideia de onde eles estavam. Naquela tarde, ns nos separamos: Alberto foi perseguir os taismdicos, e eu fui ver uma velha senhora asmtica, uma freguesa do La Gioconda. A pobre

  • coitada estava em um estado lastimvel, respirando o odor de suor velho e de ps sujos queenchia seu quarto, misturado com a poeira de um par de poltronas, os dois nicos luxos dacasa. Alm da asma, ela tinha um corao fraco. em casos como esses, quando um mdicopercebe que no pode fazer nada, que ele deseja a mudana; uma mudana que impedisse ainjustia de um sistema no qual at um ms atrs essa pobre mulher tinha de ganhar seusustento trabalhando como garonete, respirando com dificuldade, ofegando, mas encarando avida com dignidade. Nestas circunstncias, as pessoas de famlias pobres que no podem sesustentar so rodeadas por uma atmosfera de aspereza mal disfarada; deixam de ser pais,mes, irm ou irmo para tornar-se apenas um fator negativo na luta pela sobrevivncia e, porextenso, fonte de amarguras para os membros sadios da comunidade, que se ressentem de suadoena como se fosse um insulto pessoal contra aqueles que tm de apoi-los. a, no final,para as pessoas cujos horizontes nunca ultrapassam o dia de amanh, que ns percebemos aprofunda tragdia que circunscreve a vida do proletariado em todo o mundo. Nesses olhosmoribundos existe um humilde apelo por perdo e tambm, muitas vezes, um pedidodesesperado de consolao que se perde no vcuo, da mesma maneira como seu corpodesaparecer logo em meio ao vasto mistrio que nos cerca. Quanto tempo mais esta ordematual, baseada na ideia absurda de classes sociais, vai durar eu no sei, mas chegada a horaem que o governo gaste menos tempo propagandeando suas prprias virtudes e comece agastar mais dinheiro, muito mais dinheiro, financiando projetos teis para a sociedade. Nohavia muito que eu pudesse fazer por aquela mulher doente. Eu simplesmente aconselhei-aquanto a sua dieta e receitei um diurtico e algumas plulas para asma. Eu ainda tinha algunstabletes de dramamina e deixei-os com ela. Quando sa, fui seguido pelas palavras deagradecimento da pobre velha e pelo olhar indiferente dos familiares.

    Alberto havia conseguido encontrar os mdicos. Tnhamos de estar no hospital s novehoras da manh seguinte. Enquanto isso, na sala imunda do La Gioconda que serve comocozinha, restaurante, lavanderia, sala de jantar e mictrio para gatos e cachorros, um estranhogrupo de pessoas estava reunido: o dono, com sua filosofia caseira; Dona Carolina, umasenhora muito prestativa, que era surda, mas que deixou a chaleira de nosso mate novinha emfolha; um ndio mapuche bbado e ruim das ideias, que parecia um criminoso; dois clientesmais ou menos normais; e a estrela da reunio, Dona Rosita, que no estava sentada em suacadeira de balano. A conversa girava em torno de um acontecimento macabro que Rositatinha testemunhado; aparentemente, ela tinha sido a nica pessoa a ver um homem esfaquearsua pobre vizinha com uma enorme faca.

    E a sua vizinha gritou, Dona Rosita? claro que ela gritou, o homem a estava esfolando viva! E no s isso, depois ele a

    levou at a praia e a jogou na gua, para que o mar levasse o corpo embora. Senhor, ouviraquela mulher gritando foi de rasgar o corao, o senhor deveria ter visto.

    Por que voc no contou polcia, Rosita?Para qu? Voc no se lembra de quando seu primo foi esfaqueado? Eu fui fazer a

    denncia e eles me disseram que eu estava louca e que, se eu no parasse de inventar coisas,eles me trancariam na priso, imaginem s. No, senhor, eu no vou contar mais nada para

  • aqueles l.A conversa ento passou para o mensageiro de Deus, o homem da vizinhana que usa os

    poderes que o Senhor lhe deu para curar surdez, burrice, paralisia etc. e depois passa ochapu. um negcio to bom quanto qualquer outro. Os panfletos so extraordinrios, assimcomo a credulidade das pessoas, mas todos alegremente gozam das coisas que Dona Rositav.

    A recepo dos mdicos no foi muito amigvel, mas ns conseguimos o queramos: serapresentados a Molinas Luco, o prefeito de Valparaso. Samos de l com todas asformalidades requeridas e fomos para a prefeitura. L chegando, nossa aparncia imunda noimpressionou o homem da recepo, mas ele tinha recebido ordens para nos deixar entrar. Osecretrio nos mostrou uma carta em resposta nossa, a qual explicava que nosso projeto eraimpossvel, uma vez que o nico navio para a Ilha de Pscoa j havia partido e no haveriaoutro at o prximo ano. Ns fomos conduzidos ao suntuoso escritrio do Dr. Molinas Luco,onde fomos cordialmente recebidos pelo prprio. Ele dava a impresso, entretanto, de estarpart