che guevara - a vida em vermelho

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 Che Guevara A VIDA EM VERMELHO Í NDICE Este livro............................................. ........................................ 1 Morro porque não morro............................................................. 2. Anos de amor e indiferença: Buenos Aires, Perón e Chichina.... 3. Os primeiros passos: navegar é preciso, viver não é preciso......... 4. No fogo com Fidel ....................................................................... 5. Nosso homem em Havana .......................................................... 6. “Cérebro da Revolução”, cria da URSS ......................................... 7. A bela morte não compensa....................................................... . 8. Com Fidel, nem casamento, nem divórcio.................................. 9. O coração nas trevas de Che Guevara......................................... 10. Traído por quem 7 ........................................................................ . 11. Morte e ressurreição.................................................................... Notas .......................................................................................... Agradecimentos ......................................................................... índice onomástico...................................................................... Para Jorge Andrés, que não conheceu os anos 60 mas que algum dia viverá tempos melhores ESTE LIVRO Uma pesquisa desta natureza requer uma grande multiplicidade de fontes. Nenhuma delas é perfeita nem suficiente em si mesma; todas encerram enigmas, defeitos e lacunas. Até aquelas aparentemente incontestáveis cartas, anotações ou diários do sujeito mesmo da biografia apresentam contradições e exigem reserva. Afinal, quem é transparente consigo mesmo? E acima de tudo, por se tratar de um tema eminentemente político, nenhuma fonte é neutra: todas carregam a marca de seu posicionamento ideológico. O trabalho do historiador, biógrafo ou mero escritor imbuído de curiosidade consiste e m agrupá-las, cotejá-las, separar o joio do trigo e b uscar conclusões que se baseiem na soma do material, não no material preferido ou mais acessível. Nos últimos anos, diversos estudiosos da vida de Che Guevara vêm desenterrando material inédito, ou publicado em edições restritas de algumas de suas obras. Trata-se de fontes de grande valor, mas não definitivas. Neste texto, materiais de tal natureza desempenharam um papel importante  — refiro-me principalmente a suas cartas a Chichina Ferreyra, às chamadas Act o s de i  Minist é rio de Industrias e a Pasajes  de Ia guerra revolucionaria (el Con - go) — , ao lado de outras fontes que c onfirmam os ditos e escritos do próprio Che. Constituem um acervo novo e crucial para toda pesquisa contem- porânea sobre Che Guevara. Um segundo acervo encontra-se nos arquivos de Estado dos países envolvidos, direta ou indiretamentè, na vida e morte do Che. Os cubanos não têm arquivos disponíveis: ou p orque não existem, ou porque não os abrem. A única consequência disso é que a versão cub ana documentada dos fatos não se reflete em nenhum trabalho sério. Talvez algum dia Havana decida contar sua versão da história valendo-se de seus arquivos, e não só das lembranças mais ou menos fiéis, mais ou menos geniais, de Fidel Castro. Enquanto isso não ocorre, dis pomos de outros arquivos, mais acessíveis, que

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Che GuevaraA VIDA EM VERMELHO

Í NDICEEste livro.....................................................................................1 Morro porque não morro.............................................................2. Anos de amor e indiferença: Buenos Aires, Perón e Chichina.... 3. Os primeiros passos: navegar é preciso, viver não é preciso.........

4. No fogo com Fidel .......................................................................5. Nosso homem em Havana ..........................................................6. “Cérebro da Revolução”, cria da URSS .........................................7. A bela morte não compensa........................................................ 8. Com Fidel, nem casamento, nem divórcio..................................9. O coração nas trevas de Che Guevara.........................................10. Traído por quem7......................................................................... 11. Morte e ressurreição....................................................................Notas ..........................................................................................Agradecimentos .........................................................................índice onomástico......................................................................

Para Jorge Andrés, que não conheceu os anos 60mas que algum dia viverá tempos melhores

ESTE LIVROUma pesquisa desta natureza requer uma grande multiplicidade defontes. Nenhuma delas é perfeita nem suficiente em si mesma; todas encerram enigmas, defeitos elacunas. Até aquelas aparentemente incontestáveis cartas, anotações ou diários do sujeito mesmo dabiografia apresentam contradições e exigem reserva. Afinal, quem é transparente consigo mesmo? Eacima de tudo, por se tratar de um tema eminentemente político, nenhuma fonte é neutra: todascarregam a marca de seu posicionamento ideológico. O trabalho do historiador, biógrafo ou meroescritor imbuído de curiosidade consiste em agrupá-las, cotejá-las, separar o joio do trigo e buscarconclusões que se baseiem na soma do material, não no material preferidoou mais acessível. Nos últimos anos, diversos estudiosos da vida de Che Guevara vêm desenterrandomaterial inédito, ou publicado em edições restritas de algumas de suas obras. Trata-se de fontes degrande valor, mas não definitivas.Neste texto, materiais de tal natureza desempenharam um papel importante

 — refiro-me principalmente a suas cartas a Chichina Ferreyra, às chamadasAct o s de i  Minist é rio de Industrias e a Pasajes  de Ia guerra revolucionaria (el  Con -go) — , ao lado de outras fontes que confirmam os ditos e escritos do próprioChe. Constituem um acervo novo e crucial para toda pesquisa contem-porânea sobre Che Guevara.Um segundo acervo encontra-se nos arquivos de Estado dos países

envolvidos, direta ou indiretamentè, na vida e morte do Che. Os cubanosnão têm arquivos disponíveis: ou porque não existem, ou porque não osabrem. A única consequência disso é que a versão cubana documentada dosfatos não se reflete em nenhum trabalho sério. Talvez algum dia Havana decida contar sua versão dahistória valendo-se de seus arquivos, e não só das lembranças mais ou menos fiéis, mais ou menosgeniais, de Fidel Castro. Enquanto isso não ocorre, dispomos de outros arquivos, mais acessíveis, que

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contêm um enorme volume de informação extremamente útil no presente trabalho. Esses arquivospertencem a três governos: o dos EstadosUnidos, o da ex-URSS e o do Reino Unido. Cada um deles merece um breve comentário.Os Estados Unidos atravessam um período de grandes mudanças quanto às regras em relação a suaprópria história. Muitos arquivos foram abertos;muitos outros permanecem fechados. Graças ao sistema de bibliotecas presidenciais e universitárias,é relativamente fácil o acesso às informações já liberadas. Com base nos princípios legais deliberdade de informação e de revisão obrigatória (Freedom  of  information  e Mandatory review), pode-se pleitear o acesso à informação restrita. Todos os arquivos e documentos do governo dos EstadosUnidos aqui citados encontram-se à disposição de qualquer pesquisador; basta saber onde procurá-los e dispor dos recursos (modestos, diga-se de passagem) para obtê-los. Seja nas bibliotecaspresidenciais (especialmente a de Kennedy, em Cambridge, Massachusetts, e a de Johnson, emAustin, Texas), seja nos documentos do Departamento de Estado depositados nos Arquivos Nacionaisem College Park, Maryland, e em sua publicação mais ou menos regular intitulada Foreign  Relations  ofthe  United  States  (FRUS), seja, por último, em publicações como o í ndex ofrecendy  declassified  documents da imprensa universitária, qualquer um pode ter acesso aos documentos consultados. Emalguns deles há trechos rasurados (sanitized), mas pode-se pedir uma revisão, que em certos casos éatendida, em outros não. Quem supõe que para a elaboração deste livro contou-se com acessoprivilegiado aos arquivos da CIA, ou de quem quer que seja fora dos Estados Unidos, simplesmentecarece de experiência em pesquisa historiográfica. Os arquivos do Reino Unido foram particularmente úteis neste trabalho por vários motivos muito

simples. Em primeiro lugar, o Foreign Office mantém uma merecida reputação de seriedade e períciana confecção e conservação de seus telegramas e notas. Continua sendo um dos serviçosdiplomáticos e de informação mais competentes do mundo. Em segundo lugar, a partir da ruptura derelações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba, em janeiro de 1961, a embaixada do ReinoUnido passou a ser, de fato, os olhos e ouvidos de Washington em Havana. Enquanto a Suíçagarantia representação oficial dos interesses norte-americanos junto a Cuba, cabia a

Londres escutar, observar e analisar os acontecimentos na ilha, repassando todas as informações a Washington. Emterceiro lugar, embora as notas do MI5 só sejam liberadas ao público depois de meio século, as do Foreign Office de Kew Gardens, em Londres, podem ser consultadas já ao completar trinta anos. Como em muitos casos, e particularmente emCuba durante os anos 60, umas e outras costumavam ser redigidas pela mesma pessoa, os informes remetidos aoserviço exterior de Sua Majestade devem guardar grande semelhança com os que foram enviados ao serviço secreto deSuaMajestade.Por último, convém acrescentar um comentário sobre os arquivos de 

Moscou. Como se sabe, a partir da Perestroika e, sobretudo, do fim do regime soviético, os arquivos da ex-URSS foramabertos e leiloados de maneira sele-tiva e nem sempre racional. Os arquivos do Ministério de Relações Exteriores (MID, porsuas iniciais em russo) estão bem organizados e contêm verdadeiras jóias para o historiador. Neste caso, são de extremointeresse as anotações das conversas entre Che Guevara e vários enviados da URSS a Havana, em especial o embaixadorAlexander Alexeiev e o encarregado de Assuntos Políticos Oleg Daroussenkov. Em 1995, esses arquivos se encontravam àdisposição de qualquer pesquisador de boa-fé, desde que contasse com o mínimo respaldo institucional e com os recursospara cobrir as despesas — não totalmente justificadas — que seu acesso requer. A consulta aos arquivos do PartidoComunista da URSS é um tanto mais difícil: as despesas são maiores, o acesso é mais restrito e arbitrário. Por outro lado,muitos dos documentos ali conservados são cópias dos que se encontram no MID: a confusão entre Partido e Estado naex-URSS não deve ser surpresa para ninguém.

A terceira e última fonte primária que merece comentário consiste nas entrevistas ou na história oral que foi possívelrecolher ao longo da pesquisa. Insisto: nem tudo o que reluz é ouro, e nem tudo o que os protagonistas dizem ouescrevem é verdade. Deve-se trabalhar sobre os depoimentos do mesmo modo que se trabalha sobre um documento,uma estatística ou até mesmo uma foto. Para fazer este livro, pôde-se entrevistar um grande número de pessoas:

em Cuba, na Argentina, na Bolívia, em Moscou, e em lugares muito mais estranhos. Sempre que possível, as entrevistasforam gravadas, embora a transcrição sintetize ou condense as palavras ditas. Em certos casos, por diferentes motivos,não foi possível gravá-las, mas contou-se com a presença de uma testemunha: as anotações contam com o respaldo deum terceiro. Em pouquíssimos casos não foi possível nem gravar, nem contar com uma testemunha: a veracidade dafonte apoia-se na credibilidade do pesquisador, nas citações^qe terceiros e na verossimilhança do depoimento. Todas as entrevistas obtidas para a elaboração desta obra estão aoalcance de qualquer pesquisador: basta procurá-las e contar com o apoio institucional (editorial, universitário ou político)pertinente. Não houve vias privilegiadas de acesso.Alguns leitores poderão se perguntar: como alguém que não viveu a época aqui resenhada, e não conheceu ospersonagens aqui descritos, se atreve a contar esta história? Assumo plenamente minha deficiência: eu não tinha nemquinze anos quando o Che morreu, e suas façanhas e desgraças aconteceram antes de eu chegar à idade da razão. Semdúvida, quem viveu aquele tempo já na idade adulta deve ter muito o que contar; alguns jácomeçam a fazê-lo. Mas a distância também tem suas vantagens. Talvez quem não conheceu de perto aqueles anos de chumbo e glória

possa narrá-los com maior objetividade e precisão do que as pessoas que os sofreram na própria carne. Seja como for, odireito de propriedade não vale neste terreno: o passado que povoa estas páginas pertence a todos nós, para o bem epara o mal. A história é feita por seus protagonistas, mas escrita pêlos escritores: truísmo doloroso, mas irrefutável. ‘

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lMORRO PORQUE N Ã O MORRO  Limparam seu rosto, já sereno e claro, e descobriram-lhe o peito dizimado por quarenta anos de asma e um de fome noárido Sudeste boliviano. Depois o estenderam no leito do hospital de Nuestra Senora de Malta, alçando sua cabeça paraque todos pudessem contemplar a presa caída. Ao recostá-lo na lápide de concreto, soltaram as cordas que servirampara atar suas mãos durante a viagem de helicóptero desde La Higuera, e pediram à enfermeira que o lavasse,penteasse e inclusive escanhoasse parte da barba rala que tinha. Quando os jornalistas e populares curiosos começarama desfilar, a metamorfose já era completa: o homem abatido, iracundo e esfarrapado até as vésperas da morte seconvertera no Cristo de Vallegrande, refletindo nos límpidos olhos abertos a tranquilidade do sacrifício consentido. Oexército boliviano cometeu o único erro da campanha depois de consumada a captura de seu máximo trofeu de guerra.Transformou o revolucionário resignado e encurralado, o indigente da quebrada dei Yuro, vencido por todos os preceitosda lei, envolto em trapos, com o rosto sombreado pela fúria e a derrota, na imagem de Cristo da vida que sucede à morte.Seus verdugos deram feição, corpo e alma ao mito que percorreria o mundo.Quem examinar cuidadosamente essas fotos há de querer entender como o Guevara da escolinha de La Higuera setransfigurou no ídolo beati-ficado de Vallegrande, captado para a posteridade pela lente magistral de Freddy Alborta. Aexplicação vem do general Gary Prado Salmon, o mais lúcido e profissional dos caçadores do Che: Lavaram-no, vestiram-no, acomodaram-no, sob a supervisão de um médico forense. Era preciso mostrar a identidade,mostrar ao mundo que o Che fora der- rotado, que nós o tínhamos vencido. Não seria o caso de mostrá-lo como semprese mostravam guerrilheiros, por terra, cadáveres, mas com expressões que a mim chocavam muitíssimo, uns rostos comoque retorcidos. Essa foi uma das razões que me levou a colocar o lenço na mandíbula do Che: para que não sedeformasse. Instintivamente, todos só queriam mostrar que aquele era o Che, poder dizer: “Aqui está ele, vencemos”.Esse era o sentimento que existia nas forças armadas da Bolívia: que tínhamos vencido a guerra; e que não restassemdúvidas quanto à sua identidade, pois se o apresentássemos como estava, sujo, andrajoso, despenteado e tudo o mais, adúvida teria permanecido.’ O que seus perseguidores evidentemente não previram foi que  a mesma lógica haveria de se impor tanto aos quearquejavam de medo como aos que portariam durante anos o seu luto. O impacto emblemático de Ernesto Gue-vara é

inseparável da noção do sacrifício: um homem que tinha tudo — glória, poder, fam ília e conforto — e tudo entrega emtroca de uma ideia, e o faz sem ira nem dúvidas. A disposição para a morte não é confirmada pêlos discursos emensagens do próprio Che, ou pelas orações fúnebres de Fidel Castro, nem pela exaltação póstuma e imprópria domartírio, mas por uma visão: a de Gaevara morto, vendo seus algozes e perdoando-os, porque não sabiam o que faziam,e ao mundo, asseverando que não há sofrimento quando se morre por ideias.O outro Guevara, cuja fúria não cabia na expressão ou no gesto, dificilmente teria se convertido no emblema do heroísmoe da abnegação. O Che aniquilado, com os cabelos sujos, a roupa rasgada e os pés envoltos em abarcas* bolivianas,irreconhecível por seus amigos e adversários, jamais teria despertado a simpatia e admiração que a vítima deVallegrande despertou.** As três fotos existentes de Guevara preso só circularam vinte anos após sua execução; nemFelix Rodríguez, o agente da CIA que bateu uma delas, nem o general Arnaldo Saucedo Parada, que tirou as outras, asdivulgaram. O motivo mais uma vez era perverso. Embora se tenha admitido, poucos dias após a emboscada do Yuro, que o Che não morrera em combate, era preferível dissimular as provas evidenciando sua execução a sangue-frio, osinstantâneos do Che vivo e prisioneiro. As imagens só foram levadas à telinha nos anos 90, pelas mesmas razões. O Chemorto convencia e não acusava ninguém, mas engendrava um mito inesgotável; o Che vivo, na

melhor das hipóteses, despertava piedade, porém suscitava ceticismo quanto à sua identidade, ouprovava o assassinato inconfessável, embora conhecido de todos. Prevaleceu a imagem do Cristo;desvaneceu-se a outra, sombria e destroçada.Ernesto Guevara conquistou seu direito de cidadania no imaginário social de toda uma geração pormuitos motivos mas antes de mais nada pelo encontro místico de um homem com a própria época.Nos anos 60, repletos de cólera e doçura, outra pessoa teria deixado um leve rastro; o mesmo Che,

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em outra época menos turbulenta, idealista e paradigmática, teria passado em branco. Apermanência de Guevara enquanto figura digna de interesse, investigação e leitura não derivadiretamente da geração à qual pertence. Não brota da obra nem sequer do ideário guevarista; vemda identificação quase perfeita de um lapso da história com um indivíduo. Outra vida jamais teriacaptado o espírito da época; outro momento histórico nunca se reconheceria em uma vida como adele.A convergência existencial se deu por vários caminhos. Um fio condutor da vida de Ernesto Guevara

foi a exaltação da vontade, lidando com o voluntarismo, ou, diriam alguns, a onipotência. Naenigmática e depurada carta em que se despede dos pais, ele próprio se refere a ela: “Uma vontadeque aperfeiçoei com deleite de artista me sustentará as pernas frouxas e os pulmões cansados ”.2 Desde o rúgbi de sua mocidade em Córdoba até o calvário nas selvas da Bolívia, partiu sempre deum critério: bastava desejar alguma coisa para que ela acontecesse. Não existia limite irremovível nem obstáculo insuperável para a vontade: a sua e a dos distintos atores sociais e individuais queencontraria pelo caminho. Seus amores e suas viagens, a visão política e a conduta militar eeconómica se impregnaram de um voluntarismo a toda prova, que autorizaria façanhasextraordinárias, arrebataria vitórias maravilhosas e o conduziria a repetidas e por fim fatais derrotas.As origens desse voluntarismo quase narcisista são múltiplas: seu próprio empenho, a luta perenedo Che contra a asma e um onipresente olhar materno, de adoração e culpa inesgotáveis. Sealguém chegou a acreditar que bastava querer o mundo para tê-lo num átimo, esse alguém foi CheGuevara. Se algo caracterizou seus arautos nos anos 60, esse algo foi a bandeira: “We want the worid, and we want it now”.  Nós Queremos o mundo. e nós queremos ele agora.

outro princípio que governou a vida do Che — a eterna recusa em conviver com a ambivalência, aqual o perseguiria como uma sombra desde a asma infantil até Nancahuazú — também seentrelaçaria com as características comportamentais de uma geração. Os anos 60 significaram, emgrande medida, a negativa a coexistir com as contradições da vida; assistiram a uma perpétua fugapara a frente da primeira geração do pós-guerra, que considerava intolerável a coexistência comsentimentos, desejos e objetivos políticos contraditórios. Quem melhor que o Che para encarnar aincompatibilidade individual e generacional com a ambivalência, para simbolizar a incapacidade deconviver com pulsões dadas de antemão?As ideias, a vida, a obra, até o exemplo do Che pertencem a uma etapa da história moderna, motivopor que será difícil recuperarem no futuro sua atualidade. As principais teses teóricas e políticasvinculadas ao Che — a luta armada e o foco guerrilheiro, a criação do homem novo e o primado dosincentivos morais, o internacionalismo combatente e solidário — virtualmente deixaram de existir. ARevolução Cubana — seu maior êxito, seu verdadeiro triunfo — agoniza ou sobrevive graças aoabandono de boa parte da herança ideológica de Guevara. Porém, a nostalgia persiste: o

subcoman-dante Marcos, dirigente aguerrido e acossado das hostes zapatistas nos fundos vales deChiapas, costuma invocar, gráfica ou explicitamente, as imagens e analogias do Che, sobretudoaquelas que evocam traições ou derrotas. Respondeu à ofensiva das forças armadas mexicanas em9 de fevereiro de 1995 com dois ícones: Emiliano Zapata em Chinameca e o Che em vado dei Yeso e na quebrada dei Yuro.* Em compensação, o intervalo em que o Che se movimentou e alcançou a glória ainda não seencerrou. Continua a provocar saudade como a última convocação das utopias modernas, o últimoencontro com as grandes e generosas ideias de nosso tempo — a igualdade, a solidariedade, alibertação individual e coletiva —, com as mulheres e homens que as encarnaram. A importância deChe Guevara para o mundo e a vida de hoje se verificam por osmose ou por controle remoto.Reside na atualidade dos valores de sua era, jaz na relevância das esperanças e sonhos dos anos60 para um fim de século órfão de utopias, carente de projeto coletivo e dilacerado pêlos ódios etensões próprias de uma homogeneidade ideológica sem jaca. Seu instante de fama sobrevive aoChe, e ele, por seu turno, confere luz e sentido a esse momento cuja memória empalidece masainda perdura. Em sua infância e

 juventude, em sua maturidade e morte, jaiem as chaves para decifrar o encontro do homem comseu mundo. Comecemos.A Argentina às vésperas da Grande Depressão não era um mau lugar para se nascer e crescer,sobretudo para quem, como no caso do primeiro filho de Ernesto Guevara Lynch e Célia de Ia Serna y Liosa, provinha de uma aristocracia de origem e sangue, quando não pecuniária. Ernesto Guevarade Ia Serna nasce em 14 de junho de 1928 em Rosário, terceira cidade de um país de 12,5 milhõesde habitantes, muitos deles oriundos de outras regiões. Pelo lado paterno, os Guevara Lynch játinham doze gerações na terra austral: mais que suficiente para merecerem o título de avoengos emum país de imigrantes, em sua imensa maioria recém-chegados. Na genealogia de sua mãetambém luzem as raízes e a distinção; além disso que a família De Ia Ser-na possuía terras e,portanto, dinheiro.Por parte do pai, Ernesto tinha sangue espanhol, irlandês (o bisavô, Patrick Lynch, fugiu daInglaterra para a Espanha e dali para a Gobemación do Rio da Prata, na segunda metade do séculoXVIII) e até mexicano-ameri-cano, já que a avó paterna do Che nasceu na Califórnia, em 1868. Opai de Guevara Lynch, Roberto Guevara, também era originário dos Estados Unidos: seus paishaviam participado da corrida do ouro californiana de 1848, embora tivessem retornado poucos anosdepois à terra natal com os filhos. Mas para além de seu lugar de nascimento, os Guevara eramargentinos de cepa. O ramo Guevara Lynch da família se confundia com a história da aristocracialocal; Gaspar Lynch foi um dos fundadores da Sociedade Rural Argentina — verdadeiro Conselhode Administração da oligarquia latifundiária do país — e Enrique Lynch erigiu-se em um de seus

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baluartes durante as crises económicas que fustigaram a agricultura local em fins do século XIX.Ana Lynch, liberal e iconoclasta, seria a única avó que o Che conheceria, e a relação com ela omarcaria em profundidade. A decisão do neto de estudar medicina em vez de engenharia derivaparcialmente do falecimento de Ana, a quem ele assistiu no leito de morte.Do lado materno, o vínculo com o torrão natal remontava ao general José de Ia Serna e Hinojosa, último vice-rei do Peru, cujas tropas foram derrotadas por Sucre na batalha de Ayacucho.’ Filha deJuan Martín de Ia Serna e Edelmira Liosa, Célia não havia completado 21 anos quando se casou,

em 1927, com o jovem ex-estudante de arquitetura. Seus pais faleceram anos antes: don Juan,assim que Célia nasceu, segundo uma de suas netas, suicidou-se em alto-mar ao saber que sofriade sífilis;4 Edelmira,algum tempo depois. Na realidade, Célia foi criada por uma irmã mais ve-lha, Carmen de Ia Sema, que se casou em 1928 com o poeta comunistaCayetano Córdova Itúrburu; antes fora noiva do poeta mexicano AmadoNervo. Tanto Carmen como Córdova permaneceram nas fileiras do Par-tido Comunista Argentino durante catorze anos, ela talvez com mais fer-vor que o marido.5 A família de Célia era “endinheirada”, como reconhecia sem rubor oseu marido; o pai, “herdeiro de uma grande fortuna [...] possuía várias estân-cias. Homem culto, muito inteligente, militou nas fileiras do radicalismo”,participando na “revolução de 1890”.6 Embora a fortuna familiar devesse ser

repartida por sete, dava para todos. Os Guevara de Ia Serna viveriam muitomais das diversas rendas e heranças de Célia que dos disparatados e siste-maticamente falidos projetos empresariais do chefe da família. Ainda que am a’i  tivesse dado a Célia uma educação católica clássica na escola do Sagra-do Coração, logo o ambiente livre-pensador, radical ou francamente deesquerda do lar de sua irmã a transformaria numa personagem à parte: femi-nista, socialista, anticlerical.* Participava das infinitas reuniões celebradasem sua casa, d ,s diversas lutas travadas pelas mulheres argentinas ao longodos anos 20;** tanto antes como depois do casamento conservou um perfilpróprio, que dura.ia até sua morte, em 1965.Essa mulher excepcional foi sem dúvida a figura afetiva e intelectualmais importante na vida do filho mais velho, pelo menos até o encontrodeste com Fidel Castro no México, em 1955. Ninguém desempenhou na

vida do Che um papel equivalente ao de Célia, sua mãe, nem o pai, nem asesposas ou os filhos. A mulher que conviveu durante vinte anos com o peri-go e o estigma do câncer; a militante que pouco antes da morte passou sema-nas no cárcere em razão do sobrenome que partilhava com o filho; a mãe queeducou e manteve cinco crias quase por conta própria impôs uma marca àvida de Che Guevara a que só Castro pôde se igualar, durante um breveinteriúdio na vida dos dois. Nada ilustra melhor a glória e a tragédia da sagade Guevara que seu lamento dilacerado no coração das trevas ao receber noCongo a notícia da morte da mãe:Pessoalmente, no entanto, [Machado Ventura] trouxe-me a notícia maistriste da guerra: em comunicação telefónica de Buenos Aires, informavam queminha mãe estava muito enferma, em um tom que deixava presumir que eraapenas um anúncio preparatório... Tive de passar um mês nessa triste

incerteza, aguardando os resultados de algo que esperava mas com a esperançade que houvesse um equívoco, até que chegou a confirmação do falecimentode minha mãe. Ela quisera ver-me pouco antes de minha partida, possivel-mente sentindo-se doente, mas não fora possível, pois minha viagem já esta-va bastante adiantada. Não chegou a tomar conhecimento da carta de despe-dida deixada em Havana para meus pais; só a entregariam em outubro, quandominha partida tornou-se pública.* Não pôde despedir-se dela, nem guardar o luto que sua dor impunha. Arevolução africana, as enfermidades tropicais ferozes e as eternas divisõestribais dos descendentes políticos de Patrice Lumumba o impediam. Céliafalece em Buenos Aires, expulsa do hospital onde jazia no leito de morte; osdonos da clínica se recusaram a albergar a mãe que parira Che ’Guevara 37anos antes. Che carrega seu pesar nas colinas da África, desterrado de sua

pátria adotiva pêlos próprios demónios internos e pelo fervor idealista queherdou da mãe. Morrerá poucos anos mais tarde: duas mortes demasiadopróximas.A Argentina onde o menino Ernesto vem à luz era ainda em 1928 umpaís dinâmico, em plena ebulição, abençoado por um aparente idílioeconómico e inclusive político que rápido se dissiparia. Durante os anos 20

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ela é tão legitimamente comparável aos ex-domínios ingleses brancos comoaos demais países latino-americanos. As vésperas da Primeira GuerraMundial, seus principais indicadores sociodemográficos se assemelhavammais aos da Austrália, Canadá e Nova Zelândia que aos da Colômbia, Peru, Venezuela ou México.* Recebera um volume de investimentos diretos estrangeiros três vezes superior ao do México ou doBrasil; em número de vias férreas por mil habitantes, embora inferior em 50% ao da Austrália e aodo Canadá, superava amplamente os seus vizinhos de hemisfério.7 Em 1913, a renda per capitaargentina era a décima terceira do mundo, um pouco superior à da França. A conflagração europeiae a expansão desenfreada dos anos 20 não alterariam essa classificação. Ainda que as dificuldadesargentinas — industrialização raquítica, superendividamento externo, setor de exportação altamentevulnerável — logo fossem arruinar as pretensões moder-nizantes das elites locais, o país ondenasce Che Guevara transpira uma afortunada e merecida autoconfiança. Aspira — com razão — asua inclusão em um Primeiro Mundo avant Ia lettre, despreocupado dos vergonhosos sinaiseconómicos e sociais que já se perfilavam no horizonte.** A introdução do sufrágio universal secreto (para homens e cidadãos argentinos) em 1912 deu lugar,quatro anos mais tarde, ao triunfo eleitoral da União Cívica Radical e seu legendário paladino,Hipólito Yrigoyen. Este logrou sua eleição meses antes do nascimento do Che, em 1928, ao fim dointerregno de Marcelo T. de Alvear. Porém, o yrigoyenismo não pôde satisfazer às enormesesperanças que despertou nas camadas médias emergentes do país e no seio da nova classetrabalhadora portenha — uma eclética e instável mescla de argentinos de segunda geração,interioranos e imigrantes.*** A pressão da direita, o desencanto das classes médias e os estragos

causados pela Grande Depressão puseram termo ao fugaz lapso democrático: em 1930 o exércitoconsumou o primeiro golpe de Estado do século que destituiu um governo latino-americano democraticamente eleito. Em(*) A taxa de mortalidade infantil da Argentina, por exemplo, era nessa época de 121 por mil, a daColômbia de 177, a do México de 228, a do Chile de 261, e a da Austrália de 72. A porcentagem dehabitantes do país que viviam em grandes cidades chegava a 31 %, ao passo que a cifracorrespondente no Brasil era de 10,7% e no Peru de 5% (Victor Bulmer-Thomas, Economic history  ofLatin  Am é rica, Nova York, Cambridge University Press 1994, p. 86).(**) “A Argentina conseguiu um sólido crescimento industrial em quase todos os anos da década de20 [...] expandindo rapidamente a produção de hens de consumo duráveis e não duráveis(sobretudo têxteis) à custa das importações. As indústrias intermediárias, como a refinação depetróleo, a indústria química e a metalurgia, também floresceram; apenas a construção civilpermaneceu abaixo dos níveis à guerra” (ibidem, p. 189).(***)0paido voto não foi um dosdesiludidos; deu seu primeiro voto, em 1919, ao Partido Socialista

Argentino.seu lugar as forças armadas puseram o general José Felix Uriburu; depois do fracasso de seuprojeto filofascista, suceder-se-ão governos fraudulentos, até que em 1943 o ciclo se encerrará comum novo golpe de Estado. A alternância de governos civis com governos militares caracterizará avida política argentina até 1983.O nascimento de Ernesto filho aconteceu em Rosário por razões circunstanciais. Seus pais, depoisdo casamento em Buenos Aires um ano antes, partiram para Puerto Caraguatay, no alto Paraná,território de Misiones. Ali Ernesto pai se propusera cultivar e explorar uns duzentos hectaressemeados de erva-mate, o chamado ouro verde, que proliferava nessa região da Argentina .* Já comCélia grávida de sete meses, dirigiram-se a Rosário, o centro urbano de certa dimensão maispróximo, tanto para que o parto se consumasse ali como para estudar a possibilidade de comprarum moinho ervateiro. O projeto agrícola do erval naufragou rapidamente enquanto iniciativaempresarial, o que ocorreria com frequência nos anos vindouros. O pequeno Ernesto nasce de oitomeses, fraquinho e sujeito a deslocamentos constantes que o acompanharão por toda a vida; a

família logo abandonará a zona de Misiones. Guevara Lynch também era sócio de um estaleiro emSan Isidro, perto de Buenos Aires.Aí ocorre o primeiro ataque de asma de Ernestinho, semanas antes de ele completar dois anos, em2 de maio de 1930. Segundo relata o pai do Che, sua esposa, nadadora competente e tenaz,costumava levar o filho ao Clube Náutico de San Isidro, às margens do rio da Prata. O pai da vítimanão deixa muitas dúvidas sobre sua interpretação da responsabilidade pela desgraça:“Numa fria manhã do mês de maio, quando ainda por cima ventava muito, minha mulher foi banhar-se no rio com nosso filho Ernesto. Cheguei ao clube à sua procura com a intenção de levá-los paraalmoçar e encontrei o pequeno em trajes de banho, já fora da água e tiritando. Célia não tinhaexperiência e não percebeu que a mudança de tempo era perigosa naquela época do ano”.** (*) O próprio Ernesto Guevara Lynch fornece as versões sobre a origem dos recursos que lhepermitiram adquirir o erval de Puerto Caraguatay. Em seu livro Mi f ujo el  Che, diz que recebera umaherança do pai e pensava utilizá-la para comprar terras em Misiones. Essa versão é retomada poruma fonte oficial cubana, o Acios histórico, bio g ráfico y  militar de  Ernesto Guevara, t. l, publicado em

Havana em 1990 (p. 25). Porém, em uma longa entrevista com José Grigulevich, incluída no livro jácitado (I. Lavretsky), o pai do Che diz textualmente:“Célia herdou uma plantação de erva-mate em Misiones” (p. 14).(**) Ernesto Guevara Lynch, op. cit., p. 139. Em outra versão, Guevara pai trocou os papéis, contudomanteve a atribuição de culpas: “Em 2 de maio de 1930 Célia e eu fomos na- Todavia, esse não foi o primeiro mal pulmonar do menino; quarenta dias depois de nascer, ele foi

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atacado por uma pneumonia que, segundo Ercilia Guevara Lynch, sua tia, “quase o mata”.8 Essaprimeira infecção respiratória põe em dúvida a explicação paterna sobre a etiologia da asma do Che; o mencionado resfriado tinha seus antecedentes. De qualquer modo, desde o primeiro ataque àbeira do rio da Prata até junho de 1933 as crises asmáticas de Ernestinho se dariam quasediariamente, de maneira exasperante e devastadora para os pais, mas acima de tudo para Célia,que afora a carga desigual que suportava nos cuidados para com o enfermo, carregava uma fortedose de culpa. Somavam-se à que seu marido lhe atribuía pelo incidente no rio, os antecedentes

hereditários, de que na época apenas se suspeitava mas de que hoje se tem certeza. Célia foraasmática na infância; havia, portanto, 30% de chance de que um de seus filhos padecesse dadoença; tudo indica que foi o que ocorreu com Ernesto. A pneumonia aos quarenta dias de vida e oresfriado no Clube Náutico podem ter agido como detonadores de uma grande predisposiçãogenética, mas não provocaram a asma.Os três anos transcorridos entre o surgimento e a estabilização da doença parecem ter marcado ocasal de modo acentuado e, indiretamente, o filho; os relatos de familiares, amigos e dos própriospais do Che são comoventes.* Foi sem dúvida durante esse período que Célia construiu sua relaçãomaternal entremeada de obsessão, culpa e adoração — relação que muito em breve engendrariauma espécie de educação particular, à qual o Che deveria, pelo resto da vida, seu gosto pela leiturae a curiosidade intelectual insaciável.A família perambularia pela Argentina ao longo de cinco anos, buscando uma moradia quebeneficiasse a saúde do menino ou ao menos não a agravasse. Finalmente a encontrariam em AltaGracia, uma estância de veraneio a quarenta quilómetros da cidade de Córdoba, nas encostas da

sierra Chica, a seiscentos metros de altitude. O ar seco e límpido, que atraía turis- dar com Teté. O dia ficou frio, passou a ventar e logo Teté começou a tossir. Nós o levamos aomédico, que diagnosticou asma. Talvez já estivesse resfriado, ou quem sabe herdou a enfermidade,

 já que Célia fora asmática quando criança” (Lavretsky, op. cit., p. 15).(*) A mãe do Che confirma, por exemplo, os cuidados do pai com o menino. “Aos quatro anosErnesto já não resistia ao clima da capital. Guevara Lynch [assim se refere ao marido depois daseparação] acostumou-se a dormir sentado à cabeceira de seu primogénito, para que ele, recostadoem seu peito, suportasse melhor a asma” (Célia de Ia Serna, testemunho publicado em Granma, Havana, 16/10/67, p. 8). Célia morreuem 19deabrilde 1965;oteste-munho obviamente foi recolhidoanos antes de ser divulgado.tas e tuberculosos, moderou as crises asmáticas de Teté, embora não as tivesse curado nemespaçado sensivelmente. A enfermidade ficou sob controle graças ao clima de Alta Gracia, aoscuidados médicos e à personalidade do menino. E, sobretudo, à excepcional devoção e carinho desua mãe.

Nessa montanha mágica ao pé da serra de Córdoba cresceria Ernesto Guevara de Ia Serna, com opai consagrado à construção de casas no . pequeno município e a mãe à criação e educação domenino e suas duas irmãs, Célia e Ana Maria, e o irmão menor, Roberto; o caçula dos Guevara deIa Serna, Juan Martín, nasceria mais tarde em Córdoba. Tudo isso configurava um oásis deintrospecção e placidez, em meio a um país que se despedia dos anos dourados e ingressava, juntocom o mundo, nas desgraças da Depressão e em suas inesperadas sequelas políticas. A crisemundial de 1929 não só destruiu as pretensões ervateiras do pai do Che, como também destroçouem poucos anos o mito da Argentina aprazível e próspera. O golpe de 1930 deu início a um longoperíodo de instabilidade política, e a queda dos preços e da demanda internacional dos principaisitens de exportação da Argentina inaugurou uma interminável letargia económica, só interrompidapelo breve boom das matérias-primas no imediato pós-guer-ra. Porém, a crise inaugurou tambémuma época de mobilização social, de polarização ideológica e transformações culturais a que nemAlta Gracia nem as eli tes protegidas e ilustradas de províncias como Córdoba poderiam ficarimunes.

Em um primeiro momento, as exportações dos produtos do pampa não sofreram a catástrofe docobre chileno ou do café brasileiro, por exemplo. Não obstante, na Argentina, os rendimentosrelativos à exportação se reduziram em 50% entre 1929 e 1932, e o colapso não foi menosdemolidor e prenhe de consequências que em outros países da região. Ele teve um duplo efeito nasociedade austral. Por um lado, a crise gerou considerável desemprego agrícola, basicamente dearrendatários impossibilitados de cumprir os termos de seus contratos; por outro, as restrições àsimportações por causa da escassez de divisas e crédito externo ativaram o desenvolvimento de umaindústria manufatureira nacional, tanto de bens de consumo como de alguns bens de produção.Esse fenómeno contribuiu para o crescimento acelerado da classe operária argentina. Duas cifrasindicam a transformação social desse período: em 1947, 1,4 milhão de imigrantes procedentes daszonas rurais haviam acorrido a Buenos Aires, e meio milhão de operários tinham se incorporado aoproletariado, duplicando seus efetivos em apenas uma década.Os migrantes constituiriam os famosos cabecitas negras; os operários, uma nova classetrabalhadora, menos forasteira e menos branca que a dos princípios do século, mais vinculada àindústria nacional que ao processamento de artigos de exportação, mais afastada da classe médiatradicional que a da idade de ouro do yrigoyenismo. O fosso entre os segmentos médios ilustrados etradicionais, de um lado, e o novo estamento operário, de outro, se refletiria, dez anos mais tarde, nodesencontro entre a esquerda argentina socialista, intelectual e pequeno-burguesa e o peronismo em ascensão, populista e irreverente.Os anos de Ernesto em Alta Gracia apenas começavam, mas muito em breve algumas de suas

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principais características transpareceriam. A primeira que salta à vista se baseia na continuidade daperpétua peregrinação, agora reduzida ao perímetro da cidadezinha de veraneio. Segundo Roberto,o irmão mais novo do Che, depois de residir seis meses no Hotel Grutas a família mudou-se, em1933, para Vilia Chichita; dali iria para uma casa mais ampla, Vilia Nydia, em 1934, e em seguidapara Chalet de Fuentes, em 193 7, Chalet de Ripamonte, em 1939, e novamente Vilia Nydia em1940-1. Para Roberto Guevara tantos deslocamentos tinham uma explicação: “Como os contratosvenciam, tínhamos de mudar”.9 Sem dúvida seria absurdo atribuir a futura e extremada inclinação

errante de Che Guevara a esse permanente perambular de sua família. Porém, o constante ir e vircertamente adquiriu uma naturalidade muito peculiar no universo do menino. De cidade em cidadeaté os cinco anos, de casa em casa até os quinze; a normalidade gue-varista residia no movimento,que amenizava a uniformidade dos outros aspectos de sua existência. Também reavivava aesperança de começar de novo e superar tensões familiares — afetivas, financeiras — que não fal-tavam no agora mais populoso lar de Ernesto e Célia.E nessa época que a relação de Célia e Teté se torna essencial na vida dos dois e ultrapassalargamente, em intensidade e proximidade, o vínculo de Ernestinho com o pai e das outras criançascom a mãe. A enfermidade de Ernesto filho explica-o em grande parte: nada como a culpa e aangústia de uma mãe em relação ao filho para gerar uma devoção maternal sem limites. A simbioseentre Célia e o Che, que alimentaria a correspondência, a existência afetiva e a própria vida deambos durante os trinta anos seguintes, inicia-se nesses anos lânguidos de Alta Gracia, quandoErnesto aprende, no colo da mãe, a ler e escrever, a vê-la e sobretudo ser visto por ela. Essarelação chega a tal ponto que quem conheceu Ernesto e os irmãos na juventude se assombra com

as diferenças físicas e de caráter entre eles, muito anteriores àcelebridade do filho maior e à sombra que inevitavelmente projetaria sobre os demais integrantes dafamília. Qual o motivo? A explicação talvez esteja no olhar de Célia, repleto de culpa, angústia eamor no caso de Ernesto, de simples carinho maternal no caso dos demais.10 Outro sinal distintivo desse prelúdio da adolescência deriva do primeiro: consolida-se de modo maispreciso o papel do chefe da família. Guevara Lynch era, simultaneamente, um grande boémio, umformidável amigo dos filhos, um provedor medíocre e um pai distante e indiferente. Sem dúvida sãoautênticas suas recordações sobre as horas passadas com o filho, nadando, jogando golfe, dando-lhe atenção e falando-lhe da vida. Mas também o eram o desligamento durante o resto do tempo e adisplicência ante as necessidades do menino e da família. Enquanto a mãe fazia as vezes de pro-fessora, organizadora do lar e enfermeira, Guevara Lynch construía casas em sociedade com oirmão e passava longas horas no Sierras Hotel, ponto de reunião e lazer da sociedade abastada deAlta Gracia.* A enfermidade continuava atormentando Ernestinho. Impediu-o de obter uma educação primária

“normal”, substituída pelo empenho didático da mãe: “Eu ensinava as primeiras letras a meu filho,mas Ernesto não podia ir à escola por causa da asma. Só cursaria regularmente o segundo, oterceiro grau; o quinto e o sexto, ele os cursou como pôde. Seus irmãos copiavam os deveres e eleestudava em casa”.” Se o pai de Ernesto desempenhou um papel central foi o de inculcar ao menino um gosto voraz peloesporte e o exercício físico e a convicção de que era possível vencer à base de pura força devontade as limitações e penas que a doença impunha.** Tanto Ernesto pai como Célia eramesportistas, gente que amava o campo e a natureza, e conseguiram transmitir esse gosto ao fi- (*) Decerto os Guevara de Ia Serna saíam juntos, sobretudo ao chegar a Alta Gracia. E sem dúvidanão se pode tomar ao pé da letra testemunhos como o de Rosário Gonzáiez, que trabalhou comoempregada doméstica, encarregada em especial das crianças, entre 1933 e 1938. Mas eles ilustramuma tendência que se aguçaria com o tempo: “Os pais de Ernesto saíam bastante, eram muito denoitadas, iam ao Sierras Hotel todas as noites, desde as sete, para jantar. Chegavam demadrugada, às quatro, às cinco... Todos os dias; isso era frequente. saíam às sete, às oito, iam

embora e não vinham jantar. Os meninos jantavam sozinhos” (Rosário Gonzáiez, entrevista com oautor, Alta Gracia, 17/2/95).(**) Mais uma vez proliferam as interpretações sobre a verdadeira responsabilidade de cada um dospais do Che nessa etapa. Segundo o irmão Roberto, o papel central, inclusive nesse particular,coube à mãe: “Era uma criança muito doente... Mas conseguiu se impor à doença com seu caráter eforça de vontade. Houve nisso muita influência de minha mãe” (Roberto Guevara de Ia Sema, testemunho reproduzido em Cupull e Gonzáiez, op. cit., p. 82).lho. Como este precisava realizar esforços muito superiores aos de uma criança sadia para desfrutarrealmente dos prazeres do exercício físico, desde pequeno começou a desenvolver uma força devontade descomunal. Foram os pais do Che que descobriram o único remédio possível para otormento crónico. Concluíram que o único tratamento razoável consistiria em continuar a medicá-lo eem fortalecê-lo por meio de tónicos e exercícios apropriados, como natação, jogos ao ar livre,passeios pêlos montes, equitação.12 Dessa forma, a crescente e indispensável (para ele) vontade de superação física se transformaria

em traço decisivo da vida do jovem Ernesto. Também o seria a heterogeneidade social do círculo deamizades, o contato frequente dos meninos Guevara de Ia Serna com amiguinhos de diferentesclasses sociais. Entre eles figuravam os caddies*  do  clube de golfe de Alta Gracia e os camareirosdos hotéis, os filhos dos pedreiros das diversas obras de Ernesto pai, assim como as famíliaspobres das redondezas da série de casas que os Guevara foram alugando. Em cada uma delasapareciam multidões de meninos, uns vindos de lares de classe média, outros de origem popular,

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uns brancos como Ernesto e seus irmãos, outros de pele mais escura, ou morochos, como Rosendo Zacarias, vendedor de doces nas ruas de Alta Gracia. Meio século mais tarde, este ainda lembrava(talvez com ajuda do mito de que “o Che era uma criança perfeita, sem problemas”)13 como todosbrincavam sem distinções nem hierarquias. Desde então Ernestinho mostrava uma facilidade notóriapara relacionar-se com gente alheia ao seu meio cultural e social.Das longas horas passadas em casa e na cama nasce a predileção de Ernesto filho pela leitura. Eledevorava os clássicos para leitores infantis de sua idade e época: os romances de aventuras de

Dumas Filho, Robert Louis Stevenson, Jack LondoneJúlio Veme e, naturalmente, de Emílio Salgari. Mas lê também Cervantes e Anatole France, de Pablo Neruda e Horacio Quiroga, e dos poetasespanhóis, Machado e Garcia Lorca. Tanto o pai como a mãe contribuíram para despertar-lhe ogosto pela leitura: Ernesto Guevara Lynch, pêlos romances de aventuras; Célia, pela poesia e, naépoca em que o educou em casa, pelo idioma francês. Na escola propriamente, Ernesto era apenasbom aluno, segundo as recordações de uma de suas professoras, que o igualavam em inteligênciaàs irmãs menores mas atribuía mais assiduidade a estas.Para a professora Elba Rossi Oviedo Zelaya, Ernestinho viveu dois vínculos familiares distintos coma educação: o de Célia, sempre presente, fis- (*) Rapazes que carregam os tacos e o equipamento dos jogadores. (N. T. ) calizando de perto a instrução do filho, e o de Ernesto pai, mais distante. Diz a educadora sobre omenino Che:Conheci apenas a mãe. Ela era realmente muito democrática, uma senhora que não se incomodavaem pegar um menino qualquer, levá-lo até sua casa, colaborar com a escola... tinha um

temperamento adorável. Ia à escola todos os dias e a todas as reuniões de pais, com todos osmeninos no carrinho, e no caminho outras crianças se juntavam a eles. O pai era um senhor bemdistinto que vivia no Sierras Hotel, pois era gente de família. Devo tê-lo visto alguma vez por acaso;não ia à escola, não falava com as professoras. Sei apenas que frequentava bastante o Sierras,porque naquela época era o melhor hotel de Alta Gracia. Com ela falamos várias vezes, dequestões escolares e outras coisas. Tudo era com ela; ele, se foi à escola, eu nunca vi;talvez o tenha visto alguma vez, alguém pode ter dito que se tratava do senhor Guevara .14 Talvez os dois aspectos mais notáveis da passagem de Ernesto por algumas escolas públicas deAlta Gracia, onde cursou o primário — a San Martín primeiro, a Manuel Solares depois —, se devamà atitude dos pais e às consequências do fato de frequentar justamente escolas públicas, nos anosdo ocaso da Argentina oligárquica. O Che se impressionaria sobretudo com a tensão entre um paísainda homogéneo e uma incipiente diversidade que já se chocava com as tendências igualitárias daeducação pública, laica e obrigatória. A obrigatoriedade do ensino primário não possuía um caráter apenas de princípios; quando a asma impedia o menino de assistir às aulas, sua mãe recebia

requerimentos da autoridade responsável indagando sobre os motivos da ausência. E na escolaErnestinho sofreria os efeitos contraditórios das vertiginosas mutações da sociedade argentina. Osdois colégios de Alta Gracia em que esteve matriculado eram frequentados por crianças dosarredores da cidade, do “campo”, como se dizia comumente nessa região da Argentina: de origemrural, em alguns casos morochos, procedentes de lares humildes, que constituíam a primeirageração escolarizada. A grande diferença entre a Argentina e o resto da América Latina naquelaépoca (exceto o Uruguai e, em menor medida, o Chile) residia na existência dessa insti tuiçãoigualadora por excelência (junto com o serviço militar, implantado antes do sufrágio universal): aeducação pública. O imenso fosso que sempre separou o Che adulto de muitos de seus compa-nheiros cubanos e do resto da América Latina, no que toca ao trato e à sensibilidade para cominterlocutores de classes, raças, etnias e padrões educacionais diferentes, nasce desse encontroprecoce com a igualdade. Brotatambém da experiência da diversidade, típica da educação republicana em um continente onde aselites não costumam gozar do privilégio do encontro com os outros.

Contudo, procurar a igualdade não equivale a encontrá-la. O surgimento nos anos 30 de novasclasses sociais, compostas em parte de imigrantes de segunda geração e em parte de gente vindado velho campo dos gaúchos e estâncias, não perdoou nenhum dos setores da sociedade argenti-na. Nas escolas de Ernesto estudavam meninos pobres, de ascendência italiana, espanhola e rural;graças a suas professoras e à excepcional herança cultural recebida de Célia, o Che dispôs deoportunidades únicas e evidentes para defrontar-se com os contornos da desigualdade. Porém,essas mesmas vantagens lhe outorgaram a distinção de ser um prematuro primus  inter po res:  o  menino que, graças à cultura e abastança (relativa) dos pais e à autoconfiança gerada por um larestável e aprazível, gozou do privilégio de se destacar desde muito cedo, de converter-se nodirigente das turmas escolares, de ocupar uma posição de liderança entre os amiguinhos. Avocação têmpora para líder, que muitos admiradores descobrem no Che desde a mais longínquainfância, talvez provenha de seus possíveis dotes de chefe, mas deriva também de uma situaçãosocial privilegiada.* S L^~  Last  but  not  least, remonta a esses anos passados no sossego de Alta Gra-cia o início da

politização do primogénito dos Guevara de Ia Serna. Assim como ocorreu com milhões de jovens eadultos do mundo inteiro, a Guerra Civil espanhola despertou a curiosidade política do menino. Seuinteresse e o acompanhamento das glórias e tragédias de Madri, Temei e Guernica não seconcentrarão nas facetas ideológicas, internacionais ou mesmo políticas da conflagração, mas nosaspectos militares e heróicos. Desde 193 7 ele pren- (*) “Lembro que muitos meninos o seguiam no quintal; ele subia em uma árvore que havia ali,

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grande, e todos os meninos o rodeavam porque ele era como um líder; depois ele saía correndo eos outros iam atrás, já se notava que era o chefe... Devia ser por causa da família, que era umafamília distinta; o menino sabia falar melhor tudo o mais. Percebia-se uma diferença. O fato de elesvirem de Buenos Aires já lhes dava um ar de superiores aos outros. Aqueles meninos vinham deoutro ambiente, tinham se criado de maneira diferente. Por exemplo: não lhes faltava material; paraos meninos mais pobres muitas vezes era preciso conseguir alguma coisa, não tinham lápis de cornem material para pintar; a eles nunca faltou nada. Era uma outra categoria; bem, isso não se

notava, porque não eram de desprezar os outros, em absoluto. Estavam perfeitamente integradosno grupo. Mas falavam melhor, faziam melhor as coisas, os deveres, tudo. Não deixavam deentregar os deveres como as outras crianças, que muitas vezes não têm ajuda em casa, e voltampara a escola sem fazer os deveres” (Elba Rossi Oviedo Zelaya, entrevista com o autor. Alta Gracia, 17/2/95).dera um mapa da Espanha na parede de seu quarto, onde seguirá a marcha dos exércitosrepublicano e franquista, e construirá no jardim de casa uma espécie de campo de batalha, comtrincheiras e montes.15 Vários fatores contribuirão para fazer da causa da República espanhola ocrisol da consciência política do prematuro aficionado das atualidades mundiais.Em 1937 seu tio Cayetano Córdova Itúrburu partiu para a Espanha. Jornalista e membro do PartidoComunista Argentino, foi contratado como correspondente estrangeiro pelo diário Crítica, de BuenosAires. A tia Carmen viajou com os dois filhos para Alta Gracia; foi viver com a irmã durante a estadiado marido na Espanha. Assim, todos os despachos, comentários e artigos transmitidos do front porCórdova Itúrburu passavam pelas vilas e chalés dos Guevara em Alta Gracia. A chegada de notícias

de além-mar se transformava em um acontecimento; o conteúdo delas aumentava ainda mais aexcitação. As vezes Córdova mandava também revistas e livros espanhóis, os quais reforçavam ainformação detalhada que aterrissava na imaginação do pequeno Ernesto, onde ficaria gravada parasempre.Outro fator importante na conscientização do Che foi a chegada a Cór-doba e depois a Alta Graciade várias famílias expulsas da península Ibérica. A mais significativa, pela intimidade queestabeleceria com o núcleo dos Guevara, foi a do médico Juan Gonzáiez Aguilar, que despacharapreviamente a esposa e os filhos para Buenos Aires e depois para Alta Gracia. Quando caiu aresistência republicana, o próprio Gonzáiez Aguilar — amigo de Manuel Azana e colaborador deJuan Negrín, último presidente do governo legalista — exilou-se na Argentina. Seus filhos, Paço,Juan e Pepe, se matricularam com o Che no liceu Deán Funes, de Córdoba, em 1942;durante um ano os adolescentes percorreram juntos os 35 quilómetros de Alta Gracia até a escola.A amizade entre as duas famílias durará décadas, e será dos relatos dos Gonzáiez Aguilar, assimcomo de outros refugiados que transitavam por sua casa — o general Jurado, o compositor Manuel

de Falia —, que Ernesto Guevara filho adquirirá boa parte de sua sensibilidade e solidariedade paracom os republicanos. A guerra da Espanha foi a experiência política fundamental da infância eadolescência do Che. Nada o marcou tão fundo nesses anos como a luta e a derrota dosrepublicanos: nem a Frente Popular francesa, nem a expropriação do petróleo no México, nem oNew Deal de Roosevelt, para não falar do golpe argentino de 1943 ou mesmo da jornada de 17 deoutubro de 1945 e do advento de Perón. Os pais transmitiram a Ernesto uma grande parcela das próprias posturas políticas. Concluída aguerra da Espanha e esmagados os republicanos, teria início a Segunda Guerra Mundial; o pai domenino de onze anos fundou a seção local da Ação Argentina, em cujo setor infantil logo inscreveuo filho. Típica organização antifascista, a Ação Argentina fez um pouco de tudo naqueles anos:realizou comícios e levantou fundos em favor dos Aliados, combateu a penetração nazista naArgentina, descobriu casos de infiltração de ex-tripulantes do couraçado alemão GrafSpee  (atracadoà baía de Montevidéu em 1940) e difundiu informações sobre o avanço militar das forças aliadas.Como lembra seu pai, “toda vez que havia um ato organizado pela Ação Argentina ou que tínhamos

de fazer uma averiguação importante, Ernesto me acompanhava”.’

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 A descrição anterior ficaria truncada se não situasse a guerra da Espanha no ambiente argentino daépoca, e em especial no contexto da ascensão de uma direita local nacionalista, católica evirtualmente fascista. Para a intelectualidade argentina dos anos 30, radical, socialista ou comunista,com ou sem raízes italianas ou espanholas, a xenofobia e o conservadorismo de escritores comoLeopoldo Lugones, Gustavo Martínez Zuviría e Alejan-dro Bunge, de publicações como Crisol,Bandera  Argentina  e La Vo z Nacionalista e  sua expressão política em círculos da oficialidade médiado exército constituíam o pior dos inimigos. O nacionalismo argentino dos anos 30 era anti-semita, racista e eugênico, fascista e filo-hitierista. Naturalmente voltou-se para o franquismo a partir de1936.0 discurso xenófobo era-lhe particularmente caro, sobretudo diante do surgimento da novaclasse operária procedente do interior, “negra” e “pele-vermelha”.* O fato de esse nacionalismoconter também sua vertente “social” e “antiimperia-lista”, sua faceta “desenvolvimentista” (emboratodos esses termos sejam anacronismos) e industrializadora, não impedia que a esquerda argentinade velha estirpe o contemplasse espavorida, e com razão.O desenlace desse drama contraria todas as previsões. A ascensão de Perón deixaria, por um lado,os nacionalistas descontentes e, por outro, a esquerda desorientada e órfã de massas. No augedesse nacionalismo con- (*) Lugones finalmente defendeu o fim de toda imigração que não fosse branca, e Bunge, em seuartigo “Esplendor e decadência da raça branca”, assinalava que “todo o vigor da raça [...] dopatriotismo de seus homens superiores e da abnegação do espírito cristão deve voltar-se desde

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agora para restaurar o quanto antes o conceito da bênção dos filhos e das famílias numerosas,particularmente nas classes mais afortunadas” (cit. por David Rock, La Argentina autorit á ria, BuenosAires, Ariel, 1993, p. 117).servador e católico encontra-se parte da resposta ao enigma sobre a reação da esquerda argentina

 — e do Che — diante do principal acontecimento do século no país: a chegada de Perón ao poder.O pequeno Ernesto seguirá os pais, o antiperonismo juvenil dele será tão visceral como o de seusprogenitores, tão engajado como o de seus pares na universidade, tão lógico e a um só tempo

desligado da realidade argentina como o do resto da esquerda portenha. Apenas vinte anos maistarde ele conseguirá fechar o círculo, tornando-se amigo dos representantes de Perón em Havana,em particular de John William Cooke,* e servindo de canal de ligação de Perón inclusive comAhmed Ben Bella, presidente da Argélia, ao solicitar-lhe ajuda para articular uma entrevista daquelecom Gamai Abdel Nasser.17 Quando a família Guevara partiu para Córdoba, em 1943, já estavam cristalizados os principaistraços da infância e adolescência do Che. A casa permanecia sempre aberta; por ela desfilavamcrianças, amigos, visitas e inclusive pessoas de passagem, tudo numa grande desordem regidaapenas pela hospitalidade para com os forasteiros e pela liberdade da criançada da família.Velocípedes e bicicletas circulavam pelo interior da residência, almoçava-se a qualquer hora e nãofaltavam convidados. Não sobrava dinheiro; parte do caos doméstico brotava das dificuldadeseconómicas do casal — nunca angustiantes, mas constantes —, assim como da ausência deErnesto pai e da indiferença de Célia por esse género de assuntos. A ampla liberdade para ascrianças — de almoçar a qualquer hora, convidar a multidão de amigos, guardar os pertences como

e quando quisessem — tinha como contrapartida uma certa falta de estrutura. As consequênciasdessa desordem fizeram-se sentir mais intensamente quando os laços que uniam o casal Guevarade Ia Serna passaram a se tornar frágeis.Um ano antes de toda a família se mudar para Córdoba, Ernesto foi matriculado pêlos pais noColégio Nacional Deán Punes, escola secundária pública de qualidade, ligada ao Ministério daEducação. Os membros da(*) A amizade entre o Che e Cookè teve início quando este chegou a Cuba em 1960, tendo sidorecebido por Guevara no aeroporto de Havana. Foi selada em 25 de maio de 1962, em um atoconjunto dos argentinos em Cuba, celebrando o dia da independência de seu país (cf. ErnestoGoldar, “John William Cooke: de Perón ao Che Guevara”, Todo es historia, Buenos Aires, jun. 1991,vol. 25, n” 288, p. 26).elite local — à qual Ernesto pertencia por direito — costumavam estudar no Col égio Montserrat; osda classe média emergente preferiam o Deán Funes. A escolha dos pais se revelou afortunada.Ernesto conviveria durante cinco anos com jovens de diferentes origens sociais e profissionais.

Claro que não se deve exagerar; nos anos 40, Córdoba era uma cidade relativamente homogénea,branca e burocrática, inserida em uma província agrícola ainda próspera e onde a segregaçãogeográfica dissimulava as inegáveis diferenças sociais. Porém sua população já disparara. Passoude 250 mil habitantes em 1930 para 386 mil em 1947: um crescimento vertiginoso e nunca visto nacidade. Os habitantes de renda mais baixa, recém-chegados do campo e dedicados à prestação deserviços, se aglomeravam na periferia. Em alguns bairros, as moradias rústicas dos pobresconfinavam com a cidade “bonita”. A industrialização viria depois, com a chegada da indústria auto-mobilística, em fins da década de 40.Iniciava-se uma nova etapa para o Che, tanto na escola como na eterna luta contra a asma: emCórdoba ele começou a participar ativamente de competições esportivas organizadas, e sobretudo a

 jogar rúgbi. Era o esporte preferido da Argentina angiófila: violento e cerebral. Algumas partidas serealizavam no Lawn Tennis Club, onde Ernesto também jogou ténis e golfe, e praticou natação. Ali oimberbe estudante secundarista fez amizade com dois irmãos: Tomás, da mesma idade que ele, eAlberto Granado, seis anos mais velho, com os quais viveria aventuras decisivas. Tomás foi o

grande amigo da adolescência; Alberto, o da juventude, das viagens e da abertura para o mundo.Juntos fizeram o colegial, tiveram os primeiros casos amorosos e se viram expostos à efervescênciapolítica que sacudiu a vida do país a partir de 17 de outubro de 45: a irrupção de Perón, doscabecitas negras e do autoritarismo argentino, católico e conservador.O rúgbi tinha duas implicações para o jovem asmático, já marcado pêlos estragos pulmonaresclássicos na enfermidade respiratória. Por um lado, constituía um excepcional desafio. Já então sesabia que, de todos os fatores que causam crises asmáticas, a prática de exercícios vigorososprovoca a maior incidência de ataques.* Superar as crises e controlá-las com a vontade, um inalador ou mesmo injeções de epinefrina, tudo isso logo se converteu em um tipo de comportamento queGuevara adotaria até o último de seus dias. Ao mesmo tempo, o rúgbi atribui aos jogadores váriospapéis(*) “O exercício físico é o desencadeador mais comum da asma. Oitenta por cento dos doentes deasma sofrem algum tipo de estreiteza do peito, tossem ou ofegam ao se exercitar” (Thomas F. Plant, Children  withasthma. Nova York, Pedipress, 1985, p. 56).

e funções, uns mais exigentes que outros. A posição de meio-scrum* tinha para Ernesto a grandevantagem de ser a mais estática e estratégica, menos móvel e tática. A posição escolhidabeneficiaria Ernesto de duas maneiras:dando-lhe oportunidade de desenvolver seus dotes de líder e estrategista e permitindo-lhe jogar semter de atravessar o campo durante a partida inteira. Isso não significa, evidentemente, que osacessos não acontecessem. As vezes o surpreendiam ao longo da partida, obrigando-o a refugiar-

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se na arquibancada, onde ostensivamente ele mesmo se aplicava uma injeção de adrenalinaatravés da roupa, talvez para chamar atenção.18 O desafio era enorme e ao mesmo temposuperável, dadas determinadas condições — uma combinação que haveria de perdurar na vida deGuevara, tanto quanto a asma, pois, ao contrário do que ocorre em muitos casos de asma infantil, osofrimento do Che não se esvaneceu com a idade.As explicações psicanalíticas para a etiologia da asma não têm aceitação entre os médicos ;** adoença é acima de tudo hereditária. As interpretações baseadas na angústia do doente, em sua

incapacidade de exteriorizá-la e na impossibilidade de enfrentar a ambivalência geradora da afliçãotalvez sirvam mais para explicar a permanência da enfermidade que a sua origem. Sãoespecialmente sugestivas para se compreender a evidente dificuldade do Che, ao longo de toda avida, com emoções ou desejos contraditórios, na família, na escola, nos amores e inclusive empolítica. A asma seria a resposta do Che para uma angústia recorrente e primária, impossível de serexteriorizada ou verbalizada e que, contida, provoca o sufocamento. A angústia, por sua vez, surgiae se exacerbava com a frequência e a ubiqüidade da ambivalência, inadmissível para Ernesto

 justamente pela angústia que desencadeava. A única cura possível — que ele j amais alcançaria —seria esquivar-se da ambivalência recorrendo à distância, à viagem e à morte.Entre os fatores que provocam a asma figuram vários de origem fisiológica — as infecções virais, oexercício físico, o pó ou qualquer elemento(*) “O meio-scrum é uma ligação entre o ataque e a defesa [...] E o homem que inicia a jogada deataque [...] e o mais indicado para constituir-se em líder dentro do campo, pois cons-tantemente deve dar ordens aos atacantes [...] Sua função não requer velocidade, mas controle de bola [...] 

Exigia-se dele uma função estática, na qual não corria o risco de ficar sem fôlego” (Hugo Gambini, Ei Che Guevara, Buenos Aires, Paidós, 1968, p. 48).(**) “A asma provém de um complexo conjunto de fatores fisiológicos que ainda nãocompreendemos em sua totalidade. Mas podemos afirmar com certeza que não é produto de umarelação irregular entre mãe e filho ou qualquer outro problema psicológico, como foi sugerido nopassado” (Plant, op. cit., p. 62).que cause alergia e as mudanças de clima —, aos quais se somam problemas emocionais: ostormentos afetivos, a sensação de perigo iminente, a expectativa, situações conflitivas, aparentemente sem saída e nas quais toda alternativa implica custos. O vínculo entre a dilataçãodos brônquios contraídos e a adrenalina leva situações que acarretam descargas endógenas deadrenalina — como o combate, por exemplo — a evitar crises, enquanto outras, que requeremdecisões, podem desencadeá-las justamente em virtude da ausência de descargas endógenas deadrenalina.19 Se essa interpretação está correta, ajuda em grande medida a elucidar a incapacidadedo Che para aceitar a presença simultânea dos contrários em sua vida: os problemas e o

distanciamento dos pais, a contradição intrínseca do peronismo, a ambiguidade da relação dele comChichina Ferreyra. Por fim, Guevara não poderia conciliar os imperativos da sobrevivência daRevolução Cubana com as épicas e notáveis aspirações humanistas e sociais que lhe quis incutir.20 Com base em seus boletins escolares, ficamos sabendo que Ernesto era um estudante mediano,tendo se destacado em humanidades. Em 1945, seu quarto ano de colegial, por exemplo, distinguiu-se em literatura e filosofia;obteve notas medíocres em matemática, história, química, e verdadeiramente desastrosas emmúsica e física.21 Sua total falta de ouvido tomou-se proverbial: não diferenciava ritmos nemmelodias, nem jamais se aventurou na dança ou no aprendizado de algum instrumento. AlbertoGranado contaria anos depois como isso se evidenciou em uma viagem que fizeram pela Américado Sul:Tínhamos combinado que eu lhe daria um tapinha cada vez que pudesse dançar, e ele só haviaaprendido o tango, que se pode dançar sem ter ouvido. Era o dia do aniversário dele, e o Che fezum discurso fantástico, que para mim provava que aquele rapaz não era um louco, que tinha alguma

coisa; ele dançava com uma indiazinha, enfermeira do leprosário do Amazonas. E então tocaram“Delicado”, um baião que estava na moda e, além disso, era das músicas preferidas da namoradaque Ernesto tinha deixado em Córdoba. Quando lhe dei o tapinha, lá foi ele, dando os passos dotango. Era o único. Eu não conseguia parar de rir, e quando ele percebeu ficou zangado comigo.”Seu inglês também era sofrível: no quarto ano ficou com média 3,23 enquanto seu francês, aprendidoem casa com Célia, chegou a ser rico e fluente, quem sabe mais ainda rico. Contudo, o seu níveleducacional geral e a cultura do Che, segundo os companheiros, sobressaíam. Ele comprava livrosde todos os ganhadores do Prémio Nobel de literatura; discutia constante-mente com os professoresde história e literatura. Tinha conhecimentos de que os demais nem sequer suspeitavam.24 Seusresultados apenas satisfatórios* deviam-se talvez ao acúmulo de atividades: os esportes, o xadrez (que jogaria a vidainteira, adquirindo uma perícia notável), o primeiro emprego, no Departamento Provincial de Viação,em Córdoba, e depois em Vilia Maria. Como disse seu pai, “era um mago do emprego do tempo”.” Um episódio da época ilustra a generosa e obstinada vocação de Ernesto filho para superar o

abismo que o separava dos setores mais humildes da sociedade de Córdoba e rechaçar asevidências mais flagrantes de injustiça. A rua Chile, onde residia a família Guevara, confinava comuma das favelas mais pobres da cidade. Ali os excluídos e despossuídos, recém-chegados docampo, viviam em casas de papelão e zinco, como em toda a América Latina. No monturovagabundeava um personagem de Dante: o chamado Homem dos Cachorros, um aleijado, privadodas pernas, que se arrastava em um carrinho de brinquedo, ladeado por um par de cães nos quais

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descarregava toda a fúria que seu destino lhe inspirava. Toda manhã, ao sair do buraco na terra quelhe servia de casa, açoitava os cães, que só com grande esforço conseguiam iça-lo até o nível darua. O rosto convulsionado e os ganidos dos animais anunciavam a aparição dele; era umacontecimento no bairro. Um dia, as crianças da favela começaram a zombar do Homem dosCachorros e a apedrejá-lo. Ernesto e seus amigos, que literal e figurati-vamente viviam na rua decima, assistiram ao espetáculo e o interromperam. Ernesto exortou seus conhecidos da favela a darum fim naquilo. O Homem dos Cachorros, em vez de agradecer ao jovem Che, fulminou-o com um

olhar gelado, repleto de um ancestral e irremediável ódio de classe. Nas palavras de Dolores Moyano, que relata o episódio, o disparate deu uma grande lição a Ernesto: os inimigos do homemnão eram os meninos pobres que o apedrejavam, mas os meninos ricos que tentavam defendê-lo .26

Ernesto aprenderia a lição apenas em parte.Esses anos marcam um distanciamento na relação conjugal dos pais e o agravamento dos traços depenúria e desordem já presentes em Alta Gracia. Data de então o romance — mais ou menosconhecido nos restritos círculos de Córdoba, nos quais a família se movimentava — de ErnestoGuevara Lynch com Raquel Hevia, cubana de beleza excepcional, conhecida na cidade comomulher sedutora e alegre.** Não foi a primeira nem a última(*) Há uma certa continuidade em suas preferências escolares: um boletim do primário, datado de1938, atesta que sua melhor média foi em história, seguida por educação moral e cívica, enquanto odesempenho em desenho, trabalhos manuais e música era precário, e os resultados em aritmética egeometria, medianos (ver Korol, p. 35).(**) “Raquel Hevia era fascinante. Era belíssima, e Ernesto estava encantado com ela” (Betty Feijin, 

entrevista com o autor, Córdoba, 18/2/95). das aventuras de Ernesto pai; como recorda Carmen, a prima enamorada do Che, “sabia-se que eleera muito mulherengo; Célia sabia”.27 Atriz de algum talento, a mãe de Raquel se instalara em Córdoba por motivos de saúde. Foi durantea guerra que teve início a relação com Ernesto pai.28 Apesar da notoriedade do caso — “Era umespetáculo em Córdoba” —,29 Guevara Lynch em certa ocasião levou a moça para visitar sua casa,o que certamente não agradou ao Che nem a sua mãe. O incidente marcou a tal ponto Ernesto filhoque, alguns anos depois, quando em meio a uma conversa sua namorada Chichina Ferreyra citou onome da mulher, ele respondeu, cortante e irritado: “Nunca mencione esse nome na minhapresença”.30 Logicamente as tensões no seio do casal Guevara de Ia Serna perduravam e se agravavam, agoraafetando os cinco filhos, três deles já maiores. Como recorda Betty Feijin, contemporânea deGuevara e por muitos anos esposa de Gustavo Roca, um advogado de Córdoba de quem ele setomaria amigo íntimo mais tarde, em Cuba:

A vida familiar era complicada. Lembro-me de quando nasceu Juan Martín, o menor dos irmãos deErnesto, e fui vê-lo. Lembro-me da casa onde viviam;deparei com uma coisa que me pareceu tão desorganizada... dava uma sensação de pobreza, dedescuido. Célia era uma mulher muito inteligente, bastante atraente como pessoa, podia-seconversar muito bem com ela, mas sentia-se que as coisas não iam bem... E ai, uma dessas coisasque as crianças comentam: que Ernesto estava separado. Houve diversos períodos de grandesdivergências conjugais e de problemas financeiros. Inclusive viviam pobremente; bem do ponto devista sociocultural, mas com seriíssimas limitações económicas.* Dolores Moyano desenvolveu uma tese sobre a vida doméstica da família Guevara nessa fase. Emsua solidão, e diante das crescentes dificuldades dos filhos menores para se desenvolver em umambiente caracterizado já não só pela desordem mas também por apuros financeiros e pela crise docasamento, talvez a mãe adoradora e adorada tenha sucumbido à tentação de pôr o filho mais velhono lugar do pai. A primeira separação(*) Feijin, op. cit. O pai do Che alude a essas “divergências conjugais” da seguinte maneira: “A

imprensa mundial [...] se pôs a fazer soar sua charanga de invenções e mentiras. Alguns‘comentaristas’ chegaram a afirmar que em nossa casa minha mulher e eu sentávamos à mesacada qual com um revólver na cintura para dirimir qualquer discussão a tiros. Porém, nada disseramsobre como nos complementamos em tudo o que se referisse à luta pêlos ideais políticos e sociais”(Guevara Lynch, op. cit., p. 105).propriamente dita dos Guevara — provisória, ambígua, relativa — só ocorreria em Buenos Aires, em1947, mas em todo caso seu prólogo já estava em curso.* A complexidade da situação ficou namemória de Carmen Córdova: “Era como se Ernesto [pai] tivesse ido embora, pois decidiu que iria,mas logo reaparecia. Tampouco era uma relação de rompimento do casal ou o fim do casamento”.” Em 1943 nascera o último filho do casal, juan Martín. Sua relação com Ernesto seria representativada adolescência em Córdoba e em seguida da mocidade portenha do Che. Nessa relaçãocomprova-se a teoria de Dolores Moyano: “Eu era como uma espécie de irmão-filho: Ernesto erameu pai e meu irmão ao mesmo tempo. Levava-me para passear, carregava-me nos ombros,brincava comigo e eu o via como meu pai”.32 

Nas outras tarefas da casa — e evidentemente não se tratava apenas de funções domésticas —talvez Célia estivesse começando a solicitar de maneira inconsciente mas firme uma maiorresponsabilidade de seu primogénito e preferido. Segundo um primo irmão de Ernesto, o Che entre-gava sempre à mãe uma parte dos salários provenientes dos variados empregos que conseguira nacapital nessa época. “Tive a impressão de que de algum modo, pouco a pouco, ele começava asubstituir o pai.”33 E provável que essa exigência não se verbalizasse nem chegasse a uma

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formulação explícita; a comunicação entre mãe e filho admitia insinuações e meias palavras. Poucoa pouco, em vista da crescente pressão materna, o jovem Che iria se distanciar; não no que serefere ao carinho ou à dedicação aos pais e irmãos, mas fisicamente. A isso se deveria em parte oinício de suas viagens logo a seguir, com o posterior e interminável perambular pelo mun- (*) Alguns biógrafos a situam algum tempo antes, em Córdoba. Assim, Marvin Resnick, em The  Black  Beret, the  life  and  mearúng  ofChe  Guevara  (Nova York, Ballantines Books, 1970), afirma: “Em1945, quando Ernesto ainda estava no colegial, os Guevara se separaram. O sr. Guevara mudou-se

para outra casa, mas via a esposa e os filhos todos os dias” (p.27).JáDanielJames,emseuCrieGuevara:aí)iogTflprry (Nova York, Stein and Day, 1969), diz que aseparação se deu quando a família chegou a Buenos Aires, em 1947. Martin Ebon, em Crie: themaking  ofa  legend  (Nova York, Universo Books, 1969, p. 15), concorda: a separação ocorreu emBuenos Aires, em 1947. Por fim, Carlos Maria Gutiérrez, talvez o mais qualificado dos biógrafos —embora seu texto jamais tenha sido pubi içado na íntegra —, afirma que a separação ocorreu em1950 (LUÍS Bruschtein/Carlos Maria Gutiérrez, “Los hombres, Che Guevara”, Página 12, BuenosAires, p. l). Não é preciso dizer que nem o próprio pai do Che nem nenhuma das fontes oficiais ouoficiosas cubanas menciona a separação do casal. Aparentemente, preferem manter imaculada, emtodos os sentidos possíveis da palavra, até a mais tenra infância de Ernesto Guevara.do.* Esse enfoque serve também para explicar em parte a decisão inicial de estudar engenharia emCórdoba, quando seus pais e irmãos já tinham se mudado para Buenos Aires. Porém não chegaraainda o momento da separação. Por diversos motivos, que examinaremos depois, ele modificariaseu plano original; seguiria a família até a capital, embora nunca tivesse chegado a lançar realmente

raízes em Buenos Aires.Remonta a esses tempos de colegial o primeiro encontro do Che com Maria dei Carmen (Chichina) Ferreyra. O namoro só se concretizou três anos mais tarde, em 1950, quando Guevara cursavamedicina na Universidade de Buenos Aires. Mas nesse período o grupo de amigos de Ernesto jácomeça a convergir com o de Chichina: muitos primos e primas dela são também próximos deGuevara, dos Granado e de outros do mesmo círculo de amizades. Convergência, não assimilação.O Che veste-se de maneira diferente (até provocativamente desarrumada), tem gostos distintos euma cultura muito superior. Em alguma parte recôndita de sua psique assoma uma ténuepolitização, nesse momento ainda revestida de um tom exclusivamente emocional: simpatia esentimentos nobres para com os menos favorecidos que ele; disposição de lutar por todos os meios,mas sem saber muito bem para quê, nem por quê.Um dos episódios mais citados da biografia do Che é o que Alberto Granado relatou: sua própriadetenção em Córdoba, em 1943, por ter assistido a uma manifestação estudantil antigolpista. Quando Ernesto o visitou no comissariado de polícia, Granado pediu-lhe que convocasse com

outros amigos manifestações dos secundaristas. Segundo a versão consagrada, o Che respondeu,atónito: “Sair em passeata para que caiam em cima de nós? Nem louco. Eu só saio se levar umbufoso [uma pistola]”. Mais que um sinal premonitório da vocação revolucionária ou mesmo dapropensão para a violência, o incidente denota no Ernesto Guevara de dezesseis anos uma com-batividade desnorteada e uma ideia da correlação de forças: não convém brigar se não se podeganhar.34 (*) Jorge Ferrer, no relato pessoal anteriormente citado, diverge de maneira enfática dessainterpretação de Dolores Moyano: “Em nenhuma de nossas conversas Ernesto mencionou ou dissealgo que sugerisse que se sentia pressionado por Célia em qualquer sentido, ou incomodado pêlosproblemas financeiros da família. Conhecendo Célia, estou convencido de que em nenhumacircunstância ela teria incomodado algum dos filhos com seus problemas e muito menos comproblemas financeiros”. Convém recordar que os anos a que Dolores Moyano se refere são os deCórdoha, enquanto Ferrer conviveu mais de perto com o Che em Buenos Aires. Em segundo lugar,ela fala de impulsos mais inconscientes, menos literais; Ferrer busca uma literalidade que sem

dúvida não existiu, mas cuja ausência não invalida a análise mais sofisticada de Dolores Moyano.Essa nascente consciência política seria inevitavelmente marcada pela influência dos pais, daintelectualidade de Córdoba e da escassa atenção que o próprio Che consagrava a temas políticosem suas conversas e momentos de ócio com os amigos. Ele não era um colegial apaixonado peloprocesso político, nem imbuído de paixões políticas particularmente vigorosas ou claras .*  jáesboçava um viés de antiamericanismo exacerbado,‘não de todo atípico na intelectualidade da época em Córdoba, “a douta”.** Também abriga umindubitável sentimento antiperonista, mas proveniente sobretudo do ciclo antiautoritário que incluiu aguerra da Espanha, a luta contra o nazismo na Europa e na Argentina, a oposição ao golpe deEstado de 1943 e a rejeição de Perón por parte da velha esquerda da classe média intelectualizada.Não se encontra em nenhum relato, por exemplo, a rea-ção de Ernesto ao que foi sem dúvida, namemória dos argentinos que o testemunharam, o acontecimento político-social mais importante desuas vidas até então: a jornada de 17deoutubrode 1945 em Buenos Aires, quando a classe operáriatomou as ruas para resgatar Perón da ilha onde se encon- ‘ trava preso e conduzi-lo pêlos ares, metafórica e fisicamente, à Presidênciada República. rf’4-  Em fins de 1946 o jovem Guevara concluiu seus estudos secundários;passou o verão trabalhando no Departamento Provincial de Viação em Vil-la Maria. Seu emprego,assim como certa inclinação — mas não destreza — para a matemática e a decisão de seu melhoramigo, Tomás Granado, de entrar na Faculdade de Engenharia de Córdoba, o induziam a seguiressa carreira na cidade provinciana. Sua família já partira para Buenos Aires, ocupando a casa da

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mãe de Ernesto Guevara Lynch. Porém, em março de 1947, a avó do Che, Ana Lynch, adoeceu, e oneto foi à capital cuidar dela em seus últimos dias. Após a morte da avó, Ernesto tomou umadecisão crucial: matricular-se na Faculdade de Medicina de Buenos Aires e voltar a viver com ospais, em uma casa da rua Araoz. Esta, contudo, já não espelhava por(*) Sabemos, pela reprodução de algumas páginas de seus cadernos filosóficos ou ‘Dicionáriofilosófico”, que ele começou a ler Marx e Engeis em 1945, aos dezessete anos: pelo menos o Anti-Duhring, o Manrfesto comunista e A guerra civil na França. No entanto, pelas anotações do jovem

leitor, trata-se de leituras de índole mais filosófica que política, ainda que tenham sem dúvida surtidoum efeito político.(**) O garçom do Sierras Hotel, que Ernesto pai frequentara antes e ao qual Ernesto rilho retornavacom seus amigos em algumas ocasiões, recorda que ele nunca pedia Coca-Cola e, se a ofereciam,recusava com veemência: “Ficava frenético”. A precisão da lembrança pode, contudo, deixar algo adesejar (Francisco Fernández, entrevista como autor, Alta Gra-cia, 17/2/95).inteiro um lar. Conforme narra euremisticamente Roberto Guevara: “Ernesto frequentava muito umestúdio, bem velho, que tinha na rua de Para-guay, 2034, primeiro andar, A”.” Ou, como recorda umprimo de ambos, mais próximo de Roberto que de Ernesto na idade e na vocação: “Nos últimostempos seus pais já estavam praticamente separados; Ernesto, suponho, em geral não ia dormir emcasa. Quando estavam na Araoz ele tinha seuestúdio de arquiteto, na rua de Paraguay, perto da faculdade de medicina, onde dormia”.’” Ernesto residiria na Araoz até deixar a Argentina, em 1953. Portanto, chegará em definitivo aBuenos Aires pouco mais de um ano depois de Perón tomar-se presidente; partirá para sempre da

pátria menos de um ano após amorte de Evita Perón, em 26 de fevereiro de 1952, no início do ocaso do primeiro período de Perónno poder.2ANOS DE AMOR E INDIFERENÇA: BUENOS AIRES, PERÓN E CHICHINA O capítulo portenho de Che Guevara será simultaneamente de formação — não poderia ser deoutra maneira: os anos universitários, como as viagens, forment  lajeunesse  — e  prelúdio da etapaseguinte, decisiva e apaixonante. Abrangerá sua introdução no amor, a viagem e a profissão falida,assim como um vislumbre adicional — não mais que isso —de despertar político. Essa etapa temlugar em um ambiente excepcional: a profunda transfiguração da Argentina que começa eml°deoutubrode 1946, com a posse de J uan Domingo Perón no cargo de presidente constitucional daRepública argentina.Três explicações podem ser dadas para a decisão de Ernesto Guevara de Ia Serna de ingressar naFaculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. A primeira foi a morte de sua avó, AnaLynch, motivo que goza de numerosos adeptos, em virtude da coincidência no tempo com aresolução do candidato a engenheiro, já matriculado na Escola de Engenharia, de estudar medicina.* Ernesto, consternado pelo falecimento de sua única avó, com quem(*) O primeiro adepto é evidentemente seu pai, que relaciona de modo direto a decisão de estudarmedicina com a morte da avó do Che: “Recordo que [Ernesto] me disse:‘Velho, mudo de profissão. Não seguirei engenharia, vou dedicar-me à medicina’” (Ernesto GuevaraLynch, Mi hijo  el  Che, Madri, Planeta, 1981, pp. 226-47). Sua irmã Célia partilha esse ponto de vista:“Ele via que não podia fazer nada por ela, que estava morrendo, e então achou que devia estudarmedicina [...] por isso mudou de engenharia para medicina” (Célia Guevara de Ia Serna, depoimentocolhido em Adys Cupull e Froilán Gonzáiez, Emestito: vivo y  presente. Iconografia testimoniaAi de  ifl infância y lajuventud  de Ernesto Che Guerara Í928-1953, Havana, Editora Política, 1989, p. 111).Outros biógrafos que enfatizam essa conexão são J. C. Cernadas Lamadrid e Ricardo Halac, queafirmam: “Assim que a família Guevara chega a Buenos Aires, a avó Lynch adoece. Ernesto [...] acompanha-a

mantinha desde pequeno uma relação estreita e carinhosa, reagiu como o jovem impulsivo eobstinado que já então se tomara. Visando evitar que outros morressem do mesmo mal, ele sepropôs encontrar uma cura para a enfermidade que a matou (um derrame cerebral, segundo a irmãdo Che);* para tanto, não havia outro caminho a não ser estudar medicina. A explicação não éabsurda e, embora possa parecer insuficiente, é preciso outorgar-lhe certa importância.A segunda explicação diz respeito ao câncer mamário detectado em Célia de Ia Serna Guevara,** um diagnóstico que abalou profundamente seu filho.*** Conforme a versão relatada ao autor porRoberto Guevara, irmão menor do Che, e Roberto Nicholson, primo do cirurgião que atendeu Célia,adia a dia, até a morte. Essa experiência parece ter sido determinante; poucos dias depois ele decideficar na capital e começar a estudar medicina” (J. C. Cemadas Lamadrid e Ricardo Halac, Yofui  testigo:  el  “Che” Guevara, Buenos Aires, Editorial Perfil, 1986, p. 20). Dois admiradores argentinos,Estehan Morales e Fabián Rios, em seu “Comandante Che Guevara” (Cuademos  de América Latina, 1/10/68, p. 5), também atribuem o estudo da medicina a “um fato singular: a morte da avó paterna”.

A versão cubana raais ou menos oficial também é essa: “Em seguida ao fatal desenlace [da avó] [...] ele se matricula na faculdade de medicina” (Atlas histórico, biográfico y militar de E r nesto Guevara, Havana, 1990,t. l, p. 37).(*) Célia Guevara de Ia Sema, op. cit. O pai também afirma que a causa  moreis foi um derramecerebral, e não o câncer que vários biógrafos apontam (Guevara Lynch, op. cit., p. 247).(**) Entre os partidários dessa tese figuram Andrew Sinclair: “A morte da avó de câncer, e a luta da

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mãe contra a mesma enfermidade levaram o Che a ser doutor” (Andrew Sinclair, C/ie Guevara, Nova York, Viking Press, 1970, p. 3). Vários outros biógrafos do Che mencionam a enfermidade damãe como o fator que o levou a cursar medicina (cf. Daniel James, Che Guevara: a biography, NovaYork, Stein and Day, 1969; Martin Ebon, Che: the  makingofa  legend. Nova York, Universe Books, 1969; Marvin Resnick, The  Black Beret, the life  and meaning  ofChe  Guevara, Nova York, Ballantine Books, 1969). Um biógrafo alemão, cujo texto contém numerosos erros e claras fantasias (ver maisadiante a nota da página 65), mas inclui também acertos interessantes, relaciona a enfermidade da

mãe com o empenho do Che em encontrar uma cura para o câncer em seu pequeno laboratóriodoméstico com porquinhos-da-índia, mas não com a decisão de estudar medicina: “Quando suamãe teve de se submeter a uma operação, em virtude de um tumor canceroso no seio, ele construiuum laboratório amador e começou a fazer experiências com porquinhos-da-índia, na esperançaotimista de desvendar o segredo dessa enfermidade” (Frederik Hetmann, Yo tengo siete  vidas, Madrid, Lóguez Ediciones, 1977, p. 23).(***) “Célia, minha mulher, foi tratada com radioterapia para erradicar um tumor maligno. Um diadisse-me que encontrara uma protuberância no seio [...] Os médicos [...] decidiram operá-laimediatamente [...j Quando [Ernesto] se deu conta de que levavam a mãe para a sala de operaçõese o resultado da intervenção era incerto, perdeu a serenidade (...] Seguiu passo a passo o processode cura de sua mãe” (Guevara Lynch, op. cit ., p. 247).primeira operação foi em 12 de setembro de 1945.* Extirpou-se uma parte considerável do seio emrazão da presença de um tumor maligno e “muito ati-vo”. A cirurgia foi um êxito e não teve maioresconsequências. Ocorreu, portanto, dois anos antes da decisão do Che de estudar medicina e sem

dúvida foi fundamental em suas opções. Em outubro de 1949 Célia queixou-se de que a cicatriz daoperação de 1945 a estava incomodando; em princípios de 1950 foi submetida a nova intervenção,em que se extirpou todo o seu seio e extraiu-se o aparelho reprodutivo. Célia demorou muito maispara se recuperar dessa operação, e dezessete anos mais tarde morreria de câncer, talvez porcausa de sequelas do tumor inicial. Não é difícil supor que um rapaz extraordinariamente apegado àmãe, ao saber um belo dia que ela padecia de câncer, ainda que os médicos j ulgassem que aenfermidade específica de Célia fosse curável, tenha sofrido um golpe devastador.** Se Ernestoresolveu se dedicar à medicina para impedir que outros morressem como sua avó, maiores motivosteria para tentar evitar uma hipotética (ainda que provável) recaída da mãe, figura muito maispróxima e intensamente ligada a ele que Ana Lynch.Nenhuma das fontes oficiais cubanas sequer menciona a enfermidade de Célia, muito menos osefeitos que teve na vida, carreira e personalidade do filho. * * * Também não se fala da separaçãodos pais do Che — parece que(*) Esses fatos foram relatados ao autor por Roberto Guevara, o irmão mais novo do Che, durante

uma entrevista realizada em Buenos Aires, em 22 de agosto de 1996. Por sugestão dele, foipossível consultar pessoas diretamente relacionadas com os médicos que atenderam Célia. Apessoa que realizou a investigação por conta do autor também pôde corroborar alguns fatos junto aCélia Guevara, irmã do Che. Em um depoimento escrito, Jorge Ferrer, amigo próximo de Ernestodurante esse período, assinala que “quando descobriram o tumor de Célia, Ernesto já estavacursando o segundo ano de medicina” (Jorge Ferrer ao autor, 11/3/96). Ferrer desconhecia aexistência do primeiro tumor e da primeira operação. Talvez isso se devesse a um certo segredoque cercava a enfermidade de Célia. Dolores Moyano, por exemplo, acreditava que as repetidasreclusões de Célia em seu quarto deviam-se a uma depressão (Dolores Moyano, entrevista com oautor, Washington, DC, 26/2/96).(**) “Quando Ernesto era estudante de medicina, sua mãe foi operada do seio em virtude de umpossível tumor maligno. O Che ficou tremendamente afetado” (testemunho de Armando March, encontrado em Primera  Plana, n 3  251, Buenos Aires, 17/10/67, p. 29).(***) A enfermidade da mãe não é mencionada em nenhuma das obras cubanas dedicadas ao tema

que pudemos consultar: nem no Atlas histórico (op. cit.), nem Adys Cupull e Froilán Gonzáiez emsuas obras a respeito (L / n homhre  bravo, Havana, Editorial Capitán San LUÍS, 1994), nem notrabalho mais recente publicado com o apoio de fontes cubanas — Jean Cormier, com acolaboração de Alberto Granado e Hilda Guevara, Che Guevara, Paris, Éditions du Rocher, 1995.os heróis revolucionários não podem incluir em sua biografia episódios penosos ou amargos: os paisnão brigam nem adoecem, nem os tropeços de suas vidas têm maior influência sobre os filhos.Algum dia haverá que se examinar por que o stalinismo, em qualquer de suas versões, seja a polarou a tropical, só reconstitui homens maus ou perfeitos, nunca seres humanos normais que, por seutalento e pela época em que vivem, se transformam em personagens extraordinários.Por último, há a tese de que Ernesto estudou medicina em busca de um alívio para sua própriaenfermidade respiratória.* Além do peso dos teste->• munhos em seu apoio,** ela possui umapoderosa justificativa intrínseca. A especialização medicado Che orientou-se precisamente para asalergias;*** suas investigações sob a orientação do dr. Salvador Pisani, na faculdade de medicina,também permaneceram nessa área.**** Inclusive durante o período que passou no México antes deembarcar na expedição do Granma —  única fase em que ele exerceu sua profissão —, seuesporádico e escasso trabalho médico girou em torno de problemas alérgicos e dermatológicos.***** Não seria descabido pensar que sua própria doença contribuiu de alguma maneira para aescolha de uma carreira para a qual ele não tinha nenhuma vocação aparente.(*) John Gerassi, o divulgador da obra do Che nos Estados Unidos, menciona essa explicação, masconfere-lhe maior importância como fator que levou Ernesto a especializar-se em alergias: “Mas o

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Che quis tornar-se alergologista, em parte porque queria compreender e curar sua própria asma”(John Gerassi, “Introduction”, em Venceremos! The speeches  and  writings  ofChe  Guevara, NovaYork, Clarion Books, 1968, p. 6).(**) E a opinião de Caliça Ferrer, o grande amigo do Che na universidade, com quem realizou aviagem que o afastou definitivamente da Argentina, em 1953. “Penso que a asma foi o que maispode ter influenciado em sua decisão de estudar medicina” (Carlos Ferrer, entrevista tele fónica como autor, Buenos Aires, 23/8/96).

(***) Segundo seu amigo e colega de classe Jorge Ferrer, “Ernesto dirigiu seus inter esses e esforçospara as enfermidades alérgicas [...] trabalhando e fazendo pesquisas sobre a asma” (Jorge Ferrerao autor, 11/3/96).(****) O único trabalho de pesquisa que se conhece, publicado nesses anos, em colaboração com odr. Salvador Pisani, “Sensibilización de cobayos a pólenes por inyec-ción de extracto de naranja”, apareceu na revista Alergia  (cit. por Guevara Lynch, op. cit., p.253).(*****) Veja-se, por exemplo, seu único trabalho médico publicado fora da Argentina, na RevistaInteramericana  de Alergología, vol. II, Cidade do México, maio 1955, n°4. Trata-se de um trabalhosobre a origem alimentar de certas reações alérgicas (cf. “Ernesto,médico en México”, em Testimonios sobre el  Che, Havana, Editorial Pablo de Ia Torriente,1990,p.111).Portanto, é possível que um amplo conjunto de fatores tenha provocado a decisão do jovem Che.De qualquer maneira, a determinação de seguir a carreira médica deveu-se a circunstâncias alheiasa um interesse taxativo pela profissão. Ele se lançou à medicina como quem busca um meio paraalcançar um fim— ajudar as pessoas, ajudar a mãe, ajudar a si próprio — , não por paixãoprofissional ou vocação precoce, ainda que tampouco seja o caso de se ideologizar a posteriori aopção. Como o Che confessaria anos depois:“Quando me iniciei como médico, quando comecei a estudar medicina, a maioria dos conceitos quehoje tenho como revolucionário estavam ausentes no repertório de meus ideais. Eu queria vencer,como todo mundo quer vencer; sonhava ser um pesquisador famoso [...] mas naquele momento eraum triunfo pessoal”.’ Seu rápido desencanto com os estudos brotou sem dúvida desse feixe de motivações indiretas, externas e ligeiramente confusas.* Ao contrário da versão oficial difundida mais tarde, e consagradapelo próprio Che em seu relato da sierra Maestra, ele perdeu desde muito antes o interesse pelacarreira de Hipócrates.** E, segundo a versão, o ainda imberbe guerrilheiro optou entre a medicina ea revolução durante o primeiro combate posterior ao desembarque do Granma, em Alegria de Pio,quando, vendo-se forçado a escolher entre carregar uma caixa de munições ou um estojo demedicamentos, decidiu-se pela primeira. Em 1952, antes de terminar o curso mas já com quatro

anos de ciências médicas nas costas, ele escrevia à namorada Chichina Ferreyra que não pensavaem “engaiolar-se na ridícula profissão médica”.*** E os amigos lembram que, na verdade, comoestudante de medicina, suas notas não eram lá muito boas. Estudava mais algumas matérias de(*) As características do ensino superior na Argentina também podem ter influído. Como assinalaJorge Ferrer, “Ernesto estava saturado do ensino enciclopédico e quase irracional do curso demedicina de Buenos Aires” (Jorge Ferrer, op. cit .). (**) O texto foi “imortalizado” (Deus nos livre) no deplorável filme Che, protagonizado por OrnarSharif e Jack Palance, mas costuma ser citado por estudiosos de todo tipo. “Talvez tenha sido aprimeira vez em que se colocou em prática diante de mim o dilema entre minha dedicação àmedicina e meu dever de soldado revolucionário. Eu tinha diante de mim uma mochila cheia demedicamentos e uma caixa de balas, eram pesadas demais para que eu transportasse as duas;fiquei com a caixa de balas, deixando a mochila...” (Ernesto Guevara de Ia Serna, “Pasajes de Iaguerra revolucionaria”, em Escritos y  discursos, Havana, Editorial de Ciências Sociales, 1977, t. 2, p.11).

(***) Ricardo Campos, relato encontrado em Claudia Korol, op. cit., p. 70. Ou, como recorda seuprimo Fernando: “Ele ia à faculdade para ser aprovado. Passava raspando” (Fernando Córdova Itúrburu, entrevista com o autor, Buenos Aires, 23/8/96).sua preferência, porém raramente se aplicava, exceto na pesquisa, para a qual “sempre teve umainclinação”.2 Ernesto Guevara jamais seria um médico praticante, no sentido em que se é um advogado detribunal. Praticamente desde o início da faculdade orientou-se para a investigação clínica. Suasclassificações nas diversas matérias da carreira refletem esse fato, desde as poucas “distinções”que obteve (em quatro das trinta matérias, oito “bons” e dezoito “aprovados”)1 até os “zeros”,descaradamente confessados a Chichina, em neurologia e técnica cirúrgica.4 Como comentaria umcompanheiro, “não creio que tenha cursado regularmente a faculdade; ele fazia mais matérias livres”(com aprovação mediante um exame extraordinário). Desenvolvia reflexões sobre diferentesaspectos da profissão, desde a forma de tratar pacientes estigmatizados — os leprosos daArgentina e a seguir do Peru — até a socialização da medicina. Alberto Granado relata como,

durante uma visita ao leprosário de San Francisco dei Chanar, o Che insistiu repetidas’vezes nanecessidade de dar um tratamento mais humano aos pacientes, e sobretudo em “como eraimportante para a psique dos leprosos o modo familiar como os tratávamos ”.5 Granado narratambém como, em outra ocasião, no balneário de Miramar, dias antes da partida em viagem pelaAmérica do Sul, da qual falaremos adiante, houve uma áspera discussão entre os amigos deChichina Ferreyra, Ernesto e o próprio Granado sobre as medidas adoradas pelo governo trabalhista

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inglês de Clement Attlee, em particular a socialização da medicina. Um Ernesto arrogante e irónicotomou a palavra, e durante quase uma hora defendeu com vigor a abolição da medicina comercial earremeteu contra a desigualdade na distribuição de médicos entre a cidade e o campo e oisolamento dos médicos rurais.” Não é preciso dizer que escandalizou seus interlocutores.Nesses anos de universidade em Buenos Aires perdurou a natureza multifacetada da vida epersonalidade de Ernesto. Se antes seus estudos se combinavam com o esporte, a leitura e adoença, agora somaram-se à lista o xadrez (em torneios escolares como a Olimpíada Universitária

de 1948), as namoradas, as viagens, o estudo mais diligente da filosofia e, naturalmente, tal comono último período em Córdoba, o trabalho assalariado para ganhar a vida. Viajava constantemente aCórdoba de carona, 72 horas de estrada, para visitar os amigos ou a namorada. Ernesto filhocontinuou a jogar rúgbi, agora no Atalaya Rugby Club de San Isidro, e, conforme as recordaçõesdos amigos, muito golfe. Começou a colaborar como funcionário na Seção de Abastecimento daPrefeitura de Buenos Aires, onde deu continuidade, commaior empenho, a seu “Dicionário filosófico”. Por fim, envolveu-se nos tumultuosos acontecimentospolíticos que convulsionaram a Argentina.Talvez a primeira conexão da trajetória de Che Guevara com a de juan Domingo Perón tenhaocorrido em 1946, quando, ao completar dezoito anos, coube ao Che alistar-se no serviço militarobrigatório. Sua asma deve ter bastado para isentá-lo desse serviço por invalidez; de qualquermodo, por motivos tanto académicos como ideológicos, o jovem naturalmente preferiria serdispensado que passar dois anos no quartel. O exército era naquele momento o bastião peronistapor excelência; ainda não se inaugurara a fase das grandes conquistas dos trabalhadores nem o

fortalecimento pré-corporativista do movimento operário que caracterizariam a época mais gloriosado peronismo. Para um jovem de família antiperonista, e além disso estudante universitário inquieto,a ideia de fazer o serviço militar era um anátema. A melhor introdução ao “aperonismo” do jovemChe e à distorcida controvérsia sobre seu antiperonismo ou filoperonismo reside na estranhaexplicação que ofereceu, 25 anos depois, o próprio Perón acerca do fato de Ernesto não ter feito oserviço militar:Dizem que o Che esteve entre os que nos combatiam. Não é assim. O Che foi um homem próximodas nossas posições. Sua história é muito simples: ele era um infrator da lei do alistamento. Secaísse nas mãos da polícia, seria incorporado por quatro anos na marinha ou por dois no exército.Quando estavam para apanhá-lo nós mesmos o avisamos. Então comprou a motocicleta e foi para oChile. O Che era um revolucionário, como nós. Quem não estava conosco era a mãe. A mãe foi aculpada por tudo o que o pobre rapaz passou. O Che não foi embora do país porque nós operseguíamos.* Obviamente, o general não foi o único a querer atribuir um peronismo póstumo ao comandante

Guevara em sua juventude. Seu pai tentou fazê-lo (*) Cit. em Tomás Eloy Martínez, Los memórias de i  general, Buenos Aires, Editorial Planeta, 1996,p. 53. Martínez diz o seguinte sobre esse bizarro comentário de Perón: “O quest ionário que enviei aPerón em 1970 pedia-lhe que esclarecesse esse dado. Como era poss ível que ele, presidente daRepública e ao mesmo tempo general da nação, tivesse protegido um desertor do serviço militar?Parecia-me estranho, e observei-o em minha carta. reron não respondeu a essa pergunta. Com umtraço de tinta, eliminou do rascunho das Memórias a referência ao Che. O relato, no entanto,sobreviveu nas fitas gravadas, das quais é agora transcrito fielmente”. Naturalmente as afirmaçõesde Perón não têm pé nem cabeça; as datas não coincidem e até a sequência dos fatos estádistorcida.em diversas ocasiões, assim como os compiladores cubanos de episódios e cronologias. Todo esseafã, contudo, topa sempre com o mesmo obstáculo incontornável: nos documentos testemunhais daépoca não aparece nenhum indício de simpatia, afinidade ou sequer interesse do polivalente estu-dante de medicina pêlos acontecimentos políticos ou sociais de seu país. O Che não era anti- ou

pró-Perón; simplesmente o tema em seu conjunto parecia ser-lhe indiferente.* Nas cartas a suas namoradas, amigos e familiares, as referências a Perón escasseiam, e brilhampela ausência os comentários sobre os fatos da época. O Che limita-se a conjeturar em umaocasião, a sua namorada Chichina Fer-reyra, que “uma vitória por uma estreita margem de votosnão me convence;nisso estou com Perón”; em outro momento, comenta, a propósito de uma projetada e frustradaviagem dos dois a Paris: “prefiro os peronistas aos frades”.7 Os biógrafos do general provavelmentediscordariam da primeira observação; nada indica que Perón fosse adepto da segurança e que suasmargens (de vitória) tenham sido sempre tão amplas como parece supor o exigente masaparentemente fracassado namorado.Os pais do Che eram, naquele momento, visceralmente antiperonistas. Guevara de Ia Sema, comoa grande maioria dos integrantes dos círculos estudantis de classe média, via com animosidade asposturas ideológicas, académicas e autoritárias do novo regime. Antes mesmo do advento de Perón,surgira inclusive um slogan classista entre os estudantes: “Livros sim, alpercatas não!”. Para muitos

argentinos pertencentes à inteiligentsia  do  país, a eleição de um militar em 24 de fevereiro de 1946evocava a ascensão de Hitier ou Mussolini ao poder. Toda a esquerda argentina se uniu para apoiaro principal concorrente de Perón, o candidato da União Democrática, José P. Tamborini, ainda queeste recebesse também o respaldo da embaixada dos Estados Unidos e de um vasto conglomeradoda oligarquia argentina.A universidade, em particular, converteu-se em cidadela do antipero-nismo, sobretudo em razão da

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crescente inclinação autoritária e do evidente antiintelectualismo do regime. A esquerda foidevastada pelo peronismo: nunca mais os partidos Socialista e Comunista recuperariam a base de trabalhadores — exíguaporém real — que tinham consolidado durante a(*) Há pouco tempo apareceram na Argentina testemunhos e entrevistas evocando, por exemplo, apresença do jovem Ernesto na marcha fundadora do peronismo, em 17 de outubro de 1945. RobertoGuevara, no entanto, esclareceu categoricamente a um assistente de pesquisa do autor quenaquele dia seu irmão mais velho estava em Córdoba; para uma família antiperonista como a doChe, trata-se de um dia difícil de esquecer.Depressão. Mas a irrupção das massas operária» antes marginalizadas não foi o fator decisivo doafastamento de importantes setores da intelectualidade, ou da antiga classe média. A causa centralresidiu na continuidade que esses setores enxergaram entre a luta contra o nacionalismo de direitados anos 30, o franquismo da Guerra Civil espanhola, o nazismo e o fascismo durante a SegundaGuerra Mundial e o autoritarismo militarista local.A simpatia que o peronismo despertava no seio da classe trabalhadora e de consideráveisdestacamentos do empresariado nacional, por seu apoio às reivindicações populares, de um lado, eseu nacionalismo económico, de outro, contribuiu simultaneamente para uma polarização extremada opinião pública. Tanto as correntes mais nacionalistas, alentadas pela expropriação das ferroviasem mãos de empresas britânicas, como os “descamisados” de Evita Perón, organizados naConfederação Geral dos Trabalhadores e entusiasmados com a promulgação de reformas como oestabelecimento de um salário mínimo e aumentos salariais reais de mais de 50% entre 1945 e

1949, o sistema de pensões, o voto feminino, a seguridade social, as férias pagas, apoiaram oregime. Daí sua força; daí a duradoura e às vezes inverossímil lembrança que gravou na memóriade milhões de argentinos.Enquanto a receita gerada pelo boom  das exportações do pós-guerra durou, a maioria dasdemandas sociais podia ser atendida sem afetar ao mesmo tempo todos os grupos poderosos. Avirtual cisão entre a inteiligentsia  e o estamento operário, entre a esquerda e sua pretendida base demassas, entre a classe média e os setores mais desfavorecidos da sociedade, regeria o destino daArgentina durante a metade seguinte do século. A exacerbação dos ânimos políticos e ideológicos,assim como das posturas, marcaria o itinerário do país ao longo de décadas inteiras. Osurpreendente, na passagem de Ernesto Guevara por esse período, não seria seu presumidoantiperonis-mo, ao qual tudo o impelia. Tampouco seria de estranhar, ao contrário, uma reação antagónica à de sua família, um alinhamento com o peronismo por rebeldia ou por emp áfia com asenormes esperanças que o governo suscitava entre as massas populares. Isso teria coincidido como caráter e a nascente sensibilidade do Che. O que chama atenção é seu aparente desinteresse

pêlos acontecimentos mais excitantes da história moderna de sua pátria .* (*) Embora muitos biógrafos insistam no fato, apenas um, dos mais recentes e hostis ao Che, o põeem destaque: “Surpreende-me e desconcerta-me a abstenção política de alguém como ErnestoGuevara, em um momento como aquele. É um detalhe incongruente em uma vida marcada pelacongruência” (Roberto Luque Escalona, Y, el mejw  de todos:  wojyafía  no autori z ada de i  Che Guevara, Miami, Ediciones Universal, 1994, p. 54).Como bem observa um biógrafo crítico da vida do Che: “Uma investigação exaustiva dos escassosfichários dos grupos atuantes na época não permitiu que se descobrisse o nome de Guevara comomembro de nenhuma das organizações estudantis, tampouco do centro oficial [Centro Oficial dosEstudantes de Medicina]”.8 Nas dezenas de cartas escritas aos pais a partir de sua primeira viagem ao exterior, no diário quemanteve durante o período em que percorreu a América do Sul, nos testemunhos recolhidos porpesquisadores cubanos ou argentinos entre familiares, amigos e colegas de universidade, nãoexistem comentários de qualquer natureza sobre a conjuntura daquele momento.9 Prevalece na

documentação um completo vazio de reflexões críticas ou lau-datórias do Che, seja acerca donoticiário da atualidade — as reformas peronistas, o voto feminino, a ascensão de Evita, a reeleiçãodo general, a morte de Evita —, seja quanto a processos políticos mais abstratos. Apenas váriosanos depois, em uma carta enviada a sua mãe do México, em 1955 (ou seja, ao’i 27 anos), Guevarapede informações: “Mande-me todas as notícias que puder, pois aqui estamos completamente desinformados, já que os jornais só publicam os pi Alemãs entre Perón e o clero, e não ficamossabendo de nada sobre a situação real”.10 Como disse sua irmã Ana Maria, em relação ao peronismo, “ele não tomou partido nem a favor nemcontra. Manteve-se como que à margem”.” Sua filiação à Federação Universitária de Buenos Aires(FUBÁ) era mais burocrática que engajada; o Che não era um ativista estudantil: “A participaçãopolítica de Ernesto foi circunstancial; ele não era um militante, mas compartilhava da ideologia daFUBÁ”.12 Em suas conversas com os amigos, namoradas e outros acontecia mais ou menos omesmo; a política em geral e o peronismo em particular não apareciam como temas.* SegundoChichi-na, “pelo menos comigo ele não falava de política”.’3 

Como essa atitude não se coaduna com a imagem que muitos quiseram (construir para a juventudedo ídolo, foi preciso “resgatar” o Che para o peronismo. A operação de resgate se apoiabasicamente em uma carta escrita pelo Che no México em 1955, por ocasião do golpe militar quederrubaria o general e o enviaria para um exílio de quase vinte anos. O próprio pai do Che(*) Nas palavras de uma companheira de trabalho: “Na realidade, Ernesto não tinha uma definiçãopolítica quanto a Perón [...] Discutia com um peronista, atacando Perón, e logo defendia Perón

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diante de um antiperonista (...] Não era peronista nem antiperonista. Era justo” (Liria Bocciolesi, relato encontrado em Cupull e Gonzáiez, Emestito, op. cif., P. 164).tenta reescrever a história ao sustentar que seu filho não era um militante antiperonista. Alega que ofoi, em criança, de brincadeira; quando completou 26 anos e tinha uma opinião política formada —recorda Lynch — não vacilou em apoiar a massa operária peronista contra o golpe militar “gor ila”de 1955.14 Com efeito, já no México, dez anos depois da ascensão de Perón, passado o apogeu dapopularidade e força deste, o Che parece ter substituído a moderada antipatia dos anos 40 peloregime populista por uma rejeição mais categórica, mais politizada, ao pronunciamento que pôs fimao suposto idílio dos “descamisados”. Em outra carta de 1955, dirigida a Tit ã Infante, sua amiga dafaculdade de medicina, Guevara esboça reflexões contraditórias sobre a derrubada de Perón:Com todo o respeito que merece Arbenz [o presidente reformista guatemalteco recém-destituído emum golpe patrocinado pela CIA], totalmente diferente de Perón do ponto de vista ideológico, a quedado governo argentino segue os passos da Guatemala com uma fidelidade estranha, e você verácomo a entrega total do país e o rompimento político e diplomático com as democracias popularesserá um corolário, conhecido mas triste.15 No mínimo, um comentário confuso e contraditório. Coloca a um só tempo, entre Perón e Arbenz,um paralelismo e um contraste ideológico e pessoal. Veremos adiante como a etapa guatemaltecada formação política e ideológica do Che pode ser considerada o início de seu antiimperialismo (queseria permanente) e ao mesmo tempo de sua fase comunista “pura e dura” (que persistirá até asprimeiras viagens aos países do Leste, no começo dos anos 60). A importância que ele atribui a

esse fato de “rompimento” com as “democracias populares” já é um sintoma da direção em quecaminharia sua crescente politização. Porém, esse comentário sucinto sobre o encerramento doprimeiro capítulo peronista da história contemporânea da Argentina não revela nem um interesseacentuado pêlos acontecimentos nem uma análise especialmente profunda deles.As semelhanças significativas entre os golpes militares que depuseram Arbenz e Perón sãoescassas. O período nacionalista de Perón já chegara ao fim. E ainda que as massas guatemaltecasnão tenham defendido o governo de Arbenz porque ninguém lhes deu as armas para fazê-lo (versãoquestionada por alguns mas que o Che adoraria), o povo argentino nem sequer tentou lutar por umregime que em boa medida já o tinha abandonado. Por fim, a alusão do Che a um “estranho”paralelismo entre os dois levantes sediciosos, baseada em um suposto envolvimento dos EstadosUnidos, conduz a váriasquestões. A principal: embora tenha sido amplamente documentada a participação de Washingtonna derrubada de Arbenz, não se pode dizer o mesmo no que se refere à “Revolução Libertadora” de1955.

Na já citada carta a Célia, Ernesto de fato assume uma posição mais clara com referência ao regimerecém-deposto. Ele repete vários argumentos contidos na carta a Titã, embora de maneira maisenérgica, talvez porque fosse endereçada a sua mãe. Comunica-lhe, com certa indignação, queacompanhou “com alguma inquietude a sorte do governo peronista”16 e que “a queda de Perón meamargurou profundamente, não por ele, mas pelo que significa para toda a América Latina ”.17 Reclama com desgosto à mãe, francamente antiperonista, que “você decerto há de estar muitocontente [...] poderá falar o que quiser, com a absoluta impunidade que o fato de ser membro daclasse que está no poder lhe assegurará”.18 Em compensação, confessa quase tímido a sua tiaBeatriz: “Não sei bem o que acontecerá, mas senti um pouquinho a queda de Perón ”.19 Os comentários ulteriores do Che sobre Perón e suas desventuras não podem ser projetados anacronicamente para o passado. Não são opiniões claras, e destacam-se pelas fortes insinuaçõescarregadas de emoção. Nem alteram a conclusão relativa à indiferença política do universitáriodurante os anos de estrelato de Perón no poder. Só podemos especular sobre os motivos do“aperonismo” juvenil de Guevara. Obviamente, o vínculo com os pais, em particular com Célia, cuja

animosidade contra o regime populista era muito mais veemente que a do marido, desempenhou umpapel crucial. É possível que a própria dificuldade para conviver com emoções e pontos de vistaconflituosos, que detectamos a propósito da asma, tenha tido uma função significativa nodistanciamento do Che da política universitária. Enfrentar o emaranhado de paixões contraditóriasque se desencadeavam ao seu redor nesse período deve ter sido um verdadeiro tormento para ele.Com efeito, para um jovem dotado de uma sensibilidade social à flor da pele, alinhar-se com aselites brancas, oligárquicas e católicas contra o levante das multidões morochas [escuras] edesamparadas teria sido uma aberração. Encontrar-se do mesmo lado da barricada com os primose tios fazendeiros, com “gente como você [que] acreditará estar vendo a aurora de um novo dia”,como alfinetou, dirigindo-se à mãe, no calor da sedição:20 que golpe para o seu ego, o seu culto daexcentricidade e sua paixão pela justiça social! Alguém como o Che, empenhado em conhecer seupaís de ponta a ponta, em contato frequente com a pobreza e a marginalização evidentes da saúdepública e da medicina, ofendido e ao mesmo tempo fascinado pelaopulenta e rançosa aristocracia da família e dos amigos de Chichina, não poderia desconhecer o

óbvio: “a revolução social que foi o peronismo . Até um furibundo antiperonista, o historiador Tulio Halperín Donghi, o sublinha: “Sob a égide do regime peronista, todas as relações entre os grupossociais se viram subitamente redefinidas, e para perceber isso bastava caminhar pelas ruas oupegar o bonde”.22 O Che caminhava pelas ruas e pegava o bonde.No entanto, romper com Célia e com a família inteira em meio a uma situação de polarizaçãoextrema era igualmente inaceitável. Mais ainda em um momento de grande debilidade da mãe —

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doente, com um prognóstico incerto, separada de Guevara Lynch e angustiada pelas dificuldadesfinanceiras e a carga de criar quatro filhos sem inclinação para a tarefa — , distanciar-se dela erainconcebível para o Che. Porém, qualquer sinal de simpatia pelo peronismo teria implicado umrompimento: as opiniões apaixonadas da mãe e as tensões latentes da sociedade não tolerariamsoluções intermediárias. A única maneira para conciliar o amor filial do Che com sua sensibilidadesocial e política consistia em refugiar-se no estudo e, cada vez mais, em viajar. * A única saída erafugir, inesperada, banal ou heroicamente, já então e pelo resto da sua vida.

As viagens precoces e recorrentes do Che foram motivadas em grande medida pela curiosidadeinsaciável e pelo fascínio por qualquer coisa que fosse diferente, estranha e misteriosa. A série das

 já mencionadas ambiguidades que o rodeavam em Buenos Aires também podem ter contribuídopara isso: a saúde indefinida da mãe e a situação dúbia do casamento dos pais. O pai pernoitavacom frequência no estúdio de arquitetura da rua Paraguay, mas costumava voltar para a casa daAraoz, almoçando diariamente ali com os filhos durante certos períodos. Só mais adiante conhecerásua futura esposa, Ana Maria Erra, uma professora que trabalhará com ele como secretária. “Nemcasamento, nem divórcio”: a frase poderia ter sido empregada pelo Che para descrever o vínculoentre os pais nesses anos portenhos, da mesma forma que a usaria quinze anos mais tarde paradefinir outra relação fundamental de sua vida, com Fidel Castro.Um curto texto do Che que permaneceu inédito até 1992, intitulado “Angústia”, dá conta da suaobsessão, desde cedo, pelo tema abordado.(*) Assim o recorda Ricardo Campos, seu conhecido <Ja época: “Passava doze ou catorze horasestudando, na biblioteca, sozinho. Só era visto de passagem [...] desaparecia durante longos

períodos e depois reaparecia” (Korol, op. cit., p. 72).Redigiu-o em plena navegação pelo Caribe — escreveria diários de viagem até o último de seusdias —, como enfermeiro da marinha mercante argentina: “Porém, desta vez o mar é minhasalvação à medida que as horas e os dias passam; ela, a angústia, me morde, invadiu minhagarganta, meu peito, contrai meu estômago, aperta-me as entranhas. Já não me agradam asauroras, não me interessa saber de qual quadrante sopra o vento, não calculo a altura das ondas;cedem os nervos, nubla-se a vista, amarga-se o caráter”.23 Suas amigas captarão rapidamente esse mal-estar, assim como a ânsia por um outro tipo de vida.Como diria Titã Infante, “Ernesto sabia que ali [na universidade] só poderia encontrar muito poucodo que buscava”.24 Ou, nas palavras de Chichina: “Creio que ele me via como uma pessoa que seriaum peso em sua vida. Como se eu fosse um obstáculo para a vida que ele queria ter; a vida deaventureiro. Ele se via como se estivesse preso, de certa forma, e talvez quisesse libertar-sedaquilo, estar livre, ir-se, e eu devo ter sida um estorvo naquele momento. Não sei para onde elequeria ir. Queria viajar, andar pelo mundo, explorá-lo”.” 

Os mesmos impulsos e paixões que marcaram suas relações com os pais e com o peronismo refletem-se em seus relacionamentos com as mulheres durante aqueles tempos de Buenos Aires.Haviam transcorrido, entre a juventude e o princípio da maturidade, cinco anos que encerraram aúnica ligação amorosa duradoura que conhecemos de Guevara antes de unir-se na Guatemala aHilda Gadea, com quem se casaria no México. Não faltaram amores fugazes, contudo. De acordocom seu irmão, ele “tinha sempre alguma namorada por perto. Era um rapaz forte como qualquerum de nós, mas talvez tenha vivido mais intensamente suas aventuras amorosas”.26 Era um rapazde boa aparência, estatura mediana e rosto quase infantil, seguro de si e, segundo relatos dosamigos, relativamente atrevido ou “atirado” com as mulheres. Seu primo, Fernando CórdovaItúrburuj lembra que “queria abraçar o mundo inteiro”.27 Era “divertido, o mais divertido do grupo”.28 Ficaram os rastros de duas paixões menores entre 1947 e 1950. Uma teria sido pela prima Carmen Córdova de Ia Serna, La Negrita, filha de uma irmã de sua mãe, que se enamorou por Ernestodurante a juventude em Córdoba.* O idílio pode ter sido(*) “Quando eu era adolescente [...] ficava na casa dos Guevara, na rua Araoz, falando de literatura

e de amor, porque, como costuma acontecer entre primos e primas, tivemos nosso romance.Ernesto era um moço tão bom!” (Carmen Córdova Itúrburu, reportagem de Gabriel Esteban Gonzáiez, Buenos Aires, 1994).mútuo,* mas nunca alcançou sequer o estado de namoro platónico ou circunscrito pela presençaconstante de acompanhantes.29 Outro namoro noderia ter se efetivado com alguém que de qualquerforma foi uma amiga muito íntima: Titã Infante, a quem o Che enviou uma correspondência assíduaaté os anos 60 e que se suicidaria nove anos após a morte do Che na Bolívia, desolada com a suadesaparição.Segundo a irmã mais nova de Guevara, Titã Infante esteve “muito apaixonada por ele”,’0 emboranão soubesse “a que grau de intimidade chegaram as suas relações ”.” O pai do Che e o irmão deTitã Infante tampouco se atreveram a afirmar em público que a ligação entre eles tivesse sido maisdo que amizade, mas isso pode ter sido perfeitamente uma discrição puritana. O que se sabe é queTitã Infante pertencia à Juventude Comunista e era colega de curso do Che na faculdade demedicina. Tratavam-se pelo formal usted, pelo menos nas cartas. Graças aos relatos, e às

fotografias que se conservaram, ficamos sabendo que seus traços revelavam uma personalidadevigorosa, embora ela não fosse dona de uma beleza deslumbrante. Era alguns anos mais velha queo Che, e quando o conheceu, em 1948, a política ocupou claramente um lugar central norelacionamento entre os dois, ausente em outras ligações do Che nessa época.As cartas que trocaram quase não trazem palavras ou frases carinhosas. O tom epistolar do Che,assim como o emprego do pronome usted, contrasta com o de suas cartas para Chichina Ferreyra. 

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Além disso, as tarefas de que o Che repetidas vezes incumbe Titã sugerem uma relação terna echeia de confiança que só nasce da proximidade mas encerra um toque burocrático.** Tudo indicaque, por mais enamorada que Titã pudesse estar do Che, a relação entre eles nunca ultrapassou oslimites platónicos. Os amigos do Che(*) “Fernando Barrai, depois de muitos anos e já em Cuba, disse a Ernesto: ‘Sabe que eu estivebastante apaixonado por uma prima sua, a Negrita’. E o Che respondeu: ‘Eu também’” (CarmenCórdova Itúrburu, entrevista com o autor, Buenos Aires, 21/8/96).

(**) Por exemplo: “Gostaria muito de receber notícias suas sobre a cidade [...] Agora, Titã, vem aseção do trabalho doméstico: mando-lhe o endereço de um médico peruano [...] tem interesse nasclassificações do sistema nervoso feitas por Pio dei Rio Ortega. Creio que seu amigo fez umamodificação nisso e gostaria que você a conseguisse;se não for possível, faça o seguinte: telefone para 719925, que é o número da casa de Jorge Ferrer, grande amigo meu, e diga-lhe que procure em casa essa classificação [...] Se por sigum motivo issonão der certo, pode ligar para o meu irmão Roberto, 722700, e pedir-lhe que mande o livrinho o maisrápido possível [...] Bom, Titã, naturalmente estou deixando no tinteiro muito do que gostaria de terconversado com você” (Guevara de Ia Ser-^ a Titã Infante, Lima, 6/5/52, cit. em Cupull e Gonzáiez, Cálida presencia, pp. 27-8).que ainda conservam na memória seu modo de relatar-lhes as delícias e desventuras do namorocom Chichina não lembram de ele ter falado de maneira análoga a propósito de Titã Infante.* Acorrespondência entre o Che e sua amiga representa um acervo inestimável de alusões ao itineráriopolítico do jovem expatriado, mas não pode ser lida como uma série de cartas de amor que revelam

as paixões ou os sofrimentos crescentes do rapaz cujos tormentos internos estão apenascomeçando a tomar forma.Inversamente, a importância da relação de Ernesto Guevara com Maria dei Carmen Ferreyra se

 justifica não só pelas diversas alusões do próprio namoro entre os dois, mas também pelo fato deque o compromisso com Chichina é o único caso amoroso da vida do Che do qual possuímos atéagora referências escritas por ele próprio. E possível que Guevara tenha amado outras mulheres eque existam escritos seus a respeito delas; mas por enquanto o testemunho e as consequências desua paixão por Chichina outorgam-lhe um posto hierárquico superior ao das demais. , Maria dei Carmen Ferreyra era uma espécie de filha predileta da oligarquia de Córdoba: bonita,inteligente, rica (para os critérios de sua época e região) e refinada. Sua família era possivelmente amais tradicional do lugar — o antigo domicílio familiar era conhecido como Palácio Ferreyra — , e aresidência onde então viviam seus tios, hoje ocupada por ela, o marido e os filhos, em Malagueno, avinte quilómetros da cidade, é um hino à elegância e distinção. Ernesto e Chichina tinham secruzado antes, mas o romance só começou na noite do casamento de Carmen Gonzáiez Aguilar, 

em Córdoba, no início de outubro de 1950.” Nas palavras de Chichina, ela ficou “totalmentefascinada”:” “Encontrei-o naquela casa; ele vinha descendo as escadas e eu fui como quefulminada. Ele produziu um impacto em minha pessoa, um impacto extraordinário, pois esse homemvinha descendo as escadas e então começamos a conversar e passamos toda a noite conversandosobre livros, arte; não, arte não; livros”.34 \\  Para Ernesto, também foi amor à primeira vista, a julgar pela primeira carta que enviou aChichina, poucos dias depois, de Buenos Aires. Começa com um verso de sua inspiração, deintenção inconfundível e ao mesmo(*) A única exceção consta em um relato de Rolando Morán, dirigente da organização politico-militar guatemalteca EGP, que conheceu o Che quando os dois estiveram asilados na embaixada daArgentina na Guatemala, em junho de 1954. Segundo Morán, Guevara deu-lhe o endereço de Titã Infante em Buenos Aires, para que a procurasse ao chegar à capital argentina, referindo-se a elacomo sua namorada. (Rolando Morán, entrevista com Francis Pisani (inédita, fornecida ao autor porPisani), México, DF, 18/11/85.)

tempo dúbia: “Para uns olhos verdes cuja luz paradoxal anuncia o perigo de me perder neles”.” Defato havia perigo, mas também luz e êxtase. Segundo Chichina, Guevara escreveu-lhe várias cartasem Malagueno ao longo dos meses que se sucederam ao encontro, até que por volta da SemanaSanta do ano seguinte “veio uma vez para declarar-se formalmente”, declaração que Chichinaaceitou tremendo e que resultou no “primeiro beijo fugaz”.’6 A partir dessa data as peregrinações deErnesto a Malagueno se tornaram mais frequentes, não com a regularidade que Chichina desejaria,mas com crescente envolvimento da parte do Che. O namoro foi interrompido por algum tempo emvirtude de um primeiro afastamento de Ernesto — uma viagem como enfermeiro da marinhamercante, aventura cujo destino original era a Europa, “porque a Europa me atrai fortemente ”.17 No final do ano, duas evidências se impuseram ao namorado distante:estava profundamente apaixonado por Chichina, porém sua sede de viagem e liberdade se opunhaa esse amor. Não fica de todo claro na correspondência ou nas lembranças de Chichina se Ernestose afastou porque a relação com ela não satisfazia suas expectativas ou se preferiu alegar pro-blemas no relacionamento entre os dois para explicar sua partida, quando na realidade a decisão de

iniciar a suposta “viagem sem volta”38

 se deveu a motivos muito diferentes, sem vínculo com onamoro. Esta última é a hipótese mais plausível: Ernesto levantou voo em razão dos impulsos que omoviam, não por causa de suas desavenças com Chichina, ainda que estas de fato existissem. Oressabiado pretendente usa sucessivamente as duas teses acima mencionadas como argumento; épossível que ambas sejam certas e sinceras. Declara-se à namorada, por um lado: “Sei que a amo eo quanto a amo, mas não posso sacrificar minha liberdade interior por você; significa sacrificar a

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mim mesmo, e eu sou a coisa mais importante que há no mundo, como já lhe disse”.39 Evidentemente, o jovem — já dono de um elevado conceito sobre si próprio e o destino em quedesde então começa a se aventurar — vê a namorada como um obstáculo em seu caminho. Mas oprotesto era abstrato; a separação se explica pela personalidade do Che, não pelas características e a intensidade dorelacionamento em si. E até certo ponto um dilema à Ia Corneille, ligeiramente presunçoso e repletode um romantismo ingénuo, no estilo de El Cid: quando o destino e o amor entram em conflito, oprimeiro sempre vence, já que o segundo se esvanece quando repousa sobre a indignidade ou aabdicação. Rodrigo não seria digno do amor de Ximena se antes não vingasse a honra de seu pai,assassinado pelo pai dela.Por outro lado, Ernesto interpela de imediato o objeto de seu desejo com um pedido radicalmentedistinto, em um registro diametralmente oposto, agora passional e desinibido, em que a noção deseu próprio destino desaparece por completo. Com efeito, ele mesmo passa desavergonhadamentede um registro para o outro: “Além disso, uma conquista feita com base em minha presençaconstante eliminaria grande parte de minha atração por você. Você seria a presa capturada após aluta [...] Nossa primeira cópula seria um cortejo triunfal em homenagem ao vencedor, porém semprehaveria o fantasma de nossa união dentro e fora dela, porque, sim, porque era a coisa mais correta ou ‘exótica’ a fazer”.40 O fosso profundo que separa o Che de Chichina talvez ajude a decifrar o enigma. Na diferençaresidia obviamente parte da atração entre eles: como vimos, a família da moça era rica, enquanto ocaráter déclassé  da situação financeira do Che já era então visível. No modo de vestir, nas

maneiras, na visão de vida e posição social das famílias, nas amizades e personalidades, nada nosnamorados os unia, exceto a sedução exercida pela diferença. Para Chichina o namoro com o Chefoi passageiro; nada em sua vida posterior traiu sua antiga paixão. O Che, em compensação, inicioucom essa ligação um longo percurso: de Malagueno a La Higuera, seria sempre guiado pelodesconhecido e pelo diferente.A descrição feita por Chichina da atitude permanentemente provocadora da parte do namoradoreforça a impressão de uma atração de pólos opostos. Deliberada e maliciosamente, o Cheexasperava repetidas vezes vários familiares e amigos da moça — não todos: segundo Chichinasua tia Rita e seu tio Martín gostavam muito dele. Claro: vestia-se mal e de maneira desleixada, enão apenas para provocar ou chamar a atenção dos outros. Carente dos recursos necessários* paracompetir com a elegância de seus rivais na disputa da atenção de Chichina, ou dos demaisintegrantes do grupo de amigos e primos da moça, fazia da necessidade virtude, e ostentava comprgulho roupas que envergonhavam ou enfureciam a sua fina e graciosa acompanhante. Como eladiz:

Não era maldade mas havia coisas que me irritavam. Lembro que uma vez, em Miramar, fiqueimuito irritada quando fomos ao cassino. Não sei como se arranjaram, mas Granado estava muitobem vestido, e Ernesto, acho que ele(*) Dolores Moyano conta como as dificuldades da família tinham se agravado: o pequeno Juan Martín dormia em um caixote, e em certa ocasião Ana Mar ia Guevara não quis ir à festa deaniversário de Dolores porque não tinha sapatos “apresentáveis” (Dolores Moyano Martín, entrevistacom o autor, Washington, DC, 26/2/96).estava mais ou menos bem vestido. No início isso não me incomodava, mas dessa vez incomodou.Um amigo (ou eu mesma) lhe emprestou um casaco. Depois tínhamos de pagar o ingresso, e elefez alguma coisa para que não precisássemos pagar e entrássemos os três sem pagar, o que noslevou a ser insultados. Depois fomos a vários lugares onde ele não se entendia com as pessoas, e éterrível quando dois grupos não se entendem. Nosso grupo em Miramar não era muito chique nemsofisticado, eram pessoas normais, comuns, da burguesia de Buenos Aires, mas ele odiava essetipo de gente.41 

A aparência desmazelada do Che persistiria. O homem que cativaria milhões com o encanto doolhar, do sorriso e dos gestos, nunca se esmerou em cuidar da vestimenta. A camisa fora dascalças, os sapatos desamarrados e o cabelo despenteado se converteram em seus sinais distintivosdesde menino e o acompanhariam por toda a América, até a morte. Mais tarde, naturalmente,viraram hábito. Mas nos elegantes círculos frequentados por Chichina e por ele, implicavam certodesafio.Além do mais, suas provocações não se restringiam ao modo de vestir. José Gonzáiez Aguilar recorda uma cena típica, não pelo conteúdo da conversa (a atitude de Winston Churchill perante àsocialização da medicina, pouco após seu retorno ao poder em 1950), mas pela atitude do Che. Elediscutiu com o pai de Chichina durante um jantar em Malagueno e, quando d. Horacio Ferreyra ergueu-se da mesa exclamando: “Não, isso eu já não posso tolerar”, Ernesto fez pouco-caso, escandalizando até seu amigo: “Eu olhei para ele, pensando que se haveria alguém que tinha de irembora esse alguém éramos nós, mas ele se limitou a sorrir como um menino travesso e pôs-se amordiscar um limão, com casca e tudo”.42 

O fosso que separava o Che de Chichina e ao mesmo tempo o fascinava, condenava-o aodistanciamento e eventualmente à fuga. Para manter o relacionamento e vê-lo amadurecer, Ernestoprecisava reconciliar os opostos, medir a hostilidade das famílias e acalmar os ânimos. * O namoronaufragaria nos recifes das viagens do Che; o mesmo aconteceria com seus dois casamentos.Apenas um ano depois de iniciar o namoro, ele partiu. Não foi,(*) Existem versões de que Ernesto propôs a Chichina que se casassem, morassem juntos ou, em

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todo caso, fizessem uma viagem a dois. Frederik Hetmann (op. cit., pp. 24-6), em especial, elaboradiversas hipóteses, supostamente baseado em cartas trocadas por Ernesto e Chichina. Em umacomunicação ao autor datada de 6 de junho de 1995, em Malagueno, Chichina desmente tanto ascartas quanto as propostas de casamento, viagem ou coabitação, assim como uma série de alusõesde Hetmann ao pai dela. As fontes das cartas citadas por Hetmann — o jornal El Diário, com data de12 de setembro de 1969 — tampouco contêm qualquer carta ou referência à questão.naturalmente, a primeira de suas viagens. Antes, no início de 1949, Guevara percorreu as províncias

do Norte de seu país em uma espécie de bicicleta motorizada que ele mesmo projetou e construiu.O itinerário incluiu uma visita ao leprosário de San Francisco de Chanar, onde, como vimos, eleentrou em contato talvez pela primeira vez com o sofrimento extremo. Passou por Santiago de i Estero, Tucumán e Salta, onde o vislumbre da fartura e da exuberância do trópico o fascinou —assim como tudo o que era exótico o encantaria por toda a vida. A viagem permitiu-lhe tambémromper com as formas ortodoxas de turismo; ele assumiu a postura do que hoje chamaríamos demochileiro: Não cultivo os mesmos gostos que os turistas [...] o Altar da Pátria, a catedral, oprecioso púlpito e avirgenzinha milagrosa [...] asede da Revolução [...] Não é assim que se conhece um povo, Seumodo de viver ou sua interpretação da vida, aquilo é uma luxuosa cobertura; a alma de um povo sereflete nos enfermos dos hospitais, nos reclusos da prisão, no andarilho ansioso com quem seconversa enquanto se observa o turbulento caudal do rio Grande embaixo.4’ Ele voltou para Buenos Aires no fim das férias do verão de 1949, a fim de retomar os estudos demedicina, mas no final do ano estava outra vez insatisfeito. Empreendeu uma nova viagem, agora

trabalhando. Já havia registrado em seu primeiro diário de viagem, no tom hiperbólico que nunca oabandonaria, que estava mudando: “Percebo agora que amadureceu em mim algo que crescia faziatempo em meio ao vaivém cotidiano: o ódio da civilização”.44 Em dezembro de 1950 inscreveu-secomo enfermeiro do Ministério da Saúde Pública na marinha mercante argentina. Durante osprimeiros meses de 1951, viajou em petroleiros e cargueiros para o Brasil , Trinidad e Tobago, Venezuela e, com mais frequência, para Comodoro Rivadavia e para o Sul da Argentina. Mas nãofoi o que ele sonhara: em uma carta à mãe, queixou-se de que permaneciam muito tempo a bordo,ao passo que não havia tempo suficiente para visitar os portos de escala.* As viagens, porém,abriram-lhe novos horizontes, confirmaram seu gosto pelo exótico e seu tédio pelo conhecido. Comoescreveu à sua tia Beatriz, primeiro de Porto Alegre, e depois de Trinidad e Tobago: “Desta terra debelas e ardentes mulheres, mando um abraço compassivo para Buenos Aires, que cada vez maisme parece aborrecida [...] Depois de superar mil dificuldades, lutando contra os tufões, os incêndios,as sereias com(*) “Foi uma viagem confortável, mas não o convenceu; apenas quatro horas descarregando

petróleo em uma ilha, quinze dias de ida e quinze dias de volta” (Entrevista de C élia Serna deGuevara a Julia Constenia, publicada em Bohemia, Havana, 28/8/61).seu canto melodioso (aqui as sereias são da cor do café), levo como recordação desta maravilhosailha [...] um coração saturado de ‘belezas’ “ w  O  brilho distante de outras realidades era irresistível para o Che. Adorava Chichina porque destoavade seu meio, e ela de suas fantasias. Encantava-se com o trópico, o exotismo negro e mulato, porcontrastarem com sua branca Buenos Aires classe-média. Envolvia-se nas vicissitudes do sofri-mento humano em oposição à sua folgada existência de estudante universitário. Mais uma vez eleiria fugir.Embora o Che tenha magoado Chichina, insinuando de passagem que sua próxima viagem pelaAmérica Latina com Alberto Granado “não teria retorno”, ao mesmo tempo ele prometeu voltar. Suascartas e o diário de viagem que manteve de Miramar à Venezuela sugerem que ele julgava que adistância não destruiria necessariamente o vínculo entre eles. Da mesma forma que pensava emregressar para concluir os estudos, imaginava uma vida com Chichina — com ceticismo e reserva,

mas sem descartar inteiramente essa possibilidade. Até o nome que deu ao cãozinho com quepresenteou a namorada ao deixar Miramar — Comeback — anunciava sob qual bandeira elepensava navegar naqueles meses: o retomo não estava excluído, afinal de contas .* Como tantas vezes ocorreria nos anos seguintes, porém, as próprias ideias dele sobre o destino e ofuturo se chocaram com os desejos e decisões de outros. Foi Chichina que por fim rompeu orelacionamento entre eles e, em um certo sentido, desfez também o vínculo do Che com seu país deorigem. Tendo decorrido apenas um mês após a despedida em Miramar, Chichina toma a decisãodilacerante, pressionada pela mãe mas, à sua moda, concordando: “Tive de escrever uma carta aErnestito, praticamente obrigada por mamãe. Lembro que me fechei na biblioteca de Chacabuco echorei muito enquanto a escrevia”.46 Na carta, ela acabava com o namoro. Ernesto a recebeu, nosremotos lagos de Bariloche, como a uma ferida na alma: “Eu lia e relia a inacreditável carta. Assim,de um golpe, desmoronaram todos os sonhos de retorno, condicionados àqueles olhos que meviram partir de Miramar e sem nenhum motivo aparente [... ] era inútil insistir”.47 Alberto Granadocontou a Chichina, 45 anos mais tarde, que nunca vira Ernesto tão “desarvorado” e “comovido”como quando ele recebeu a carta fatal.48 Na resposta a Chichina (a penúltima carta que lheescreveria), o peregrino Ernesto Guevara verbalizou um “motivo” que sem dúvida co- (*) A própria Chichina lembra que “quando Ernesto se foi, nosso namoro continuou firme, e a mimparecia absolutamente normal” (Chichina Ferreyra ao autor, 7/3/96).nhecia desde antes, ao menos inconscientemente. Ele descreveu com precisão o momento emcurso na vida de ambos: “o presente em que nós dois vivemos um flutuando entre uma admiração

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superficial e laços mais profundos que a ligam a outros mundos, outro entre um carinho que acreditaserprofundo e uma sede de aventura e novos conhecimentos que invalida esse amor”.49 Começou aí o ciclo de rompimentos e despedidas de Che Guevara. De agora em diante sua vidaseria uma sucessão de afastamentos afetivos, geográficos e políticos. Eles explicam sua perpétuafuga, primeiro na praia em Miramar e depois nas salas de aula da faculdade em Buenos Aires. Nos-so protagonista não apenas foge da contradição; é um personagem em busca de uma tragédia. * 3OS PRIMEIROS PASSOS: NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISONo início de janeiro de 1952 começou a primeira grande viagem de Che Guevara; ele visitaria cincopaíses, ao longo de quase oito meses, em companhia de seu amigo de Córdoba, Alberto Granado.O Che descobriria um continente ainda desconhecido para ele, o exotismo pelo qual ansiava e umacerta maturidade, tudo de um só golpe. Essa viagem representaria para Guevara algo mais que umrito de iniciação e algo menos que uma ruptura definitiva com seu país, sua família e sua profissão.Foi, de certa maneira, como uma pré-estréia cinematográfica, no estilo da Revolução Russa de1905: o filme propriamente seria exibido apenas um ano depois.Ele partiu de Córdoba e fez uma breve parada em Miramar, em plena alta temporada do verão, paradespedir-se de Chichina. A semana na praia, a julgar pelo diário do viajante enamorado, foi idílica:“Foi uma lua-de-mel contínua, com aquele leve sabor amargo da despedida próxima, que era adiadadia a dia, até completar oito dias. Cada d ia eu gostava mais da minha outra metade , ou a amavamais. Nossa despedida foi longa, pois durou dois dias, e chegou bem perto do ideal ”.* (*) Ernesto Guevara Lynch, Mi hijo  el  Che, Madri, Ediciones Planeta,1981, p. 280. O pai do Che citatextualmente o diário do filho, reconstruído com base em cadernos que, segundo ele, encontroutempos depois na casa da família. Anos mais tarde, a viúva de Che Guevara, Aleida March, transcreveu os diários e organizou a publicação das notas de viagens do Che. Por algum motivo, afrase citada (sobre a semana em Miramar) não aparece na versão publicada por Aleida March: ou opróprio Che não a incluiu no diário quando o reescreveu, ou a viúva decidiu suprimi-la. Chichinalembra que José Aguilar, o qual viveu muitos anos em Cuba e continuou frequentando a família doChe, contou-lhe que Aleida sentia-se incomodada com o fato de o diário de Ernesto falar danamorada argentina (carta de Chichina Ferreyra ao autor, 22/8/96).A intenção inicial do Che consistia em fazer todo o percurso em uma motocicleta Norton, batizada com o nome La Poderosa  II, aproveitando a experiência da viagem pelas províncias do Norte daArgentina. O itinerário escolhido incluía o cruzamento do Chile pelo Sul dos Andes, atravessandoSan Carlos Bariloche pela região dos lagos; dali iria para Temuco e em seguida para Santiago. Nemtudo correu conforme o previsto. Já nas primeiras tentativas de empreender a passagem dos Andes

a Norton deu sinais de cansaço e relutância em seguir adiante. Ao cabo de repetidas avarias e con-sertos, foi preciso guindá-la a um caminhão de mudanças em Los Angeles, povoado do Sul doChile; por fim, foi abandonada em Santiago. Assim, a viagem de moto e o diário não existiram naverdade. Só uma pequena parte da jornada foi feita sobre duas rodas .* Justamente graças ao diário que o Che manteve ao longo da odisseia, e aos incontáveis relatospublicados por Granado, dispomos de uma quantidade considerável de testemunhos, recordações enotas dos dois jovens exploradores. Suas aventuras, que abrangem desde a tentativa do Che,induzido pelo álcool, de seduzir a esposa de um mecânico chileno em Lau-taro, até as peripéciaspróprias de uma valorosa defesa contra “tigres”, assaltantes e meliantes diversos nos cumes dosAndes, contam uma história de despertar para a liberdade.Nos relatos das aventuras e tribulações surge uma primeira pedra angular do futuro mito do Che: arealização da fantasia. A dupla de rapazes fez mais ou menos tudo o que se propôs. Visitaram asruínas de Machu Picchu e os leprosários do Peru, assistiram ao pôr-do-sol às margens do lagoTiticaca, navegaram o Amazonas de balsa, atravessaram o deserto de Atacama à noite e

contemplaram as neves eternas do altiplano peruano. Conversaram com mineiros comunistas emChuquicamata e com enigmáticos indígenas milenares nos ônibus que serpenteiam pêlos picosandinos. Uma viagem como essa era o sonho de todos os jovens do mundo do Che, o das universi-dades e das classes médias do pós-guerra, tanto na América Latina como , na Europa ou naAmérica do Norte: o sonho da aventura e da distância, que não(*) A avaria da moto foi uma bênção disfarçada, como bem notou Alberto Granado:“E indubitável que a viagem não seria tão útil e proveitosa como foi, como experiência pessoal, se amoto tivesse resistido [...] Isso nos deu a chance de travar conhecimento com o povo. Trabalhamos,arrumamos empregos para poder continuar viajando. Assim, fomos transportadores de mercadorias,carregadores de sacos, marinheiros, seguranças e médicos, lavadores de pratos” (Alberto Granado,entrevista com Aldo Medrón dei Valle, Granula, Havana, 16/10/67, p. 7).mudou muito depois de quase meio século. Não é mera casualidade o fato de que, trinta anos apóssua morte, as obras mais lidas do Che sejam dois “diários de viagem”, o da América do Sul e o daBolívia.’ Em algum nicho do imaginário social dos anos 60 — e dos 90, quando se redescobre o Che

 —, assoma a identificação da saga de Guevara com um road  book  ou um road movie:  Jack Kerouac no Amazonas, Easy  rider  nos Andes.O texto do Che foi transcrito com base em suas notas “mais de um ano”2 depois de a experiência teracontecido. O costume que se iniciou aí foi mantido até a morte de Guevara na Bolívia: ele escreviaduas vezes, primeiro o rascunho, durante a viagem, e a seguir passando a limpo e recapitulando osfatos. O mesmo sucederia na sierra Maestra, com Passagens da guerra revolucionária, e no Congo,

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onde escreveria um diário, até agora desconhecido, que seria usado como matéria-prima para aelaboração de outro texto.Os relatos e reflexões do texto não constituem, portanto, nem apontamentos espontâneos nemlembranças precisas. Daí seu grande valor para o biógrafo, mas também o perigo que encerram.Como documentos, são inestimáveis. Como fontes, devem ser esquadrinhados para que se possamcorrigir o esmero estilístico de um autor fascinado pela escrita, as reelaborações descritivas de umgrande narrador em potencial e deslocamentos de ênfase para outros acontecimentos ou

lembranças recuperadas no caminho, de sequências e hierarquias recriadas pelo tempo e peladistância.A julgar por esses relatos, a politização do Che crescia a passos largos, mas nem sequer seaproximava da de um aspirante a revolucionário. Ainda persistia nele uma visão moral — imberbe,se se quiser — da política. Sua sensibilidade à pobreza, à injustiça e à arbitrariedade tem um pesomuito maior que a cultura ou o conhecimento abstra io. Seu enfoque dos fatos permanece ingénuo eincompleto: a indignação e o senso comum encobrem sérias deficiências de análise. Tomemos porexemplo a seguinte passagem, que descreve o tratamento que o Che procurou dispensar a umaasmática idosa, freguesa de uma cantina em Valparaíso: Ali, naqueles últimos momentos de uma gente cujo horizonte mais longínquo sempre foi o dia deamanhã, capta-se a profunda tragédia que se encerra na vida do proletariado de todo o mundo; hánesses olhos agonizantes um humilde pedido de desculpas e também, muitas vezes, uma súplicadesesperada de consolo, que se perde no vazio, como se perderá em breve o corpo deles namagnitude do mistério que nos rodeia. Até quando perdura essa ordem de coisas baseada em um

absurdo sentimento de casta é algo a que não posso responder, mas é hora de os governantesdedicarem menos tempo à propaganda das virtudes de seus regimes e mais dinheiro, muitíssimomais dinheiro, às obras de utilidade social.’ Criava-se e consolidava-se uma conexão entre a vontade de ajudar o próximo (em geral pacientes)e uma visão mais ampla da “ordem das coisas”. A miséria e o desespero que brotam dadesigualdade e da impotência dos deserdados da terra afligem o Che, mas ele alcança um nível desofisticação em que estabelece um vínculo causal entre o destino deplorável do “proletariado detodo o mundo” e um “absurdo sentimento de casta” — ou seja — o status quo económico, político esocial. Porém, o remédio que propõe permanece ainda por demais limitado. E um típico lamento declasse média, imbuído da visão mais simplista: que os governantes parem de gastar em sua própriaexaltação (como Perón às vésperas da morte e da glorificação apoteótica de Evita) e prestem maisatenção nos desvalidos. Pouco se fala do motivo por que os governantes agem como agem, ou doque pode ser feito, além da fórmula ritual de que eles deveriam deixar de proceder como de cos-tume. Eis-nos diante de um apelo moral, surgido de uma postura ética e individual diante do estado

de coisas dominante. Com o tempo, a perspicácia política de Ernesto Guevara se direcionará eganhará a complexidade característica de um líder. Contudo, talvez nunca perca de todo essainocência original, a que provém do encontro do estudante de medicina com a dor e o sofrimento, eestranhamente mas também para sempre, de um certo distanciamento, uma posição marginaldeliberadamente assumida.A lúcida auto-análise do Che, que haveria de segui-lo até a tumba, desamparando-o apenas emmomentos de delírio febril ou asmático no Congo e na Bolívia, ajudava-o a discernir. Os pobres, osproletários e comunistas podiam ser irmãos — mas eram essencialmente estranhos para ele. Nãohavia assimilação possível entre ele e os operários, os índios do altiplano, os negros de Caracas.Eram e seriam sempre diferentes, e nessa diferença residia talvez a atração que exerciam sobre oChe e os limites da identificação deste. Isso se evidencia no relato feito pelo Che da amizade que osviajantes encetaram com um casal comunista em Chuquicamata, a maior mina de cobre a céuAberto do mundo, bastião imemorial do Partido Comunista do Chile. Guevara evoca o frio da noite eo calor humano que sentiu na companhia deles:

O casal hirto, na noite do deserto, acocorados um junto ao outro, era a encarnação do proletariadode qualquer parte do mundo [...] Foi uma das vezes em que mais passei frio, mas também aquelaem que me senti um pouco mais irmanado com esta estranha (para mim) espécie humana [...] Deixando de lado o perigo que o “verme comunista” poderia representar ou não para a vida sadia deuma coletividade, ali ele havia surgido simplesmente de um anseio natural por algo melhor, comoum protesto contra a fome contínua, traduzidono amor por essa doutrina estranha cuja essência eles nunca poderiam compreender mas cujatradução nas palavras “pão para o pobre” estava ao seu alcance; na verdade, preenchia suaexistência.4 O Che ficou chocado com o abismo entre os mineiros e os capatazes da mina — “os superiores, oslouros e eficazes administradores insolentes [...] os superiores ianques”; relacionou-o com a batalhapolítica que já então se travava em torno da nacionalização do cobre chileno.* A aproximação dapolítica mostra um interesse perspicaz pêlos problemas do Chile, mas, outra vez, também aquelecerto distanciamento; o tema em seu conjunto continua fundamentalmente estranho para ele. Nessesentido, o texto de Guevara não é uma reportagem jornalística nem uma série de reflexões políticas,e sim, acima de tudo, um diário de viagem. Sua síntese da luta envolvendo as minas de cobrechilenas reflete de maneira diáfana essa atitude:Trava-se neste país uma batalha económica e política entre os partidários da nacionalização dasminas, que une os grupos de esquerda e nacionalistas, e os que, baseados no ideal da livreempresa, julgam que é melhor ter uma mina bem administrada (ainda que em mãos estrangeiras) do

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que sujeita à duvidosa administração do Estado [...] Seja qual for o resultado da batalha, seria bomnão esquecer a lição dos cemitérios dos mineiros, ainda que contenham só um pequeno número daimensa quantidade de pessoas devoradas pêlos desabamentos, pela sílica e pelo clima infernal damontanha.5 A ênfase nas pessoas e sua aparente indiferença ao resultado da batalha política permeia aapresentação rigorosa da questão em outros aspectos, o que se reflete na maioria das descriçõesdas viagens do Che pelo Chile. Seu olhar clínico dos processos sociais e políticos se mantém. “O

panorama geral do saneamento no Chile deixa muito a desejar”, adverte Guevara, embora emseguida admita que “depois fiquei sabendo que era muito superior ao de outros países que vim aconhecer”.6 Os banheiros são sujos, os conhecimentos sobre higiene limitados, e prevalece “ocostume de jogar o papel higiénico usado no chão ou em caixas, em vez de jogá-lo na privada ”.7 (*) Sem dúvida sob influência de Alberto Granado, o jornalista francês Jean Cormier, o mais recentebiógrafo do Che, atribui enorme importância à visita à mina, transformando-a quase em ummomento fundamental do despertar político de Che Guevara: “E em Chuquicamata, entre 13 e 16 demarço de 1952, que Ernesto Guevara começa a se converter no Che [...] depois de Chuquicamata,ele se encontra em estado de incubação revolucionária” (Jean Cormier, Che Guevara, Paris, L êsEditions du Rocher, 1995, pp. 37 e 50). Talvez; mas nada nas palavras do Che atesta essatransformação, nem nesse momento, nem pouco depois.A sensibilidade do estudante de medicina é evidente; o Che não cogita das coisas necessariamenteem termos políticos ou sociais. A diferença sanitária entre a Argentina e o resto da América Latinana verdade não deriva de um pior “estado social do povo chileno”, mas da considerável e

generalizada distância entre o país do Che e os demais. O problema reside no fato de que asnações da América Latina, diferentemente da Argentina, não possuem redes de esgoto; por isso oscostumes, no fundo ecológicos ainda que anti-higiênicos, que o Che menciona.Dois comentários de índole estritamente política encerram o capítulo sobre o Chile e traçam asfronteiras da evolução ideológica de Ernesto Gue-vara de Ia Serna nesse momento. Um se refere àsentão próximas eleições chilenas e ao vencedor Carlos Ibanez, “um militar da reserva com tendên-cias ditatoriais e objetivos políticos semelhantes aos de Perón, que inspira no povo um entusiasmode tipo caudilhesco”.8 O viajante argentino tem razão sobre as semelhanças entre Perón e Ibanez,que estabeleceram uma relação estreita até a queda do primeiro, em 1955. Também acerta no quetoca às inclinações autoritárias e “populistas” (termo que não se empregava na época mas quereflete fielmente o sentido da frase do Che) de Ibanez. Ao mesmo tempo, a análise mais uma ve z deixa a desejar quanto à apreciação da natureza dos regimes populistas do período, não só naArgentina e no Chile como em outros países da América Latina. Onde o Che mostra maior lucidez éna avaliação do dilema político central de um país cujas reservas eram (e continuam a ser)

excepcionalmente abundantes mas que deverá “tirar de suas costas os incómodos amigos ianques, e essa tarefa é, ao menos por enquanto, árdua, dada a quantidade de dólares que eles investiram ea facilidade com que podem exercer uma pressão económica eficaz no momento em que seusinteresses se virem ameaçados”.9 Salvador Allende provaria, vinte anos depois, a eficácia dessapressão e a suscetibilidade desses interesses.A lista das passagens explicitamente políticas se esgota depressa. O Che é surpreendido pelaadmiração que seus interlocutores chilenos e peruanos têm por Perón e sua mulher ,* e fazconsiderações perspicazes, embora abstraias, sobre Lima, La  Blanca.** Mas é nas margens dapolítica, no seu encontro e sua fascinação com o mundo indígena da América Latina,(*) “Segundo eles (éramos uma dupla de semideuses), vindos nada menos que da Argentina, omaravilhoso país onde viviam Perón e sua mulher, Evita, onde os pobres tinham as mesmas coisasque os ricos e os ricos não eram exploradores” (ibidem, p. 107).(**) “Lima é a representante perfeita de um Peru que não saiu da condição feudal de colónia: aindaespera pelo sangue de uma verdadeira revolução emancipadora” (ibidem, P.167).

que se pode avaliar o verdadeiro impacto da memorável viagem sobre a formação de Che Guevara. Salvo as viagens marítimas pelo Caribe e pelo Brasil, os horizontes étnicos e sociais de Guevaranão ultrapassavam os centros urbanos de classe média branca de Córdoba e Buenos Aires. Para oshabitantes dessas cidades, as mais prósperas da América Latina, o conceito de população indígenapertencia mais aos poemas épicos e aos l ivros de história que à vida cotidiana. Mesmo um indivíduocom a notável consciência social de Ernesto, familiarizado com a pobreza e a marginalidade,desconhecia a imensa tragédia indígena latino-americana e a encantadora mescla de resignação emistério que povoa a paisagem índia da região. Guevara ficou maravilhado com a opulência dasculturas índias antigas e deprimido com a miséria das condições de vida e de trabalho das comu-nidades contemporâneas. Se alguns dos comentários e reações do Che parecem “politicamenteincorretos”, é preciso avaliá-los como parte da introdução dele ao exotismo alucinante e a suasedução.Talvez o texto mais interessante dessa etapa da vida do jovem escritor seja uma passagem porMachu Picchu. Foi publicado pela primeira vez em 13 de dezembro de 1953, no Panamá. Os

viajantes já tinham completado parte considerável de seu itinerário: o Chile, o lago Titicaca, astortuosas veredas do altiplano entre a fronteira boliviana e Cuzco. Já tinham tido o primeiro encontrocom “a raça vencida, a que nos vê passar pelas ruas do povoado. Seus olhares são mansos, quaseamedrontados e completamente indiferentes ao mundo externo”.10 Já tinham tomado o trem emCuzco rumo às ruínas, com sua “terceira classe destinada aos índios da região”, e observado “oconceito um tanto animal dos indígenas acerca do pudor e da higiene, que os leva a fazerem suas

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necessidades à beira do caminho, as mulheres limpando-se com a própria saia, e seguir em frente,despreocupados”.” O Che já tinha sofrido na própria pele os paradoxos da discriminação.Apanhados por uma tempestade entre Juliaca e Puno, “Suas Majestades brancas” foramconvidadas a entrar na cabine de um caminhão no lugar de várias mulheres, anciãos e criançasindígenas. Apesar de seus protestos envergonhados, os dois argentinos completaram a jornada aoabrigo da tormenta, ao passo que os nativos ficaram expostos à intempérie .12 Desde sua chegada ao Peru, o Che fora cativado pelo sincretismo arquitetônico e cultural das

construções coloniais, embora o termo talvez lhe fosse estranho. Ele lamentou a triste sorte domestiço — açoitado pelo “amargor de sua existência dupla”—“ e intuiu a simbiose terrível e mágicaentre sincretismo e mestiçagem, de um lado, e conquista, de outro; “Lês uns ne sont rien sans 1’autre”, diria Paul Valéry. Che Guevara adquiriu uma espécie de orgulho mestiço, a Ia  Vasconcellos, que o levou a evocar uma homogeneidade fictícia. Como diria em uma de suasprimeiras alocuções “públicas”, agradecendo a festa de seu aniversário aos habitantes de umpovoado amazônico, “constituímos uma única raça mestiça, que desde o México até o estreito deMagalhães apresenta notáveis semelhanças etnográficas”.14 Porém, nada o toca como Machu Picchu. O Che se deslumbra com o mistério da cidade escondida durante séculos e celebra sua descobertapelo explorador Hiram Bingham, embora manifeste tristeza ante as consequências do achado:“Todas as ruínas ficaram completamente despojadas do que quer que tenha caído nas mãos dospesquisadores”.15 Distingue facilmente a qualidade das edificações, tecendo comentários sobre os“templos magníficos” da área dedicada ao culto, os setores “de extraordinário valor artístico”

destinados à residência da nobreza e “a falta de cuidado no polimento das rochas” característica dasmoradias da gente comum. Guevara relaciona a conservação do lugar com a sua localizaçãotopográfica e a facilidade de defesa que apresenta. Conclui sua reflexão resumindo as excepcionaiscircunstâncias de Machu Picchu — sua civilização, sua preservação à margem da conquistaespanhola do Novo Mundo e sua localização: “Encontramo-nos aqui perante uma pura expressão dacivilização indígena mais poderosa da América, não tocada por nenhum contato com as hostesvencedoras e repleta de tesouros evocatórios entre seus muros mortos, ou na estupenda paisagemque a circunda e lhe dá a moldura que conduzirá qualquer sonhador ao êxtase ”.16 O sortilégio tecido pela arqueologia e pela exploração permitiu que o Che compreendessefenómenos que outros aficionados poriam em evidência décadas depois, entre eles Steven Spieiberg, o qual deve muito a Guevara, embora não o saiba. Trinta anos antes da irrupção deIndiana Jones nas telas e na imaginação das crianças do mundo inteiro, Ernesto Guevaradescobrira Gff  segredo do cineasta norte-americano nas fantasias de Hiram Bingham:“Machu Picchu significou para Bingham o coroamento de seus mais puros sonhos de menino grande

 — a maioria dos entusiastas dessas ciências não passam de meninos grandes”.’7

 O Che entendeuque a sedução da arqueologia sobre Bingham, Harrison Ford e ele próprio derivava de sua condiçãoespecial de “meninos grandes”. Com sua lente, Spieiberg captou que nada encanta tanto ascrianças como ver gente grande comportar-se como elas.Uma última passagem dessa crónica notável — provavelmente o primeiro artigo de Che Guevarapublicado com sua assinatura — quemerece ser mencionada é a que reflete sua ob^etividade e paixão em relação aos Estados Unidos.Seu antiamericanismo cresce a cada semana. O comentário dele sobre a incapacidade dos “turistasianques” para perceber “as sutilezas que só o espírito latino-americano pode apreciar” é altamentereveladora. Porém, o bom senso o impede de levar sua hostilidade ao extremo;tampouco permite que se distorça sua visão dos incontornáveis fatos inerentes a qualquerexploração científica. Ao escrever sobre a inegável tragédia da pilhagem das ruínas de MachuPicchu, ele adverte: “Bingham não é culpado, objetivamente falando; nem os norte-americanos emgeral são culpados; tampouco é culpado um governo incapaz de financiar uma expedição como a

liderada pelo descobridor de Machu Picchu. Então não há culpado? Aceitemo-lo. Mas onde sepodem admirar ou estudar os tesouros da cidade indígena? A resposta é óbvia: nos museus dosEstados Unidos.”18 Do altiplano andino os exploradores seguiram para Lima e, dali, para a Amaz ónia peruana. Aestadia na velha capital dos vice-reis quase não marcou os “antituristas”, exceto pelo romance fugazcom Zoraida Boluarte, uma terna limenha que trabalhava como assistente social no leprosário dirigido pelo eminente médico dr. Hugo Pesei, comunista.19 Zoraida conseguiu alojamento para osviajantes no leprosário, que era administrado por freiras, e convidava-os diariamente para jantar emsua casa. A correspondência entre a moça e Ernesto se estendeu até 195 5 . A dedicatória do Cheescrita em uma fotografia tirada meses depois mostra o afeto que tinha por ela e sua opinião sobreas próprias andanças: “A Zoraida, com a intenção de que esteja sempre pronta a receber um par devagabundos flutuantes procedentes de qualquer lugar e indo para qualquer outro, sempre à deriva,sem passado nem futuro, e com a esperança de que nunca perca a mania de alimentar ociosos”.20 Embora a correspondência entre os dois conserve o respeitoso usted  que conhecemos das cartasescritas a Titã Infante e o tom não indique uma relação demasiado íntima, pode ter acontecidoalgum envolvimento amoroso, tanto durante a viagem como no retorno de Ernesto a Lima em fins de1953.* Os dois andarilhos subiram o rio Ucayali de barco até o leprosário de San Pablo, e durante o trajeto Ernesto teve uma fortíssima crise asmática que ele relatou com riqueza de detalhes. O flerte comuma clássica prostituta

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(*) Segundo uma pesquisadora peruana, Zoraida “não gosta de falar da passagem de Ernesto porsua casa, pois considera que se tratou de algo fortuito e muito pequeno na vida do comandanteGuevara” (Zoraida Boluarte, testemunho colhido por Marta Rojas, Gran-“M, 9/6/88).despertou-lhe carinho e curiosidade; a menina bonita e atrevida consolou-o em seus momentos deaflição, e ele retribuiu com essa mescla de afeto e repulsa que as prostitutas evocam comfrequência nos homens solitários. A história é ainda mais tocante porque a crise ocorreu poucos diasapós uma outra, igualmente violenta, que teve lugar no porto fluvial de Iquitos, onde o Che teve de

“ficar na cama” e injetar-se adrenalina até quatro vezes por dia.2’ Apesar de Ernesto dedicar poucoespaço aos acessos de asma, o diário pormenorizado de Granado traz uma série de ataquesininterrupta, quase cotidiana. Praticamente a cada duas páginas ele narra como seu companheirocai vítima de crises respiratórias, obrigando os viajantes a buscar água e fogo para esterilizar asseringas e injetar-lhe adrenalina ou qualquer sucedâneo.22 Diante do exaustivo e desesperador sofrimento gerado pêlos acessos e a permanente dificuldade de conseguir medicamentos, o Cheformula a mesma pergunta que responderá de maneira idêntica durante os próximos quinze anos deseu calvário: “A abóbada imensa que meus olhos desenhavam no céu estrelado palpitavaalegremente, como que contestando com uma afirmativa a indagação que assomava de meuspulmões: vale a pena?”.23 A quinzena passada no leprosário ajudou o enfermo a se restabelecer, ainda que fosse apenas pelocontraste com a tragédia que o cercava. Guevara sentia cada vez mais fascínio e repulsa pêlostraços aterradores da antiga e estigmatizada doença: “Um dos espetáculos mais interessantes quevimos até agora: um acordeonista que não tinha dedos na mão direita e os substituía por uns

pauzinhos que amarrava ao punho; o cantor era cego e quase todos eles tinham rostos monstruosospor causa da forma nervosa da enfermidade [...] Um espetáculo de filme de horror”.24 Dali os dois amigos navegariam de balsa pelo Amazonas até a Colômbia, onde se internaram pelosonolento e abafado povoado de Letícia. Em suas duas semanas na Colômbia não tiveram maioresaventuras, salvo uma pequena discussão com a polícia de Bogotá, que os maltratou quandoEnnesto sacou desavisadamente uma faca da bolsa para desenhar um mapa no chão. Ele nãoparece lamentar muito a decisão de partir para a Venezuela, exceto por alguns comentários sobre ocaráter repressivo do regime de Lau-reano Gómez e a onipresença da polícia. “Um clima asfixiante”,queixou-se, mas “se os colombianos querem aturá-lo, o problema é deles; nós nos arrancamos oquanto antes”.25 Caracas e Miami foram escalas em boa medida desprovidas de grandes atrações. Os encontroscom mundos, sociedades, raças e culturas totalmente estranhas para Guevara até entãocontinuavam a produzir fortes reações desua parte, como indicam seus comentários a propósito da população de origem africana na

Venezuela. Esse não foi necessariamente seu primeiro contato com “os negros”; em suas viagensmarítimas por Trinidad e Tobago e Porto Alegre, decerto cruzou com os descendentes dos escravossequestrados na África vários séculos antes. Ainda assim o impacto com a alteridade foi óbvio, masa reação do Che — que hoje poderia parecer racista — surpreende:Os negros, os mesmos magníficos exemplares da raça africana que mantiveram sua pureza racialgraças ao pouco apego que têm ao banho, viram seu território invadido por um novo tipo deescravo: o português [...] O desprezo e a pobreza os unem na luta cotidiana, mas o modo diferentede encarar a vida os separa completamente; o negro indolente e sonhador gasta seu dinheirinho emqualquer frivolidade ou diversão, ao passo que o europeu tem uma tradição de trabalho e deeconomia.26 Em Caracas, onde Granado decidiu ficar, um amigo argentino ofereceu a Ernesto carona de voltapara seu país em um avião que transportava cavalos de corrida. Apenas um problema: era precisoparar em Miami, e a escala se prolongou por mais de um mês, à espera do visto para entrar nosEstados Unidos. Um jornalista argentino da United Press ofereceu seus bons ofícios para

providenciar o documento junto à embaixada norte-americana, vangloriando-se durante um jantar deseus contatos na missão estadunidense. Então o jornalista passou rapidamente a tecer elogios aocolosso do Norte e a lamentar a oportunidade perdida pêlos latino-americanos, os crioííos*argentinos em particular: quando não aceitaram a derrota para os ingleses em 1806, desperdiçarama chance de se tomar parte dos Estados Unidos. Os jovens turistas, patriotas e cada vez maisantiamericanos, ofendidos em sua recém-descoberta identidade latino-americana, se revoltaram.Granado replicou indignado que também poderiam ser índios, desnutridos, analfabetos e súditosdos ingleses. Guevara exclamou: “Pois eu prefiro ser um índio analfabeto a um norte-americano milionário”.” A sinceridade do protesto é sintomática: a grandeza e a tragédia da vida do jovemconsistiram talvez em sua crença de que todos os latino-americanos pensavam como ele, quandona realidade a maioria provavelmente partilhava das opiniões simplistas do jornalista da UnitedPress, e preferiam ser milionários norte-americanos a índios analfabetos.A escala em Miami não mereceu maiores comentários no diário do Che, a não ser que durou trinta epoucos dias e foi a sua única estadia nos

(*) Naturais da América espanhola na época colonial. (N. T.)Estados Unidos, além da semana que ficou em Nova York, quando compareceu à Assembleia Geraldas Nações Unidas em dezembro de 1964. A esse respeito, contamos apenas com as recordaçõesde Jimmy Roca, com quem Ernesto passou esse período na Flórida. Roca era primo-irmão deChichina, que deu ao Che seu endereço em Miami e quinze dólares para que comprasse um trajede banho para ela. Segundo Roca, “durante sua visita partilhamos as limitações da vida de

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estudante que eu levava. Vivíamos tomando cerveja e comendo batatas fritas; o dinheiro não davapara mais”.28 Como o Che confessou a sua amiga Titã Infante, ao voltar a Buenos Aires, “foram osdias mais amargos de minha vida”. Havia muitos motivos — financeiros, ideológicos, pessoais —para o seu lamento.29 Para Ernesto Guevara, a viagem pela América do Sul foi uma espécie de epifania pessoal e política.Mas não devemos necessariamente tomar ao pé da letra sua avaliação da natureza e da magnitudeda mudança ocorrida em seu caráter e visão de mundo. O Che certamente reconhece que “o per-

sonagem que escreveu estas notas morreu ao pisar de novo o solo argentino;quem as ordena e burila, eu, não sou eu”.’0 Sem dúvida, a decisão de continuar a viajar, de sóretornar a Buenos Aires para terminar os estudos e cumprir a promessa feita à mãe, foi tomadadurante a viagem. O Che planejava reencontrar o amigo Granado na Venezuela assim que sediplomasse, e trabalhar no leprosário onde Granado já conseguira emprego. Enquanto esperava oconserto do avião em Miami, o Che refletiu profundamente sobre o seu futuro. Ele não ficaria naArgentina. Oito meses e uma eternidade depois de ter partido, ele voltou a Buenos Aires em 31 deagosto de 1952, disposto a partir de novo o mais rápido possível.A lenda da politização e militância atribuída a essa viagem, que foi criada em diversas biografias erelatos da juventude do Che, porém, não se ajusta a suas anotações. A poderosa atração pelascoisas e povos diferentes era inegável, mas não passava disso. Suas reações à população indígenae à cultura latino-americana refletem ainda pobreza no que se refere a conteúdo e conhecimentopolítico. Justamente nas semanas em que articulava seus pensamentos e dúvidas sobre a apatia eo infortúnio dos índios peruanos, por exemplo, estourou a revolução boliviana de 1952, a primeira

rebelião de camponeses indígenas desde o levante zapatista no México, meio século antes; oacontecimento não é mencionado do diário de viagem do Che.”As reflexões de Ernesto sobre si mesmo, seus propósitos e predileções em geral durante a viagemmostram-se mais perceptivos e significativos que suas análises políticas e culturais. Ele resolveudeixar seu país, a carreira, afamília e a ex-namorada; mas ainda não encontrou seu destino, nem sequer sabe onde procurá-lo.A criação do herói e seu mito ainda não se iniciara. O Che simplesmente delirava quando escreveu,

 já de volta a Buenos Aires:“Estarei com o povo; tingirei de sangue minha arma e, louco de fúria, degolarei meus inimigosvencidos. Já sinto as narinas dilatadas saboreando o acre odor de pólvora e sangue, da morte doinimigo”.’2 Ele ainda não ouvira “o uivo bestial do proletariado triunfante”,* nem encontrara ospersonagens, fatos e emoções que o transformariam. Ainda estavam faltando os dois ingredientesprincipais que o conduziriam à metamorfose e à glória: Fidel Castro e o advento da rebeldia e daRevolução.

A volta do Che a Buenos Aires foi facilitada pela sua certeza de que logo partiria novamente. Seuspais e irmãos o receberam com todo o carinho e entusiasmo que o retorno do filho pródigo merece.Depressa entenderam que algo mudara no olhar e no ânimo do rapaz, o qual estava para completarum quarto de século. Ernesto se instalou na casa de sua tia Beatriz, para estudar muito e seraprovado em todas as matérias pendentes. Além da impaciência por partir de novo, surgira umincentivo adicional. Em seu ocaso, o peronismo se tornara mais personalista e autoritário; a partir de1954, era preciso cursar aulas de Justiciaíismo (o nome oficial da doutrina peronista) e “educaçãopolítica” para diplomar-se na universidade. O aperonista Che não estava disposto a fazê-lo. Alémdisso, voltou a ter problemas com o serviço militar (os quais talvez expliquem os comentáriosbizarros de Perón citados no capítulo anterior). Ele sabia que, assim que completasse os estudos,sua licença prescreveria; ele precisaria apresentar-se novamente perante a junta de alistamento.Nessa ocasião a saúde frágil o salvou: segundo Granado, “ele tomou um banho gelado antes de serexaminado pela comissão médica, o que provocou uma crise de asma graças à qual foi declaradoinapto para o serviço militar”.” Como sua mãe disse mais tarde: “Se o comandante Ernesto Guevara

tivesse sido obrigado a passar um ano fazendo compras para a esposa do primeiro-tenente, oucuidando da aparência da car-tucheira que seu superior jamais utilizaria [...] seria um absurdo ver-gonhoso. Mas foi declarado inapto. Existe justiça, afinal”.’4 Dedicando catorze horas por dia aos estudos, Ernesto fez os exames em quatro etapas: umamatéria em outubro, três em novembro e dez em dezem- (*) Ernesto Guevara, Mi (irimer fyan, p. 187. Várias pessoas que leram essas passagens do diário econheceram o Ernesto dessa época têm dúvidas sobre sua autoria. E o caso de Chichina Ferreyra, que o sugere em carta ao autor, de 22 de agosto de 1996.bro. Em abril fez o último exame de sua carreira e em 12 de junho de 1953 obteve o título de doutorda Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. Menos de um mês depois, e a apenasum ano do regresso a casa, tomou o trem na estação de Retiro, acompanhado de seu amigo deinfância Carlos “Caliça” Ferrer, em direção à Bolívia, primeira escala de seu retorno à Venezuela.Pouco sabemos sobre os dez meses da última estadia de Ernesto Gue-vara em Buenos Aires. Elefalou em outubro com Chichina,35 e a viu em novembro ou dezembro em Buenos Aires, depois de se

inteirar misteriosamente de sua passagem pela capital, em um encontro sem maiores conse-quências ou arrependimentos; recebeu da ex-namorada um tratamento “frio e distante”.’6 Encontraram-se pela última vez em Malagueno, no início de 1953; algo da paixão antiga subsistia, jáque, segundo Chichina, “mais de uma vez ficamos nos olhando por longos momentos”.’7 Durante esses meses, o Che trabalhou no laboratório do dr. Salvador Pisani como alergologista. Sua dedicação e talento eram tamanhos que, o professor lhe pediu que permanecesse como

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pesquisador em sua clínica, oferecendo-se inclusive para remunerá-lo (um raro privilégio, segundoseus colegas).’8 Ele se dedicava com o mesmo afinco ao trabalho no laboratório e aos estudos emcasa ou na biblioteca. De acordo com seus companheiros, nessa época já “falava do imperialismoianque, do domínio da América Latina e da necessidade da libertação [com] ardor passional”.39

Durante esse período, escreveu poucas cartas e raras vezes encontrava com os conhecidos dauniversidade ou da infância. Reelaborou seu diário de viagem, transformando-o no texto queconhecemos hoje. Segundo as recordações de José Aguilar sobre uma longa caminhada com seu

amigo às vésperas da partida, Guevara se interessava muito mais pela política, mas sua intenção aopartir para a Venezuela ainda era “trabalhar como médico”.40 11 Por que o Che, pouco depois de completar 25 anos, deixou sua pátria para nunca mais voltar?Por uma série de fatores, uns que o atraíam, outros que lhe provocavam repulsa; uns passageiros eilusórios, outros de longo alcance e profundamente psicológicos. Ele próprio dizia: “O que fiz foi ape-nas fugir de tudo o que me incomodava”.41 E outra a versão de Isaías Nougués, que recebeuErnesto e Caliça Ferrer em La Paz: “Dizia que sua partida da Argentina devia-se à ditaduraperonista, que lhe dava asco, e que preferia partir a conviver com ela. Todavia, Ferrer, seucompanheiro de viagem, considerava que o verdadeiro motivo era a situação de sua casa,onde a forte — e descontente — personalidade de sua mãe diluía e frustravaa personalidade de seu pai”.* Para Jorge Ferrer, o irmão de Caliça, o novo e definitivo exílio do Che não se devia a umanecessidade de fugir, mas antes a seu desejo de conhecer o mundo, de compreender os problemase realidades da América Latina e de continuar a descobrir os mistérios e encantos das culturas

estrangeiras.42 Há ainda o compromisso que Guevara assumira com Alberto Granado de tra-balharem juntos no leprosário venezuelano do Orenoco, e as promessas aos amigos eram sagradaspara ele. Por fim, o fascínio pelo desconhecido continuava a arrastá-lo para longe, juntamente comos sentimentos conflitantes que agoniavam sua vida portenha: a separação-reconciliação dos pais, odilema político, existencial e familiar representado pelo peronismo, seu interesse e ao mesmo tempodistância em relação à profissão, e o tédio pela plácida monotonia de Buenos Aires.O afastamento da família foi doloroso para todos, mas em especial para sua mãe. Sua noratestemunha: “Quando ele partiu, lembro que Célia, sua mãe, estava sentada em uma poltrona,agarrou minha mão e me disse: ‘Mi-nucha, vou perdê-lo para sempre, nunca mais verei meu filhoErnesto’. Depois fomos à estação de trem; Célia estava lá; lembro que quando o trem partiu Céliacorreu, correu, correu pela plataforma, junto com o vagão”.43 O Che deixava para trás uma Argentina revolvida por sete anos de peronismo e uma década inteirasob a influência do general. Muita coisa mudara no país: o crescente sentimento de dignidade dostrabalhadores, a ascensão de uma burguesia industrial, uma nova superioridade internacional da

nação, não mais baseada nos jogadores de pólo ou nos tangos de Gardel, mas em uma tentativa —afinal fracassada — de encontrar uma posição intermediária na bipolaridade da guerra fria. Mas ascoisas estavam tomando um novo rumo. Após a morte de Evita, o alinhamento de Perón comsetores que antes combateram seus enfoques e programas — o capital estrangeiro, a oligarquiarural, os Estados Unidos — levava-o a ganhar tempo, mas de maneira nenhuma a simpatia de seusantigos adversários. E o afastava de suas bases.Esse novo foco do governo também contribuía para endurecê-lo e(*) Carta de Isaías Nougués (filho) ao autor, Buenos Aires, 29/3/96. Ao ser indagado, Ferrer nãonega o motivo, mas confere-lhe uma importância menor. “Sim, afetou-o um pouco, pois creio que nofinal a relação piorou, mas, bem... não era tão grave, na minha maneira de ver. Não sei, não merecordo, sinceramente não me recordo” (Carlos Ferrer, entrevista telefónica com o autor, BuenosAires-Gualeguachu, 25/8/96).acentuar seu desespero. O culto à personalidade de Perón e de sua finada companheiraexacerbava-se; intensificavam-se os esforços para manter pela propaganda o apoio originalmente

conquistado por meio de transformações reais. Ao término da guerra da Coreia, a economia já nãogerava recursos para subsidiar a generosidade social do Estado argentino. Che Guevara despede-se em 1953 de uma sociedade desalentada, como ele, pela ausência de opções: não havia nada aser feito, nem contra Perón (pelo que ele realizara), nem a favor dele (pelo que se tornara).A primeira escala da nava viagem foi a Bolívia, não tanto por interesse intrínseco pelo país, e suasituação política e social, mas porque era o modo mais barato de chegar à Venezuela de trem. Apósum vagaroso tra-jeto em vagões lotados de “gente de condição muito humilde [...] peões do Norte daArgentina ou bolivianos que regressavam a suas terras depois de ganharem uns pesos em BuenosAires”, e de uma violenta crise de asma durante a subida da cordilheira,* Ernesto Guevara e CaliçaFerrer chegaram a La Paz em 11 de julho de 1953. Passara-se apenas um ano desde a tomada dopoder pelo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), liderado por Víctor Paz Estenssoro, e opaís ainda vivia um efervescente período de reforma.A nova dupla de viajantes permaneceu cinco semanas na Bolívia, período que daria muito o quefalar em diversas biografias e análises da vida do Che, apontado como passo fundamental em sua

evolução política. E essa a opinião de Caliça Ferrer, que conhecia Ernesto desde Alta Gracia econviveu com ele em Buenos Aires ao fim de sua viagem pela América Latina com Granado. Ferrerconsidera hoje que a verdadeira politização do amigo aconteceu na Bolívia, junto com a emergênciade um poderoso sentimento antiamericano,44 que pode ter surgido na visita a uma mina detungsténio nas encostas do Ulimani, onde testemunharam abusos cometidos por capatazes norte-americanos contra os trabalhadores locais.45 

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Contudo, a estadia na Bolívia dificilmente pode ter contido a totali- (*) Isaías Nougués, op. cit. Caliça Ferrer lembra o episódio: “Ernesto sofreu uma crise de asma queo deixou como morto. Lembro que o carreguei nas costas como pude [...] Deitei-o na pensão, comomorto, pois eu conhecia as crises de asma de Ernesto, mas não com aquela gravidade” (cit. ClaudiaKorol, El Che y los  argentinos, Ediciones Dialéctica, 1988,p.88).dade dos encontros, análises e fatos mencionados desde então.* Um grande número de pessoasconservam na memória algum episódio do período em que o Che esteve na Bolívia: desde o atual presidente, Gonzalo Sánchez de Losada, que afirma ter conhecido Guevara em uma reunião socialem Cochabamba, até Mário Monje, ex-dirigente do Partido Comunista Boliviano, que relata como oChe visitou as minas de estanho durante sua passagem pelo país:Che Guevara conseguiu trabalho em uma mina chamada Bolsa Negra, perto de La Paz, um lugarum tanto frio. Claro que o grupo de mineiros era pequeno, mas para chegar a l íder era preciso estarali há um bom tempo, e o melhor era trabalhar no interior da mina, e não como médico. Ele émédico, seu vínculo é apenas circunstancial. E assim como, eu diria... ele chega à Bolívia como umasemente de orquídea, em busca de um lugar onde se assentar.46 O Che logo se iludiu com a revolução boliviana, embora depressa se irritasse com suas falhasóbvias.** Em sua correspondência inicialmente enfatizava os aspectos positivos: a criação dasmilícias armadas pelo governo revolucionário, a reforma agrária, a nacionalização das minas deestanho e antimônio. Assim, em 24 de julho — ou seja, pouco mais de dez dias depois dedesembarcar na capital boliviana — escreveu ao pai que o país “vive um momento particularmenteinteressante” e que presenciou “desfiles incríveis de gente armada de máuseres e matracas”.47 Em

uma carta a Titã Infante, postada em Lima no início de setembro, ele comenta: “A Bolívia é um paísque deu um exemplo realmente importante para a América [...] Aqui as revoluções não são feitascomo em Buenos Aires [...] o governo está apoiado(*) Assim um biógrafo peruano relata que o Che “redigia boletins no escritório de comunicação dapresidência, e diz-se que até trabalhou um turno como guarda no Palácio Quemado” (Carlos J.Viliar-Borda, Cfie Guevara: su  vida y su  muerte, Lima, Editorial Gráfica Pacific Press, 1968, p. 66).Um cubano que encontrou o Che na Guatemala narra como “o dr. Guevara conheceu então naBolívia Juan Lechín”, o legendário dirigente dos trabalhadores das minas de estanho (Mário Meneia,“Así empezó Ia historia dei guerrillero heróico”, Revista de Ia Biblioteca Nacional José Marti’, Havana, maio-ago. 1987, p. 48).(**) Quatro são as fontes que reconstituem a estadia do Che na Bolívia: suas próprias cartas àfamília e a Titã Infante; os relatos posteriores de seu companheiro de viagem, Caliça Ferrer; asrecordações da família de Isaías Nougués, o exilado argentino que recebeu os viajantes, e o relatode Ricardo Rojo, um advogado radical recém-expatriado por ser antiperonista, cuja amizade com

Ernesto duraria até 1965. Apesar das repetidas denúncias cubanas sobre o conteúdo do livro Miamigo el Che, Rojo narra com inteligência e sensibilidade — nem sempre com precisão — suasviagens, conversas e reflexões com o compatriota.dos mineiros e a um desdém pela marca deixada na consciência camponesa por uma reformaagrária truncada mas que distribuiu terras a milhares de moradores da zona rural: “Era umamanifestação pitoresca porém não viril. O passo fatigado e a falta de entusiasmo de todos elestirava-lhe a energia vital; perderam-se os rostos enérgicos dos mineiros [...]”.5’ O mesmo enfoque distorcido o impediria de assimilar o alcance das negociações entre o novoregime de Paz Estenssoro, Juan Lechín e Hernán Siles Suazo, pela Bolívia, e Milton Eisenhower, oenviado do governo dos Estados Unidos, em meados de 1953, durante a visita do irmão do herói daNormandia. O acordo, firmado quando o Che se encontrava na Bolívia, obteve sucesso: evitou oenfrentamento com Washington e simultaneamente conservou uma proporção signif icativa dasconquistas e reformas do regime. Dotou a classe política e o exército da Bolívia de autoconfiança,assim como de uma sólida disposição de solicitar ajuda externa, combinação rara entre as classes

governantes da América Latina. Ao defrontar-se em 1967 com esse amálgama de nacionalismocastrense — limitado mas profundamente t -iraizado — e a estreita colaboração com as forçasarmadas estadunidenses, Che Guevara sofreu as consequências de sua leitura ao mesmo tempoarguta ^ errónea da história boliviana.Vale destacar a ausência de qualquer comentário por parte do Che ou de seus amigos de entãosobre o acordo entre o regime revolucionário e a administração Eisenhower. Assim como no caso deLázaro Cárdenas no México, em 1938 — e ao contrário do que acontecerá em Cuba, em 1959-60, ea seguir no Chile, em 1970-3 —, a revolução do MNR arrancou do governo norte-americano umaaceitação relutante mas resignada de sua reforma agrária e do programa de expropriação damaioria dos recursos naturais. Obviamente, houve um custo: outros aspectos do processo dereformas foram sacrificados, as empresas nacionalizadas foram indenizadas e o regime foi forçado asubmeter-se a uma aliança ideológica férrea com um país estrangeiro. Nunca foi fácil efetuar obalanço final do pacto, porém surpreende que uma das características mais idiossincráticas darevolução boliviana de 1952 não tenha provocado nenhuma reação no jovem Ernesto. Ou sua

curiosidade política era ainda imatura, ou ele estava dominado por uma subestimação maiscomplexa da importância do fator externo em um processo revolucionário como o boliviano. Amudança em seu pensamento — ou a maturidade — não tardariam a ocorrer. A Guatemala seria aescala seguinte da jornada de Guevara.Não havia motivo para permanecer na Bolívia, por mais interessante que parecesse o seu panoramapolítico. Em meados de agosto, o Che e Caliça partiram de novo e, por insistência do Che,

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retomaram o trajeto anterior com Alberto Granado. O recém-formado médico retomou a Cuzco, Machu Picchu e depois a Lima, reencontrando Zoraida Boluarte e o dr. Pesei. Ali Ricardo Rojo uniu-se aos dois, e ao fim de algumas semanas na capital peruana eles se dirigiram a Guayaquil, arquétipo do inferno portuário tropical, no Equador. Ficariam quase três semanas encalhados noporto bananeiro, em companhia de outros amigos argentinos, Guevara em condições deploráveis desaúde e financeiras, até que conseguiram passagem para o Panamá em um barco da Frota Brancada United Fruit Company. O Che aprendeu que, se a altitude do altiplano o destruía fisicamente, o

calor e a umidade dos trópicos eram devastadores.No perene mormaço de Guayaquil, Ricardo Rojo e os outros companheiros convenceram o Che atomar uma decisão crucial para sua vida futura. Ele abandonou seu plano de encontrar-se comGranado na Venezuela e optou por viajar com os amigos para a Guatemala.* Naquele país indígenae desconhecido, estava em marcha um processo de reforma semelhante ao da Bolívia, porém tavez mais radical, e de qualquer maneira mais recente e mais desafiador para os Estados Unidos. Aviagem para a Guatemala foi acidentada e árdua. A asma de Ernesto, a falta de recursos, e astrocas constantes de companheiros — Caliça Ferrer separa-se do grupo em Quito, para depoisseguir para a Venezuela — dificultaram e prolongaram o percurso. Eles demoraram dois mesesinteiros para chegar à Cidade da Guatemala, ao fim de uma série de paradas mais ou menosprevistas, principalmente no Panamá e em San José, na Costa Rica. No Panamá o Che publicou oseu primeiro escrito, como já assinalamos. Percorreu o canal e constatou o contraste, talvez maisacentuado que hoje, entre os bairros panamenhos e a zona do Canal, ordenada, limpíssima epróspera, anglo-saxã e branca — o clássico enclave colonial em um país supostamente livre.

Durante esses meses o Che percorreu também as imensas plantações costarriquenhas da UnitedFruit Company, sobre as quais fez um comentário ácido e quase caricaturesco: (*) Ele não estava desonrando o compromisso com Granado; a ideia, segundo Caliça Ferrer, eraque “eu chegaria à Venezuela, encontraria Granado, entraríamos em roniato com Ernesto, queestaria na Guatemala, e dali seguiríamos os três para algum ^gar” (Carlos Ferrer, op. cit.). “Tive a oportunidade de passar pêlos domínios da United Fruit, confirmando uma vez mais comosão terríveis esses polvos capitalistas. Jurei diante de um retraio do velho e pranteado camaradaStalin não descansar até ver esses polvos capitalistas aniquilados”.54 Em San José, Guevara teve seu primeiro e talvez último encontro desprovido de carga política coma recém-nascida social-democracia da América Latina. Em várias ocasiões esteve com Rómulo Betancourt — que anos depois seria presidente da Venezuela, precisamente quando o já entãoministro cubano Ernesto Guevara conspirava com a guerrilha venezuelana — e com Manuel MoraValverde, o líder do Partido Comunista da Costa Rica. O contraste entre seus relatos sobre os doisencontros ilustra o caminho político que o Che escolhera:

Entrevistamo-nos com Manuel Mora Valverde. É um homem tranquilo, bastante sereno [...] Deu-nosuma esplêndida explicação sobre a política da Costa Rica [...] A entrevista com Rómulo Betancourtnão teve as características da lição de história ministrada por Mora. Deu-nos a impressão de ser umpolítico com algumas ideias sociais sólidas na cabeça, e o resto ondeante e fácil de ser desviadopara onde o vento soprar. “ Ele teve uma discussão com Betancourt indicativa de suas emergentes inclinações políticas e docaminho que seguiria nos nove anos seguintes, até que sua própria experiência com a URSSfinalmente o desiludisse. Em plena polémica com o venezuelano a propósito da presença dosEstados Unidos na América Latina, perguntou-lhe à queima-roupa: “No caso de uma guerra entre osEstados Unidos e a URSS, que partido tomaria?”. Betancourt respondeu que ficaria do lado deWashington, motivo bastante para que Guevara o tachasse ali mesmo de traidor .56 Che Guevara comprovou também o potencial e as limitações do governo de José Figueres, quedesde 1948 procurava construir na Costa Rica um Estado assistencial extenso e anticomunista. Massua breve escala em San José serviu para algo mais. Foi aí que se deu o primeiro contato dele com

os cubanos, ao encontrar-se com dois sobreviventes exilados do assalto ao Quartel Moncada, ocorrido em 26 de julho de 1953. Calixto Garcia e Se-verino Rossel foram os primeiros a lhe contara história inacreditável da tentativa de Fidel Castro de derrubar o regime de Fulgencio Batista assaltando o quartel militar da segunda maior cidade de Cuba. No início Guevara mostrou-secético,” mas aos poucos a simpatia natural dos cubanos, a grandeza e a tragédia da epopeia, e ocontraste com a moderação da política costarriquenha o convenceram. A amizade encetada em SanJosé seriareforçada na Guatemala, onde ele encontraria outros veteranos de Moncada. Entre eles estava Nico López, que se asilou na embaixada guatemalteca em Havana e chegou à capital daquele país maisou menos ao mesmo tempo que Ernesto, trazendo mais notícias, e mais recentes, da ilha.Guevara chegou à Guatemala às vésperas do ano-novo, em 1953. AU permaneceu até conseguirdeixar a embaixada argentina, onde se asilou após o golpe contra o regime do coronel Jacobo Arbenz, rumo ao México. A Guatemala era então um país de 3 milhões de habitantes, a maioriaíndios pobres e marginalizados. A maior e mais populosa nação da América Central possuía uma

típica economia de plantation  —  café, banana e algodão, e condições sociais atrozes. Quase todosos indicadores sociais de 1950 a colocavam em antepenúltimo lugar na América Latina. No mesmoano, a Guatemala tinha as piores (com exceção da Bolívia) taxas de desemprego e subempregourbano e rural de toda a América Latina.58 Ainda em 1960, a expectativa de vida da população aonascer era a mais baixa da região.59 Até a chegada à Guatemala, a viagem dos argentinos tinha sido fecunda, mas apenas no sentido

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emocional e cultural. O verdadeiro batismo de fogo político de Ernesto Che Guevara ocorreria nosmeses difíceis em que o fútil esforço de um modesto militar guatemalteco para mudar a vida tene-brosa de seus compatriotas se chocou com a implacável polaridade da guerra fria. Sem dúvida,Guevara j á trazia uma pesada bagagem ideológica em sua mochila puída e descosturada, massairia da Guatemala com baús inteiros repletos de ideias, afinidades, ódios e opiniões.Ele ficou oito meses e meio no país: uma breve estadia cronologicamente falando, mas umaeternidade em termos ideológicos. Preencheu seus dias com várias ocupações: a política, tendo

acompanhado de perto o desenlace do drama guatemalteco; a busca infrutífera de um emprego demédico, enfermeiro ou algo ligado à sua profissão; a luta perene contra a sua enfermidade, e o iníciode seu relacionamento com a peruana Hilda Gadea, que viria a ser sua primeira esposa. Pretendiaficar algum tempo na Guatemala, dois anos se possível, antes de se dirigir ao México, em seguida àEuropa e à China.* Propunha-se ganhar a vida exercendo sua profissão, mas rapida- (*) “Meu plano para os próximos anos: pelo menos seis meses na gGuatemala, caso não consigaum emprego bem remunerado que me permita ficar por dois anos [...] trabalharei em outro pais porum ano [...] Venezuela, México, Cuba, Estados Unidos [...] depois viagens curtas para o Haiti, SãoDomingos, Europa Ocidental, provavelmente com a mamãe” (Ernesto Guevara de Ia Serna a BeatrizGuevara Lynch, 12/2/54, cit. em Guevara Lynch, Aqu i  v á , op. cit., p. 38).mente deparou-se com uma contradição comum na maior parte da América Latina: por um lado,escasseavam os médicos e abundavam as doenças;por outro, barreiras insuperáveis impediam um médico estrangeiro de exercer sua profissão. Omáximo que ele conseguiu foi um módico salário em um laboratório do Ministério da Saúde, depois

de um período em que vendeu enciclopédias.No início, seus lamentos eram impregnados de humor: "Fui ver o ministro da Saúde Pública e pedi-lhe um emprego, mas exigi uma resposta categórica, fosse sim ou fosse não [...] O ministro não medesapontou. Deu-me uma resposta categórica: não".60 Logo o tom de pilhéria daria lugar a umaamargura: "O filho da puta que deveria me contratar me fez esperar um mês para depois dizer quenão poderia fazê-lo".61 O Che enfrentou muitos obstáculos em sua tentativa de trabalhar comomédico. Um deles, de acordo com um caso recorrente, era o fato de que ele não era um membro doPartido Comunista (cujo nome oficial era Partido Guatemalteco do Trabalho, PGT). Todavia, em suacorrespondência, Ernesto põe grande ênfase na profissão médica "reacionária". Em todo caso, suasmotivações eram cada vez mais financeiras, e Ernesto perdia rapidamente o minguado interesseque conservava pela medicina. A política e a arqueologia depressa a substituíram rapidamentecomo tema de seus estudos.Ele se queixa em várias ocasiões de não ter podido visitar Petén e Tikal;só pôde percorrer os povoados do altiplano guatemalteco próximos do lago Atitián.* Vários motivos

 — suas intermináveis discussões políticas, o péssimo efeito do clima da Cidade da Guatemala sobresua enfermidade e a aproximação crescente com Hilda Gadea — o obrigaram a renunciar ao sonhode conhecer a cultura maia. Só alguns anos mais tarde, durante uma espécie de lua-de-mel comHilda, pôde visitar os sítios arqueológicos da península de Yucatán e Palenque. A efervescênciapolítica e conspiradora na Guatemala merecia longas horas de debates intensos comrevolucionários e espectadores curiosos vindos de muitas regiões: Rojo e os argentinos, os cubanosrecém-chegados, académicos estadunidenses de esquerda (Harold White, de Urah) ou indefinidos(Robert Alexander, de NewJersey) e sociólogos quase comunistas da América Central, comoEdeiberto Torres e sua filha Myma.O Che conheceu Myrna, assim como muitos de seus amigos na Guatemala e a seguir no México,graças a Hilda Gadea, figura decisiva em(*) Hugo Gambini sustenta que o Che realizou seu sonho de conhecer Petén, mas não fornecenenhuma fonte ou dado que corrobore a afirmação. (Ver Gambini, El Che Guevara, Buenos Aires,Editorial Paidós, 1968, p. 91.)

sua vida; porém, a ligação entre eles tinha um caráter mais fraterno e ideológico que romântico ouerótico. A doença de Ernesto e seu fascínio pela natureza indígena explicam a atração inicial. Hildaconheceu o Che estendido em sua cama, faminto, tremendo de frio, prostrado após uma de suascrises asmáticas, em pleno desamparo. Ele pediu ajuda, e ela a deu. Apresen-tou-se como fiadorado quarto que ele alugou em uma pensão, conseguiu-lhe medicamentos para a asma e livros paraler, e em poucos dias reorganizou sua vida. À generosidade de Hilda reuniam-se outros atrativos:tinha traços indígenas e era três anos e meio mais velha que o Che. Seu efémero casamento tevecomo fruto uma filha que, muitos anos mais tarde, em Havana, quando lhe perguntaram seconservava alguma prenda ligada à atração de seu pai por sua mãe, respondeu cheia de tristeza eorgulho: "Olhe-me".62 O Che se refere a Hilda pela primeira vez em uma carta à mãe datada de abril de 1954. O tomcarinhoso dá a pauta do relacionamento entre eles:" O mínimo que se pode dizer é que ela tem um coração de platina. Sinto seu apoio em todos osatos de minha vida diária (a começar pelo aluguel)".6' Os dois assaltantes dos palácios de inverno

forjaram um vínculo baseado nas afinidades ideológicas e no apoio médico, financeiro e espiritual deHilda ao argentino indocumentado. Ela, como muitas peruanas, tinha fortes traços chineses eindígenas em sua configuração genética. De acordo com várias de suas amigas, sua estatura eramais para baixa, e ela era cheinha.*Obviamente, o encantamento de Ernesto pela experiente militante da APRA não se baseava numideal de beleza ortodoxo, tendo mais a ver com os seus traços arquetípicos índios e com a maneira

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como Hilda assumiu rapidamente muitas das facetas da vida dele, desde a asma e o emprego até aformação ideológica e a inserção em seu círculo de amigos. Um ano depois, os namorados secasaram no México, onde nasceria sua filha. A partir de então, o curso do relacionamento já estavaclaro em termos de intensidade, significado e futuro. Hilda era diferente o bastante do Che paraseduzi-lo. Mas também diferente demais de Chichina, quase o seu oposto, para despertar nele apaixão deixada em Malagueno.(*) Os termos que alguns empregam para descrevê-la, geram todo tipo de dúvida. De acordo com

Rojo, Hilda era "uma jovem com traços exóticos" (Rojo, op. cit., p. 67). Aos olhos de quem? De qualperspectiva? Outros qualificativos, mencionados inclusive por biógrafos de incontroversa simpatiapelo Che, mostram-se igualmente desafortunados. "egundo Hugo Gamhini, no grupo de militantesda APRA alojados na pensão onde vivia o '""e "havia uma garota atarracada, de olhos amendoados,mas feia, muito feia..." (Hugo Gambini, op. cit., p. 89).

Hilda lembra que Ernesto lhe declarou seu amor por ela e lhe propôs casamento em uma festa. Elasugeriu que esperassem, mais por motivos políticos que emocionais.64 Boa parte da vida do Che naGuatemala transcorreu em torno dela: ela cuidava dele, apresentou-lhe amigos, emprestava-lhelivros, e conversava interminavelmente com ele sobre psicanálise, a União Soviética, a revoluçãoboliviana e, claro, o dia-a-dia guatemalteco. E difícil estabelecer quanto havia de amor, atração peladiferença, camaradagem e afinidade ideológica no relacionamento deles. O certo é que Hildaexerceu uma poderosa influência sobre o jovem revolucionário, e o respeito e o afeto duradourosdele pela primeira mulher derivaram em boa medida de seu sentimento de dívida.

Tudo, inclusive as recordações da própria Hilda, sugere que o romance foi por muito tempoplatónico. Só se consumou em Cuernavaca, no México, um ano depois, em meados de maio de1955, quando passaram juntos um fim de semana na cidade adotiva de Malcoim Lowry,* já com afirme intenção de se casarem, mas ainda impossibilitados de o fazerem por causa dos incontáveisentraves migratórios e burocráticos das autoridades mexicanas.65 De acordo com Hilda, foi o Cheque tomou a iniciativa. Ele insistia no casamento, ao passo que ela cedia a seus pedidos paracumprir o prometido. O tom do livro de Gadea sugere uma certa relutância da parte dela. Maisamadurecida do que ele, Hilda intuía que a longo prazo o relacionamento seria difícil, se nãoinsustentável, e que Ernesto não suportaria os rigores e obrigações de um casamento "burguês".O casamento foi celebrado em 18de agosto de 195 5, no povoado colonial de Tepotzotián, diasdepois de Hilda descobrir que estava grávida. A relação de causa e efeito é sugerida pela própriaHilda, que atribui a Ernesto a seguinte frase: "Agora devemos apressar a cerimónia legal e acomunicação a nossos pais",66 no momento em que o informou da gravidez. Um dos biógrafos doChe emprega as palavras "tinham de se casar", referindo-se a tal decisão." Também um funcionário

soviético que chegou a estabelecer uma amizade íntima com o Che, Oleg Daroussenkov, recordauma conversa com ele em Murmansk, em princípios dos anos 60. Depois de alguns tragos de vodcapara combater o frio do Arti-co, o Che confessou que se casara porque Hilda estava esperando umfilho. Havia tomado vários copos de tequila uma noite e isso o conduzira a um gesto absurdo decavalheirismo.68 Em todo caso, o fato é que não se justificaria atribuir(*) "Tínhamos reservado um fim de semana para irmos a Cuernavaca [...] assim decidimos nos unirde fato [...] E assim o fizemos" (Hilda Gadea, p. 116).a esse relacionamento uma intensidade emociondi decisiva. A Guatemala foi para o Che o país dainiciação política, não o das paixões primaveris.Foram tempos cruciais na vida do Che e na história da América Latina: com o início da guerra fria naregião, materializou-se então o estereótipo mais rude e descarado da agressão de uma potênciahegemónica (o imperialismo, no vernáculo da época) contra um regime honesto e bem-intencionado,mas débil, dividido e medíocre: uma república bananeira por antonomásia. Tudo começou emnovembro de 1950, quando, apenas pela segunda vez em toda a história da Guatemala, celebrou-se

uma eleição democrática para a Presidência da República, vencida pelo coronel Jacobo Arbenz, quetomou posse em 15 de março de 1951.Ao chegar ao poder, Arbenz introduziu uma série imprenscindível de reformas económicas e sociaisem um país onde 2,2% da população possuía 70% da terra. O novo governo impulsionou umambicioso programa de obras públicas, inclusive a construção de um porto na costa atlântica, umaestrada até a costa e uma usina hidrelétrica. Esses projetos interferiam nos monopólios existentes,em mãos da United Fruit Company, de fama legendária e ignominiosa. Em 27 de junho de 1952,Arbenz assinou o decreto instituindo a reforma agrária, que previa a expropriação dos latifúndiosnão cultivados e a indenização dos proprietários com base no seu valor declarado, o que tampoucoagradou a empresa bananeira. O decreto estabeleceu também um imposto sobre a renda — pelaprimeira vez na história da nação — e consolidou uma série de direitos trabalhistas, entre eles oacordo coletivo, o direito de greve, o salário mínimo; mais uma vez, nada que entusiasmasse aUnited Fruit.Washington desencadeou uma política de hostilidade ao regime, por razões económicas — os

interesses da United Fruit —, ideológicas — a participação cada vez mais ativa no governo e noprocesso de reforma do PGT, que apesar de suas minúsculas dimensões exercia uma influênciadesproporcionada graças à competência e dedicação de seus quadros — e geopolíticas — umaténue aproximação de Arbenz com o bloco socialista. Assim, em 1954, Washington lançou umacampanha explícita para derrubar o governo, se possível com apoio inter-americano. Foi esse opropósito da conferencia da Organização dos Estados Americanos ocorrida em Caracas, em março

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de 1954, na qual a delegação estadunidense, liderada pelo secretário de Estado John Póster Dulies,pediu abertamente uma condenação do governo de Arbenz. A proposta foi apoiada por todos osregimes da AméricaLatina, exceto o do México e da Argentina, o que levou o Che a revisar algumas de suas opiniõesanteriores sobre Perón.* Uma conjunção de pressões externas, desencanto entre as fileiras departidários de Arbenz, divisão dentro do exército e a indecisão por parte do presidente desembo-caram no golpe de junho de 1954. Uma coluna comandada pelo coronel Carlos Castillo Armas,

dirigida e financiada pela CIA, penetrou no território guatemalteco, tendo partido de Honduras, e,graças a uma sofisticada campanha de propaganda, forçou Arbenz a renunciar, ainda que acorrelação de forças militares não fosse desfavorável a ele.**Pode-se medir o impacto do capítulo guatemalteco sobre a vida do Che usando dois vetores: suaanálise dos acontecimentos e sua efetiva participação neles. Inicialmente Ernesto se entusiasmoucom o processo de reforma empreendido por Arbenz. Ele escreveu: "não há em toda a América umpaís tão democrático como a Guatemala".69 No entanto, não deixava de perceber as debilidadesintrínsecas ao processo ("cometem-se arbitrariedades e roubos") e as contradições da política dosmilitares (" os jornais mantidos pela United Fruit são tantos que, se eu fosse Arbenz, fecharia todosem cinco minutos"). Ele compreendeu rapidamente os dilemas enfrentados pelo regime. De umlado, necessitava do apoio do PGT para implementar as reformas inadiáveis, a começar peladistribuição de terra;*** de outro, tinha de proteger-se dos ataques norte-americanos, com base nadenúncia de um complô comunista e soviético na Guatemala. Entendeu que o PGT era ao mesmotempo o aliado mais leal de Arbenz e também o mais perigoso, em virtude dos efeitos gerados no

exterior. No princípio, ele acreditou que os riscos que o regime corria eram reais, porém a médioprazo ("creio que o momento mais difícil para a Guatemala acontecerá daqui a três anos, quan-(*) Um ano mais tarde, Ernesto escreveria a seu pai: "A Argentina é o oásis da América, devemosdar a Perón todo o apoio possível" (Ernesto Guevara de Ia Sema a Ernesto Guevara Lynch, cit. emGuevara Lynch, Aqui vá, op. cit., p. 89).(**) A participação da CIA no golpe de Castillo Armas foi amplamente documentada em anosrecentes. Os livros mais destacados sobre o tema são os de Stephen Schiesinger e Stephen Kinzer,Bitter fruit. Nova York, Doubleday, 1982, e Piero Gleijeses, The United States and the GuatemalanRevolutíon, Princeton, Princeton University Press, 1989. O Centro de Estudo de Informação da CIAcomprometeu-se a abrir a totalidade de seus arquivos sobre a Guatemala de 1954; até o momento,isso não foi feito.(***) "[Os comunistas] são o único grupo político a solicitar ao governo o cumprimento de umprograma em que os interesses pessoais não contam (talvez haja um ou dois demagogos entreseus lideres)" (Ernesto Guevara de Ia Sema a Titã Infante, mar. 1954, cit. em Cupull e Gonzáiez,

Cálida presencia, Havana, Editorial Oriente, 1995, p. 53).do ela tiver de eleger um novo presidente";70 isso a três meses da derrubada de Arbenz). Nãoobstante, detectou de imediato a gravidade da ameaça que pairava sobre o governo acossado,embora ainda em abril de 1954 subesti-masse a proximidade do perigo: "A bananeira está rugindoe, naturalmente, Dulies e Companhia querem intervir na Guatemala pelo crime terrível que cometeuao comprar armas de quem as vendeu, já que os Estados Unidos não vendem nem um únicocartucho há muito tempo".*Em suas cartas para Buenos Aires, o Che revela uma grande lucidez sobre a natureza da agressãoiminente, mas ao mesmo tempo superestima as forças disponíveis para enfrentá-la. Em 20 de junho

 — apenas uma semana antes da renúncia de Arbenz e no mesmo dia em que teve início a pseudo-invasão conduzida por Castillo Armas, ele escrevia a sua mãe: "O perigo não está no efeti-vo dastropas que estão entrando no território, pois ele é ínfimo, nem nos aviões, que não fazem mais quebombardear as casas de civis e metralhar alguns; o perigo está em como os gringos manobrarão osseus ajudantes nas Nações Unidas".71 A razão estava com o novo aprendiz de estrategista.

Simultaneamente, contudo, ele assegurava à mãe que "o coronel Arbenz é um tipo corajoso, semdúvida nenhuma, e está disposto a morrer em seu posto caso seja necessário [ ...] Se as coisaschegarem ao extremo de ter de lutar contra aviões modernos e tropas enviados pela bananeira oupêlos EUA, ele lutará".72 E nisso o Che não poderia estar mais equivocado. Uma semana depois,Arbenz seria forçado a renunciar, sob a pressão conjunta dos Estados Unidos, da coluna "invasora"em marcha para a capital e dos seus colegas do exército. Não é preciso dizer que, emborahistoriadores e testemunhas ainda discutam sobre as consequências de uma hipotética entrega dearmas às milícias operárias e camponesas do PGT, acompanhada de um combate sob a liderançade Arbenz, o fato é que "o povo" não defendeu de fato o "seu" governo. Guevara o intuiuperfeitamente, duas semanas mais tarde, quando escreveu à mãe que "Arbenz não se mostrou àaltura dos acontecimentos [...] a traição continua a ser vocação do exército, e uma vez mais secomprova a máxima que impõe a eliminação do exército como o verdadeiro princípio da democracia(se a máxima não existe, eu acabo de inventá-la)".73 O Che conclui sua reflexão com amargura: "Fomos traídos por dentro e por fora, tal qual a República

espanhola, mas não caímos com a mesma dig-(*) Ernesto Guevara de Ia Sema a Célia de Ia Serna de Guevara, maio de 1954, cit. em GuevaraLynch, Aqui vá, op. cit., p. 49. John Foster Dulies e seu irmão Allen Dulies, direcor da CIA, tinhamvínculos estreitos com o conselho que dirigia a United Fruit Company.nidade".74 Conforme o testemunho de Ricardo Rojo, ele desconfiava do potencial nacionalista ereformador do regime; na opinião do Che, o governo deveria ter criado milícias populares para

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defender a capital, o que teria evitado a débâcle.75 Segundo Hilda Gadea, em um artigo que o Cheescreveu por esses dias intitulado "Eu vi a queda de Jacobo Arbenz" — e perdeu quando deixou aGuatemala — ele argumentava que o regime teria sobrevivido se tivesse armado o povo.76 Gadeaafirma: "Ele estava certo de que, caso dissessem a verdade ao povo e lhe dessem armas, arevolução poderia salvar-se. Mesmo que a capital caísse, seria possível continuar lutando nointerior;na Guatemala há zonas montanhosas apropriadas".*

Talvez o Che ainda acreditasse, em sua postura juvenil, radical e relativamente ingénua, que erapossível ter tudo: primeiro, um exército que promovesse a reforma e em seguida uma instituiçãomilitar que se tomasse revolucionária de repente e abandonasse o monopólio das armas,entregando fuzis aos operários e camponeses.77 O exemplo das milícias populares da Bolívia, quetanto o impressionara poucos meses antes, evidentemente inspirava seu raciocínio. Guevara, emboa medida com razão, atribuiu a derrota de Arbenz à falta de unidade das forças progressistas dopaís, à sua carência de decisão e liderança, e à duplicidade das forças armadas diante da investidaviolenta dos Estados Unidos.** Mas, na opinião do Che e na realidade, a responsabilidade principalpelo fracasso da revolução guatemalteca recaía sobre Washington. O grande ensinamento que o

 jovem revolucionário argentino extraiu foi a oposição a priori  e implacável dos Estados Unidos aqualquer tentativa de reforma económica e social na América Latina. Convinha então preparar-separa combater a interferência norte-americana e não buscar formas de evitá-la ou neutralizá-la.Outra lição se(*) Hilda Gadea, op. cit., p. 74. É um pouco difícil compreender como o Che poderia saber, nesse

momento, quais zonas montanhosas eram "apropriadas" para a defesa e quais não eram.(**) Os próprios norte-americanos também detectaram um perigo na formação anterior do exércitoguatemalteco e tiraram suas próprias conclusões para a política militar dos EUA na América Latina.E o que demonstra o seguinte memorandum Top Secret do Conselho de Segurança Nacional,liberado em 1985: "Buscaremos uma padronização definitiva de acordo com linhas estadunidensesde organização, treinamento, doutrina e equipamento das forças armadas latino-americanas;enfrentar as tendências para o esta' belecimento de missões militares europeias, ou de agências ouindivíduos com funções semelhantes que não procedam dos Estados Unidos, e facilitar a compra deequipamento norte-americano, oferecendo aos países da América Latina preços competitivos,entrega rápida e crédito acessível [...]".refere à liberdade excessiva que, no parecer de Guevara equivocadamente, Arbenz deu aos seusadversários, em particular na imprensa.*O Che deveria ter uma experiência política mais vasta, um conhecimento mais sólido de história esem dúvida mais maturidade para assimilar com maior discernimento as duras lições da Guatemala.

Ele ainda não sabia quase nada sobre os três grandes países da América Latina. Nunca pusera ospés no México; sua passagem pelo Brasil limitara-se à contemplação da beleza das mulatas, e suavivência na Argentina fora apolítica ou desdenhosa. Os dois países que melhor conhecia eramtalvez os mais pobres e menos desenvolvidos do continente: a Bolívia e a Guatemala. O resto daAmérica Latina se resumia para ele em Machu Picchu e Chuquicamata, as culturas indígenas e aUnited Fruit Company na América Central. Seu conhecimento acerca dos exércitos da regiãoreduzia-se a Arbenz e aos postos militares de fronteira nos Andes e nos trópicos. O enfrentamentoefetivo entre a empresa bananeira e a república bananeira se torna uma caricatura se extrapoladopara o resto do hemisfério com sua complexa história. A especificidade do caso guatemalteco foidiluída na visão emocional e às vezes brilhante do Che: particularidades incontestáveistransformaram-se em generalizações questionáveis. Enquanto a transposição envolveu situaçõessimilares — no caso de Cuba —, produziu conclusões válidas; quando se estendeu a situaçõesdistintas, levou a truísmos e erros fatais.Na Guatemala, Ernesto Guevara era ainda um pesquisador. A atitude perante os pais ("creio que já

deveriam saber que mesmo que esteja morrendo não vou pedir-lhes grana"),78

 os comentáriosposteriores ao golpe de 26 de junho ("é um tanto envergonhado que admito ter me divertido imensa-mente durante esses dias. Aquela sensação mágica de invulnerabilidade [...] fazia com que eu mebabasse de gosto quando via as pessoas correndo como loucas assim que viam os aviões [...] Aquifoi tudo muito divertido, com tiros, bombardeios, discursos e outras distrações que quebraram amonotonia em que eu vivia")79 e a explicação dada por sua mãe sete anos mais tarde ("Ele solicitaque lhe permitam colaborar na defesa. Comunicam-lhe que não haverá defesa. Oferece-se paraorganizá-la. Mas quem é ele? Qual experiência ele tem, afinal?")80 denotam uma politizaçãocrescente. Ele ainda se(*) Segundo o testemunho de um dirigente guatemalteco que estabeleceu uma amizade duradoura eestreita com Guevara na embaixada argentina naquele ano, o Che atirmou: "Deu-se demasiadaliberdade, deu-se liberdade até aos conspiradores e aos agentes do imperialismo para quedestruíssem a democracia" (Rolando Morán, entrevista com lancis Pisani, inédita, posta à disposiçãodo autor por Pisani, México, DF, 18/11/85).

rebela contra os pais, embora menos do que antes, e sua personalidade política toma-se cada vezmais definida.Aos 26 anos, Che Guevara é um grande defensor e admirador da União Soviética. Pretendia dar umnome russo, Viadimiro, a seu filho (se tivesse tido um homem) em homenagem à pátria dosocialismo.81 Como recorda sua esposa, "Guevara demonstrava grande simpatia pelas realizaçõesda Revolução Soviética; já eu tinha algumas reservas".82 O jovem tinha uma evidente inclinação

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pelo comunismo, tanto pelo partido guatemalteco* como pelo conceito geral, e havia optado porengrossar as fileiras do Partido (com P maiúsculo) em algum lugar do mundo.** Dias após a renúncia de Arbenz, Ernesto pediu asilo na embaixada argentina, depois de um amigoque trabalhava lá tê-lo avisado de que corria perigo. Embora os riscos reais fossem relativos ,*** háindícios de que as atividades dele foram detectadas. David Atlee Phillips, o chefe da unidade da CIAna Guatemala durante os acontecimentos de junho, recorda em suas memórias:Um analista da companhia me apresentou uma folha de papel poucos dias depois do golpe.Continha informação biográfica sobre um médico argentino de 25 anos que pedira asilo naembaixada do México [sic] [...] "Parece-me que seria melhor fazermos uma ficha", disse eu. Emboraseu nome significasse pouco para mim naquele momento, a ficha de Ernesto Guevara [...] chegariaa ser uma das mais volumosas da CIA.**** (*) "Tomei uma posição firme do lado do governo guatemalteco, e dentro dele no PGT, que écomunista, relacionando-me bastante com intelectuais desta tendência que editam uma revista aqui,e estou trabalhando como médico nos sindicatos" (Ernesto Guevara de Ia Sema a Beatriz GuevaraLynch, 12/2/54, cit. em Guevara Lynch, Aqu i  v á , op. cit., p. 38).(**) "Depois da queda [...] os comunistas foram os únicos a manter sua fé e seu companheirismointatos e são o único grupo que continuou em trabalho [...] Cedo ou tarde entrarei no Partido". E oChe acrescenta, em um rompante de candura e entusiasmo: "O que me impede de fazê-lo é que eutenho uma vontade enorme de viajar pela Europa" (Ernesto Guevara de Ia Sema a Célia de Ia Semade Guevara, nov. 1954, cit. em ibidem, p. 80).(***) "O Che ficou até o último e depois saiu. Na realidade, não havia nada contra ele, nem ordem

de captura, nem nada. Ele pôde sair da Guatemala legalmente" (Morán, op. cit.). (****) David Atlee Phillips, The  rúght  watch. Nova York, Atheneum, 1977, p. 54. É difícil saber sePhillips fabricou essa lembrança anos depois, para mostrar sua presciência, ou se de fato fez umaficha do Che na Guatemala. A ficha não figura nos arquivos liberados pela CIA.Sua condição na embaixada correspondia mais à de hóspede que à de refugiado político, o que lhepermitia sair com alguma frequência.* Passou aproximadamente um mês ali, acompanhado demuitos argentinos, mas também de jovens de outros países e da própria Guatemala, entre eles, ofuturo fundador e dirigente do Exército Guatemalteco dos Pobres (EGP), Rolando Morán, e TuiaAlvarenga, já então companheira do secretário-ge-ral do Partido Comunista de El Salvador,Cayetano Carpio (mais tarde o legendário Marcial da época da Frente Farabundo Martí deLibertação Nacional, a FMLN). Formou-se na embaixada argentina um contingente comunistaliderado por Víctor Manuel Gutiérrez, segundo homem do PGT, que rapidamente foi separado dosdemais e confinado na garagem da casa. O Che juntou-se a eles, como recorda Morán, que iniciouentão uma longa amizade com Ernesto. O grupo mais próximo ao Che na embaixada foi claramente

o dos comunistas.83 Já estamos diante de um indivíduo que mostra uma curiosidade política insaciável, aliada àcarência de espírito militante; com opiniões políticas de esquerda, mas desprovidas de umaformação marxista.** Trata-se do sobrevivente de uma derrota trágica, e previsível, queuniversalizaria seus ensinamentos. A necessidade da luta armada, a convicção sobre a hostilidadeimplacável dos Estados Unidos e a impossibilidade de negociar com Washington, a afinidade comos partidos comunistas e a União Soviética, o imperativo de cortar o caminho dos adversários antesque eles tirassem vantagem das liberdades em vigor: eis aqui uma série de convicções que se con-solidariam no México ao longo dos dois anos seguintes. Elas acompanhariam o Che na sierra Maestra, e em seu primeiro período em Havana, apenas paulatinamente temperadas por suaexcepcional inteligência e realismo, assim como pelas lições demolidoras que a realidade haveria de impor-lhe, para seu profundo pesar.O Che não pôde participar da defesa do regime; ninguém o quis, e as versões sobre seu supostoarivismo desenfreado procurando organizar uma

(*) "E que tecnicamente o Che não era um refugiado em busca de asilo, pois era um argentino queestava, poderíamos dizer, sob a proteçao de sua embaixada" (Morán, op. cit.). (**) "Para falar com absoluta honestidade [...] Ernesto e eu, embora já sob grande influência daideologia do marxismo-lenimsmo, ainda conservávamos em nosso pensamento político ideiaspróprias das teses populistas tão em voga" (Alfonso Bauer Paiz, entrevista a Aldo Isidrón dei Valle, cit. em Testimonios sobre ei Che, Havana, Editorial rabio de Ia Torrente, 1990, p. 80). Bauer Paiz foium dos grandes amigos do Che durante sua estadia na Guatemala.reação miliciana na Cidade da Guatemala são simplesmente falsas.* Em algumas declaraçõesatribuídas a ela, por ocasião da morte do Che, Hilda Gadea afirma que de fato ele participou emgrupos de defesa antiaérea e no transporte de armas de um lado da cidade para outro,84 mas noseu livro limita-se a mencionar a intenção frustrada de fazê-lo por parte do companheiro. Em umaentrevista na sierra Maestra, o Che permitiu a si mesmo certa licença poética a respeito, afirmando:"Tratei de formar um grupo de homens jovens como eu para fazer frente aos aventureirosbananeiros da United Fruit. Na Guatemala era preciso lutar, e quase ninguém lutou. Era

imprescindível resistir, mas quase ninguém quis fazê-lo".85

 Os biógrafos oficiais cubanos (ou"cronólogos", como às vezes se autodesignam) retomam a tese do traslado de armas e da"intenção" de agrupar jovens para combater, mas não fornecem nenhuma fonte nem apresentamprovas.M  O máximo que o Che menciona nas cartas — e podemos supor que, caso ele tivesse feitooutra coisa, teria contado a algum de seus múltiplos correspondentes — é que se alistou no serviçomédico de emergência e "me inscrevi nas brigadas juvenis para receber instrução mili tar e ir aonde

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quer que fosse. Mas não creio que a água chegue ao rio".87 Isso uma semana antes do golpe quederrubou Arbenz. Abatido pela derrota mas decidido a seguir adiante, Ernesto Guevara desistiu de voar para casa noavião enviado por Perón para repatriar os exilados argentinos. Em vez disso, resolveu viajar para oMéxico enquanto o perigo ainda não tivesse passado. Em fins de agosto, deixou a missãodiplomática; conseguiu ver Hilda, que fora presa uma vez, tendo sido libertada poucos dias depois.Combinaram encontrar-se no México quando pudessem. Enquanto esperava seu visto, o Che partiu

com seu saco de dormir rumo a Atitián, onde passou alguns dias à margem de um dos mais beloslagos do mundo. Em meados de setembro ele chegava à Cidade do México, capital da corrupção,como escreveu a sua tia Beatriz.88 Levou da Guatemala vários tesouros, entre eles a amizade e simpatia para com os cubanosexilados que conheceu e a admiração que eles lhe provocaram:Quando eu ouvia os cubanos fazerem afirmações grandiloqüentes com uma absoluta serenidade,sentia-me minúsculo. Posso fazer um discurso dez vezes(*) Por exemplo, esta, procedente de "investigações realizadas por uma equipe de funcionários daSeção de História do Departamento de Política das Forças Armadas Revolucionárias": "O golpe dotraidor Carlos Castillo de Armas [sic] aconteceu no mesmo dia em que o Che, alistado no exército daGuatemala, estava para ser enviado ao front" (Centro de Estúdios de Historia Militar, De Tuxpan aLa Plata, Havana, Editorial Orbe, 1981, p. 10).mais objetivo e sem lugares-comuns, posso lê-lo melhor e posso convencer o público de que estoudizendo a verdade, mas eu convenço a rnim e os cubanos o fazem. N iço deixava sua alma no

microfone, e por isso entusiasmava até um cético como eu.89 Nico, seu primeiro amigo cubano de verdade, é Nico López, que participara do assalto ao quartel deBatamo — uma operação cuja finalidade era impedir que chegassem reforços a Santiago de Cuba eao Meneada — e lhe contou não só pormenores da façanha, mas também descreveu as virtudes deseu líder, Fidel Castro. Conheceu Nico, Mário Dalmau e Darío López nos cafés e bate-papos dosintensos meses anteriores à queda de Arbenz. O vínculo entre eles se fortaleceu a seguir, naembaixada argentina, onde o Che os assistia como médico, lia para eles seus textos sobre aGuatemala e os pôs em contato com sua família em Buenos Aires quando partiram para o Sul noConstellation  enviado por Perón. Os cubanos recordam três características do Che: a solidariedadepara com eles, sempre que podia ajudar; as eternas dificuldades financeiras dele, e as conversas eescritos nos quais expunha suas opiniões antiimperialistas e argumentos em favor da defesaarmada da capital.90 Em sua bagagem levava uma última recordação da Guatemala: o apelido queos amigos tinham posto nele, por causa de sua nacionalidade e modo de falar — o Che.Os primeiros meses no México, em fins de 1954, não foram fáceis para Guevara: sem dinheiro, sem

trabalho, sem amigos. Tinha apenas o endereço de vários conhecidos de seu pai, um deles, umroteirista de cinema chamado Ulises Petit de Murat, recebeu-o afetuosamente. O Che comprou umamáquina fotográfica e, junto com um companheiro que havia conhecido durante a viagem de tremdepois de passada a fronteira guatemalteca, começou a ganhar a vida tirando fotos de turistasnorte-americanos nas ruas da Cidade do México. Conseguiu um mal remunerado emprego depesquisador de alergia no Hospital Geral, na equipe do dr. Mário Salazar Mallén, mas, como eledizia, "não faço nada de novo".* Confessa que se organizou um pouco mais: "Faço minha comida,além de tomar banho todo dia, [mas] lavo roupa poucas vezes". Pretendia ficar em tomo de seismeses no México e depois visitar os Estados Unidos, a Europa e a seguir os países(*) Exceto escrever o esquema de um ambicioso livro, que nunca escreveria, sobre o médico naAmérica Latina, cuja elaboração iniciou nos momentos livres na Guatemala. Teria catorze capítulos,incluindo uma espécie de história da medicina latino-americana, assim como reflexões diversassobre o contexto económico, político e social da medicina no continente. (Ver Maria dei Carmen Ariet Garcia, cit. em Korol, El Che, op. cif, p. 101).

socialistas da Europa Oriental e a União Soviética. Flertava com a possibilidade de obter uma bolsade pós-graduação em alguma universidade europeia, graças a seus trabalhos científicos jápublicados e a sua experiência como pesquisador com o dr. Pisani, em Buenos Aires.As primeiras impressões do México não foram particularmente gratas:"O México está totalmente entregue aos tanques [...] A imprensa não diz absolutamente nada [...] Asituação económica é terrível, os preços sobem de'maneira alarmante e a degradação é tamanhaque todos os líderes operários estão comprados e fazem contratos iníquos com as empresas ian-ques, em troca da extinção das greves [...] Não existe indústria independente, muito menoscomércio livre".91 Em março de 195 5, uma agência de notícias argentina contratou o Che como fotógrafo para cobriros Jogos Pan-americanos. Quando tinha tempo, ele redigia artigos científicos sobre alergia e tomouparte em um congresso em Veracruz. Graças a essas atividades, conseguiu uma bolsa do HospitalGeral que lhe permitiu viver com mais folga. Participava de excursões exóticas, delirantes para umasmático, como a escalada do Popocatépeti e do pico de Orizaba: 

Assaltei o Popo, mas, apesar do heroísmo, não consegui chegar ao cume. Eu estava disposto amorrer para atingi-lo, mas um cubano que é meu companheiro de escaladas me assustou porquedois dedos de seus pés haviam se congelado [...] Tínhamos lutado por seis horas com neve, que acada passo nos enterrava até a viri lha, com os pés encharcados, já que não tivemos o cuidado delevar o equipamento adequado [...] O guia se perdera na neblina ao contornar uma fenda na geleira[...] e estávamos todos exaustos em consequência da neve mole e infinita [...] Os cubanos não

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sobem mais; mas eu, assim que j untar um dinheirinho, vou de novo desafiar o Popo, e em setembroo Orizaba.92 Ele explorou também os arredores da Cidade do México, mas não empreendeu nesses mesesnenhum dos passeios que normalmente o teriam atraído, assim como atraem muitos outrosestrangeiros. Seu abatimento por tudo era tamanho que ignorou as deslumbrantes belezas do país,que já fascinaram tantos viajantes, detendo-se unicamente nos defeitos— indiscutíveis masinsignificantes para uma pessoa tão sofisticada como ele era agora. Desde novembro de 1954

passara a se encontrar de novo com Hilda. Foi outra vez graças a ela que começou a relacionar-secom militantes e políticos de outros países, entre eles Laura de Albizu Campos, esposa donacionalista porto-riquenho encarcerado pelo governo dos Estados Unidos. A relação do Che comHilda era complexa e contraditória, como já mencionamos: o carinho e a lealdade do Che para com a exilada peruana eram contrabalançados por um certodistanciamento. Hilda não fazia parte de seus planos: não aparecia em seus sonhos de viagens,aventuras e ocupações. Nas palavras de Paço Ignacio Taibo li, Ernesto Guevara era, naquelemomento, essencialmente um andarilho, um fotógrafo ambulante, um pesquisador médico mal pago,um exilado permanente e um marido insignificante — um aventureirode fim de semana.9' Um dia, no hospital, topou casualmente com Nico López, refugiado no México ao fim de um longopercurso desde a Guatemala, via Argentina, quefora consultar um amigo do Che.Em meio a essa existência apática e arrastada, ainda que esperançosa, surgiu a chance deencontrar aquilo que faz a diferença entre a epopeia e o simples tédio. A sorte se somou àdisposição de agarrar a oportunidade. Em junho, o médico argentino nómade foi apresentado a RaulCastro, líder estudantil cubano recém-saído de uma prisão de Havana. Poucos dias depois, o irmãodeste chegou ao México, e Raul levou o Che para conversar com ele. Foi em julho de 1955 queErnesto Guevara conheceu Fidel Castro e descobriu o caminho que o conduziria à glória e à morte.4 NO FOGO COM FJDEL Fidel Castro chegou à Cidade do México de ônibus em 8 de julho de 1955, vindo de Veracruz, Mérida, Havana e do presídio da islã de Pinos, em Cuba. Trazia um temo, nenhum centavo, e acabeça repleta de ideias audaciosas que três anos depois abririam seu caminho para a história.Passara 22 meses na prisão por ter planejado o assalto de 26 de julho de 1953 ao QuartelMeneada; devia sua libertação à temerária anistia decretada pelo ditador Fulgencio Batista. Dirigiu-se de imediato ao México, com um único objeri-vo em mente: dar início a uma insurreição contra aditadura de Batista.Ex-líder universitário e jovem político militando no Partido Ortodoxo, Castro provinha de um paísencantador e atormentado com apenas 6 milhões de habitantes, devastado por meio século deindependência tardia, turbulenta e incompleta. Em l O de março de 195 2, Batista liderara uma clás-sica quartelada na véspera das eleições presidenciais. Diante da expectativa de um sombriodesempenho de sua parte, o ex-sargento preferira pôr um termo ao único lapso de governodemocrático que o país já conhecera. As eleições foram suspensas e o governo constitucional nopoder desde 1940 foi interrompido. Apesar das grandes mobilizações e protestos, somente trêsanos mais tarde o regime sentiu-se forte o bastante para indultar seus principais adversários — umerro fatal.Espécie de semicolônia dos Estados Unidos, a maior ilha das Antilhas se beneficiava enormemente do boom norte-americano dos anos 50. Os preços do açúcar — desde tempos imemoriais a únicamonocultura carihe-nha — permaneceram estáveis durante a década, permitindo um modestoporém seguro crescimento per capita. A safra, estagnada entre 1925 e 1940,voltou a crescer moderadamente — um elemento decisivo, já que a metade da terra cultivada deCuba era destinada à cana. O setor açucareiro representava 50% da produção agrícola, um terço da

produção industrial e 80% das exportações; empregava 23% da força de trabalho e gerava 28% doPIB.' Quase a metade do açúcar produzido era exportada para os Estados Unidos:a monocultura significava, de fato, um só destino.Os turistas da costa Leste dos Estados Unidos faziam de Cuba seu play-ground. A construção dehotéis expandia-se; proliferavam cabarés, casas de veraneio e bordéis. Uma classe média dedicadaao serviço e prazer dos turistas crescia a passos largos. A capital caribenha do entretenimento seregozijava com o aumento de consumo e prosperidade que estava ilusoriamente identificado aorestante do país. Os norte-americanos, até os anos 50 proprietários da maioria das usinasaçucareiras, continuavam a dominar tudo o mais: a economia, a política e, acima de tudo, apsicologia coletiva — para sorte e alegria de alguns, desgraça e humilhação de outros.Os índices de renda per capita, alfabetização, urbanização e bem-estar figuravam entre os maiselevados da América Latina. Ocultavam, todavia, uma desigualdade descomunal entre a capital,algumas cidades do Leste e o resto do país, entre a cidade e o campo, e, em especial, entrebrancos e negros. E fato que a exata posição de Cuba na América Latina, no que se refere aos

dados estatísticos, se converteria em um dos pontos de grande controvérsia nos anos seguintes.Em 1950, a renda per capita de Cuba só era superada pela da Argentina e do Uruguai —logicamente —, assim como pelas da Venezuela e da Colômbia.2 A expectativa de vida, em 1960,alcançava quase sessenta anos, a mais elevada do hemisfério depois das duas repúblicas do Prata.' A proporção de médicos ou leitos hospitalares por habitante também estava entre as melhores daAmérica Latina, e as principais causas de mortalidade entre adultos eram aquelas típicas de países

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ricos:tumores malignos e distúrbios cardiovasculares. Os níveis educacionais tampouco ficavam atrás.Em fins da década, Cuba ocupava o quarto lugar na América Latina, vindo após a Argentina, oUruguai e a Costa Rica.4 A distribuição da renda, contudo, em virtude da monocultura do açúcar e do consequentedesemprego em massa durante nove meses do ano, era das mais injustas do continente. No final dadécada de 50, a porção da renda nacional correspondente aos 20% mais pobres da populaçãorepresentava apenas 2,1% do total, ou seja, um terço da cota equivalente na Argentina e menos quea correspondente no Peru, México e Brasil.5 Quase todos os indicadores sociais e económicosregistravam discrepâncias entre a cidade eo campo, e sobretudo entre Havana e o resto da nação. Com 26% da população do país, a capitalacumulava, em 1958,64% da renda nacional. Assim, às vésperas da conspiração de Castro tramadana Cidade do México, Cuba possuía uma classe média relativamente ampla (em torno de um terçoda população), o que era razoavelmente próspero para os padrões latino-ame-ricanos. Mas eratambém um país por demais desigual, profundamente dividido em termos de raça, geografia eclasse.Os princípios políticos de Cuba, portanto, eram um tanto bizantinos. Assim como os próprioscubanos, eram violentos, passionais, intrincados e personalizados. E o assalto a Moncada foiexcepcional em razão das cruéis represálias exigidas pela nova ditadura de Batista; mas não foiuma ocorrência incomum. Não surpreendia a ninguém que um grupo de agitadores tentassederrubar o governo com um espetacular coup  de main. Tampouco parecia inusitado que a luta de

Fidel Castro se concentrasse inicialmente na restauração da ordem constitucional de 1940, comoficou claro durante a épica defesa que apresentou em seu próprio julgamento. Com certeza, à épocado golpe, o regime constitucional instalado em 1940 tinha poucos partidários em Cuba. No entanto,em um clima de corrupção, violência e desordem generalizada, a Constituição de 1940 era umsímbolo de esperança para amplos setores da população.O traço distintivo da política e da cultura cubana, porém, eram sem dúvida as intermináveis dores doparto da república. Desde a guerra de 1898 contra a Espanha e da Emenda Platt de 1902 —segundo a qual os Estados Unidos se reservavam o direito de intervir nos assuntos internos deCuba caso a ordem pública se visse ameaçada —, a ilha vivia em uma espécie de purgatórionacional. Superara o inferno do regime colonial, mas sem alcançar o suposto paraíso daindependência. O desejo de Cuba de se tornar independente foi frustrado. Os Estados Unidosganharam a guerra, e Cuba perdeu a chance de se emancipar. Em 1902, os sobreviventes da longabatalha (seus principais heróis, como José Martí e António Maceo, já haviam morrido, e MáximoGómez estava exausto e isolado) viram-se obrigados a escolher entre a aceitação da independência

nos termos da Emenda Platt e, na prática, a condição de colónia. A soberania nacional de Cuba foiferida ao nascer. O trauma que resultou disso duraria pelo menos meio século, e suas sequelas sefariam sentir até o final do milénio. Não admira que o povo cubano conserve até hoje um obstinado

 — e com frequência desconcertante — nacionalismo.A vida política em Cuba entre a Emenda Platt e sua revogação em 1934 refletiu o pecado original nocoração da república. Desde o fim do domínioespanhol até 1933, a política na ilha se caracterizara pela fraude eleitoral, a corrupção e a constanteingerência dos Estados Unidos para restaurar a ordem, proteger seus interesses e mediar entre asdiferentes facções da elite cubana. O descontentamento do povo, o das classes dirigentes crioiïos eo da baixa oficialidade do exército finalmente irromperam em 1933. Uma revolta inevitável, lideradapor António Guiteras, pôs fim a uma trágica etapa da história independente de Cuba. Porém, acoalizão reformista surgida da revolução mostrou-se insustentável. Mal teve tempo de rescindir aEmenda Platt, logo foi derrubada pela chamada Rebelião dos Sargentos dirigida por Fulgencio Batista. O sargento mulato estabeleceu-se no poder até 1940, quando foi eleito presidente sob uma

nova Constituição.A revolta militar modificou os parâmetros básicos da vida política em Cuba. A revogação da EmendaPlatt e a consolidação dos setores económicos nacionais foram acompanhadas pela emergência deum poderoso movimento operário e do Partido Comunista. Por meio da Confederação deTrabalhadores de Cuba (CTC), a classe trabalhadora organizada desempenhou um papelconsiderável nas coalizões de apoio a Batista e a seu sucessor na Presidência em 1944, Ramón Grau San Martín.* Embora nunca tivesse recebido mais que 7% dos votos, o Partido Comunista —cujo nome em 1944 passou a ser Partido Socialista Popular (PSP)  — conquistou um lugarproeminente na ilha, e principalmente em Havana. Sua influência ia além dos números, graças àhonestidade e dedicação de seus quadros e militantes, e à sua ascendência sobre os sindicatos.Os comunistas eram ativos também no Congresso e nos governos de Batista e Grau. Juan Marinello, o líder do partido, foi nomeado ministro sem pasta em fevereiro de 1942; pouco depois,Carlos Rafael Rodríguez, um economista de 31 anos, também foi nomeado ministro no gabinete.**Assim, o PSP e o setor da classe operária sob sua égide foram protagonistas na política cubana até

serem expulsos dos sindicatos em 1947, no começo da guerra fria. Quando reapareceram em 1958,às vésperas da queda de Batista,(*) Exemplo dessa força foi o índice de sindicalização alcançado às vésperas da Revolução:aproximadamente l milhão de trabalhadores pertenciam a algum sindicato. (Ver Hugh Thomas, Cuba: Ia lucha  por Ia libertad, 1909-1958, Barcelona e México, Grijalbo, 1974, t. 2, p. 1512.)(**) O talento de Rodríguez para a sobrevivência e a diplomacia suplanta o de Talleyrand: meio

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século mais tarde (até o inicio dos anos 90, quando adoeceu) ele continuava ocupando um altocargo no governo, possivelmente como o terceiro da hierarquia revolucionária de Cuba.e sobretudo após o triunfo da Revolução Cubana, não estavam surgindo do nada. Suareemergência derivava de uma longa tradição e de uma história significativa, ainda que nem sempregloriosa.A corrupção, o gangsterismo e a agitação social marcaram os sucessivos quadriénios dasadministrações de Batista, Grau e Carlos Prío Socarrás, culminando no golpe de 1952. Os partidospolíticos de Cuba e o Congresso foram suspensos; os cargos de presidente e de vice-presidente foram abolidos. Um novo código constitucional foi promulgado, incluindo a revogação automáticados direitos e liberdades individuais em determinadas circunstâncias. Ninguém defendeu o regimederrubado, de Prío Socarrás, alinhado com o partido "Autêntico", inimigodo "Ortodoxo". Os cidadãosestavam fartos dos dois partidos tradicionais. Sua rivalidade interminável e suas divisões internas,loquazes mas com frequência infundadas ou irrelevantes, contribuíram para o desencanto dapopulação. O golpe de Batista, em 1952, sem dúvida careceu do apoio popular— mas o status quo tampouco o tinha.Logo depois, militares de média patente, velhos políticos e jovens universitários se lançariam à lutacontra a ditadura, por vias distintas e com diferentes perspectivas de êxito. Um deles, Fidel Castro,um advogado "ortodoxo" de origem galega, candidato ao Congresso em 1952, mobilizou mais de150 oposicionistas inflamados em uma desesperada tentativa armada de derrubar a ditadura.Fracassaram, foram violentamente reprimidos e encarcerados, mas conquistaram um lugarprivilegiado na imaginação do povo cubano e entre as classes médias de Havana e Santiago. Com

efeito, ao assaltar Mon-cada, Fidel Castro consagrou-se como uma figura central na turbulentapolítica de Cuba. A partir do México, e por meio de seu grupo embrionário, o Movimento Vinte e Seisde Julho, tomou-se a ponta-de-lança do grupo oposicionista mais íntegro e intransigente,rechaçando qualquer contempo-rização com Batista. Afastou-se, assim, dos partidos tradicionais einclusive do Partido Socialista Popular, que repudiou o ataque ao quartel.* Em um país onde a corrupção e a crise institucional eram endémicas desde a independência e asafinidades partidárias infinitamente mais débeis que as lealdades pessoais, havia uma extremaânsia de liderança honesta, radical e audaz. E em uma nação amorfa, onde a intervenção dosEstados(*) "Nós condenamos os métodos putchistas, próprios dos grupos burgueses, empregados na ação em Santiago [...] O heroísmo dos participantes dessa ação é falso e estéril, pois guiado por ideiasburguesas equivocadas [...] Todo o país sabe quem organizou, inspirou e dirigiu a ação contra oquartel, e sabe que os comunistas não têm nada a ver com ela" {Daily  Worker, Nova York, 5/8/53 e10/8/53, cit. em Thomas, Cuba , op. cit, p. 1090).

Unidos era um fato inevitável e congénito, uma personalidade capaz de captar a necessidadepopular de recuperar o amor-próprio da ilha encerraria enorme potencial. Faltavam apenas algunsdetalhes teóricos e um pouco de sorte. O encontro de Fidel Castro com Che Guevara proporcionariaao primeiro ambos os ingredientes. O último extrairia dele a convicção profunda de que "vale a penamorrer em uma praia estrangeira por um ideal tão puro".6 Nem os biógrafos de Fidel Castro nem os do Che concordam sobre a data exata do primeiroencontro dos dois revolucionários: julho, agosto ou setembro de 1955. Só é certo que Raul Castro, oirmão mais novo de Fidel, conheceu o Che graças a Nico López. Raul — que advogava "ideias"comunistas, segundo Hilda Gadea — 7 já era um militante experiente no movimento comunistainternacional, tendo participado do Festival da Juventude de Viena em 1951. Ao retornar da Europade navio, conheceu um personagem-chave para sua história: Nikolai Leonov, então um jovemdiplomata da URSS que se dirigia ao México para estudar espanhol. Leonov posteriormentetrabalharia como tradutor para o comando soviético, e seria um dos primeiro elos entre Moscou e aRevolução Cubana; já nos anos 80, seria general reformado da KGB. 

N a oração fúnebre ao Che, em 18 de outubro de 196 7, Fidel Castro mencionou os meses de julhoe agosto de 1955 como data do primeiro encontro deles." E improvável que eles tenham seconhecido poucos dias após a chegada do cubano, embora Castro tenha assinalado em umdiscurso no Chile, em 1971, que conheceu o Che "poucos dias depois de sua chegada ao México ".9

Hilda Gadea relata em suas memórias que o Che contou-lhe que conheceu Fidel "em princípios de julho".10 Já o relato semi-oficial das forças armadas cubanas assevera que a amizade entre elesremonta a setembro de 1955." Nem as biografias do Che, nem as mais recentes biografias de FidelCastro, fornecem informações adicionais, embora muitas afirmem que os dois estiveram juntos nascomemorações do Vinte e Seis de Julho em 1955.12 A data precisa só é importante se a versão consagrada de um fascínio mútuo e instantâneo for umexagero. Contudo, não parece impossível que os dois jovens tenham se conhecido e inclusivetrocado algumas palavras antes de terem a depois célebre conversa de uma noite inteira, em queselaram uma lealdade e um respeito mútuo que durariam mais de uma década. Em todo caso, aafinidade entre eles daria estrutura conceituai à brilhante intuição política de Castro e sentido à vida

do Che. O Che evocou aquela noite pouco tempo depois:Conheci-o durante uma daquelas noites mexicanas frias, e lembro que nossa primeira discussão foisobre política mundial. Poucas horas depois — demadrugada —, eu já era um dos futuros expedicionários. Na realidade, depois da experiência vividaem minhas caminhadas por toda a América Latina e do arremate na Guatemala, não era difícilincitar-me a participar de qualquer revolução contra um tirano, mas Fidel impressionou-me como um

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homem extraordinário. As coisas mais impossíveis, ele encarava e resolvia [...] partilhei do seuotimismo. Era hora de fazer, de combater, de planejar. De deixar de chorar para começar a lutar." Em seu diário de viagem, escrito impulsivamente, Guevara anota: "É um acontecimento político euter conhecido Fidel Castro, o revolucionário cubano, um jovem inteligente, muito seguro de si e donode extraordinária audácia; creio que simpatizamos um com o outro".14 O comentário, maisespontâneo e imediato que o anterior, confirma o impacto e a admiração que Castro provocou noargentino. Também revela que, desde o primeiro momento, o Che detectou os principais traços do

caráter de Castro, os bons e os maus.Fidel Castro, por sua vez, conservou uma lembrança precisa da reunião na casa de Maria Antonia, na rua de Emparán, em que se tornaram amigos:"Em uma noite ele se transformou em um futuro expedicionário do Gran" ma".15 Castro tambémcontou em uma confissão ainda mais interessante — porque feita dez anos mais tarde — que "odesenvolvimento revolucionário [do Che] estava mais avançado que o meu, ideologicamentefalando. Do ponto de vista teórico, tinha uma formação melhor, era um revolucionário maisavançado que eu".16 Uma namorada de Fidel, que também foi amiga do Che e de sua esposa,corrobora a avaliação de Castro:A paixão de Fidel por Cuba e as ideias revolucionárias de Guevara se uniram como a chama deuma centelha, em um intenso clarão de luz. Um era impulsivo, o outro ponderado; um emotivo eotimista, o outro frio e cético. Um esta' vá ligado unicamente a Cuba; o outro, vinculado a umaestrutura de conceitos económicos e sociais. Sem Ernesto Guevara, Fidel Castro talvez jamaistivesse se tomado um comunista. Sem Fidel Castro, Ernesto Guevara talvez jamais tivesse sido algo

além de um teórico marxista, um intelectual idealista.'' Sabemos, contudo, que, apesar de ter lido Marx e Lenin no México,* o Che tinha apenas umaformação desestruturada e autodidata na teoria(*) Sua esposa menciona -outros livros: Insurgem México, de John Reed, e, já durante ospreparativos para a expedição cubana, Keynes, Smith e Ricardo, assim como vários romancessoviéticos. (Ver Gadea, op. cit., pp. 110, 147-8). Porém, Juan Ortega Arenas, amigo do Che noMéxico e um de seus principais provedores de livros, lembra que ele solicitava sobretudo literaturamarxista. (Juan Ortega Arenas, entrevista com o autor, México, DF, 23/5/96.)marxista, e um mero conhecimento superficial de história, filosofia e economia. Sua experiênciapolítica na Guatemala e sua visão dos acontecimentos assemelhavam-se às de um espectadorapaixonado e perceptivo — mas, afinal de contas, distante. A explicação apresentada pêlosbiógrafos de Castro (ou dos que conheceram os dois homens na época) é de fato atraente: postulauma amizade baseada em personalidades e talentos semelhantes. Mas a eminência intelectual outeórica atribuída ao Che por Fidel e outros deve ser restringida. Em 1955, o Che era um leitor

esporádico dos textos marxistas, um homem interessado pêlos acontecimentos mundiais que traziaconsigo a bagagem cultural humanista já descrita. Veio de uma família de leitores, tinha recebidouma excelente educação pré-universitária e um curso superior adequado, e era imensamentecurioso por tudo o que o rodeava. Porém, ele mesmo confessou, um ano depois: "Antes eu mededicava precariamente à medicina e passava o tempo livre estudando São Kari [Marx] de umamaneira informal. Esta nova etapa de minha vida exige uma mudança nas prioridades: agora SãoKari vem em primeiro lugar, é o eixo".* Ernesto Guevara não era ainda um homem de letras ou de especulação teórica infindável. Assim osugere uma conversa (sem fonte) atribuída aos dois homens por um biógrafo do Che em tomo doprograma do Movimento Vinte e Seis de Julho: "Fidel: Escuta, rapaz, tudo isto não lhe interessa?Guevara: Interessa, sim, claro que sim... Mas... não sei, che. Eu formaria primeiro um bom exército[...] e depois de ganhar a guerra, teríamos que conversar...".** O Che, mais que um pensador ou umteórico, era naquele momento alguém que buscava uma saída para a vida dependente no Méx iço ea perspectiva desagradável de um retomo prematuro à Argentina. Ele brindava seus interlocutores

com uma certa serenidade conceituai, uma cultura humanista e uma estrutura histórica einternacional capaz de abranger um programa político. Castro, em compensação, era um homem deação por excelência. Deve ter ficado fascinado pela visão sofisticada e cosmopolita do Che, quesempre admiraria mas nunca conseguiria alcançar; porém, não(*) Ernesto Guevara de Ia Serna a Célia de Ia Serna de Guevara, out. 1956, cit. em ErnestoGuevara Lynch, Aqu i  v á , Buenos Aires, Sudamerica/Planera, 1987, p. 150.(**) Gambini, op. cit., p. 105. Castro confirma o teor dessa conversa na já citada entrevista com Lee Lockwood: "Mas naqueles dias [do México] não falávamos desses assuntos [a teoria revolucionária]. O que discutíamos era a luta contra Batista, o plano Para desembarcar em Cuba, começar aguerrilha... Foi o temperamento combativo do Che, como homem de ação, que o impulsionou a unir-se à minha luta" (Fidel Castro, cit. cm Lee Lockwood, op. cit., pp. 143-4).seria então, nem mais tarde, verdadeiramente sensível à influência de Gue-vara. Sentia, sim,confiança e respeito por ele — por esses motivos e pela simpatia natural do argentino —, cimentando as bases para que, alguns anos depois, o "líder máximo" prestasse muita atenção no

Che, em virtude de sua valentia e dedicação à causa, mas não por sua habilidade teórica e política.A reação do Che diante da derrubada de Perón em setembro de 1955 — mencionadas no capítulo 3 — reflete essa postura bem conhecida do recém-recrutado expedicionário. Os comentários que fezà família em Buenos Aires são mordazes, mas não particularmente lúcidos ou penetrantes. Suaênfase na suposta interferência de Washington é lógica e compreensível; acabou de chegar daGuatemala, e suas ideias antiamericanistas são típicas daquele período altamente polarizado na

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guerra fria.* Porém, pouco têm a ver com a realidade argentina.** Sua defesa do Partido Comunistae a importância que lhe concede — por exemplo, no relato à sua mãe de uma conferência-debate em que participou em novembro de 1955 — eram típicas da época, mas pouco relevantes para asituação política de seu país. Em última instância, Ernesto Guevara era um brilhante e bem-inten-cionado "companheiro de viagem" do movimento comunista internacional, como o foram milhões de

 jovens do mundo todo naqueles anos heróicos do Chamamento de Estocolmo, do Movimento pelaPaz, de Louis Aragon e JoIiot-Curie, de Pablo Neruda e Jorge Amado, Palmiro Togliatti e Maurice 

Thorez, Mão e Ho Chi Minh, e da vitória de Dien Bien Phu. O XX Congresso do PCUS e a denúnciado stalinismo ainda não haviam se consumado; tampouco a invasão da Hungria de 1956 .*** Nadamais natural,(*) Segundo Hilda Gadea, Guevara responsabiliza o FBI inclusive por um roubo ocorrido noapartamento dos dois na rua Rhin, sem nenhum fundamento nem corrobo-ração posterior emarquivos ou testemunhos. (Ver Hilda Gadea, op. cit., p. 130.)(**) Perón acabara de fazer as pazes com Washington e com a comunidade financeira internacional;nenhum historiador menciona algum envolvimento norte-americano na derrocada do general. Pelocontrário: "Na busca de capitais estrangeiros, Perón procurou desde 1953 uma aproximação com osEstados Unidos [...] A aproximação foi levada a cabo no contexto de seu fracasso em criar uma'Grande Argentina'" (Marvin Goldwert, Democracy, militarism  and  nationaiism  in  Argentina, 1930-) 966, Austin, University of Texas Press, 1972, pp. 122-3).(***) Carlos Franqui relata como, quando conheceu o Che, no México, em 1956, o argentino estavalendo os Fundamentos do  ieninismo segundo Stalin. Ao perguntar-lhe se lera o informe de Kruschev 

ao XX Congresso, o Che replicou que aquilo era apenas propaganda imperialista (Carlos Franqui,entrevista com o autor, San Juan de Puerto Rico, 19/8/96). Um biógrafo hostil faz um relato análogo:"Em outubro de 1956, quando o exército soviético interveio para esmagar a revolta nacionalistahúngara, Che Guevarapara um jovem altamente politizado e sensível, do que acreditar na infinita maldade do imperialismo,nas incontáveis virtudes da pátria do socialismo (A cortisona, como o Che a designou, emhomenagem à cortina de ferro) e ver nos militantes comunistas os arautos da revolução mundial.* Nada disso, contudo, fez do Che um teórico do marxismo. O Che levaria mais cinco anos paraalcançar essa distinção autodidata. A partir do encontro com Fidel Castro a vida de Ernesto Guevara mudou. Ele se casou em agosto,como já vimos. Em novembro, durante uma visita de Castro aos Estados Unidos (e por insistênciadeste, segundo Hilda Gadea), viajou em lua-de-mel para o Sudeste mexicano. Lá ele finalmenteexplorou Palenque, Uxmal e Chichen-Itzá, onde sem dúvida as ruínas maias o maravilharam, masele não fez nenhum comentário sobre elas nas cartas aos pais. A única referência feita a sua mãe,

em termos ligeiramente depreciativos, cita sua "viagenzinha pela região maia".18

 No fim da viagemescreveu um poema passável intitulado "Palenque", que não é digno de registro, a não ser por seuantiamericanismo ("te golpeia o rosto a insolente ofensa do estúpido 'oh' do turista gringo"), suainvocação dos saudosos inçasteve enérgicas discussões com um de seus companheiros, defendendo a intervenção" (RobertoLuque Escalona, Yo ei mejor  de todos: una bio g raf i a no autorizada de i  Che Guevara, Miami, Ediciones Universal, 1994, p. 71). LUÍS Simón, um universitário que passou algum tempo com o Chena sierra em 1958, afirma que, ao contrário, Guevara criticou a invasão soviética da Hungria; mastambém relata que o Che lhe disse ter sido trotskista na Argentina, o que não era verdade. (LUÍSSimón, "Minhas relações com o Che", Revista Cuadernos, Paris, maio 1961.) Em um telegrama daembaixada norte-americana em Havana ao Departamento de Estado, datado de 31 de julho de1959, o correspondente da revista T i me  cita por sua vez um relato feito a ele por Andrew St.George, outro correspondente e possivelmente informante do serviço secreto norte-americano. Deacordo com St. George, o Che defendera em sua presença, na sierra, a intervenção soviética na

Hungria e afirmara que "a insurreição de Budapeste foi uma conspiração fascista contra o povo"("Ernesto Che Guevara Serna: political orientation", Braddock/Amembassy Habana to Dept. ofState, 31/7/59 (secreto), US State Department Files, vol. VIU, Despatch 163, National Archives, College Park, Maryland). (*) Em um poema escrito por ocasião da morte de uma enferma no Hospital Geralda Cidade do México, o Che toca as teclas do sentimentalismo de esquerda da época:Escuta, avó proletária, crê no homem que chega, crê no futuro que nunca verás...•sobretudo terás uma rubra vingança, juro-o pela exata dimensão de meus ideais, teus netos^verão a aurora, morre em paz, velha lutadora" (Ernesto Che Guevara, poema sem títu- 1", cit. em Gadea, op. cit., p. 232).("morreram") e uma observação sagaz sobre a eterna juventude da cidade do rei Pakal.19 Essaomissão era um sinal de sua duradoura depressão mexicana ou de sua concentração na lutaiminente? Em todo caso, não foram escritas as páginas nas quais descreveria as belezas emistérios do México — um país que deve tê-lo fascinado muito mais que as outras nações latino-

americanas — com o mesmo carinho e talento com que narrou sua vivência no resto da AméricaLatina. Ou talvez elas permaneçam fechadas nos arquivos cubanos.O treinamento para a luta armada em Cuba logo começou. No início era rudimentar e um tantofrívolo, consistindo em caminhadas pela avenida Insurgentes na Cidade do México, remo no lago doparque Chapultepec, dieta e exercícios físicos sob a supervisão de um praticante de luta livre me-xicano, Arsacio Venegas. Depois tornou-se mais sério, estendendo-se aos arredores da capital, na

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Fazenda Santa Rosa, município de Chalco, onde um acampamento foi montado. Como relatou Fidel Castro em seu primeiro regresso à Cidade do México, em 1988, o Che tentava escalar o Popo-catépeti todo fim de semana, sem jamais alcançar o cume.* Uma vez associado com os cubanos, éprovável que perseverasse nas tentativas mais como exercício de treinamento que como reptoindividual.** A decisão final do Che de unir-se ao grupo revolucionário cubano na realidade não foi tomada nanoite em que ele conheceu Fidel Castro. Em numerosas cartas a seus pais e outros

correspondentes, entre julho de 1955 e o início do ano seguinte, surgem menções a novos eigualmente excêntricos planos de viagens, a bolsas de estudo e a projetos de vida. Em setembro,ele anuncia a intenção de morrer lutando no Caribe, mas também a de continuar viajando "o temponecessário para completar minha educação e proporcionar-me os prazeres que me propus em meuprojeto de vida".20 Em 1°de março de 1956, ele confessa a Tit ã Infante que ainda estava tentandoconseguir uma bolsa de estudo na França.21 (*) Carlos Fazio, "Castro relata seu primeiro encontro com o Che no México", Proceso, 12/12/88. Odr. León Bessudo, um alpinista mexicano, contradiz Castro e assevera que Guevara chegou, sim, afincar uma bandeira na cratera do Popocatépeti, em 12 de outubro de 1955 (David Bessudo, cit. emTestimonios sobre el  Che, Havana, Editorial Pablo de Ia Torrienre, 1990, p. 121).(**) Segundo o pai do Che, desde antes de conhecer Castro, as fracassadas excursões de Ernestoao vulcão faziam parte do treino para a guerrilha. Comentando uma carta do Che, datada de 20 de

 julho de 1955, que fala de seus "assaltos" ao Popocatépeti, o pai afirma: "O Che já estava treinandocom os cubanos para libertar Cuba". (Ver Guevara Lynch, Aqu i  v á , op. cit., p. 106.)

O fascínio do Che pelo projeto insurrecional é contrabalançado pela lucidez que ele já demonstraraem diversas ocasiões. Ele tinha vários bons motivos para guardar distância: seu ceticismo e cinismoargentinos; seu cálculo realista das probabilidades de um grupo heterogéneo, inconsistente e semforça de cubanos sem rumo na Cidade do México derrubar uma ditadura militar apoiada porWashington e em pleno miniboom económico, e finalmente sua tendência para buscar sempre outraopção — todas essas considerações o inclinavam a guardar certa distância. Ele deve ter refletidotambém na possibilidade de a inclusão de um estrangeiro na expedição tornar-se politicamenteperigosa para Fidel, e de fato ocorreram vários incidentes ligados à sua nacionalidade. O maisrelevante foi o mal-estar generalizado que Castro suscitou ao nomear o argentino chefe de pessoalno campo de treinamento de Chalco em abril de 1956. Convém lembrar ainda que pelo menos umoutro estrangeiro que manifestou o desejo de unir-se ao grupo em dezembro de 1956 foi rejeitadopor Fidel justamente por causa de sua nacionalidade.* O próprio Che reconheceria suas reservasiniciais alguns anos mais tarde: "Minha impressão quase imediata, ao ouvir as primeiras preleções, foi de que havia possibilidade de triunfo, para mim muito duvidosa quando me alistei como

comandante rebelde".22

 Vários fatores devem ter influenciado no processo gradual de incorporação de Guevara, entre julhoe agosto de 1955 e fins de 1956, quando zarpou do porto mexicano de Tuxpan a bordo do Granma. A aproximação com dirigentes cubanos, que viajaram ao México para discutir e forjar alianças comCastro, pode ter influído em seu ânimo. Entre eles estavam Frank País, o jovem dirigente cubano doMovimento Vinte e Seis de Julho, José António Echevarría, líder do Diretório Estudantilrevolucionário, e, mais tarde, o dirigente comunista Flavio Bravo, assim como (segundo o historiadoringlês Hugh Thomas) Joaquín Ordoqui, Lázaro Pena e Blas Roca, todos do PSP.2' O Che conheceua maioria deles durante suas visitas (não Frank; o encontro com ele só se daria na sierra Maestra), elogo compreendeu que as perspectivas da iminente Revolução Cubana não repousavamexclusivamente sobre os largos ombros de Fidel Castro e seu bando de conspiradores temerários;(*) Segundo Castro, quatro estrangeiros — o Che, o mexicano Guillén Zelaya, o italiano Gino Doné eo dominicano Ramón Mejías dei Castillo — já bastavam. O amigo guatemalteco do Che, JúlioCáceres, ou Patojo, foi descartado por Fidel "[...] não por algu-nia qualidade negativa, mas para não

fazer de nosso exército um mosaico de nacionalidades" (ver Ernesto Che Guevara, "O Patojo", em"Pasajes de Ia guerra revg^uc6»ana", Escritos y  discursos, Havana, Ed. de Ciências Sociales, t. 2,p. 292).dependiam de uma ampla rede de opositores ao regime, incluindo ativistas sindicais e estudantis,comunistas e até mesmo alguns empresários.A crescente amizade e admiração por Fidel Castro também desempenharam um papel importante.A lealdade e solidariedade de Castro para com seus homens, a confiança cada dia maior que eledepositava no Che, atribuindo-lhe grandes responsabilidades — desde o aluguel da fazenda para ocampo de treinamento até a nomeação de Guevara para chefe de pessoal —, contribuíram paradissipar as dúvidas do argentino, fortalecendo a sua decisão de se reunir à expedição. Um fatodeterminante, ainda que tardio, foi o comportamento de Fidel em 24 de junho de 1956, quando oscubanos foram detidos pela polícia mexicana. As autoridades detiveram Fidel Castro na Cidade doMéxico por solicitação dos serviços de informação de Batista, e em consequência de uma delaçãointerna, assim como da corrupção infinita da maior parte do aparelho de segurança mexicano.Depois de examinar a possibilidade de resistir, Fidel decidiu — com o mesmo instinto políticoassustador que o manteve no poder por quase quarenta anos — que era preferível entregar-se,evitar o confronto e garantir sua libertação por meio de uma combinação de suborno, retórica e aajuda de partidários mexicanos. Fernando Gutiérrez Barrios, na época um jovem funcionário doDepartamento Federal de Segurança, e mais tarde, e por mais de um quarto de século, o principalresponsável pêlos serviços de segurança e informação do governo mexicano, relembra sua primeiraconversa com Fidel Castro:

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"Encontramos armas no Packard de vocês e alguns documentos. Do que se trata?". Castropermaneceu calado durante algumas horas, porém a polícia logo encontrou um esboço com alocalização da Fazenda Santa Rosa, em Chalco. Gutiérrez Barrios imediatamente despachou seussubordinados para o local; o relatório não demorou a chegar: "Num armazém perto da FazendaSanta Rosa, senhor, disseram que alugaram a Fazenda e estão treinando ali. O pessoal doarmazém diz que eles são cubanos, pelo jeito de falar e pêlos hábitos".24 O czar do serviço deinformação mandou trazerem Fidel Castro e confrontou-o com as provas, em tom quase amistoso.

Instou-o a não perder tempo e evitar um enfrentamento, que não convinha a nenhum dos dois, nema suas respectivas nações. Fidel concordou, e o mexicano sugeriu que ambos se dirigissem para oChalco, a fim de que Fidel pudesse ordenar a seus homens que se entregassem pacificamente.Assim foi feito, e Castro e Gutiérrez Barrios iniciaram uma amizade que já completou quarentaanos."Fidel se dá por vencido e começa a negociar com as autoridades mexicanas a libertação dosdemais revolucionários. Logo a obtém para todos,exceto para ele próprio, Calixto Garcia e o Che. No final, permanecem presos apenas Garcia e oargentino, ambos em situação migratória e política mais delicada que a de seus companheiros. OChe recorda, em seu diário, os sentimentos daquele momento:Fidel fez algumas coisas que, quase poderíamos dizê-lo, comprometiam sua atitude revolucionária,por causa da amizade. Lembro que lhe expus o meu caso específico: um estrangeiro, em situaçãoilegal no México, com uma série de acusações nas costas. Disse-lhe que de forma alguma arevolução poderia ser detida por minha causa e que ele podia me deixar, que eu compreendia a

situação e trataria de ir lutar ali onde me mandassem, que a única coisa que eu lhe pedia era queme enviassem a um país próximo e não à Argentina. Também lembro a resposta de Fidel: "Eu nãovou abandoná-lo". E foi o que aconteceu, pois foi preciso empregar tempo e dinheiro preciosos paratirar-nos da cadeia mexicana. Essas atitudes pessoais de Fidel para com as pessoas de quem gostasão a chave daquele fanatismo que ele desperta nos outros [...]* A detenção do pequeno exército revolucionário ocupa um lugar privilegiado na fase mexicana doChe e dos cubanos. Existem várias referências atribuídas a Guevara e a historiadores cubanossobre o papel dos serviços de informação dos Estados Unidos na montagem da operação e nosubsequente interrogatório dos detidos. Tudo indica, porém, que se tratou de uma diligênciaestritamente mexicana e cubana.** Ebastante benevolente, com exceção dos maus tratos sofridospor alguns dos prisioneiros. Mais tarde Castro os denunciaria em seus devastadores comentáriossobre os hábitos da polícia mexicana. A propósito da detenção de três companheiros, entre eles ummexicano, ele observa:Por mais de seis dias não lhes deram alimentos nem água. Durante a madrugada, com uma

temperatura de quase zero grau, eles eram introduzidos, comple- (*) Ernesto Che Guevara, Pasajes, op. cit., p. 6. É difícil estabelecer se um poema do Che dedicadoa Fidel (uma comprovação de que os grandes narradores não são necessariamente bons poetas) foiescrito logo antes ou logo depois do ato de solidariedade de Fidel para com seu amigo argentino.Em todo caso, ambos — o poema e a demonstração de lealdade de Fidel — ocorreram a poucosdias um do outro.(**) Segundo Gutiérrez Barrios: "Não, não me parece que os americanos tenham exercido algumapressão, em absoluto. Fidel viajava a Miami para encontrar-se com os lideres, inclusive com Prío, que de alguma forma o apoiava, por intermédio do Partido Autentico, ia a Nova York também, emantinha reuniões com grupos cubanos, o que quer "Ker que os Estados Unidos não o viam comhostilidade, pois o governo de Batista estava "esmoronando por si só. Os americanos nuncaestiveram presentes, e isso eu sei porque estava no comando, especialmente no Ministério doInterior" (Gutiérrez Barrios, op. cit.). tamente nus, em tanques de água gelada, com os pés e mãos amarrados; eram mergulhados e,

quando estavam a ponto de se afogar, puxados pêlos cabelos por breves segundos e a seguirmergulhados outra vez. Depois de repetir muitas vezes essa operação, os policiais os tiravam daágua e batiam neles até que perdessem a consciência. Um homem — encapuzado — com sotaquecubano fazia os interrogatórios.* Foi o primeiro contato de Che Guevara com a prisão, as forças da polícia e a repressão, e narealidade o único período em que ficou preso, até as vésperas da execução em La Higuera. Adetenção teve importância crucial para o Che, tanto por ter comprovado a solidariedade de Castro edos demais cubanos, como porque-ele sentiu na própria carne o que podem ser o cárcere, aagressividade pessoal e direta das forças da lei. Foi uma oportunidade de autodefinição: Guevarateve a chance de afirmar repetidamente sua identificação com a ala dura, comunista e pró-soviética do movimento revolucionário internacional.Desde dezembro de 1955 o Che começara a ter aulas de russo no Instituto Mexicano-Soviético deRelações Culturais, situado na rua Rio Nazas, Colónia de Anzures, na Cidade do México. Jáfalamos de sua inclinação nitidamente pró-soviética, mas esse passo adicional deve ser destacado.

Todos os mexicanos e exilados que viviam no México naquela época sabiam que as diversasrepresentações soviéticas na capital — a embaixada em Tacubaya, Intourist, Tass e o Pravda, osinstitutos culturais e de idiomas — estavam sob a cuidadosa vigilância das autoridades mexicanas eseus "sócios" norte-americanos. Isso ficaria provado poucos anos depois, por ocasião dainvestigação das atividades de Lee Harvey Oswaid no México. Seria, portanto, inverossímil que oChe tivesse decidido procurar o instituto apenas para ler Pushkin e Lermontov dans  l ê  texte. E

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provável que desejasse afirmar, pública e provocativamente — embora talvez de maneira(*) Fidel Castro, Prisão de Miguel Schultz, México, DF, 9/7/56. Notas para o manuscrito de CarlosFranqui, Diário de Ia  Revoiución Cubana, Arquivo Carlos Franqui, COÓ44, Princeton, New Jersey, Princeton University, Box 2, File 2. Na sua grande maioria, as notas do Di ário de Ia  Revoiución Cubana  entregues por Franqui à Biblioteca Firestone da Universidade de Princeton foramreproduzidas textualmente no livro publicado. Não é o caso deste texto de Fidel Castro, talvez devido precisamente aos comentários que ele faz sobre o México. As passagens anteriores e

posteriores de Castro aparecem na página 141 de Carlos Franqui, Diário de Ia Revolución  Cubana, Barcelona, R. Torres, 1976. Daqui por diante, quando citarmos Franqui, faremos referência aoarquivo de Princeton apenas quando as notas não aparecerem no livro; nos demais casos, faremosreferência à edição de R. Torres.inconsciente — seu respeito e afinidade pela União Soviética. Conseguiu o que pretendia: suasvisitas ao Instituto de Cultura se destacam em um dos primeiros informes dos serviços deinformação estadunidenses a mencionar o Che.* Quando as autoridades mexicanas e a máquina depropaganda de Batista fizeram uma distinção entre ele e os demais presos, justamente emconsequência de suas constantes visitas às representações da URSS, ou ele pagou um preçoaltamente previsível, ou logrou justo o que buscava: ser considerado, com muita honra, umcomunista e um defensor da União Soviética, embora sem partido .** Algo semelhante ocorreu em seus encontros com Nikolai Leonov. Segundo relata o agora generalreformado da KGB, tanto em suas memórias como em uma entrevista com o autor em Moscou,iniciou sua amizade com Raul Castro de maneira puramente casual. Após o Festival Internacional

da Juventude de Viena, em 1951, o irmão de Fidel retornou da Europa de navio;a bordo viajava também Leonov, comissionado no México para estudar espanhol mas igualmenteacreditado na embaixada da URSS. Quatro anos depois, por puro acaso, segundo Leonov, eletopou com Raul Castro numa rua da Cidade do México, onde renovaram sua amizade.26 O cubanocontou a Leonov os motivos de sua estadia no México; Leonov fez o mesmo. Em um de seusdiversos encontros na casa de Maria Antonia, a anfitriã e fada-madrinha de Fidel e seus seguidoresno México, apareceu o Che. Segundo as palavras de Leonov:O Che parecia muito bem, radiante de felicidade por estar com um representante de outro mundo,do campo socialista, e começamos a discutir um pouco(*) Um documento confidencial do Departamento de Estado, sem data porém provavelmente de finsde junho de 1958, que analisa "as possibilidades de vínculos comunistas do Vinte e Seis de Julho",anota que o Che "pode" (sic) ter pertencido ao Instituto Mexicano-Soviético de Relações Culturais.Também destaca as relações de Hilda Gadea com dois "agentes soviéticos" no México, JorgeRaygada Cauvi e o major salvadorenho Humberto P. Vilialta (National Archives, Box 2, College Park, 

Maryland). (**) Aquela que é provavelmente a primeira menção a Che Guevara em um documento oficialestadunidense acusa o "comunista argentino" de ser um protegido de Vicente Lombardo Toledano, o dirigente operário, intelectual e político mexicano, a cujo rartido Popular afirma-se que o Che sefiliou e a quem se atribuem os empregos que üuevara conseguiu no México. Tudo indica que ainformação é falsa: o Che não era membro do Partido Popular, não era amigo de Lomhardo Toledano e não lhe devia seus empregos (Foreign Broadcast Information Service (FBIS), Daily  Report, 25/7/56, n" 145, p. 5. rossibility of Communist connections", Department of State, NationalArchives, College Park, Maryland, Lot 60 D 513, MER 1137, Box 7-8).de tudo. Aproximei-me de Raul pela mesma razão, no navio; com o Che foi na mesma base, pois aconversação já partia de um ponto em que éramos como iguais. Ele me perguntava sobre a UniãoSoviética, pois naquele ano, 1956, muitas coisas tinham sucedido. Estava basicamente beminformado, mas as coisas concretas, as reuniões do Comité Central, não interessavam ao Che. Elesabia como era a União Soviética, como a sociedade estava estruturada, como funcionava a

economia, ou seja, tinha fundamentos básicos sobre o que era a União Soviética. Naquela épocatodos tinham a mesma visão, a mesma admiração. Ele era um admirador da União Soviética."Conversaram por um bom tempo. Guevara expressou seu interesse pela literatura soviética; Leonov entregou-lhe seu cartão de adido à embaixada e se ofereceu para emprestar livros ao jovemargentino. Este queria livros que o ajudassem a entender o povo soviético. "'Por que não?', con-testou o soviético. Indicou-me três: Assim foi temperado o aço, de Ostrovski, Um homem deverdade, de Polevoi, e A defesa de Stalingrado." 18  Um dia o Che apareceu na embaixada; Leonov jáseparara os livros. O russo lembra que o Che estava apressado: "Tinha coisas muito maisimportantes para fazer, decerto; quando o convidei a entrar e conversar, ele disse que precisavair".29 Na versão de Leonov, quando o Che foi detido algumas semanas depois, as autoridades mexicanasfizeram grande alarde ao acharem em sua carteira o cartão de visita do diplomata russo. Logo oacusaram de ser um agente do comunismo internacional, quando, segundo Leonov, tinham seencontrado apenas algumas vezes. Se o russo foi despachado rapidamente para casa, por um

embaixador iracundo, como castigo, foi unicamente por excessiva prudência de seu superior.E absurda a suspeita de que o Che tenha sido recrutado pela URSS durante aqueles meses, graçasao fino trabalho de Leonov. Todavia, o relato do ex-general da KGB peca por ilusório ou simplista.Guevara devia ter consciência de que qualquer contato com o pessoal soviético no apogeu da guer-ra fria, em um lugar tão importante como o México (naqueles anos comparável a Viena ou Berlim),acarretava um grande risco de ser detectado pêlos serviços de informação mexicanos ou norte-

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americanos. Devia estar consciente também, de uma maneira ou de outra, de que o mero fato delevar na carteira o cartão de um diplomata soviético — e isso em pleno campo de treinamentoguerrilheiro, a cinquenta quilómetros da Cidade do México — podia ser visto como uma provocação.Era quase uma garantia de que, na hipótese sempre presente de uma de tenção, seria acusado derelações com Moscou. Por outro lado, ainda que Leonov possa não ter pretendido inicialmenterecrutar o argentino, suas conversas com ele, assim como seu crescente conhecimento sobre os projetos do grupo de cubanos, podem ter-lhe sugerido a ideia de

aproximar-se de Guevara, um jovem mais comprometido ideologicamente, mais acessível etalentoso que a maioria dos revolucionários. Podemos especular que, se Leonov não recrutou oChe, não foi por indiferença; e se o Che não foi recrutado, não foi por falta de vontade.Por último, figura nos arquivos a insistência do Che em sua orientação marxista-leninista durante osinterrogatórios do Ministério do Interior. Além de reconhecer que era marxista-leninista, ele discutiuaté onde foi possível com as autoridades, defendendo diversas teses marxistas e arg uindoincessantemente António Viliada, o promotor público. Segundo Gutiérrez Barrios: Nesse momento nos deslocamos para a Miguel Scultz [seção de imigração] e ali tomaram-se asdeclarações de todos. O único que confessou sua ideologia foi o Che. Quando o promotor público ointerrogou, afirmou com toda a clareza que sua ideologia era marxista-leninista. Os demais, não,pois nenhum deles tinha aquelas características. Fidel Castro era um seguidor de Martí. Mas o Chefez uma declaração sobre a situação, expressando sua profundidade ideológica e sua convicção. Opromotor público era uma pessoa que eu tinha como o nosso homem de maiores conhecimentossobre o comunismo, como chamávamos a isso, sem matizes, e foi esse especialista em comunismo

que interrogou o Che. Este já tinha confessado que era marxista-leninista quando esse advogadocomeçou a querer discutir sobre essa filosofia, mas seu conhecimento da matéria era muito limitadocomparado ao do Che. Quando passaram a discutir, e eu vi que nosso advogado estava em mauslençóis, chamei-o e disse: "Doutor, ele já disse que era marxista-leninista; passe direto aos delitos enada mais". Porque o Che estava sendo muito arrogante, com toda a carga de seu conhecimento, eestava ganhando a discussão, em um debate ideológico completamente irrelevante.3Ü Em outras palavras, o Che não só não dissimulava sua inclinação ideológica ou política — o quetodos os demais detidos estavam fazendo — como se vangloriava dela, quase buscando converterseus captores.* Dificilmente(*) Outro dado corrobora essa análise. Na entrevista a Jorge Masetti na sierra Maestra, citada nocapítulo anterior, o Che afirmou, a propósito de sua participação nos acontecimentos da Guatemala:"Eu nunca ocupei um cargo no governo de Arhenz". '"ontudo, em sua declaração perante o promotorpúblico no México, disse "que chegou a esta capital há aproximadamente um ano e meio,procedente da Guatemala, de onde saiu spos a queda do regime de Jacoho Arbenz, do qual era

simpatizante e a cuja administração servia" (ver Adys Cupull e Froilán Gonzáiez, Un  hombre  bravo, Havana, Editorial Capitán ^n Luis, 1994, p. 384).se pode imaginar Fidel Castro, seu irmão Raul ou qualquer outro dos líderes cubanos alardeandosuas convicções ideológicas e políticas e sustentando um acalorado debate com seus carcereiros. OChe trazia à flor da pele sua nova fé comunista, soviética e revolucionária; longe de escondê-la,

 jactava-se dela. Enquanto seu impacto no pensamento político do Movimento Vinte e Seis de Julhopermaneceu limitado, as consequências de seu orgulho militante foram pequenas; mas à medidaque sua influência política aumentou, sua vaidade assumiria considerável importância histórica.Uma razão adicional que ajudou a convencê-lo de embarcar rumo ao Oriente cubano foi seudesempenho no treinamento físico e militar realizado sob a direção de Alberto Bayo, um antigooficial do exército republicano espanhol. Em fins de abril de 1956, Castro conseguiu o dinheiro paracomprar a Fazenda Santa Rosa, perto do município de Chalco, no Estado do México. Já entãopersuadira Bayo a treinar seus companheiros. O Che participou dos exercícios físicos, de tática, detiro e resistência junto com os demais, ao mesmo tempo em que desempenhava a função de chefe

de pessoal. Desincumbiu-se da segunda tarefa sem maiores problemas, mas deve ter sido umaenorme satisfação para ele descobrir que, apesar da asma e da altitude, podia manter-se à altura deseus companheiros e obter as melhores classificações do grupo. Em seus apontamentos, Bayorefere-se a seu aluno predileto: "Assistiu a umas vinte sessões práticas regulares, disparando emtomo de 650 cartuchos. Disciplina excelente, qualidades de liderança excelentes, resistência físicaexcelente. Algumas escorregadelas disciplinares por pequenos erros na interpretação de ordens eleves sorrisos".31 Por certo, à noite o Che "estava cansado das marchas [...] que o deixavam emfrangalhos".32 Contudo, Bayo lembra que: "Guevara foi qualificado como o número l no grupo. Emtudo teve a nota máxima: 10. Quando Fidel viu minhas classificações, perguntou: 'Por que Guevaraé o número l ?'. 'Porque sem dúvida alguma é o melhor.' 'Eu também tenho essa opinião', disse-me.'Tenho dele o mesmo conceito'".* Desde seus tempos de rúgbi em Córdoba e Buenos Aires, Guevara tentara provar a si mesmo quesua asma não era um empecilho às atividades físi- (*) Alberto Bayo, Mi aporte a Ia Revolución  Cubana, Havana, Imprenta Ejército Rebelde,1960. Nas

memórias de Bayo, publicadas em 1960 com um prefácio do Che, o mili tar registra o seguintecomentário sobre a filiação política de Guevara: "Não guardava nenhuma simpatia por Perón, oditador que o enfiou no cárcere [sic] chamando-o de comunista, e deduzi em cem ocasiões queGuevara, como eu, não era comunista, nem o fora"(ibidem, p. 77).cãs que apreciava. Em boa medida o conseguira. O teste máximo, até omomento, fora o treinamento de guerrilha no México; foi aprovado com louvor.

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Ele já não podia duvidar de sua capacidade de superar os efeitos adversos desua enfermidade. Teria sido absurdo, depois de uma vitória como essa, recuarpor outras razões. O treinamento na Fazenda Santa Rosa selousua decisão.Por último, seria preciso acrescentar um outro fator, a situação de seu casamentocom Hilda Gadea. A apreciação do mais recente biógrafo de Fidel Castro — "OChe estava convencido de que encontrara uma missão e uma maneira de deixara esposa" — é indubitavelmente exagerada: Guevara não se alistou naexpedição do Granma para separar-se da mulher." Mas não há dúvida de que orelacionamento já havia fracassado, aos olhos do argentino embora não de todopara Hilda. Ernesto intuía que a relação tinha os dias contados. Escreveu a suaamiga Titã Infante, em Buenos Aires:[Hildita] me deu uma dupla alegria. Primeiro, sua chegada pôs fim à situaçãoconjugal desastrosa e, segundo, agora tenho plena certeza de que poderei partir,apesar de tudo. Minha incapacidade de viver com a mãe dela é maior do que ocarinho que sinto por ela. Por um momento pareceu-me que uma combinação doencanto da menina e com a consideração pela mãe (que é em muitos aspectosuma grande mulher e gosta de mim de uma forma quase doentia) poderiaconverter-me em um aborrecido pai de família. Agora sei que não será assim eque continuarei minha vida boémia até não se sabe quando.* Mais uma vez, o Che decidiu fugir da realidade com que não podia conviver. Ele

 já não tolerava a vida conjugal, mas adorava a menina. Resistia à ideia de umaseparação explícita e definitiva. Entre o treinamento, os 5 7 dias na prisão edepois a semiclandestinidade, o Che ficava cada vez mais ausente de casa —mas não ousou tomar nenhuma atitude drástica. Logo sobreveio a partida deHilda para o Peru, e a sua, no Granma:  uma situação incerta a tal ponto queHilda, em suas memórias, se dá conta de que se iludia, ao chegar a Havana apóso triunfo da Revolução, pensando que o casamento poderia ser salvo.** Emcompensação, o Che dava o casamento por desfeito desde(*) Ernesto Guevara de Ia Serna a Titã Infante, l'' /3/56, cit. em Adys Cupull eFroilán Gonzáiez, Cálida  presencia, Havana, Editorial Oriente, 1995, p. 80. Amesma carta, tilada em Guevara Lynch, Aqu i  v á , op. cit., p. 129, não inclui essapassagem. O pai do Che, como já observamos, partilha plenamente a maniacubana de despojar os heróis de todo trauma, dilema ou contradição.(**) O relato de Hilda Gadea é elíptico mas sugestivo: "Quando cheguei a Havana

[•••] Ernesto me disse que tinha outra mulher [...] e com grande dor de minhaparte [...] outubro de 1956, em comentários com terceiros, embora não com sua esposa,nem sua mãe: "Meu casamento está quase completamente destruído, o queacontecerá em definitivo no mês que vem, pois minha mulher vai para o Peru [...] Há certo travo amargo nesse rompimento, pois ela foi uma companheira leal esua conduta revolucionária foi irrepreensível [...] mas nossa divergênciaespiritual era muito grande".'4 

Ante esse emaranhado de sentimentos misturados, lançar-se à aventura do Vinte e Seis de Julho não parecia uma má ideia. Obviamente Guevara não optoupelo caminho da revolução apenas para deixar sua esposa; seria igualmenteerróneo não incluí-lo nas razões que contribuíram para o colapso do seu

casamento. O Che não era um homem movido por impulsos emocionais-porém,as grandes linhas divisórias existenciais em sua vida foram acompanhadas pormomentos de angústia ou desilusão sentimental. O essencial, todavia, era sempresua busca de um destino. O puramente político e o estritamente pessoalrepresentaram papéis secundários na vida do Che.

Nem o Che, nem Fidel, nem seus companheiros no México de então,registram uma participação destacada de Guevara nas discussões estratégicas doMovimento Vinte e Seis de Julho. Naturalmente, ele empenhou comandos apreparação política e ideológica dos futuros guerrilheiros; ministrava cursos,tanto na Fazenda Santa Rosa como no posto migratório da rua Miguel Schultz enos demais lugares nos quais Castro e seus homens se abrigaram antes de zarparde Tuxpan. Porém, o discurso guevarista não foi muito além de exposições dessetipo — necessariamente desvinculadas das discussões táticas e estratégicas no

seio do movimento, ou entre este e outros grupos cubanos. Segundo um de seusamigos mexicanos, seu silêncio devia-se a um misto de convicção econveniência. Como estrangeiro, tinha grande respeito pêlos cubanos e nãoachava que devesse intervir de maneira imediata ou exagerada:"Não posso dizer-lhes nada sobre a terra deles". Sua atitude era também uma

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questão de conveniência: as opiniões dele poderiam levar a divergências ecomprometer seu objetivo principal, que era participar da invasão de Cuba.'5 

Uma outra causa possível para a reserva do Che era o caráter abertamentereformista do Movimento Vinte e Seis de Julho, ou M-26-7, pelo

decidimos nos divorciar [...] Ao dar-se conta de minha dor ele disse: 'Melhor teria sido morrer em

combate'" (Hilda Gadea, op. cit., pp. 201-2). Certamente o pai do Che tinha a mesma visão fictícia dorelacionamento. Falando em 1957, ou seja, meses depois da separação física e afetiva do casal, diz:"Trouxe minha nora, Hilda Gadea, e nossa neta Hildita. Viajaram a Buenos Aires para se reunirem anós [...]" (Ernesto Guevara Lynch, Mi hijo el Che, Barcelona, Planeta, 1981, p. 23). menos em suas manifestações públicas. Como já foi amplamente documentado,as teses políticas, ideológicas, económicas e sociais de Fidel Castro e seuscompanheiros (tanto nos cárceres cubanos ou mexicanos, como na sier-ra Maestra, ou mesmo durante os primeiros meses no poder) foram qualquer coisaexceto marxistas ou revolucionárias em qualquer sentido clássico. A defesasumária de Castro em seu julgamento — "A história me absolverá" —, emoutubro de 1953; o panfleto que redigiu sob o mesmo título, publicado se-cretamente em abril de 1954; o "Manifesto número l" do M-26-7, distribuído na

Cidade do México, dias depois da chegada de Fidel, e sua carta de afastamentodo Partido Ortodoxo, de 19 de março de 1956, são todos moderados em suasubstância e ortodoxos em seu pensamento. Theodore Draper, um dos críticosmais conservadores de Castro, vê neles uma moderação crescente e"constitucionalismo".16 A sinceridade destes textos é um tema distinto: pertenceà biografia de Fidel Castro e aos debates sobre a natureza da Revolução Cubana.A questão aqui: é a posição vis-à-vis do Che do programa do grupo cubano e suahipotética disposição para fazer parte de uma pretensa impostura ou erro.

Em seu projeto original, o programa de Fidel Castro exigia cinco reformasamplas: o restabelecimento da Constituição de 1940; uma reforma agrária queconcederia terra aos colonos com menos de 150 acres; um esquema de

participação nos lucros das usinas açucareiras; uma reforma limitada da indústriaaçucareira, e o confisco das terras obtidas de maneira fraudulenta. Além disso,ele prometia uma reforma educacional — basicamente o aumento do salário dosprofessores —, a nacionalização dos serviços públicos (sistema telef ónico) e umareforma habitacional." Em si, essa plataforma não era mais radical do queaquelas adotadas pêlos populistas latino-americanos clássicos como Perón, Cárdenas, Vargas ou o próprio Batista em 1940. Todavia, nada em Cuba era narealidade comparável ao restante da América Latina. Como mostrou uma dasanálises mais recentes da história da ilha:

No contexto cubano dos anos 50, o Movimento Vinte e Seis de Julho nãoera um movimento reformista [...] A substância das reformas que postulava

constituía o cerne de reformas semelhantes em outros países da AméricaLatina. Mas não em Cuba [...] Os fidelistas exigiam mudança em umasociedade na qual os fracassos económicos e sociais tinham debilitadoconsideravelmente as possibilidades de reforma, e empregavam meiosradicais para chegar ao poder.'8 

Além disso, mesmo depois de seu afastamento do Partido Ortodoxo, Castrocontinuou a receber doações generosas de personalidades como o ex-Presidente Carlos Prío Socarrás; de López Vilaboy, o presidente das Líneas Aéreas Cubanas, e de diversos exilados cubanos residentes nos Estados Unidos.O caráter revolucionário da iniciativa residiria, portanto, nos meios empregadosou na esperança (suscitada pela personalidade de Castro e pela confiança que o

Che depositava nele) de que, depois de conquistar o poder, o movimento seorientaria por uma vertente mais radical. Tudo sugere que Guevara estavalutando por um ideal próprio e para estar com Fidel, e não tanto pelo programado Movimento, ou pela possível transformação da sociedade cubana. Não seria aprimeira vez que Ernesto Guevara enfatizaria a primazia do método da luta sobre

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seu conteúdo. No México, sua decisão tinha pouco a ver com qualquerconceituação abstrata; tratava-se mais de uma avaliação política e um certoestado emocional. Se o Che tivesse embarafustado por discussões infindáveiscom os cubanos sobre a plataforma, provavelmente nem teria chegado a umacordo com eles, nem convencido a si mesmo da viabilidade do projeto e de sua

grandeza inerente.A partida foi precedida por uma longa série de problemas pessoais e con-tratempos políticos, logísticos e militares: dias antes, a polícia mexicana confis-cou aos cubanos vinte fuzis e 50 mil cartuchos na capital. Finalmente, na madru-gada do dia 25 de novembro o Granma afastou-se do cais de Tuxpan, Veracruz,zarpando para a costa leste de Cuba. A embarcação, um iate, propriedade de umnorte-americano domiciliado na Cidade do México, custara 15 mil dólares emostrou-se lamentavelmente inadequada para a empreitada: pequena e instável, ede curto alcance. Mas Pidel tinha pressa. Não tanto pelas pressões exercidaspelas autoridades mexicanas,* nem pêlos perigos derivados da virtual ação dosagentes de Batista no México, mas pela promessa repetida em várias ocasiões:

"Em 1956 seremos livres ou seremos mártires".** Assim, não havia alternativapara o grupo a não ser lançar-se ao golfo do México antes que o ano terminasse,mesmo que eles não estivessem preparados para a travessia.

Na noite de 25 de novembro o Granma deslizou pelo estuário do rio Tuxpan,com as luzes apagadas e os motores silenciosos. O Che deixava para

(*) Gutiérrez Barrios afirma que o governo do México não pressionou os cubanos para que sefossem e que ajudou Castro a evitar problemas em Tuxpan, chamando seus homens da região devolta a'capital. 

(**) A versão oficial cubana explica a precipitação da partida pela deserção e subsequentetraição de dois membros do acampamento de Abasolo, no estado mexicano de Tamaulipas, em 21 de

novembro. Sem questionar o fato, pode-se imaginar que muitos outros fatores também estavamenvolvidos — inclusive o início de uma insurreição na própria ilha. (Ver Centro de Estúdios deHistoria Militar, op. cit., p. 70.) sempre as terras mexicanas, e como se diz no México, "nunca lê habrá dado el golpe ai país".* A estadia de cerca de dois anos destaca-se mais por seu final, enão pela inicialmente monótona vida na capital. No México, ele viveu alguns dosmomentos mais significativos de seus 28 anos: lá ele conheceu Castro eembarcou para a Revolução Cubana. O país em si, porém, pouco teve a ver comesses acontecimentos; eles poderiam ter se dado em qualquer outro lugar.O Che participou da expedição como médico. Com a patente de tenente, ele eraencarregado dos medicamentos e de atender os possíveis feridos entre os 82homens. Já a bordo, só com grande dificuldade se desincumbiu de suas

obrigações; logo foi derrubado por uma crise de asma em alto-mar, agravada pelaausência de um inalador ou de epinefrina. Os demais membros da tripulaçãoenjoaram logo que o Granma levantou âncora. O médico não podia ajudá-los,tendo descoberto que não havia pastilhas antienjôo na embarcação. O iate nãodeveria transportar mais que vinte passageiros; além dos 82 homens, carregavaágua e comida, armas e munição: dois canhões antitanque, 35 rifles com miratelescópica, 55 fuzis de fabricação mexicana, três metralhadoras Thompson equarenta metralhadoras leves.O plano fora cuidadosamente coordenado com Cuba. O Movimento Vinte e Seisde Julho na ilha, dirigido por Frank País, estava pronto para desencadear umlevante popular em Santiago, no dia 30 de novembro. Cumpriu a tarefa de

maneira satisfatória, embora a responsabilidade pelas ações tenha sidoequivocadamente atribuída a outros.** ( O Granma devia ter atracado en Niquero, na província de Oriente, naquele mesmo dia. Mas encalhou 72 horasdepois, em 2 de dezembro, em Los Cayuleos, perto da praia de Los Colorados,longe de Niquero e em meio a um charco horripilante.)*** Os planos traçados no

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México se depararam com vários obstáculos: a lentidão do iate por causa dasobrecarga e os motores defeituosos; o mau

(*) Nunca lhe caiu no gosto. (N. T.) (**) Um informe confidencial datado de 4 de janeiro de 1957, dirigido ao subsecretário de Estadonorte-americano para a América Latina, Roy Rubottom, afirma que "existem provas de que o Partido

Socialista Popular participou das atividades terroristas em Cuba no último mês" (Murphy a Rubottom,4/1/57, Department of  State, National Archives, Lot 60 D 513, MER 1137, BOX 7-8, College Park, Maryland). (***) "Encalhamos em um lugar lamacento para nos metermos no pior lodaçal que Já vi [...] Naquelemaldito pântano tivemos de abandonar quase todas as provisões [...] atravessando aquele inferno"(Raul Castro, "Diário de Ia guerrilha cubana", cit. em Che Guevara e Raul Castro, La conquista de Iaesperanto., México, DF, Ediciones Joaquín Morttz, 1995, p. 75). tempo, mais ou menos típico do golfo naquela estação, e os erros de navegação.Tampouco o desembarque aconteceu conforme o previsto. Em virtude do terrenoinóspito, os rebeldes tiveram de abandonar parte de seus apetrechos, marchandopelo lamaçal durante horas e dividindo-se em vários grupos isolados. E, como oiate chegou depois da data combinada, o regime de Batista já se encontrava desobreaviso e pronto para contra-atacar. O desastre parecia inevitável; com efeito,

não demorou a acontecer.Nas horas e nos dias logo após ao desembarque, os tripulantes do Gran-ma 

se dispersaram pelo pântano, onde muitos membros foram rapidamente abatidos

pelas forças do governo. O batismo de fogo de Che Guevara ocorreu nos

canaviais da Central de Niquero, propriedade da família Lobo, uma das mais

ricas da ilha. A 5 de dezembro, em Alegria de Pio, houve o primeiro combate da

revolução. O Che foi atingido por uma rajada de metralhadora, que lhe feriu o

pescoço de modo leve, mas preocupante, pois ele sangrou muito. Mais tarde

evocaria algumas linhas clássicas de Jack London sobre a morte no Grande Norte

como o primeiro pensamento que lhe ocorreu naquele instante. Porém, a

passagem que melhor ilustra seu estado de ânimo e a sensação de morte

predestinada são os versos do poeta espanhol León Felipe encontrados em sua

mochila uma década depois, quando foi capturado na Bolívia: "Cristo, te amo,

não porque desceste de uma estrela, mas porque me revelaste que o homem tem

lágrimas e angústias, chaves para abrir portas e cerrá-las à luz. Tu me ensinaste

que o homem é Deus, um pobre Deus em pecado como Tu, e aquele que está à

tua esquerda no Gólgota, o mau ladrão, também é Deus".

O conflito acabou na debandada desordenada dos revolucionários. Uns

caíram sob os disparos do exército e da marinha de Batista; outros foram

capturados; os demais se dividiram em pequenos grupos, isolados e desmo-ralizados. O Che, já em condições físicas lastimáveis, iniciou a marcha para sierra 

Maestra com quatro companheiros, aos quais no dia seguinte se uniram outros

três. Sem água, praticamente sem comida, com armas rudimentares e

pouquíssima munição, dirigiram-se para as montanhas com a esperança de se

encontrarem com os outros — se ainda estivessem vivos — e se esquivarem de

uma nova ofensiva do exército. Entre os companheiros do Che figuravam Ramiro 

Vaidés, Camilo Cienfuegos e Juan Almeida, todos destinados a desempenhar

papéis-chaves nos meses e anos seguintes. Dezes-seis penosos dias depois,

castigados pela sede, fome, cansaço e abatimento, chegaram ao sítio de um

camponês chamado Mongo Pérez, nas imediações da base da cordilheira do Lestecubano, onde reencontraram os demais sobre

viventes, entre eles, Fidel e Raul Castro. No caminho, tinham guardado suasarmas na casa de um camponês, onde elas foram quase imediatamente conf is-

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cadas em uma batida do exército. Fidel Castro ficou furiosos: nunca se deviamabandonar as armas e "deixá-las foi um crime e uma estupidez".39 Os revolucionários do Grani-na se salvaram por duas razões: a excepcional força

de vontade e autoconfiança de Fidel Castro, que declarou a sobrevivência deles a

um triunfo e prometeu ao minúsculo bando de guerrilheiros exaustos a vitória

final, e a ajuda dos camponeses da região. Ambos os fatores permitiram que osrebeldes entrassem em contato com os núcleos urbanos do movimento (em

particular Célia Sánchez, na cidade vizinha de Manzanillo) e se agrupassem ao

abrigo dos cumes da sierra Maestra. Aí o formidável senso de oportunidade de

Fidel Castro os conduziu ao êxito no assalto a um posto militar em La Plata, um

povoado próximo da costa, em meados de janeiro — apenas três semanas após o

reencontro dos sobreviventes.

O ataque foi significativo por várias razões. Primeiramente, anunciou-se ao

restante de Cuba, e em especial aos partidários do movimento, que o grupo

continuava vivo e pronto para infligir baixas e perdas ao exército. Em segundo

lugar, o ataque reforçou o próprio moral deles, demonstrando-lhes que com

calma, determinação e audácia poderiam superar a derrota de dezembro e retomar

o caminho da vitória. Por fim, mostrou ao campesinato local que os rebeldes

eram uma força real, capaz de guerrear contra o inimigo, ao mesmo tempo em

que protegiam os partidários e puniam os traidores. De fato, foi durante o

combate de La Plata que teve lugar a primeira execução do Movimento Vinte e

Seis de Julho: o chivato [informante do exército] Chicho Osório, depois de cair

na armadilha que os guerrilheiros armaram para que ele os levasse ao pequeno

quartel, foi fuzilado assim que começou o tiroteio.

A sierra Maestra e a parte oriental de Cuba, onde o Che e seus companheirospassariam a maior parte do ano e meio seguinte, eram uma região pobre,

escassamente povoada e quase exclusivamente rural. Pertencia a um punhado de

proprietários de terras; a agricultura limitava-se à cana-de-açú-car e ao café, e os

indicadores sociais ficavam atrás até mesmo da maioria das áreas carentes da

ilha. Os camponeses — brancos, negros e mulatos em igual proporção —

enfrentavam uma existência precária, dura e violenta. Não tinham nada a perder e

tinham muito a ganhar com uma mudança radical em suas condições de vida. Os

guerrilheiros, como eles próprios reconheciam, j amais tinham tido um contato

próximo com uma população cam 

ponesa tão miserável, e muito menos vivido no meio dessa gente. Foi umencontro comovente. A solidariedade, a simplicidade e a nobreza dos gua-jiros [camponeses] da sierra foram uma verdadeira revelação para muitos deles. Naspalavras de Raul Castro: "É admirável ver o desvelo com que esses camponesesda sierra nos atendem e cuidam de nós. Toda a magnanimidade e generosidade deCuba estão concentradas aqui".40 Durante dois anos, o conhecimento do Che sobre Cuba se restringiria a essaregião. Naturalmente, ele iria encontrar muitos outros cubanos da cidade e deposições sociais que se dirigiam à sierra por vários motivos — mas apenas brevee esporadicamente. Para quem já tinha predisposição para admirar odesconhecido, a predileção pelo campesinato foi natural.* 

Os meses iniciais na sierra foram agridoces para Ernesto Guevara, encerrandouma série de experiências importantes e contraditórias. Durante o segundo

combate, apropriadamente denominado arroio do Inferno, ele matou seu primeiro

inimigo. Conheceu Frank País, que chegou em meados de fevereiro para

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coordenar a distribuição de armas e restabelecer o contato entre os grupos

revolucionários da cidade e da sierra. O Che conseguiu enviar uma curta nota a

sua família em Buenos Aires, assegurando-lhe que ainda estava vivo, apesar das

reportagens da imprensa que afirmavam o contrário .** Pediu à cidade livros de

álgebra, história e geografia cubanas, assim como textos em francês para ensinar

o idioma a Raul Castro.*** 

Durante esses meses, o Che levou a cabo a primeira execução de um

(*) Júlio Zenon Acosta foi um dos primeiros camponeses a se somarem à rebelião, e o primeiroa ser alfabetizado pelo Che. A propósito da sua morte, Guevara anotou no diário: "O homem eraincansável. Conhecia bem a região, e estava sempre pronto a ajudar um companheiro em dificuldadesou um companheiro da cidade que ainda não era forte o bastante para defender-se sozinho. Era ele quetrazia água da nascente distante, que conseguia fazer uma fogueira rapidamente, o que achava osgravetos da cuaba [árvore] para se fazer fogo em um dia de chuva" (Ernesto Che Guevara, cit. emChe Guevara e Raul Castro, op. cit., p. 310). A publicação em Cuba, em 1991, e no México, em 1995,de fragmentos dos diários originais do Che em Sierra Maestra (que serviram de base para o seuposterior Pasajes de Ia guerra revolucionaria) confirma que o próprio Che era de fato seu melhoreditor. Não há quase nada nos diários que valha a pena e que o Che não tivesse incluído no texto

publicado. (**) "Queridos velhos, estou perfeitamente bem. Só gastei duas e ainda tenho cinco. Continuotrabalhando na mesma coisa. As notícias são esporádicas e continuarão a ser, mas tenham fé que Deusé argentino. Um grande abraço para todos, Teté" (cit. na Revista Cosa de Ias Américas, maio-jun. 1988, n° 168, p. 6). 

(***) Como conta Raul Castro, "o multifacetado Che solicitara todos os livros" (Raul Castro,op. cit., p. 157). traidor entre as fileiras da guerrilha, Eutimio Guerra.* Sofreu uma violenta crisede malária em princípios de fevereiro, quando o pequeno bando de rebeldes foialvo de sistemáticos ataques de surpresa por parte do exército e já aeronáutica.No final desse mês, a asma o derrubou. As crises tornaram-se mais frequentes eintensas, e a falta de epinefrina ou mesmo de um ina-lador impossibilitou-o deprosseguir com os demais: "A asma era tão forte que não me deixava avançar [...] 

Consegui chegar, mas com uma tamanha crise de asma que dar um passo paramim já era difícil [...] Eu tinha de tomar uma decisão, pois para mim eraimpossível continuar [...] [sem] pelo menos

comprar os remédios".41 Finalmente, a obtenção do medicamento e o descanso, ao lado de sua vontade

indomável, permitiram-lhe alcançar a pouco numerosa coluna (de apenas dezoito

homens) em meados de março de 1957. Seriam os piores dias da guerra para o

Che. Dentro de pouco tempo ele sofreria os reveses militares, crises de asma e a

escassez de remédios. Felizmente, passaram-se apenas três semanas, entre o

acesso de malária e a chegada à casa de Epifanio Díaz, onde voltou a reunir-se

com Fidel e os demais. Ele extraiu lições contraditórias do infeliz episódio.Aprendeu que mesmo nas piores condições ele era capaz de superar os efeitos de

sua enfermidade e seguir em frente. Porém, não reconheceu que isso só era

possível em circunstâncias excepcionais. Sua recuperação se deu porque ele

encontrou um lugar para descansar e uma família para cuidar dele; porque seus

companheiros o ajudaram e ele conseguiu a epinefrina ou adrenalina necessária

na cidade de Man-zanillo, e finalmente porque o inimigo, embora próximo, não

concentrou seus esforços em capturá-lo. Essas afortunadas condições não se

repetiriam necessariamente. No final, talvez o Che não tenha chegado a assimilar

um ponto crucial. Sua incapacitação temporária não afetava a campanha, pois

esta era conduzida por outro líder: Fidel Castro.

Mas a mesma incapacitação, temporária ou duradoura, leve ou grave, teria tido

consequências devastadoras se coubesse ao Che conduzir a coluna, o movimento

ou a luta.

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As perspectivas da guerrilha começaram a se realizar já no fim de fevereiro, e em

março. Foi quando Fidel Castro concedeu sua famosa

(*) Paço Ignacio Taibo II, em sua recente biografia de Guevara, sustenta que foi o Che queexecutou a sentença de Guerra, citando uma entrevista inédita de Universo Sanchez com LUÍS Adrián Betancourt. (Ver Paço Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara, tam' i"en conocido como E! Che, México,

DF, Planeta, 1996, pp. 163 e 780.) Essa é também a versão de Jon Lee Anderson, citando documentosdo próprio Che. entrevista a Herbert Matthews, do New York Times, provando ao mundo queainda vivia e fornecendo uma brilhante, ainda que exagerada, descrição doexército rebelde.* Em março chegaram os primeiros reforços das cidades: unscinquenta recrutas sob o comando de Jorge Sotús. Nessa ocasião ocorreu um dospoucos atritos entre o Che e Fidel naqueles anos. Guevara foi comissionado porele para receber os aspirantes a guerrilheiros procedentes da ala urbana doMovimento Vinte e Seis de Julho. Porém Sotús "afirmou que tinha ordens detransmitir o comando da tropa para Fidel e que não poderia transmiti-lo aninguém mais, que ele continuava sendo o chefe. Naquela época eu ainda tinha

meu complexo de estrangeiro e não quis chegar a medidas extremas, embora sepudesse ver certa insatisfação [...] na tropa".42 A questão foi afinal resolvida, masem uma espécie de reunião dez dias depois, quando Castro chegou aoacampamento. Fidel "criticou [...] minha atitude de não impor a autoridade queele me conferira e deixá-la nas mãos do recém-chegado Sotús, contra quem nãohavia animosidade mas cuja atitude, no entender de Fidel, não deveria ter sidopermitida".43 O papel de Guevara permanecia indefinido. Ele já era mais que um médico, e seurelacionamento com Fidel o colocava em uma posição excepcional. Porém,continuava a ser um estrangeiro, e não havia um reconhecimento formal dastarefas que ele desempenhava. Além disso, com frequência suas opiniões nãoeram levadas em conta.** Uma primeira evidência de sua ascensão ocorreu emmeados de maio de 1957, quando, ao chegar um carregamento de armas, Castrocedeu a Guevara uma das quatro metralhadoras de tripé: "Iniciava-me comocombatente direto, o que eu já era ocasionalmente, embora minha posição fixafosse a de médico. Começava para mim uma nova etapa na sierra".44 Ao mesmotempo, durante aquelas semanas consultaria os habitantes dos pequenos povoadosda região. Para

(*) O comentário confidencial do embaixador dos Estados Unidos em Havana, Arthur Gardner, sobrea entrevista é um clássico de falta de perspicácia: "A controvérsia sobre se Fidel Castro está vivo oumorto não tem importância real" (Arthur Gardner a Roy Rubottom, 28/2/57, Department ofState, op. cit.). (**) A honestidade do Che contrasta com a de seus epígonos. Em uma biografia recente, Jean 

Cormier atribui a Guevara a autoria da tática de devolver os prisioneiros ao exército inimigo.Contudo, o próprio Che afirma em seu diário: "Contra a opinião dos mais enérgicos, entre os quais eume achava, os prisioneiros foram interrogados, detidos por uma noite e depois libertados" (CheGuevara e Raul Castro, op. cit., p. 254. A afirmação de Cormier aparece em jean Cormier, CheGuevara, Paris, Editions du Rocher, 1959, p.131). critérios urbanos modernos, sua inexperiência e suas deficiências como médicoeram incontestáveis.* Mas, em aldeias e choupanas que jamais viram um médico,sua chegada era um verdadeiro acontecimento.

O Che começava a tomar e propor iniciativas fora do âmbito de suaincumbência formal. Em fins de maio, ele sugeriu a Fidel Castro que seemboscassem e atacassem um dos numerosos caminhões do exército quepatrulhavam a região. Fidel rejeitou a ideia, argumentando que seria mais

proveitoso assaltar um quartel vizinho, próximo da costa. Como narra o próprioGuevara, a "ânsia de combater" estava tomando conta dele. O Che menosprezavaos aspectos políticos e psicológicos da ação militar, ao passo que Castro osvalorizava em extremo. Porém, o ponto principal não reside nos méritos militaresou políticos da posição de cada um dos revolucionários, que já debatiam esses

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assuntos como pares, se não como iguais. Além do mais, isso revela quepoderiam resolver suas divergências rápida e eficazmente, sem que restassemmágoas. Assim seria por vários anos.Ironicamente, Ernesto Guevara foi um dos mais beneficiados pela decisão deCastro de atacar o quartel. A batalha de Uvero, em 28 de maio de 1957, assinalou

a maioridade do exército rebelde. Nela, o Che atingiu um posto militar consoantecom seu talento, bravura e responsabilidade. Apesar da tarefa precisa e limitadaque lhe foi reservada no ataque, segundo Castro "o Che pediu três ou quatrohomens, e em questão de segundos empreendeu a marcha para dar início aoataque naquela direção".45 O argentino destacou-se não só na batalha, mastambém no atendimento dos feridos, tanto entre os seus homens como entre osinimigos. Não conseguiu salvar seis dos seus companheiros, ao passo que oadversário perdeu catorze homens, outros catorze prisioneiros e teve dezenove feridos. Participaram do combate oitenta guerrilheiros e 53 soldados. Foi a maiorbatalha da guerra que se iniciava.

Durante o mês de junho o Che permaneceu ao lado dos feridos, afastado da

coluna principal de rebeldes. Mais uma vez sem remédios para a sua asma, eleestava quase tão incapacitado quanto seus pacientes — e também com o moralbaixo, apesar da vitória de Uvero. O pequeno destacamento registrou deserções enovas admissões em ritmo vertiginoso. Ao cabo de duas semanas, foirestabelecido o contato com a coluna principal. A primeira experiência do Che decomando independente transcorreu calmamente,

(*) Um ex-combatente da sierra, citado por um biógrafo norte-americano, lembra que os cuidados doChe com a higiene estavam longe de ser perfeitos: "Ele nem mesmo lavava as mãos" (FranciscoRodríguez, cit. em Martin Resnick, The  Black   Beret: the Ufe and "leaning of  Che Guevara, NovaYork, Ballantine Books, 1969, p. 88). embora não tenha sido espetacular. A situação da guerrilha se estabilizava;eles agora controlavam uma área onde o inimigo não poderia penetrar, pelo

menos até o momento. Havia, portanto, uma certa liberdade "para conversardurante a noite", consolidando as relações com os camponeses e recebendovisitantes políticos em um contexto de relativa calma.

Graças a sua valentia e tenacidade, o Che foi promovido a comandante em 21 de julho de 1957. Em suas palavras, "a dose de vaidade que todos temosdentro de nós fez com que eu me sentisse o homem mais orgulhoso da terra ".46 Asegunda coluna do exército rebelde ficou sob o seu comando. Consistia em trêspelotões de 25 homens, mais ou menos bem equipados, e tinha alguma autonomiade ação e movimento. Embora Fidel desse as ordens, em despachos semanais ouquinzenais levados por mensageiro, o Che tinha um considerável grau deindependência. Guevara dirigiu diversas batalhas, de importância variada, nos

meses que se seguiram: El Bueyci-to, em julho, El Hombrito, em fins de agosto,Pino dei Agua, em princípios de setembro. Alguns conflitos foram favoráveis aosrebeldes, outros não. Em certos casos, os combatentes fidelistas receberamelogios de seu chefe; ao passo que em outros sua avaliação foi mais crítica. Apropósito de sua primeira experiência no comando de uma batalha, o Cheescreveu a Fidel:"Minha estreia como comandante foi um êxito do ponto de vista da vitória e umfracasso em termos de organização".47 Em dezembro de 195 7, depois de um anona sierra, o Che foi ferido em um pé durante uma batalha em Altos de Conrado. Castro o repreendeu: "Recomendo-lhe seriamente que tenha muito cuidado.Ordeno-lhe que não assuma o papel de combatente. Encarregue-se de dirigir bem

sua gente, que é o indispensável neste momento".* Durante a segunda metade de 1957, a posição do Che como chefe de coluna

estava firmemente estabelecida. Pela primeira vez ele começou a participarativamente das discussões, polémicas e divergências do Movimento Vinte e Seis

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de Julho. Seus diários e cartas expõem opiniões f requentemente semelhantes àsde Fidel Castro, mas por vezes ele assume posturas mais espontâneas ou radicais.Ele passa a recordar suas reflexões sobre temas delicados que acompanhariam aRevolução Cubana até o fim do século como uma sombra negra e triste. Logoapós o desembarque do Graniria, a execução de traidores, informantes ou oficiais

inimigos particularmente

(*) Fidel Castro a Ernesto Guevara, cit. em Carlos Franqui,  Diário, op. cit., p. 385. O Chereplica: "Sinto muito por ter desacatado seus conselhos, mas o moral das pessoas estava muito baixo(...] e considerei necessária a minha presença na linha de fogo" (Ernesto Guevara a Fidel Castro, dez.1957, cit. no Gramna, 16/10/67, p. 15). cruéis instituiu-se como prática permanente da guerrilha; foi como Raul Castroapresentou em seu diário, pouco depois da execução do informante Chicho Osório, a quem j á nos reierimos. * Logo após a batalha de El Hombri-to, quandohá um intervalo na guerra que lhe permite, entre outras coisas, fixar residência,construir um forno de pão e lançar o jornal El Cubano Libre, o Che perguntavase a pena de morte se justificava plenamente.

Sua análise concentra-se em um camponês chamado Arístido, um bandidoque se juntara à guerrilha sem nenhum motivo especial e que alardeava ser suaintenção desertar assim que as forças rebeldes se deslocassem. Guevara mandoufuzilá-lo "após uma investigação sumariíssima",48 e em seguida deu início a umtortuoso processo de reflexão: "Perguntamo-nos se ele era realmente culpado aponto de merecer a morte, e se não poderíamos ter salvado sua vida para operíodo da construção revolucionária".49 O novo comandante resolve o dilemacom uma bravata analítica e discursiva. A execução, explica ele, ocorreu porquea situação a exigiu: a guerrilha era demasiado frágil para poder se dar ao luxo dequalquer outra punição, e forte o bastante para punir a traição. Também oinquietava o caso de um jovem chamado Echevarría, cujo irmão veio no Gmnma e que logo se dedicou a atos de banditismo e a assaltos nas áreas sob controlerevolucionário. Novamente o Che vacilou — mas apenas em pensamento:

Echevarría poderia ter sido um herói da revolução [...] mas teve a má sortede cometer crimes durante aquele período e teve de pagar um preço porseus delitos (...] Serviu de exemplo, trágico por certo mas também valioso,para que o povo compreendesse a nossa necessidade de fazer da Revoluçãoum fato puro, não contaminado pelo vandalismo a que os homens de Batista tinham nos acostumado.50 

Por fim, o Che analisa outro caso, que na época e hoje em dia parece cruel edesnecessário: o das execuções simbólicas. Estas envolveram fuzilamentossimulados, nos quais as vítimas não suspeitavam do caráter exclusivamentecerimonial do paredón contra o qual eram encostadas. Guevara comentou queisso podia parecer um exercício "bárbaro", cuja justificativa residia, mais umavez, na falta de alternativas. Por um lado, eles não mereciam morrer; por outro,

não havia formas alternativas de punição.O raciocínio, ainda que impecável, não é nem justo nem aceitável; seu

mérito é apenas o de existir. Decerto os outros dirigentes da saga cubana nem

(*) "A sorte de Chicho já estava lançada havia tempo, assim como a de qualquer chefe dacompanhia que caí sse em nossas mãos, e a punição era o fuzilamento sumário, a "nica maneira delidar com aqueles vira-casacas" (Raul Castro, op. cit., p. 201). sequer formularam as perguntas levantadas pela mente inquisidora do Che.Porém, simplesmente analisar os fatos não bastava. O raciocínio do Che erarápido e peremptório. Essa lógica tática, simplista e burocrática impediriaqualquer reflexão mais profunda em outras circunstâncias mais sombrias _ já nãotão longínquas. Em princípios de 1959, ele teve em suas mãos o destino de

centenas de condenados à morte em La Cabana, e avalizou um dos episódiosmais obscuros da Revolução. Confirma-se o caráter contraditório do pensamentode Guevara. Ele toma nota da complexidade do problema pondera-o e decide daruma resposta que lhe permitirá seguir adiante — sem contudo, realmente resolvero dilema.

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A crescente participação do Che no debate político do Movimento Vinte e Seis

de Julho, todavia, referia-se sobretudo às grandes questões: o rumo da batalha, as

políticas de aliança e a ideologia da liderança. Em julho de 1957 chegaram a

sierra duas figuras-chaves: Raul Chibas, irmão de Eddy, o velho líder "ortodoxo"

e protagonista do primeiro suicídio da história transmitido ao vivo pelo rádio, e

Felipe Pazos. Economista, Pazos era um ex-diretor do Banco Central e protótipo

de economista em desenvolvimento — progressista mas não revolucionário. Com

Regino Boti, um economista de inclinações semelhantes, ele redigira a "Tese

económica do Movimento revolucionário Vinte e Seis de Julho", divulgada no

México em 1956. Sua intenção — como a de Fidel Castro ao recebê-los em seu

esconderijo montanhês — era simples. A meta era forjar e consolidar uma

aliança entre os guerrilheiros da sierra e os políticos reformistas da planície,

incluindo dirigentes urbanos como Frank País (que faleceria semanas depois) e

os herdeiros de José António Echevarría (que sucumbiria em um atentado

frustrado contra Batista no Palácio Nacional, em 13 de março de 1957) noDiretório Estudantil Revolucionário. Chibas e Pazos não pertenciam a nenhuma

dessas alas da aliança das forças antiditatoriais, mas eram figuras importantes da

oposição moderada, que poderiam talvez ser induzidas a assumir posições mais

radicais. Castro chegou a estampar sua assinatura em um acordo datado de 12 de

 julho, sobre o qual o Che expressou sérias reservas, embora terminasse por

aceitar sua necessidade. Em suas anotações sobre a visita de Chibas e Pazos e

suas "mentalidades cavemícolas",51 Guevara revela sua intensa animosidade para

com ambos, e sua dura oposição a suas posturas reformistas.

O Che expressa também suas reservas e objeções ao acordo propriamente dito,

em particular ao capítulo dedicado à reforma agrária. Ele observasarcasticamente: "Era uma política que teria sido aceita pelo [conser

vador] Diário de Ia Marina. Estabelecia — era o que faltava — "indenização

prévia dos proprietários anteriores'"." O texto incluía uma série de promessas: a

realização de eleições livres após a derrubada do governo, o retorno a um regime

constitucional e a criação de uma Frente Cívica Revolucionária, composta de

representantes de todos os setores da oposição. Guevara compreendeu por fim

que a aliança com Pazos e Chibas, como outras, eram necessárias para a guerrilha

continuar a receber armas e recursos e evitar o isolamento. Ele reconhecia

também que o compromisso de Castro exigia certos ardis e silêncios. Atribuía

aos acordos um caráter provisório: durariam apenas o tempo que o processo

revolucionário permitisse. Eles continham uma dimensão de logro — não para os

co-signatários, que não eram novatos na política cubana, mas para certos setores

da opinião pública. Estes setores poderiam facilmente acreditar que o programa

do Vinte e Seis de Julho limitava-se ao texto do Manifesto, publicado em 28 de

 julho na Bohemia, a revista de maior circulação em Cuba.

O documento não era nem mais prudente nem menos radical do que qualquer

das declarações anteriores do Vinte e Seis de Julho. O que induziu o Che a

manifestar suas reservas foi sua nova posição dentro da guerrilha. Ele já não era

um médico estrangeiro, exposto ao risco de uma expulsão repentina, mas um

comandante, que tinha conquistado sua estrela em combate e que agora

participava por inteiro das discussões substantivas da Revolução. Talvez a

principal diferença entre o Che e Fidel e os demais revolucionários se baseasse

nas metas transparentes e bem definidas que o médico e guerrilheiro tinha fixado

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para a luta. Ele perseguia uma revolução muito mais radical. Atribuir a suposta

transformação gradual de Fidel de democrata em marxista-leninista à influência

do comunista argentino é um absurdo, mas a tática de Castro de fato incluía uma

orientação estratégica menos definida que a ideologia abstrata do Che. Este, por

sua vez, era menos ligado à realidade imediata e mais firmemente ancorado em

um ideário definido. As cartas trocadas entre o Che e Daniel (René Ramos

Latour) no final de 1958 expressariam essas diferenças.

Ramos Latour era o colaborador mais próximo de Frank País no front urbano de

Santiago. Após a morte de País, sucedeu-o na direção clandestina do Movimento

Vinte e Seis de Julho. Viajou para a sierra Maestra pela primeira vezeml957e

retomou em maio de 1958, morrendo em combate em julho do mesmo ano. No

fim de 1957, passou a se corresponder com o Che, que enfatizava as sérias

divisões dentro do movimento sobre o chamado Pacto de Miami. Beneficiando-

se do acordo que firmaram com Castro, Felipe

Pazos e Raul Chibas, junto com outras figuras moderadas da oposição, entre elaso ex-presidente Carlos Prío Socarrás, tentaram dar um passo adicional emoutubro. Convocaram uma mediação dos Estados Unidos na guerra civil, umadeclaração de "independência" da oposição civil e urbana dos setores militares erurais, e a designação de um presidente interino — mais precisamente Pazos. Onovo pacto foi firmado em outubro e as primeiras notícias sobre ele apareceramna imprensa norte-americana um mês mais tarde. Semanas após a assinatura,Castro e o comando da guerrilha repudiaram o Pacto de Miami, emborarepresentantes deles o tivessem aprovado.Escrevendo para Daniel em 14 de dezembro de 1957, o Che começa expondouma série de controvérsias técnicas e logísticas menores. Ele e Latour já tinhamtido suas desavenças, sobretudo no que dizia respeito à notória compulsão doChe para receber em sua coluna combatentes de todo tipo e fomentar relaçõesentre a "sierra e a planície" independente da Direção Nacional. Guevara passavapor cima das direções municipais do movimento, aceitando recrutas, ajuda ouinformação de setores não controlados por Ramos Latour.5' Como lembra CarlosFranqui, "o Che tinha desencadeado uma guerra virtual contra o Vinte e Seis deJulho 'da planí cie'e uma das formas como ele mantinha essa gente era recorrendoa gente que tinha conflitos com a organização, em vez de usar o pessoal domovimento".54 Nesta carta, que ele mesmo qualificaria de "bastante idiota"," Guevara revela aintensidade de suas próprias convicções ideológicas e coloca os termos do debateentre a "sierra" e a "planície" — entre os reformistas das cidades e osrevolucionários das montanhas, entre os liberal-nacionalistas e os emergentesmarxista-leninistas. Ele tacha o Pacto de Miami de "execrá-vel", asseverando que"em Miami [eles] deram o eu provavelmente no mais desprezível ato debestialidade que a história cubana recorda".56 Depois afirma que Ramos Latourse recusou a chegar a uma solução conciliatória, e se lança a uma uma feroz diatribe, que é também uma confissão:

Em virtude da minha preparação ideológica, sou um dos que acreditam que asolução dos problemas deste mundo está atrás da chamada cortina de ferro[...] Sempre considerei Fidel um autêntico líder da burguesia de esquerda,ainda que seu caráter seja valorizado por qualidades pessoais de

extraordinário brilho, que o colocam muito acima de sua classe. Com esseespírito ingressei na luta; honestamente, sem esperança de ir além dalibertação do país, disposto a partir quando as condições da luta guinassempara a direita (para aquilo que vocês representam) [...] O que nunca imagineifoi uma mudança radical das posturas de Fidel no que se refere ao Manifesto

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de Miami. Julguei que fosse impossível aquilo que aprendi depois, ou seja,que os desejos dele, que é oautêntico líder e único motor do movimento, deveriam portanto estar distor-cidos. Envergonho-me do que pensei naquela época.57 

O Che reafirma seu direito a estabelecer relações com quem quiser e receber

ajuda — armas, dinheiro, suprimentos — de quem quer que seja — inclusivesupostos bandidos da planície. Escreve "para a história" (a ideia de um destinopróprio já parece fortemente arraigada).* Embora em sua opinão as diferençasentre eles sejam provavelmente intransponíveis, é preciso pô-las de lado para seconservar a unidade. Reconhece que Latour poderia cortar relações com ele; mas"o povo não pode ser derrotado".

Podemos apenas especular sobre o sucedido. Segundo vários relatoshistóricos, Castro enviou a Miami um de seus colaboradores mais próximos,Lester Rodríguez, para negociar e referendar o Pacto de Unidade. Quando oacordo foi firmado, vários companheiros de Fidel devem ter ficado indignados —começando pelo Che. Já desapontados ou irritados com o Manifesto de 12 de

 julho, talvez tenham considerado que o conclave de Miami, as pessoas envolvidase a decisão de proclamar a candidatura de Felipe Pazos para depois da retirada deBatista constituíam uma série de concessões perigosamente equivalente à traição.E possível que tenham censurado iradamente Castro por sua aparente anuência, aqual, considerando-se as precárias comunicações entre Miami, a planície e asierra, quase com certeza nunca existiu.* * Após um silêncio sepulcral de váriassemanas, Castro repudiou o acordo e realinhou com a sua ala esquerda, agoraliderada por Gue-vara.*** O Che deve ter exprimido em uma nota ou recado suadesaprovação ou total rejeição ao Pacto de Miami.**** Talvez o Che nunca tenhaacreditado que Fidel tivesse firmado previamente o malfadado documento, masagora ele conhecia bem seu amigo e chefe: Fidel nunca partilhava nada com

ninguém. Pode-se imaginar facilmente o desgosto do argentino radical com asdeclarações públicas de Castro contra as expropriações e o comu- 

(*) "Meu nome histórico não pode estar ligado a esse crime [o Pacto de Miami] [...] Faço-o parater um dia uma história que testemunhe minha integridade" (ibidem, p. 362). 

(**) Esta é a opinião de Carlos Franqui, que viveu intensamente os acontecimentos: "Não houveconsulta nem à liderança da planície nem a Fidel. Havia uma base para um pacto, ou seja, se Pazostivesse feito esse pacto sem incluir esses pontos controversos, teria sido diferente. Mas Fidel nunca oassinou" (Carlos Franqui, entrevista, op. cit.). 

(***) Franqui afirma que os opositores do Pacto de Miami desde o início foram Raul Castro e oChe, Evelio Martínez, Júlio Martínez e o próprio Franqui, do exílio, assim como Daniel, naclandestinidade. (Ver Franqui, Diário, op. cit., p. 371.) 

(****) Tad Szulc enfatiza que "por alguma razão desconhecida, Che Guevara inicialmentepensou que Castro havia autorizado o Pacto de Miami" (Szulc, op. cit., p. 469). 

nismo, com o hábito de Fidel de batizar todas as crianças camponesas nascidas nasierra e com as leis conservadoras que Fidel estabeleceu na montanha. Daí a suporque a estadia de Pazos com Fidel na sierra os aproximara em excesso, era apenasum pequeno passo. Este é, quem sabe, o sentido da afirmação do Che em sua cartaa Daniel, de que Fidel era originariamente um "burguês de esquerda" (entenda-se:não um verdadeiro revolucionário).Uma carta do Che ao comandante-em-chefe, enviada imediatamente após oincidente, resume suas opiniões:

Você sabe que eu não tinha a menor confiança nas pessoas da DireçãoNacional, nem como líderes nem como revolucionários. Tampouco acrediteique chegassem ao extremo de traí-lo de forma tão aberta [...] Creio que sua

atitude, Fidel, de silêncio, não é a mais aconselhável em momentos assim.Uma traição de tal magnitude indica claramente os caminhos diversos queforam tomados. Creio que um documento escrito pode ter a eficiêncianecessária e posteriormente, se a coisa se complica, com a ajuda de Célia,você poderia destituir integralmente a Direção Nacional.58 

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O documento sugerido pelo Che fora redigido no dia anterior, 14 dedezembro. A destituição proposta pelo argentino se consumiria no dia 3 de maioseguinte. Ao descobrir que Castro ou realmente não firmara o pacto ou seretratara, o Che manifestou sua alegria em nova carta a Fidel: "Já lhe disse quevocê sempre terá o mérito de haver demonstrado a possibilidade da luta armada,

apoiada pelo povo, na América. Agora você empreende outro caminho, maior,para ser um dos dois ou três da América que chegaram ao poder por meio de umaluta armada multitudinária".59 

Em contrapartida, a Latour, o Che, como o apóstolo Pedro, confessou suaculpa por ter duvidado do líder. Em tal hipótese, as "faltas" na sierra, que o Chemencionou em sua carta a Fidel em 1965, seriam justamente essas.* Seuarrependimento brotava da retificação operada por Castro, que rapidamenteretornou ao redil revolucionário e ao âmbito da convergência com seu amigo ealiado.

René Ramos Latour não ficou de braços cruzados. Contestou imediatamenteGuevara, e em sua resposta entrevemos as divergências crescentes entre as

distintas facções do Vinte e Seis de Julho, que estourariam em 1959, depois dotriunfo da Revolução. Latour rejeitou as imputações do

(*) "Minha única falta de alguma gravidade é não ter confiado mais em você desde os primeirosmomentos da sierra Maestra e não haver compreendido com suficiente rapidez suas qualidades Je dirigente e revolucionário" (Ernesto Che Guevara, "Carta a Fidel Castro", Escritos y discursos, Havana, Ed. de Ciências Sociales, 1985). Che, reafirmando que não se sentiria atingido por suas expressões. Recriminou odesprezo com que o Che se referiu ao material a ele enviado, sublinhando queainda que a cidade careça do clima de heroísmo imperante na sierra, os quereúnem o dinheiro, compram as armas e víveres e os transportam à montanha nãosão menos revolucionários ou valentes que os combatentes das montanhas.Sobretudo, escreve Daniel, a salvação do mundo não se encontra atrás da cortinade ferro. Recusa-se a ser classificado como "de direita", mas marca distância emrelação ao Che: "Os que têm a sua preparação ideológica pensam que a solução denossos males está em nos libertarmos do nocivo domínio 'ianque' por meio do nãomenos nocivo

domínio soviético".* Latour fez uma crítica apenas dissimulada às predileções do Che no que toca àsalianças: "Sou operário, mas não dos que militam no Partido Comunista e sepreocupam excessivamente com os problemas da Hungria e do Egi-to, que nãopodem resolver, e não são capazes de renunciar a seus postos e se incorporar aoprocesso revolucionário".60 Por fim, sobre o Pacto de Miami, responde a Guevaraque nunca viu com bons olhos a associação de Fidel com o ex-presidente Prío. Recorda que sempre rejeitou o acordo da Flórida, na medida em que não reiteravaa liderança das forças oposicionistas da ilha e que a "unidade" em questão deviacom efeito ser rompida. Mas faz uma reserva: que se diga "aonde vamos e a quenos propomos".61 

Além de ganhar a merecida fama de colocar-se como o "comunista" ou radical daguerrilha, foi também nessa época que o Che firmou sua reputação de homemorganizado. A clareza e a engenhosidade do comando abundavam em sua coluna.Ele consolidou mais que os outros comandantes os espaços territoriais. Aliestabeleceu escolas, clínicas, fomos, pequenas oficinas, hospitais e uma disciplina

férrea. Atendia aos camponeses e educava os guerrilheiros em seus momentos dedescanso. Iniciou a publicação do jornal

(*) A carta de Daniel, datada de 18 de dezembro de 1957, foi publicada em Franqui, Diário, op. cit., pp. 365-9. Embora este intercâmbio epistolar não apareça em nenhuma das recopilações das cartas

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do Che, nem nas diversas biografias que já citamos, ou em outros textos de história da RevoluçãoCubana, não há razão para duvidar de sua autenticidade. Nos arquivos de Franqui na Universidade dePrinceton podem-se revisar as notas originais do livro. Todas concordam com o texto publicado; oscubanos jamais responderam ao texto de Franqui avalizando-o, porém tampouco o desmentiram. Areferência do próprio Che sobre sua carta "bastante idiota" a Daniel autentica na prática a existência dacarta, se não seu conteúdo preciso. Eí  Cubano Libre e, pouco depois, as transmissões da Radio Rebelde. Começou a

receber alguns jornalistas estrangeiros e transformou seus acampamentos emmodelos de limpeza, eficiência e generosidade. Sua legenda crescia em meio àtropa e ao campesinato. Nas narrativas e na história oral da guerrilha, suas proezasvinham acompanhadas de relatos sobre a organização meticulosa de seusacampamentos e campanhas.Surgia também nessa época a saga de seu trato igualitário e reto para com a tropa,

que tão fortemente impressionou um dos mais jovens recrutas de sua escolta

imediata. Como recorda Joel Iglesias,62 eles chegaram certa vez a uma palhoça

nas encostas do pico de Turquino, onde negociaram alimento e repouso com uns

guajiros. Guevara indicou quantas bocas havia e esperou junto com os

camponeses que a comida estivesse pronta para levá-la aos integrantes de suacoluna. Os anfitriões, no entanto, serviram três pratos, cada um com o triplo da

ração que caberia ao resto dos guerrilheiros, convidaram o Che e seus

acompanhantes a sentar e almoçar enquanto o resto do alimento terminava de

cozinhar. O Che recusou, ordenando que os pratos servidos fossem despejados em

uma lata grande que mais tarde seria repartida entre todos. Não se tratava de

receber uma porção mais farta que os demais, mas simplesmente de aproveitar o

tempo, almoçando antes; nem isso aceitou:

toda a comida foi transportada para onde estava o resto do pelotão, e ali, em fila,todos se alimentaram, ficando Guevara no lugar que lhe cabia.

Dispomos de poucos relatos jornalísticos diretos sobre o Che nesses meses.Um correspondente do New York  T imes, Homer Bigart, foi enviado à sierra 

Maestra em fevereiro de 1958; acompanhou-o um jovem repórter uruguaio,

Carlos Maria Gutiérrez, que mais tarde se tornaria amigo e candidato a biógrafo

do comandante. O uruguaio recorda uma sensação de serenidade e camaradagem

no acampamento, uma grande naturalidade no Che, mesclada com uma série de

defesas para evitar intimidades ou cumplicidades incómodas ou indesejáveis.

Guriérrez conservou na memória a imagem de um indivíduo "muito magro e com

uma barba rala que mal cobria seu rosto quase infantil"." Seriam os

acontecimentos de 1958 que envelheceriam e amadureceriam o Che,

convertendo-o na figura iconográfica da entrada em Havana.Bigart, de sua parte, informou a embaixada dos Estados Unidos em Havana sobre

suas conversações com Guevara, ressaltando seus "sentimentos antiamericanos 

bastante fortes". Narrou também sua entrevista com Fidel Castro; quando o

 jornalista o questionou sobre a sensatez de depender tanto de um argentino,

comunista e antiamericano, Fidel respondeu que "na

verdade não importavam as convicções políticas de Guevara, já que ele, FidelCastro, fixava o rumo da guerrilha".* Outro jornalista, o argentino Jorge Masetti, que também percorreu os acampamentos em fevereiro de 1958, observou: "Ofamoso Che Guevara parecia-me um rapazola argentino típico da classe média. E

também uma caricatura rejuvenescida de Cantinflas".64 Ernesto Guevara encontrava tempo para a leitura e, segundo um recruta, para

os amores. Constantemente pedia livros à planície, entre outros a História da

 filosofia de Will Durant, assim como obras de Proust, Hemingway, Faulkner, de

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Graham Greene e Sartre, poesias de Neruda, Milton e Góngo-ra.65 Seu ascetismo

era proverbial, mas ao mesmo tempo sensato. O próprio Joel Iglesias relata: "Em

Lãs Vegas de Jibacoa, o Che encontrou uma garota negra, ou melhor, mulata, de

corpo muito bonito, chamada Zoila. Muitas mulheres ficavam loucas por ele, mas

nesse sentido ele foi muito severo e respeitoso, apesar de que gostou daquela

moça. Encontraram-se e ficaram

 juntos algum tempo".66 A jovem se chamava Zoila Rodriguez Garcia e sem dúvida lembrava as

"belas mulatas" de sua passagem por Porto Alegre e Trinidad e Tobago quando

 jovem. Ela contava dezoito anos, e por seu relato podemos deduzir que a relação

com o Che durou vários meses, desde princípios de 1958 até agosto, quando

Castro concebeu os planos da "invasão" do centro da ilha e Guevara resignou-se a

não levar a moça consigo. Segundo Zoila, o fascínio do Che pelo exótico não se

perdeu na sierra. Talvez tenha se aguçado:

Ele me olhava do jeito como os rapazes olham as garotas, e me deixou muitonervosa [...] Era um olhar um pouco travesso [...] Como mulher, gosteimuitíssimo dele, sobretudo do olhar; tinha uns olhos tão bonitos, um sorrisotão tranquilo que mexia com qualquer coração, comovia qualquer mulher [...] Em mim despertou um amor muito grande e muito bonito; comprometi-mecom ele, não só como combatente mas como mulher.67 

As experiências do Che na sierra foram com frequência retomadas por

outros. Raul Castro, em particular, reproduziria muitas das inovações de Guevara

no Segundo Front Frank País, aberto em março de 1958, na sierra de Cristal. O

argentino introduziu uma mudança de qualidade na guerra: "do bate-e-foge para

um combate de posições, que deve resistir aos ataques inimigos para defender o

território rebelde, onde se constrói uma nova rea- 

(*) O conteúdo do informe de Bigart aparece em um telegrama da embaixada dos EstadosUnidos em Cuba ao Departamento de Estado, datado de 3 de março de 1958, publicado em Foreign Reiatíons of  the United  States, 1958-69, Cuba, vol. VI, p. 46. lidade".68 Naturalmente, havia ocasiões em que se adiantava. Tinha tinoestratégico, mas não tático. Sedentarizou prematuramente sua coluna, carecendode condições militares para defender o território e as instalações ocupadas. Fidel aplicou as ideias originais do Che, mas no devido tempo; sem Fidel, muitas de taisteses teriam fracassado. Para o futuro, porém, definia-se um precedente alarmante:"Se o Che atuava de modo tão diferente, a dois passos de Fidel, fora da sierra o

fenómeno se acentuaria, para o bem ou para o mal. Na medida em que a distânciaou no espaço ou na situação eram maiores, as dificuldades e complicações seaguçavam".69 Teses como a da estabilidade dos acampamentos convinham a Castro por muitos

motivos. Manter bases sedentárias, perturbadas apenas por deslocamentos

esporádicos, à espera de que algo acontecesse, era uma táti-ca atraente para Fidel.

Graças à embalagem conceituai do Che, passava a ser mais atraente ainda. Até a

fracassada greve geral de 9 de abril e a subsequente ofensiva do exército, o líder

guerrilheiro não dispunha de uma estratégia militar para tomar o poder. A magra

força acumulada não o autorizava. No fundo, sua única aposta consistia em

derrubar o regime por meio da greve geral, embora depois do fracasso da mesmaFidel Castro tivesse tentado responsabilizar a direção da planície. Entre muitos

outros paradoxos da guerra revolucionária figura o fortalecimento descomunal de

Fidel Castro após o fracasso da greve de 9 de abril de 1958, que na realidade ele

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ordenara e concebera. Com a Direção Nacional do Vinte e Seis de Julho

responsabilizada pela débâcle urbana, abriu-se um vácuo preenchido pelo líder da

sierra. Como afirmava o Che depois da greve e do ajuste de contas dentro do

movimento: "Desde então, a guerra seria conduzida militar e politicamente por

Fidel, em seu duplo cargo de comandante-em-chefe de todas as forças rebeldes e

secretário-geral da organização".711 

A partir da tumultuada reunião de 3 de maio nos Altos de Mompié — onde se

repartiram culpas e se construíram defesas retroativas em torno da greve falida —, 

formou-se um duplo movimento no seio da coalizão rebelde. Por um lado, os

moderados, a planície e os civis foram deslocados pelo próprio Fidel e seu grupo.

O Che desempenhou um papel importante nesse desalojamento, ao participar pela

primeira vez de uma reunião da Direção Nacional do Movimento Vinte e Seis de

Julho. Ocupou, junto com Castro, a função de acusador dos dirigentes da planície:

Faustino Pérez, René Ramos Latour, Marcelo Fernández e David Salvador. Por

outro lado, houve uma gradual substituição de alianças. O Partido SocialistaPopular começou a adquirir uma presença e uma força que não tinha antes.

Também nessa

mudança o Che representou um papel crucial: a incorporação de quadros

comunistas se verificou sobretudo nas fileiras de sua coluna e, naturalmente, no

Segundo Front, comandado por Raul Castro.

Durante os oito primeiros meses de 1958, abriu-se um compasso de espera, tanto

na guerrilha fidelista como na função nela desempenhada por Ernesto Guevara. A

partir da greve geral e seu fracasso estrepitoso, até o final da contra-ofensiva —

desesperada, falida e de grande alcance — empreendida por Batista em maio, o

exército rebelde viveria seus piores momentos na sierra. A sobrevivência, porém,transformou-se em uma garantia de triunfo. O Che participou, é claro, da defesa

contra a investida do regime, mas sem se destacar de maneira especial. Sua coluna

combateu nas batalhas de El Jigüe, em 20 de julho, e Santo Domingo, mas foi a

concentração obsessiva de Fidel Castro, movimentando pela sierra tropas, armas,

víveres, recursos, pedindo reforços, recriminando colaboradores, tomando

decisões, que decidiu o êxito da resistência. A extrema irritação de Castro

demonstrava a dimensão do perigo. Ele chegou a insultar amargamente inclusive

Célia Sánchez, sua colaboradora mais leal e próxima até 1980, quando faleceu. A

carta que segue é datada de 18 de junho de 1957 (um dia antes daquele que Castro

indicará como o pior desses meses), em plena ofensiva do exército. Para o Che,

em compensação, não há uma só carta em que transpareça a mais leve

animosidade, recriminação ou exasperação:

Quando lhe apetece você julga as coisas da maneira mais caprichosa que sepode conceber. Algumas das suas atitudes me fazem temer que você estejase convertendo pouco a pouco em uma cega absoluta. Creio que sempre atratei com respeito, fundamentalmente no que se refere às expressões [...] Em sua carta de ontem você transgrediu todas essas considerações. Não voulhe escrever na linguagem que posso usar com qualquer outro companheiro[...] Eu, ao contrário de você, não escrevo com o propósito de amargurar, ou

ferir, ou preocupar, ou sem preocupação alguma [...] Se tenho a esperança deque você me entenda? Nenhuma! Quando escrevi com maior clareza vocêentendeu o que bem quis.* 

(*) Fidel Castro a Célia Sánchez, 18/6/57. Huber Matos, que combateu sob as ordens do Che durante

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alguns meses na sierra, conserva uma recordação semelhante: "Fidel sempre tratava de impor sua autoridade, levantando a voz ou falando coisas insolentes, oupretendendo ter sempre razão. No entanto, nunca o vi chocar-se com o Che. Fidel se conduzia comseus subordinados de um modo às vezes insultuoso e despótico. Havia exceções. O Che era uma delas.Nunca o vi falar com o Che de modo grosseiro ou rude" (Huber Matos, entrevista com jornalistasingleses, Londres, out. 1995). A ofensiva da ditadura duraria 76 dias. Mais de 10 mil soldados participaram,

enquanto os combatentes guerrilheiros somavam no total apenas 321 homens.Batista sofreu mais de mil baixas, os rebeldes fizeram mais de quatrocentosprisioneiros, tomaram quinhentos fuzis modernos e dois carros de combate.Depois do fracasso da ofensiva, o destino na guerra estava selado: a queda deBatista era questão de tempo, e questão de força, habilidade e audácia o seusubstituto.Nesse período, à medida que o regime de Batista se deteriorava e a vitória dos

revolucionários se tomava verossímil, começaria também um jogo de sombras e

negaceios entre o Movimento Vinte e Seis de Julho e o governo dos Estados

Unidos. O conjunto dos flertes, contatos e controvérsias incluiu mensagens

cruzadas, entrevistas na imprensa, incidentes na base norte-americana deGuantánamo, sequestros de cidadãos norte-americanos e ataques a empresas

oriundas dos EUA, esforços da guerrilha e seus aliados para interromper o fluxo

de suprimentos e armamentos para Batista, e deste, para manter intacta a ajuda

militar, e, por último, a assistência da CIA a algumas facções do Vinte e Seis de

Julho. Tampouco nessa frente o Che ocupou um lugar privilegiado. Sua atuação 

se manteve principalmente na penumbra diplomática: não foi porta-voz, nem

negociador, nem teve influência decisiva em uma ou outra direção. 

Porém, como já observamos, tudo indica que sua interferência foi essencial no

princípio da substituição de alianças que se inaugurou com o rompimento do

Pacto de Unidade, em fins del957.Apartirde então desencadeou-se uma luta feroz,que iria até meados de 1959, já depois de tomado o poder, no seio do Movimento

Vinte e Seis de Julho e na frente de oposição a Batista. O encarniçado combate

incluiu choques entre a sierra e a planície, entre revolucionários e liberais, entre

partidários do advento de uma ditadura militar e defensores da luta até o fim, mas

não se limitou a eles. Em meio ao combate houve um realinhamento gradual:

Fidel Castro afastou-se cada vez mais de seus antigos aliados liberais — Prío, 

Chibas, Pazos, o Diretório Estudantil, a Direção Nacional do Movimento — e

aproximou-se dos quadros do Partido Socialista Popular (PSP). Não foi um

processo acelerado ou incisivo, com início e fim, nem necessariamente derivou de

um plano consciente tramado de antemão e executado ao pé da letra pelo

caudilho. 

O primeiro contato entre Castro e o PSP deu-se justamente no fim de 1957,

quando um dirigente operário comunista, Ursinio Rojas, chegou a sierra. Ele

informou a Fidel que a direção do partido decidira autorizar seus membros a se

incorporar às fileiras do exército rebelde. Um deles estabele

ceria possivelmente o primeiro vínculo de Che Guevara com os comunistascubanos. Junto com um certo Hiram Prats, chega à coluna do Che Pablo Rivalta um funcionário jovem mas curtido do Partido Socialista Popular, com umabagagem de viagens ao exterior e alguma militância em Praga, dentro do aparato

do movimento comunista internacional. Rivalta não se separaria de Guevara atéquase dez anos depois, na Tanzânia, onde foi embaixador e serviu de ligação entreHavana e a expedição guevarista no Congo. Em meados de 1957, o Che "tinhapedido gente com as minhas características: um professor, com algum grau deinstrução política e experiência de trabalho político".71 Rivalta poderia ter

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acrescentado uma característica a mais: origem africana. Segundo ele, o Cheinstruiu-o a não revelar a ninguém sua filiação ao PSP, muito menos seu cargo nadireção da Juventude do partido. Os demais membros da coluna souberam queRivalta era comunista em novembro do ano seguinte.72 

Estranhamente, os norte-americanos não detectaram com rapidez e clareza a

inclinação pró-PSP do Che.* Os dois documentos dos serviços de informação dosEstados Unidos que mencionam o argentino nesse período, ainda que apresentemos dados pertinentes — sua proximidade com a representação soviética noMéxico, a orientação ideológica de Hilda Gadea, seu veemente antiimperialismo —, não extraem as conclusões lógicas. Nas escassas menções de um vínculo entreo nome do Che e a influência comunista no seio do Movimento Vinte e Seis deJulho, a causalidade aparece de maneira confusa. Assim, por exemplo, umtelegrama do consulado dos Estados Unidos em Santiago, datado de 21 defevereiro de 1958, diz:

O oficial que informa perguntou a vários cubanos sobre a acusação de queum dos lugar-tenentes mais confiáveis de Fidel Castro, o dr. Ernesto

Guevara, um argentino, é comunista ou simpatizante dos comunistas.Invariavelmente eles respondem com negativas veementes, mas reconhecemque ignoram seus antecedentes e preferem desviar toda a conversação,sugerindo que o dr. Guevara é um aventureiro idealista .** 

(*) No documento sem data dos serviços de informação anteriormente citado, os norte-

americanos concluem que "parece claro, então, que mesmo não sendo membro do Partido Comunista

Guevara é marxista em seu pensamento e mantém alguns contatos com círculos comunistas"

(Po5sií)i!ify of  communist connecnons, op. cit.). Subestimavam seriamente tanto a inclinação

comunista (não ao partido, mas ao ideário) como os crescentes ví nculos do Che com o PSP. (**)  Despatch  from the US combate at  Santigoáo de Cuba to the Department ci f State.

Foreign Reiations of the United  States, op cit., 1958-60, vol. vi, p. 35. Segundo Tad Szulc, o então

vice-cônsul em Santiago, o autor do telegrama foi possivelmente um certo Roben Em agosto de 1958, a coluna do Che separou-se da de Fidel Castro. O

comandante-em-chefe ordenou a Guevara e a Camilo Cienfuegos a "invasão" docentro da ilha, dividindo-a em duas zonas militares. A partir de então o processode aproximação com os comunistas se acentuou;aguçaram-se as contradições com o Diretório e os liberais, e afiançou-se aincorporação dos comunistas à coluna. Nas discussões finais sobre a Lei deReforma Agrária — a mais importante reforma promulgada pela guerrilha nasierra — Guevara assentaria as bases de uma aliança mais sólida com o PSP e emfavor de teses mais radicais, contra a planície, os liberais e as posturas maisprudentes. Mas essa etapa pertence a outra saga: a da vitória e do início da

legenda. O Che, junto com Fidel Castro, converteu-se então no próprio emblemada Revolução, identificando para sempre o seu rosto com o de centenas demilhares de cubanos eufóricos que festejaram sua entrada triunfal em Havana, em

 janeiro de 1959.

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Wiecha, agente da CIA, que entregou grandes somas de dinheiro ao Vinte e Seis de Julho, talvez comoparte de uma política do governo Eisenhower, ou então como iniciativa própria da CIA. (Ver zule, op. cit., pp. 469-71.) Entrevistado por Georgie Anne Geyer em 1987, Wiecha negou ter dado dinheiro aFidel ou a seu grupo, embora reconhecesse suas simpatias, e as da CIA em geral, por Castro e pêlosrebeldes. Permanece o mistério sobre se alguém mais da CIA, ou o próprio Wiecha, entregou recursosa rebeldes não estritamente identificados como do "grupo" de Fidel. (Ver Georgie Anne Geyer,Guemíia Prince, Boston, Littie Brown, 1991, p. 189.) 

5 NOSSO HOMEM EM HAVANA

Em 18 de agosto de 1958 Fidel Castro soube que ganhara a guerra. A derrota da

ofensiva de Batista e a retirada do exército da sierra Maestra e da sierra de Cristal

deixavam pouca margem para dúvidas: o regime estava exausto, cercado, e se

desgastava dia a dia. Agora o problema estava em assegurar que o desfecho

favorecesse os rebeldes entrincheirados nas montanhas e na clandestinidadeurbana, não se prestando a uma quartelada ou a uma mediação imposta por

Washington. Para isso, Castro concebe a manobra militar mais astuta e decisiva

da guerra: a chamada invasão do resto da ilha, a partir do deslocamento das

colunas da sierra Maestra. Sua missão consistia em deslocar-se para oeste,

começar a combater no centro de Cuba, cortar as comunicações da ilha e

empreender a marcha para Havana.

Com o Segundo Front a cargo de seu irmão, Castro dispunha de poucas opções

para o comando das pontas-de-lança da "contra-ofensiva" guerrilheira. Camilo

Cienfuegos, que se distinguira desde o desembarque do Granrna por seu valor,

habilidade, bom relacionamento com os combatentes e a população, era um

candidato natural, embora nunca tivesse efetuado um comando autónomo. O

outro postulante lógico era Che Guevara, que havia quase um ano chefiava sua

própria coluna, rebatizada com o nome de Ciro Redondo, em homenagem a um

dos tripulantes do Granma recém-tombado em combate. Os dotes de liderança e

arrojo militar do médico eram evidentes. Ademais, Fidel Castro já confiava nele o

bastante para lhe dar uma missão cujas conotações políticas envolviam arestas tão

ou mais complexas que as militares.

Assim, coube ao Che a tarefa de atravessar longos quilómetros de território

inimigo, com 150 novatos e já sem o amparo da sierra. Sua incum- 

bência incluía "coordenação de operações, planos, disposições administrativas ede organização militar com outras forças revolucionárias que opereir nessaprovíncia [Lãs Vi l Ias], que deverão ser convidadas a integrar um só corpo deexército, para dar consistência e unidade ao esforço militar da Revolução".' Emoutras palavras, Guevara teria de entender-se com—ou submeter — os demaisoposicionistas em luta em Lãs Vilias e na sierra dei Escambray. Estescompreendiam batalhões do Movimento Vinte e Seis de Julho, assim comogrupos isolados do Diretório Estudantil Revolucionário, do Partido SocialistaPopular e de uma certa Segunda Frente Nacional de Escambray, uma cisão doDiretório, dirigida por Eloy Gutiérrez Menoyo. Portanto, o trabalho era tríplice:

estritamente militar, para debilitar e a seguir derrotar o inimigo no centro daRepública; de resistência e comando, requerendo a manutenção de uma imensadisciplina e coesão, em condições singularmente adversas, sem o recurso domanto protetor de Fidel Castro, e eminentemente político, exigindo uma destrezanegociadora e uma autoridade excepcionais.

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Se o líder cubano carecia de muitas outras opções de partilha das suas

responsabilidades, isso não diminui a magnitude da façanha de Che Guevara nos

três anos de sua convivência com Castro. Ele deixou de ser o mau médico

estrangeiro errante, completamente desprovido de experiência política e militar,

para converter-se no terceiro homem de uma epopeia já encaminhada para a

vitória. Talvez os cubanos do Granma vissem com um travo de ressentimento sua

arrogância, sua lacónica e altiva ironia, sua distância e suas estrangeirices. E

possível que os elementos menos radicais do Vinte e Seis de Julho, na planície

como nas montanhas, olhassem com desconfiança sua predileção pela União

Soviética e sua crescente afinidade com o desacreditado comunismo cubano. E

entre os mais chegados a Fidel Castro, inclusive o irmão deste, não deixaram de

surgir traços de rivalidade e inveja da proximidade, camaradagem e lealdade que

existiam entre os dois. Contudo, nenhum desses sentimentos poderia toldar a

enorme contribuição de Che Guevara à luta, com seus dons de coragem,

organização, disciplina e sangue-frio. Até as características que em primeirainstância poderiam privá-lo do apreço dos cubanos tomavam-no inestimável. Sua

organização argentino-européia, sua pontualidade e formalidade, seu apego à

norma, ao compromisso e à palavra empenhada não eram precisamente virtudes

caribenhas, e até o mero exotismo delas valorizava-o na derradeira etapa da

guerra.

Em fins de agosto de 1958 o Che efetua um duplo expurgo. Despede-se de algunscolaboradores próximos: Camilo Cienfuegos, seu maior amigo na sierraMaestra, e Zoila, sua companheira nos últimos meses. De outro lado, exige dos

integrantes de sua coluna uma tomada de posição explícita quanto a participar da

"invasão". Adverte-os do elevado risco de vida: até metade da tropa podeperecer. Quase 80% dela são jovens sem experiência de combate, garotos recém-

recrutados em Minas de Frio. Finalmente, em 31 de agosto, o Che parte com 148

homens, que por 46 dias suportarão aquilo que o trópico e o isolamento têm de

mais agressivo, a fome, a sede, mosquitos, ciclones e enchentes, caminhos

desprotegidos, uma população indiferente e a exposição ao constante

molestamento do exército de Batista. A travessia se estende por mais de

seiscentos quilómetros; os lodaçais, as torrentes, as privações impõem sacrifícios

quase infinitos. Os caminhões que deveriam transportá-los não tiveram serventia:

o exército cortou o fornecimento de gasolina; todo o percurso foi feito ou a pé ou

a cavalo. Embora apenas seis homens tenham morrido durante a jornada (ousomente três, conforme alguns relatos), as atribulações logo se converteram em

legenda. Para isso contribuiu bastante o general Francisco Tabemilia Dolz, chefe

do Estado-Maior Conjunto, que anunciou em 20 de setembro o aniquilamento da

"força invasora" e a morte do Che.

Em 16 de outubro terminou o calvário: "Quando a situação era mais tensa,

quando só o império dos insultos, súplicas e interpelações de todo tipo podia pôr

a caminho aquela gente exausta, uma única visão longínqua animou seus rostos e

infundiu novo ânimo à guerrilha. Foi a mancha azul do maciço montanhoso de

Lãs Vilias".2 

O Che concluía assim a etapa inicial de sua missão independente. Faltavam

menos de três meses para o triunfo final. Estranhamente, até a batalha de Santa

Clara e a entrada em Havana, nem nas anotações de Guevara nem nos relatos de

seus colaboradores há referências aos pavorosos sintomas de suas recorrentes

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crises de asma. Naturalmente, é possível que os ataques tenham ocorrido ao

longo dessas semanas com a mesma intensidade de outros momentos, sem que

ele os tenha registrado no diário. Porém, existem igualmente várias explicações

plausíveis para uma temporária interrupção da enfermidade. Uma possibilidade,

fisiológica, diz respeito aos níveis de adrenalina gerados por uma situação quase

de combate permanente. Se a adrenalina é um broncodilatador por excelência, e

o organismo humano o seu melhor fornecedor, não é absurdo pensar que a tensão

provocada pelo perigo e as incessantes escaramuças tenham ministrado ao corpo

do Che o melhor antídoto possível para a asma.

Outra explicação de sua imunidade temporária pode ser encontrada na ausênciade situações que desencadeavam as crises. Desde que ele abandona a sierra e aadministração dos acampamentos, com seu corolário de discussões e temas, ascontradições voltam a proliferar. Como veremos adiante, até para resolver asdivergências entre as distintas facções oposicionistas, o Che escolhe a melhortática político-militar e também a mais eficaz vacina contra sua aflição: o

combate. Se a teoria esboçada desde os primeiros capítulos da nossa história dáconta de parte da vida deste homem, a associação asma-ambivalência tem umduplo sentido. A presença da primeira indica a vigência da segunda; a ausênciade uma denota a inexistência da outra.Este é o verdadeiro capítulo inaugural do Che Guevara como comandante

autónomo. A caminho ele constrói as lealdades, os costumes e a fama que hão de

acompanhá-lo até a morte. Durante a invasão forma-se a sua escolta, integrada

por José Argudín, Alberto Castellanos, Harry Villegas (Pombo) e Hermes Pena.

Os três últimos participarão das equipes internacionais do Che, na Argentina, na

Bolívia e no Congo. Outros três companheiros daqueles dias morrerão na

Bolívia: Eliseo Reyes (San Luí s), Carlos Coello (Tuma, cujos restos foramencontrados na Bolívia em 1996) e Alberto Femández {Pachungo). Também ao

longo daquelas seis semanas começa a se revelar uma das qualidades mais

peculiares e duradouras do Che, matriz de formas superiores de liderança, e

também um traço impossível de se sustentar em um ambiente de normalidade:

sua intransigência para com a fraqueza alheia. Ele não tolera erros de seus

subordinados; recrimina-os, castiga-os e insulta-os. Joel Iglesias recorda um

incidente, em plena invasão:"[...] Vários companheiros desceram do caminhão

atolado [...] [outros] não queriam descer para empurrar. O Che ficou de péssimo

humor, dirigiu-lhes palavras duras, violentas, eu diria, e sua expressão era

colérica. Criticou severamente aquela conduta. Quando ele se indignava, sóvendo e escutando".3 

A excepcional decência e nobreza do Che permite-lhe, dias depois, pedir

desculpas às vítimas de sua ira. E por certo, como repetem à exaustão os relatos

cubanos, ele jamais exigia de seus subordinados algo que não impusesse a si

próprio. Porém tais qualidades abstraias se chocavam com a natureza das

pessoas. No mundo real, elas não possuíam seu sentido da história ou do destino,

nem sua força de vontade ou intelecto. As explosões de desagrado para com seus

seguidores, cuja devoção por ele não conhecia limites, começaram a integrar o

anedotário inédito de sua vida. Na "invasão", no Congo e sobretudo na Bolívia,

seus arroubos se tornaram proverbiais: nunca injustos, jamais tendenciosos,

sempre extremados e devastadores para o comum dos mortais. Não é impossível,

ademais, que seu caráter impetuoso, suas "descargas", como chegaram a ser

conhecidas entre

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os colaboradores, seguidas de momentos de delicadeza e contrição, possaeventualmente ter sido efeito das injeções de epinefrina ou adrenalina contra aasma. Estes broncodilatadores, embora não acarretem efeitos a longo prazo,geram bruscas elevações da pressão, ansiedade e uma espécie de rushes de médiaduração — de até trinta minutos. Para alguém que — correta-mente, do ponto de

vista médico — consumia medicamentos antiasmáticos com grande frequência, épossí vel que os altos e baixos do humor e atividade fossem provocados por essassubstâncias químicas.* A chegada a Lãs Vilias obriga-o a dedicar-se por inteiro à tarefa de unificar as

forças oposicionistas e a medidas administrativas ligadas às grandes promessas da

revolução vindoura, em particular a reforma agrária. São os meses em que, por

um lado, Guevara, Cienfuegos e outros líderes rebeldes porão em prática um

drástico processo de distribuição de terras, começando pela suspensão do

pagamento da renda das pequenas parcelas e pela isenção fiscal para alguns

pequenos produtores, de café, por exemplo. Por outro lado, a expansão da prática

dessas medidas passa a demandar a elaboração de uma estrutura jurídica, o quedesembocará na lei n2 3 da sierra Maestra, sobre a reforma agrária, datada de 10

de outubro de 1958.

Para o Che, a integração do campesinato à guerrilha tem uma dimensão

purificadora, para além da militar ou da política. O guerrilheiro se "une" ao povo

quando este se incorpora ao exército rebelde. Como o "povo", nas zonas rurais, é

por definição composto de camponeses, poucas mudanças na guerrilha têm

impacto tão decisivo para o Che como a aproximação da população rural aos

revolucionários. Em suas próprias palavras: "Simultaneamente à incorporação dos

camponeses à luta armada, por suas reivindicações de liberdade e justiça social,

surgiu a grande expressão mágica que foi mobilizando as massas oprimidas deCuba na luta pela posse da terra: a reforma agrária".4 

Ora, em zonas como a sierra Maestra, onde se dá o encontro primordial do médico

argentino com o problema da terra e da pobreza rural, a aspiração básica do

morador do campo é a posse de uma gleba e a eliminação da renda. Essa não é

necessariamente a demanda mais sentida de assalariados agrícolas das plantações

de açúcar e tabaco de outras regiões. Mas nas regiões onde Che Guevara faz seu

aprendizado da vida e mentalidade camponesas, a terra é essencial. E, portanto, a

reforma agrária adquiria uma importância crucial

(*) Devo essa hipótese a uma esclarecedora conversa com o dr. Roberto Krechmer, um dosmais destacados especialistas mexicanos em asma infantil (México, DF, 6/7 / 96). para o processo de incorporação do campesinato à guerrilha. Daí também que oChe qualifique o exército rebelde de "exército camponês" e o Vinte e Seis deJulho de "movimento camponês",5 termos ambíguos, pois sua veracidade epertinência dependem do momento, do sentido da palavra camponês e da ênfaseque se queira dar a cada um dos fatores da luta. Para o Che, que só opera porconta própria a partir de meados de outubro de 1958, em Lãs Vilias, o tema dadistribuição da terra e da supressão dos impostos e taxas de arrendamentoadquirirá uma grande transcendência. Terá forte impacto no enfoque que adotará nas demais esferas, incluindo as relações com os comunistas e a unificação com

as outras tendências presentes no centro da ilha.A Lei de Reforma Agrária garantia o respeito à propriedade da terra em imóveis

com menos de sessenta hectares; os possuidores de menos de 25 hectares

receberiam parcelas, e os donos das fazendas improdutivas que fossem

desapropriadas seriam indenizados. Tratava-se de uma reforma agrária modesta e

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prudente: sem cooperativas nem arrendamento comunal ou cole-tivo de terras.

Segundo vários testemunhos e fontes, o Che lutou por um pro-jeto mais radical,

embora tampouco incendiário. Ele escreveria que a legislação finalmente

aprovada "não era completa".6 Castro tomou o partido da ala moderada do Vinte e

Seis de Julho, dirigida nesse campo por Humberto Sori Martín, um advogado

medianamente conservador que seria fuzilado alguns anos mais tarde. Embora

alguns observadores sugiram que os comunistas adotaram uma posição

contemporizadora sobre a reforma agrária, advogando uma postura discreta, a

literatura indica que eles se inclinaram mais para as teses de Guevara, procurando

atacar frontalmente a propriedade latifundiária. O Che se opôs, desde julho de

1958, à expulsão do dirigente comunista Carlos Rafael Rodríguez do

acampamento de La Plata, onde se encontrava Fidel e para onde fora enviado

visando negociar o apoio do partido à guerrilha, e o fez em parte, porque os dois

coincidiam sobre o tema "reforma agrária". Os dirigentes do Movimento Vinte e

Seis de Julho, Faustino Pérez, Manuel Ray e Carlos Franqui, haviam exigido aretirada de Rodríguez; Guevara, Raul Castro e Camilo Cienfuegos o defenderam.

O Che declarou que "os únicos que devem ser expulsos da sierra são os jornalistas

norte-americanos. Se perseguirmos os comunistas estaremos fazendo aqui em

cima o que Batista faz lá embaixo".7 Ray foi por certo o primeiro economista a

quem Castro encarregou de redigir um rascunho da Lei de Reforma Agrária. Mais

tarde, Guevara relata: "Nosso primeiro ato [em Lãs Vilias] foi ditar uma

proclamação revolucionária estabelecendo a reforma agrária. Nela se deliberava

[...] que os donos de pequenas parcelas de terra

deixariam de pagar sua renda até que a Revolução decidisse sobre cada caso. Na

prática avançávamos com a reforma agrária enquanto ponta-de-lança do exércitorebelde".8 

Esse procedimento logicamente provocou atritos com os demais grupos

oposicionistas da região, menos convencidos que o Che das vantagens de tais

atos unilaterais e da criação de precedentes de natureza semelhante. O debate

sobre a distribuição da terra se resolveria em maio de 1959 com a Primeira Lei de

Reforma Agrária e, em 1964, com a Segunda. Desde o início da Revolução o Che

insistia em dois aspectos que a seu ver uma reforma agrária autêntica precisaria

incluir: a destruição dos latifúndios e a anulação da indenização obrigatória e

prévia em moeda corrente.

Mas, de imediato, tal conclusão conflita com o problema da unidade das forças

de oposição a Batista. A missão do Che é diáfana: unir todos em Lãs Vilias. 

Cumpri-la já é mais difícil, embora não impossível. Nas condições para

completar essa unidade transparecem as tendências do pensamento e ação do

próprio Guevara, que se mostrarão determinantes nos meses seguintes. Durante a

marcha da sierra Maestra a Escambray, houve dois encontros com integrantes do

PSP ilustrativos da crescente aproximação entre o Che e os comunistas. Em um

comentário a Fidel com data de 3 de outubro, ou seja, dez dias antes da conclusão

do abominável trajeto pela planície, Guevara se queixa amargamente do Vinte e

Seis de Julho: "Não pudemos estabelecer contato com a organização do Vinte e

Seis de Julho, pois alguns supostos membros se recusaram quando lhes pedi

ajuda e só a recebi [...] dos membros do PSP, que me disseram ter solicitado

apoio dos organismos do movimento, recebendo a seguinte resposta: 'Se o Che

manda um papel por escrito, nós o ajudamos; senão, foda-se o Che'".* 

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(*) Ernesto Che Guevara, Fidel Castro, "Sobre ta invasión", cit. em Ernesto Che Guevara,Escritos, op. cit., t. 2, p. 277. No esforço permanente de uns e outros para reescrever a vida deGuevara, há os que buscam desentranhar um ódio precoce do Che aos comunistas, criando a efígie doChe "bom", sempre anticomunista, em oposição à do Fidel "mau", comunista desde a primeira hora.Horacio Rodríguez, por exemplo, lê essa mesma passagem de maneira exatamente oposta àinterpretação acima: identifica "os organismos do movimento" com a direção do PSP, e o trecho seconverte em uma queixa contra o partido. A interpretação aqui apresentada é corroborada pelo próprio

Guevara: "Até agora temos recebido pouca ajuda do movimento. Quem tem feito muito por nós é oPSP" (Enrique Oituski, "Gente dei llano", Revista Cosa de Ias Américas, Havana, vol. Vil, n" 40, jan.-fev. 1967, p. 52. Ver Horacio Daniel Rodríguez, Che Guevara iAventura o revolución?, Barcelona,Tribuna de Plaza y ]anés,1968,p.l22). 

Podemos especular que Castro, desde a assinatura em Caracas de um pactode unidade com toda a gama de opositores da ditadura, exceto os comunistas,precisava, aos olhos do Che, ser convencido das virtudes da unidade com aqueles.As longas semanas passadas na sierra por Carlos Rafael Rodríguez cumpriram empane essa função. Ali se estabelece ademais a amizade entre o ex-ministro comunista de Fulgencio Batista e Guevara; trocam livros, entre eles Sobre a guerra de guerrilhas, de Mão, e discutemextensamente sobre o decreto de reforma agrária em vias de elaboração. Em

 julho, Carlos Rafael Rodríguez expressa abertamente sua admiração peloargentino da sierra: "E o mais inteligente e capaz de todos os chefes rebeldes".9 Embora muito provavelmente verdadeiro, o elogio reflete a aproximação políticaentre ambos; também um quadro comunista de Santa Clara, Armando Acosta,integra-se em setembro à coluna como virtual assistente número l do Che, o quedá um toque mais pessoal à aproximação.* Não haveria como enganar-se quantoàs implicações dessa incorporação. Além do ingresso de Pablo Ribalta na coluna— relatado no capítulo anterior —, o PSP já tinha enviado em fevereiro de 1958um outro quadro, Sérgio Rodríguez, para "fornecer lápis, tinta e papel paraimprimir o jornal El Cubano Libre",10 conforme recorda Enrique Oituski, odirigente clandestino do Vinte e Seis de Julho em Lãs Vilias: "Eu conhecia

Acosta, que era encarregado do PSP em Lãs Vilias. Conhecia Acosta comoencarregado do PSP e de repente vejo-o como integrante da tropa do Che. Nóssabíamos as inclinações do Che e não foi uma surpresa para mim. O Che ia

 jogando com tudo isso"." Outro sintoma de aproximação é a integração à coluna de Oví dio Díaz

Rodríguez, secretário da Juventude Socialista Popular de Lãs Vilias, em outubrode 1958. Seu testemunho mostra a discrição que o Che preferia adotar no tocantea suas relações com o partido. Certo dia, chegou a uma reunião um membro doPSP com um presente para ele (o Che); era uma latinha de mate argentino, e eledisse diante de todos: "Veja, comandante, este presente é da direção do partido".O Che o aceitou sem dizer nada, mas depois instruiu Oví dio para que fizesse

saber ao partido que não devia enviar companheiros tão indiscretos.

12

 Já em novembro, Guevara seria mais explícito em sua apreciação sobre osméritos e fraquezas dos distintos grupos de contestação da ditadura. Em umaamarga queixa dirigida a Faure Chomón, chefe do Diretório EstudantilRevolucionário em Lãs Vilias, informa com certo desdém que "em conver- 

(*) Segundo Carlos Franqui, Acosta uniu-se à coluna do Che "rompendo a disciplina do PartidoComunista", desde a sierra (Carlos Franqui, Diário, op. cit., 1976, p. 604). sacões oficiais realizadas com membros do Partido Socialista Popular estesmostraram uma postura claramente favorável à unidade e puseram sua orga-nização na planície à disposição dessa unidade".13 Por trás dos matizes daavaliação do Che sobre os grupos oposicionistas, figurava um juízo de valores

compreensível. Quando o Che alcançou Lãs Vilias, os comunistas se subor-dinaram a ele sem reservas; os outros setores foram mais reticentes, lentos oufrancamente contrários à ideia. Assim como os integrantes do PSP se alinharamcom Raul Castro, aceitando incondicionalmente sua liderança, com o Cheaconteceu algo semelhante.

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As relações de Che Guevara com o Partido Socialista Popular representamum dos temas mais espinhosos desse período. Os biógrafos do con-dottiere quepreferem enfatizar suas diferenças dos comunistas empregam como epígrafealgumas frases lapidares. Uma, a mais célebre, diz: "Os comunistas são capazesde formar quadros que se deixam dilacerar na obscuridade de um calabouço sem

dizer uma palavra, mas não de criar quadros que tomem de assalto um ninho demetralhadora".14 A outra, expressa mais ou menos na mesma época, aborda temaanálogo: "O PSP não vira com suficiente clareza o papel da guerrilha, nem opapel de Fidel em nossa luta revolucionária".15 Vários estudiosos da época e deseus personagens — inclusive, entre outros, o mais recente biógrafo de Fidel —insistem que o argentino não era comunista naquela época.* Todavia, o próprioChe confiou sua filiação ideológica a uma das combatentes da sierra, Oníria Gutiérrez, que ingressou na sua coluna em agosto de 1953, pouco depois de seconhecerem: "Não posso esquecer a primeira noite em que ele conversou comigo[...] Falou sobre minhas ideias religiosas e isso me levou a perguntar se ele erareligioso. Não, respondeu, 'não posso ser religioso porque sou comunista'".16 

Talvez seja o caso de analisar brevemente o sentido desse punhado defrases do Che. Suas divergências com os comunistas derivam de conside- 

(*) O Che "não era ainda comunista, nem de acordo com seu próprio relato, nem de acordocom o testemunho de outros" (Robert E. Quirk, Fiáel Castro, Nova York, Norton, 1993, p. 197).Hugh Thomas, o mais ilustre dos historiadores da Revolução Cubana, faz afirmação semelhante:"Contudo, em 1959, Guevara falava com certa ambiguidade. Não era comunista e nunca tinha sidomembro do partido". Convém recordar que o magistral texto de Thomas, escrito em 1971, não pôdemencionar, por desconhecê-los, todos os materiais, cartas, entrevistas e documentos sobre asinclinações ideológicas e políticas do Che que citamos nestas páginas. (Ver Hugh Thomas, Cuba: ialucha por  Ia Ubertad, 1958-1970, México, Grijalbo, 1974, t. 3, pp. 1345-6.) rações táticas ou quase pessoais: por não saberem brigar, nem preparar sua gentepara isso. Ademais, por não darem valor à luta armada, nem ao papel de Castro eseu exército rebelde no combate a Batista.* Porém, as dis-crepâncias de Guevara não são estratégicas ou ideológicas. Ele se considera comunista com cminúsculo, na mais genuína acepção do termo naquele momento: um soldado daluta internacional pelo socialismo liderada pela União Soviética. Não se senteum comunista com C maiúsculo, ou seja, membro do partido cubano,principalmente em virtude de desavenças sobre o papel da guerrilha. Portanto,ultrapassado o obstáculo da forma de luta, com a unanimidade em torno docombate armado, em janeiro de 1959 a aliança natural do Che será com o PSP. Não haverá, nesse momento, nada que os separe, até que os avatares da gestãorevolucionária, da política internacional e da revolução na América Latina façamcom que se enfrentem novamente.Provavelmente, o debate mais interessante sustentado pelo Che, entre suachegada às encostas de Escambray e a batalha de Santa Clara, será a polémicacom Enrique Oituski, o engenheiro judeu de origem polonesa que dirigia oMovimento Vinte e Seis de Julho em Lãs Vilias. Oituski terá uma trajetória acidentada: aos 28 anos será nomeado ministro, o mais jovem do governorevolucionário, para logo ser demitido e encarcerado, e novamente colaborarcom o Che no Ministério da Indústria. Em fins dos anos 90, continuavacolaborando com o governo cubano no setor de recursos naturais.O intercâmbio foi veemente, substantivo e, como sempre nas cartas do Che,revelador de seu estado de ânimo e itinerário político. Concentrou-se emdiscordâncias sobre a reforma agrária. Oituski propugnava uma distribuiçãopaulatina da terra, ao passo que Guevara defendia um confisco e partilhaimediatos das parcelas. Para contestar a expropriação das grandes áreas, Oituski,entre muitas outras razões, argumentava que medidas drásticas como essaconduziriam inelutavelmente a um enfrentamento com os Estados Unidos. Areprodução do diálogo entre os dois é saborosa:

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Oituski: "Toda terra ociosa devia ser dada aos guajiros, e devia se taxarpesadamente os latifundiários para poder comprar as terras com seu própriodinheiro. Então a terra seria vendida aos guajiros pelo que custasse, comfacilidades de pagamento e crédito para produzir".

(*) Theodore Draper estabelece essa mesma distinção entre Castro e os comunistas: "A linha divisória entre Castro e os comunistas se reduzira a um só tema: a luta armada. Para lograr aaliança, os comunistas tinham de transpor essa diferença" (Theodore Draper, Cas-troism, theory andfraace, Nova York, Praeger.1965, p. 34). 

"Mas essa tese é reacionária!" O Che fervia de indignação. "Como vamos cobrar a terra daquele quetrabalha nela? Você é igual ao resto do pessoal da 

planície." "Porra, e o que é que você quer? Entregá-la de presente? Para que a deixem 

destruir, como no México? O homem deve sentir que aquilo que possui custou-lhe esforço." 

"Caralho, olha quem fala!", gritava o Che, com as veias do pescoço saltadas. "Além disso, é precisodisfarçar as coisas. Não pense que os americanos vão cruzar os braços se nos virem fazer as coisas

tão abertamente. E preciso ter manha."17 

Pior ainda, aos olhos do Che. Sua resposta bate duro: "Portanto, você é dos que acreditam que podemos fazer uma revolução pelas costas dos

americanos! Que borra-botas! Temos que fazer a revolução em luta de morte com oimperialismo, desde o primeiro momento. Não se pode disfarçar uma revolução de verdade."18 

Aqui reside um germe da futura discordância — de pouca intensidade —com Fidel Castro. Apenas alguns meses antes, o caudilho discutira asperamentecom Raul Castro quando este sequestrou vários cidadãos norte-ame-ricanos, inclusive engenheiros dos complexos de mineração de Moa e Nicaro, e algunsmarines. Fidel intuía que era imprescindível manter o embargo estadunidense davenda de armas a Batista. Não havia chegado o momento do choque com ovizinho do Norte, e não se devia precipitá-lo. Castro repreendeu ser irmão mais

 jovem, que rapidamente libertou os presos, e o embargo persistiu. O que não sesabia na época era o nível da discussão que o seq uestro e a renovação do

abastecimento de armas suscitaram no governo de Washington. A seguintepassagem de um documento do Departamento de Estado, etiquetado como"secreto", mostra o teor do debate:

Nossa embaixada em Havana recomendou que a política de envio de armasa Cuba seja revista à luz dos sequestros [...] Crêem que devemos permitirao governo cubano a compra de armas nos Estados Unidos, para queesmague a revolta de Castro e como estímulo à realização de eleiçõesconfiáveis [...] As principais razões em favor de tal mudança são que arecusa de vender armas debilita o governo constituído de Cuba, assim comoos relatórios de nossos cônsules que negociaram a libertação dos norte-americanos no Oriente, indicando uma possível influência comunista nas

forças de Raul Castro. As razões em contrário da permissão da venda dearmas incluem as considerações de que o armamento enviado ao governoBatista no passado não permitiu que ele negociasse efetivamente comforças mais fracas que as reunidas agora pelo Vinte e Seis de Julho, de quea maior parte do povo cubano está descontente com o regime, de queBatista se prepara para deixar a presidência em fevereiro

próximo [...] e um apoio aberto ao governo nos prejudicaria na maioria das demais repúblicas

americanas. A Subsecretária para Assuntos Interameri-canos acredita que as razões contra o

envio de armas sobrepujam aquelas favoráveis a um tal procedimento.19 

O que diferenciava Fidel Castro do Che e de Raul era justamente a maneira de

aproveitar as dissensões e titubeies do adversário e o magnífico senso deoportunidade do primeiro. Os lugar-tenentes tinham uma propensão paramenosprezar a tática e o tempo; para Fidel, estes eram decisivos.Outra discussão com Oituski, da qual o Che deixou registros carregados de

violência e paixão, girou em tomo do confisco dos recursos dos ricos da

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província de Lãs Vilias. Guevara ordenou a Oituski que assaltasse o banco da

cidade de Sancti Spíritus; o jovem dirigente local negou-se terminantemente a

fazê-lo. Argumentou que o ato seria uma loucura. Acarretaria a oposição de

muita gente que os apoiava. Além do mais, não era necessário. O movimento

tinha mais dinheiro do que nunca, o qual Oituski se prontificava a partilhar com

o Che. Oituski estava seguro de que Fidel não apoiaria uma decisão daquela

natureza.20 O Che respondeu por meio de carta com uma de suas temidas

"descargas": "[Se] os líderes dos povoados ameaçam renunciar [...] que o façam.

Mais ainda, exijo que o façam agora, pois não se pode permitir um boicote

deliberado a uma medida tão benéfica à Revolução".

Evidencia seu posto ("Vejo-me na triste necessidade de recordar-lhe que fui

nomeado comandante-em-chefe [...]") e estabelece um vínculo preciso entre a

distribuição de terras, o recurso aos assaltos e o que poderíamos chamar

conteúdo de classe da Revolução: "Por que nenhum guajiro achou defeitos em

nossa tese de que a terra é para quem trabalha nela mas os latifundiáriosacharam? E isso não tem relação com o fato de a massa combatente concordar

com o assalto aos bancos, onde nenhum deles possui nem um centavo? Você não

se pôs a pensar nas raízes desse respeito à mais arbitrária das instituições

financeiras?".2' 

O Che percebia o desenvolvimento da luta de seu ponto de vista. Para efetuar 

uma "verdadeira revolução", como costumava dizer, a expropriação dos

banqueiros, dos latifundiários ou dos próprios norte-americanos era incidental.

Poderia inclusive ser benéfica, ao provocar represálias que obrigariam a

radicalização do processo revolucionário, o que depuraria as fileiras da facção

anti-Batista, definindo com maior clareza o rumo revolucionário dos gruposrestantes. Ele podia se permitir esses luxos discursivos e conceituais. Primeiro,

porque não mandava: a responsabilidade era de Fidel Castro, do qual o Che era

apenas a ala esquerda ou a consciência crítica. Em

''segundo lugar, sua condição de estrangeiro abria um campo infinito paraposturas extremas. Ele não recebia reclamações dos amigos de infância, da velhatia, do companheiro de universidade — fatores que, de alguma maneira, afètavam o estado de ânimo e as posições dos dirigentes cubanos. E, por último, convémlembrar que Guevara de fato possuía, distintamente dos demais, uma visãoestratégica e uma concepção da meta que perseguia:o socialismo, a colocação de Cuba na órbita da "cortisona" — a União Soviética

— e um confronto indispensável com os Estados Unidos. Para tais propósitos, as

medidas ditadas em Lãs Vilias apresentavam perfeita coerência e lucidez, se bem

que na ausência dessa visão de longo prazo, ou na presença de uma concepção

contrária, conflitavam violentamente com as aspirações e táticas dos dirigentes

cubanos, reformistas e ligados à planície.

Mas nesses dias de combate tudo é conflito e precipitação. O Che exibe

brilhantes dotes políticos no cumprimento da missão que Castro lhe confiou.

Pouco a pouco se entende com os distintos grupos de oposição: o Vinte e Seis de

Julho de Lãs Vilias, o Diretório, os comunistas e até o Segundo Front de

Escambray, a cargo de Eloy Gutiérrez Menoyo e de Jesus Carrera. Com esteúltimo ocorre uma perigosa altercação. Quando a coluna do Che penetra na zona

onde operava a pequena dissidência do Vinte e Seis de Julho, Carrera pede uma

contra-senha aos homens do Che, que naturalmente a desconhecem. Carrera

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interpela o próprio comandante Guevara. Antes que o incidente se agrave, os dois

dirigentes se entendem, graças ao pragmatismo e inteligência de ambos.* Porém,

em uma carta ao Diretório, de 7 de novembro, o Che descarta a possibilidade de

um acordo com Gutiérrez Menoyo, que hoje recorda como se evitou o pior:

Pode ser que o Che tenha guardado algum ressentimento contra os oficiaisque enviei e que o detiveram, em especial o comandante Jesus Carrera. Eleme mandou uma carta queixando-se de Jesus Carrera. Quando meentrevistei com o Che, disse-lhe que não havia por que fazer queixanenhuma, pois o comandante Jesus Carrera cumpria ordens minhas. Ouseja, ao entrar nas zonas guerrilheiras, para evitar um confronto é precisoestar de acordo no que

(*) Em um texto publicado em fevereiro de 1961 na revista Verde Oiivo, o Che afirmava, sobre suarelação com Gutiérrez Menoyo: "Em 1° de janeiro, o comando revolucionário exigia que todas astropas combatentes se pusessem sob minhas ordens em Santa Clara. O Segundo Front Nacional deEscambray, pela boca de seu chefe, Gutiérrez Menoyo, imediatamente se pôs às minhas ordens. Nãohavia problema" (Ernesto Che Guevara, "Un pecado de Ia Revolución", Verde Oliva , Havana,

12/2/61. Linhas abaixo, o Che denuncia o comportamento da gente de Gutiérrez Menoyo, mas emrelação a outras questões). 

diz respeito às contra-senhas. São territórios que nós libertamos, ondeoperam nossas guerrilhas; portanto, se você pede uma contra-senha a umatropa  \ tarde ou à noite, e ela não pode responder, é tropa inimiga. Então,isso é urna coisa elementar, que ele mais tarde entendeu perfeitamente.22 

Os acordos que o Che estabeleceu com os diferentes grupos foram parcialmenteexpressos no Pacto de El Pedrero, firmado em princípios de dezembro em umpovoado de Lãs Vilias, perto do quartel-general guevarista Embora o pacto fossecelebrado apenas entre o Diretório — representado por Rolando Cubela — e oChe, simboliza o entendimento entre a coluna comandada pelo argentino e asdemais forças. As tropas do PSP com Felix Torres à frente se integram aocontingente dirigido por Camilo Cienfuegos-e o próprio Gutiérrez Menoyo chegaa um "pacto operacional" com o Che. Semanas depois, Castro recriminaráasperamente seu subordinado por esse acordo, acusando-o de reviver um morto.2' Em 26 de dezembro, na véspera do triunfo, Castro adverte o Che: "Nestemomento a situação em Lãs Vilias constitui minha principal preocupação. Nãocompreendo por que vamos incorrer precisamente no mesmo mal que motivou oseu deslocamento e o de Camilo para essa província. O resultado é que oagravamos, quando podíamos tê-lo superado em definitivo".24 Segundo Carlos Franqui, "a nota de Fidel ao Che desaprova claramente aimportância dada ao Diretório", para não falar de Gutiérrez Menoyo.25 Apesar dasreclamações, em boa medida o acordo atinge o obje-tivo de Castro de unir todas

as forças e submetê-las ao seu comando. Novamente, Gutiérrez Menoyo — quepassou vinte anos em um cárcere cubano — resume o bom relacionamento quetinha com Guevara: 

Mas depois essa etapa foi superada, reuni-me com ele, firmamos o pacto dareforma agrária, firmamos o pacto operacional, cujo esboço inclusive ficoucom ele. Imagino que esteja nos arquivos, prisioneiro, até que queiram abrira verdadeira história de Cuba e não apenas uma parte. Em consequênciadisso, dali por diante as relações foram normais; bem, eles operaram na costanorte, nós na costa sul; inclusive contribuímos com armamento para reforçara posição de Camilo Cienfuegos quando mantinha o cerco de Yaguajay, quedurou tempo demais; na ocasião emprestamos uns 75 rifles ingleses com

grande quantidade de munição.26 A unidade das forças oposicionistas em Lãs Vilias permitirá ao Che

desenvolver uma campanha eficaz visando perturbar e inclusive impedir arealização das eleições organizadas por Fulgencio Batista em 3 de novembro. Em

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vista da vertiginosa deterioração militar, a ditadura começava asentir'se pressionada por seus aliados, cada vez mais relutantes, a buscar urnasolução política para a guerra. O recurso óbvio, apoiado pêlos norte-arnericanos epor um setor importante do empresariado da ilha, consistia em promover eleiçõesantecipadas, nas quais Batista não participaria. Elas abririam caminho para uma

retirada decorosa do ex-militar, uma troca de governo e para a possibilidade,ainda que remota, de impedir que Fidel Castro e o exército rebelde ascendessemao poder. O caudilho da sierra entendeu toda a manobra e concentrou suaimaginação e força em fazer malograr o ardil de Batista e Washington. Apelou àpopulação para que não votasse, sabotou os comícios nas áreas urbanas e impediusua realização nas zonas rurais. Quatro quintos do eleitorado satisfizeram o seupedido. Segundo os apontamentos do Che:

Os dias que antecederam o 3 de novembro foram de extraordinária atividade: nossas colunas se movimentaram em todas as direções, impedindo quase porcompleto a anuência às umas dos eleitores dessas zonas. Em geral,detivemos desde o transporte de soldados de Batista até o trânsito demercadorias. No Oriente praticamente não houve votação; em Camagüey, aporcentagem foi um pouquinho mais elevada, e na zona ocidental notava-seum evidente retraimento popular.27 

São semanas em que o feroz ascetismo do Che começa a ceder perante asduras realidades da gestão administrativa, da política de alianças e das reações peculiares, mas lógicas, dos habitantes da região diante das circunstânciasexcepcionalíssimas. Uma vez tomado o povoado de Sancti Spíritus, por exemplo,Guevara trata de impedir o consumo de bebidas alcoólicas e cancela a loteria. Opovoado se rebela e o Che desiste do intento de pôr em prática seus própriospadrões e experiências procedentes de outros países da América Latina. Procuraregulamentar as relações entre homens e mulheres no seio da coluna, sobretudo àmedida que esta se expande com o inelutável avanço do combate contra Batista.Porém, finalmente rende-se à exuberância do trópico e das condições de luta: opuritanismo sexual não há de ter maior eco no seio da tropa, jovem e irreverente.Logo o Che se recicla e autoriza as relações que cada um considerarconvenientes.* 

(*) Em palavras escritas posteriormente pelo Che: "E preciso [...] evitar toda classe dedesmandos que possam ir minando o moral da tropa, porém deve-se permitir, com o simples apoio dalei da guerrilha, que pessoas sem compromissos, que se queiram mutuamente, contraiam núpcias nasierra e tenham vida de casados" (Ernesto Guevara, "La guerra de guerril-•ss", 1960, em Ernesto CheGuevara, Escritos y discursos, op. cit., t. l, p. 133). Vimos que o Próprio Che considerava seucasamento com Hilda Gadea, formalmente intacto embora emotivamente cancelado, não equivalente aum "compromisso". 

Em El Pedrero, no início de novembro, Guevara conhece aquela que seconverterá em sua futura esposa, a mãe de quatro de seus cinco filhos reco-nhecidos e sua principal companheira para o resto da vida. Aleida March era uma

 jovem militante clandestina do Vinte e Seis de Julho de Lãs Vilias. Perseguidapela polícia, refugiou-se no acampamento do Che em Escarn-bray. Com 22 anosrecém-completados, era excepcionalmente bonita; um cubano que a conheceubem afirmou pouco depois da morte do Che que "ela era a mulher mais bela deCuba, e sua preferência pelo Che não podia deixar de causar algum ressentimentocontra esse argentino que conseguiu arrebatá-la como presa de guerra em SantaClara".28 Universitária, branca e de classe média alta, Aleida rapidamente setransformou em assessora e grande amiga do argentino. Durante as últimassemanas da guerra, aparecerá sempre ao seu lado e entrará com ele em Havana.Voltaremos ao tipo de relacionamento que construíram; por ora, basta dizer que oexotismo de Hilda Gadea ou de Zoila Rodríguez obviamente não explica aatração que Aleida exerceu sobre o Che. A cubana era uma versão adocicada deChichina: bela, por certo, e mais de acordo com os traços característicos de

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Guevara que outras mulheres que lhe foram próximas, mas sem a alteridade complexa de Chichina. E inegável que Ernesto se enamorou dela; a intensidadede seu afeto durou anos. Mais misteriosa seria a distância que desde muito cedose interpôs entre eles. Alguns a atribuem à Revolução; outros, ao fato de queAleida perdeu logo sua beleza física; outros, ainda, a um sentimento de posse

feminino que sobreviveu à morte dp marido e se estendeu a seus filhos, arquivose memória.Em novembro e dezembro de 1958, alem de se encontrar com Aleida, c imentar aunidade das forças de oposição e participar dos debates subsequentes, CheGuevara cortou até onde foi possível as vias de comunicação no centro de Cuba,suspendendo os transportes através da ilha. Na tomada de um povoado, eleescorrega ao saltar de um terraço, torcendo gravemente o pulso (terá de engessaro antebraço) e cortando-se em uma das sobrancelhas. Os dois ferimentos fazemparte da legenda: as fotos do Che entrando em Havana o retratam com o braço emuma tipóia e com uma cicatriz ainda visível na fronte. As vitórias militarescomeçam a se precipitar. Em 21 de dezembro cai a localidade de Cabaiguán —onde a guerrilha captura noventa presos e recupera sete metralhadoras e 85 fuzis.Alguns dias mais tarde, tomam a cidade de Placetas, outra vez com prisioneiros e

armas perdidas. Cada dia fica mais evidente a resistência da tropa de Batista acontinuar combatendo. Os soldados se rendem mesmo quando têm superioridademilitar, ainda que estejam rodeados por uma população civil francamente hostil aeles e favorável aos rebeldes. Esboça-se então a possibilidade — e até anecessidade — de preparar o assalto a Santa Clara, uma cidade de 150 milhabitantes, capital da província de Lãs Vilias, o principal núcleo urbano do ' centro de Cuba. Será a grande batalha da guerra, aquela que desferirá o tiro demisericórdia na ditadura de Batista e consagrará Che Guevara como heróirevolucionário e estrategista militar.

A guarnição militar da cidade compreendia mais de 2500 homens e deztanques. Nos arredores, estavam acantonados outros mil soldados. Comtrezentos combatentes, na maioria fatigados, desnutridos e sem experiência,Guevara empreendeu a ofensiva contra Santa Clara. Ao fazê-lo, já sabia quepartira de Havana para a capital da província um trem blindado — célebre emmeio à legenda do Che — composto de duas locomotivas, dezenove vagões,catorze metralhadoras e quatrocentos soldados estupendamente equipados.Algo diz a Guevara que a batalha pode durar várias semanas; nas primeirashoras de 28 de setembro, ele suspeita que se prolongará por um mês .29 

Na madrugada de 28 de dezembro, com a cidade cercada e as tropas deBatista encerradas em seus quartéis, a coluna do Che investe sobre a entrada

de Santa Clara. O comandante avança em um jipe; seus trezentos homens estãodivididos em vários pelotões. Primeiro alcançam a universidade, em seguidacapturam uma estação de rádio e então se defrontam com um blindado quemata cinco guerrilheiros e deixa vários feridos. Simultaneamente, os soldadosdo trem, posicionados em uma elevação, começam a disparar sobre a coluna.

Pela manhã, tropas do Diretório entram na cidade por outra estrada e seaproximam do quartel Leoncio Vidal, onde está entrincheirado o grosso daforça do exército. Na mesma manhã a aviação de Batista começa a metralhar ebombardear os homens do Che, atemorizando a população civil, que se refugiaem casa. Os militares pedem a Havana reforços e mais apoio aéreo, porémessas não conseguem chegar por causa da ocupação dos subúrbios e das vias

de acesso à cidade pelas tropas rebeldes. Ao anoitecer os soldados continuamaquartelados, e a população civil, protegida dos bombardeios pelas trevas,começa a erguer barricadas para dificultar a passagem dos blindados. A noiteservirá para os rebeldes se infiltrarem na cidade em pequenos grupos; com o

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adversário aferrado a suas guarnições, e contando ao menos com acumplicidade passiva da população, o Che consegue espalhar suas tropas portodo o centro de Santa Clara.

Guevara compreende que o fator crucial da batalha está em imobilizar o tremblindado, impedir que as tropas e os blindados deixem os quartéis e mobilizar a

população civil. Como recorda Oscar Fernández Mell, médico e oficial doexército rebelde, se, em lugar de refugiar-se dentro da cidade, o inimigo tivesseorganizado a defesa de Santa Clara apoiando-se nas elevações circundantes efortificando-as, o exército rebelde teria perdido mais tempo e sofrido baixas maisnumerosas.'0 O segredo do êxito residiu na negativa do exército a combater. Essafoi a vantagem que era preciso aproveitar ao máximo. Quando os comandantesdo trem blindado procuraram evitar o combate e buscaram refúgio, aproximandoo trem do quartel, os trilhos levantados na véspera para paralisá-lo produziramum tremendo descarri-lhamento. Dos 22 vagões, três tombaram de imediato; osguerrilheiros concentraram seus tiros e coquetéis Molotov nos vagões restantes.Logo a situação dos soldados dentro do trem se tornou insuportável, em meio ao

calor, às bombas e ao tiroteio. Pediram trégua, negociaram com o Che efinalmente, ao entardecer, se renderam.O episódio do trem blindado revelar-se-á decisivo, pois, com o armamentorecuperado na ferrovia, a coluna do Che entrará dias depois em Havana com umpoder de fogo muito superior ao de qualquer outra unidade rebelde, em particularo Diretório ou o Segundo Front de Escambray. Gutiérrez Menoyo insiste em umainterpretação alternativa dos fatos, justamente porque foi, segundo ele, o maisprejudicado pela rendição do trem ao Che:

O trem blindado foi uma operação decisiva que eles não esclareceramhistoricamente. Quem manejava o trem blindado era o tenente Rossel. Aprimeira pessoa com quem o irmão do tenente Rossel se entrevistou visando

entregar o trem fui eu. Ofereci-lhe garantias para sua tropa, ofereci umapromoção para o tenente Rossel, e concordaram que iriam entregar o trempara mim. Depois o irmão do tenente Rossel falou com Che Guevara; não seio que Guevara lhe ofereceu que eu não ofereci, mas o fato é que o trem foientregue a eles. Sempre comemoraram isso como o heróico assalto ao tremblindado, mas o trem é que tinha se entregado."

O certo é que a tomada do trem permitiu iniciar a ofensiva final. Comorelata Gutiérrez Menoyo, "em duas ou três oportunidades comentei isso comGuevara; disse-lhe: 'Guevara, o que você ofereceu que eu não ofereci?'. Ele sepunha a rir e nunca me contou. Se eles tivessem se entregado a mim, havia umaquantidade incrível de equipamento, e isso teria permitido que nós iniciássemos a

ofensiva final. O Che nunca me deu uma resposta concreta".32 António Nunez jiménez, que escreveu sobre a história do trem blindado e jáentão fazia parte da coluna do Che, desmentiu categoricamente essa versão,insistindo que Gutiérrez Menoyo nada teve a ver com o trem e que o que houvefoi mais um descarrilhamento que uma rendição." Em uma estranha nota derodapé para a história, Fulgencio Batista afirma que o trem efetivamente foientregue por Rossel, que "desertou depois de ter recebido 350 mil dólares, ou lmilhão de dólares, do Che Guevara". Para Batista, a captura do trem foi umavenda.14 Proliferam as versões contraditórias. Ramón Barquín, o único oficialsuperior de Batista encarcerado por conspirar contra o ditador, afirma que comefeito houve um entendimento prévio entre os militares e o Che para a entrega do

trem; Ismael Suárez de Ia Paz, ou Echemendia, o homem do Vinte e Seis de julhoem Santa Clara, jura que não houve acordo."O Che pediu a Aleida March que se colocasse diante do trem descar-rilhado: "Aleida, vou tirar uma foto sua para a história".36 O resultado da contenda já nãopermitia nenhuma dúvida. O butim foi impressionante, decisivo para o desenlace

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das hostilidades: seis bazucas, cinco morteiros de 60, catorze metralhadoras, umcanhão de 20 mm, seiscentos fuzis automáticos e l milhão de cartuchos." E a maisimportante apreensão de armas inimigas em toda a guerra. Quase quatrocentossoldados caem prisioneiros. A notícia da rendição do trem se espalha pela cidadee pêlos quartéis do exército como um rastilho de pólvora; o efeito desmoralizante 

será devastador para o inimigo; o impacto entre os habitantes de Santa Clara,explosivo.38 Os combates continuam em 30 de dezembro. As forças guevaristas avançam, masnão sem dificuldades. Na estação central de polícia, enfrentam uma tenaz resistência de quatrocentos soldados de Batista que não se entregam facilmente,temerosos das consequências da maneira como vinham tratando a população: osfuzilamentos por maus tratos, torturas, traição etc. tinham se multiplicado nasúltimas semanas. Esse reduto e o quartel Leoncio Vidal, com 1300 militares emseu interior, constituem os últimos baluartes de Batista em Santa Clara. Aoromper a alvorada do último dia do ano, ainda não foram vencidos, e a ofensivaguerrilheira estanca. Finalmente a ação da polícia cede, e o quartel é o último

fortim importante da ditadura na cidade. Assim amanhece o Ano-Novo em SantaClara.Durante a madrugada começam as negociações para a rendição do quartel,

que imediatamente se imbricam com os acontecimentos no resto da ilha. Antes determinarem os festejos de Ano-Novo em Havana, Batista foge de Cuba, na cenacelebrizada por dezenas de filmes antigos e recentes. O impacto em Santa Clara édemolidor: "Ao ficar claro que Batista tinha fugido, criaram-se as condiçõesfavoráveis para que, no quarto dia do ataque a Santa Clara, a guerra acabasse"." Uma junta militar improvisada, enca- beçada pelo general Eulogio Cantillo, trata de evitar o completo desmoronamentodo exército e o triunfo final dos rebeldes. Cantillo envia por rádio a todos oschefes das guarnições do país a ordem de não se render, insinuando que já chegoua um acordo com Fidel Castro em Oriente: "O que acabamos de fazer aqui emColumbia [a principal unidade militar de Havana] tem a aprovação do dr. FidelCastro".40 O líder do Movimento Vinte e Seis de Julho lança dos arredores de Santiago umaproclamação por rádio. Castro condena a tentativa de golpe de Estado, rechaçaqualquer negociação com os quartéis assediados e instrui o Che e CamiloCienfuegos que marchem imediatamente para Havana. Minutos antes de seesgotar o prazo dado pelo ultimato do Che aos oficiais do quartel, a tropa começaa deixar o prédio, desfazendo-se das armas. A batalha de Santa Clara terminou. Apopulação sai às ruas, festeja a vitória, aclama o Che e os barbudos. Estesempreendem imediatamente a marcha rumo à capital: a Revolução triunfou.

Cabe ao historiador responder a uma questão: a batalha de Santa Clara foidecisiva7 Já ao biógrafo cabe outra: foi o génio l^ilitar do Che que permitiu otriunfo na capital de Lãs Vilias? ou se tratou de uma vitória tanto militar comopolítica, tanto do combate como da psicologia? Sem dúvida, Santa Clara, ao ladoda resistência na sierra à ofensiva de Batista em maio-junho de 1958, foi a únicabaralha campal digna desse nome em toda a campanha. Por sua data, localizaçãoe pelas forças em luta, foi o confronto mais significativo de toda a guerrarevolucionária. Sem ela, talvez Batista não tivesse rugido; e se o ditador tivessepermanecido em seu posto, talvez o exército não tivesse desmoronado como

desmoronou a partir do fim de dezembro, e a correlação de forças militares —embora extraordinariamente favorável aos rebeldes — teria se mantido por algumtempo. Sem a captura do trem blindado, a guarnição de Leoncio Vidal não serenderia, e sem o butim dos dois a coluna do Che não se transformariarepentinamente na mais poderosa de todas as unidades rebeldes. Sem Santa Clara

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talvez se verificasse essa assombrosa análise da CIA, a um mês do triunfocastrista: 

Castro não pôde convencer a maioria da população cubana de que vale apena lutar por sua pessoa e seu programa e não pêlos de Batista. Cubacontínua a desfrutar de relativa prosperidade económica e uma boa parte da

população, provavelmente temendo que a Revolução ponha em risco seubem-estar, parece esperar que aconteça uma transição pacifica doautoritarismo para um governo constitucional.41 

Mas também é certo que Santa Clara foi uma batalha em que morreram seisguerrilheiros, em uma guerra na qual o exército de Batista não perdeu mais detrezentos homens e, segundo um cálculo da revista Bohemia baseado nos mortosidentificados, dificilmente sucumbiram mais de quinhentos oposicionistas no total.E igualmente verídico que Raul Castro na sierra Cristal, Fidel Castro em Oriente eCamilo Cienfuegos junto com o Che no centro avançavam a passos largos rumo àdestruição do exército. Como Castro explicou ao Che um dia antes da batalha: "Aguerra está ganha, o inimigo desmorona estrepitosamente".42 Sem Santa Clara,

tudo teria se retardado, e as consequências da demora poderiam ter sido decisivasem muitos sentidos. Mas o epílogo teria sido necessariamente o mesmo.

Ademais, é preciso reconhecer — em parte contra a reescrita oficial dahistória — que nem o Che foi tudo na esfera militar nem a esfera militar foi tudona luta. Sem que ninguém possa questionar ou subestimar o sacrifício de milharesde cubanos para derrubar um regime corrupto e odioso, e sem menosprezar emnada o aporte militar na derrubada de Batista, todos os testemunhos concordamque a vitória de janeiro de 1959 não foi nem exclusiva nem principalmente militar.Sem dúvida o papel do Che nos últimos dias da guerra foi contundente. Suatêmpera, sua vontade indomável, sua clareza de objetivos e seu espírito desacrifício foram insubstituíveis em Santa Clara. Sem sua capacidade de comando,

sem a implacável centralização da tomada de decisões, caso os rebeldes nãocontassem com sua frieza e senso estratégico, uma vitória em condições tãoadversas se afiguraria impossível. Sua absoluta concentração nos imperativos daluta e seu desdém por qualquer distração sentimental se patenteiam nesta passagemde suas próprias recordações:

Eu admoestara um soldado por estar dormindo em pleno combate e ele mecontestou, dizendo que o tinham desarmado em virtude de um tiro que lheescapara. Respondi com minha secura habitual: "Conquiste outro fuzil indodesarmado à linha de frente [...] se é capaz". Em Santa Clara, quandoconsolava os feridos [...] um moribundo tocou-me a mão e disse: "Lembra,comandante? Você me mandou buscar a arma [...] e eu fui". Era o

combatente do tiro que escapou, que morreria minutos depois, e se fazianotar, contente por ter mostrado seu valor. Assim é o nosso exércitorebelde.43 

Faltaríamos, porém, com a verdade se não acrescentássemos ao balanço deSanta Clara os elementos adicionais que influíram na vitória, justamente para darseu valor a cada uma das contribuições de Guevara. O exército de Batista serecusava a sair dos quartéis, e quando se aventurava longe de seus muros nãoqueria combater. Seu moral estava por terra, sofria

pomba pousa em seu ombro, o caudilho pronuncia a célebre frase: "Estou bem,Camilo7", e o guerrilheiro responde: "Está bem, Fidel". 

O fato é que Camilo chega a Havana em 3 de janeiro, aclamado por uma

população transbordante, aduladora, festiva e em delírio, ao passo que o Che entrana capital nas primeiras horas da madrugada seguinte, discreto e solitário,acompanhado de Aleida e de seus colaboradores mais próximos. Em La Cabanatranscorrerão seus primeiros dias havaneses; ali se iniciará como governante epersonagem público. Entrou na capital como combateu:

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cansado, sujo, despenteado e quase em farrapos, porém com um olhar e um sorrisoque cativaram milhares — e em seguida milhões — de cubanos, lati-no-americanos e cidadãos do mundo, que identificarão a ambos com a Revolução cujotriunfo era tão seu como de qualquer outro.

Em 7 de janeiro o Che vai a Matanzas para receber Fidel, a caminho de

Havana; não se viam desde agosto do ano anterior. Entram juntos na capital,

encarapitados num tanque: uma multidão delirante e extasiada os recebe, e as fotosdo encontro de um povo com seus heróis percorrem não só as redações do mundointeiro, como também o coração dos simpatizantes desamparados desde alibertação de Paris e Dien Bien-Fu. Ninguém punha em dúvida a legitimidade daluta, nem a justiça da vitória. Tampouco se questiona o viço, a pureza espiritual, oespetacular carisma individual e cole-tivo dos imaculados barbudos vestidos deverde-oliva: sorridentes, ingénuos e talentosos, valentes e puro», triunfantes eprontos para tomar de assalto o céu e todos os palácios de inverno.

Em tais condições, seria preciso um milagre de maturidade e modéstia paraevitar dois mal-entendidos, políticos e conceituais, que logo imporiam umelevadíssimo custo a Cuba e a todo o continente. Como Fidel — aclamado por

centenas de milhares de cubanos embevecidos por sua oratória cativante, seusolhos e seu deslumbrante uso da gestualidade retórica — poderia não estarconvencido de que a vitória pertencia a ele, e só a ele? Como resistir à tentação docontraste entre sua audaz precocidade e o ranço medíocre da velha classe política,que continuava presente na pessoa de vários ministros do novo governo e dopróprio presidente Manuel Urrutia? Era inevitável o desvio para a reconstruçãoimaginária da épica: venceu a sierra, não a planí cie; o Vinte e Seis de Julho cuidoude tudo, sem aliados de maior monta; a direção, sábia e genialmente intuitiva, foi ofactótum da vitória; Fidel, o líder máximo, o comandante-em-chefe, foi o artíficede uma conquista de poder by the book. As consequências de tudo isso eramapenas perceptíveis naqueles dias efervescentes. Logo, porém, apenas uma semanaapós o desmoronamento da ditadura, começaria a romper-se o idílio ilhéu e oromance do mundo com Fidel e seus barbudos.

Conceitualmente, a visão retrospectiva da guerra teria sua expressão máxima nosescritos do Che, fecundados por seu talento e seus horizontes. Não lhe escaparia asua visão do mundo e da história, sintetizada nesta frase lapidar dirigida aoescritor argentino Ernesto Sabato: "A guerra nos transformou completamente. Não há experiência mais profunda para um revolucionário que a ação da guerra;não a ação isolada de matar, nem a de carregar um fuzil ou estabelecer umcombate de tal ou qual tipo, mas a ação da guerra no seu conjunto".47 Para o Che, a saga multidimensional, complexa e idiossincrática da sierra setransformaria em uma proeza magnífica mas simples, plana e passível dereprodução ao infinito desde que homens justos e valorosos assim o quisessem.Apenas Fidel, o Che, Raul e Camilo tinham autoridade moral para escrever ahistória oficial da guerra. Ao primeiro faltava tempo, paciência e ambição literária

ou teórica. Seu irmão aquilatou desde muito cedo as vastas virtudes do silêncio:seria por quase quarenta anos o homem das sombras. Camilo carecia de vocação,e também não teve tempo: morreu em novembro. Por eliminação, sobrava o Che,que além do mais tinha aptidão inata para a tarefa.Mas ele não poderia realizá-la senão com a bagagem intelectual e cultural quecarrega ao desembarcar, figuradamente, no cais de Havana. Não conhecia acapital; a única cidade cubana em seu firmamento era Santa Clara em ruínas. Avida política, intelectual e cultural havanesa, vibrante como poucas na AméricaLatina, era-lhe totalmente estranha. Não era de admirar que sua ênfase recaíssesobre os únicos aspectos da guerra e da vitória que ele viveu pessoalmente. Asideias militares e radicais tomariam o lugar de outros critérios na análise não só deCuba mas de toda a América Latina:

Demonstramos que um pequeno grupo de homens decididos e apoiados pelopovo e sem medo de morrer [...] pode se impor a um exército regular [...] Háoutra [lição] para nossos irmãos da América, situados economicamente namesma categoria agrária que nós: é preciso fazer revoluções agrárias, lutar

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nos campos, nas montanhas, e dali levar a revolução às cidades, nãopretendendo realizá-la nestas sem conteúdo social integral.48 

Até o fim de sua vida essa visão do Che permaneceria intacta, emborativesse sido refinada e ajustada por meio de diferentes matizes. Deve-se a ela areverberação guevarista ao longo do continente, e também seu fracasso. O Che

descreve de maneira insuficiente e em parte falsa o que ocorreu em Cuba; extra- pola indevidamente para outras regiões os supostos ensinamentos cubanos eignora o ponto central: o que se acontece uma vez raramente pode se repetir.

Essa interpretação se baseia em uma longa conversa do Che com Fran-qui, 

cinco anos depois, em 1964, na qual transparecem as diferenças de enfoque na

redação da história da guerra. Guevara privilegia a guerrilha e o campo, Franqui a

cidade e a política. O argentino enfatiza a maneira como o Diretório foi dizimado

nas cidades e a consequente liderança primordial da sierra; Franqui recorda o

impacto dos vários sacrifícios do Diretório. O Che se escuda no radicalismo e no

apego aos princípios da guerrilha; Franqui retruca com as provas de verticalidade

e firmeza da clandestinidade. Guevara, por fim, evoca a ação militar da guerrilhae sua influência na rendição do exército; Franqui contesta:

Eu sei, Che, que sem a luta e o apoio da clandestinidade em 57a guerrilhateria sido liquidada. Sem o apoio organizado dos camponeses do Vinte eSeis, não dos outros camponeses, o núcleo do Graniria não se reagruparia.Sem as armas enviadas de Santiago e Havana, como reconhecem suascrónicas de guerra, Che, sem nossas ações em toda a ilha, que paralisavam oaparato militar e repressivo da tirania, sem o reforço em homens, remédios,alimentos, sem a ajuda do exílio, a guerrilha sozinha não teria vencido.49 

Após a marcha vitoriosa do Che com Fidel em Havana, acontecimentos decisivos

se precipitam. Em 7 de janeiro o Che ocupa com Aleida uma das residências para

oficiais do exército em La Cabana: é sua primeira casa cómoda e decente desde a

partida de Buenos Aires. Célia mãe e filha, Ernesto pai eJuan Martín chegam a

Havana em 9 de janeiro, em um avião da Cubana de Aviacón que Camilo

Cienfuegos envia a Buenos Aires para repatriar os exilados da ilha residentes na

capital portenha. O Che os espera no aeroporto Rancho Boyeros e rapidamente os

conduz ao Havana Hilton (logo rebatiza-do Havana Libre). O reencontro da

família é feliz, obscurecido apenas pela tensão que vem da incerteza sobre o

futuro, revelada em respostas abstraias para as indagações paternas: "O que você

vai fazer ? Vai voltar à medicina ? Por que não volta à Argentina?". Duas

semanas depois chega a ex-esposa, com a filha dos dois. Hilda Gadea e Hildita 

viajam para Havana vindas de Lima, para conhecer a Revolução e sua nova pátria.

A situação se toma cada vez mais tensa para Ernesto: em meio à tormenta política

sobre suas tarefas, a presença dos pais com sua carga de ambivalência e

recordações, a aparição das duas Hildas e o caso com Aleida, era quase inevitável

um esgotamento físico. Ele chega junto com as eternas dúvidas introspectivas

sobre o seu destino.

Uma conversa com seu pai revela a persistência da personalidade errante doChe: "Eu mesmo não sei onde hei de deixar os ossos".50 António Nunez Jiménez, que entrou com ele em La Cabana, e em Santa Clara se encarregara da negociaçãocom os chefes do quartel Leoncio Vidal, recorda esse mesmo traço:

Ele me contou no dia em que chegamos a Havana, 3 de janeiro de 1959,entrando na fortaleza de La Cabana. Quando cruzamos o túnel de Havana,pois íamos no mesmo jipe, ele disse: "Minha missão, meu compromisso comFidel, termina aqui, na chegada a Havana, porque o acordo que fiz com Fidel

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foi de participar da luta guerrilheira em Cuba e depois ter liberdade de opçãopara ir a outro lugar e fazer o mesmo que tinha feito em Cuba .51 

Os pais permanecem na ilha até 14 de fevereiro, quando zarpam para BuenosAires em um navio de passageiros; Célia, a mãe, voltará em l2 de maio, sozinha.Mas ainda acompanham os acontecimentos de 2 de fevereiro, quando o Conselho

de Ministros expede um decreto genérico, mas dedicado ao Che, outorgando anacionalidade cubana por nascimento aos estrangeiros que combateram pelomenos por dois anos contra a ditadura derrubada. Evidentemente, os pais e irmãosdescobrem as mudanças na fisionomia e sobretudo na psicologia do filho pródigo.Já é um homem maduro, de quase 31 anos, com uma filha, duas esposas e umemprego. Pode-se ler no seu rosto a intensidade e o desgaste dos últimos dois anose meio. Em meados de janeiro, segundo alguns, semanas depois conforme outrasfontes, uma violenta crise de asma o condena a ausentar-se de Havana por váriosmeses; fica em uma cidadezinha de veraneio, chamada Tarará, vizinha à capital.Antes, porém, supervisiona, diretamente ou de sua janela em La Cabana, ofuzilamento dos colaboradores de Batista: são execuções justas, mas desprovidas

do respeito que impõe um processo. As estimativas variam sobre o número exato e total de justiçamentos, em particular os de La Cabana durante os primeiros diasdo ano. Telegramas da embaixada dos Estados Unidos, datados de 13 e 14 de

 janeiro, apresentam a cifra de duzen-tas execuções.* Historiadores e biógrafosexibem cálculos que vão desde as

(*)Smith(Habana) to SecretaryofState(Dept.of State), 14/1/59 (secreto), e Foreign Service Despatch, EarI Smith/Embassy to Dept. ofState, 13/1/59 (secreto), Despatch 725. No telegrama datado de 29 dedezembro de 1959, a estimativa da embaixada aumentou para "mais de quinhentos".Braddock/Amembassy to Dept. of  State, Subject: indications and manifestations ofCommunism andanti-Americanism in Cuban revolutionary regime, 29/12/59 (copyLBjLibrary). mesmas duzentas até setecentas vítimas do paredón.* Fidel Castro, anos depois,disse a propósito do número dos fuzilados em 1959 e 1960 que chegou a 550.

Alguns casos tiveram lugar fora de Havana: mais de cem prisioneiros foramassassinados por Raul Castro em Santiago, em princípios de janeiro.** E conhecida a data em que a maioria das execuções ultrapassou o âmbito de

responsabilidade do Che. Em meados de janeiro, em parte por causa da onda de

protestos da imprensa e do Senado dos Estados Unidos Castro decide realizar

 julgamentos públicos no estádio desportivo de Havana. Tais tribunais adquiriram

notoriedade com o processo, realizado em meados de janeiro, contra o major Jesus

Sosa Blanco, um partidário de Batista particularmente sanguinário de Oriente, e os

coronéis Grau e More-jón. Embora essa decisão tenha sido desastrosa do ponto de

vista da imagem do regime, eximiu o Che de qualquer autoridade sobre a vida ou

morte dos presos de La Cabana. Esse poder se traduzira em dezenas de execuções,

consumadas por outro "internacionalista", o norte-americano Herman Marks, um

ex-condenado de Milwaukee que se unira a Guevara no Escambray.52 

Existem várias interpretações sobre o papel do Che nos fuzilamentos de La

Cabana. Alguns biógrafos que pertencem à oposição anticastrista no exílio acusam

o argentino de apreciar as cerimónias fúnebres e realizá-las com deleite, mesmo

reconhecendo que as ordens vinham de Fidel Castro. Outros relatam que Guevara

sofria com cada justiçamento e perdoou a quantos pôde, embora não vacilando em

acatar as instruções quando estava convencido delas. José Castano Quevedo, o

chefe da repressão anticomu-nista de Batista, cujo indulto foi pedido pela Igreja eoutros setores da sociedade cubana, mesmo assim foi fuzilado sem delongas pelo

Che. Huber Matos, banido do exército rebelde em novembro de 1959, acusado de

traição por Fidel Castro e sentenciado a vinte anos de prisão, recorda como

Guevara "[...] se comunicou com familiares meus para dizer-lhes que não

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(*) Essa cifra é citada, entre outros, pelo padre Inaki de Aspiazú, um sacerdote católico bascoque investigou o tema em profundidade e com simpatia pelo regime revolucionário.(Ver Aspiazú, Justicia Revolucionaria, cit. em Leo Huberman, Anatomy ofa r é' voluúon, Nova York, Monthly Review Press, 1969.) 

(**) Daniel James afirma que Guevara contou a Féiix Rodríguez, em La Higuera, Bolívia, queele próprio, Che, mandara fuzilar 1500 inimigos da Revolução. (Ver Daniel James, Che Guevara, Nova York, Stein and Day, 1969, p. 113). Mas Rodríguez não menciona tal fato em suas memórias

nem em seu informe à CIA ou em uma entrevista concedida ao autor eml955emMiami. concordava que me aplicassem a pena de morte e acreditava inclusive que Fideltinha conduzido erroneamente o meu caso. E sugeriu que, imediatamente depoisde concluído o julgamento, interpuséssemos uma apelação".* A responsabilidade guevarista pêlos atos de La Cabana — embora intransferível,pois em nenhum momento o Che se esquiva dela — deve ser vista no contexto dasituação naquele momento. Nem se tratou de um banho de sangue nem seexterminaram pessoas inocentes em número mesmo minimamente significativo.Depois dos excessos de Batista, e em vista da exacerbação das paixões em Cubanesses meses do inverno, é até surpreendente que a quantidade de execuções eabusos tenha sido tão pequena.Também é certo, contudo, que o Che não tinha maiores dúvidas existenciais

sobre o recurso à pena de morte, ou a julgamentos sumários e cole-tivos. Estava

disposto a dar a vida por seus ideais, e julgava que os demais deviam fa zer o

mesmo. Se a única maneira de proteger a Revolução era fuzilando delatores,

inimigos e conspiradores, nenhum argumento humanitário ou político poderia

dissuadi-lo. Desprezou as críticas — indubitavelmente hipócritas — vindas de

Nova York e Washington, alegando o imperativo superior da defesa da

Revolução. Nunca permitiu nem o vislumbre de uma reserva sobre o vínculo

entre meios e fins, precedentes e ação futura, antecedentes históricos e

consequências nefastas.

Como vimos, pouco depois de instalar-se em La Cabana, atormentado pêlosmúltiplos dramas de sua existência, ele é derrubado por uma crise asmática que

na realidade supera a gravidade ordinária de sua enfermidade. Os deflagradores

da doença podem ter sido os de sempre: a angústia provocada pela ambivalência

imperante, pessoal, afetiva e, agora, política. Com efeito, ele pertence ao grupo

vitorioso, mas foi posto à margem do sítio preciso que lhe corresponderia e é

objeto de uma série de comentários inquie-tantes vindos de Fidel Castro. Ou pode

se tratar de um simples esgotamento geral. Ele padece de um princípio de

enfisema,** assim como de fadiga, fraqueza, anemia e estresse.

Um conjunto de circunstâncias fortuitas fez da estância de veraneio de Tarará o

centro das atividades políticas e ideológicas do Che em fevereiro- 

(*) Huber Matos, entrevista com jornalistas ingleses (transcrição), Londres, out. 1995. SegundoCarlos Franqui, "em um dado momento, Raul e o Che pediam o fuzilamento de Matos e dos demaisacusados, mas depois o Che mudou de ideia, quando viu o valor dessas pessoas, conversando comFidel" (Carlos Franqui, entrevista, op. cit.). 

(**) O informe radiológico do serviço médico das forças armadas diz: "enfisema pulmonarduplo e difuso". (Ver Cupull y Gonzáiez, ün hombre bravo, op. cit., p. 392.) 

Em abril de 1959, um grupo de cem cubanos e exilados panamenhosdesembarcou no Panamá. O governo revolucionário negou qualquerresponsabilidade, mas Raul Castro fez uma viagem relâmpago a Houston paraencontrar Fidel durante sua turnê para os Estados Unidos e a América Latina,prestar-lhe contas da questão e ser novamente repreendido pelo irmão. Em junho

ocorre a invasão da República Dominicana, liderada por Delio Gómez Ochoa, umoficial do exército rebelde e ex-combatente da sierra Maestra. Os dez cubanos eduzentos compatriotas de Trujillo foram massacrados horas depois dedesembarcar.

A expedição à República Dominicana estava conectada a outra, análoga e

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simultânea, no Haiti. Já nos primeiros dias de janeiro um poeta haitiano, René Depestre, aterrissou em Havana vindo de Porto Príncipe. Um dia depois de suachegada, Che o recebeu em La Cabana, onde conversaram longamente sobrepoesia, Jacques Roumain e os Donos do orvalho, Haiti e América Latina. Logo oChe se convenceu da necessidade de derrubar Duvalier, o recém-instalado ditadorda metade francófona da ilha de His-paniola, que cometera, entre outras vilanias,

a de ser aliado de Batista. O poeta imediatamente promoveu um encontro entreGuevara e Louis Desjoie, um idoso senador haitiano de centro-direita, quedisputara com Papa Doe as eleições de meados da década. Formaliza-se umacordo entre os haitianos e o Che, visando organizar e treinar durante os meses deabril e maio em torno de cinquenta haitianos, brancos e negros. Eles recebeminstrução militar na província de Oriente. Segundo Depestre, o Che os visitavacom frequência — uma vez por semana — e era o verdadeiro supervisor daoperação. Da invasão do Haiti, que devia ocorrer dias após a da RepúblicaDominicana, embora se previsse antes uma ação de assalto que uma guerrilhaprolongada, participaram meia centena de haitianos e trinta voluntários cubanos,alguns deles ex-combatentes da sierra Maestra. Com o fracasso dominicano, aoperação foi cancelada, embora Desjoie já tivesse começado a titubear em virtudeda radicalização do processo cubano.* 

grupos com direções comunistas e se opõe aos demais". (Department ofDefense, "Working paper forCastro visit: summary 01 the present status of  the Cuban armed forces, 15/4/59" (secreto). National Archives, RO 59, Lot. file 61D248, Reg. Affairs 1951/1962, Box 16 orl8, College Park, Maryland). 

(*) Essa versão provém do próprio René Depestre que, para além da licença poética própria deum [...] poeta, parece ser uma fonte digna de confiança (Entrevista com o autor, Princeton, 27/10/96). Finalmente, em l2 de junho, aviões procedentes da Costa Rica desembarcaramnumerosos "internacionalistas" na Nicarágua, onde ocorreram vários choques, atéque os guerrilheiros foram expulsos para Honduras. Ali a tropa hondurenha oscapturou, encontrando em sua posse uma carta de Che Guevara às autoridadescubanas, pedindo-lhes que ajudassem os nicaragüenses antes de partir de Cuba.16 Trinta anos depois, Tomás Borge, o dirigente sandinista, recordaria a débâcle de

24 de junho de 1959 em território hondurenho, quando um dos guerrilheirosnicaragüenses "tombou disparando uma submetralhadora M-3. Ele a adotara desde que chegaram os dois aviões de Cuba com o carregamento de armasenviado por Che Guevara, o que foi possível graças à cumplicidade do presidente[de Honduras] Ramón Villeda Morales, admirador do Che".* As reuniões de Tarará e Cojimar terão maior impacto no que diz respeito àreforma agrária, o ponto mais sensível da política económica e da relação com osEstados Unidos. Como António Nunez Jiménez recordaria vinte anos depois,"durante dois meses realizamos reuniões noturnas em Tarará, onde o Cherecupera sua saúde [...] O trabalho é secreto".57 Também na praia se cristalizará opapel do Che em duas outras questões de primeira importância: a formação

ideológica do novo exército e a aliança com os comunistas. A convergência dostrês temas no espaço e com as pessoas envolvidas tem confundido muitosobservadores desde então.A radicalização do regime a partir dos primeiros meses de 1959, e sobretudodepois de maio, não se devem a uma influência maior dos Comunistas commaiúscula, cuja aproximação foi um efeito e não uma causa da inclinação para osextremos. Dois personagens conformam e impulsionam a ala esquerda, aorientação comunista genérica e com minúscula: Raul Castro e Che Guevara, masem especial o segundo. Fidel Castro obviamente dirige o processo, toma asdecisões, animado por seus próprios motivos, mas, como todo político deinspiração genial, é sensível a pressões, influências, opiniões e argumentaçõesdaqueles em quem confia. No terreno da formação do exército, no da distribuiçãodas terras e em menor medida no que toca aos comunistas, é em Che Guevara quetem mais fé.A primeira posição radical de Guevara a propósito da reforma agrária surge naconferência que realiza em 27 de janeiro perante a Sociedade Nosso Tempo. Essa

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conferência tem sido frequentemente destacada por seu con- 

(*) Tomás Borge, La paciente impaciência, Manágua, Editorial Vanguardia, 1989, p. 149.Borge também menciona que o Che "nos deu 20 mil dólares que [...] foram usados na guerrilha de RioCoco e Bocay" (ibidem, p. 167). teúdo e pelo contraste entre as teses ali defendidas, assim como pelas posturas

públicas de Castro e do governo no momento." Porém, sua transcendência é narealidade maior do que supuseram analistas como Theodore Draper, que nadasabiam sobre as reuniões de Tarará. Naquele mesmo período, começaram areunir-se, entre outros, Alfredo Guevara, jovem cineasta comunista, amigo íntimode Fidel Castro desde que frequentavam a universidade; Oscar Pino Santos,

 jornalista de economia próximo do partido;António NunezJiménez, o geógrafo que se uniu ao Che em Lãs Vilias, tambémidentificado com a doutrina marxista no estilo do PSP; Vilma Espin esposa deRaul Castro, e o Che. Trabalham vários meses, à margem de outras instituições dogoverno, inclusive o ministro da Agricultura, Humberto Sorí Marín, autor da leianterior, lançada da sierra Maestra em novembro de 1958. Alfredo Guevara

recorda o trabalho do grupo: "Reuníamo-nos toda noite, até de madrugada, nacasa do Che; depois vinha Fidel e mudava tudo. Ninguém sabia em que péestávamos".59 Na conferência de 27 de janeiro, e em uma entrevista posterior com dois

 jornalistas chineses, publicada anos depois, o Che é muito explícito sobre ocaráter insuficiente da reforma anterior. E indica em que direção deve orientar-seo novo e definitivo esforço de distribuição da terra: transformar os latifúndios emcooperativas. A entrevista com os chineses é significativa, pois embora a concedaem 16 de abril, um mês antes da promulgação da nova Lei de Reforma Agrária, oChe afirma categoricamente que ela acontecerá; revela seu conteúdo e asprincipais disposições, com detalhes e sem falhas.60 Ele já sabia perfeitamente

como seria; seu conhecimento vinha de sua própria participação. A lei se delineouem sua casa sob seus auspícios. O propósito da lei não era distribuir pequenoslotes entre os camponeses, mas estatizar ou transformar em cooperativas asgrandes plantações de açúcar, café, tabaco e outros produtos.O objetivo guevarista é mais político que económico: destruir o latifúndioenquanto fonte de poder da oligarquia e dos senhores de terras estrangeiros, maisque redistribuir riqueza por meio da fragmentação da terra atomizada em milharesde pequenos lotes. O Che deduz que uma reforma dessa índole provocará umsevero confronto, tanto com os proprietários cubanos, principalmente os deplantações de cana-de-açúcar, como com os norte-americanos. Guevara tambémtrata o melindroso dilema da inde-nização: compreende que sob o esquema de

compensação estabelecido na Constituição de 1940 e na lei da sierra, adesapropriação de terras será lenta e tediosa. Por fim, entende que a criação de umhipotético instrumento deaplicação da reforma agrária, o futuro Instituto Nacional da Reforma Agrária(iNRA), pode se converter em poderosa alavanca de radicalização revolucionária.Poderá funcionar como uma espécie de governo paralelo institucionalizado, comordem do dia, ritmos e recursos próprios.

O problema económico é real. A economia cubana dificilmente progredirásomente à base de açúcar. Em 1925, a safra superara 5 milhões de toneladas; em1955, fora ligeiramente superior a 4 milhões. Porém, a população aumentou 70% esuas exigências se multiplicaram em escala muito maior. Daí serem a

diversificação e a industrialização as palavras da moda, não só entrerevolucionários e marxistas, mas também no seio da comunidade tecnocrática eempresarial. Contudo, se as exportações representavam quase 40% da rendanacional, e 80% delas correspondiam ao açúcar, não haveria oportunidade paradiversificar, industrializar ou mesmo obter crescimento sem afetar a estrutura

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agrícola do país.* A cana permitia lucros elevados a curto prazo, com um mercadoseguro e preços atraentes; enquanto o capital estrangeiro e cubano se concentrassenela, e enquanto esse setor empresarial dominasse a política e a economia da ilha,não haveria futuro. Quebrar o poder da oligarquia, desconcentrar a economia eelevar a renda dos camponeses pobres, eis o teor verdadeiro da agenda do Che.

Para tanto, era fundamental expropriar os latifúndios, coletivizar a propriedade daterra e diversificar os cultivos e as exportações. O Che é claro:

Quando propusemos uma reforma agrária e promulgamos leis revolucionáriaspara alcançar rapidamente essa meta, consideramos em especial a redis-tribuição da terra, a criação de um grande mercado interno e de uma econo-mia diversificada. Por enquanto, o propósito da reforma agrária é promover aprodução de açúcar e melhorar as técnicas de produção. Em segundo lugar,devemos permitir ao cultivador que tem sua própria gleba a abertura de terrasvirgens e o cultivo de toda terra cultivável. Em terceiro lugar, devemosaumentar a produção e reduzir as importações de grãos básicos [...] devemosperseguir a industrialização nacional [...] que requer a adoção de medidas de

(*) O informe de uma missão do Banco Mundial que visitou a ilha em 1950 não diverge dessediagnóstico e dos remédios propostos: "Deve-se perseguir os seguintes objetivos: l) tomar Cuba menosdependente do açúcar, promovendo outras atividades, sem reduzir a produção açucareira; 2) expandiras indústrias existentes e criar outras novas, que processem produtos derivados do açúcar ou usem oaçúcar como matéria-prima; 3) promover energicamente exportações não açucareiras para reduzir aênfase no produto único; 4) avançar na produção para o consumo interno cubano de alimentos,matérias-primas e bens de consumo hoje importados" (Banco Mundial, "Informe sobre Cuba", cif . emHuberman,  Anatomy, op.cit.,p. 108). 

proteção às novas indústrias e um mercado de consumidores para os novosprodutos. Se não abrirmos as portas do mercado para os guajiros sem poderde compra, não haverá como expandir o mercado interno.61 

O Che tinha plena consciência das implicações de suas teses e do rumo que

efetivamente traçavam. Inseria-as em uma estratégia de longo prazo, límpida aseus olhos e em harmonia com futuros processos revolucionários em outros países."O regime antipopular de Cuba e seu exército foram destruídos, mas o sistemasocial ditatorial e seus fundamentos económicos ainda não foram abolidos. Parteda mesma gente de antes continua trabalhando nas estruturas nacionais. Paraproteger os frutos da vitória revolucionária e permitir o desenvolvimento contínuoda Revolução, devemos dar outro passo adiante".62 A reforma agrária foi promulgada em 17 de maio de 1959, dias após o retorno deFidel Castro de uma viagem proveitosa aos Estados Unidos, Brasil, Uruguai eArgentina. Embora se revista de um tom moderado, seus efeitos não o serão tantoassim. Por certo permitia a subsistência de grandes plantações de cana-de-açúcar e

arroz, previa o pagamento relativamente acelerado das indenizações, com taxas de juros compensadoras, e as cooperativas se diferenciavam notoriamente doskolkhozes soviéticos. Porém, os Estados Unidos atacaram com rigor as medidasem uma nota diplomática de 11 de junho; a cotação das companhias açucare irasna Bolsa de Nova York baixou, e as atingidas pêlos confiscos — a United Fruit Company e a King Ranch Company, para mencionar algumas — imediatamenteiniciaram a preparação de represálias. Os pecuaristas de Camagüey, tambématingidos, lançaram-se a todo tipo de conspirações; durante anos a região será umreduto contra-revolucionário. Em consequência da tempestade deflagrada pela Lei de Reforma Agrária, opresidente Manuel Urrutia se demite em 13 de julho, depois de uma astuciosa e

transitória renúncia de Fidel Castro ao posto de primeiro-ministro. Abre-se assim aporta para expulsar muitos dos liberais do governo e selar uma aliança bem maisestreita com os comunistas. O detonador da crise era a intenção do Che de levar acabo uma reforma agrária de fundo, sua decisão e sua capacidade de impulsioná-lanas reuniões de Tarará, e mais tarde, de Cojimar. A criação do INRA, conforme

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seus planos, completava o processo. O INRA passa a responder pela saúde,habitação e educação no campo; pode criar centros de fornecimento de máquinas eserviços agrícolas, e se encarrega do processo de industrialização do campo.Transforma-se, assim, justamente no tipo de "órgão revolucionário" que o Che pretendia.* O primeiro diretor do INRA, sob a presidência formal de Fidel Castro,

será nada menos que NunezJiménez, o autor da lei e íntimo colaborador doargentino desde Santa Clara, e o primeiro administrador do Departamento deIndústrias do INRA, um virtual Ministério da Indústria, será precisamente CheGuevara. Desde antes de convalescer em Tarará e durante todo o período que se encerraem julho com sua viagem ao redor do mundo, Guevara desempenhará outropapel central no curso da Revolução: a formação do exército, em particular suapreparação ideológica. Ele promove uma série de projetos de instrução eeducação da tropa na fortaleza de La Cabana. A ideia dos dirigentes a respeitonão permitia maiores vacilações: segundo Raul Castro, "o exército rebelde é umexército político cujo objetivo é defender os interesses do povo".6' O Che formula

a meta com maior precisão e franqueza:"Temos que marchar rapidamente para a reestruturação do exército rebelde, poisaté agora improvisamos um corpo armado de camponeses e operários, muitosdeles analfabetos, incultos e sem preparo técnico. Temos de capacitar esseexército para as elevadas tarefas que seus membros precisam conduzir, capacitá-los técnica e culturalmente. O exército rebelde é a vanguarda do povo cubano".64 

As novas forças armadas serão o principal pilar do regime revolucionário,desde esses meses até o final do século. Isso se deverá em parte à missão que oChe lhe confia e à maneira como ele lhe inculca uma ideologia e uma motivaçãodeterminadas. Em pouco tempo o Che inaugura vários cursos rápidos para aformação de oficiais e da tropa. Seguindo os passos das Escolas de Instrutores deTropas do Segundo Front de Raul Castro (unidades em mãos de membros doPSP), instalam-se em La Cabana as entidades precursoras das futuras Escolas de

Instrução Revolucionária (EIR). Os colaboradores comunistas do Che na sierra ou na "invasão" — Armando Acosta, Pablo Ribalta — e outros, como o hispano-soviético Angel Ciutah, formam o núcleo de instrutores. Ligar a formaçãoideológica do exército à presença dos comunistas em La Cabana não era umabsurdo. As divergências entre o Che e o PSP eram sobretudo táticas; o argentinoera, então, um marxista- 

(*) "O INRA, presidido por Fidel, foi o bastião a partir do qual se realizou a Revolução naquelesprimeiros meses; foi o organismo que deu a estocada profunda na burguesia e no imperialismo. Nãoera tático mudar de um só golpe o Conselho de Ministros. Nosso povo ainda não estava preparadoideologicamente para uma batalha aberta entre a Revolução e a Contra-Revolução emboscada dentrodo próprio governo. Fidel duplicou no INRA as funções mais importantes do governo revolucionário"(Nunez Jiménez, En marcha, op. cit., p. 309). leninista ortodoxo. Muitos de seus melhores quadros pertenciam ao PSP, e ele

não dispunha de recursos humanos ilimitados para iniciar o treinamento doexército. Era preciso trabalhar depressa e lançar mão dos homens disponíveis.Convicções e conveniências voltavam a se fundir na ação do Che; ele recorreu aoPSP porque concordava com os comunistas no essencial e porque carecia dealternativas para uma tarefa que devia ser cumprida rapidamente.Logo começa a correr o boato de que La Cabana punha em marcha um processode formação ideológica radical. Um primeiro indício de que algo importantesucedia na fortaleza aparece em uma nota da embaixada norte-americana, datadade 20 de março, avisando que "a embaixada tem recebido informes cada vez maisfrequentes nas últimas semanas sobre a penetração comunista em La Cabana. Osinformes se referem ao pessoal que o comandante Ernesto Che Guevara 

incorporou à orientação dos cursos de educação e ao funcionamento dos tribunaisrevolucionários. Foi difícil, porém, obter provas concretas e precisas dainfiltração comunista em La Cabana".65 Logo depois o telegrama faz referência a uma série de exposições de arte, sessões

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de bale e recitais de poesia organizados pelo Departamento ou Diretoria deCultura em La Cabana.* Outro relatório, de classificação secreta e redigido peloDepartamento de Defesa praticamente na mesma data, menciona a criação deuma entidade renovadora nas forças armadas. Com a designação de G-6 e o títulode Diretoria da Cultura, surge uma unidade cujo propósito ostensivo é a

alfabetização dos recrutas iletrados mas que oferece também instrução marxista.O informe conclui que "a penetração comunista foi particularmente eficaz naregião de Havana graças à posição do comandante Ernesto Che Guevara, onúmero 3 em Cuba e um esquerdista, caso não seja comunista".66 Passemos ao terceiro aspecto básico da atividade do Che durante esses meses.Em princípios de janeiro, Fidel Castro inicia um esforço de aproximação ealiança com o Partido Socialista Popular. O ponto de partida são as

(*) Em um telegrama de 14 de abril de 1959, a embaixada dos Estados Unidos confirmava que"boa parte do esforço comunista em Cuba se dirige à infiltração nas forças armadas. La Cabanaparece ser o principal bastião comunista e seu comandante, Che Guevara, é a principal figura, cujonome aparece vinculado ao comunismo. Sob seu comando, estabeleceram-se cursos de doutrinamento político da tropa em La Cabana. Os materiais empregados nesses cursos, alguns dos quais a

embaixada examinou, seguem a linha comunista". Foreign Service Despatch, Braddock/Emhassy toDept. ofState, 14/4/59, Growth ofcommunism in Cuba (secreto), Foreign Relations ofthe United States, 1958-1960, Department ofState, Central Files, LB] Library). convergências que se deram na sierra Maestra a partir da estada de Carlos RafaelRodríguez, da incorporação de quadros do PSP ao Segundo Front de Raul Castroe à coluna do Che, e em consequência da criação, em outubro de 1958, da FrenteObrero Nacional Unificado (FONü), que reuniria sindicalistas do PSP e do Vintee Seis de Julho. O empenho não carecerá de contradições, atritos — abundarão aspolémicas entre Hoy, o órgão reeditado do PSP, e o Revolución, diário do Vinte eSeis de Julho — e segredo. Segundo o relato de Fábio Grobart a Tad Szulc em1985, os dirigentes máximos da sierra e do PSP começaram a se reunirsigilosamente na casa de Fidel em Coj imar desde janeiro. A casa foi emprestadaa Castro por um senador ortodoxo, Agustín Cruz. Fidel se fazia acompanhar doChe, de Camilo e Osmany Cien-fuegos (o irmão do líder guerrilheiro da sierra,membro do PSP, que permaneceu no México durante a guerra), Ramiro Vaidés e,às vezes, Raul Castro. Pelo partido figuravam Carlos Rafael Rodríguez, osecretário-geral Blas Roca e Aníbal Escalante, membro do Birô Político. Deacordo com Roca:"Começamos a nos reunir quando Fidel, o Che e Camilo chegaram a Havana. Nãoinformamos os militantes, apenas um grupo de dirigentes. O êxito dasnegociações implicava impedir que os norte-americanos tivessem um pretextopara intervir, como haviam feito na Guatemala, e tivemos de manter segredo".67 

Os problemas surgiram prematuramente, com as eleições sindicais de fins

de janeiro. Com a desintegração da velha direção oficialista da Confederação dosTrabalhadores de Cuba, tanto os sindicalistas do PSP como os do Vinte e Seis deJulho trataram de manobrar para assumir o controle da antiga central. Os últimosvenceram, marginalizando os comunistas em uma política de exigências salariaismaximalistas visando recuperar sua velha hegemonia no seio do movimentooperário. A polémica foi pública — ocupou páginas inteiras do  Hoy e do

 Revolución ao longo do verão — e durou o ano inteiro, até que em novembro oPSP foi varrido nas eleições do Congresso da CTC. Só a intervenção de FidelCastro evitou a recuperação completa do sindicalismo cubano. Porém, as brigas erivalidades entre militantes sindicais — e outros — do Vinte e Seis de Julho e doPSP não devem obscurecer o fato fundamental, a unidade que aos poucos foi seformando entre as duas direções. A personalidade do Che ocupou um lugarprivilegiado nesse processo.

A explicação de fundo para sua ingerência na construção da aliança com oscomunistas não reside em alguma simpatia pessoal por eles, embora Guevaracontasse com mais colaboradores do PSP que qualquer outro diri- gente, exceto Raul Castro. O ponto de apoio da convergência eram as posições doChe sobre um leque de temas que o aproximavam naturalmente dos comunistas.

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Na verdade, o comunista do Vinte e Seis de Julho era ele tanto como Ra ul Castro,e, como recorda Carlos Franqui, "Raul era em determinado momento maisdiscreto que o Che".6" A força e a presença dos chefes e militantes do PSP sedeviam em boa parte à sua concordância com o argentino, e não o inverso.Amoldo Martínez Verdugo, ex-secretário-geral do Partido Comunista Mexicano,

que passou vários meses daquele ano de 1959 em Havana, recorda como o Cheprotegia o PSP. Em um escritório do partido onde vários mexicanos aguardavamseu retorno à pátria, certo dia bateram à porta; era um homem com uma ordemassinada pelo Che exigindo a desocupação imediata do local, pois ele forarequisitado pela Comissão de Recuperação de Bens, que Guevara dirigia. Oquadro do PSP que recebeu o aviso disse ao mensageiro: "Sente-se, pelo vistovocê não sabe onde está;nós somos um partido revolucionário que participou da vitória de 1 a de janeiro". Pegou o telefone, falou com o Che, e não os despejaram.69 Para além da reformaagrária e da formação ideológica do novo exército, o Che ia gradualmenteassumindo as posições clássicas do marxismo na América Latina. Se mais adiante

rompe com essas posturas, com os comunistas cubanos e seus padrinhossoviéticos, isso não impede que compartilhe estritamente seus enfoques durantequase quatro anos.

Em várias intervenções públicas ao longo desses meses o Che ao mesmotempo se diferenciou, formalmente, do PSP e se definiu com clareza como a alaesquerda do movimento. Nos primeiros dias de janeiro reinava ainda certaconfusão nos círculos oficiais norte-americanos sobre a essência ideológica deChe Guevara.* Em abril, particularmente depois de uma longa entrevistaconcedida no dia 28 ao programa Telemundo pergunta, suas opiniões tinhaminteressado notoriamente setores importantes da socie- 

(*) Em uma reunião do subsecretário de Estado, Roy Rubottom, com o embaixador da

Argentina em Washington, em 6 de janeiro, o alto f uncionário norte-americano foi informado de que"o embaixador disse que tinha conversado durante duas horas com o general Montero, que é amigo dopai de Guevara. O embaixador disse que perguntou ao general sua opinião sobre o jovem Guevara. Ogeneral respondeu que os Guevara eram uma velha e conservadora família de San Juan [sic] e que ossentimentos do rapaz eram completamente democráticos e nada comunistas. Ele lutara contra Perón elogo se fora para o Peru, onde se casou com uma moça peruana. O embaixador disse que comentavaisso com o secretário Rubottom porque sabia que alguns viam em Guevara tendências comunistas"(Department ofState, "Mernorandum ofconversation between Roy Rubottom and Argentine ambassador Barros Hurtado" (secreto), 6/1/59). dade havanesa e da embaixada dos Estados Unidos. A embaixada, embora semtirar todas as conclusões decorrentes, compreendeu que:

Ernesto Che Guevara, o chefe de La Cabana, se não é formalmente um comunista, está tãoidentificado com a doutrina comunista que não se diferencia dos comunistas [...] Por suaorientação política, sua popularidade e o controle que exercem sobre as forças armadas, Che

Guevara e Raul Castro representam o mais importante perigo de infiltração comunista dentro dogoverno atual. Não se conhece a medida de sua influência sobre Fidel Castro, mas provavel-mente ela é considerável. Pode sobretudo constituir um elemento significativo da resistência deCastro a alinhar-se claramente com o mundo livre no conflito Leste/Oeste.70 

No citado programa de televisão, o Che exibiu talento diplomático eretórico para responder a uma série de questões a respeito de suas inclinaçõesideológicas e seus pontos de vista sobre a União Soviética, o PSP, a reformaagrária, a participação cubana em uma revolta no Panamá etc. Mas apesar de suahabilidade ficou evidente, para quem assistiu à entrevista, que ele não só estavapróximo das posições comunistas como defendia em princípio e na prática umaaliança com o PSP. O argentino deve ter se manifestado de forma semelhanteem diversas reuniões privadas; não costumava usar uma dupla linguagem.

Assim o confirma o relatório que um fumicultor cubano apresentou à embaixadanorte-americana em maio de 1959.* 

O dr. Napoleón Padilia foi um dos participantes do Fórum do Tabaco, umgrupo criado pelo governo revolucionário para melhorar as condições e aprodução na indústria. O representante do governo era o Che, por isso Pa-dilia 

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pôde observá-lo de perto e ouvi-lo com atenção ao longo de várias semanas, atal ponto que, segundo seu relato, o Che ofereceu-lhe a gerência da fábricaestatal de cigarros que pretendia fundar. Segundo seu relato, Guevara eraviolentamente antiamericano, opondo-se à venda de produtos estadunidenses,inclusive os fabricados em Cuba, como a Coca-Cola, os ténis marca Keds ou oscigarros norte-americanos; não desejava a presença de capital dos Estados

Unidos em Cuba, nem boas relações com Washington.

(*) A veracidade do relato é corroborada pelo comentário final do Che sobre as causas que, noseu entender, motivaram a queda de Arbenz na Guatemala, um tema da moda em Cuba naqueles dias.Segundo o informante da embaixada, o Che considerava que a liberdade de imprensa fora um dosfatores da derrota de 1954, que ela deveria ter sido limitada e que era imprescindível evitar que omesmo acontecesse em Cuba. Graças às recordações de Rolando Morán sobre suas conversas com oChe na embaixada argentina na Guatemala, sabemos que o jovem Guevara com efeito pensava assim. Descrevia o exército rebelde como o "defensor do proletariado" e o "principalbraço político da revolução do povo". Padilia também assevera que, segundo oChe, o novo exército constituiria uma das principais fontes de"doutrinamento"do povo cubano e participaria de obras úteis, mas estaria semprepronto a defender a Revolução, que inevitavelmente seria atacada pêlos Estados

Unidos, já que contrariava seus interesses fundamentais.71 O relato de Padilia contém exageros — menciona que o Che "falou comfrequência sobre a maneira como controla Fidel Castro" — e deduções próprias— "Guevara e Raul Castro querem criar um sistema soviético em Cuba" —, masoferece uma versão que parece plausível. O Che com efeito pensava assim eexpressava sem rodeios seus sentimentos. Esse tipo de comentário ocorria nomesmo momento em que Fidel Castro percorria a costa oeste dos EstadosUnidos, tratando de convencer a opinião pública e o establishment norte-americanos de suas "boas intenções" quanto a uma série de assuntos delicados —a reforma agrária, o comunismo etc.* Essa visível incongruência pode ter sido produto de vários fatores. E possível

que Fidel Castro, graças ao seu extraordinário talento teatral, tenha buscado fazerboa figura perante seus anfitriões estadunidenses, intuindo exatamente o quequeriam escutar, para ganhar tempo no inelutável enfrentamento comWashington. Castro mostrou, ao longo de quase quatro décadas no poder, que éplenamente capaz de sustentar sem maiores problemas dois ou mais discursoscontraditórios e simultâneos. Dessa perspectiva, Castro dizia uma coisa do outrolado do estreito da Flórida, o Che e Raul diziam outra na ilha, e caso alguémapontasse a incompatibilidade entre os

(*) Segundo a opinião do Departamento de Estado, o Fidel Castro que veio a Washington foi umhomem mais comportado, que seguiu o conselho dos ministros que o acompanhavam e aceitou aorientação de um especialista em relações públicas com os norte-americanos. O resultado logrado por

Castro, em termos de recepção favorável do público e da mídia, pode ser considerado como tramado.Ao mesmo tempo, não se deve subestimar o efeito causado em Castro pela amizade e abertura dopovo e dos funcionários dos Estados Unidos, sua disposição de entender as razões da RevoluçãoCubana. Quando Fidel partiu de Washington para Princeton, em 20 de abril, estava certamente maisreceptivo em seu comportamento para com os funcionários do departamento que foram à despedida.Com sua aparente franqueza e sinceridade, ele conseguiu neutralizar muitas das críticas da imprensae do público em geral. No que toca à posição perante o comunismo e a guerra fria, Castro cuida-dosamente deu indícios de que Cuba permaneceria no campo ocidental (Robert Murphy (deputy Undersecretary ofState) to Gordon Gray (specialist assistant to the president for National Security Affairs), 1/5/59, "Unofficial visit of  prime minister Castro to Washington — a tentativo evaluation" (secreto). Declassified Documents Catalogue, Carrollton Press, Washington, jan.-fev. 1989, n" desérie 137, vol. xv,# l). dois pronunciamentos, Fidel simplesmente desmentiria seu irmão e o Che, com opleno conhecimento e consentimento de seus subalternos.

Ou talvez Fidel, naquele momento, ainda não tivesse definido o curso daRevolução e buscasse situar-se em uma posição de centro, instável, ef émera maseficaz por algum tempo. Por último, há a possibilidade de que naquela conjunturaCastro dissesse a cada interlocutor o que este desejava ouvir, com a convicção dopolítico magistral que era, a qual só nasce de uma autoconfiança absoluta.

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Quando Fidel conversava com seus acompanhantes nos Estados Unidos —Regino Boti, Felipe Pazos etc. —, dando razão a seus conselhos cautelosos esensatos, era tão sincero como quando concordava com Raul e o Che sobre anecessidade de a Revolução avançar aceleradamente para uma direção maisradical. Uns acabariam por se sentir enganados, outros veriam confirmados seus

vaticínios e aspirações, mas no momento da interlocução com Fidel todos jurariam que ele lhes dizia a verdade. E era assim que ele atuava. O relacionamento entre Fidel e o Che se consolida nesses meses, emboraatravessado por algumas pequenas tensões. O estilo era demasiado diferente paraque não surgissem de vez em quando altercações ou discordân-cias. Fidel falavasem falar; o Che preservava seu laconismo. Fidel era um político que dosava aexpressão pública de seus pensamentos e definições; o Che levava a público tudoo que pensava. Fidel vivia em suntuosa e permanente desordem; o Che era umhomem organizado, disciplinado, pontual e austero. O Che acreditava saber o quequeria, politicamente falando; Fidel estava sempre à procura de um rumo, e eracapaz de corrigi-lo, matizá-lo ou revertê-lo súbita e repetidamente. Fidelretornava da sierra ao seu mundo, estava em seu elemento. O Che descobria umambiente novo; seus amigos, sua família, sua juventude estavam longe e

pertenciam a uma etapa superada da vida dele.Os comentários atribuídos a Fidel nesses meses, em particular durante a visita aosEstados Unidos e imediatamente depois de seu regresso a Cuba, devem ter feridoo Che em algum desvão de sua sensibilidade. Nem por isso o argentino os tomoudemasiado a sério, já que conhecia as manhas e subterfúgios do Caballo. Desde

 janeiro circulavam rumores de afirmações críticas ou sarcásticas de Fidel sobre oChe. Lázaro Ascendo, um combatente do Escambray que jantou com Fidel Castrona cidade de Cienfuegos durante sua marcha triunfal de Oriente para Havana,recorda um estranho comentário do líder máximo. Falando do comandante norte-americano William Morgan — colega de Gutiérrez Menoyo e que seria fuziladomais tarde —, 

Fidel advertiu que ele deveria deixar Cuba. Quando Ascencio discordou, Castroarremeteu contra o Che: "Todos esses estrangeiros são uns mercenários. Vocêsabe o que vou fazer com o Che Guevara? Vou mandá-lo a São Domingos paraver se Trujillo o mata. E meu irmão Raul, eu o enviarei como ministro oudiplomata, como embaixador na Europa".* A tal ponto se espalhou esse boato queum jornalista perguntou ao Che, em 6 de janeiro, se "é certo que você vai lideraruma expedição para libertar São Domingos e acabar com Trujillo".72 Mais tarde, e talvez mais realisticamente, Jules Dubois, um jornalista norte-

americano que entrevistou Castro na sierra e mantinha contatos (para dizer o

mínimo) cornos serviços estadunidenses, informou em 10 de junho o encarregado

de assuntos do Caribe e do México do Departamento de Estado sobre suas

recentes conversações. Pessoas ligadas a Castro, disse, lhe asseguraram que este

se convencera da existência de um processo de infiltração e propaganda

"comunista" em La Cabana e iria corrigi-la de imediato. O primeiro passo

consistiria em expulsar o Che do país. Para isso, propunha-se utilizar o convite

oficial do presidente do Egito, Gamai Abdel Nasser, para comemorar a

expropriação do canal de Suez. Dubois inclusive vaticinou que, durante a turnê 

pelo Oriente Médio, Guevara poderia ter uma grave e prolongada crise de asma."

Embora as observações de Castro fossem fictícias, ele sem dúvida deve ter

pronunciado algo semelhante. Isso não significava que Castro pensava

necessariamente o que dizia; na prática, provavelmente, tratava-se de testes ou

manobras para despistar e confundir, as quais lhe permitiram sobreviver quase

quarenta anos em circunstâncias terrivelmente adversas. O Che não podia ignorar

o procedimento de seu amigo e chefe, mas tampouco desconhecia a frieza

implacável de suas alianças e lealdades. Ao longo de toda a sua permanência no

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poder — e antes, desde a universidade — Castro exibirá simultaneamente uma

grande fidelidade aos amigos, enquanto eles se encontram fora da política real, e

uma capacidade insólita de voltar as costas a companheiros de grande

proximidade quando os imperativos políticos assim exigiam.

Nesses inocentes e memoráveis primeiros dias da vitória, o Che podia acreditar

mais nas bem-intencionadas manobras de Fidel que em sua duplicidade e

impiedosa indiferença. Porém, deveria suspeitar que talvez pudesse

(*) Cit. em Georgie Arme Geyer, GuemSa Prince, op. cit., p. 201. A autora afirma que outratestemunha da cena, Emí lio Caballero, corroborou a versão de Ascencio. haver algo de verdadeiro nos boatos. Por trás deles ocultava-se uma lógica

tipicamente fidelista. Uma aguda contenda entre o que Franqui chamou de lado

nacionalista do Vinte e Seis de Julho e a ala pró-comunista dirigida por Raul e o

Che estava em marcha. Como recorda Franqui, "Fidel Castro, sendo um político

muito mais hábil que seu irmão e seu lugar-tenente preferido, pensava que seria

fatal afrontar os Estados Unidos antes do tempo. Por isso, tratava de fazer comque todos acreditassem que ele mantinha sua clássica postura contrária aos

comunistas".74 Ocorreram alguns conflitos, inclusive no que se refere à reforma

agrária, quando o Che, Raul Castro e os comunistas mandaram os camponeses

ocupar terras e Castro pronunciou um violento discurso contra esse procedimento.

Em uma ocasião, no Tribunal de Contas de Havana, houve uma altercação tão

ríspida entre os irmãos Castro que Raul "acabou chorando".75 

Tudo isso ficava ainda mais desconcertante no contexto da viagem de Fidel

Castro aos Estados Unidos, à qual o Che se opusera* e durante a qual os

conselheiros moderados de Castro se instalaram na sua intimidade. As

declarações de Castro em Washington e Nova York fortaleciam a sensação deincerteza e ceticismo que possivelmente invadira um pequeno nicho do

inconsciente guevarista. Apesar disso, o Che manteve sua posição, travou suas

batalhas e venceu muitas delas. A Lei de Reforma Agrária de maio representou

um triunfo parcial do argentino. Não era a grande reforma de suas aspirações, mas

foi muito além do previsto. A saída de Sorí  Marín do governo e, semanas depois,

a de Manuel Urrutia da presidência, assim como a radicalização incipiente de

 julho de 1959, também foram conquistas do herói de Santa Clara.

Em 2 de junho, Ernesto se casou pela segunda vez. Depois de finalmente romper

com Hilda e formalizar o divórcio, ele abrira caminho para desposar Aleida. Até a

morte, a militante peruana acreditaria ter perdido seu marido para Aleida:

"Quando um homem se enamora de outra mulher, não há nada que uma esposa

possa fazer".76 A isso se deveu, em parte, a tensão e antipatia que prevaleceriam,

também até a morte, entre Hilda Guevara e sua madrasta.77 A cerimónia realizou-

se na casa de um dos membros da escolta do Che, Alberto Castellanos, com duas

testemunhas: Raul Castro, outra vez, e Efigenio Amejeiras, influente chefe de

polícia do regime revolucionário. Os noivos partiram imediatamente para Tarará

em viagem

(*) "O Che [...] não concordava com a ideia da viagem, embora tenha tido o cuidado de não

dizê-lo" (Gambini,op.cit.,p. 231). de núpcias: não muito distante, não muito diferente, não muito prolongada .*Mesmo assim os dias de lua-de-mel causaram forte impacto no Che. Durante aviagem à í ndia, onde partilharia um quarto com Guevara, José Pardo Liadacometeu a indiscrição de ler uma carta do comandante a sua esposa, explícita em

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extremo, sexualmente falando, e "absolutamente pornográfica".78 Depois de seurelacionamento com Hilda e das condições que prevaleciam na sierra, poucopropícias ao amor, passar dias de folga na cama com uma atraente e experientecubana forçosamente provocou uma forte impressão no ardoroso guerrilheiro.

Em 5 de junho Fidel Castro confirmou a decisão de enviá-lo em uma

interminável turnê pelo Oriente Médio, í ndia e Japão. Uma semana depois, o Chepartiu ao encontro de um mundo desconhecido, com sua velha e querida amiga: adesejada alteridade. Passaria três meses fora de Cuba, em uma viagem repleta decontradições e incertezas. Era a primeira de uma longa série de missões em tornodo globo, que eram úteis para a Revolução e cativantes para ele, masinevitavelmente ensombrecidas pela sensação de exílio — ainda que necessário,proveitoso e transitório. Todas essas viagens encerram um mistério. A última,para a Bolívia, o conduziria à morte.

(*)Jean Cormier assinala, sem dúvida em virtude de um equívoco de suas fontes, que Aleida estava grávida e insinua que Ernesto casou-se com ela por causa do compromisso assumido na sierrade que todo guerrilheiro que engravidasse sua companheira devia casar com ela (Cormier, op. cit., p.265). Aleidita, a primeira filha do Che com sua segunda esposa, nasceu em novembro de 1960,portanto sua mãe não poderia esperá-la desde junho de 1959. A única possibilidade seria uma gravidezinterrompida, voluntariamente ou não. 6

"CÉREBRO DA REVOLUÇÃO",CRIA DA URSS

A julgar por um telegrama da embaixada dos Estados Unidos, a partida do Che

para sua viagem afro-asiática, originalmente prevista para 5 de junho de 1959,

aconteceu uma semana depois.' Há duas possibilidades que explicam o atraso:

sua lua-de-mel em Tarará, ou a chegada a Havana, naqueles dias, de Enrique

Lacayo Farfán, um revolucionário nicaragüense suscetível de receber apoio

cubano. O mais provável é que o prorrogamen-to da viagem se devesse à

conspiração na Nicarágua, e não a uma inesperada fraqueza sentimental.

Finalmente, em 12 de junho, Guevara partiu para a África acompanhado por uma

delegação —José Argudín, Ornar Femández e Francisco Garcia Valls —, alguns

funcionários e um matemático chamado Salvador Vilase-ca, que se reuniu à

comitiva no Cairo; na í ndia, juntou-se a eles o jornalista José Pardo Liada. A

tumê incluiu países de evidente interesse e importância política e económica para

Cuba—Japão, lugoslávia, í ndia e Egito—e outras nações menos relevantes, como

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o Ceilão, a Indonésia, o Paquistão, o Sudão e o Marrocos. Nunca se esclareceu a

verdadeira natureza da viagem, embora circulassem múltiplas especulações,

todas com certa lógica. Depois dos já mencionados triunfos do Che na luta

interna, era compreensível que Castro optasse por resguardá-lo por meio de uma

longa ausência. Nesse período, sucedeu a primeira grande crise da Revolução: a

renúncia do presidente Urru-tia, o abandono do governo por vários ministros

liberais e a consolidação da guinada do regime à esquerda. Em 26 de julho,

comemorou-se o aniversário do assalto de Moncada com uma grande festa.

Ninguém poderia culpar o Guevara da radicalização do governo: ele estava a

milhares de quilómetros.

Por certo a pressão de diversos setores cubanos e norte-americanos contraGuevara estava aumentando. As sérias derrotas dos liberais e dos Estados Unidoseram atribuídas cada vez mais frequentemente — e em parte com razão — aofortalecimento do Che e de Raul Castro. Mas se a viagem constituiu um "semi-exílio", como considera Pardo Liada, ele não durou muito tempo.* Ao regressar,

em setembro, o Che imediatamente responsabilizou-se pelo Departamento deIndústrias do INRA e, semanas depois, pelo Banco Nacional de Cuba.Talvez Guevara fosse o único colaborador próximo e confiável de Fidel dotadodos atributos necessários para cumprir cabalmente missões de representaçãorevolucionária no exterior. Raul Castro, que compareceu de última hora a umasessão especial da OEA, realizada em Santiago do Chile em 15 de agosto de1959, fez um discurso pobre. Ele era despreparado, mal vestido e inábil. Por suavez, o Che ainda não assumira responsabilidades específicas que requeressem suapresença constante. Fidel podia muito bem privar-se por algum tempo de seusserviços e conselhos. Além do mais, o ofício diplomático e a habilidadeinternacional dos rebeldes triunfantes ainda eram virtualmente nulos. Eles podem

ter imaginado que um percurso de três meses como o do Che se revestiria deenorme importância para a Revolução, embora a viagem fosse perfeitamenteprescindível. Por fim, ao cabo de seis meses em Havana, é provável que oargentino ansiasse pêlos novos lugares e horizontes incluídos no itinerário; eleseram por demais atraentes para um fanático pelo desconhecido: a viagemrepresentaria o primeiro encontro do Che com o mundo distante da AméricaLatina.O ponto de partida foi o Cairo, onde o presidente Gamai Abdel Nas-ser, já entãoum herói do nacionalismo árabe e do pan-islamismo, recebeu o Che com todas ashonras. Guevara visitou as pirâmides e Alexandria, onde pernoitou no palácioreal de Montaza; conheceu os trabalhos iniciais de construção da represa de

Assuan, o canal de Suez e Port Said. Em quinze dias de estadia conseguiuconsolidar uma amizade duradoura com Nasser; regressaria às margens do Niloduas vezes, pouco antes de deixar Cuba. A crise do canal de Suez, em 1956, e oboicote inglês ao algodão egípcio impressionaram o Che; aquilo "provocou umasituação de extraordinário perigo, felizmente superado pela aparição de umcomprador para toda a colheita, a

(*) Na opinião de Carlos Franqui, dois fatores se combinaram: "Cada vez que alguém seachava em desgraça em Cuba, enviavam-no ao exterior; era uma maneira de afastá-lo; além do mais, talvez o Che tivesse algum interesse em conhecer esses países" (Carlos Franqui,entrevista, op. cit.). União Soviética".2 Ele teria podido chegar à mesma conclusão a propósito de

Assuan. Quando Eisenhower e John Foster Dulies suspenderam o financiamentonorte-americano, Nasser dirigiu-se a Krushev e conseguiu sua ajuda. Um anodepois, os Estados Unidos cancelariam suas compras de açúcar cubano e asempresas Esso, Shell e Texaco se negariam a refinar petróleo soviético em Cuba.Em ambos os casos, a União Soviética apareceria como

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substituta.O Departamento de Estado considerou a visita ao Egito um sucesso,* 

mas Nasser guardaria uma lembrança diferente de sua primeira conversa com ocondottiere. Sem dúvida, o Che se empenhou em não discutir com seus anfitriões,como recorda Salvador Viliaseca, a quem o argentino apontou especificamentealguns temas delicados; também instruiu cada membro de sua delegação sobre ostemas que não deviam mencionar, em cada um dos países. Por exemplo, Cubarealizara uma reforma agrária radical, mas no Egito os visitantes foram proibidosde tocar no assunto, já que, segundo o Che, muitos dos líderes egípcios eramlatifundiários. "Não vínhamos para brigar, mas, pelo contrário, para fazeramizades",3 relata Viliaseca. 

Contudo, Nasser evoca em suas memórias um breve diálogo sobre areforma agrária, muito diferente, suscitado por uma estranha pergunta do Che:"Quantos refugiados políticos tiveram que deixar o país?". Quando o presidenterespondeu que muito poucos e que a maioria eram "egípcios brancos", pessoas deoutras nacionalidades, naturalizadas, o Che contestou: "Isso significa que não sefez muito nessa revolução. Eu meço a profundidade da transformação pelo

número de pessoas afetadas por ela e que sentem que não cabem na novasociedade". Nasser explicou que pretendia "liquidar os privilégios de uma classe,mas não os indivíduos dessa classe". Guevara insistiu em seu ponto de vista e, aofinal, pouco resultou da visita. O presidente egípcio dedicou escassa atenção aoscubanos e sua política.4 

A etapa seguinte foi a í ndia: doze dias dedicados ao turismo (Agra e o TajMahal), à economia (fábricas de aviões e centros de pesquisa) e à sociologia (apobreza de Calcutá). O calor mormacento provocou no Che repetidas crises deasma. Pardo Liada considerou a visita inútil; ele relata um longo jantar comNehru, na antiga residência dos vice-reis do Império, onde o Che tentou em vãoextrair do fundador da república alguma reflexão substantiva sobre qual- 

(*) "Nesse país [o Egito] a missão foi aparentemente um sucesso." ("Memorandum from the Deputy Director of  Inreiligence and Research to the Secretary of  State. Subject: 

Che Guevara's mission to Afro-Asian countries", 19/8/50, cit. em Foreign Reiations ofthe UnitedStates (FRUS), Í958-1960, vol. Vi, p. 590). quer um dos temas do momento.5 Os serviços de informação de Washington, emseu balanço sobre a rota guevarista, também apontaram que "não se esta-beleceram vínculos comerciais com a í ndia, onde a missão cubana teve poucoêxito".6 A vasta cultura e sensibilidade do Che lhe permitiram, todavia, interessar-se pelas complexidades da civilização indiana e abordar seus clássicos dilemascom mais perspicácia que outros visitantes. Guevara extraiu da experiênciaensinamentos que aplicaria em Cuba, não necessariamente com razão, mas ao

menos com uma lógica inegável: "A base do desenvolvimento económico de umpovo é determinada por seus avanços técnicos".7 No Japão o Che "causou boa impressão", segundo os norte-americanos, embora

tampouco tenha conseguido acordos de comércio ou financiamento.8 A estadia

também durou doze dias e alternou sessões de trabalho — visitas a fábricas,

portos, reuniões com empresários — com turismo cultural (o monte Fuji, lutas de

sumo) e político (Hiroshima, Nagasaki). Mais uma vez a experiência foi

sobretudo didática; vincula-se à bagagem cultural de Guevara e conecta-se com

os objetivos futuros: "E preciso ter presente que, no mundo moderno, a vontade

de realizar é muito mais importante que a existência de matérias-primas [...] Não

há nenhuma razão para não implementar a indústria siderúrgica em nosso país".9 Com efeito, para o Che, o segredo do êxito japonês parecia baseado na vontade;

para que outros repetissem o milagre nipônico, bastaria que superassem esse

prodígio de decisão e disciplina que foi o Império do Sol Nascente. Essas

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crónicas de viagem do Che, publicadas no seu regresso a Cuba pela revista das

forças armadas, V erde Olivo, que ele acabara de fundar, não se prestavam a

longas inquisições e finos matizes. Mas salta aos olhos como a sensibilidade

cultural e social do Che ainda superava amplamente seu discernimento

económico e mesmo político.

A aparente admiração pelo regime de Sukamo, na Indonésia, ilustra a defasagem. 

O Che estabeleceu a seguinte analogia: "De todos os países visitados, talvez tenha

sido a República da Indonésia o que desenvolveu nos últimos tempos uma

trajetória histórico-social mais semelhante à nossa".10 Pôs lado a lado as lutas

indonésia e cubana pela emancipação nacional; descobriu em Sukamo "um

autêntico líder nacional", que, "interpretando a vontade popular e as necessidades

reais do povo", nega aos "contra-revolucionários o direito de semear a cizânia e

atentar contra o regime, que é expressão da luta armada do povo".'' Situa-o em

uma categoria privilegiada ao indagar: "Não será Fidel Castro um homem de

carne e osso, um Sukamo, um Nehru, um Nasser?"." Para além das imposições do protocolo, o Che revela nessas passagens uma 

incompreensão acerca do povo e dos fatos, uma certa ingenuidade e sua

ansiedade, que conduzirão ao seu fracasso africano de 1965. Sukamo era efeti-

vamente um dirigente nacional, surgido da luta pela independência de seu país, e

na Conferência de Bandung, em 195 5, cumpriu um papel de destaque na criação

do que seria o Movimento dos Países Não Alinhados. Mas, assim como a maioria

dos líderes da descolonização afro-asiática (com exceções como Ho Chi Minh, 

Nehru, Nyerere e talvez, por alguns anos, Nasser), também era um político

profundamente corrupto, velhaco e reacionário, que preferia mil vezes conservar

os privilégios da nova elite, à qual pertencia, a organizar as massas desamparadasde sua pátria e depender delas. Conjugou uma retórica inflamada e a inegável

dignificação da identidade nacional indonésia com um esbanjamento e ostentação

faraónicos; seu autoritarismo conduziu, por fim, ao conhecido e sangrento

desenlace: o contragolpe do general Suharto, em 1965, e o massacre de meio

milhão de comunistas. Não seria o único líder terceiro-mundista a engabelar Che

Guevara. A história da aventura africana de Guevara é, em boa medida, a história

dos sucessivos embustes em que caiu, preso no Congo. Como veremos, a

expedição africana nunca superou a indolência e corrupção de dirigentes

congoleses como Gaston Soumialot, Laurent Kabila e Christopher Gbenye, que

supostamente lideravam a luta de libertação em seu próprio país. O Che acabaria

se dando conta de como estava enganado, mas tarde demais. Em uma carta

inédita, dirigida a Fidel Castro das margens do lago Tanganika em 5 de outubro

de 1965, o Che se refere nos seguintes termos aos líderes congoleses, que tinham

sido recebidos como reis em Havana e nos quais também ele havia depositado

sua confiança:

Soumailot e seus companheiros lhe venderam uma ponte de enormes dimen-sões. Seria prolixo enumerar a grande quantidade de mentiras que lhe con-taram [...] Conheço Kabila o bastante para não alimentar nenhuma ilusãosobre ele [...] tenho alguns antecedentes de Soumailot, como a penca de

mentiras que lhe contou, o fato de que tampouco se digna a vir a estas terrasesquecidas por Deus, os frequentes pileques que toma em Dar-es-Salaam, onde vive nos melhores hotéis [...] dão somas enormes aos passeadores, deuma só vez, para que vivam bem em todas as capitais do mundo africano,

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sem contar que são alojados por conta dos principais países progressistas,que muitas vezes lhes pagam os gastos de viagem [...] o uísque e asmulheres também não figuram nos gastos cobertos pêlos governos amigos, eisso custa, se a qualidade é boa.* (*) Ernesto Che Guevara, Pasajesde Ia guerra revolucionaria (el Congo }, Dar es Salaam,

1966, p. 86. Como já assinalamos no capítulo 2 deste livro, o texto do Che, baseado em seus diários

de campanha do Congo, permanece inédito até hoje, embora tenha sido citado frequente eprolixamente, sobretudo no livro El ano en que estuvimos en ninguna  parte, Quando o Che sedeu conta do caráter de seus aliados no Congo, sua expedição agonizava. Aexplicação reside não só em sua ignorância sobre a situação no terreno, mas emseu afã de desencavar virtudes políticas inexistentes em uma alteridade sempreencantadora. A alteridade cultural e étnica, envolta na ideologia da "multidão deirmãos desta parte do mundo que espera [...] o momento de consolidar o bloco edestruir [...] o domínio colonial", exerceria uma formidável atração sobre o Che.11 Seu compromisso com a Revolução, a política e a luta já é demasiado firme paraque despreze a embalagem ideológica dos objetos de seu desejo ou admiração.Contudo, trata-se de um homem fascinado em excesso pelo encanto da alteridade,

pelas diferenças que distinguem cada civilização, raça, literatura, arquitetu-ra ehistória, para reduzir tudo ao reino da política. A partir dessa viagem, duasfacetas terão que conviver no seio do imaginário guevarista: a afinidade política ea diversidade cultural. Em vista das insuperáveis dificuldades para inventar umaalteridade cultural na Europa Oriental ou Ocidental — inexistente para alguémcom os antecedentes familiares do Che —, ou na já conhecida América Latina, eem razão da escassez mundial de coincidências de cultura e política, seuhorizonte seria cada vez mais povoado por montagens artificiais de convergênciapolí tica. Os dirigentes congoleses tinham de ser revolucionários, pois eram"outros"; os indígenas das alturas bolivianas tinham de estar prontos paraempunhar armas; Mão e os líderes chineses tinham de se dispor a ajudar a

revolução mundial e em particular a africana. As desilusões do Che seriaminesgotáveis; seu empenho em encontrar novas convergências, perpetuamenterenovado.

Suas passagens pelo Ceilão e pelo Paquistão não merecem maiores co-mentários, exceto para insistirmos no caráter um tanto quixotesco da viagem.Permanece inexplicável o fato de o terceiro homem da Revolução Cubana, emum momento de plena exacerbação das lutas internas e externas da ilha, estarpasseando em Colombo e Karachi, onde passou três dias. Em compensação, asemana na lugoslávia mostrou-se estimulante em extremo para o Che. Era oprimeiro país socialista que ele visitava, ainda que se tratasse de um socialismoligeiramente sui generis; ele identificou alguns aspectos que o atraíram, por lhe

parecerem aplicáveis em Cuba, e de qualquer forma dignos de elogio. Para Gue-vara, é "talvez o mais interessante de todos os países visitados".14 

surgido no México em 1994, editado por Paço Ignacio Taiho II, Froilán Rodríguez e Felix 1-iuerra. Aautenticidade do manuscrito completo da obra, em poder do autor, foi verificada por diversos leitoresque conhecem o texto original, entre eles Jesus Parra, um dos secretários do Che na sien-a Maestra. Interessante e surpreendente: só coletivizou 15% da terra, apesar de ser um país

"declaradamente comunista";15 goza de "uma liberdade de crítica muito grande,

embora exista apenas um partido político [...] e os jornais [...] logicamente

seguem as orientações governamentais dentro de certa margem de discussão e

polémica [...] Posso assegurar [...] que na lugoslávia há uma ampla margem de

liberdade dentro das limitações impostas pelo domínio de uma classe social sobreas outras".16 Sua marcada resistência ao modelo da autogestão reside na excessiva

disponibilidade de produtos de luxo, diante da carência de um rumo estratégico

de longo prazo: "Não há em meu juízo uma insistência suficientemente grande

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em destacar os grandes rumos da industrialização, o que deveria ser feito em um

país pobre e subdesenvolvido como a lugoslávia".17 Em uma entrevista realizada

trinta anos depois, seu acompanhante Ornar Femández recorda corno o Che

solicitou armas a Tito durante um prolongado almoço em seu pavilhão de caça de

Brioni, pedido que Tito recusou explicando que seu país não produzia armas

suficientes. Dias depois, o Che leu a notícia de uma venda de armas iugos-lavas a

um país árabe: "Bela neutralidade!", ele exclamou.18 

Tal como na Bolívia cinco anos mais tarde, é desconcertante que o Che omita por

completo qualquer referência ao nexo entre a localização geopo-lítica da

lugoslávia e seu regime interno. As análises do Che não registram um vínculo

entre as reformas moderadas e os níveis mais elevados de liberdade e consenso,

internamente, e o menor enfrentamento com Washington, externamente. Mais

ainda, brilham pela ausência de qualquer comentário sobre as ações contraditórias

dos Estados Unidos. Assim, no Egito ele não menciona que um fator importante

para a devolução do canal de Suez fora justamente a condenação estadunidensena ONU, em novembro de 1956, aos preparativos da invasão franco-britânica de

Port Said. Sem a condenação de Washington, o eixo Tel Aviv—Londres—Paris

talvez tivesse revertido a expropriação do canal e conseguido derrubarNasser. O

Che tampouco relaciona os traços "peculiares" do "comunismo" iugoslavo com a

virtual neutralidade do marechal Tito no conflito Leste/Oeste. Ele poderia se opor

ao "socialismo goulash" à lugoslávia (anterior à variante húngara), ou, ao

contrário, louvar o quadro interno que lhe dava margem para uma notável

neutralidade internacional. Optou por simplesmente deixar de lado o papel de

Tito no cenário mundial.

Na realidade, o Che não desejava tratar de nenhum assunto que debilitasse oumatizasse suas posições ou as de Fidel na luta em Cuba. Reconhecer para o

público cubano a hipotética compatibilidade entre neutrali- 

dade e comunismo (ainda que em seguida fosse necessário precisar a definiçãodeste) poderia esvaziar a firmeza da resistência às investidas norte -americanas. Etalvez tivesse embotado o maniqueísmo necessário para o futuro confronto comos Estados Unidos (aos olhos do Che, inevitável e desejável). Podemos nosatrever a insinuar que, em seus primeiros escritos públicos posteriores ao triunfoda Revolução, o Che já subordinava aos imperativos políticos os temas abordadose a maneira de abordá-los. Não escondia a verdade, mas adaptava-a às exigênciasda briga política cubana.

Não é de estranhar que àquela altura o Che se entregasse de corpo e alma à

Revolução; tudo o mais era acessório. A melhor fonte a respeito é uma carta do

próprio Ernesto, em que abria seu coração para a mulher mais importante de sua

vida, Célia, sua mãe. Em uma insólita comunicação, o Che explica por que ela

não deve estranhar que ele submeta o conteúdo de seus escritos ao objetivo 

político perseguido. Convém reproduzi-la na íntegra, já que revela a evolução de

Guevara melhor que qualquer descrição:

Querida velha, um antigo sonho de visitar todos os países se realiza hoje [...]Além do mais sem Aleida, a quem não pude trazer por um complicadoesquema mental desses que tenho [...] Desenvolveu-se muito em mim osentido do coletivo, em contraposição ao pessoal: sou sempre o mesmosolitário que vai buscando seu caminho sem ajuda de ninguém, mas agoratenho o sentido de meu dever histórico. Não tenho casa, nem mulher, nemfilhos, nem pais, nem irmãos; meus amigos são amigos enquanto pensam

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politicamente como eu; e, contudo, estou contente, sinto-me importante navida — não só uma força interior poderosa, que sempre senti, mas tambémuma capacidade de influenciar os outros e um absoluto sentido fatalista deminha missão que me livra de todo medo. Não sei por que lhe escrevo isto,talvez eu esteja com saudade de Aleida de novo.* 

Causa estranheza que um homem recém-casado confie a sua mãe que nãotem esposa, ainda que seja no sentido figurado. Mas a carta revela muitos

sentimentos além das tácitas desventuras matrimoniais. Indica que o Che

decidira, tão conscientemente como só pode sê-lo um homem da sua têmpera,

que sujeitaria tudo na sua vida à devoção por sua causa. Os amores, os

(*) Uma fotocópia do texto original, com o timbre da Air í ndia, foi entregue a Chichi-na Ferreyra por José Gonzáiez Aguilar. Chichina a mostrou ao autor. A carta não traz data, mas peloitinerário deve ter sido escrita em 2 ou 3 de julho de 1959. (Foi citada em Roberto Massari, Cfie Guevara: grande za y risgo de Ia utopia, Navarra, Txalaparta Editorial, 1993, P. 342, e ofac-símile emGuevara Lynch, Ernesto, Mi ?ii)o, op. cit., 1981, p. 232, e Paço Igna-cio Taibo, Ernesto Guevara, op.cit.) 

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amigos, tudo o que é pessoal seria subordinado à sua "missão", ao seu "dever

histórico". Se ele sentia falta de Aleida — citada duas vezes —, também ela

estava em um segundo plano; não ocuparia um lugar central em sua vida. O

"sentido fatalista", que o "livra de todo medo" e o conduziria à morte em La

Higuera, já o impregnou por completo. Por mais que o filho tenha exagerado

para sua mãe alguns dos seus traços mais recentemente assimilados, temos aqui

uma figura com uma clara noção da morte e de possuir um destino próprio. Nada

do que o Che tenha feito a partir de então pode ser abstraído dessas balizas

mentais e emocionais: um desafio à morte e um sentido de destino para a vida.

Em 10 de setembro Guevara regressou a Havana. Muita coisa mudara,e logo o torvelinho caribenho o envolveu. Começou seu trabalho no INRA,

como diretor de indústrias. Seu cargo adquiriria mais significado por causa da

expropriação de muitas usinas açucareiras (em Cuba chamadas centrais) sob a

égide do INRA; assim, o Che assumia o principal setor da economia do país.* A

princípio, o próprio Fidel e Nunez  jiménez, diretor operacional do INRA, se

abstiveram de confirmar em público a designação do Che; não houve nenhum

anúncio público.** Mas Washington já tinha plena consciência dos recentes

reveses.

Contrariamente às nossas esperanças anteriores, as forças moderadas (emparticular o grupo do Banco Nacional) até agora perderam a batalha poruma influência maior sobre Castro. Nossos inimigos jurados, Raul Castro eChe Guevara, estão no comando. Podemos contar que acelerarão a reformaagrária radical, assim como as medidas para destruir ou ferir os interessesnorte-ame-ricanos na mineração, petróleo e serviços públicos.19 

Poucos dias depois, em 26 de novembro, tomou-se pública a nomeação de

Ernesto Guevara para diretor do Banco Nacional de Cuba (a instituição centralde emissão de moeda). Durante mais de quatro anos, primeiro no Banco e a

seguir no Ministério da Indústria, o Che responderia pela economia da ilha. Para

o bem e para o mal, um dos fronts decisivos do avanço revolu- 

(*) E não só pela economia; em 30 de setembro uma fonte confiável informava à

embaixada dos Estados Unidos que o Che presidira duas reuniões de dirigentes militares, das

quais Raul Castro também participara. (Ver Amembassy Habana to Sec. State, Despatch

509,5/10/59, US Department Files IX, 814-7 (secreto), p. 2.) (**) A dissimulação de nada serviu. Em um telegrama datado de 2 de setembro de 1959,

uma semana antes do retorno do Che a Havana, o embaixador Philip Bonsal informava a

Washington que Guevara "poderia ocupar um lugar importante nos programas de indus-trialização" (Bonsal a Rubottom, 2/9/59 (secreto), in FRUS, op. cit., p. 594). 

cionário caiu nas mãos de um médico argentino, pró-soviético e radical, comescassos conhecimentos económicos, mas com uma ideia cristalina do quequeria e uma disciplina e organização únicas em Cuba naquele momento.  

A designação do Che para o Banco Central não ocorreu como reza aanedota, segundo a qual Fidel perguntou em uma reunião quem era econo-mista e o Che respondeu que ele era, para só depois, tarde demais, esclarecerque tinha entendido "comunista" em vez de "economista". Fidel Castrosabia perfeitamente que o Che tinha pouca ou quase nenhuma experiência

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em economia, mas os economistas à disposição não mereciam a sua con-fiança. Das pessoas confiáveis, o Che era quem tinha maiores conheci-mentos de economia. Já lera algo e tivera alguns meses de experiência noINRA. Sua viagem em missão relativamente comercial também incluíraalgumas negociações. Portanto, a decisão de confiar-lhe o comando da

economia e a política financeira das novas empresas criadas pelo INRA nãoera de todo absurda do ponto de vista político. A morte de Camilo Cienfue-gos em novembro e a designação definitiva de Raul para a Defesa deixavamo caudilho sem opção. 

O momento também era oportuno para que Castro enviasse um sinalaos norte'americanos e à oligarquia cubana sobre quem mandava na ilha ecomo o fazia. Washington compreendeu antes das mudanças no gabinete,no fim de novembro, que seus aliados do grupo do Banco Nacional tinhamperdido a batalha no que já era uma guerra. A posse do Che no BancoNacional acompanhou outras substituições de liberais por castristas institu-cionais: Fidel designou Raul Castro para o Ministério da Defesa e Augusto

Martínez Sánchez, secretário de Raul, para o Ministério do Trabalho, visan-do consolar o PSP de sua estrepitosa derrota nas eleições para o Congresso daCTC. As mudanças se consolidaram com a detenção e o encarceramento deHuber Matos, cujo julgamento desencadeou a nova guinada de Fidel para aesquerda, em novembro. O caso de Matos também deu lugar ao surgimentodo aparato de segurança e do terror em Cuba. Matos foi acusado junto comoutros de conspirar contra a Revolução. As provas apresentadas contra eleeram proto-soviéticas e tipicamente fabricadas pelos serviços de infor-mação: rumores, cartas, conversas telefónicas, delações. A verdade da con- juração nunca foi comprovada; em contrapartida, a oposição de Matos aorumo escolhido por Fidel não requeria maior demonstração. 

O Che permaneceria à frente do Banco Nacional durante catorzemeses. Nesse período, ele não se ocupou exclusivamente da política mone-tária, das reservas de divisas ou mesmo da política macroeconômica em seu 

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conjunto. Além de se ocupar com o exército, a diplomacia e de escrever,teve aulas de matemática, economia, aviação e, por fim, russo. Porém, asatividades do banco eram prioritárias; foi aí que se tornaram conhecidas suaorganização, pontualidade e enorme capacidade de trabalho. Aparecia noescritório no meio da manhã e não o abandonava antes das duas ou três da

madrugada. Sua mesa estava sempre em ordem; despachava papéis com rapi-dez e por algum tempo a verbosidade típica de seus colaboradores cubanosfoi banida de alguns escritórios. 

No mesmo ano consolidaram-se dois outros aspectos em sua vidadiária: sua eterna irreverência e as intermináveis conversas noturnas, àsvezes conspirativas, às vezes simples bate-papos: qualquer um podia visitá-lo no seu escritório do banco para conversar sobre o que quer que fosse. Suairreverência configurou-se nas famosas emissões de notas cubanas assinadas"Che". Criticado por isso por um correspondente cubano, contestou: "Seminha maneira de assinar não é a de costume entre os presidentes de banco[...] isso não significa de modo algum que eu dê menos importância ao do-

cumento, mas que o processo revolucionário ainda não terminou e, além domais, que precisamos mudar nossa escala de valores".20 

A vocação iconoclasta do Che se refletia na informalidade de seus tra- jes e na maneira como tratava seus interlocutores. Recebia seus visitantessempre vestido de verde-oliva, às vezes com os pés sobre a mesa de trabalho.Obrigava os interlocutores com quem antipatizava a intermináveis esperasna ante-sala, e mantinha relações de igualdade e camaradagem com seussubalternos. Tratava-se, como quase tudo o que se referia ao Che, de umairreverência maquinada, apenas parcialmente espontânea: o argentinotratava de projetar uma imagem e confirmar a que tinha de si mesmo. Airreverência não afetava a essência de seu trabalho; pelo contrário, o Che

desses meses será lembrado por sua seriedade no estudo dos documentos, suapontualidade, eficiência e empenho. 

Muitos conservam também a lembrança da impressionante versatili-dade intelectual do Che, de sua verdadeira inclinação pelo universal. Todosos temas, todos os países, todas as personalidades o atraíam — uns mais,outros menos. Em primeiro lugar estavam os argentinos, fossem revolu-cionários ou intelectuais. Mas naqueles anos proliferavam no mundo daesquerda latino-americana, europeia e estadunidense os "amigos do Che",os quais recebia à meia-noite em seus aposentos, com o chimarrão na mão eo charuto na boca, descontraído e ávido de informação, de ideias, demensagens. Por ali desfilaram Sartre e Simone de Beauvoir, René Dumont 

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e Charles Bettelheim, John Gerassi e C. Wright Mills, Ernesto Sabato eLázaro Cárdenas. Ali se tramaram incontáveis conspirações, cumplicidadese projetos disparatados; ali também se construíram lealdades e afeições quesobreviveriam ao Che e à sua tragédia. 

Guevara ocupava-se do banco sem ter maiores conhecimentos econó-

micos; por isso, suas primeiras determinações foram prudentes e relativa-mente ortodoxas. A preocupação inicial foi proteger as magras divisasdisponíveis: limitou as importações, a começar pelos artigos de luxo; acele-rou as vendas de açúcar no primeiro trimestre de 1960, para acumular reser-vas, e procurou substituir algumas compras em dinheiro por permutas ouacordos de longo prazo. A necessidade de poupar divisas, escapar da camisa-de-força dos pagamentos em dólares ou moedas mais fortes, as delíciasaparentes do escambo e da "zona do rublo" marcariam sua estreia na gestãogovernamental. A exiguidade de recursos seria uma obsessão, e em mais deuma ocasião ele se deixou cativar pela tentação de soluções rápidas e simplescontra o calvário do dólar como intrumento internacional de câmbio. 

A ideologia conduziu-o a certos disparates iniciais, como, por exem-plo, a redução imediata dos salários e vencimentos daquela que era — comoem quase todos os países latino-americanos — uma burocracia honesta,competente, conservadora e bem paga. Ernesto Betancourt, subdiretor dobanco no momento da posse do Che, que renunciaria em três semanas,recorda-o com respeito e afeto, simultaneamente ingénuo e eficiente. A for-ma como tratou da questão sobre os elevados honorários dos funcionários dobanco ilustra essa combinação. A secretária de Betancourt ganhava naocasião 375 dólares por mês. Chegou o Che e exclamou: "O maior salárioque se deve pagar aqui é 350 dólares, ninguém deve ganhar mais de 350dólares". O chefe dos empregados explicou que muitos haviam compradocasas e tinham um nível de vida que exigia uma renda mais alta; simples-

mente iriam embora. "Não me importa, podem ir; traremos estivadores oucanavieiros para fazer aqui o trabalho do campo, e lhes pagaremos essesalário." Depois se deu conta das asneiras que os "proletários" fizeram, emudou de ideia.21 

O mesmo ocorreu com a retirada de Cuba do Fundo Monetário Inter-nacional. Vendo-se obrigado a dar instruções a seu subdiretor sobre o votode Cuba no Fundo, o Che decidiu se opor à recomendação técnica dos espe-cialistas. Betancourt recorda o seguinte diálogo: 

"Não, veja, vamos deixar eventualmente o Fundo Monetário porque vamosnos unir com a União Soviética, que está 25 anos à frente dos Estados Unidosem tecnologia." 

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"Comandante", disse eu, "se é decisão do governo retirar-se do Fundo Mo-netário, perfeito. Eu quero que você tenha clara só uma coisa: nós temos nestemomento um empréstimo de 25 milhões de dólares do Fundo Monetário, queteremos de pagar se nos retirarmos, e não nos resta nada além de 70 milhões dereservas. Neste momento não nos convém esgotar essas reservas, pois estamosno final do ano e até que comece a safra de janeiro não entrarão mais dólares."

"Ah! mas eu não sabia, me disseram que não nos emprestaram nada.""Informaram-lhe errado", disse eu, "Quem nunca emprestou dinheiro a

Cuba, nem no governo de Batista nem agora, foi o Banco Mundial, mas o Fun-do Monetário emprestou."

O Che mudou de ideia; Cuba se retirou do Fundo Monetário um anodepois.22 

Guevara ainda não se imbuíra das teorias económicas que um grupo deassessores marxistas chilenos, mexicanos e argentinos logo lhe impingiria,muito menos das ideias soviéticas das quais se aproximaria no futuro.Procurou operar com a equipe demissionária do banco; por desgraça, seusintegrantes decidiram partir, primeiro para casa, depois para Miami. Tantopor motivos ligados à prisão de Matos e à remoção de Felipe Pazos como porresistência a avalizar a política do Che, a maioria dos funcionários paulati-namente se retirou do Banco Central. O Che aprendia rápido,* mas assimmesmo precisava de técnicos e começou a convocar os que se achavamdisponíveis. Estes adotaram as suas prioridades mais éticas e políticas do queeconómicas. Betancourt assim o recorda: 

O Che jamais foi um marxista integrado. Era um típico esquerdista latino-americano, com noções marxistas mas sem formação de partido. Tanto assimque chegou ao banco e, sabendo que seus conhecimentos de economia mar-xista eram limitados, pediu umas aulas a Juanito Noyola, um economista

marxista mexicano. O Che era muito sistemático em relação a tudo, e assistiaàs aulas de Juanito duas vezes por semana, para que este lhe explicasse os ele-mentos da economia marxista.2'

Naquele tempo, como agora, as grandes teses do desenvolvimentoeconómico da América Latina partiam de alguns eixos simples: a industria-lização via substituição de importações, a diversificação dos mercados, dos 

(*) Segundo um dos assessores argentinos, Néstor Lavergne, "o Che acompanhou umseminário de economia em que se dedicou uma grande parte do tempo ao estudo de O capi-tal. Foi apresentado por Anastasio Mancilla, um doutor, espanhol soviético, um refugiadoque era realmente um brilhante conhecedor da economia marxista" (Entrevista com o autor,Buenos Aires, 16/2/95). 

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investimentos e dos produtos de exportação; um papel económico determi-nante ou pelo menos central para o Estado, e a necessidade de uma reformaagrária significativa — mais ou menos radical, dependendo do país. Nissoconsistia o chamado consenso da Comissão Económica para a AméricaLatina (CEPAL). A esquerda latino-americana se distinguia do CEPAL basica-

mente por critérios quantitativos: industrialização maior e mais rápida,diversificação maior e mais profunda, uma reforma agrária mais drástica eum Estado, mais poderoso, que interviesse mais na economia e na sociedade. 

O Che, em um primeiro momento, não tinha ideias sobre economiamuito mais ambiciosas e audazes que as da CEPAL. Contemplava medidassemelhantes às sugeridas por seus assessores de esquerda, como Noyola, ochileno Alban Lataste, o equatoriano Raul Maldonado, e o argentino La-vergne, entre outros. Entre elas, segundo Maldonado, destacava-se a ambiçãode monopolizar o comércio externo, que representava a metade do produtonacional da ilha. O projeto do Che para o Banco Nacional consistia justa-mente em transformá-lo em uma espécie de Banco do Comércio Exterior.24

O Che comprovaria paulatinamente que o monopólio dos intercâmbiosexternos era uma condição sine qua non para uma relação institucional coma União Soviética, como a que se propôs negociar em fins de 1960, durantesua visita aos países socialistas. Porém, a estratégia política do confrontocom os Estados Unidos e com a oligarquia cubana despedaçaria toda articu-lação estritamente económica, e esse era o ponto fraco — ou forte, conformeo ponto de vista — da ideologia do Che. Até o fim de seus dias ele pensariaque a esfera económica devia ocupar um lugar secundário na política e navida dos homens. Impregnado de um pensamento mais ético e humanistaque marxista e histórico, insistiria sempre na necessidade de abolir asrelações mercantis ou baseadas no dinheiro. Buscaria constantemente fazer

com que as sociedades fossem regidas por outro tipo de regras. Daí a escala-da contra os norte-americanos em torno de vários temas: a cota de açúcar, orefino do petróleo soviético, a compra de armas na Europa e depois na UniãoSoviética e a expropriação de ativos norte-americanos. 

Em todas essas frentes produziu-se uma inevitável radicalização políticado regime e uma ruptura gradual com os Estados Unidos. Para o Che tratava-se de fins em si mesmos e poderosas alavancas transformadoras, uma tese■que ele chegou a partilhar com Castro, mas com ritmo e modo próprios.O^mo ele proclamava, "a presença de um inimigo estimula a euforia revo-lucionária e cria as condições necessárias para realizar mudanças de fundo".25

Em um documento secreto datado de 23 de março de 1960, o diretor da Cen- 

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trai de Informação dos Estados Unidos resumia a situação de Cuba e ilus-trava o papel do Che no antagonismo com Washington, atribuído justa-mente a suas posições: "Sob a direção de Raul Castro e a influência de CheGuevara, as forças armadas, a polícia e as agências de informação foramunificadas, purgadas de profissionais da época de Batista e outros elementos

anticomunistas e submetidas a um processo de doutrinamento comunista;treina-se e arma-se uma milícia civil de operários e camponeses".26 

O confronto com os Estados Unidos, assim como a necessidade impe-riosa de encontrar outros compradores de açúcar, possibilitava a aproxi-mação com a União Soviética, aos olhos do Che necessária e desejável. Porfim, ele esperava que tudo aquilo permitiria ampliar a força do Estadocubano na economia, não tanto como uma meta, mas como um avançorumo ao banimento do aspecto económico das relações humanas. Se o Esta-do controlar tudo, as relações entre os homens não melhorarão porqueestarão livres de problemas envolvendo dinheiro, salário, competição erivalidade. 

O processo de expropriação de terras se acelerara nos últimos meses de 1959, em parte graças à mobilização camponesa e às guinadas para a esquerda de Fidel Castro. As indenizações se faziam esperar, e quando eram formalizadas careciam por completo dos requisitos solicitados pelos EstadosUnidos: não eram imediatas, nem adequadas, nem efetivas. As tensõesinternas e externas se exacerbavam, e assim seria durante todo o ano de1960, particularmente entre janeiro e julho. Nesse último mês coincidiramdois acontecimentos cruciais: os Estados Unidos cancelaram a compra dacota governamental de açúcar; e Castro confiscou as refinarias do país porse recusarem a refinar o petróleo soviético que substituiria o venezuelano.

O Che cumpriu um papel decisivo na crise de julho de 1960 e na soluçãosoviética que foi aplicada.As relações com Moscou se estabeleceram desde o início. Em outubro

de 1959, António Nuftez Jiménez foi abordado por um personagem-chavede nosso relato: Alexander Alexeiev, um homem inteligente e sensível, que35 anos depois tinha um grande carinho por Cuba e os cubanos, assim comopela Revolução, que lhe permitiu aproximar-se do trópico e de sua história.Ele chegou a Havana em 1" de outubro de 1959, enviado formalmente comofuncionário do Ministério de Relações Exteriores da União Soviética, juntocom uma delegação de jornalistas cubanos e com visto de jornalista. Porisso era visto como correspondente de imprensa, mas nunca dissimulou sua 

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verdadeira missão.* Conseguiu uma audiência com Fidel, para entregar-lheum presente e estabelecer contato em nome do governo soviético. Reuniu-se antes com o Che, a quem considerou "quase um comunista":27 "Foi oprimeiro dirigente cubano que me recebeu, em 12 de outubro de 1959, noINRA".28 Segundo Alexeiev, "nossas avaliações em relação a diferentes acon-

tecimentos mundiais se mostraram idênticas, sem divergências de crité-rios".29 O Che se encarregou de articular rapidamente o encontro com Cas-tro, que aconteceu em 16 de outubro. 

Da conversa com Castro surgiu uma ideia. Depois de sua passagem porNova York e as Nações Unidas, em novembro, o vice-primeiro-ministro daUnião Soviética, Anastas Mikoyan, tinha prevista uma viagem ao Méxicopara inaugurar uma exposição industrial soviética. A exposição poderia serlevada em seguida para Havana; Mikoyan compareceria à inauguração. Osdados sobre a autoria da iniciativa sobre a exposição são obscuros; NufíezJiménez a atribui a Camilo Cienfuegos.** Castro, por sua vez, apresentou-aao soviético como uma ideia de Nunez Jiménez, que visitara a exposição em

Nova York. De qualquer forma, Alexeiev incontinenti viajou ao Méxicopara tratar do assunto com Mikoyan, que aceitou de imediato; fixou-se pre-liminarmente a data de 28 de novembro. Mas logo os cubanos preferiramque a visita soviética não coincidisse com um congresso religioso convoca-do para a ocasião, e tudo foi adiado para o ano seguinte. Ramiro Valdés, ohomem do Che, e Héctor Rodríguez Llompart, um colaborador de CarlosRafael Rodríguez, deslocaram-se para o México visando reprogramar aagenda.'0 Em poucos meses foi confirmado que Mikoyan compareceria àinauguração da Feira Industrial de Havana, em 3 de fevereiro de 1960. 

Aqui entra em cena outro curioso personagem soviético: NikolaiLeonov, o funcionário da KGB que conhecera Raul Castro em Viena, em

1953, e o Che no México, em 1956. Leonov acompanhou Mikoyan ao Mé-xico em 1959, como intérprete e guarda-costas, e escoltou-o também quan-do o número 2 da União Soviética viajou a Cuba. Recebeu uma delicada 

(*) Segundo várias fontes, desde a Segunda Guerra Mundial Alexeiev trabalhava paraos serviços de informação da União Soviética. É a opinião, entre outros, de Karen A.Jachaturov, ex-diretor da agência de notícias soviética Novosti, de quem se diz o mesmo(Entrevista com o autor, 1/11/95). 

(**) Ver Nunez, En marcha con Fidel, Havana, Letras Cubanas, p. 318. SegundoGeorgie Anne Geyer, a ideia da exposição foi de Fidel, ao passo que a visita de Mikoyan foisugerida por Alexeiev. (Ver Georgie Anne Geyer, Guerrilla Prince, Boston, Little, Brown,1991, p. 250.) 

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missão: escolher os presentes para os anfitriões cubanos; "Para o Che, quegostava de armas, compramos duas, uma excelente pistola e uma pistola demodelo esportivo de alta precisão, com munição. Para Raul comprei um

 jo go de xadrez , po is er a muito bom enxadr is ta"." Chegando a Ha vana ,Leonov procurou o Che em sua casa de Ciudad Libertad, onde — para

desconcerto do russo — seus auxiliares despertaram o argentino, no meio damanhã. Cumprimentaram-se como velhos conhecidos, talvez com maisafeto e afinidade do que merecia a fugaz relação mexicana. Haviam transcor-rido apenas quatro anos desde o encontro anterior, mas que diferença!Como lembra o russo, "abrimos as caixas com as armas e ele as experimen-tou, sem disparar; gostou".12 

O Che desempenhou um papel de destaque nas negociações comMikoyan, sobretudo no momento dos acordos sobre o montante, a duraçãoe o sentido estratégico da cooperação soviética. Depois da recepção aMikoyan no aeroporto, o encontro seguinte foi secreto e histórico. Assim orelata Leonov:

O Che esteve presente na conversa-chave, que se realizou em uma casinha depescador que Fidel tinha na Laguna dei Tesoro. Fizemos a viagem em umhelicóptero soviético que fazia parte da exposição. Fidel chamou o Che comoacompanhante, a segunda pessoa da delegação cubana. Na delegação russaestavam Mikoyan, o embaixador da União Soviética no México, e eu comointérprete, com a missão de traduzir e tomar notas, pois não tínhamos grava-dores por razões de segurança. O helicóptero aterrissou no terreiro daquelacasinha de pescador, onde ficamos todos. A conversa se desenvolveu em umasituação absolutamente espetacular: nem sequer ficamos sentados, mas pas-seando pelo terreno, por cima dos pântanos, ouvindo o ronco do sapo-boi, ossons da noite tropical. A agenda se limitou a dois ou três pontos básicos. Aber-tura de relações: era fevereiro, não tínhamos embaixada, Mikoyan disse quepara manter contato era preciso abrir uma embaixada, lá e aqui, para ter umcontato formal; isso se resolveu rapidamente. Depois surgiu outra pergunta, ocrédito; aqui Che Guevara participou, apoiando a tese de Fidel. A essência foique Mikoyan tinha instruções para prometer nada mais que 100 milhões dedólares. Fidel dizia que era pouco, que com 100 milhões de dólares não se podecomeçar a reorganização de toda a vida económica, em pleno conflito com osEstados Unidos. O que se colocava era a reorganização económica de Cuba nocampo socialista, e 100 milhões de dólares era pouco. Mikoyan disse: "Bom,esgotemos esses 100 milhões e continuaremos falando sobre aumentá-los". OChe dizia: "Quando se dá um passo histórico, é melhor ter uma decisão muitomais profunda, de maior segurança para o futuro, não é brincadeira reorientarum país de um lado para outro. Se vocês nos deixam na metade do caminho,com 100 ou 200 milhões de dólares, isso não resolve nada"."

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Na opinião de Alexeiev, "o Che foi o principal arquiteto da colabo-ração económica soviético-cubana",14 mas não necessariamente em todos osseus aspectos. As vendas de armas soviéticas a Cuba, por exemplo, não foramnegociadas durante a visita de Mikoyan.* De acordo com Alexeiev, foi sóum mês mais tarde, após a explosão do barco francês La Coubre, em Havana,

no dia 4 de março, quando morreram mais de cem cubanos e se destruiu umcarregamento inteiro de fuzis e munições, que Castro pediu secretamentearmas à União Soviética, via Alexeiev." Raul Castro negociaria o trasladoem julho do mesmo ano, em Moscou. 

O regime revolucionário alcançou vários objetivos graças à visita deMikoyan. Obteve 100 milhões de dólares de créditos não comprometidos;consolidou o compromisso da União Soviética de continuar comprandoaçúcar (uma pequena transação fora negociada antes e, na realidade, desdea época de Batista, Moscou era cliente da ilha açucareira), além de estabe-lecer relações diplomáticas. Faure Chomón, o ex-dirigente do Diretório quecombateu ao lado do Che em Santa Cruz, foi nomeado embaixador de Cuba

em Moscou. Sergei Kudriavtsev, antes responsável por uma missão de espio-nagem no Canadá, representaria seu país em Havana. E, finalmente, oscubanos asseguraram a entrega de petróleo soviético em volume significa-tivo e crescente, em troca do açúcar que a União Soviética compraria. 

A situação do petróleo cubano era desesperadora, e os problemas queacarretava representaram a primeira experiência de conflito internacionalde Che Guevara. As refinarias norte-americanas importavam óleo daVenezuela e o vendiam aos consumidores, em pesos que trocavam no BancoNacional para, por sua vez, reembolsarem os fornecedores venezuelanos. OChe ia acumulando atrasos no pagamento das companhias, e estas come-çaram a pressioná-lo. A primeira entrega de óleo soviético chegou ao porto

de Havana em 19 de abril de 1960: um carregamento pequeno, fruto daviagem de Mikoyan. As negociações com as empresas não prosperaram; orepresentante destas, Tex Brewer, queixava-se amargamente das ameaças eda teimosia de Guevara. Por fim, o Che aceitou comprometer um saldo dopagamento de contas anteriores, com a condição de que as refinarias com-prassem 300 mil barris de petróleo soviético. Em conluio com o Tesouronorte-americano, e sem consultar a embaixada dos Estados Unidos em 

(*) "De armamentos definitivamente não se falou. Falou-se de conselheiros, conse-lheiros de todo tipo, tanto civis como em outros campos da construção [...] e esse foi o terceiroponto ahordado. E com isso terminamos, pois o Che, se bem me lembro, regressou a Havana.A conversa deixou todos contentes" (Nikolai Leonov, op. cit.). 

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Havana, as empresas se recusaram a refinar o óleo cru soviético. Em 6 de ju-lho o embaixador norte-americano, Philip Bonsal, informou em um telegra-ma "só para seus olhos" a seu superior em Washington, sobre um encontrocom Brewer:

A política de sua empresa [a Esso] tem sido, partindo da premissa de que o go-

verno dos Estados Unidos não se imiscuiria no tema, que seria inevitável refi-nar o óleo russo, tal como desejava o governo cubano. A premissa, no entanto,era falsa. Em uma reunião realizada talvez em 3 de junho, no escritório dosecretário do Tesouro, Anderson, com Tom Mann representando o Departa-mento de Estado e o sr. Barnes a CIA, a Texaco e a Esso foram informadas deque uma negativa a refinar o petróleo russo seria coerente com a política dosEstados Unidos para com Cuba [...] Creio que o governo de Cuba intervirá nasrefinarias e tratará de aumentar as entregas soviéticas [...] Se conseguir operaras refinarias e manter um fluxo adequado de produtos, terá alcançado umtriunfo significativo, semelhante ao do Egito quando demonstrou sua capaci-dade de operar o canal de Suez.*

Um telegrama do embaixador inglês ao Foreign Office, de 22 de junho,enfatizou o papel do Che em toda a negociação e seu desenlace. Guevaracompreendeu claramente que "existe uma potência que tem o petróleo, osnavios para transportá-lo, a vontade e a decisão de fazê-lo". O enviado deSua Majestade deduziu a conclusão apropriada: "Se é assim, não vejo comoa pressão diplomática e a ameaça de cortar o fornecimento possam surtir omenor efeito".36 Castro procedeu conforme essa lógica, ordenando que asrefinarias processassem o petróleo da URSS, ou arcariam com as consequên-cias; em 29 de junho nacionalizou-as, em uma decisão anunciada pelo Che.Este se saíra bem em seu primeiro enfrentamento internacional. O rumo quepropunha era correto: o confronto inevitável com Washington permitiu

que os adeptos da Revolução se conscientizassem e radicalizassem, e o apoiode Moscou mostrou-se decisivo e confiável. O Che atuou em grande estilo. 

(*) Bonsal a Rubottom, 6/6/60 (secreto). FRUS. Um testemunho oficial confirma queas empresas foram utilizadas para propiciar um enfrentamento com a Revolução. Provém docomentário que o representante da Royal Dutch Shell apresenta sobre uma reunião no For-eign Office, em Londres: "O sr. Stephens explicou que esperava que o governo de Sua Majes-tade [H M G] se unisse aos governos da Holanda e do Canadá caso fosse adotada alguma açãodiplomática conjunta. Considerou que, como o Departamento de Estado havia decidida-mente promovido a ação das empresas americanas como uma poderosa contribuiçãoeconómica para a queda de Castro, cabia a elas atuar primeiro, inclusive antes que os cubanostomassem medidas específicas contra as companhias" (Foreign Office 371/148295, Recordof Meeting, June 20 in Sir Paul Gore-Booth's Room (secreto), p. 8, 20/6/60). 

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Dias depois, a administração Eisenhower suspendeu as compras de açú-car cubano; o Che e Castro, invocando os acordos subscritos com Mikoianem fevereiro, solicitaram a Krushev que realizasse ao menos uma comprasimbólica da cota norte-americana anterior. Graças ao trabalho prévio e àsimpatia de Nikita Krushev pela Revolução Cubana (não necessariamente

partilhada pelo restante da direção soviética), às seis horas da manhãseguinte o Kremlin anunciou a decisão de adquirir a totalidade da cotanorte-americana daquele ano.'' 

É preciso introduzir um fator adicional na descrição dos motivos deNikita. Embora Cuba pouco soubesse sobre isso e pouco se importasse,Moscou estava empenhada no conflito sino-soviético. Em 21 de junho cele-brara-se em Bucarest o Congresso do Partido Comunista (Operário) daRoménia, no qual se deu o primeiro enfrentamento público entre os grandesdo socialismo real. Em particular, Krushev tachou os membros da delegaçãochinesa de "loucos", "trotskistas" e "belicistas".18 O Comité Central do Par-tido Comunista da União Soviética reuniu-se justamente em 11 de junho

de 1960; a sessão plenária aprovou a proposta de Krushev de retirar todos ostécnicos soviéticos da China. Como assinalou em 1970 o jornalista francêsK. S. Karol, o apoio a Cuba foi a cartada perfeita para a direção russa desen-cadear sua ofensiva antichinesa. Ninguém poderia acusar os soviéticos defrouxidão perante os Estados Unidos ou falta de solidariedade aos países doTerceiro Mundo, no preciso momento em que eles salvavam Cuba doostracismo e da ruína económica.'9 

O Che lançara desde o princípio de 1960 uma campanha contra a cotade açúcar, comparando-a a uma forma de escravidão que obrigava Cuba acontinuar produzindo cana. Agora, podia vangloriar-se de seu triunfo.*Ninguém mais do que ele buscou a interrupção da cota. Conduziu a aproxi-

mação com a União Soviética, dirigiu as negociações económicas comMikoian em fevereiro e por fim conseguiu a substituição de Washington porMoscou. Em 9 de junho, no auge do confronto de Havana com Washingtonem torno do petróleo e do açúcar, Nikita Krushev declarou em Moscou queos artilheiros soviéticos defenderiam Cuba com mísseis caso fosse neces-sário. Castro confirmou a oferta russa, embora advertisse que ela devia serinterpretada "metaforicamente". 

(*) O Che pensava inclusive que os Estados Unidos não poderiam cancelar a cota: "Éimpossível tirá-la [a cota de açúcar], porque Cuba é o maior, o mais eficaz e barato fornecedorue açúcar dos Estados Unidos [...] É impossível liquidar a cota de açúcar" (Ernesto Che Gue-vara, "La guerra de guerrillas", em Escritos y discursos, op. cit., t. 1, p. 182). 

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Guevara, que nunca se deixou ficar para trás, logo declarou: "Cuba é,hoje, uma gloriosa ilha no centro do Caribe, defendida pelos mísseis damaior potência militar da história".40 Por certo os dirigentes modularam diasdepois o tom de sua belicosidade. 

Fidel esclareceu que a independência de Cuba se apoiava na justeza de

sua causa e não nos mísseis soviéticos. O Che sublinhou que qualquer ten-tativa de transformar Cuba em um satélite soviético encontraria resistên-cia.41 Mas era natural que, após as visitas particulares à URSS de NufiezJiménez, em junho, e Raul Castro, em julho, o comandante Ernesto Gue-vara liderasse a primeira delegação oficial cubana à União Soviética, emoutubro de 1960. Seria o ponto culminante do entusiasmo guevarista com osocialismo de fato existente. 

Fidel e o Che criaram, por meio das negociações com a União Sovié-tica, as condições para o aguçamento do antagonismo com os EstadosUnidos. Já dispunham de uma rede de segurança, tanto em matéria de ven-da de açúcar como de abastecimento de petróleo, e, a seguir, de armas. Po-

diam empreender o endurecimento interno, um castigo que não envolveudiretamente o Che, mas contou com seu apoio e em certa medida foi inspi-rado por ele. Foi o Che inclusive quem criou o primeiro "campo de trabalho"em Cuba, naquele período, precisamente em Guanahacabibes.42 Embora elepróprio tenha passado alguns dias ali, voluntariamente, estava estabele-cendo um dos mais odiosos precedentes da Revolução Cubana: o confina-mento de dissidentes, homossexuais e, mais tarde, aidéticos. Sua justificaçãoposterior é franca, precisa e lamentável: 

Só em casos duvidosos se envia a Guanahacabibes gente que deveria ir para acadeia. Eu acredito que quem deve ir para a cadeia deve ir para a cadeia, dequalquer maneira. Seja um velho militante, seja quem for, deve ir para a ca-

deia. Para Guanahacabibes enviam-se pessoas que não devem ir para a cadeia,gente que atentou contra a moral revolucionária, em maior ou menor grau,com sanções simultâneas de privação de cargos, em outros casos não, semprecomo um tipo de reeducação por meio do trabalho. Trabalho duro, não tra-balho bestial, mas condições de trabalho duras sem serem bestiais [...]4) 

A liberdade de imprensa foi limitada. Vários jornais fecharam, e asprincipais estações de rádio foram requisitadas pelo governo. A universi-dade foi pressionada a alinhar-se com o regime; os professores apartidáriosabandonaram o país. A radicalização naturalmente atingiu os dois lados. Aoposição ao regime, alimentada por Washington e pelas tradicionaispaixões políticas cubanas, chegou a extremos insuspeitados. Reformistas do 

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Vinte e Seis de Julho se uniram a ex-colaboradores de Batista, preferidos pelaCIA, para combater seus novos inimigos, os irmãos Castro e Che Guevara. Acontra-revolução passou a ações mais drásticas: a sabotagem, a queima dasafra, os assassinatos de milicianos alfabetizadores no Escambray e váriasexpedições armadas enviadas do exterior. Os Estados Unidos puseram em

marcha decisões irreversíveis; buscavam a derrubada de Fidel Castro, fossecomo fosse. Puseram-se em movimento os preparativos que desembocariamna agressão de playa Girón [baía dos Porcos]. Uma voragem se apoderava detodos; mas alguns sabiam aonde ela conduzia, outros não. 

O Che era um dos que sabiam, e isso lhe dava uma força política colos-sal. Em um telegrama secreto (só para os olhos de seu superior em Washing-ton), o embaixador dos Estados Unidos informava em julho sobre o boatode que o Che patrocinara uma espécie de golpe de Estado. Não se atrevia aconfirmar a informação, mas esclarecia: "Estou convencido de que Guevaraé o verdadeiro governante deste país neste momento, embora não possa go-vernar por muito tempo sem Fidel".44 Em 8 de agosto, a revista Time dedicou

sua capa ao Che: conferia-lhe o título de Cérebro da Revolução, sendo Fidelo coração e Raul o punho.45 A revista de Henry Luce pontificava: "Ele é omais brilhante e o mais perigoso dos membros do triunvirato. Portador deum sorriso de doçura melancólica, que muitas mulheres acham devastador,o Che conduz Cuba com calculismo gélido, vasta competência, umainteligência elevada e um grande senso de humor".46 

Assim, quando Che Guevara aterrissou em 22 de outubro de 1960 emMoscou, tinha o mundo e Cuba na mão. Vinha ratificar e aprofundar os pro-gramas de cooperação com a URSS; era a segunda etapa de uma turnê queduraria dois meses — outra vez uma longa ausência de Cuba. Novamente adistância, a alteridade e a inquietação o atraíam. Deixou para trás Aleida,

grávida de oito meses, uma situação económica precária e uma série de "pro- jetos internacionalistas" pendentes. Não importava: navegar era preciso. 

A viagem fora preparada com antecipação. Desde 1" de setembro oChe informou ao recém-chegado embaixador soviético em Havana que irialiderar a delegação a Moscou.47 Seu primeiro objetivo concreto era garantirque a URSS comprasse o açúcar que os Estados Unidos iriam adquirir no anoseguinte. Guevara colocou sua preocupação para o embaixador soviético: osEstados Unidos não levariam os 3 milhões de toneladas de açúcar previstospara 1961, e portanto Cuba esperava que a URSS suprisse o rombo na deman-da.48 O diretor do Banco Nacional enquadrou a solicitação cubana em umesquema de integração dentro do bloco socialista e colocou a possibilidade 

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de realizar "conferências ou encontros em Moscou com representantes deoutros países socialistas". A visita também serviria para resolver algunsassuntos específicos e outros um tanto espinhosos, como a solicitação deespecialistas financeiros soviéticos (uma espécie de contradição in adjectio), já que Fidel Castro tinha a intenção de nacionalizar no final do ano todos os

bancos privados. Por último, figurava na agenda a revenda de gasolinacubana a outros países, como o Canadá, a partir dos excedentesde petróleo soviético (um ardil que duraria até fins dos anos 80, proporcio-nando a Cuba uma soma nada desprezível de divisas) ,49 

Antes da visita a Moscou programou-se uma escala na Tchecoslo-váquia, onde se deu o primeiro encontro do argentino com um país do Pactode Varsóvia. Ali o Che assinou um convénio de cooperação que compreen-dia uma linha de crédito de 20 milhões de dólares e o estabelecimento daindústria automotiva tcheca em Cuba (basicamente caminhões e tratores).A estadia na URSS durou pouco mais de duas semanas. A delegação cubanapercorreu os lugares obrigatórios: a casa-museu de Lenin, o metro de

Moscou, o mausoléu de Lenin e Stalin, a praça Vermelha no dia do aniversário da Revolução de Outubro, oito fábricas moscovitas e um sovkhoz nosarredores da capital. Os cubanos também assistiram a um concerto da filarmônica e duas apresentações do Bale Bolshoi. A viagem incluiu entrevistacom Krushev e Mikoian, para conversar, entre outras coisas, sobre a eleiçãdde john Kennedy para a presidência dos Estados Unidos, que acabara dtocorrer, além do percurso obrigatório pelas diversas instâncias do aparatesoviético (a editora de literatura estrangeira, um encontro com o cosmonauta Yuri Gagarin, a casa da amizade entre os povos, a universidade, uithospital, um circo). A seguir partiram para Leningrado, onde visitaram nInstituto Smolny e o encouraçado Aurora, o Hermitage e o Palácio de Invei

no, para depois se dirigirem a Stalingrado e a Rostov, às margens do Don. Ou seja, o Che teve o clássico tour de amigo da heróica URSS socialisfc

Uma revisão cuidadosa do programa de sua visita sugere que faltavam coropromissos que saturassem a agenda, e foi preciso inventar pretextos, distrações e atividades "de recheio", mas, por outro lado, tratou-se de impedi:que o visitante tivesse tempo livre para dedicar a outras coisas e outra gente'  

Claro que o Che não consegue romper o cerco de seus anfitriões e n»chega a conhecer nenhuma típica residência soviética, nem o campo,iSibéria ou qualquer aspecto da vida do país que fosse menos glorioso e alei-tador. Os soviéticos consideraram esse isolamento perfeito, justificando sa"falta de contato com as pessoas humildes da rua" com a alegação de que sai 

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hóspede era "um desses populistas". O Che dedicou seu tempo a conversascom funcionários junto aos quais podia "resolver problemas de seu governoque ninguém na rua poderia resolver".51 

Em 16 de novembro o Che deixou Moscou com a mesma admiraçãopela pátria do socialismo que tinha ao chegar, embora certas descobertas

inegavelmente o tivessem desconcertado. Em um jantar entre amigos nacasa de Alexeiev, o argentino viu que a louça era de porcelana finíssima ecomentou: "Os proletários de verdade comem em pratos deste tipo?"." MasCarlos Franqui recorda um episódio mais ilustrativo da inclinação ideoló-gica do Che naquela época: 

De volta a Havana, tive um incidente com Che Guevara em uma reunião doConselho de Ministros. Contei o que acontecera em Praga com as tuzeras (as jovens tchecas dos hotéis) e as lojas dos tuzex (os funcionários tchecos daNomenklatura). O Che, que havia passado lá o mesmo tempo que nós, à frentede uma delegação, desmentiu-me: "Mentira sua; você e os seus preconceitos"."Eu não minto, Che, nem tenho preconceitos. Nem estoii cego como você,

que enxerga tudo cor-de-rosa." "Digo que é mentira. Passei por lá igual comovocê e não vi nada."* 

A ingenuidade se explica: ele não conhecia o mundo socialista, nãoacompanhara as grandes discussões dos anos 50 na Europa Ocidental, e seucontato com a intelectualidade marxista do exterior mal começara. Suacarência de passado militante ou mesmo politizado começava a se fazer sen-tir. Talvez por isso não tenha se embebido dos vigorosos debates do degeloKrushevista. Um ano depois de sua breve passagem pela capital russa, pu-blicou-se em Moscou, entre outros textos heréticos, Um dia na vida de Ivan

 Denisovich, de Alexander Soljenitsin. Durante sua estadia em Moscou,celebrou-se o Congresso dos 81 Partidos Comunistas, procedentes do mun-do inteiro, no qual chineses e soviéticos se empenharam em uma luta fratri-cida e irreversível, e onde comunistas italianos e franceses protagonizaramuma acesa disputa sobre a desestalinização. O Che passou por tudo em bran-cas nuvens. Ralhou com o embaixador cubano Faure Chomón quando este 

(*) Carlos Franqui, Retratode famãia com Fidel, Barcelona, Seix Barrai, Espanha, 1981,pp. 186-7. Talvez o Che fosse um pouco menos ingénuo do que insinua Franqui. RaulMaldonado recorda como Alberto Mora, um dos jovens assessores de Guevara, foi acossadopor uma donzela moscovita durante sua estadia na URSS. Orgulhosamente, ele informou aseu comandante como resistira aos perversos avanços da garota, para receber a réplica in-clemente do Che: "Que espécie de maricas é você?!" (Raul Maldonado, entrevista,op. cit.). 

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se opôs a depositar uma coroa de flores na tumba de Stalin. Os motivos paranão fazê-lo eram tanto cubanos como soviéticos; um ano depois, em novem-bro de 1961, o Paizinho dos Povos seria retirado do mausoléu, onde repou-sava junto com Lenin, para ser enterrado nos muros do Kremlin. 

Em Moscou o Che recebeu suas primeiras lições sobre a intensidade e

complexidade do incipiente conflito sino-soviético. Desde antes de ele par-tir, os diplomatas soviéticos sediados em Havana tinham insistido váriasvezes em sua disposição de convocar uma reunião da chamada "mesa-redon-da" dos países socialistas que se realizaria em Moscou. As razões eram evi-dentes: a URSS preferia repartir a compra do açúcar cubano com todos os seusaliados. Dos 3 milhões de toneladas que o Che solicitara que os soviéticoscomprassem, Krushev só aprovou a aquisição de 1,2 milhão. Convidou,assim, os demais países do bloco a comprar o 1,8 milhão de toneladas restante.  

Contudo, o cerne da questão residia na participação chinesa na mesa-redonda. Anatoly Dobrynin, na época subsecretário de Relações Exteriores,citou o embaixador chinês em Moscou para informá-lo da visita do Che e

convidar a China a integrar a mesa-redonda. Em Praga, em 26 de outubro de1960, o Che enviou uma nota a Faure Chomón (carta que estranhamenteaparece nos arquivos do Ministério de Relações Exteriores da URSS) ins-truindo-o para que a convocação fosse a todos os países socialistas, em par-ticular à China.51 O Che caiu, por assim dizer, na armadilha soviética- Osfuncionários de Moscou desejavam que a cooperação sino-cubana ocorressesob seu patrocínio. Não é preciso dizer que os chineses não morderam oanzol. Uma nota de Dobrynin ao vice-ministro Pushkin, datada do dia dachegada do Che a Moscou, informa que, apesar de toda a insistênciamoscovita, "ainda não há uma resposta de Pequim" sobre a participação namesa.14 Os chineses não assistiram à reunião.* 

Houve outros desencontros entre o Che e os avatares do confrontosino-soviético. Segundo a versão de Leonov — tradutor e sombra perma-nente do argentino durante sua estadia na Rússia —, o virtual vice-presi-dente cubano convidou-o a acompanhá-lo a Pequim e Pyongyang. Guevaratemia que a Coreia do Norte não tivesse intérpretes do espanhol para oidioma local. De Pequim, Leonov só conseguiu uma irada recusa de visto deentrada." Na terra de Kim II Sung, o intérprete-espião viu-se obrigado a 

(*) Segundo o Che, os países que firmaram o Convénio Multilateral de Pagamentosforam "todos os países socialistas da Europa e a República Popular da Mongólia" (ErnestoChe Guevara, "Comparecimento televisado à assinatura de acordos com os países socia-listas", 6/1/61, em Ernesto Che Guevara, Escritos, op. cit., t. 5, p. 8).  

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albergar-se na embaixada soviética, enquanto a delegação cubana se hospe-dava em uma casa típica protocolar. Lógico: nem os chineses nem os co-reanos viam com bons olhos a presença de um agente da KGB na delegaçãocubana, ainda que aparentasse ser um simples tradutor. 

Por fim, Guevara deparou-se na capital soviética com a já mencionada

Conferência dos 81 Partidos Comunistas e Operários. A reunião se inicioudurante os primeiros dias do Che em Moscou e prolongou-se até ele regressarde sua viagem a Pequim e Pyongyang. Para a URSS, o propósito do multi-tudinário conclave era alcançar uma condenação unânime do movimentocomunista internacional às teses "belicistas e aventureiras" de Mao Tse-Tung.Ao voltar da China e ser informado das conclusões da conferência, o Cheesclarece que "não participamos da redação do comunicado dos partidoscomunistas e operários, mas o apoiamos totalmente". Asseverou também que"a declaração dos partidos é um dos acontecimentos mais importantes de nossaépoca"; elogiou a "solidariedade militante do povo soviético e do povocubano"; e declarou que "Cuba devia seguir o exemplo de desenvolvimento

pacífico mostrado pela URSS".56 Um apoio claro à posição de Moscou. O congresso de 1960 foi a primeira grande tentativa de Krushev de

excomungar os maoístas da ortodoxia comunista. Embora a tentativasoviética não tenha prosperado inteiramente, a China ficou isolada e encur- ,,ralada, a tal ponto que seu único aliado, Enver Hoxha, da Albânia, retirou-se dareunião em 25 de novembro, batendo a porta. Tudo indica que o Che, apesar dapresença de uma delegação do PSP cubano presidida por Anibal Escalante, nãose inteirou das vicissitudes da enorme contenda sino-soviéti-ca, nem da própriacelebração do congresso. 

O fato de que o Che não soubera de nada sobre o desenvolvimento da Con-ferência dos 81 me foi explicitamente confirmado por um dos que o acom-panharam a Moscou. Pareceu-me surpreendente, já que a conferência atra-vessou momentos dramáticos e seu desenlace permaneceu incerto até oúltimo minuto [...] Por incrível que pareça, a desunida família dos partidoscomunistas, em plena contenda, conservava seus costumes de "segredos entreiniciados", a tal ponto que um Che Guevara, progressista, revolucionário eamigo por excelência do bloco socialista, não tinha o direito de ser informadoda situação, nem sequer parcialmente. Esses métodos não deixariam de pesarsobre a evolução do Che, que, depois de ter sido um dos mais ardentes par-tidários da URSS em Cuba, converteu-se em um de seus críticos mais severos"."7 

O Che permaneceu na China quase duas semanas. Conheceu ChuEn-Lai e foi apresentado a um Mao Tse-Tung de idade avançada mas ainda 

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lúcido. O Grande Timoneiro, parcialmente substituído por Liu Shao-Shi,pagava pelos colossais erros do Grande Salto Adiante com um virtual exíliopolítico interno, que se encerraria três anos depois com sua famosa decla-ração de "fogo contra o quartel-general", que desencadearia a RevoluçãoCultural. O Che teve três encontros com Mao. Segundo um biógrafo

recente, que não cita fontes, o dirigente chinês teria lhe confiado sua dis-posição de apoiar a luta de Patrice Lumumba no Congo Belga. O Chedeixaria Pequim persuadido da pureza da variante oriental do marxismo-leninismo contemporâneo.58 A República Popular da China comprometeu-sea comprar 1 milhão de toneladas de açúcar em 1961, e Chu En-Lai ho-menageou o Che no Grande Salão do Povo. Em seu discurso, o emissáriocubano assinalou vários pontos de semelhança entre as revoluções cubana echinesa, citou o comunismo chinês como exemplo e afirmou que havia sedesvendado "um novo caminho para as Américas". Tudo isso conduziu oDepartamento de Estado de Washington a concluir que o Che tomara o par-tido de Pequim no conflito sino-soviético, uma conclusão prematura e

superficial, mas premonitória.59

 Na realidade, manifestou-se aqui a primeirapostura incómoda e no fundo insustentável do Che em torno do conflitosino-soviético: se ele avalizava os resultados ligeiramente antichineses daconferência de Moscou, também expressava simpatia e admiração pela re-volução dirigida por Mao Tse-Tung. Com o tempo essa acrobacia ideológicae geopolítica se tornaria impossível. Antes de partir, em 24 de novembro, oChe foi avisado do nascimento de sua primeira filha do segundo casa-mento. Sua ausência durante o parto confirmaria as confidências que fizeraà mãe, Célia: a única coisa que contava para ele era a Revolução; as tarefasque ela impõe se sobrepunham a tudo o mais. 

As opiniões sobre a visita do Che a Moscou, Pequim e Pyongyang são

contraditórias, dependendo de sua procedência: um êxito, um fracasso, ounada disso. Os norte-americanos a consideraram mais frutífera para Cuba,embora duvidassem da concretização dos resultados: "O sr. [Allen] Dulles[diretor da CIA] informou que Che Guevara voltou a Cuba com muitíssimosacordos que, caso fossem cumpridos [o que era pouco provável segundoDulles], fariam com que mais da metade do comércio de Cuba passasse a serfeito com o Bloco [Socialista]".60 

Os ingleses tinham uma suspeita diferente: 

Um de meus colegas foi informado pelo embaixador cubano [em Moscou] deque a missão de Guevara partiu para Pequim decepcionada com os resultadospráticos de sua visita a Moscou, apesar da acolhida pública muito calorosa. 

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Uma fonte próxima a Krushev informa que a política soviética consiste agoraem evitar qualquer ato que possa pôr em questão as relações com a [próxima]administração Kennedy e que os cubanos tinham sido notificados de que de-:veriam evitar provocações descabidas [...] Os cubanos estão sofrendo uma sériacarência de dólares [...] e a URSS nada quis fazer para aliviar essa carência. Talvez,ao retornar da China, Guevara faça outro esforço para obter dólares da URSS.61 

O Che sem dúvida impressionou seus interlocutores. Estes não espe-ravam que o visitante, caribenho, demonstrasse apego ao trabalho. Mas oChe sabia dar valor ao tempo, disciplinava sua delegação e cumpria o pro-tocolo a cada hora e minuto. Como recorda Leonov, "era muito pontual,contrariamente ao costume dos mexicanos e latino-americanos; não pare-cia nem um pouco latino-americano".62 

Ao mesmo tempo, apresentava uma série de desatinos económicos quesó podiam desconcertar seus sócios: 

Queria converter Cuba em um Estado industrializado. Cuba não tem mi-nérios, o que serviria de base para a construção de máquinas, transportes. Pen-

sava em converter Cuba em um país exportador de metais e laminados para azona do Caribe. Todos os técnicos soviéticos se opunham, diziam que era umaloucura económica, que Cuba não possuía carvão-de-pedra, nem minério deferro, seria preciso transportar tudo para lá, o que encareceria muito a pro-dução de ferro. O Che não encontrava argumentos suficientes para convencê-los. Davam-lhe mais e mais cálculos indicando que aquilo seria antieconô-mico, e essa discussão durou vários dias. Ele insistia. Explicava que assimformaria uma classe operária e um mercado, que no momento não existiam pornão haver siderurgia. Insistia no aspecto social, em especial estratégico, e aparte soviética ia mais pelos cálculos económicos, de custos, de mercado:"Vocês não têm mercado bastante, com uma usina siderúrgica vocês têm 1 mi-lhão de toneladas por ano. Imaginem! Em quinze anos vocês terão 15 milhõesde toneladas de aço. O que irão fazer com isso?".*

Depois de visitar a China e a Coreia do Norte, o Che viajou duas vezesa Moscou antes de assinar e emitir, em 19 de dezembro, ou seja, dois mesesapós sua chegada, o comunicado conjunto e o acordo sobre a compra de açú-car. Sua rápida visita a Berlim, na Alemanha democrática, ajudou-o a 

(*) Assim como Anatoly Dobrynin lembrou anos depois: "Guevara era impossível;queria uma pequena siderúrgica, uma fábrica de automóveis. Dissemos a ele que Cuba não eragrande o bastante para sustentar uma economia industrial. Eles precisavam de divisas, e a úni-ca maneira de obtê-las era fazendo o que faziam melhor: produzir açúcar" (Cit. em RichardGoodwin, Remembering America, Nova York, Harper and Row, 1988, p. 172). 

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encontrar compradores para o açúcar cubano. A estadia notabilizou-se ape-nas por uma razão: conheceu ali uma jovem tradutora germano-argentina,Tâmara Bunke Bider, que seis anos depois morreria metralhada cruzando orio Grande, na Bolívia, com o nome de Tânia. Ela começou a colaborar como Che em diferentes tarefas desde muito antes de se unir a ele nos Andes. 

De volta a Havana, o Che apresentou pela televisão as conclusões desua viagem. Por um lado, tratou de dissipar as dúvidas que pudessem tersurgido em Cuba em vista do prolongamento de sua estadia no exterior e dademora na assinatura do comunicado. Esclareceu que as negociações seatrasaram por causa da sua complexidade. Tratava-se de reorientar do diapara a noite praticamente todo o comércio externo de um país no sentido deum bloco económico ao qual nada o unia: nem o clima, nem o sistema demedidas, nem o idioma, nem a cultura. Pareceu convincente. Explicou osmotivos pelos quais os países socialistas finalmente concordaram com suassolicitações, como os convenceu e as grandes vantagens dos acordos paraCuba, uma vez rompida a ligação económica com os Estados Unidos. A fala

exibia um domínio dos expedientes, uma presença televisiva e habilidade deargumentação só superados por Fidel Castro e notável para alguém semexperiência nesse meio de comunicação. 

O Che regressou a Cuba com algumas ideias mais definidas sobre omundo socialista e seus diversos componentes. Ao prestar contas de suaviagem na televisão, confessou uma admiração provavelmente sincera, mas já destoante da realidade conhecida desses países. Seu comentário sobre asituação da China, por exemplo, apenas um ano depois da catástrofe doGrande Salto Adiante, com seus transtornos generalizados na economia, nasociedade e na política, aproxima-se muito da visão idealizada que muitosviajantes tiveram naqueles anos ardorosos: 

Naturalmente, não se pretenderá dizer que o nível de vida da China alcançao dos países desenvolvidos do mundo capitalista, mas não se vê absolutamentenenhum dos sintomas de miséria que se vêem em outros países da Ásia quetivemos a oportunidade de percorrer, alguns inclusive mais desenvolvidos,como o próprio Japão. Vê-se todo mundo comendo, todo mundo vestido —vestido uniformemente, é certo, mas todos corretamente vestidos; todo mun-do tem trabalho e um espírito extraordinário.* 

(*) Ernesto Che Guevara, "Comparecimento televisado", op. cit., em Ernesto CheGuevara, Escritos, op. cit., t. 5, p. 12. Seu comentário sobre a visita à Coreia do Norte é ain-da mais revelador: "Dos países socialistas que visitamos pessoalmente, a Coreia é um dos maisextraordinários, talvez o que mais nos impressionou de todos eles" (ibidem, p. 19).  

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Suas apreciações sobre os países socialistas em geral, se bem que parti-lhadas na época por milhões de comunistas pelo mundo, também con-tradiziam as impressões que muitos outros, antes simpatizantes do socialis-mo geral, começavam a formular. O Che não parecia estar enganando oscubanos, acreditava no que dizia, mas começava a isolar-se. A distância

entre suas crenças e a realidade era tamanha e sua honradez intelectual tãoprofunda que, na hora da desilusão, o desencanto será demolidor. Tantahonestidade ao fazer seu balanço conduziria necessariamente à tragédia;expectativas como as que ele próprio descreveu em seguida eram simples-mente desproporcionais: 

O espírito de humanidade desses povos [socialistas] é algo que realmente con-vence de que definitivamente não podemos contar com governos amigos,exceto, em primeiro lugar, desses países do mundo. Além do mais, a força, aelevada taxa de desenvolvimento económico, a pujança que demonstram, odesenvolvimento de todas as forças do povo, deixam-nos convencidos de queo futuro é definitivamente de todos os países que lutam, como eles, pela paz no

mundo e pela justiça, distribuída entre todos os seres humanos.

63

 Ainda pertenciam ao futuro o distanciamento do Che em relação à

URSS e os estragos que o conflito sino-soviético faria em suas epopeiasafricana e boliviana. Mas já se nota o germe de duas grandes incompreen-sões: a verdade do caráter da União Soviética e a natureza irremediável docisma entre Moscou e Pequim, com seus respectivos partidários. Porém, otempo em que o Che esteve à frente do Banco Nacional não foi dedicadoexclusivamente à economia e às negociações com a União Soviética e aChina. Duas facetas de sua atividade nesses catorze meses merecem serrelatadas, não só pela importância que adquiriram na vida do Che, mas tam-bém por suas consequências para Cuba e a América Latina. Em primeiro

lugar, ele ajudou a lançar o conceito de trabalho voluntário; em segundo,publicou seu mais influente texto, A guerra de guerrilhas, e prometendo queCuba exportaria a Revolução para todo o continente. Foi a marca maisduradoura e controvertida que o Che deixou. 

As jornadas de trabalho voluntário começaram em Cuba desde 23 denovembro de 1959. A primeira teve lugar na Ciudad Escolar Camilo Cien-fuegos, em Caney de Las Mercedes, na província de Oriente. A denomi-nação e o objetivo da escola — batizada com o nome do recém-falecidoCamilo —, assim como a direção da equipe de construção por ArmandoAcosta, seu colega comunista de Las Villas, tiveram a influência do Che.Durante alguns meses, ele aterrissaria todo domingo, em um avião oficial, 

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para ajudar a construir a escola ao lado dos trabalhadores da indústria decalçados de Manzanillo e uma centena de soldados do exército rebelde.64

Mas, para além dos detalhes acidentais, nasceu daí um conceito e todo umprograma. Com o início da safra em dezembro, o Che começou a participarcom maior assiduidade nas tarefas voluntárias. 

Ele pregava pelo exemplo, na construção, na indústria têxtil, no descar-regamento dos navios procedentes dos países socialistas e, naturalmente, nasafra de cana. Além do evidente prazer que experimentava ao encontrar-secom cubanos de carne e osso — gente que, afinal de contas, não conhecia —e do desafio físico de enfrentar o pó das tecelagens e da cana, sua intenção eraeminentemente política. Desde 1960 ele pensava que o melhor estímulo aotrabalho devia ser a emulação revolucionária; acreditava que era precisomotivar os cubanos e engajá-los na Revolução. Para Guevara, o trabalho vo-luntário era uma tarefa grata, "que se realiza com alegria, que se realiza ao somde cânticos revolucionários, em meio à mais fraternal camaradagem, emmeio a contatos humanos que revigoram e dignificam a todos".6'' 

O trabalho voluntário era também um detonador do despertar revolu-cionário, uma escola, um aprendizado da Revolução: "Tratava-se de umaescola criadora da consciência, é o esforço realizado na sociedade e para asociedade, como contribuição individual e coletiva. Vai formando essaconsciência elevada que nos permite acelerar o processo da transição [...] Otrabalho voluntário é parte dessa tarefa de educação".66 

Os fins de semana revolucionários começaram a se tornar famosos.Alguns compuseram canções exaltando-os (chegariam até o Chile os ecosdos "domingos solidários do trabalho voluntário", como reza a canção deIsabel Parra); outros os lamentavam amargamente. A participação de Gue-vara possuía um duplo efeito. Por um lado, fortalecia sua imagem como diri-

gente disposto a sacrificar-se junto com os demais, e a fazê-lo com ânimoautêntico e não como uma carga. Por outro, servia de exemplo, possibilita-va a massificação do trabalho voluntário. Os filmes do Che cortando cana,tecendo panos, carregando sacos de arroz e cavando canais passaram a fazerparte da filmoteca e de toda a iconografia do comandante. Como era de sesupor, rendia imensamente em matéria de popularidade. Nenhum dosoutros líderes da Revolução se igualava a ele na paixão pelas fainasdomingueiras. 

Surgiram problemas quando, em razão da necessidade imperiosa deaumentar a produção de açúcar, transformou-se o princípio em um vício desuperexploração do trabalhador cubano. Como preceito político, ideológi- 

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co e cultural, o trabalho voluntário tinha em Cuba um propósito elogiável.Como método para prolongar a jornada de trabalho e reduzir o salário real,era contraproducente e antieconômico. O Che vislumbrou esses dilemasmais tarde: "O trabalho voluntário não deve ser visto pela importânciaeconómica que tenha hoje para o Estado; o trabalho voluntário é funda-

mentalmente o fator que desenvolve, mais que qualquer outro, a consciên-cia dos trabalhadores".67 

Como se veria na fracassada safra dos 10 milhões em 1970, nada dese-quilibra tanto uma economia como uma transferência maciça de mão-de-obra de um setor para outro, inclusive ou mais ainda caso se trate de umdeslocamento "voluntário". 

Com o tempo, as aparentes embora fictícias vantagens económicas dotrabalho voluntário lhe imprimirão uma marca cada vez mais coercitiva. Onão-comparecimento como "voluntário" passou a acarretar diversassanções, desde o ostracismo até a denúncia como "contra-revolucionário".O Che não testemunharia isso tudo, e sua contribuição para o inegável

altruísmo da Revolução Cubana faz parte das páginas mais líricas da históriada ilha. Mas a perversão ou deformação de suas teses o seguiria como umespectro; sua própria morte adviria em parte da distorção guevarista de seuspróprios princípios. 

A versatilidade do Che no cumprimento das tarefas do governo e daRevolução acentuou-se nesses meses. Junto com as responsabilidades orto-doxas na economia e diplomacia tradicionais, ele continuou a se ocupar comfrequência e atenção crescentes de seu tema predileto. As perspectivas daRevolução na América Latina eram sua verdadeira paixão, mesmo que naprática o tempo que consagrava a elas ainda fosse reduzido. Ele começouentão a entrevistar-se com dirigentes latino-americanos, de maneira mais

sistemática e organizada que em 1959, e a adquirir ideias mais nítidas sobreas diversas correntes. Sua reflexão sobre a América Latina cobre três frentes:a reação do subcontinente diante das agressões dos Estados Unidos contra ailha; o comportamento da esquerda tradicional, e a difusão dos ensinamen-tos da Revolução Cubana. 

A partir da reunião da Organização dos Estados Americanos realiza-da na Costa Rica em agosto de 1960, ficou evidente que Washington sedispunha a, tal como na Guatemala de 1954, intensificar sua investidaanticomunista e anti-soviética com a adesão do maior número possível degovernos latino-americanos. Desde 1960, o Che desenvolveu uma sofisti-cada análise geopolítica da região, e algumas de suas hipóteses aparecem 

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em artigos para Verde Olivo. O segínte relato, de uma conversa com oembaixador da União Soviética eu Cuba, apresenta um pensamentocompleto e matizado sobre os motivs e a racionalidade das diferentes pos-turas continentais: 

Governos desses países [da Amétta Latina] fazem um jogo duplo — [disse

Guevara]. Da boca para fora, pronnciam-se contra a intervenção nos assun-tos de Cuba; mas votam com os noç-americanos, contra Cuba. Os governosreacionários da América Latina rretram-se firmes com relação a Washingtonna aparência, para pressionar os iiice-americanos e receber mais créditos eoutras formas de ajuda. Pretenderiaproveitar o simples fato da existência deCuba revolucionária para chantajgr os Estados Unidos. Estes, com medo deque a Revolução Cubana se repúem outros países, começaram a ofereceruma ajuda mais generosa, visanddeter o desenvolvimento do processo re-volucionário na região. Mas a Amtiea Latina está fervendo, e no ano que vempodem-se esperar explosões revckionárias em vários países, em primeirolugar no Peru e no Paraguai. Esseotocessos sem dúvida se acelerarão caso osEstados Unidos, com o apoio dospvemos reacionários, ousem alguma ação

contra Cuba. Claro que o mais proável é que as intervenções revolucionáriasnesses países sejam esmagadas pias forças armadas norte-americanas, queacudirão ao chamado dos governcireacionários locais. Em outros casos, comoos da Argentina, Uruguai, Chile (Peru, lamentavelmente a União Soviéticae outros países socialistas não podríam ajudar esses povos.6"

O Che compreendia cabalmeite a atitude dos Estados Unidos, assimcomo a de seus aliados regionais. /Aliança para o Progresso, lançada porJohn F. Kennedy um ano e meio doois do encontro de Guevara com Ku-driavtsev, obedeceria a essa lógica:;yitar novas centelhas revolucionáriasmediante a hipotética canalizaçãole vultosos recursos para os países ao suldo Rio Grande. Nesse particular, sprevisões do Che seriam brilhantes.

Também tinha razão — embora eu menor grau — no prognóstico sobre apostura dos governos latino-amerionos. Predisse que tais governos mante-riam uma resistência mínima dian; de Washington, sempre que e na me-dida em que pudessem arrancar m;ís concessões, e com a condição de queesse enfrentamento não excedesseleterminados limites. Guevara superes-timou, contudo, a firmeza dos latito-americanos — inclusive por motivospragmáticos como os que ele mesnij assinala — perante o conflito em esca-lada entre Havana e Washingtori Como ficou provado mais tarde, comexceção do México, todos os govtnos da região aceitaram mais cedo oumais tarde o diktat dos Estados Utdos e limitaram suas relações diplomá-ticas e comerciais com a ilha. P(t último, Guevara também acertou ao 

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lamentar que a URSS não pudesse tratar outros países com a mesma gene-rosidade com que tratou Cuba. O Chile, por exemplo, sentiu na própriacarne essa retração soviética, dez anos mais tarde. 

Foi no que tange às "explosões" no continente que os vaticínios do Chese mostraram menos certeiros. As previsões guevaristas não se confirmaram

nem no Peru, nem no Paraguai, nem em qualquer outro país, com exceçãodo Chile, por uma via muito distinta e dez anos mais tarde. Foi preciso quetranscorresse quase outra década, após o episódio da Unidade Popular noChile, para que ocorressem levantes revolucionários significativos naAmérica Central. Precisamente porque tinha razão em suas análises, o Cheerrou em suas projeções. Os Estados Unidos, com efeito, ajudaram militar-mente os governos in situ e lhes transferiram consideráveis volumes de recur-sos (ao menos em comparação com as cifras do passado). Graças em parte aesse esforço que mais tarde seria chamado "contra-insurgente", a revoluçãolatino-americana não aconteceu. A outra razão da inexistência do final felizque o Che esperava estava em uma de suas apreciações: a caducidade da

esquerda existente. Em outra conversa do mesmo período com o embaixador soviético,Guevara, talvez com uma dose de franqueza pouco usual para o enviado deMoscou, expôs ao seu interlocutor alguns de seus pensamentos sobre aesquerda latino-americana. Assim o relatou Kudriavtsev: 

Guevara começou a falar em tom brusco. Disse: "Os dirigentes de esquerda daAmérica Latina não aproveitam a situação revolucionária, comportam-secomo covardes, não vão às montanhas e não iniciam a luta aberta contra seusgovernos corruptos. Os partidos de esquerda de outros países da América Lati-na", sublinhou Guevara, "têm condições muito melhores que o povo cubanopara a luta armada e a vitória. Políticos do tipo de [Vicente] Lombardo

Toledano [do México] só entravam o processo revolucionário [...] é um ver-dadeiro oportunista. Nós estamos seguros de que a luta ativa contra o imperia-lismo norte-americano que Cuba está levando a cabo revolucionará as massaspopulares dos países da América Latina. Ao final das contas ali se destacarãolíderes realmente revolucionários, que serão capazes de levar o povo até avitória contra seus governos corruptos e reacionários de agora. Por isso, nósconsideramos que todas as tentativas do governo cubano para realizar nego-ciações com os EUA e ajustar nossas discrepâncias não terão êxito. Pelo con-trário, poderiam ser entendidas pelos povos dos países da América Latinacomo uma debilidade de Cuba. Ê preciso superarmos o sentimento de fatalis-mo que está muito difundido entre os povos da América Latina de que é impos-sível lutar contra o imperialismo norte-americano".6'' 

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É surpreendente que já nessa época o Che pudesse se expressar assim apropósito dos partidos de esquerda da América Latina. O exemplo que elemencionou carecia de pertinência: Lombardo Toledano era tudo isso e maisainda, porém não pertencia ao Partido Comunista Mexicano, e sua organi-zação, o Partido Popular Socialista, já se entregara por completo ao governo

do México. Em contrapartida, era válida sua queixa contra os partidos tradi-cionais: com efeito, eles não eram revolucionários. E seu presságio sobre osurgimento de novas lideranças no seio da esquerda latino-americana tam-bém se verificaria. Em todos os países do continente, graças ao exemplo e aoapoio da Revolução Cubana, emergiram grupos e personalidades mais jovens, enérgicos e radicais em seu enfoque libertário. Confirmar-se-iaassim a premissa segundo a qual a intransigência e firmeza cubanas peranteos Estados Unidos serviriam de exemplo para a nova geração da esquerda nohemisfério. 

Todavia, a parte essencial de sua análise não se cumpriu, e ao fracassarlevou a vida do Che. As massas empobrecidas da América Latina não

seguiram as novas lideranças saídas do crisol cubano. Apesar de todos osesforços e sacrifícios, os partidos comunistas não se transformaram emcomandantes revolucionários, nem os castristas e guevaristas que prolife-raram nas universidades e selvas ibero-americanas arrastaram as massasdeixadas à própria sorte pelos comunistas. Mais uma vez o Che teve razão emsua análise, mas não em suas conclusões. O que é admirável e convém sem-pre sublinhar é a constância, a perseverança do argentino. Desde o início elemanteve as mesmas ideias, embasadas em diagnósticos similares, ligadas àsmesmas esperanças. A guerra de guerrilhas foi, naturalmente, onde essa visãodo Che apareceu com maior clareza; seu prólogo foi publicado no princípiode 1960 no diário Revolución; o texto completo seria editado pelo Ministério

das Forças Armadas na segunda metade do ano. Não foi sem contratemposque a obra veio a público: no dia seguinte à publicação do primeiro capítu-lo, Carlos Franqui, diretor do jornal, recebeu uma ligação de Fidel Castropedindo-lhe que não divulgasse os demais. Franqui respondeu que de qual-quer forma os dois dirigentes deviam chegar a um acordo; informou o Che,com quem não tinha relações particularmente cordiais, e este aceitou a ne-gativa de Castro.70 

As teses mais fortes, célebres e repletas de consequências para a Améri-ca Latina aparecem logo na primeira página; o Che já adquirira um rigor euma concisão notáveis. Segundo o autor, as três contribuições da RevoluçãoCubana para a "mecânica dos movimentos revolucionários na América" são: 

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1) As forças populares podem ganhar uma guerra contra o exército.2) Nem sempre é preciso esperar que se apresentem todas as condições para

a Revolução; o foco insurrecional pode criá-las.3) Na América subdesenvolvida o terreno da luta armada deve ser funda

mentalmente o campo."

A isso o Che acrescenta algumas advertências, em certa medida com-plementares e ao mesmo tempo contraditórias, que, como as primeiras teses,se converteram em virtuais aforismos da luta armada na América Latina: 

Onde o governo tiver subido ao poder por alguma forma de consulta popular,fraudulenta ou não, e mantiver ao menos uma aparência de legalidade consti-tucional, o germinar guerrilheiro é impossível por não se terem esgotado aspossibilidades da luta cívica [...] A luta guerrilheira é uma luta de massas, é umaluta do povo; a guerrilha, como núcleo armado, é a vanguarda combatente dopovo; sua grande força reside na massa da população.72 

Aqui o Che deixou várias lacunas conceituais que foram rapidamentepreenchidas por autores das mais variadas exegeses dos escritos do comandante.

A primeira não é a mais significativa, mas ilustra as dificuldades deinterpretação dos dogmas guevaristas, sobretudo quando a vida e a morte demuitos dependem de sua leitura adequada. A última tese pode dar a entenderque toda a América é subdesenvolvida, e portanto a luta será no campo, ,, emtodo o continente, de um a outro extremo; ou então que a guerrilha terá deassentar-se em bases rurais naquelas partes da América Latina onde efe-tivamente existir subdesenvolvimento. Exceto em países nos quais a tese nãocabia — por exemplo, o Uruguai, em cuja capital concentra-se mais da metadeda população —, foi interpretada da primeira forma. E, entendida assim, éfalsa, passageira e perigosa. Naqueles mesmos anos, fatias consideráveis dassociedades latino-americanas se despojaram de muitos dos traços do

subdesenvolvimento — entre eles, a preponderância da população e da pobrezarurais; outras o fariam muito em breve. Muitas vidas — entre outras as de doisamigos queridos do Che, seu guarda-costas Hermes Pena e o jornalistaargentino Jorge Ricardo Masetti — se perderam em selvas e sertões latino-americanos habitados apenas por guerrilheiros e soldados. 

A interpretação da guerra em Cuba, subjacente às três teses centrais, épelo menos discutível. Prejulga a questão central em debate: se a guerrilhaganhou do exército ou se Batista perdeu sem que seu exército fosse derrota-do. O Che coloca todo o peso de sua autoridade e habilidade no caráter mi-litar da luta em Cuba e na América Latina. Pressupõe que, em última instân-cia, dois exércitos se enfrentam, um perde e o outro ganha. Nos 35 anos que 

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se seguiram à publicação de A guerra de guerrilhas, apenas uma vez o milagrevoltou a ocorrer, na Nicarágua de 1979, e mesmo aí não aconteceu da formacomo o Che vaticinou. 

O texto também deixa entrever uma flagrante contradição conceituai.Se a guerrilha pode criar as condições a partir de um foco, a ausência de

condições obviamente não impede o início de um foco. Entre outras, avigência de um regime "democrático", em certas circunstâncias, deixa de serum obstáculo, o que contradiz a advertência sobre a vigência de um regimedesse tipo. Em outras palavras, seria possível criar focos insurrecionais inclu-sive naqueles países nos quais imperasse uma ordem constitucional — aVenezuela ou a Colômbia, por exemplo —, já que as condições revolu-cionárias não precisariam anteceder o início da luta. E, com efeito, logo bro-tarão focos em todo o continente, sem maior respeito pelas precauções ini-ciais do Che. 

Muitas das demais teses já tinham sido expostas em discursos ou relatosde guerra do Che. A condição de "revolucionário agrário" do guerrilheiro

que reparte as terras em sua travessia pela serra ou pela selva; a analogia comos jesuítas ("o guerrilheiro é o jesuíta da guerra"); o guerrilheiro que só com-bate quando tem a certeza de que vai vencer; a transformação paulatina daguerrilha em exército regular; todos esses temas povoam as páginas de Aguerra de guerrilhas, nas quais revivem, de forma mais sistemática e clara, asposturas da épica escalada de 195 7 e 1958. 

Também se intercalam todos os tipos de indicações técnicas: sobre osarmamentos mais apropriados, a importância do tipo de calçado adequado àluta armada... O texto está pontilhado de ideias ou reflexões sumamente pers-picazes e de instruções com uma riqueza de detalhes que, apesar de sua minú-cia, podem confundir a mais de um. E o caso das indicações sobre os atributos

físicos e psíquicos ideais do guerrilheiro, que incluem a utilidade do cachim-bo, "pois permite que se aproveite ao máximo, nos momentos de escassez,todo o tabaco que sobra dos cigarros e charutos".7' O Che não tinha meios desaber como reagiriam os milhares de jovens universitários que, durante trintaanos, partiriam iludidos e indefesos para o massacre, com ou sem cachimbo;ninguém é totalmente responsável pela sagacidade ou imaturidade de seusleitores. Tampouco o autor poderia prever que um de seus discípulos tardios, osubcomandante Marcos, de Chiapas, elevaria a receita do cachimbo a níveisda mídia internacional jamais sonhados pelo próprio Guevara. 

Entre as percepções particularmente brilhantes, destacam-se pas-sagens como a seguinte, sobre a relação inversa entre o terreno desfavorável 

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para a guerrilha e adequado à vida humana; ela ilustra a impressionantecapacidade do argentino para utilizar a percepção de um neófito inteligentee culto em áreas geralmente reservadas a especialistas ignorantes em outrasmatérias: 

Todos os meios propícios, todas as facilidades para a vida do homem fazem com

que este tenda à sedentarização; na guerrilha sucede o oposto: quanto maisfacilidades para a vida, mais nómade e incerta a vida do guerrilheiro. E que, narealidade, tudo é regido pelo mesmo princípio [...] tudo o que é favorável à vidahumana, com sua sequela de comunicações, núcleos urbanos e semi-urbanos,grandes concentrações populacionais, terrenos facilmente trabalhados pelamáquina etc, coloca o guerrilheiro em uma situação desvantajosa.71 

Outras observações importantes do livro se referem à interação entrepovo e guerrilha, que, como comprovamos nos capítulos anteriores, tem parao Che um valor vital. O guerrilheiro e o camponês se educam e transformamum ao outro, este constrói aquele e influi de maneira decisiva sobre ele, radi-calizando-o e mostrando-lhe a realidade de seu mundo. E não faltam no texto

as gratas referências — de maneira nenhuma falsas ou obsequiosas — à li-derança de Fidel: "Fidel Castro reúne em si as elevadas aptidões do comba-tente e do estadista, e sua visão deve ser nossa viagem, nossa luta e nossotriunfo. Não podemos dizer que sem ele a vitória do povo não teria ocorrido,mas essa vitória teria custado muito mais e seria menos completa"." 

Infelizmente, muitos entusiastas latino-americanos não perceberamque nem todo mundo é um Fidel Castro e que, sem uma liderança particu-larmente audaz, visionária e multifacetada, as perspectivas de êxitoinegavelmente enfraquecem. Outros, entre eles o Che, concluiriam que otalento do caudilho era substituível por outras virtudes. O erro custaria avida ao Che e a incontáveis adeptos de suas teses. 

Para além dessas considerações, e outras mais sobre a mulher, a saúde,o doutrinamento, A guerra de guerrilhas deve ser j ulgada por sua função e seusefeitos, e não tanto por sua intenção e conteúdo. Trata-se de um manual,forçosamente simplificador e resumido, inevitavelmente exposto a leiturasrápidas, entusiásticas e ingénuas. Encerrará a vantagem de ser ao mesmotempo acessível e inteligente, e mobilizar segmentos inteiros da juventudelatino-americana em torno de causas justas. Ensinou que, para triunfar, erapreciso ousar; para ousar, crer. O Che entregou a algumas gerações latino-americanas a ferramenta para crer e o ardor que nutre a audácia. Mas CheGuevara também foi responsável por sua cota de sangue e vidas, que teve depagar. Seus erros incluem uma ênfase indevida no aspecto militar; os ensi- 

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namentos que extraiu de uma contenda a cujo filme ele só assistiu pelametade; a pretensão de remover os enormes obstáculos a toda transformaçãosocial pela mera manifestação da vontade; o desconhecimento radical dascondições políticas, económicas e sociais de grande parte da América Lati-na, a começar por sua Argentina natal e pelo Brasil; e, por fim, a subesti-

mação de seu próprio impacto, de sua indiscutível excepcionalidade. Mor-to, ignoraria como e por que tantos universitários da classe média emergenteda região marchariam inocentemente para o matadouro. Seus erros cons-tituem culpas que pertencem ao menos parcialmente ao seu passivo, dívidasdas quais no mínimo uma cota deve ser posta em sua conta. Não foi o únicoresponsável pelos despropósitos guerrilheiros da esquerda latino-ameri-cana, mas foi um dos responsáveis. 

O Che deixou o Banco Nacional de Cuba às vésperas do maior triunfoda Revolução Cubana: a vitória de playa Girón em 22 de abril de 1961. Os

meses em que fez as vezes de banqueiro não o marcaram fisicamente. Só pelaligeira gordura que adquiriu em muitas viagens, horários impossíveis e poucoexercício. Mas esta podia se dever a um novo remédio que começava a serusado contra a asma: a cortisona. Ricardo Rojo diz que o encontrou comalguns quilos a mais, em meados de 1961, e Guevara explicou-lhe que erapor causa da cortisona.* Com efeito, médicos especialistas em asma queexaminaram algumas das fotos de Guevara nesses anos detectam a "cara delua" e o excesso de peso que costumam acompanhar o uso da cortisona. Qui-los a mais, quilos a menos, seu anjo da guarda permanece e se revela em umadas histórias mais fascinantes do Che. Apesar de sua postura ligeiramenteenvaidecida nesses meses, do trabalho estafante, da enfermidade e da cos-

tumeira falta de asseio, um fotógrafo cubano de génio e sorte capta-o por aca-so num dia de glória e luto em Havana. Mais uma vez a sorte desempenhou um papel insólito na construção das

imagens do Che. A foto que percorreria o mundo, o póster que sete anosdepois o incorporará ao imaginário social de uma geração inteira, que pe-netrou nas paredes e cadernos de milhões de estudantes, que confirmou avocação do Che vivo para o martírio, acompanhando a cena igualmentemessiânica do Che morto estendido na maca de Vallegrande, foi tiradaquase por acidente. Deveu seu sucesso ao caráter completamente natural 

(*) "Não é banha, não, aqui não há tempo para isso" (Ricardo Rojos, Mi amigo elCne,Buenos Aires, Legasa, 1994 ( lded. 1968), p. 102). 

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e ao mesmo tempo iconográfico: o Che passou pela lente de Alberto Kor-da por um momento fugaz, em marcha, como sempre, para outro lugar.Korda relata as peripécias do acaso fotográfico:

No dia seguinte à explosão do  La Courbe, improvisou-se um comício naesquina entre as ruas 12 e 23. Fidel Castro presidia o ato, em que pronunciou

um discurso em homenagem às vítimas da sabotagem; a rua estava cheia degente, e flores choviam sobre o cortejo que ia passando. Eu trabalhava comofotorrepórter para o jornal Revolución, o órgão do Movimento Vinte e Seis deJulho. Estava num plano mais baixo que a tribuna, com uma câmara Leika de9 mm. Usei minha teleangular pequena e observei as pessoas que se achavamem primeiro plano: Fidel, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. O Che esta-va parado atrás da tribuna, mas há um momento em que eu passo por umespaço vazio, que está em frente à tribuna, e a figura do Che emerge de umsegundo plano para a tribuna. Emerge de surpresa, enfia-se dentro do visor dacâmara, e eu disparo. Em seguida me dou conta de que a imagem dele é quaseum retrato e tem como fundo o céu, limpo. Viro a câmara para a vertical e tirouma segunda foto, isso em menos de dez ou quinze segundos. O Che se retira

dali e não volta. Foi uma casualidade.76 

Fazia frio em Havana naquele dia de maio. O Che vestia um casacoimpermeável que um amigo mexicano lhe emprestara, com zíper. O trajenão usual fazia que ele parecesse mais esbelto do que era de fato. O jornal nãopublicou a foto de Korda; sobravam cenas marcantes da manifestação. Seisanos mais tarde, Giangiacomo Feltrinelli, o editor e militante italiano, quevoltava da Bolívia e estava a caminho de Milão, deteve-se em Havana.Procurou Korda e pediu-lhe umas fotos do Che, convencido de que ele nãosairia vivo da aventura boliviana. Sem pagar um centavo, escolheu a foto doato do La Courbe em 1960. Semanas depois, quando o Che morreu, produ-ziu o póster mais clonado da história, e os estudantes de Milão começaram ausá-lo como bandeira em suas manifestações de luto e combate. A imagemé a outra metade de um díptico iconográfico. Se a foto de Freddy Alborta, doChe morto na lavanderia de Nuestra Senora de Malta, priva milhões de jovens da presença de seu herói, a de Korda lhes devolve um Che vivo, cabe-los ao vento, o rosto limpo, os olhos postos em um horizonte distante. 

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7 A BELA MORTE

 NÃO COMPENSA 

Che Guevara não nasceu para ser banqueiro. Em 21 de fevereiro de1961, ele foi nomeado ministro da Indústria, um cargo que na prática equi-vale a comandar o conjunto da economia cubana. Permaneceria nesse car-go até sua primeira despedida da ilha, no inverno cubano de 1965; nele ga-nharia duas grandes batalhas político-econômicas; nele sofreria suasprimeiras e definitivas derrotas, que o levariam a buscar outros caminhospara o poder e a glória. Talvez ele soubesse que sua passagem pelo Ministério

seria rápida. Seu secretário desde o tempo de La Cabana, Manuel Manresa,recorda o que ele disse ao assumir o cargo de ministro: "Vamos ficar cincoanos aqui e depois vamos embora. Com cinco anos a mais, ainda podemosfazer uma guerrilha".1 Ao longo de três anos, o médico acumularia uma sériede vitórias e conquistas. Imprimiria sua marca em qusae todos os campos daRevolução Cubana. Foram os anos dourados do Che Guevara em Cuba:quando nasceram seus filhos, quando escreveu seus livros e quando asemente do seu mito começou a germinar. 

A saída do Banco Nacional coincidiu — com poucos de meses de dife-rença — com o momento de maior repercussão e encanto da revolução. Oconflito da baía dos Porcos, ou de playa Girón, como é chamado o lado

cubano do estreito da Flórida, consagrou o triunfo cubano sobre o governoKennedy e os conspiradores de Miami. Também confirmou as teses do Chede modo irrefutável. Entre 17 e 21 de abril de 1961, um pequeno exército euma numerosa milícia, armados às pressas pela URSS e dirigidos com mestriapor Fidel Castro e seus colaboradores, frustraram um plano audacioso masabsurdo, concebido nas entranhas da CIA e da própria Casa Branca, para 

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derrubar o regime revolucionário. A expedição subversiva foi vencidagraças ao apoio do povo ao regime, à sua liderança, aos erros dos exilados eàs vacilações de John Kennedy na Casa Branca, mas também, segundo oChe, graças às alianças internacionais de Cuba. 

Mesmo antes da invasão, o Che já vinculara a defesa da ilha ao escudo

atómico da URSS: "(Os imperialistas) sabem que não podem atacar direta-mente, que existem mísseis com cargas atómicas que podem ser apontadoscontra qualquer lugar".2 Nos dias que antecederam o desembarque, os ve-teranos da sierra Maestra deram a virada definitiva em sua direção ideoló-gica. Em um irado discurso em Havana, perante uma multidão tensa, FidelCastro proclamou o caráter socialista da Revolução Cubana, confirmandoum rumo na verdade definido meses antes. Já em outubro do ano anterior ogoverno tinha nacionalizado, em duas tacadas, a quase totalidade dasempresas nas mãos da burguesia cubana (em 13 de outubro, desapropriando376 empresas) e dos capitais norte-americanos (em 24 de outubro, toman-do 166 propriedades). O diálogo entre o então diretor do Banco Nacional e

o fazendeiro mais rico e poderoso de Cuba, Júlio Lobo, ilustra a irreversibi-lidade do rumo escolhido desde outubro de 1960. Guevara convocou Loboao banco e esclareceu-lhe que "somos comunistas e não podemos permitirque você, que encarna a própria ideia do capitalismo em Cuba, continuecomo está".' Deu-lhe a opção de partir ou integrar-se à revolução, oferecen-do-lhe, nesse caso, o cargo de diretor-geral da indústria açucareira no país,obviamente retirando-lhe suas propriedades, mas permitindo-lhe o usufru-to de seu engenho favorito. Lobo respondeu que pensaria no caso e tomou oprimeiro avião para Miami. 

Formalmente, o Che não teve participação direta na batalha de playaGirón nem na afirmação da natureza socialista do regime, mas desempe-

nhou um papel-chave na determinação do rumo que levaria a esses dois des-fechos. Suas teses fundamentaram as decisões da cúpula revolucionária; suasprevisões e apostas se confirmaram ao longo daquela primavera que alimen-tou todas as esperanças e tolerou todos os otimismos. Dois dias antes deGirón, o cosmonauta soviético Yuri Gagarin tornou-se o primeiro homem aviajar pelo espaço. Três meses mais tarde, festejou em Cuba o aniversário doassalto ao quartel de Moncada, na companhia de Fidel Castro e de CheGuevara. O futuro pertencia ao socialismo. Tudo parecia possível, e muitasdas decisões dos anos seguintes se impuseram devido à inevitável, justifica-da e compreensível sensação de onipotência dos dirigentes cubanos deentão. Antes de chegar à idade de Cristo, eles haviam "derrotado o impe- 

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rialismo". Em meados de 1963, os erros cometidos e as imprudências prati-cadas começariam a revelar-se na escassez, nas lutas internas e nas tensõescom a União Soviética. Durante mais de dois anos, porém, Che Guevaradesfrutou de uma oportunidade única para um revolucionário e um in-telectual: a de experimentar livremente suas teses em uma economia, em

uma sociedade e, no fundo, na natureza humana. O lugar que hoje ocupacomo um dos grandes mitos do século XX deve-se, antes de mais nada, àimportância que deu a esse último desafio, a sua ardorosa engenharia social. 

Tudo começou com playa G irón. Desde março de 1960 a administraçãoEisenhower iniciara os preparativos para derrubar Castro pela força. A CIAcomeçou a recrutar os exacerbados exilados de Miami e treiná-los em diver-sos pontos da América Central, principalmente a Guatemala. Não era pornenhum acaso que a atividade se desenvolveria no mesmo local onde aagência colhera uma de suas maiores vitórias em toda a guerra fria, ao desti-tuir Jacobo Arbenz da presidência do país, sete anos antes. Vários dos par-ticipantes da nova conspiração norte-americana, entre eles David Atlee

Phillips, tinham participado da operação de 1954- Quando Eisenhowerentregou o governo a John Kennedy, em 20 de janeiro de 1961, os prepara-tivos para o desembarque estavam muito adiantados e só aguardavam o sinalverde da nova administração. 

O esquema era relativamente simples e por isso mesmo despropositado.Partia de um conjunto de análises malfeitas e tendenciosas, segundo as quaisa população cubana, castigada por privações e pelo terror do regime, recebe-ria de braços abertos uma expedição de notáveis e valorosos exilados. As forçasarmadas rebeldes — descontentes e divididas, segundo os informantes da CIA— se levantariam contra o governo ao primeiro sinal de mudança. Bastava queos "combatentes da liberdade" conseguissem consolidar uma cabeça-de-

ponte na ilha — perto de Escambray, onde j á havia uma resistência armada aogoverno —, recebessem o reconhecimento e reforços externos (leia-se dosEstados Unidos) e desencadeassem uma forte ofensiva propagandística, paraque o regime caísse ou, na pior das hipóteses, se enredasse numa guerra civil. 

Desde o início o plano previa um envolvimento limitado dos EstadosUnidos. Washington e a CIA se restringiriam a organizar, armar e treinar oscubanos anticastristas de Miami. Forneceriam as embarcações para trans-portá-los da Guatemala a Cuba, via N icarágua, e os aviões que destruiriam —em terra — a esquálida força aérea da ilha. Por último, talvez acompanhas-sem a invasão através de alguns agentes disfarçados. Mas não haveria umapresença norte-americana explícita e direta. O Departamento de Estado 

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opusera-se a ela, e Kennedy, apesar de suas eternas vacilações, acabara acei-tando o veto de seus conselheiros diplomáticos. A participação norte-ame-ricana dependeria da consolidação de um governo provisório que a solicitasse. 

As mesmas incertezas de Kennedy o levaram a impor várias mudançasno plano inicial. Mudou-se o local do desembarque para a baía dos Porcos,

no pântano de Zapata — uma escolha estranha, pois se tratava do lugarpreferido por Fidel Castro para suas pescarias (onde se realizara a reuniãocom Anastas Mikoian, citada no capítulo anterior), onde o regime revolu-cionário investira muito dinheiro em ambiciosos e utópicos projetos dereabilitação social. Os carvoeiros da região, únicos habitantes do pântano,figuravam entre os filhos diletos da revolução, devido a sua pobreza e mar-ginalização e ao afeto que o comandante-em-chefe nutria por eles. Mas nema CIA, nem os exilados sabiam de nada disso ou, se sabiam, não contaram aKennedy e seus principais assessores.4 Tampouco explicaram ao ingénuoocupante da Casa Branca que, ao optar pela baía dos Porcos, excluíra-se apossibilidade, decisiva para os invasores, de se refugiarem em Escambray, tal

como Castro fizera na sierra Maestra, caso fosse impossível resistir nolitoral.5 A cabeça-de-ponte escolhida ficava a muitos quilómetros da serraprotetora, separada deles por um impenetrável pântano. 

Do lado norte-americano, playa Girón foi uma trágica comédia de erros.Kennedy não deteve o desembarque por medo de parecer fraco e vacilantediante dos veteranos combatentes da CIA e do Pentágono, mas não lhes deu oapoio necessário para que o plano prosperasse. Quando o chanceler cubanoRaul Roa denunciou nas Nações Unidas o primeiro ataque aéreo, procedenteda Nicarágua, Kennedy condicionou o envio da segunda esquadrilha de bom-bardeiros (destinada a destruir a aviação cubana) à captura pelos invasores dapista aérea vizinha à baía dos Porcos. A ideia era alegar que os bombardeiros

B-26 tinham saído dali. Mas a brigada invasora não podia garantir a pistaporque não dispunha do equipamento necessário para tomá-la. Este nãochegara porque os navios ancorados em alto-mar não podiam abastecer os ata-cantes, impedidos de se aproximar da costa pela aviação cubana. E a aviaçãocubana não fora destruída em terra porque Kennedy não o permitira. * No fun-  

(*) Desde janeiro, um memorando da CIA deixava claro: "A força aérea e a frotanaval de Cuba devem ser destruídas ou neutralizadas antes que nossos anfíbios se apro-ximem da praia. Caso contrário, corremos o risco de um desastre". Como assinala Wyden,autor do livro citado, "a CIA queria o máximo de poder aéreo; o Departamento de Estadoexigia um mínimo de presença na área, para sustentar a mentira de que a invasão partiade Cuba". (Wyden, Bay ofPigs, the untold story, p. 135.) 

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do, vista de Washington, a baía dos Porcos foi um grande mal-entendido. ACIA iludiu Kennedy, persuadindo-o de que a população cubana pegaria emarmas contra Castro, e o presidente, por sua vez, enganou a agência de infor-mação dizendo a verdade. Os agentes da operação nunca acreditaram que opresidente dos Estados Unidos permitiria que uma força expedicionária de

1500 homens, armados e organizados pelo seu governo, fosse mandada para omatadouro. Mas ele permitiu. 

Do lado cubano, a baía dos Porcos foi a prova concreta de dois atribu-tos inegáveis da revolução: sua raiz popular e a intuição política de Fidel Cas-tro. A cúpula cubana evidentemente sabia da iminência da disparatadainvestida de playa Girón. Seus serviços de informação tinham se infiltradoentre os conspiradores de Miami e até entre os recrutas anticastristas aquar-telados na Guatemala. Cuba se preparava para resistir e tratava de agilizar oenvio das armas fornecidas pelo bloco socialista. Os Mig-17 soviéticos, ostanques e blindados de transporte não chegaram a tempo, nem houve o tem-po suficiente para treinar um exército profissional em condições de com-

bate; as FAR incluíam apenas 25 mil homens. Nessas condições, Castro nãoteve outro remédio senão armar a população. Jamais se atreveria a fazê-lo senão tivesse certeza de seu apoio e lealdade. Os 200 mil milicianos formadosquase às vésperas do ataque na baía dos Porcos desempenharam um papeldecisivo na vitória. Permitiram que Castro mantivesse pequenos contin-gentes em quase todos os possíveis locais de desembarque, a postos para daro alarma. A formação e treinamento das milícias esteve em grande parte acargo do Departamento de Instrução das FAR, dirigido desde 1960 pelo Che.Nesse sentido, a contribuição de Guevara para a vitória, embora indireta, foicrucial. Sem as milícias, a estratégia militar de Castro era inviável; sem oChe, os milicianos não teriam sido confiáveis. 

Como disse um historiador norte-americano, Castro teve o instintopolítico necessário para "acreditar em Kennedy quando este descartoufirmemente o envio de forças dos Estados Unidos contra Cuba".6 Com-preendeu que o plano da Casa Branca consistia em reproduzir a experiênciaguatemalteca: uma invasão por vias indiretas, o estabelecimento de umacabeça-de-ponte e a formação de um governo provisório que logo contariacom apoio e reconhecimento. Para garantir o fracasso da manobra, intuiuque era preciso desarticular de imediato a força invasora, antes que tudo maispudesse acontecer. Portanto, era preciso concentrar todos seus efetivos nolugar da invasão o mais rápido possível. Também tinha que aproveitar aminúscula força aérea à sua disposição — quinze velhos e desmantelados 

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B-26, três T-33 de treinamento e seis Sea Furies — para afundar ou afastar osnavios de abastecimento dos expedicionários, privando-os de reforços,comunicações, equipamento e combustível para seus veículos anfíbios. Abatalha da baía dos Porcos em boa medida foi ganha no ar. 

Mas Fidel também tinha planos estratégicos para defender Cuba no

caso de uma invasão norte-americana no sentido estrito: Raul Castro esta-va encarregado da província de Oriente; Juan Almeida, do centro da ilha, eErnesto Guevara, de Pinar dei Rio, Havana e de todo o extremo ocidental.Daí o motivo de o Che não ter maior presença nos combates de playa Girónpropriamente ditos. Além do mais, nas primeiras horas do ataque, uma balapegou de raspão em seu rosto, no comando de Consolación dei Sur, obri-gando-o a passar 24 horas no hospital e debilitando-o por vários dias. Cas-tro, convencido de que playa Girón era o teatro principal da operação doscontra-revolucionários, desde o segundo dia concentrou ali a totalidade desuas forças. Apostou todas as fichas na baía dos Porcos, e ganhou. Oscubanos da ilha perderam 161 homens; os de Miami, 107, mas 1189 parti-

cipantes da malograda expedição foram presos. Depois, Castro trocou-oscom Kennedy por 52 milhões de dólares em alimentos e remédios.  Meses mais tarde, meio brincando, meio a sério, Che Guevara agradeceu

o fiasco da baía dos Porcos ao enviado de Kennedy à Conferência de Punta deiEste: "Graças a vocês pudemos consolidar a revolução em um momento par-ticularmente difícil".7 Tinha razão: Girón permitiu ao regime cerrar fileiras efirmar pé, montar o formidável aparato de vigilância e segurança alicerçadosnos Comités de Defesa da Revolução e o Ministério do Interior, e ao mesmotempo tachar qualquer adversário como agente ou títere de Washington.Como o embaixador da Grã-Bretanha informou ao Foreign Office: 

Fidel Castro conseguiu, em 1961, conduzir seu país firme e verdadeiramente

ao campo socialista, contra o desejo e a intuição da maioria de seu povo. Creioque nem sequer o prodigioso Fidel Castro teria conseguido efetuar esse tour deforce* se não fosse por esse exemplar desastre que foi a invasão de abril, umaoperação que, vista daqui, fez com que a campanha de Suez (de 1956-JGC)parecesse um agradável piquenique [...] Duvido que alguma vez o prestígio dosEstados Unidos tenha estado mais baixo que logo após a invasão...8 

Entre 15 e 17 de abril, mais de 100 mil pessoas foram detidas emHavana: o Teatro Blanquita, La Cabana, o campo de beisebol de Matanzas 

(*) Expressão idiomática em francês no original: proeza difícil e particularmentebem-sucedida. (N. T.) 

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e o Castillo dei Príncipe se encheram de supostos conspiradores contra oregime. Seus principais dirigentes — várias dezenas — foram fuzilados nes-ses dias, ou pouco depois. Acentuou-se a tendência para a intransigência eo "dogmatismo", como foi chamado mais tarde. O Che confidenciaria aoembaixador soviético: "Os órgãos cubanos de contra-espionagem iam

reprimir com firmeza os contra-revolucionários e não lhes permitiriam reer-guer a cabeça, como acontecera nas vésperas do ataque".9 Formalizou-se aaliança com o Partido Socialista Popular, que rapidamente aproveitou adecisão de formar o novo partido, denominado Organizações Revolu-cionárias Integradas (ORIs), para torná-lo hegemónico. E, como observou oembaixador inglês: 

Surgiu em todo o país uma rede interligada de comités revolucionários e orga-nizações como os Comités de Defesa da Revolução, a Juventude Rebelde, asAssociações de Mulheres Revolucionárias, criando células nas fábricas, nasfazendas coletivas, no exército, nas milícias e nos sindicatos. A evidênciademonstra que desempenharam suas funções com muito mais resolução,

ordem e disciplina do que seria de esperar dos cubanos. O governo opera eorganiza tudo através delas, desde a campanha de alfabetização até osprotestos nos povoados, desde a aplicação das medidas de segurança contra oscontra-revolucionários até a distribuição dos carnes de racionamento. Graçasa elas, o governo se mantém perto do povo e sabe o que ele pensa. Corrigeassim os "pensamentos equivocados" antes que eles se difundam e utiliza todosos meios, justos e injustos, para atrair a totalidade dos cubanos a sua causa.10 

Antes de mais nada, playa Girón permitiu que Cuba consolidasse umrumo económico e político e desafiasse com vigor os Estados Unidos peranteo resto da América Latina. Com relação a esse último aspecto, seria justa-mente o Che o encarregado de uma dupla tarefa. Encabeçaria a delegação

cubana na Conferência de Punta dei Este, na qual Douglas Dillon, osecretário do Tesouro de John F. Kennedy, anunciou os detalhes da Aliançapara o Progresso, lançada com grande pompa em 13 de março de 1961. NoUruguai, o virtual filho pródigo brilhou como oráculo da denúncia: fortale-cido pela vitória da baía dos Porcos, criticou não só Dillon e o suposto PlanoMarshall para a região, mas também os governos latino-americanos tímidose submissos. Em segundo lugar, seguiu a recomendação de Fidel Castro debuscar o diálogo com algum representante da administração Kennedy, depreferência um dos jovens "génios" procedentes das universidades. O Chese desincumbiu de ambas as tarefas com elegância e habilidade e, por outrolado, com o estilo hiperbólico e a intransigência que o caracterizavam.  

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A decisão de comparecer à reunião interamericana fora tomada bemantes. O Che já a comunicara ao embaixador soviético Kudriavtsev em 26de julho, mas pedindo-lhe que a mantivesse em segredo. Expusera então seupropósito de mostrar em seu discurso o contraste entre a ajuda soviética aCuba e aquela que Kennedy anunciaria por meio de seu delegado." A esco-

lha de Guevara como chefe da delegação deveu-se ao mesmo motivo de suasviagens anteriores. Ele era o único dirigente do alto comando da revolução,além de Castro, em condições de satisfazer todos os requisitos do jogo decena internacional. Raul Roa, o chanceler, apesar de seu preparo intelec-tual, carecia de prestígio interno ou internacional para um papel de talenvergadura. Além do mais, aquilo tudo era um verdadeiro deleite para oChe: ele simplesmente adorava as missões internacionais. Permitiam-lheampliar seus contatos, frequentar as mais variadas personalidades e afastar-se da rotina burocrática de Cuba. 

Guevara captara a lógica de Washington. Se a Revolução Cubanaconstituía a maior ameaça para os interesses dos Estados Unidos na Améri-

ca Latina, esse país deveria tolerar um mal menor, para evitar que o malmaior contagiasse o continente. O mal menor consistia acima de tudo natransferência de recursos e, em menor grau, no apoio a reformas políticas esociais que pudessem aplacar os ânimos rebeldes no continente. Asinstruções secretas para a delegação norte-americana refletiam uma dis-posição idêntica à que o Che previra, quase um ano antes, em sua conversacom o embaixador soviético em Havana:12 

1) Prestar uma assistência prioritária à América Latina, sobretudo durante ospróximos dez anos, para melhorar a educação, a saúde, reformar o sistema e aadministração tributários, a moradia, propiciar um melhor e mais equitativouso da terra, a construção de estradas e demais equipamentos públicos, esta-

belecer empresas produtivas e melhorar a distribuição da renda. 2) Dar espe-cial atenção às melhorias nas áreas rurais e nas condições de vida dos gruposindígenas e camponeses. 3) Conclamar e ajudar todos os países a estabele-cerem planos de desenvolvimento equilibrados e de longo prazo." 

O Che compreendeu que a estratégia era engenhosa e por isso viu-seobrigado a preparar uma resposta ao mesmo tempo ambiciosa e eficaz.Elaborou-a bem de acordo com o espírito da época e com suas concepçõessobre as perspectivas de êxito da economia cubana. Recordemos: Era o tem-po em que Nikita Krushev ameaçava "enterrar" os Estados Unidos e em dezanos superar a produção norte-americana de aço (produto considerado pelaURSS de então como o paradigma da modernidade industrial). Era o momen-  

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to em que a tese da coexistência pacífica, idealizada pelo Kremlin, desen-cadeara uma feroz competição, sobretudo económica, entre as duas super-potências. Daí a lógica do Che em Punta dei Este: o terreno em que Cubamais claramente superaria os demais países latino-americanos enquantoestes não consumassem suas próprias revoluções seria o económico — pen-

sava ele. Graças à revolução, ao socialismo e à ajuda da URSS, a ilha alcan-çaria níveis de desenvolvimento e bem-estar inimagináveis nas demaisnações da região, apesar da alardeada "assistência" norte-americana. O Cheescolheu esse terreno por ser o preferido dos marxistas de seu tempo, porqueera essa sua missão e porque parecia o campo adequado para o confronto, emface dos cruciais dilemas da América Latina. 

O avião do Che aterrissou em Montevidéu no dia 4 de agosto. Foi acla-mado por jovens manifestantes — uma multidão, segundo alguns; umadecepção, de acordo com outros —, que o escoltaram em caravana até o bal-neário da oligarquia platina, normalmente fechado no inverno austral. Foiuma espécie de regresso triunfal à casa: da Argentina vieram vê-lo seus pais,

irmãos, amigos e amigas da escola e da universidade. Como recorda uma desuas conhecidas da juventude que o visitou em Punta dei Este: "Ele pergun-tou por todos os amigos, todo mundo de quem ele gostava, o que tinhamfeito, o que não tinham feito, por Chichina, por uns senhores, velhos, tiosde Chichina, perguntava muito. E, bom, por alguns amigos com os quais agente via que ele tinha algum tipo de contato; não perguntou por todos, maspor aqueles que lhe interessavam".14 

Aleida mais uma vez não o acompanhou. Arriscou-se a deixá-lo a sósnas mãos de sua mãe e das lembranças amorosas da juventude. Segundo omemorando secreto que Richard Goodwin escreveu a John Kennedy sobreseu encontro com o Che, quando este chegou à festa onde conversaram, "as

mulheres literalmente se atiraram em cima dele".H Os dias no Uruguai tive-ram, portanto, também esse caráter de reencontro com a família e os amigosde outrora, em meio a intermináveis conversas e conspirações nas suítes esalões dos hotéis e cassinos de Punta dei Este. 

O discurso do Che na Conferência do Conselho InteramericanoEconómico e Social lançou várias farpas dignas de menção. A primeira foisua insistência em pôr o dedo na ferida: várias vezes recordou aos delegadoslatino-americanos que deviam sobretudo à Revolução Cubana os fundosque eventualmente conseguissem arrancar dos Estados Unidos: "Esta novaetapa começa sob o signo de Cuba, território livre da América; esta confe-rência, o tratamento especial que suas delegações tiveram, e os créditos que 

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forem aprovados, tudo traz o nome de Cuba, gostem ou não seus bene-ficiários".16 

Ele tinha toda a razão, mas essa verdade dificilmente poderia aproxi-mar o representante de Cuba das demais delegações da América Latina. Emseguida, comparou o montante de recursos anunciado por Douglas Dillon —

20 bilhões de dólares ao longo da próxima década, na época uma somaastronómica — com a soma proposta por Fidel Castro — 30 bilhões — emum discurso pronunciado dois anos antes em Buenos Aires. Fez notar que"fazendo mais uma forcinha quem sabe dê para se chegar aos 30 bilhões",para logo advertir que até o momento o Congresso dos Estados Unidos sóaprovara 500 milhões de dólares de financiamento destinados à Aliançapara o Progresso. A tónica era bem pouco diplomática, mas eficaz. No fun-do, dizia o Che, os Estados Unidos entenderam que a alternativa para aAmérica Latina era dinheiro ou revolução, um dilema que favorecia até go-vernos entreguistas, como os ali representados. Mas isso só aconteceria seestes não se deixassem espoliar pelos "ianques", o que, no caso deles, era algo

impossível de esperar. Por isso, na opinião do Che, a Aliança estava fadadaa um rotundo fracasso a médio prazo. Uma segunda reflexão de Guevara quese mostraria profética foi sua pauta de reivindicações. Foi uma das primeirasocasiões em que se apresentou a agenda do que por muitos anos seria a aspi-ração de grande parte dos países do Terceiro Mundo, independente de suafiliação ideológica. Pela primeira vez um país do mundo em desenvolvi-mento apresentava uma agenda económica internacional, dirigida ao mun-do industrializado em seu conjunto e em nome do chamado Terceiro Mundoem sua totalidade. A lista de reivindicações incluía preços estáveis para asmatérias-primas exportadas pelos países pobres, acesso aos mercados ricos,redução das taxas alfandegárias e demais barreiras, empréstimos livres de

condicionamento político, convénios de ajuda financeira e técnica. Nadahavia ali que organismos como a CEPAL — representada na conferência porRaul Prebisch, compatriota do Che e virtual fundador do desenvolvimen-tismo latino-americano — não tivessem proposto anteriormente. Nemhavia grandes diferenças em relação às demandas que diversos governos doTerceiro Mundo fariam nos anos seguintes. Porém, a eloquência de Gue-vara, o desembaraço e a precisão de sua fala lhe deram um caráter excep-cional. Diz o informe secreto de Dillon a Kennedy: 

Senhor presidente, o discurso de Guevara foi uma apresentação magistral doponto de vista comunista. Identificou claramente Cuba como um membrodo bloco, falando de "nossas irmãs, as repúblicas socialistas". Por ter atacado 

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a Aliança para o Progresso em sua totalidade e tudo que a conferência sepropõe a realizar, não contou com a simpatia dos delegados. No entanto, Gue-vara dirigiu-se, por cima dos ombros dos delegados, aos povos da AméricaLatina, e daqui é impossível avaliar o êxito que possa ter nesse intento.17 

O eixo do discurso do Che centrou-se no enfoque comparativo e nas

previsões ufanistas e desmesuradas. A taxa de crescimento que se apresenta como ideal para toda a América é de2,5% [...] Nós falamos sem nenhum receio em 10% de desenvolvimento [...]O que Cuba calcula que terá em 1980 ? Uma renda per capita de 3 mil dólares,maior que a dos Estados Unidos atualmente [...] Que nos deixem em paz,que nos deixem crescer, e dentro de vinte anos reunamo-nos todos de novopara ver de onde vinha o canto de sereia: se de Cuba revolucionária ou deoutro lugar.18 

Apesar disso, a postura do Che foi, em termos gerais, moderada e con-ciliadora. Repetidas vezes, ao longo dos dez dias que durou a conferência, eleenfatizou a disposição de Cuba de permanecer na comunidade interameri-

cana, incluir-se na recém-criada Associação Latino-Americana de LivreComércio (ALALC), não provocar o fracasso da Aliança para o Progresso eprocurar um entendimento com os Estados Unidos. Em seu afã de nego-ciação, razoável e diplomático, chegou até a dizer meias-verdades (ou francasmentiras, como se preferir). "O que damos, sim, é a garantia que de Cuba nãosairá um só fuzil, uma só arma para lutar em qualquer outro país da América".19 

A promessa poderia, no máximo, ser cumprida no futuro, já que nopassado imediato ocorrera exatamente o contrário, e sob a supervisão dopróprio Che. Mas ela tampouco corresponderia à verdade nos meses e nosanos seguintes: já estavam em curso os preparativos para diversas incursõesguerrilheiras na Venezuela. Cuba poderia argumentar, como o fez, que sua

promessa dependia do respeito norte-americano a outros princípios e queo descumprimento estadunidense justificava o cubano. Nessa ocasião,porém, abriu-se um abismo insólito entre a retórica do Che e seu conheci-mento dos fatos. 

Afora os mecanismos de autoconvencimento, que os cubanos sempreusaram como justificativa para sua postura cambiante, o fato é que o manda-to do Che em Punta dei Este incluía claramente a tentativa de suavizar osatritos com Washington e com o restante da América Latina, fosse efetiva-mente, fosse aos olhos de terceiros. Seu discurso foi, de fato, prudente emrelação aos Estados Unidos, sobretudo se o compararmos com as expecta-tivas — exageradas, como sempre — que a imprensa internacional alimen- 

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tara. Temia-se que o Che sacasse ali mesmo de uma metralhadora e aterro-rizasse os delegados, que fizesse um chamamento à insurreição continental,que amaldiçoasse o dia em que os Estados Unidos nasceram.* O própriochefe da delegação norte-americana parece ter concluído que a moderaçãodo Che rendeu-lhe bons frutos entre os latino-americanos, atribuindo-a a

motivos muito precisos: Guevara não conseguiu subverter a conferência, mas não creio que tenha sidoesse o seu objetivo. Ao manter posições relativamente moderadas nas sessõesde trabalho, ele dificultou sensivelmente qualquer ação a curto prazo no sen-tido das ideias colombianas (de censurar Cuba na OEA por ter se aliado à URSS-JGC). Estou convencido de que foi essa sua principal meta aqui, e temo que eletenha alcançado um êxito considerável.20 

O mesmo objetivo pode ter inspirado a reunião do Che com RichardGoodwin, o jovem assessor de Kennedy enviado ao balneário do AtlânticoSul como assessor da delegação norte-americana. Embora a realização doencontro tenha vindo a público quase de imediato, o que se discutiu nele sóseria parcialmente revelado em 1968 por Goodwin, em um artigo publicadono The New Yorker. E teriam de passar-se mais de trinta anos para que sepudesse ter acesso ao memorando no qual Goodwin informava Kennedy sobresua conversa com o Che. A história que se segue baseia-se nesse memorando.  

Segundo o testemunho de vários jornalistas e diplomatas, além dopróprio informe de Goodwin, a iniciativa do encontro partiu do ladocubano.** Tudo começou quando um diplomata argentino transmitiu umtípico desafio Guevarista ao assessor norte-americano: "O Che percebeuque o senhor gosta de charutos. Ele aposta que não se atreve a fumar autên-ticos havanas de Cuba". Goodwin respondeu que fumaria com o maior pra-

zer, mas já não havia deles nos Estados Unidos. Naquela noite foram  

(*) Um discurso pronunciado pelo Che alguns dias antes da baía dos Porcos justifi-cava até certo ponto esse temor. Ele referiu-se aos norte-americanos como "os novos nazis-tas do mundo [...] não têm sequer a trágica grandeza daqueles generais alemães que enter-raram toda a Europa no maior holocausto que a humanidade conheceu e a si próprios numfinal apocalíptico. Esses novos nazistas, covardes, falsos e mentirosos (foram) vencidospela história". (Ernesto Che Guevara, Discurso a Ias milícias, op. cit., p. 73.) 

(**) Um dos jornalistas presentes no início da reunião, o francês Daniel Garric, do Le Figaro, afirmou que "o presidente Kennedy tinha proposto esse encontro e que Guevaranão colocara nenhuma objeção". (Daniel Garric,  LEuropeu, Milão, 14/9/67, cit. emGregorio Selser, Punta dei Este contra sierra Maestra, Buenos Aires, Editorial Hernández,1969, p. 111.) 

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entregues em seu quarto duas magníficas caixas de mogno repletas dos maisfinos havanas, uma para ele, a outra, com o selo da República de Cuba, parao presidente Kennedy.* Vinham acompanhadas de um cartão do coman-dante Ernesto Guevara. No dia seguinte o norte-americano recebeu umamensagem do Che, dizendo que desejava falar com ele.21 

Em diversas ocasiões ao longo da conferência, vários emissários ten-taram efetivar o encontro entre Guevara e Goodwin. Programou-se umareunião para o último dia, mas Douglas Dillon proibiu-a. O grau de ani-mosidade entre os dois países, sobretudo depois que Cuba se recusou a assi-nar a declaração final, impossibilitava uma aproximação. Já no encerra-mento da conferência, houve mais uma tentativa, desta vez frutífera, emMontevidéu, durante a recepção oferecida por um diplomata brasileiro. Alise deu a conversa entre os dois funcionários, primeiro na presença de váriastestemunhas, em seguida a sós, em uma saleta do apartamento do anfitrião.A entrevista durou três horas, incluindo um breve período de banalidades,cumprimentos e despedidas. 

Segundo o enviado de Kennedy, foi o Che quem conduziu a reunião.Goodwin limitou-se a escutar e tomar nota das palavras de seu interlocutor,para transmiti-las ao presidente. Guevara falou de maneira descontraída, semo mais leve tom de polémica, propaganda ou insulto, por vezes até com certohumor. O memorando do norte-americano destaca que o Che "não deixounenhuma dúvida de que se sentia completamente à vontade para falar emnome de seu governo, e raras vezes separou suas observações pessoais daposição oficial do governo cubano. Tive a impressão de que havia escolhidocuidadosamente suas palavras, preparado muito bem seu discurso".22 

O Che começou esclarecendo que os Estados Unidos deviam entenderque o processo cubano era irreversível e de natureza socialista, que não podia

ser derrotado nem por meio de rupturas ou divisões internas, nem por qual-quer outra forma que não implicasse uma intervenção militar direta. Faloudo impacto da revolução na América Latina; advertiu que Cuba prosseguiriasua aproximação com os países do Leste, baseada na "mútua simpatia natu-ral e na coincidência de ideias quanto à estrutura adequada da ordem social".Reconheceu em seguida as dificuldades da revolução: a contra-revolução ea sabotagem; a pequena burguesia hostil ao processo; a Igreja Católica; a 

(*) Goodwin ainda conserva a caixa destinada a Kennedy, em sua casa de ConcordMassachusetts. Deixou-a em exposição em seu escritório na Casa Branca e no Departa-mento de Estado durante o período que trabalhou ali. (Richard Goodwin, entrevista como autor, Concord, Massachusetts, 5/5/95.) 

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escassez de peças de reposição, devido ao conflito com os Estados Unidos; acarência de divisas. Admitiu em particular os desequilíbrios que Cuba jáenfrentava em suas contas externas, por ter acelerado demais o processo dedesenvolvimento, esgotando perigosamente as reservas em divisas. O país nãopodia importar os bens de consumo básicos de que sua população necessitava.2' 

Como era previsível, Guevara deixou claro que Cuba desejava umaconvivência pacífica com Washington, e para tanto estava disposta a tomaruma série de medidas concretas. Entre elas, destacavam-se: pagar em mer-cadorias os ativos confiscados de cidadãos norte-americanos (um tema ain-da pendente 35 anos depois); não estabelecer alianças militares ou políticascom o bloco socialista; celebrar eleições livres em Cuba depois de institu-cionalizado o "partido único"; inclusive — assegurou o Che, entre risos —comprometer-se a "não atacar Guantánamo". Até aí, nenhuma surpresa. Anovidade surgiu quando se tocou o tema do fomento da revolução no restoda América Latina. Sabendo que falava perante diplomatas do Brasil e daArgentina, o Che, sem nunca admitir que Cuba tivesse armado, treinado e

sustentado grupos guerrilheiros em outros países, deu a entender que com-preendia perfeitamente que qualquer acordo com Washington implicaria asuspensão dessas atividades. Se fosse o caso, Cuba negociaria com base nessepressuposto. 

No dia seguinte, de volta a Washington, Goodwin encontrou-se comKennedy, a quem relatou o ocorrido e a pedido de quem redigiu o já citadomemorando, que circulou nos mais altos escalões do governo dos EstadosUnidos. Mas, segundo Goodwin, Kennedy nunca respondeu a ele explícitae formalmente.24 O memorando recomendava uma política mais moderadaem relação a Cuba, menos "obsessiva", mas ainda baseada em ações secretase "de sabotagem de pontos-chave de instalações industriais, como as refi-

narias" e "estudando o problema de uma guerra económica contra Cuba".Sugeria que se mantivessem as pressões económicas, as manobras militares,a desinformação e a propaganda.25 Mas também propunha que não se inter-rompesse o diálogo "subterrâneo" com Cuba, argumentando que se até oChe — o comunista mais convicto da cúpula cubana — se dispunha a pen-sar na possibilidade de um diálogo com o governo norte-americano, "talvezhaja outros dirigentes cubanos ainda mais dispostos a um entendimentocom os Estados Unidos". Isso permitiria descobrir, eventualmente, aexistência de "cisões na liderança de primeiro escalão". 

A iniciativa cubana nunca prosperou. Surgiu em um momento ino-portuno para Kennedy. O governo de Rómulo Betancourt na Venezuela 

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estava acuado entre a esquerda e os militares; uma reconciliação entre Cubae os Estados Unidos teria fortalecido a esquerda e provocado um golpe deEstado. Além do mais, Castro tinha se fortalecido demais, e qualquer sinalde distensão seria interpretado como uma vitória dele, "obrigando os Esta-dos Unidos a se conformarem com a existência, na América Latina, de um

governo comunista, antiamericano, o que teria incentivado outros movi-mentos em outros lugares".26 Enquanto os cubanos não abrirem seus próprios arquivos — supondo-

se que eles existam — e os últimos personagens com vida e conhecimentode causa permanecem calados, não saberemos com exatidão quais foramas intenções de Fidel Castro e de Che Guevara ao buscar o diálogo comWashington. Guevara certamente menosprezou o significado da reunião aovoltar a Cuba e relatar sua missão: 

Fomos convidados por uns amigos brasileiros para uma pequena reunião ínti-ma, e ali estava o senhor Goodwin. Tivemos uma entrevista, mais de cunhopessoal, como dois convidados de uma terceira pessoa [...], sem representar-

mos nesse momento nossos respectivos governos. Nem eu estava autorizado amanter nenhum tipo de conversação com um funcionário norte-americano,nem ele com um cubano [...]. Enfim, foi uma troca de palavras breve, cortês,fria, como corresponde a dois funcionários de países oficialmente inimigos,não é verdade?, mas que não teve maior importância até ser divulgada poralgum jornalista ou funcionário. Isso foi tudo.27 

Seria mesmo de estranhar que alguém como o Che — que poucos mesesantes da batalha de playa Girón assegurara ao embaixador soviético emHavana que qualquer reconciliação de Cuba com os Estados Unidos preju-dicaria a causa revolucionária na América Latina — de repente tivessemudado tão radicalmente de opinião. Também é difícil acreditar que Fidel

Castro pudesse supor, depois da baía dos Porcos, que Kennedy, por algumestranho motivo, estivesse disposto a aceitar uma convivência pacífica comCuba, possibilidade que ele taxativamente descartara ao chegar à presidên-cia. A explicação da CIA, e também de Douglas Dillon, para a mudança dapostura cubana — embora não para o encontro com Goodwin — foi que setratava de uma jogada de Castro visando evitar o isolamento regional deCuba. Mencionavam também a crescente crise económica na ilha.28 Semdescartar certa inexperiência ou ingenuidade por parte dos dirigentescubanos, podemos especular que fosse outra a verdadeira razão do empenhoem falar com Goodwin e enviar uma mensagem à Casa Branca. Talvez fosseuma tentativa de convencer os governos do Brasil e da Argentina — cuja 

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postura seria decisiva nas próximas deliberações da OEA condenando Cuba— da boa vontade de Havana para com os Estados Unidos, ou quem sabe fos-se fruto da insistência soviética para que Cuba se esforçasse ao máximo nosentido de entender-se com os Estados Unidos antes de ingressar no blocosocialista e pôr-se a salvo de qualquer ataque atrás do escudo atómico de

Moscou. Krushev não viu com bons olhos a declaração de Fidel sobre o caráter

socialista da revolução, em abril. Os serviços de informação norte-ameri-canos comunicaram que, durante sua visita a Moscou, em finais de 1960, oChe havia solicitado mísseis a Krushev, mas este recusara o pedido termi-nantemente.29 Moscou não demonstrou o menor entusiasmo ante a profis-são de fé marxista-leninista de Castro, que em seu discurso de 26 de janeirode 1961 não passara de uma vaga insinuação, para ser repentina e brutal-mente explicitada em lfi de dezembro do mesmo ano. Ao mesmo tempo,aumentavam as dúvidas na capital russa quanto à conveniência da decisãode sustentar a frágil economia cubana. E de se supor, portanto, que, antes de

lançar-se à aventura, Moscou pressionasse os cubanos para que esgotassemtodas as possibilidades de diálogo com Washington, sobretudo a poucosmeses da fracassada reunião de cúpula de Viena entre Kennedy e Krushev.Nesse caso, Castro e o Che, em vez de se oporem à recomendação soviética,seguiram-na ao pé da letra. Para comprovar sua boa vontade, o Che, o maisantiamericano dos dirigentes da ilha, empenhou-se em estabelecer o diá-logo com Washington, escolhendo para o encontro uma ocasião que, semdeixar de ser discreta, contava com a presença de testemunhas de peso.Decidiu-se, inclusive, que o Che faria colocações ponderadas a seu inter-locutor, tendo em vista o fato de que, de um modo ou de outro, os própriosnorte-americanos informariam os soviéticos sobre o teor da conversa.

Quando, após tanto esforço, se comprovasse não haver mais nada a fazer,Krushev ficaria sem argumentos para recusar as demandas de Cuba. 

Há outras interpretações para a iniciativa. Entre elas, uma referente àsetapas seguintes da viagem do Che Guevara pela América Latina, a únicaque realizaria na região antes de enfiar-se na ratoeira boliviana. De Monte-vidéu, ele partiu, diz-se que secretamente, para sua querida Buenos Aires,em viagem de um dia, para um encontro com o presidente Arturo Frondizi.Antes da baía dos Porcos, circulou a versão de que Frondizi, junto com seucolega brasileiro, Jânio Quadros, propusera ao mandatário norte-americanomediar a negociação com Cuba. A iniciativa não rendeu frutos, mas abriuum precedente. O próprio Frondizi, comprovando a moderação dos discur- 

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sos do Che, pensara que a ocasião era propícia para nova tentativa media-dora. A entrevista foi realizada no dia 18 de agosto, na residência presiden-cial de Olivos, e durou setenta minutos. Em seguida, o Che comeu um bombife argentino, em companhia da esposa e da filha de Frondizi, fez uma rá-pida visita a sua tia Maria Luisa e em seguida voltou a Montevidéu, de onde

partiu imediatamente para o Brasil. O sigilo combinado se manteve, aomenos naquele dia, mas 24 horas depois rebentou o escândalo, provocandoa imediata demissão do chanceler argentino. A rápida passagem de CheGuevara pela cidade de sua juventude suscitou tamanha controvérsia quemuitos atribuíram a ela o golpe de Estado que um ano mais tarde derrubariaArturo Frondizi. 

Em uma declaração de 1992, Frondizi afirmou que John Kennedy lhepedira para reunir-se com o Che, pois queria "normalizar a relação com Cubadepois do fracasso da baía dos Porcos. Tanto Kennedy quanto (Jânio)Quadros e eu acreditávamos que Guevara era um comunista amigo dos Esta-dos Unidos, ao passo que Fidel Castro era o homem da URSS".!C Análise insólita

e duvidosa: nada indica que Kennedy pensasse uma coisa semelhante. Porsua vez, Jânio Quadros, que dias depois condecorou o Che em Brasília com aGrã-Ordem do Cruzeiro do Sul, também seria vítima da maldição do cubanoerrante. Uma semana mais tarde, renunciaria à presidência do Brasil em umgesto estranho, passional e jamais esclarecido. O recém-publicado relato deseu porta-voz mostra tanto as complicações políticas do momento como ocomportamento do Che em solenidades desse género: 

Jânio saudou rapidamente o ministro revolucionário de Cuba que, em um uni-forme simples, cansado e sonolento — viajara toda a noite —, não parecia àvontade na cerimonia. O presidente colocou-lhe o colar no pescoço e entre-gou-lhe a caixa com o diploma e a medalha. Guevara agradeceu com poucaspalavras. Depois, produziu-se um silêncio constrangedor. Jânio convidou oministro a entrar em seu gabinete e, percebendo o embaraço do homenagea-do, voltou-se para seu chefe de protocolo e disse-lhe: "Ministro, tire este colarde Guevara" [...] No dia seguinte, começaram os rumores, que se confirma-riam dias depois, de que vários militares estavam decididos a devolver suascondecorações ao governo em protesto contra o tributo a Guevara." 

Depois de uma ausência de mais de duas semanas, o Che por fim voltoua Havana. Ali deparou-se com novos e mais graves desafios à revolução. Omais importante se dava justamente naquele terreno em que Cuba queria seravaliada, conforme as palavras do próprio Che em Punta dei Este: o dodesempenho económico. O outro, no terreno político, implicava a enorme 

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façanha de institucionalizar o poder revolucionário por meio da criação deum partido único e centralizado. 

Depois da baía dos Porcos, Fidel Castro e os demais dirigentes revolu-cionários iniciaram um árduo processo de construção partidária. Em julhode 1961, Castro anunciou a formação das Organizações Revolucionárias

Integradas, ou ORIs, agrupando três correntes: o Movimento 26 de Julho, oDiretório Estudantil Revolucionário — ou o que sobrara dele — e o PartidoSocialista Popular. Em seu discurso de 26 de julho, Fidel batizou o parti-do que estava na iminência de nascer com o nome, exato, mas não muitoatraente, de Partido Único da Revolução Socialista. Apesar dos apelos deCastro, o tempo corria, e o partido não vingava, ainda que o trabalho deorganização já tivesse sido iniciado. Ele estava nas mãos dos quadrosdisponíveis, ou seja, os comunistas do PSP, já que os do 26 de Julho e doDiretório que permaneciam em Cuba se dedicavam a atividades de admi-nistração e defesa. E os comunistas, liderados por Aníbal Escalante, quehavia muito tempo era o segundo homem do PSP, propuseram-se a construir

um partido comunista à moda antiga. Foram tomando conta do poder e darede de organização, ditaram as regras do jogo e ocuparam os postos-chavecom gente de sua confiança. Castro começou a elogiá-los em público demaneira desconcertante e, em dezembro de 1961, confessou, sem muita con-vicção, sua definitiva conversão ao marxismo-leninismo. Quando Cuba foiexpulsa da OEA, em uma nova conferência em Punta dei Este, em janeiro de1962, o caudilho lançou a Segunda Declaração de Havana, reiterando, commais veemência ainda, o caráter socialista da revolução. 

Aumentaram as divergências dentro do movimento revolucionáriosobre a composição, natureza e finalidade do novo partido. Em 9 de marçodesignou-se a primeira junta diretora das ORIs: dez comunistas e treze

"fidelistas", vários provavelmente mais fiéis ao partido do que a Fidel. Du-rante as semanas seguintes, correram vários boatos sobre a composição dacúpula partidária, que se somaram a uma sequência de incidentes públicos,a um sumiço de Fidel, de Raul e do Che durante várias semanas, refletindoacirrada luta interna.* 

(*) Um embaixador ocidental bem informado descreveu assim o desfecho do con-flito num informe confidencial ao seu governo: "As evidências levam a crer que Castrousou o período de suspensão das aparições públicas tanto para mobilizar o apoio de seusseguidores como para demonstrar aos velhos comunistas que não podiam ficar no podersem ele. Por fim, como fórmula de transição, entregou aos antigos comunistas postosimportantes na esfera económica, sobretudo a Rafael Rodríguez, no 1NRA, enquanto os 

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A luta se decidiu em 27 de março, quando Castro fez uma violenta críti-ca contra Aníbal Escalante, acusando-o de todos os vícios políticos ima-gináveis, agrupados sob o pecado do "sectarismo". Ele foi destituído dadireção das ORIs e, em termos gerais, houve uma leve distensão da linha dura,ortodoxa, numa palavra, stalinista, que imperava havia meses em Cuba. 

O Che nunca viu com bons olhos a criação das ORIs sob a tutela do PSPe de Escalante. Junto com Juan Almeida, Raul Castro e Osmany Cienfue-gos, participou ativamente, embora com a máxima discrição, do grupo queinvestigou a conduta de Escalante e provocou sua remoção da liderança donovo partido." Em uma entrevista concedida quatro anos mais tarde a umarevista egípcia, disse: 

Escalante começou a ocupar todos os postos importantes. Valeu-se de ideiassectárias, que não permitiriam a construção de um partido do povo [...] Algunsdos quadros antigos chegaram a postos elevados e desfrutaram de vários pri-vilégios — belas secretárias, cadillacs, ar-condicionado. Logo se acostumarame preferiram manter as portas fechadas para poder desfrutar do ar-condicio-

nado, deixando de fora o calor cubano. Mas acontece que, além do calor, láfora estavam os trabalhadores. " 

Apesar da denúncia contra Escalante, pouca coisa mudou. O Che ain-da não se afastara dos comunistas, mas já começava a vê-los com outrosolhos. Poucos meses mais depois, algo semelhante ocorreria com relação àUnião Soviética, finda a crise de outubro e principalmente ao se confir-marem as dificuldades na ajuda soviética a Cuba. Os dois temas estavam vin-culados: para muitos observadores e participantes, não foi por acaso queFidel lançou sua ofensiva contra Escalante uma semana depois de decretaro racionamento de uma longa lista de bens de primeira necessidade, medida

imposta pela escassez de importações, reduzidas devido ao desequilíbrio dascontas externas e ao déficit comercial com a URSS. A economia cubanaretrocedia, sob o comando de Ernesto Guevara. 

O Che tinha pressa, na economia e em tudo: como Fidel Castro decla-raria a Régis Debray, em janeiro de 1967, ele estava sempre um passo à 

novos comunistas (os fidelistas-JGC) conquistaram ampla maioria na direção das ORIs.Com esse apoio majoritário, Castro pôde então excluir o velho comunista Anibal Esca-lante, convertido em bode expiatório da entrega do controle da revolução aos velhoscomunistas". (Ambassador George P. Kidd, Canadian Embassy, Havana, to Under-Secre-tary of State for Externai Affairs, Ottawa, 18/5/62 (secreto), FO371/62309, Ref 8664, Fo-reign Office, Londres.) 

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frente, fosse no ritmo da música, fosse no da história.54 As festivas e preten-

siosas previsões que expôs no Uruguai eram apenas a ponta do iceberg. Em

Cuba, ele impunha desafios disparatados a si mesmo e à depauperada econo-

mia da ilha. Tinha suas razões: o atraso, as carências, a pobreza e as exigên-

cias das massas inflamadas pela revolução aparentemente exigiam uma tran-

sição veloz, ainda que insustentável a longo prazo. Com "85% da economianas mãos do povo, a totalidade dos bancos, a indústria de base e 50% do cam-

po", podia-se começar a planejar." Em meados de 1961, o ministro da Indústria anunciou o primeiro plano

quadrienal, com metas ambiciosas: 

Adotar uma taxa [...] de crescimento de 15% ao ano; alcançar em 1965 a auto-

suficiência em géneros alimentícios e matérias-primas agrícolas, exceto nos itens

em que as condições materiais o impeçam; decuplicar a produção de frutas e

outras matérias-primas para a produção de conservas [...] construir 25 mil

habitações rurais e 25 a 30 mil habitações urbanas [...]; alcançar, no decorrer do

primeiro ano do plano, a plena ocupação da força de trabalho [...]; manter os

preços estáveis no varejo e no atacado; produzir 9,4 milhões de toneladas de açú-car em 1965; aumentar o consumo global de alimentos a uma taxa anual de 12%.}6 

Em uma palavra, tratava-se de dobrar o nível de vida até 1965.0 obje-

tivo era produzir em Cuba a maioria dos produtos até então importados,

aumentar pelo menos o consumo básico dos cubanos, estender a educação e

a saúde à totalidade da população, tudo sem deixar de lado a produção de

açúcar. Todos os objetivos eram louváveis, mas incompatíveis. Na condução

da economia, o Che pagou caro por sua inexperiência e falta de formação,

mas também por seu eterno defeito político, a defasagem entre a estratégia

e a tática, entre o curto e o longo prazo, entre a visão grandiosa e a rotina

burocrática. O descalabro da economia cubana em fins de 1961 e sobretudo

em 1962-3 se deverá tanto a fatores estruturais e insolúveis como a erros cir-

cunstanciais de gestão, em grande parte reconhecidos pelo próprio Che

durante o verão de 1963. 

O primeiro tropeço veio da ideia da industrialização a toque de caixa, inspira-

da na experiência stalinista, explicável em parte pela euforia após a vitória na

batalha de playa Girón e a ajuda do bloco socialista, em parte pela urgência

política. Mesmo se os países do Leste tivessem entregado pontualmente as

fábricas onde se produziria o que antes era importado, criando uma nova classe

operária — metas essenciais para o Che — e forjando a independência

económica do país, subsistiriam dois problemas básicos. O primeiro, que

inviabilizou o esquema, era o das matérias-primas: Que carvão e que ferro se- 

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riam utilizados para produzir o aço ? Que óleos para fabricar o sabão ? Que fibraspara confeccionar os tecidos? Que couro para fazer os sapatos? E verdade queuma parte das matérias-primas poderia ser obtida graças aos convénios com ospaíses socialistas, mas muitas delas teriam de ser importadas pagando comdivisas. E não havia reservas em divisas, o que constituía o segundo problema.As reservas se esgotaram por dois motivos: um era decorrente dos próprios êxi-

tos da Revolução Cubana, já que a distribuição da riqueza e da renda, bemcomo as campanhas de alfabetização e vacinação, tinham elevado de maneirasubstancial, direta ou indiretamente, o consumo da população; o segundoderivava, como quase tudo em Cuba, do açúcar.

Mas a revolução alcançara muitas conquistas no campo da educação. Seantes de 1959, 40% das crianças de seis a catorze anos permaneciam fora daescola, a porcentagem já havia baixado, em 1961, para 25%. A campanha dealfabetização daquele ano reduziu o índice de analfabetismo de 23% para3,9%, ainda que cifras desse tipo sempre suscitem dúvidas quanto a sua veraci-dade e precisão. No total, participaram da campanha quase 270 mil profes-sores, entre eles mais de 120 mil adultos." Por volta de 1965, a porcentagemda população infantil que ficou fora da escola em Cuba ultrapassava em 50%a média do restante da América Latina, e era superior à dos outros países daregião.18 Na área da saúde, construíram-se hospitais e clínicas, deflagraram-secampanhas de vacinação e foi feito um enorme esforço para formar médicosque substituíssem os que emigraram para Miami. Tudo isso custava muito di-nheiro, gerava demandas e trazia dividendos económicos mínimos a curtoprazo. No entanto, os dividendos políticos eram infinitos, e foi graças a elesque a revolução pôde resistir bem a uma situação económica tão grave.  

Muitos observadores estrangeiros menosprezavam esses avanços. Sóembaixadores perspicazes como o da Grã-Bretanha eram capazes de en-

xergá-los e tirar as devidas conclusões. Como nossas vidas se tornaram menos prazerosas, nós, diplomatas ocidentais,tendemos a esquecer como a revolução favoreceu esse setor (os pobres, osnegros, os menores de 25 anos, os assalariados). Nossos contatos se restringemà alta classe média contra-revolucionária, logicamente ressentida. Não vemoso entusiasmo dos camponeses que vivem em suas novas colónias, da classeoperária que frequenta pela primeira vez os antigos clubes de luxo e as novaspraias públicas, com seus filhos usufruindo de parques de brinquedos incrivel-mente bem equipados. Ainda mais importante é a reação natural dos jovens,quase todos humildes, que respondem aos chamamentos para trabalharem porum futuro melhor e por uma causa que acreditam ser justa. Não podemosavaliar a força dessas emoções, de suas convicções e de sua lealdade."

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O problema residia na esquálida resposta da oferta interna de bens eserviços. A demanda incrementada devia ser saciada com importações, oque requeria divisas, cada vez mais escassas. Além disso, esforços excep-cionais, como a campanha de alfabetização, a criação das milícias e suamanutenção em pé de guerra, independente de seus efeitos políticos e so-

ciais, retiravam mão-de-obra das atividades de produção interna de bens deconsumo básico. * Logo esses bens começaram a faltar em Cuba. Desde 14 deabril de 1961, quase um ano antes da introdução do carne de racionamento,o Che confiara ao embaixador soviético que seria inevitável, embora politi-camente prejudicial, racionar o azeite e o sabão.40 Na verdade, a escassez dealimentos já vinha desde fins de 1960. 

Um segundo fator complicava ainda mais as coisas: o açúcar, comosempre na história de Cuba. Entre a seca, o corte antecipado dos canaviaisem princípios de 1961, a decisão mais ou menos deliberada de reduzir a áreaplantada e a escassez de mão-de-obra disponível devido à reforma agrária (osguajiros, já com sua terra, e com toda a razão não queriam cortar cana), a pro-dução começou a cair.** Entre 1961 e 1963 a área colhida diminuiu em

14%; a moagem, em 42%; o rendimento por hectare, 33%. Em 1961, devidoà inércia e ao corte prematuro, a safra alcançou a cifra recorde de 6,8 milhõesde toneladas; em 1962, caiu para 4,8 milhões e, em 1963, para 3,8 mi-lhões. Um estudo elaborado por economistas ingleses e chilenos, que tive-ram acesso a informações do Ministério da Indústria, descrevia assim acatástrofe açucareira: 

Os fatores imprevisíveis da quebra de 1962-3 foram, em primeiro lugar, a secae, em segundo lugar, uma política deliberada do governo visando restringir aprodução de açúcar em função do propalado objetivo da diversificação agrí-cola. Essa decisão, talvez o erro pontual mais grave da política agrícola desdea revolução, foi adotada em uma época de grande êxito: pouco tempo depois

da supersafra de 1961 e da vitória de playaGirón.41

 

(*) "No trabalho da indústria em geral, prosseguia Guevara, a quase permanentemobilização de grande parte dos homens jovens no exército ou nas milícias popularesexercia uma influência negativa". (MID-1904-30-I-62, Sergei Kudriavtsev, "Notas de con-versación dei 8 de diciembre de 1961 con el ministro das Industrias, Ernesto Guevara",18/12/61 (secreto), Archivo dei Ministério, op. cit.) 

(**) Na realidade, o Che procurou aplacar a fúria anticanavieira inicial de FidelCastro. Carlos Franqui recorda uma reunião de 1961 em que Guevara se opôs a que Fi-del se pronunciasse em público contra a cana, "porque, com a influência que Fidel tinhasobre a cana em Cuba, havia o risco de acabarem com a cana toda; Fidel Castro nãodeixou de fazer seu discurso contra a cana, e o desastre foi total". (Carlos Franqui, entre-vista com o autor, op. ci t. ) 

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O dilema decorria em boa parte de um fato indiscutível: a URSS nãoqueria, ou não podia, custear indefinidamente as extravagâncias cubanas.Theodore Draper concluiu que os cubanos vinham se comportando desde 1960 como se os soviéticos lhes tivessem aberto "não uma linha de créditode 100 milhões de dólares, mas uma conta livre e a fundo perdido".42 Só que

a URSS reclamava agora o pagamento da dívida. A propensão dos cubanospara o esbanjamento — e nisso o Che pecava pelos mesmos excessos e descuidos — transparece na carta do ministro da Indústria ao vice-premiêMikoian, em 30 de junho de 1961. Ela mais parece uma lista de compras,exorbitante pelo custo e pela ambição que revela. Entre outros pedidos, acarta solicitava "o aumento da capacidade da primeira unidade de ferro fundido, construída pela URSS, de 250 mil para 500 mil toneladas; o aumento dacapacidade da refinaria de petróleo de 1 milhão de toneladas por ano para 2milhões; empresas da indústria química e de celulose no valor de 157 milhões de rublos; uma usina termelétrica em Santiago de Cuba com potênciade 100 mil quilowatts; diversos técnicos e especialistas".41 

Desse conjunto de fatores derivava uma consequência desastrosa paraa economia cubana: um crónico desequilíbrio das contas externas. A alta doconsumo interno, a queda nas exportações de açúcar e a escassez de recursosinternos se combinaram, produzindo um insustentável déficit do balanço depagamentos, que teria implicações de longo alcance para o futuro da re-volução. Esse problema básico nunca foi solucionado, nem naquela época,nem agora, mais de trinta anos depois. Para livrar-se da monocultura do açú-car, Cuba precisava industrializar-se e, para isso, necessitava de divisas. E amaneira mais fácil de consegui-las, ontem e sempre, era vendendo açúcar. Opaís talvez pudesse tentar exportar outras matérias-primas ou produtos bási-cos, mas o mercado mais acessível para essa expansão era o norte-americano,

que estava fechado.44 Como se não bastassem esses problemas estruturais, uma série de

fatores circunstanciais veio castigar ainda mais a maltratada economia dailha. Em 1961 e 1962, segundo as estimativas de agrónomos favoráveis aoregime, metade da produção de frutas e verduras não foi colhida; a falta demão-de-obra, transporte e armazenamento faziam estragos no consumo e nonível de vida dos cubanos. Fidel viu-se obrigado a decretar para março de  

1961 o racionamento de uma grande variedade de géneros de primeiranecessidade: arroz, feijão, ovos, leite, peixe, frango, carne bovina, óleo, pasta de dentes e detergentes. Antes disso, o Che fizera sua primeira autocrítica na televisão, reconhecendo que elaborara "um plano absurdo, desligado 

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da realidade, com metas inatingíveis e prevendo recursos que não passavamde um sonho".4' 

De fato, a ajuda do bloco socialista não atendeu às expectativas quedespertara. Ainda que, em volume, os soviéticos e seus aliados tivessementregado o prometido, nem os prazos, nem a qualidade estavam à altura das

esperanças e necessidades cubanas. As fábricas, os bens de consumo e osinsumos industriais revelaram-se de uma qualidade e modernidade muitoinferiores ao previsto pelo Che. Desde 1961, o argentino começou a fazerrecriminações ao embaixador soviético, a princípio dirigidas aos países daEuropa oriental, embora possamos supor que estivessem endereçadas à URSS:"Guevara assinalou que alguns países socialistas criam certas dificuldadesem sua economia. Os checos, por exemplo, estão praticando uma políticacomercial muito dura para com Cuba, que às vezes se parece com a polí-tica das relações entre países capitalistas, e não socialistas".46 

Por último, uma série de decisões administrativas do Che — inspiradasem suas concepções teóricas — também atrapalharam a gestão económica.

As principais foram a centralização das decisões relativas à indústria estatale o esforço por abolir as transações em dinheiro entre empresas paraestatais.O aparato burocrático nas mãos do Che era descomunal: toda a indústriaaçucareira, as companhias telefónica e elétrica, a mineração, a indústrialeve, mais de 150 mil pessoas e 287 empresas, no total, inclusive fábricas dechocolate e bebidas alcoólicas, gráficas e construtoras. As concepções doChe sobre a centralização e as relações entre empresas manifestaram-se des-de que ele assumiu o Ministério, embora só se tenham tornado em pontoscríticos da polémica com os técnicos comunistas soviéticos em 1963-4,quando foram completamente derrotadas. 

De início, a centralização não era tão grande. Mas, já quando se criou

o Ministério, cada empresa era obrigada a entregar-lhe a totalidade de seusativos. Ele, por sua vez, devolvia-lhes as quantias necessárias tanto para asdespesas ordinárias como para os investimentos. Nenhuma empresa con-servava seus recursos em dinheiro. Não havendo transações comerciaisentre empresas, o mercado ficava definitivamente abolido. Portanto, osmirabolantes planos de expansão económica do Ministério careciam dequalquer base real: 

Fizeram-se complicados planos para explorar as jazidas minerais de Oriente,para que Cuba se auto-abastecesse de aço, fabricasse maquinaria de todos ostipos, inclusive colheitadeiras mecânicas de cana, para criar uma nova refi-naria de petróleo, implantar novas redes de distribuição elétrica, expandir a 

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indústria química, produzir papel a partir do bagaço da cana, hormônios a par-tir da cera da cana, borracha a partir do butano [...] Já que Cuba tinha reservastão grandes de níquel, por que não ocupava o posto de segundo maior produ-tor mundial?47 

A impressionante disciplina e organização do Che foram-lhe extrema-

mente úteis no Ministério, mas ao mesmo tempo acarretaram-lhe sérios pro-blemas. No exercício de seu cargo, Guevara conseguiu impor a si própriouma ordem, uma pontualidade e um rigor excepcionais. Supôs que seuexemplo seria imitado e que, graças a ele, os incontáveis problemas técnicosdo Ministério logo se resolveriam. Um de seus colaboradores recorda o estilodo Che, a pontualidade com que chegava ao Ministério, sempre às oito,sua exigência de que todos estivessem presentes nas reuniões. Às oito e dezfechava-se a porta do Conselho e ninguém podia entrar, nem mesmo o vice-ministro. Ao meio-dia em ponto, a reunião terminava. Mesmo que naquelemomento alguém estivesse dizendo "tenho a fórmula para derrubar o impe-rialismo em dois dias", o Che dizia: "Senhores, vejo-os à tarde". Ele tinhauma capacidade de síntese incomum; resumia em poucos minutos as con-clusões de uma reunião de três horas. Era uma pessoa extremamente organi-zada. "O Che fez o que ninguém tinha feito em Cuba."48 Ou, como disse umcolega que discordou dele em outros assuntos: "Ele trouxe para Cuba umacompetência administrativa e uma diligência que nunca se alcançou, nemantes, nem depois".49 

Essa disciplina coexistia com uma obsessão pela planificação económi-ca, ignorando transtornos que um esforço semelhante causara na URSS e nospaíses socialistas, que contavam com melhores recursos e condições paralevá-lo adiante. Segundo o mesmo colaborador, as políticas gerais do Mi-

nistério eram definidas nas reuniões bimestrais de controle, realizadas nosegundo domingo do mês em que caíam. Começavam às duas da tarde e àsvezes terminavam às duas ou três da madrugada de segunda-feira. As fábri-cas estavam agrupadas em empresas, as empresas pertenciam a ramos de ati-vidade. O responsável pelo ramo mecânico, por exemplo, que englobavanove empresas, monitorava todos os índices de produção dessas nove em-presas e das fábricas de cada uma delas. Subordinava-se a um Vice-Minis-tério, o da Indústria Leve, que controlava e supervisionava quatro ramos. OMinistério abarcava três setores: o Vice-Ministério da Indústria Leve, o daIndústria Pesada e o da Construção Industrial. "No segundo domingo decada bimestre, chovesse, trovejasse ou relampejasse, o Che começava a dis- 

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cutir empresa por empresa, os desvios, ou seja, por que não se cumpriu talmeta de produção, que setores não a cumpriram [...]"5° 

O verdadeiro motivo da centralização e da interferência nas relaçõesentre as empresas difere da justificativa que o Che apresentaria mais tarde, já em plena polémica com seus adversários. No início das expropriações de

1960, algumas empresas nacionalizadas dispunham de vultosos fundospróprios enquanto outras, ao contrário, estavam falidas ou sobreviviam comum magro fluxo de caixa. Por meio do Departamento da Indústria do INRAe, principalmente, do Banco Nacional, o Che determinou que todas asempresas teriam que depositar seus recursos em contas do banco central,para que este os distribuísse de acordo com as prioridades da revolução. Nãoera um método absurdo, sobretudo quando se considerava que a qualidadedos quadros revolucionários tendia a ser melhor nas instâncias superiores —isto é, o Banco Nacional —, do que nas empresas. 

Por outro lado, embora Guevara tenha superestimado as virtudesadministrativas que o capitalismo local legou à Revolução Cubana, alguns

elementos podiam, de fato, reforçar a ideia da centralização: as reduzidasdimensões da ilha, a existência de uma boa rede de transporte e comuni-cações e uma quantidade significativa de quadros especializados na área con-tábil. Uma vez escolhida a meta, era fácil rebuscar os fatores que a justificas-sem e viabilizassem, até mais do que na própria URSS. Como nesse exemplo: 

Somos um país pequeno, centralizado, com boas comunicações, um só idioma,uma unidade ideológica cada vez mais acentuada, uma unidade de comando,um absoluto respeito pelo dirigente máximo da Revolução; onde não há dis-sensões que ameacem a unidade de comando e ninguém disputa a mais ínfimaparcela de poder [...] Todo o país está mobilizado por um objetivo comum.Qualquer problema sério que obrigue nossos quadros a se deslocarem não

exige mais que um dia de viagem, inclusive porque temos aviões; além do maishá telefones, há o telégrafo, e agora vamos fundir todas as empresas de comu-nicações em um sistema telefónico por microondas." 

Essa foi a origem, lógica e compreensível, do que mais tarde receberiao nome de Sistema Orçamentário de Financiamento, cuja defesa opôs o Chea Carlos Rafael Rodríguez e aos técnicos soviéticos. Mas, como veremos nopróximo capítulo, Guevara logo começaria a racionalizar as justificativastanto para a extrema centralização como para a ausência de transaçõescomerciais entre as empresas. Seus argumentos pertenciam mais ao âmbitoda teoria marxista que ao da economia, e revelavam um completo descasopelas especificidades de Cuba. A liquidação da classe média, o caos admi- 

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nistrativo que qualquer revolução acarreta, a escassez de recursos decorrentedo embargo, a falta de divisas e de experiência, todos esses eram fatores que,no mínimo, dificultavam a implantação e o funcionamento de um sistemacomo o imaginado pelo Che. O fino mecanismo de relógio com o qual elepretendia organizar a economia cubana — aliás, bem pequena e de fácil

manejo — não existia na ilha, e provavelmente em nenhum país do mundo,capitalista ou socialista. 

Já em fevereiro de 1963, em um artigo intitulado "Contra el buro-cratismo", Guevara apresentou a primeira justificativa para a extrema cen-tralização do sistema, baseada nas origens deste. O raciocínio era o seguinte:Das próprias raízes da revolução teria surgido o que ele chamou de "guerri-lheirismo administrativo", que permitia a cada um agir como bem enten-desse, "ignorando o aparato central de direção".52 Daí ser imprescindível"organizar fortes aparatos burocráticos", que lançassem "uma política decentralização operacional que coibisse a exagerada iniciativa dos admi-nistradores". Mais tarde, em 1964, o Che reconheceria que o sistema apre-

sentava sérios defeitos, como o exceso de burocracia, a falta de quadros, adesinformação daqueles que tomavam as decisões e sérias falhas na dis-tribuição." Mas na ocasião ele defendeu com unhas e dentes a centralizaçãoe toda uma série de ideias que pioraram ainda mais uma situação econó-mica já catastrófica. 

A tarefa que a revolução havia confiado ao Che, e que ele assumira porcompleto, era provavelmente irrealizável. No caso da União Soviética deStalin, a industrialização a marchas forçadas e passos largos só fora possívela um custo humano inimaginável na época, e com um patético desenlaceeconómico que só viria a público anos mais tarde. Tudo isso dispondo dosrecursos do maior país do mundo. O Grande Salto da China maoísta tam-

bém teve efeitos económicos desastrosos e um preço humano intolerável emuma nação ocidental. Com as cartas que recebera, o Che não podia ganharo jogo. Ele calculou que, graças à ajuda da URSS e a um voluntarismo a todaprova seria possível vencer os inúmeros obstáculos no caminho até as metaspropostas. Uma ambição menos desmedida teria revertido em conquistasmais duradouras, poupando à nação muitos tropeços dolorosos. Mas o Chenão se ajustava a essa visão convencional que, de resto, era incompatívelcom o caminho político que ele e Castro haviam seguido, tanto no planointerno como no externo. Dado o contexto internacional, os recursos deCuba e o rumo político da revolução, a maioria das teses do Che estavamfadadas ao abandono, depois de um primerio período de vitórias. Já as novas  

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posturas que adotou em substituição daquelas nunca combinaram com seuideário e sensibilidade.

A maior prova do fracasso da política dos primeiros anos foi a feroz críti-ca que o próprio Che fez a elas. De início, sua visão continuou sendo super-ficial ou francamente simplista, embora sempre mais direta que a dos demais

dirigentes. Já na primeira reunião nacional de produção, em 27 de agosto de1961, ele desafiou seu auditório:

Agora há pouco, vocês me receberam com um aplauso forte e caloroso. Nãosei se foi como consumidores ou simplesmente como cúmplices [...] Acho quefoi mais como cúmplices. Cometeram-se erros nas indústrias que resultaramem falhas consideráveis no abastecimento da população [...] A todo momentoé preciso trocar diretores, substituir administradores, fazer que uns melhoremsua capacitação cultural e técnica, outros sua postura política [...] Muitas vezeso Ministério deu ordens sem consultar as massas, muitas vezes ignorou ossindicatos, ignorou a grande massa operária [...] e às vezes as decisões da classeoperária [...] foram acatadas sem a menor discussão com a cúpula do Ministério[...] Atualmente há escassez de pasta de dentes. É preciso saber por quê. Háquatro meses, houve uma paralisação da produção. Mas ainda havia algumestoque. Não foram adotadas as medidas urgentes que eram necessárias justa-mente porque o estoque era grande. Mas logo o estoque começou a baixar, asmatérias-primas não chegavam[...] Até que chegou a matéria-prima, um sulfatode cálcio fora das especificações para o fabrico de pasta de dentes [...] Oscompanheiros técnicos dessas empresas fizeram uma pasta de dentes [...] tãoboa como a anterior, que limpa da mesma forma, mas endurece depois deguardada por algum tempo.54 

A conferência em questão produziu uma das raras divergências públicasentre o Che e Fidel. Depois que Guevara proclamou a existência de uma "criseda produção", Castro, apesar da avalanche de denúncias, queixas e críticas de

seus próprios funcionários, sentenciou sem rodeios: "Não existe crise da pro-dução". Seis meses mais tarde viria o racionamento e, ao longo de todo o anode 1962, um número cada maior de questionamentos por parte de Guevaraquanto ao desempenho económico da revolução, sobretudo nas reuniões doMinistério da Indústria. Ali o Che censurava abertamente o Ministério e orumo da economia, embora as críticas fossem ainda tímidas e superficiais.Continuava aferrado à convicção de que os problemas podiam ser resolvidoscom entusiasmo, fervor revolucionário e vontade de ferro. Como recordouCharles Bettelheim — o economista francês que sustentou, dentro de umaperspectiva marxista uma dura polémica com o Che em 1964 sobre todos es-ses problemas —, Guevara recorria sistematicamente à retórica para corrigir 

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erros e deficiências. Ia de fábrica em fábrica, agitando, discursando, mobi-lizando e convencendo seus interlocutores." Quando esse método não surtiaos efeitos desejados, teimava até alcançar o objetivo, ou ter de passar a outroelenco de dificuldades. O próprio Che explicava seu ponto de vista: 

" "' Quanto à questão do entusiasmo, da falta de entusiasmo, da necessidade de rea- 

' '' cender o entusiasmo revolucionário, existe algo que se chama brio. Nósdei- ' xamos o brio decair totalmente. Ele adormeceu por completo, é preciso desper- '' ■■>■  tá-lo de uma vez. O brio tem de ser a força que impulsiona a massa a

todo ; momento, e deve haver gente pensando constantemente na forma de avivá-lo. 

Não é tão difícil buscar uma forma, outra forma, de trazer as pessoas para a luta.'6 

Era o Che voltando à carga, com uma estranha mistura de realismo eutopia, de frio reconhecimento dos reveses da revolução e constante chama-mento a seguir o mesmo caminho, porém com mais afinco. Não renegou desuas convicções nem de sua análise. Só em 1964 esboçaria uma explicação

mais completa do beco sem saída em que a experiência cubana parecia terentrado. Por ora, só se lamenta e exorta: 

(Cuba é o) primeiro país socialista da América, a vanguarda da América, e nãotem malanga,* nem mandioca, nem nada. Aqui (em Havana) o racionamen-to ainda é leve; mas quem vai a Santiago só tem quatro onças [pouco mais decem gramas] por semana. Falta de tudo, só há bananas, e a cota de manteiga émetade da que vocês têm aqui, porque todas as cotas em Havana permitem odobro. Todas essas coisas são difíceis de explicar, e nós temos de explicá-lasatravés de uma política de sacrifício, em que a revolução, os líderes da re-volução, marchem à frente do povo." 

A partir de meados dei 963, Guevara começou a manifestar, por escrito

e em discursos e entrevistas, uma série de discrepâncias mais explícitas esubstanciais em relação aos despropósitos perpetrados. Assumiu comnobreza as consequências de suas denúncias, ao afirmar que as alternativasviáveis para o biénio de 1961 -2 eram necessárias, porém amargas. Entre con-tinuar lutando pelo impossível e aceitar a coexistência suspeita com umaciscunstância inevitável, mas ingrata, preferiu a fuga para a frente para aÁfrica e a Bolívia. Para a história. Qualquer outra saída parecia-lhe umabaixeza. Se Guevara tivesse consumado a radical guinada económica que arealidade impunha, teria podido permanecer em Cuba com todas as regaliasque seu cargo e seu prestígio lhe proporcionavam. Mas os heróis e mitos nãosão feitos dessa matéria. O Che logo pôde conscientizar-se do dilema em que 

(*) Fruta comestível cubana. (N. T.) 

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a revolução e ele se debatiam. Resumiu-o com ingenuidade — trágica paraum dirigente político — em nova conversa com o embaixador soviético emmeados de 1962, quando solicitou que se acelerasse a construção de umametalúrgica em Oriente, que ele, temerariamente, vinha anunciando desdeoutubro. Já falara com Mikoian a esse respeito, na carta citada anterior-

mente: "Nosso governo já fez ao povo muitas promessas, e infelizmente nãopode cumpri-las. Eu não gostaria que nossa promessa de fazer da metalurgiaum dos alicerces da industrialização também se mostrasse vã. Claro queteríamos de ser mais prudentes na hora de fazer promessas, e só comunicarao povo aquilo que podemos cumprir. Mas uma promessa que já foi feita deveser cumprida".58 

Em um discurso pronunciado a portas fechadas, em um seminário deplanejamento realizado em Argel a 13 de julho de 1963, o Che apontou umconjunto de erros teóricos—já em curso — que conduziram à grave situaçãoeconómica de Cuba. Primeiro situa-os no plano conceituai: "Basicamente,em matéria de planejamento, fizemos duas coisas opostas e incompatíveis

[...] Por um lado, copiamos detalhadamente as técnicas de planejamento deum país-irmão; pelo outro, continuamos a tomar muitas decisões de maneiraespontânea. Isso ocorreu sobretudo com as decisões de ordem política que seimpõem a cada dia no processo de governo, mas que influem diretamente naeconomia".59 

E dá um exemplo da falta de análise e de informação durante osprimeiros anos da revolução. Em relação ao problema do crescimento, for-mulou-se primeiro a meta de 15 % ao ano, para depois estudar como alcançá-la: "Para um país com uma economia baseada na monocultura, com todos osproblemas que já relatei, querer 15% era simplesmente ridículo".60 

Em seguida, fez uma série de críticas mais específicas à gestão económica

inicial, concentradas em três pontos. Primeiro, Cuba procurou tornar-se auto-suficiente em um grande número de géneros de consumo e intermediários, quepodiam ser comprados de países amigos a um custo baixo. Segundo, "comete-mos o erro fundamental de desprezar a cana-de-açúcar, tentando uma diversifi-cação acelerada que resultou no descuido da cana, e que, junto a uma forte secaque nos castigou por dois anos, provocou uma grave queda na nossa produçãoaçucareira".61 E, por último, revela: "Quanto à distribuição de renda, numprimeiro momento demos demasiada ênfase ao pagamento de salários maisequitativos, sem analisar o estado real de nossa economia [...] Em um país ondeainda há desemprego, dá-se o fenómeno da escassez de mão-de-obra na agricul-tura [...] e a cada ano temos de criar frentes de trabalhadores voluntários".62 

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O novo rumo seria o oposto das políticas seguidas até então. Era o únicopossível, mas não o que o Che desejava. Ele intuiu, talvez antes de todos, quea política económica da revolução era insustentável, e reconheceu-o ante apopulação cubana, com grande lealdade e limpidez. Mas ainda não perceberaplenamente quais seriam as consequências do naufrágio; em 1962, não sus-

peitava quão amargas eram as únicas alternativas possíveis. Provavelmente,não teria consciência disso até a assinatura do convénio de longo prazo paravenda de açúcar à URSS, em 21 de fevereiro de 1964- Compreendeu, então,que o único caminho possível era um que ele jamais concordaria em seguir.Já o desencanto com a União Soviética vinha de 1961, ainda que só se tor-nasse público nos primeiros dias de 1965. Seu estopim foi aquilo que o mun-do conheceria como crise de outubro, do Caribe ou dos mísseis, em 1962,quando a humanidade esteve mais perto que nunca do abismo nuclear.* Ainterferência do Che no confronto do outono daquele ano produziu-se emtrês etapas: antes, quando foi decisiva; durante, quando praticamente nãoexistiu; e depois, quando tornou a ser contundente.** 

Em diversas ocasiões ao longo de 1961, o Che invocou o escudo prote-tor atómico da URSS. Sua tese, bastante explícita, postulava uma indiscutí-vel realidade: enquanto os Estados Unidos não desistissem das tentativas dederrubar pela força o regime revolucionário de Havana, este teria o direito ea obrigação de defender-se como pudesse. Somado às milícias, ao exércitoregular, à aviação e ao apoio popular, a instalação de mísseis soviéticos decurto e médio alcance teria um poderoso efeito dissuasivo. Cuba passaria aser uma espécie de gatilho atómico soviético: um ataque à ilha seria respon-dido pela URSS, a partir de Cuba, de maneira semelhante à dos mísseis norte -americanos instalados na Alemanha e na Turquia. A convicção dos cubanosaté o verão de 1962 era de que Kennedy, a CIA e Miami queriam a todocusto uma revanche da baía dos Porcos, e por isso estariam planejando uma

nova invasão. Esse era um motivo mais do que suficiente para que o escudonuclear soviético fosse estendido até Cuba. 

(*) Em suas memórias, Marcus Wolf, o legendário chefe da contra-espionagemalemã-oriental, atribui a Manuel Pineiro a seguinte frase lapidar sobre os sentimentos doChe: "Ele se sentiu terrivelmente decepcionado com a decisão soviética de retirar os mís-seis de Cuba". (Marcus Wolf, Man without a face, Times Brooks, 1977, p. 310.) 

(**) Nos últimos anos realizaram-se inúmeros debates e conferências sobre essesmemoráveis "treze dias", como foram chamados por Robert Kennedy. Embora nem tudotenha sido esclarecido, sabe-se hoje muito do que se ignorava anos atrás. As páginas aseguir se apoiam em grande parte nas novas fontes à disposição. A partir delas, procurou-se reconstituir o envolvimento do Che no episódio, não rever a crise no seu conjunto. 

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Nas conversas que, nos meses que antecederam à crise, John F. Ken-nedy manteve com diversos mandatários latino-americanos — desde ovenezuelano Rómulo Betancourt, em dezembro de 1961, até o mexicanoAdolfo López Mateos, em junho de 1962 —, o presidente assegurou que osEstados Unidos "não preparavam naquele momento nenhuma ação unila-

teral contra o regime de Castro".61

 Mas Havana pensava exatamente o con-trário, ou ao menos queria que os soviéticos acreditassem nisso. Castro cita-va uma entrevista concedida por Kennedy a um jornalista e operadorpolítico de Krushev, Alexei Adzhubei, genro do primeiro-ministro daURSS e diretor do Izvestia. Segundo Adzhubei, durante um almoço de trêshoras na Casa Branca, em 31 de janeiro de 1962, Kennedy fez uma analogiaà invasão da Hungria para justificar sua política em relação a Cuba.Adzhubei, em seu informe a Krushev, remetido também a Castro, concluiuque o mandatário norte-americano optara por uma nova tentativa de inter-venção armada.* Segundo as fontes soviéticas que se pronunciaramrecentemente a respeito, foi a partir da entrevista de Adzhubei que os

cubanos passaram a falar com veemência no assunto da defesa da ilha.Assim, no final de abril ou início de maio de 1962, na capital russa, Krushevtomou a decisão de instalar os mísseis, motivado pela convicção unânime detodos os protagonistas soviéticos: os Estados Unidos tinham resolvido li-quidar com o regime castrista.64 

Segundo Alexander Alexeiev — na época recém-nomeado embai-xador em Havana, em maio de 1962, depois que Kudriavtsev se desenten-dera com Fidel —, ele foi convocado ao Kremlin para uma reunião no gabi-  

(*) Os norte-americanos sempre questionaram a versão soviética do incidente, masainda não liberaram o memorando da referida conversação presidencial. A história da

conversação entre Kennedy e Adzhubei começou com uma reportagem do jornalistafrancês Jean Daniel, publicada dias depois da morte de Kennedy. Nela, Daniel cita FidelCastro afirmando que foi o informe de Adzhubei sobre a conversa na Casa Branca que lhedeu a certeza de que os norte-americanos queriam a invasão. Em dezembro de 1963, PierreSalinger, secretário de imprensa de Kennedy, e McGeorge Bundy, chefe do Conselho deSegurança Nacional, afirmaram — o primeiro em público, o segundo em memorando pri-vado ao colunista Walter Lippman — que Kennedy nunca se referiu à invasão da Hungriano sentido interpretado por Adzhubei, ou seja, como uma ameaça, mas sim como umexemplo de como uma superpotência pode irritar-se quando vê surgir um grupo hostilperto de suas fronteiras. Ambos, Salinger e Bundy, insistiram para que Kennedy fossecategórico com Adzhubei, dizendo-lhe que os Estados Unidos não tinham a intenção deinvadir Cuba. (Ver "McGeorge Bundy, Memorandum for Walter Lippman", 16/12/63 e"Transcript, White House News Conference with Pierre Salinger", 11/12/63, pp. 9-10.) 

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nete pegado ao de Nikita, da qual participaram o próprio Krushev, o vice-primeiro-ministro Anastas Mikoian, Frol Kozlov (secretário do ComitéCentral do PCUS), o ministro da Defesa, Malinovski, o chanceler AndreiGromiko e o marechal S. S. Biryruzov, comandante responsável pelos mís-seis estratégicos da URSS. O encontro correu nestes termos: 

Ao ajudar Cuba estaríamos dando um passo muito sério, advertiu Krushev.Nós decidimos que, se Cuba concordar, instalaremos mísseis de médio alcancena ilha. E perguntou: "Como Fidel receberia a notícia?". Mikoian respondeuque Fidel não aceitaria, pois sua estratégia era sempre buscar o apoio daopinião pública mundial e latino-americana. Com foguetes e bases da URSS emseu território, Cuba estaria igualando-se aos Estados Unidos. Todos secalaram, exceto Malinovski, que gritou: "Como uma república socialista nãovai aceitar nossa ajuda, se até a República espanhola a aceitou?!". Decidiu-seenviar a Cuba uma delegação, composta por Rashidov (Sharif Rashidov,chefe do PC do Usbequistão-JGC), Biryuzov e eu. Krushev advertiu-nos: "Nãoqueremos arrastar Cuba para uma aventura, mas os americanos aceitarão osmísseis se os instalarmos antes das eleições de novembro". Ele queria salvar

Cuba, manter a paz e fortalecer o bloco socialista." 

Nos primeiros dias de junho, eles chegaram a Havana. Raul Castro nãoconhecia o motivo que os trazia, mas recepcionou-os no aeroporto. Biryu-zov inclusive viajara clandestino, com a identidade fria de Petrov, umengenheiro. Alexeiev confiou a Raul que o tal engenheiro Petrov era ochefe do sistema de mísseis soviético e tinha urgência em falar com Fidel.Este os recebeu imediatamente. Alexeiev tomava notas para fazer atradução, e graças a isso a conversa foi registrada para a história. Essas notasdão conta de que os soviéticos iniciaram as discussões, dizendo que Krushevachava que a melhor forma de ajudar Cuba era instalar mísseis na ilha. Fidel

respondeu que a tese era muito interessante, mas desnecessária para salvar aRevolução Cubana. Já se o objetivo fosse fortalecer o bloco socialista, vale-ria a pena pensar o assunto. De qualquer modo, não podia dar uma respostaimediata.6<1 No dia seguinte houve nova reunião, onde participaram, do ladocubano, Raul e Fidel Castro, o Che, o presidente Osvaldo Dorticós, CarlosRafael Rodríguez e Emilio Aragonês. Fidel deu a resposta cubana: afirmati-va e, como dissera, não tanto para defender a Revolução Cubana, e sim obloco socialista. Ele reconheceria, trinta anos depois: 

A ideia dos mísseis não nos agradava. Se fossem instalados apenas para nossadefesa, não os teríamos aceitado. Não era tanto pelo perigo, mas pelo dano quepoderia causar à imagem da revolução [...] na América Latina. Os mísseis nos 

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transformariam em uma base militar soviética, o que teria um alto custo polí-tico para nossa imagem. Se fosse só por nossa defesa, não teríamos aceitadoos mísseis.*

Fidel propôs que Raul viajasse imediatamente a Moscou, para con-cretizar o acordo. Pouco depois, o ministro da Defesa de Cuba foi à capital

russa, onde o marechal Malinovski submeteu-lhe uma minuta do acordo,que Raul examinou página por página. O tratado previa o envio a Cuba de42 mil soldados soviéticos e 42 mísseis de 24 metros. Krushev pediu que nãose fizesse nenhum contato com Havana, por rádio ou por cabo, pois estavaconvencido de que os norte-americanos poderiam interceptar as comuni-cações cubanas e de que o fator surpresa era decisivo. Em agosto, Alexeievvoltou a Cuba com a nova versão do acordo em sua valise. Entregou-a a FidelCastro, que a julgou demasiado técnica, pediu que fosse especificado comoCuba solicitou a assistência soviética e se incluísse um preâmbulo maispolítico. Como não se podia negociar à distância, devido à exigência feitapor Krushev de manter sigilo, alguém teria de ir a Moscou para fazer as

mudanças no texto do acordo. Fidel decidiu comissionar o Che e seu cola-borador mais próximo, Emilio Aragonês, secretário-geral do incipiente Par-tido Revolucionário unificado. 

Nada nesse relato contradiz as revelações posteriores dos soviéticos,mas difere em muitos pontos das impressões transmitidas pelos principaisprotagonistas norte-americanos, mesmo trinta anos depois. Nas conferên-cias de Cambridge e Hawk's Cay (1987), Moscou (1989) e por fim na deHavana (janeiro de 1992), das quais participaram vários protagonistas dacrise, estes repassaram suas distintas apreciações. Personalidades comoRobert McNamara (então secretário de Defesa dos Estados Unidos), McGe-orge Bundy (conselheiro de Segurança Nacional) e Theodore Sorensen (o

principal assessor político de Kennedy) declararam que simplesmente nãosabiam — e continuavam sem saber — quais teriam sido os motivos deKrushev. Alguns supunham que tinham algo a ver com o equilíbrio estraté-gico, com Berlim, com as bases dos Estados Unidos na Turquia; outros, queeram fruto das lutas internas do Kremlin. Sorensen, por exemplo, especulaque, como Krushev não agiu às claras, e, ao contrário, fez questão de assinaro acordo com Cuba de maneira furtiva, devia abrigar alguma razão incon-  

(*) Fidel Castro, "Transcrição da intervenção na conferência sobre a crise do Cari-be", Havana, 11/1/92, Foreign Broadcast Information Service, cit. em The NationalSecurity Archive, Lawrence Chang and Peter Kornbluh, eds., The Cuban missile crisis,Nova York, The New Press, 1992, p. 332. 

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fessável.67 Os atores norte-americanos também divergiram — entre si e comos soviéticos e cubanos — na apreciação da verdadeira política da CasaBranca frente a Cuba. Segundo Bundy, "no outono de 1962, em Washing-ton imperava uma grande frustração em relação a Cuba, uma grande con-fusão sobre o que fazer. Na minha opinião, o único objetivo das operações

secretas era disfarçar nossa inércia. Não tínhamos a intenção de invadir, masparece que em Moscou a impressão dominante era de que não nos limi-taríamos a fazer o que fizéramos até então".68 McNamara, por sua vez, respon-deu: "Deixe-me dizer que não havia nenhum plano para invadir Cuba e, sepor acaso tivesse surgido algum, eu teria me oposto frontalmente a ele". Paraem seguida relativizar sua afirmação: "Não havia nenhuma intenção [...] e asoperações secretas eram inócuas, embora os soviéticos as considerassemuma verdadeira ameaça".69 

Sergo Mikoian, o filho de Anastas, a quem acompanhou a Cuba emnovembro de 1962, foi enfático ao afirmar que a iniciativa partira deKrushev, que de fato não via outra forma de impedir uma iminente invasão

norte-americana de Cuba. Quando, em 1992, Robert McNamara pergun-tou a Andrei Gromiko por que a URSS deslocou para Cuba mísseis com ogi-vas nucleares, o ex-chanceler soviético respondeu sem rodeios que o obje-tivo era fortalecer a estabilidade defensiva da ilha e prevenir as ameaçascontra ela. "É só."70 

Segundo o filho de Mikoian, em abril de 1962, Krushev teria sugeridoessa ideia — rebuscada e mal alinhavada — a seu pai. O vice-primeiro-mi-nistro discordara, argumentando que os cubanos a rejeitariam e os norte-americanos fatalmente tomariam conhecimento dela e armariam um escân-dalo de proporções internacionais. Estranhou a aceitação de Fidel, bemcomo as garantias oferecidas por Biryuzov, de que os mísseis podiam ser

instalados de forma dissimulada.71 Sergo Mikoian não descarta a possibili-dade de que os militares soviéticos tivessem outros motivos para o envio dosmísseis, mas, como seus compatriotas, acredita que a razão principal tenhasido a defesa de Cuba, "embora Malinovski e outros falassem em equilíbrioestratégico". O problema foi que Krushev nunca sequer cogitou a possibili-dade de uma reação negativa norte-americana. "Ao contrário, achou que asrelações entre as duas superpotências melhorariam."72 

Talvez Krushev também buscasse soluções fáceis para melhorar o equi-líbrio nuclear com os Estados Unidos. Os militares soviéticos podem terquerido pôr à prova os sistemas norte-americanos de defesa e informação.Mas se Krushev usou Castro, este fez o mesmo com o premiê da URSS. Con- 

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vém recordar que, se a iniciativa dos mísseis partiu de Moscou, em váriasocasiões anteriores Fidel Castro e Che Guevara tinham pensado na alter-nativa dos mísseis. Carlos Franqui chegara a sondar Krushev a esse respeito,em Moscou. * Oleg Daroussenkov, na época professor de russo do Che (e quemais tarde seria o encarregado das relações do Partido Comunista da URSS

com Cuba) conta que teve uma surpresa logo no primeiro encontro com seualuno, ocorrido em j ulho de 1961, no qual também estava presente o conse-lheiro económico da embaixada soviética, Nikolai Kudin: "A certa altura oChe disparou: 'Então, Kudin? Você acha que os americanos vão nos atacarou não?'. Os americanos estavam logo além do horizonte, e o Che pareciaacreditar que Cuba precisava de mísseis para não ser invadida por eles".7' 

Portanto, a ideia da conspiração não brotava do nada; era algo que ron-dava as mentes dos líderes cubanos havia muito tempo. Fidel Castro enfati-zou, em 1992, que ele evitara mencionar os mísseis em seus discursos, insi-nuando que Krushev e "alguns camaradas" (cubanos; talvez se referisse aoChe) não fizeram o mesmo.74 Já vimos, porém, que o próprio Castro tocou

pelo menos uma vez no assunto dos mísseis em 1960 (ver capítulo anterior).Em todo caso, quando o Che e Emílio Aragonês chegaram a Moscou parareler o texto do acordo, foram informados de que Krushev continuava emférias na Criméia. Quem os atendeu foi Leonid Brejnev, já então uma figuraimportante na hierarquia soviética, que lhes disse: "Não, não, procuremNikita, eu não quero saber dessa história. Falem com Nikita".75 

Foram imediatamente para Yalta, onde se reuniram com o premiêsoviético. Insistiram com Krushev sobre o ponto mais delicado da iniciati-va, o sigilo. Expuseram mais ou menos os mesmos argumentos que Mikoianna mesma época e Sorensen trinta anos mais tarde: não era nem desejável,nem possível manter a operação em segredo. As discussões com Nikita

Krushev se realizaram num cais à beira do mar Negro. Krushev, Malinovskie um intérprete militar, o Che e Aragonês se sentaram juntos, abrigando-sedo frio daquele início de outono. A preocupação principal dos cubanos eraconvencer seus aliados de que o segredo da operação duraria pouco. Seusserviços de informação já davam conta de comentários ouvidos de emi-grantes cubanos nos Estados Unidos, ou interceptados em cartas familiares,sobre a instalação de mísseis na ilha. Algumas pessoas teriam visto passar um 

(*) Um biógrafo do Che afirma, sem indicar a fonte, que este declarara, em Moscou,em 1960: "Este país está disposto a arriscar tudo em uma guerra atómica, de um poderdestrutivo inimaginável, para defender um princípio e para proteger Cuba". (PhilippeGavi, Che Guevara, Paris, Editions Universitaires, 1970, p. 96.) 

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caminhão carregado de enormes mísseis. Krushev se fazia de desentendido,limitando-se a repetir: "Temos que nos apressar".76 

Para o Che, era preferível firmar abertamente um acordo militar entreos dois países.77 Krushev replicou que isso era impossível, pois a correlaçãode forças desfavorecia a URSS. Prometeu que, se os norte-americanos desco-

brissem algo, deslocaria a frota do Báltico para a América do Norte a fim dereequilibrar a balança.78 Fidel Castro confirmaria esse relato em conversasposteriores, afirmando inclusive que ele mesmo instruíra o Che e Aragonêsno sentido de tentar que o acordo militar — e o próprio envio de mísseis, senecessário — fosse levado a público. Krushev recusou-se a fazer isso, e comoCastro resolvera "deixar que Nikita tomasse a decisão final",79 assim foi feito. Opremiê soviético encerrou a reunião com uma de suas famosas bravatas:"Se os ianques descobrirem os mísseis, eu mando a frota do Báltico".80 

Aragonês e o Che franziram a testa e se perguntaram se era realmenteviável o envio da frota báltica para fora de suas águas pela primeira vez des-de 1904, mas acabaram conformando-se com a decisão soviética.81 Krushev

aceitou todas as alterações propostas pelos cubanos, "sem tirar nem pôr umavírgula".82 Quando o Che retornou a Havana, em meados de setembro, apósuma ausência de uma semana, trazia um gosto amargo na boca. Algo o inco-modava: se o projeto tinha de ser mantido em sigilo, seria sustentável? Eis aversão de Aragonês: 

O problema não estava no envio dos mísseis. Eles diziam que os mísseis ser-viam para proteger a independência de Cuba de um ataque norte-americano.Para isso, bastava uma declaração solene do Estado soviético de que um ataquea Cuba seria um ataque à União Soviética. O papelzinho teria sido impor-tante; mas é claro que mísseis são muito mais importantes do que um papel-zinho. Nós, em Cuba, queríamos que fosse um pacto público porque aaprovação daquele louco do Krushev foi feita na presença de apenas seis mem-bros do Secretariado do partido de Cuba: Fidel Castro, Raul Castro, o CheGuevara, Blas Roca, Carlos Rafael Rodríguez e Emílio Aragonês. Ninguémmais sabia de nada daquilo.* 

(*) Aragonês, entrevista, op. cit. Castro depois afirmaria: "A URSS poderia terdeclarado que um ataque a Cuba equivaleria a um ataque à URSS. Poderíamos ter forma-lizado um acordo militar. Poderíamos ter alcançado a meta da defesa de Cuba sem a pre-sença dos mísseis. Estou absolutamente convencido disso". (Fidel Castro, transcrição daintervenção, op. cit., p. 336.) E o mesmo ponto de vista defendido por três consultorescontratados pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos para escrever a história dacorrida armamentista: "Se os soviéticos quisessem proteger Cuba, ao ligarem seus interes- 

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O Che ainda não desconfiava da URSS. Não imaginava que Krushevpudesse retirar os mísseis caso houvesse um enfrentamento com Washing-ton. Tampouco se convencera por completo da terrível inferioridadenuclear da URSS frente aos EUA: ainda acreditava na existência de uma pari-dade entre as duas superpotências. Segundo Aragonês, chegou a zombar das

dúvidas de seu companheiro de viagem. Ao retornar de Moscou, os doisencontraram alguns cubanos na Tchecoslováquia, e Aragonês se queixou doacordo. O Che retrucou: "Mas como você é, hem.?!". Guevara acreditara nocompromisso soviético.* 

As teses de Krushev, vistas à distância, mostraram ser menos absurdasdo que pareciam. As profecias do Che só se cumpriram em parte. Sabemoshoje — porque assim insinuaram os participantes soviéticos da reunião deMoscou em janeiro de 1989 e porque assim declarou categoricamente FidelCastro na conferência de Havana em janeiro de 1992 — que vinte dos 42mísseis soviéticos instalados em Cuba estavam armados com ogivasnucleares e seis lança-mísseis táticos, carregados com nove mísseis com ogi-vas nucleares, estavam prontos para ser usados na eventualidade de umainvasão norte-americana.8' Foram introduzidos em Cuba sem que Wash-ington percebesse. Arthur Schlesinger e Robert McNamara, ambos pre-sentes na conferência de Havana em 1992, quase caíram da cadeira ao saberdisso.84 O número de soldados soviéticos que efetivamente chegou a Cubatambém foi muito superior ao previsto pelos norte-americanos. Os 42 mil 

ses de defesa aos dos cubanos, teria bastado um tratado de defesa mútua e uma presençamilitar voltada especificamente para a defesa contra um ataque aéreo ou uma invasãoanfíbia, sem necessidade de converter Cuba em um alvo estratégico altamente vulnerávele inevitável. Embora se possa argumentar que uma presença defensiva soviética teria sidopor si só uma provocação, além de exigir um enorme esforço logístico, não teria elevado

tanto a tensão quanto um dispositivo nuclear ofensivo". (Ernest R. May, JohnSteinbruner, Thomas W. Wolfe, "History of the strategic arms competition", Office of theSecretary of Defense, Historical Office, março de 1981 (ultra-secreto), p. 482, citado emThe National Security Archive, "The Soviet estimate: US analysis of the Soviet Union1947-1991", Washington, 1995.) 

(*) Aragonês, entrevista, op. cit. Va!e destacar um elemento que o leitor atento jádeverá ter notado: as versões proporcionadas por Emilio Aragonês e Alexander Alexeievsão quase idênticas, inclusive nos detalhes, sequências e coincidências. Não é preciso dizerque, a esta altura, não existe qualquer comunicação entre eles. Aragonês vive em Havana,como um aposentado quase proscrito. Alexeiev, já velho e com saúde frágil, passa boaparte de seu tempo no hospital da Nomenklatura, nos arredores de Moscou. Se suas lem-branças coincidem de maneira notável é porque os acontecimentos ficaram marcados parasempre em suas mentes e porque são verdadeiras. 

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soldados, disfarçados com uniformes de inverno e até equipamento de esqui,foram calculados pelos Estados Unidos em 4500, no início de outubro; 10mil, no auge da crise e, no final, entre 12 e 16 mil. Estimativas posterioreselevaram o número para 22 mil. Mas Castro confirmou a cifra de 42 milapresentada por Alexeiev e Mikoian.85 Em outras palavras, os soviéticos de

fato conseguiram infiltrar mísseis, ogivas nucleares, tropas e equipamentosantiaéreos sofisticados em Cuba antes de o Serviço de Informação norte-americano perceber. Tanto isso é verdade que um memorando "Top secretand sensitive" * dirigido a Kennedy e datado de 3 de setembro (menos deum mês antes da crise), de autoria de Walt Rostow, conselheiro do Depar-tamento de Estado, informava ao presidente que, de acordo com os infor-mantes da CIA, "o fornecimento de material militar soviético a Cuba efe-tuado nos últimos dias não constitui uma ameaça substancial à segurançados Estados Unidos".86 A questão, portanto, não foi a suposta falta de sigiloda transferência das armas a Cuba, e sim o que fazer com elas uma vez insta-ladas na ilha. Quando o conflito se agravou, nem Krushev, nem o coman-

dante soviético dos mísseis em Cuba se atreveram a dar a ordem de disparar.Os militares soviéticos no terreno tinham autonomia para disparar mísseismunidos de ogivas nucleares. O avião-espião norte-americano U-2, der-rubado nos céus cubanos em 27 de outubro, foi atacado por decisão daguarnição soviética em Cuba, não de Moscou. A crise se acirrou quandoKennedy soube da presença de mísseis da URSS em Cuba e de outros que jáestavam a caminho, em alto-mar. O presidente dos EUA impôs à ilha um blo-queio marítimo e exigiu a retirada dos mísseis já instalados. Krushevprimeiro vociferou, em seguida pestanejou (na frase de Dean Rusk) e em 28de outubro cedeu ao ultimato de Washington. Em troca da retirada dos mís-seis e de uma inspeção por parte das Nações Unidas — que Castro nunca

admitiu —, a URSS obteve a promessa de que os Estados Unidos não invadi-riam Cuba — promessa nunca ratificada em documento — e a retirada dosmísseis norte-americanos na Turquia — aliás, obsoletos — em uma permuta jamais reconhecida por Washington. 

Castro sentiu-se terrivelmente traído, ofendido e desprezado pelaURSS, tanto pela rendição em si como por ter sabido da decisão pelo rádio.Ao tomar conhecimento da resolução soviética enfureceu-se, chamouKrushev de "filho da puta, cagão e bunda-mole".87 Conseguiu recuperar adignidade, mas, obviamente, não pôde impedir a retirada dos mísseis. Pouco  

(*) Em inglês no original: Altamente secreta e sensível. (N. T.) 

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depois, proclamaria em público, na Universidade de Havana, que o proble-ma de Krushev era "falta de colhão".88 Rejeitou no mesmo dia a promessanorte-americana de não invadir a ilha e apresentou sua lista de exigências:levantamento do bloqueio, fim das atividades subversivas contra seu gover-no realizadas a partir dos Estados Unidos e de Porto Rico, suspensão dos

sobrevôos, devolução da base de Guantánamo. O slogan "Nikita, mariquita, Io que no se da, no se quita" [Niquita, vea-dinho, ninguém tira o que não deu], gritado em coro em Havana, mostra bemo estado de espírito que imperava em Cuba, tanto entre o povo como no seioda direção revolucionária. As atribulações de Krushev eram evidentes:expôs-se à crítica impiedosa dos chineses — "E a maior traição desde a dasocial-democracia alemã no início da Primeira Guerra Mundial"89 — e à deseus inimigos dentro da própria URSS. Embora saibamos hoje que sua der-rubada em outubro de 1964 não foi motivada pela derrota no Caribe, algumainfluência deve ter exercido sobre essa decisão. A prova da importância queKrushev atribuía à relação com Cuba e à incessante crítica chinesa aparece

em uma carta do premiê soviético a Fidel Castro, datada de 31 de janeiro de1963 e divulgada em janeiro de 1992. Ao longo de 31 páginas, com repetidose mal disfarçados ataques contra os chineses e uma ou outra consideraçãopouco lisonjeira em relação a Cuba, ele tenta convencer Castro a visitar aURSS na primavera. Convida-o a pescarias, caçadas e passeios pelo campo;tudo para cicatrizar as feridas de outubro. Reconhece que 

a crise deixou uma marca em nossas relações, que hoje já não são as mesmas deantes. Isso nos preocupa. Durante a crise do Caribe, nossos pontos de vistanem sempre coincidiram [...] Por isso, hoje, qualquer passo impensado ou mes-mo um leve atrito em nossas relações poderia gerar vários problemas. Nessascondições, é necessário serenidade e autocontrole. Já lhe disse, camarada

Fidel, que um certo grau de ressentimento impera hoje em nossas relações, eisso prejudica tanto a Cuba como a nós. Sem rodeios, prejudica nosso partidoe nossa pátria, assim como não beneficia o senhor...90 

Castro aceitou o convite. Durante a estadia na URSS, negociou diver-sos acordos económicos e militares, superou as tensões e fúrias de outubro enovembro. Não tinha alternativa: Krushev simplesmente não podia con-tinuar apoiando Cuba quando esta o insultara por fraquejar diante deKennedy e dos Estados Unidos. Já em novembro de 1962, Krushev enviouMikoian para Havana, visando curar as feridas e melhorar o abalado prestí-gio da URSS perante a opinião pública mundial e os rivais chineses. Durantettês semanas o "cubano do PCUS", como o chamavam em Moscou, tentou  

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convencer os cubanos a aceitarem o acordo com Kennedy e sobretudo a ces-sarem as críticas públicas a Krushev. Conseguiu-o em parte. 

Durante a crise de outubro propriamente dita, o Che praticamente não

se envolveu nas decisões tomadas em Havana. Tal como acontecera às vés-peras do conflito da baía dos Porcos, foi enviado a Pinar dei Rio, como coman-dante de toda a região ocidental da ilha, mantendo as tropas a postos pararepelir uma possível invasão norte-americana ou, caso fossem derrotadas,preparar a guerrilha que se seguiria. Rafael dei Pino, o piloto-herói de playaGirón, foi convocado por Fidel Castro, como assessor em matéria de aviação,desde o segundo dia dos voos norte-americanos. Segundo Del Pino, que aolongo da crise fingiu ser o secretário pessoal de Fidel, dormindo em um quartopegado ao quartel-general, o Che não teve nenhum encontro com Castro atéo término da crise em 28 de outubro.91 Talvez tenham conversado por telefone,mas, como os cubanos não dispunham de scramblers para proteger suas comu-

nicações, não poderiam ter tratado de questões substantivas.92

 As pessoas-chave do círculo mais próximo a Fidel, segundo recorda Del Pino, foram ocomunista Flavio Bravo e o chefe do Departamento de Informação do exérci-to.91 O Che não viveu ao lado de Castro as peripécias e a tragédia da crise doCaribe em sua etapa de outubro. Em compensação, teve destacada parti-cipação no desenlace da crise. Segundo Ricardo Rojo, estava junto a Fidelquando este soube da decisão soviética de retirar os mísseis e o viu dar pontapésna parede, de raiva."4 Resignou-se ao curso dos acontecimentos, mas, à dife-rença de Fidel Castro, sentia verdadeira aversão pela política de Estado que seimpunha no tempo da Guerra Fria.* Não engoliu seu desgosto com a mesmadiscrição e tato de Fidel. Confessou-o ao jornal do Partido Comunista da Grã-

Bretanha, embora a expressão de sua ira não tenha sido publicada na íntegra: 

Se nos atacacarem, lutaremos até o fim. Se os mísseis tivessem ficado em Cuba,usaríamos todos, apontando-os contra o coração dos Estados Unidos, inclu- 

(*) Sua carta a Anna Louise Strong, em Pequim, a 19 de novembro, é uma ótimaamostra do terrível conflito que estava vivendo: "A situação aqui em Cuba é de alerta. Opovo espera o ataque em pé de guerra [...] Se morrermos na batalha (depois de vendermuito caro nossas vidas), quem viver lerá em cada palmo de nossa ilha alguma mensagemsemelhante à das Termópilas. Mas nem por isso estamos ensaiando a pose para o momentofinal. Amamos a vida, e a defenderemos". (Ernesto Guevara a Anna Louise Strong,19/11/62, cit. em Ernesto Che Guevara, Cartas inéditas, Montevidéu, Editorial Sandino,1968, p. 14.) 

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sive Nova York, para nos defendermos contra a agressão. Mas como não ostemos, lutaremos com o que temos [...] Muita gente na Europa anda dizendoque se obteve uma grande vitória. Mas nós achamos que, embora a guerra te-nha sido evitada, isso não significa que a paz esteja assegurada. E perguntamos:Será que com tudo isso não fizemos senão prolongar a agonia em troca de umavitória menor? Até agora, apenas se evitou o enfrentamento, e só. *

Sua incapacidade de tolerar a hipocrisia era indisfarçável. Desde osprimeiros dias depois da crise, sentiu-se profundamente irritado com todo o jogo de cena, como confessou a Oleg Daroussenkov, seu melhor amigosoviético em Cuba. Um dia, finda a crise, foram praticar tiro e conversardespreocupadamente. O Che "queixou-se de que não é impossível tratarcom esses figurões — referia-se a Krushev. Um dia dizem uma coisa, no diaseguinte, já é outra. Krushev me garantiu que se algo acontecesse mandariaa frota do Báltico a Cuba. E cadê a frota? O Che estava furioso".95 

Ele deve ter sentido o recuo soviético como uma traição; até certo pon-to lamentava que a crise não tivesse terminado num gesto de auto-sacrifício: 

É o exemplo tremendo de um povo disposto ao auto-sacrifício nuclear, paraque suas cinzas sirvam de alicerce para uma nova sociedade. Um povo que,ante o acordo de retirada dos mísseis, não suspira de alívio nem dá graças pelatrégua, e sim salta à cena para fazer ecoar sua voz, mostrar sua posição com-bativa, própria e única, e, mais adiante, sua decisão de luta. Mesmo que sejasó, contra todos os perigos e contra a mesmíssima ameaça atómica do imperia-lismo ianque.96 

O Che esteve presente em todas as conversações com Mikoian, exce-to uma. Mas em suas intervenções, limitou-se a enfatizar os efeitos perni-ciosos que a retirada dos mísseis soviéticos teria sobre a revolução na Améri-ca Latina. Além disso, fez algumas brincadeiras que, apesar de um tanto

mórbidas, descontaíram o ambiente. Alexeiev lembra uma delas, que tomoupor vítima o intérprete soviético Tikhmenev. Em um dos momentos demaior tensão, o tradutor entendeu que Fidel teria comparado Mikoian comU Thant. O vice-premiê se enfureceu, primeiro com Castro e em seguida 

(*) Ernesto Che Guevara, entrevista ao  Daily Worker, nov. 1962, reprod. em "Fo-reign Broadcast Information Service Propaganda Report, Changing Pattern of FidelCastro's Public Statements", 7 de dezembro de 1962, pp. 23-4. O informe diz que as trêsprimeiras frases citadas não foram incluídas na versão publicada, mas que o correspon-dente do Daily Worker transmitiu-as a Londres (ibidem, p. 25). Carlos Franqui confirma ocorte e diz que Fidel teria telefonado ao Che, recriminando-o por sempre dizer o que pen-sava. (Carlos Franqui, entrevista, op. cit.) 

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com seu intérprete, ao perceber que o suposto insulto provinha do segundo.Interrompendo a sessão para um descanso que serenasse os ânimos, o Che seaproximou de Tikhmenev, pôs sua pistola automática Makharov sobre amesa e sugeriu discretamente que ele [...] se suicidasse.97 

O último diálogo entre o Che e Mikoian, divulgado em 1995 por

pesquisadores russos e norte-americanos, é de extremo interesse, pois mostrao ânimo de Guevara e o abismo que já o separava do governo soviético. Con-vém citá-lo na íntegra, a título de conclusão desta etapa dourada de Che Gue-vara em Cuba, e de preâmbulo para as definições e desencantos que viriam:  

Guevara: Gostaria de dizer-lhe com toda a sinceridade, camarada Mikoian,que em consequência dos recentes acontecimentos criou-se uma situaçãomuito complicada na América Latina. Boa parte dos comunistas que repre-sentam os partidos latino-americanos e outros grupos não sabem bem o quefazer. Todos estão consternados ante a atitude da União Soviética. Vários par-tidos racharam. Estão surgindo novos grupos, novas facções. Mas nós estamosabsolutamente convencidos da possibilidade da tomada do poder em vários

países da América Latina, e a prática nos ensina que, em alguns deles, não sóé possível tomá-lo, mas também conservá-lo. Infelizmente, muitos grupos lati-no-americanos acreditam que o comportamento da União Soviética nos últi-mos acontecimentos caiu em dois erros muito sérios. Em primeiro lugar a per-muta (ou seja, a proposta de trocar os mísseis soviéticos em Cuba pelos dosEstados Unidos na Turquia-JGC); e, em segundo, a concessão incondicional.Parece-me que isso nos leva a concluir que podemos esperar um refluxo domovimento revolucionário na América Latina, que nos últimos tempos se for-talecera consideravelmente. Tudo isto não passa de opinião pessoal, mas abso-lutamente sincera.

 Mikoian: Claro, é preferível falar com sinceridade. É melhor dormir queescutar palavras mentirosas.

Guevara: Eu também sou dessa opinião [...] Os Estados Unidos, ao con-seguirem a retirada dos mísseis soviéticos de Cuba, em certo sentido obtive-ram o direito de proibir outros países de estabelecerem bases militares. É o quepensam não só muitos revolucionários, mas também os representantes doFRAP no Chile e de vários movimentos democráticos. Em minha opinião, essaé a essência dos recentes acontecimentos. Mesmo com todo o respeito quetemos pela URSS, julgamos que suas decisões foram equivocadas [...] Creio quea política soviética teve duas falhas. Não compreendeu a importância do fatorpsicológico para Cuba. Fidel Castro expressou isso de maneira original: "OsEUA quiseram destruir-nos fisicamente, mas a URSS, com a carta de Krushev aKennedy (em 27 de novembro, aceitando a retirada dos mísseis-JGC), des-truiu-nos juridicamente.

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 Mikoian: Mas nós pensamos que vocês ficariam satisfeitos. Fizemos o pos-.sível para evitar que Cuba fosse destruída. Entendemos a disposição de vocêsde ter uma bela morte, mas achamos que a bela morte não compensa.

Guevara: Em certo sentido, o senhor tem razão. Ao não nos consultar, vocêsofenderam nossos sentimentos. Mas o maior perigo reside na segunda falha docomportamento soviético. Vocês reconheceram o direito de os EstadosUnidos violarem o direito internacional. Isso é extremamente prejudi-cial para a política da URSS. E é algo que nos preocupa. Pode acarretar dificul-dades para a manutenção da unidade dos países socialistas. Parece-nos que jáexistem fissuras na unidade do bloco socialista.

 Mikoian: Isso também nos preocupa. Estamos tratando de fortalecer nossaunidade. E estaremos sempre com vocês, camaradas, apesar das dificuldades.

Guevara: Até o último dia?Mikoian: Sim, deixemos a morte para nossos inimigos. Nós devemos viver

e deixar viver [...] O camarada Guevara avaliou os acontecimentos passadosem um tom pessimista. Respeito sua opinião, mas não concordo com ela.Procurarei convencê-lo em nossa próxima reunião, mas duvido que o consiga

[...] Estou satisfeito com minhas reuniões com vocês [...] Basicamente che-gamos a um entendimento sobre o protocolo do acordo. Mas devo dizer que eupensava entender os cubanos, mas depois de escutar o camarada Che, chego àconclusão que não, que ainda não os entendo.

 Alexeiev: Mas o Che é argentino.Mikoian (ao Che): Devemos nos reunir e conversar [...] Nós apostamos

muito em Cuba, no sentido material, moral, e também no sentido militar.Pense um pouco nisto: Estaríamos prestando toda essa ajuda por vivermosnuma situação de fartura? O senhor acredita que temos muita coisa de sobra?Não temos nem sequer para nós. O que queremos é preservar a base do socia-lismo na América Latina. Vocês nasceram como heróis antes que a situaçãolatino-americana amadurecesse, mas as nações socialistas ainda não têm ple-

nas condições de ajudá-los. Nós lhes damos navios, armas, técnicos, frutas everduras. A China é um país grande, mas por enquanto continua pobre.Chegará o dia em que venceremos nossos inimigos. Mas não queremos umabela morte. O socialismo deve viver. E desculpe a retórica.*

(*) Memorando da conversa de Anastas Mikoian com Osvaldo Dorticós, ErnestoGuevara e Carlos Rafael Rodríguez, 5/11/62 (secreto), cit. em "Cold War InternationalHistory Project, Cold War Crises", Boletim ne 5, primavera de 1995, Woodrow WilsonInternational Center for Scholars, Washington DC, p. 105. A versão citada provém dosarquivos do Ministério das Relações Exteriores da Rússia. Sofreu várias traduções: porAlexeiev, do espanhol para o russo, ao anotar a conversação de 1962; do russo para oinglês, em 1995; e do inglês para o espanhol, pelo autor.

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Já então podia-se ler no rosto do Che a imagem do calvário e da belamorte. Talvez Mikoian, um culto russo-armênio, recordasse a cena de Guer-ra e paz em que Napoleão, depois de sua derrota em Berezina e contemplan-do o corpo inerte (mas na realidade ainda com vida) do príncipe Andrei,exclama para ninguém em particular: "Quelle helle mort!". 

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COM FIDEL, NEM CASAMENTO, NEM DIVÓRCIO 

Para o Che, aqueles anos em Cuba não foram feitos só de mísseis e cotasde açúcar. Nessa época ele viu crescer sua família, sua fama e seu desejo deperpétuo movimento. Em maio de 1962 nasceu Camilo, seu primeiro filho,que recebeu o nome do companheiro da sierra Maestra; em 1963 nasceriaCélia, a terceira menina. Aleida, que no início o acompanhara na maioriadas viagens pelo interior da ilha, dedicava-se cada vez mais ao lar. A con-fortável mas discreta casa que ocupavam no número 772 da rua 47, entre

Conill e Tulipán, no bairro de Nuevo Vedado, encheu-se de crianças, umferoz pastor alemão — segundo os vizinhos — e uma esporádica e fugaz pre-sença de Guevara. Somando-se o tempo dedicado às idas ao exterior e às via-gens pelas províncias, restavam pouquíssimos dias que ele pudesse passar emHavana. Como relata o neto mais velho do Che, a partir das recordações desua mãe, ele "nunca parava em casa".1 Não formou a família burguesa quetanto temera em Buenos Aires, mas seus raros momentos de vida domésticaforam bem semelhantes aos que teria levado em qualquer outro lugar. Tam-bém cultivou seu gosto pela literatura, dedicando muitas de suas horas livresa escrever cartas, diários ou os artigos e ensaios que continuou a publicar emritmo desenfreado. 

■ Conservou seu ascetismo e a estrita observância das regras de ética re-volucionária que impôs a si mesmo. Evitou ao máximo qualquer abuso depoder, qualquer privilégio que pudesse afetar seus princípios e sua auto-imagem. Aleida, cubana e dona de casa, enfrentando o suplício cotidianodas filas, das privações e do "jeitinho" da ilha, uma vez ou outra usou oautomóvel oficial, a escolta e as influências para conseguir ao menos 

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condições mínimas de sobrevivência. Nessas ocasiões o Che sempre arepreendeu, dizendo-lhe que devia usar o transporte público para ir ao mer-cado ou a qualquer outro lugar: "Não, Aleida, você sabe que o carro é do go-verno, não é meu, portanto você não pode usá-lo. Ande de ônibus, como todomundo". Ricardo Rojo, que morara alguns meses com ele no início de 1963,

recorda como o Che se empenhava em receber do governo apenas o indis-pensável para viver, o que confere com o relato de Aleida e a mãe do argenti-no. A casa em que moravam, uma mansão confiscada de um rico emigrado,dentro não tinha quase nada, apesar dos incontáveis presentes que o Che rece-bia em suas viagens pelo mundo. Guevara simplesmente remetia os presentespara os centros de formação da juventude, fossem peças de decoração, de arte-sanato ou eletrodomésticos. Nem chegava a tirá-los da embalagem.2 

As horas que ele não dedicava a trabalhos estritamente administra-tivos e diplomáticos eram ocupadas com sua obsessão teórica, política e pes-soal: o destino da revolução, na América Latina e, cada vez mais, na África.Se a principal preocupação do Che na crise do Caribe foram as consequên-

cias nefastas da rendição soviética para a luta no continente, foi porque eleestava cada vez mais preocupado com um único propósito: reproduzir omodelo cubano em outros lugares, com os meios à disposição e a qualquercusto. As premissas teóricas de sua obsessão remontam a um ensaio datadode 1961: "La Revolución Cubana ^excepción o vanguardia?". Nesse artigo,Guevara descreve rapidamente os traços da Revolução Cubana que, a seuver, constituem exceções no contexto latino-americano: a figura de FidelCastro, sua "força telúrica", e o modo como "o imperialismo foi tomado desurpresa". Em seguida, cita as características que, em sua opinião, sãocomuns e/ou constantes na América Latina: a falta de arrojo da burguesia; apresença de latifúndios e de um campesinato pobre — "o fenómeno que

assoma em todos os países da América Latina, sem exceção, e que tem sidoa causa de todas as injustiças cometidas"; e a fome do povo. Por último, o Chesintetiza as contribuições da vitória cubana: "a possibilidade do triunfo e odestino do triunfo". Arremata com uma conclusão lapidar: "A possibilidadede vitória das massas populares da América Latina está claramente expres-sa no caminho da luta guerrilheira, baseada no exército camponês, naaliança dos operários com os camponeses, na derrota do exército em umaluta frontal, na tomada da cidade a partir do campo [...]'V 

Guevara retoma essas teses em outro ensaio, que teria maior reper-cussão, publicado em Cuba Socialista em setembro de 1963: "La guerra deguerrillas: Un método". Reitera a vigência dos axiomas anteriores, insiste na 

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viabilidade e na necessidade da luta armada na América Latina. Diferente-mente dos textos de 1960e 1961, apóia-se numa disposição muito maior doregime cubano para "exportar a revolução". Aliás, desde os primeiros anossobraram ocasiões em que o Che e outros dirigentes cubanos incorreram empráticas peculiares: envio de armas, de fundos, treinamento de guerrilheiros,

fornecimento de documentação, apoio logístico... Entretanto, tudo pareciaser fruto mais de uma vocação do que de uma política de Estado. 

A partir da expulsão de Cuba da OEA em 1962 e do rompimento derelações diplomáticas por parte da maioria dos países da América, deixou dehaver qualquer motivo para que os cubanos abrissem mão de seus ardores re-volucionários — sediciosos ou subversivos, quando vistos sob a ótica dos go-vernos.* Além disso, em 1963 a posição do Che como personalidade do Esta-do cubano estava em uma etapa mais consolidada. De forma que seus textosforam percebidos por muitos governos latino-americanos não como a opiniãode um mero intelectual ou guerrilheiro, por mais destacado e emblemático quefosse, mas como uma definição da política do Estado cubano. No entanto, a

grande diferença entre 1960- l e i 963'4 reside no papel pessoal do Che: ele pas-sou a se comprometer diretamente nas aventuras revolucionárias cubanas.** 

Naturalmente, seu primeiro amor guerrilheiro foi a terra natal, a Ar-gentina. Os fundamentos teóricos esboçados naqueles primeiros anos foram 

(*) Os obstáculos para a criação de um foco revolucionário que Guevara indicara nomanual original desapareceram nesse ensaio. Não consta em lugar nenhum, por exemplo,nenhuma menção ao empecilho que um regime constitucional democrático poderia repre-sentar para a guerrilha. Entre outros, Matt D. Childs, em um ensaio intitulado "A historicalcritique of the emergence and evolution of Ernesto Guevara's foco theory" (Journal ofLatin American Studies, Cambridge University Press, n9 27, 1995, pp. 593-624), enfatiza a dife-rença de enfoques entre a teoria inicial do Che e sua revisão de 1963. Childs critica tanto o

autor como Régis Debray por não chamarem a atenção para essa diferença. Enretanto, con-vém observar que a diferença conceituai entre os dois enfoques do Che não influiu no com-portamento dos grupos armados e do aparato cubano, que se lançaram à luta armada naAmérica Latina desde o começo desde 1959, como mostramos — sem demonstrar muitapreocupação com a vigência ou não de uma ordem constitucional. 

(**) Outro sinal claro dessa diferença foi que os soviéticos passaram a contestar o Che.Em 11 de novembro de 1963, foi publicado um artigo assinado por Demetri Leonov, na ver-são em espanhol da Revista da URSS, intitulado "La coexistência pacífica fortalece el frentede Ia lucha contra el Imperialismo". Segundo a embaixada inglesa em Havana, "o artigo podeser lido como uma réplica ao artigo de Guevara sobre a guerrilha, publicado em setembro porCuba Socialista, em clara oposição a suas teses". (Havana Telegram to Foreign Office,Counter-Revolutionary Actvities, 10/1/64 (secreto), Foreign Office, FO371/174003, PublicRecords, op. cit.) 

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pronta e insistentemente aplicados por seus compatriotas, muitos delesreunidos nos festejos da independência platina em Havana, a 25 de maio de1962. Não foi possível fazer um churrasco argentino completo, mas sacri-ficaram uma novilha meio morta de fome que, junto com o mate, bastou paracelebrar a ocasião. 

Estava presente toda a comunidade argentina de Havana, incluindoJohn William Cooke, representante de Perón, e Tâmara Bunke, a jovemtradutora-professora teuto-argentina que um ano antes se incorporara àRevolução Cubana, os duzentos técnicos enviados pelo Partido ComunistaArgentino (PCA) em solidariedade a Cuba, artistas, cientistas e escritoresargentinos radicados em Havana.* O Che pronunciou um discurso quemostra, ao mesmo tempo, sua força e sua fraqueza, suas obsessões e seus fra-cassos. O Instituto de Amizade Cuba-Argentina lhe pedira que falasse, con-vite que ele aceitou sem muito entusiasmo, já que sabia o vespeiro que o es-perava. Como recorda um militante argentino presente à reunião, o PartidoComunista — cujos técnicos chegaram a Havana em um avião especial, não

tinha boas relações com Cuba. Isso porque na ilha defendia-se a violênciarevolucionária, da qual o partido discordava. Muitos dos argentinoscomeçaram a receber instruções para a formação de milícias. A direção con-cluiu de imediato que Cuba pretendia preparar grupos armados dentro dopróprio Partido Comunista Argentino, minando sua base. Isso provocouuma grande tensão, que quase levou à ruptura, sobretudo quando o dele-gado do PCA foi retirado de Cuba. "Eu vou falar no ato de 25 de maio, desdeque não me imponham condições", disse o Che.4 

Assim, Guevara rapidamente penetrou em águas turbulentas e viu-seem em situação delicada. Por um lado, estava absolutamente convencido deque a luta armada, e somente ela, poderia fazer que a revolução triunfasse na

Argentina. Também não duvidava que só seria possível vencer o exército eas oligarquias de seu país de origem se houvesse a unidade de todas as forçaspolíticas que quisessem se incorporar ao combate. Mas, por outro lado, umadessas forças, o Partido Comunista, dirigido pelo legendário e funesto appa- 

( * ) Eram quase quatrocentos, segundo um deles. (Ver Carolina Aguilar, cit. em Tânia, Ia guerrillera inolvidable. Havana, Instituto Cubano dei Libro, 1974, p. 108.) Um informeultra-secreto da embaixada da URSS em Cuba tachava o artigo de "ultra-revolucionário,beirando o aventureirismo". Segundo a embaixada, o Che "não conhece as teses do marxis-mo-leninismo". (Informe ng 47784 da embaixada, 28/1/64 (secreto). Arquivo estatal da Rús-sia, Centro de Conservação da Documentação Contemporânea, fundo n2 5, lista ns 49, ns

655, Moscou.) 

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ratchik argentino-soviético Victor Codovilla, rejeitava suas teses "foquis-tas", enquanto outros disputavam uma liderança que em muitos casos nãomereciam. Ou dispunham de grandes talentos, mas pouco representativos— era o caso de Cooke, apesar de seu vínculo pessoal com Perón —,5 ou for-mavam uma espécie de escória política da esquerda socialista ou castrista,

completamente desvinculada da Argentina. Cooke, já afastado do peronismo, mas não do exilado Perón, pronun-ciou também um discurso incendiário, apoiando as teses do Che. Recordouque todos os grandes heróis da libertação latino-americana tinham sido"guerrilheiros".6 E o Che não usou de meias-palavras, convocando tradi-cionais inimigos a unir-se para pegar em armas, que muitos não possuíamnem desejavam possuir: "Pensamos que somos parte de um exército que lutaem cada parte do mundo. Lutemos para celebrar outro 25 de maio, não maisnesta terra generosa, mas na nossa terra, e sob novos símbolos, sob o sím-bolo da vitória, sob o símbolo da construção do socialismo, sob o símbolodo futuro".7 

As palavras, os gestos e sobretudo as intenções do comandante Gue-vara só podiam causar preocupação a grande parte da plateia, sobretudoaquelas pessoas ligadas ao Partido Comunista. Seus apelos à união com operonismo e com todos os revolucionários, à guerrilha e à violência revolu-cionária desagradaram muito os comunistas. "No dia seguinte foi aquelaconfusão." E começa uma intensa discussão entre os delegados.8 

Discussão áspera, sem dúvida: os comunistas se enfureceram e até cen-suraram as palavras do Che em suas publicações. Guevara logo se viu em umasituação de absoluto desamparo, prisioneiro de suas aspirações revolu-cionárias e guerrilheiras e da completa ausência de bases para realizá-las. Suaúnica saída seria aquela que Cuba e ele próprio haviam encontrado em diver-

sas ocasiões ao longo daqueles anos: provocar cisões dentro dos partidoscomunistas latino-americanos, treinando militantes em Cuba, sem o conhe-cimento ou a permissão de seus dirigentes, e conspirando para que essesativistas tomassem a direção de seus partidos. Uma carta escrita por "amigosargentinos" (comunistas) a Aleira de Ia Pena, integrante do Birô Político doPartido Comunista Argentino, exilada em Moscou, ilustra as tensões exis-tentes: 

Minhas relações com nosso famoso compatriota Ernesto Guevara vãode mal a pior, e tudo por causa de um fato que teve e tem a ver com nosso queri-do partido. Eu flagrei seus amigos Cooke e o grupo que estava recebendotreinamento. Seu patrocinador era Guevara; a atividade era financiada 

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através dele. Entre os membros desse "comando" havia um grupo de trotskistasque dizia: "Quando aplicarmos tudo isso que estamos aprendendo, não vamosfazer nenhuma distinção entre 'gorilas' (militares antiperonistas) e 'comu-nistas stalinistas'".'

A conquista dos partidos "por dentro" nunca chegaria a acontecer, mas

despertou muita mágoa e ressentimento nas direções atingidas. O Checomeçou a compreender que, se quisesse montar uma guerrilha na Argenti-na ou em qualquer outro lugar, seria forçado a fazê-lo sozinho, ou seja, comrecrutas independentes, desligados das organizações existentes. 

Um caso típico foi o da própria Tâmara Bunke, que o Che costumavaencontrar nas festas e celebrações das frentes de voluntariado, bem comonas constantes recepções de delegações estrangeiras. Alguns dos argentinospresentes no churrasco de 25 de maio voltaram a se reunir dias depois,comentando os incidentes e fazendo previsões. Vários, mas não Tâmara,manifestaram suas divergências com o Che. Imbuída do espírito de sacrifí-cio herdado de seus pais comunistas e da impulsividade imprudente que a

levaria à morte na Bolívia cinco anos mais tarde, Tâmara ergueu-se e gritou:"Vou embora, não vou perder meu tempo aqui", para em seguida sair baten-do aporta.10 

O Che teria de fazer sua revolução latino-americana com as Tâmaras esem os Codovillas. Do ponto de vista pessoal, saía ganhando; do ponto devista de uma política das massas, a perda era evidente. Isso ficaria maispatente no caso da Argentina, onde nem o Partido Socialista, nem os comu-nistas, nem Perón estavam dispostos a se lançar à delirante luta armada.Quando Cooke voltou a seu país, dois anos depois, o Che viu-se ainda maisisolado em suas aspirações com relação à Argentina. Mas nem por issoperdeu as esperanças. Já nos dias seguintes àquele 25 de maio, ele confiou

suas verdadeiras intenções a alguns argentinos residentes em Havana, que ovisitaram no Ministério. Ao entrar em seu gabinete, eles o acharam frenteao mapa da Argentina aberto sobre a escrivaninha. Então passaram váriashoras como bons argentinos, tomando mate e contando casos. Um, em par-ticular, impressionou os interlocutores de Guevara: "A revolução, disse ele,pode ser feita, no momento certo, em qualquer lugar do mundo". Em qual-quer lugar do mundo? Mesmo na Argentina ou em La Paz? O Che respon-deu: "Até em Córdoba pode-se fazer uma guerrilha"." 

Em vários países latino-americanos, persistia o dilema dos primeirosanos, agora agravado pela teimosia do Che, pela crescente resistência daURSS e dos partidos comunistas locais. As primeiras tentativas feitas na 

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Venezuela, Nicarágua e Guatemala tinham fracassado. A repressão porparte dos governos — inclusive os de caráter democrático — se agravara ecresciam também os riscos para as grandes organizações de massas inspiradasou dirigidas pelos comunistas. Em tais condições, diminuía dia após dia apropensão — nunca muito pronunciada — desses últimos pela luta armada.

Os comunistas de todo o continente imploravam a Moscou que intercedesse junto aos cubanos pedindo-lhes mais moderação. Os soviéticos, tendo jáproblemas suficientes com seus parceiros tropicais, preferiram, nessemomento, a discrição ao confronto público. O resultado disso foi que os can-didatos naturais à luta armada na América Latina — os quadros comunistas— não se dispuseram a colocá-la em prática, o que aumentou a irritação doChe Guevara. 

Frente a tanta resistência e à eterna objeção de que as condições obje-tivas não eram favoráveis, o Che reformulou suas teses. Se antes insistia quea implantação de um foco guerrilheiro exigia uma série de condições prévias,passou a defender que o próprio movimento seria capaz de gerar essas

condições. O que veio primeiro ? A teoria modificada do Che, segundo a qualo foco criaria as condições para sua vitória, tornando irrelevante a préviaexistência das mesmas? Ou, ao contrário, a total ausência de tais condições,somada ao empenho do argentino por fomentar a revolução imediatamente,teria exigido um embasamento teórico, que ele encontrou na tese da "auto-propagação do foco"? Foi sem dúvida a impossibilidade de encontrar os re-volucionários reais que levou o Che a criar uma teoria que os tornava dis-pensáveis. Acabaria morrendo só, envolto no silêncio dos camponesesbolivianos e dos quadros comunistas ausentes. Seu foco em Nancahuazúcriou quase tudo, exceto condições de vitória. 

Nesse ambiente político tempestuoso e cheio de contradições, produ-

ziu-se um acontecimento político crucial na história da Revolução Cubana:a interminável viagem de Fidel Castro à União Soviética na primavera de1963. Fidel percorreu o maior país do mundo durante mais de quarenta diase quarenta noites, selando com a direção soviética pactos com grandesimplicações para o futuro da economia e a política da ilha. O Che não acom-panhou Fidel, apesar do convite explícito do embaixador soviético emHavana12 e de a viagem ter servido para negociar acordos comerciais e indus-triais de grande envergadura ligados estritamente a sua pasta ministerial. Emais: Guevara só foi comunicado do conteúdo dos acordos firmados entreCastro e seus anfitriões soviéticos quando isso já era um fato consumado."Tanto melhor: o principal convénio conseguido por Fidel reservava a Cuba 

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o inevitável e triste papel de produtora de açúcar e outras matérias-primasagrícolas, dentro da divisão socialista do trabalho, abdicando, agora explici-tamente, do esforço de industrialização que, de fato, já fora abandonadomeses atrás. O Che não perdoou tão facilmente como Fidel a traição da URSSna crise dos mísseis, nem se dobrou tão docilmente como o caudilho à

dependência soviética.* Durante a visita de Fidel, as recriminações e insultos de outubro foram porfim superados. O dirigente cubano foi homenageado, aclamado, adulado cominquestionável espontaneidade pelas massas da Rússia, do Usbequistão, daUcrânia e da Georgia, e também talvez com menos sinceridade pelos dirigentessoviéticos. Ele, por seu lado, não poupou elogios e declarações de amor pelapátria-mãe do socialismo, em especial após seu regresso a Havana em 3 de ju-nho de 1963. Se entre outubro e novembro de 1962 ainda era possível enxer-gar certos paralelos entre o discurso chinês e os sentimentos cubanos emrelação a Kruschev, depois da viagem tais coincidências foram definitivamenteeliminadas da retórica oficial castrista. Vez por outra — por exemplo, nascomemorações do 26 de julho daquele ano —, Fidel ainda esgrimia argumentose adotava posturas que alguns consideravam pró-chineses e ligeiramente anti-soviéticos. ** Mas, embora Cuba mantivesse sua neutralidade no conflito sino-soviético, na prática o alinhamento com a URSS era cada vez maior. Em con-trapartida, os soviéticos referendavam, da boca para fora, o princípio da lutaarmada na América Latina, mas embalavam seu apoio em tamanha quantidadede reservas e condicionantes que qualquer partido comunista latino-ameri-cano podia perfeitamente recusar a via militar sem violar as disposiçõesmoscovitas. 

(*) Em novembro, comentando a queda de Kruschev com seu amigo e professor deeconomia Anastasio Cruz Mancilla, o Che diria: "Nunca vou perdoar Kruschev pela maneira

como resolveu a crise do Caribe". (Nota da conversação de 6 de novembro de 1964 entre oagregado da embaixada da URSS em Cuba E. Pronski e o professor da Universidade de HavanaAnastasio Cruz Mancilla, 13/11/64 (secreto), Arquivo Estatal da Rússia, op. cit., fólio n s 5,lista ns 49, documento n9 759.) 

(**) O FBI, que por estranhos motivos também se interessava por Cuba, mas cujo dis-cernimento ideológico deixava muito a desejar, comenta em um relatório secreto: "Desde o26 de julho de 1963, Castro mostrou descontentamento e frieza para com a URSS, ao mesmotempo que mostra certa tendência a apoiar os comunistas chineses em sua disputa contra ossoviéticos. Diplomatas cubanos assinalaram que os dirigentes do país estão completamentedecepcionados com o tratamento que receberam da URSS e que o governo cubano está maisperto dos chineses do que nunca". (Federal Bureau of Investigation, "Current IntelligenceAnalysis" (secreto), 27/11/63, p. 2, NSF, Country File, Cuba Country, vol. A, * 64 memo,Gordon Chase File, LBJ Library.) 

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As dúvidas do Che quanto ao proveito e à decência de uma reconcilia-ção tão precipitada com a URSS foram reforçadas por outro fator: o incessanteflerte de Fidel com Washington, que sempre dava lugar a interpretaçõescontraditórias, talvez seu verdadeiro objetivo. Na primavera de 1963, umarepórter da televisão norte-americana, Lisa Howard, obteve uma entrevista

com Castro em que ele sinalizou seu interesse por tentar o entendimentocom Kennedy. A resposta de Washington foi rápida e, como era de se espe-rar, negativa. A jornalista redobrou seus esforços de mediação, que emsetembro do mesmo ano resultaram em conversações preliminares entre orepresentante permanente de Cuba na ONU, Carlos Lechuga, e o jornalista-diplomata norte-americano William Atwood. Tudo isso acontecia sob osauspícios de Lisa Howard, que era amiga de René Vallejo, o médico parti-cular de Fidel Castro. Vallejo ajudara a jornalista a encontrar-se com ocomandante-em-chefe em maio, chegando a oferecer o envio de um aviãoaos Estados Unidos para transportar um enviado de Kennedy até Havana.Quando Washington recusou a oferta, Vallejo propôs — com Lisa e Atwoodescutando o telefonema — que ele próprio viajaria aos Estados Unidos,

clandestinamente, para estabelecer o diálogo. Com a morte de Kennedy em22 de novembro, todo aquele esforço em busca do diálogo foi suspenso, semque ninguém saiba se teria prosperado e se Castro estava realmente dispos-to a fazer as concessões que Washington exigia para a normalização dasrelações entre os dois países. 

Em várias conversações entre cubanos e norte-americanos, estes apre-sentavam o seguinte argumento: 

Castro estava descontente com a dependência com relação à URSS. Via que oembargo causava um terrível prejuízo a Cuba e desejava um contato com Wash-ington para normalizar suas relações com os Estados Unidos, embora isso nãoagradasse seus colaboradores mais inflexíveis; entre outros, Che Guevara... Exis-

tia um crescente distanciamento entre Castro e o setor da cúpula encabeçadapelo Che quanto ao futuro da ilha... Guevara e outros comunistas se opunham aqualquer entendimento e consideravam que Fidel era pouco confiável.* 

(*) A fonte dessas citações são vários documentos sobre o intercâmbio cubano-estadunidense entre setembro e novembro de 1963. O primeiro é o memorando de WilliamAtwood a McGeorge Bundy, assessor presidencial de Segurança Nacional, datado de 18 desetembro (sem classificação), recomendando que se aceite o contato com os cubanos. Osegundo é um memorando de Atwood a Gordon Chase, de 8 de novembro (secreto), infor-mando sobre os contatos de Atwood com Lisa Howard, Carlos Lechuga e René Vallejo emHavana. (Memorandum from William Atwood to McGeorge Bundy (secreto), 18/9/63, LBJLibrary. Memorandum from William Attwood to Gordon Chase, 8/11/63, United StatesMission to the United Nations, LB] Library.) 

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A análise não é de todo válida, nem se pode afirmar que já nessa fasehouvesse um distanciamento efetivo entre Fidel e o Che. É possível até queos dois, por diferentes motivos, tenham concordado sobre a necessidade daretomada do apoio a grupos revolucionários na América Latina: o Che, porprincípio e por desencanto com a URSS; Fidel, por não ter conseguido o alívio

económico que desejava, nem de Moscou, nem dos Estados Unidos. O acir-ramento da crise interna talvez tenha contribuído para o renovado ativismocastrista nas selvas e pântanos do subcontinente. Mas uma coisa era darrespaldo a revolucionários latino-americanos, e outra muito diferente,enfrentar-se com a União Soviética. Aos olhos de Guevara, as duas estavamno mesmo nível, e ele simplesmente não tolerava a ambiguidade implícitanos malabarismos políticos de Castro. Enquanto Fidel se divertia com eles,o Che os odiava. 

No início de 1964, Guevara concedeu uma entrevista pela televisão aLisa Howard, na qual repetiu os argumentos de Castro, com a mesma ênfase.Altos funcionários da Casa Branca parabenizaram Lisa pelo programa com

o Che, chegando a reconhecer a firmeza e a habilidade do argentino em suasrespostas.14 Quem rever os rushes da entrevista trinta anos mais tarde, comcortes e tudo, não poderá deixar de impressionar-se com a simpatia, segu-rança e força interior do Che; até para acender o cigarro da jornalista ele semove pelo set com uma elegância e sedução incomuns. Mesmo acima de seupeso, abatido e até um pouco apático, o Che continuava sendo um homemde excepcional beleza. O olhar de mártir de seu leito de morte já está ali; umavaga e fugaz tristeza nos olhos, anunciando a tragédia futura e sua aceitação.Ele ainda não tinha travado as batalhas que estavam por vir, mas em algumlugar de seu inconsciente sabia que sua guerra em Cuba estava perdida. 

Dias depois do regresso de Castro da URSS, Guevara embarcou de novo

para a Argélia, que comemoraria, no início de julho de 1963, o primeiroaniversário da independência. Ficou três semanas no país, percorrendo-o deponta a ponta. A caminho de Argel, refletiu sobre o conjunto dos aconte-cimentos e mudanças dos últimos meses: a reconciliação com Moscou, oflerte de Castro com Washington, a catastrófica situação económica da ilha,suas desavenças com o resto da equipe de governo, sua paulatina margina-lização do comando em matéria de política económica. 

No seminário sobre planejamento realizado na capital argelina, o Chereconheceu o colapso da economia cubana, o fracasso da tentativa de diver-sificação comercial e industrialização. Não disse nada muito diferente doque pensavam Fidel, os russos e os comunistas cubanos. Suas dúvidas não  

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revelavam nada acerca do rumo que a Revolução Cubana começava atomar, tanto na economia como na política externa. 

Argel foi o ponto de partida de três iniciativas pessoais do Che, uma decaráter económico e duas de alcance internacional. No plano interna-cional, o Che começava a preparar o terreno de sua nova fuga para a frente,

que se consumaria dois anos mais tarde. A primeira das iniciativas internacionais de Guevara se deu na

Argentina, fracassando menos de um ano depois; já a segunda, na África,perduraria. A jovem República Argelina enfrentava uma grave crise em suasfronteiras ocidentais. O rei Hassan, do Marrocos, em parte por contaprópria, em parte manipulado pelos serviços de informação franceses enorte-americanos, declarara guerra à Argélia, disputando os territórios doSaara Oriental. Ahmed Ben Bella e a FLN, no governo de Argel, careciam demeios para se defender, mas não de simpatizantes espalhados pelo mundo.Contavam, entre outras, com a solidariedade cubana, nascida tempos atrásdevido à simultaneidade da luta luta revolucionária dos dois países, ao com-

parecimento de uma importante delegação cubana à proclamação da inde-pendência, em julho de 1962, à visita de Ben Bella a Havana nas vésperas dacrise de outubro. Durante essa viagem, Fidel Castro e o Che ofereceram aomandatário árabe ajuda técnica, médica e militar à recém-nascida repúbli-ca do Magreb. A primeira missão médica cubana, composta por 55 pessoas,chegou a Argel em 24 de maio de 1963, cinco semanas antes do Che. Quan-do as tropas do Marrocos ocuparam vários postos de fronteira argelinos, emsetembro de 1963, provocando a 8 de outubro o início da chamada Guerrado Deserto, os cubanos logo ofereceram ajuda ao país amigo; nada mais na-tural. A superioridade marroquina em armas e treinamento ameaçavaencaminhar o conflito a uma fragorosa derrota da Argélia. Segundo o

embaixador cubano em Argel, Ben Bella rapidamente solicitou, por inter-médio dele, a ajuda de Cuba. Castro respondeu afirmativamente, com oespírito de internacionalismo e aventura que caracterizara os cubanos des-de sua chegada ao poder. Já na versão de Ben Bella, há uma ligeira diferença.Segundo ele, a ideia da ajuda partiu de Cuba: 

Quando fui a Havana, em setembro de 1962, Castro insistiu muito que Cubatinha uma dívida para com a Argélia, contraída antes da independência, e ti-nha de pagá-la. Quando o Che veio a Argel, insistiu também em pagá-la, masem espécie, com açúcar. E o navio que traria o açúcar para saldar a dívida esta-va a ponto de zarpar de Cuba em outubro. Quando Hassan nos atacou, eu nãopedi nada, mas o chanceler Abdel Azziz Bouteflika esteve com o embaixador 

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Serguera e conversou com ele. E os cubanos embarcaram no navio de açúcarum batalhão de oitocentos homens, com setenta tanques. Eu soube dissoquando Serguera veio me ver, dias depois, e mostrou uma folha de papel, arran-cada de um caderno escolar, avisando que o navio de açúcar trazia tambémoitocentos homens e setenta tanques. Eles nunca participaram dos combates,pois Hassan acabava de propor uma negociação. Nós tínhamos mandado 300mil civis para ocupar a fronteira, e os norte-americanos pressionaram Hassanpara que desistisse da invasão.15 

Segundo a versão cubana, reconstruída pelo historiador ítalo-ameri-cano Piero Gellijeses, Castro, a pedido de Ben Bella, enviou primeiro umgrupo de oficiais cubanos encabeçado por Flavio Bravo, o homem da crisedos mísseis.16 Os oficiais receberam em Orã o Grupo Especial de Instrução eoutros contingentes, somando 686 homens, acompanhados por 22 blinda-dos, todos comandados por Efigenio Amejeiras. Embora os cubanos preferis-sem manter a operação em segredo, a imprensa mundial publicou a notíciapoucos dias após o desembarque. Logo depois, Ben Bella iniciou as negocia-

ções com Hassan, e a 19 de outubro os dois se reuniram em Bamako, capitaldo Mali, para firmar um cessar-fogo. Os cubanos ficaram seis meses em soloargelino, dedicando-se ao treinamento de um bom número de soldados, e aoretornarem deixaram o material que tinham levado. 

Para o primeiro embaixador de Cuba na Argélia e auxiliar do Che naaventura africana, Jorge Serguera, a ajuda cubana foi crucial para que BenBella pudesse interromper a ofensiva marroquina: "Como não ia havernegociação, se Hassan tinha três tanques e nós estávamos trazendo sessen-ta? Nossa ajuda foi decisiva. A Argélia não poderia negociar acossada pelosnorte-americanos, pelos ingleses, por todo o mundo".17 

Daí a crescente proximidade e cumplicidade cubano-argelina, fosse no

treinamento militar e fornecimento de armas a iniciativas guerrilheiras naAmérica Latina, fosse atuando conjuntamente em diversas aventurasafricanas. Tratou-se da primeira expedição cubana na África e, como sem-pre, teve o dedo do Che. A relação política Havana-Argel e o vínculo pes-soal entre o Che e Ben Bella se transformaram em pilares da política africanade Cuba e ponto de partida das peripécias de Guevara no continente negrodurante os dois anos seguintes. 

A relação Cuba-Argélia chegou a tal grau de afinidade que o carrega-mento de armas descoberto na Venezuela, no final de 1963 — cuja denún-cia serviu de pretexto para que a OEA aplicasse sanções contra Cuba —,muito provavelmente viesse da Argélia. Em entrevista ao jornal trotskista 

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francês Rouge, em outubro de 1987, Ben Bella revelou que, naquele ano, oChe lhe pedira, em nome de Fidel Castro e do governo cubano, que a Argéliase encarregasse de encaminhar para a América do Sul armas e quadrostreinados em Cuba, já que a ilha se encontrava sob extrema vigilância. Aresposta, segundo o ex-presidente argelino, foi "um sim espontâneo".18 Em

28 de novembro de 1963, o governo de venezuelano revelou que descobriraum depósito de três toneladas de armas em um apartamento à beira-mar deFalcón, contendo: dezoito bazucas, quatro morteiros, oito canhões semrecuo, 26 metralhadoras e cem fuzis de assalto, com as insígnias cubanas nasculatras. De acordo com os indícios disponíveis — vagos, mas sugestivos —,a reunificada guerrilha venezuelana convencera os cubanos, entre eles oChe, que acompanhava de perto os acontecimentos da Venezuela, a enviar-lhes uma considerável quantidade de armas, o que bastaria para derrubar oregime de Caracas. A melhor solução seria o transporte de uma parte doarmamento ligeiro até a Argélia, já desnecessário depois do cessar-fogo assi-nado em Bamako por Hassan e Ben Bella. 

Embora crescente, o interesse do Che em intervir na política africanaainda ocupava um lugar secundário, se comparado ao outro objetivo inter-nacional que ele se propusera: a implantação de um foco guerrilheiro naArgentina. Existia, porém, uma ligação entre as duas iniciativas: JorgeMasetti, o jornalista argentino que entrevistara o Che na sierra Maestra, em1958. A 10 de janeiro de 1962, o cargueiro cubano Bahia de Nipe chegava aCasablanca para descarregar uma considerável quantidade de armamentosdestinados à FLN, recolher feridos argelinos e transportá-los a Cuba.19 FoiMasetti quem recebeu o navio, em nome do serviço de informação da Re-volução Cubana. 

O j ornalista permanecera em Cuba depois do triunfo da revolução. Ali,

com o apoio do Che e a colaboração, entre outros, de Gabriel GarciaMárquez, fundou a Prensa Latina, agência cubana de notícias e outras coisasmais. Em 1961, Masetti deixou a Prensa Latina, em parte por não se enten-der com os cubanos da agência, em parte porque tampouco se dava com oscomunistas argentinos que ali trabalhavam. Em fins do mesmo ano, nego-ciou com o governo provisório da República da Argélia o primeiro embar-que de armas cubanas para a guerrilha argelina, no Bahia de Nipe. Ficouvários meses na Argélia, até a independência, para depois voltar e per-manecer mais um tempo em Cuba. Em novembro de 1962, despediu-se deseu filho recém-nascido e partiu de novo para o Magreb, onde receberiatreinamento militar. 

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Fracassada a manobra de Guevara e John William Cooke, para trazerPerón a Havana e convertê-lo em padrinho da luta armada platense, o Cheresignou-se a atuar na Argentina com os meios de que dispunha: Masetti, umgrupo de compatriotas heróicos e confusos e seus mais próximos colabo-radores cubanos. Quando o Che chegou à Argélia, no começo de julho de

1963, antes de resolver o drama dos médicos cubanos em Sétif — que sequeixavam de não terem recebido o prometido pagamento — e depois deassistir ao seminário de planejamento, encontrou-se com Masetti, que járecebera sua incumbência: chefiar a guerrilha argentina. 

Treinado em Cuba e na Argélia e com alguma experiência de combatenesse país,20 Masetti recrutou alguns dissidentes comunistas e universitáriosargentinos, todos eles à margem das organizações políticas da esquerda tradi-cional. Logo se viu obrigado a incorporar vários cubanos ao grupo. Três delesparticiparam diretamente e os outros dois, apenas dos preparativos. HermesPena, um dos guarda-costas do Che, morreu na selva da província de Salta,no noroeste argentino. Alberto Castellanos, oficial de transporte, em cuja

casa o Che se casara com Aleida em 1959, foi capturado e passou quatro anosnuma prisão argentina. José Maria Martínez Tamayo, o Papi — o primeiro aocupar-se da expedição argentina, seu assessor de alto nível mais próximo,que acompanharia o Che ao Congo e prepararia o terreno para a luta naBolívia, onde morreria alguns meses antes de seu comandante —, chegou aLa Paz em julho de 1963 e providenciou os preparativos para a chegada dosdemais. E Abelardo Colomé Ibarra, o Furri, atualmente general do exércitoe ministro do Interior de Cuba, que fora enviado por Raul Castro — dequem era o mais próximo colaborador — para "coordenar toda a opera-ção",21 primeiro em Buenos Aires, com um dos argentinos, o pintor CiroBustos. De Buenos Aires, Furri foi para Tarija, na Bolívia, e em seguida para

a incursão guerrilheira no Norte da Argentina. Ali todos se encontraram:Masetti, Martínez Tamayo, o próprio Furri, encarregado das armas, HermesPena e Alberto Castellanos, responsável pela organização e segurança de seuchefe, que também decidira incorporar-se à expedição. 

Possivelmente, Masetti fez uma primeira viagem clandestina àArgentina em 1962, acompanhado de Hermes Pena.* Seja como for, no 

(* ) O filho de Masetti, Jorge, referiu-se ao ano de 1962 como o momento do retornode seu pai à Argentina. Sua última aparição pública em Cuba foi no julgamento, televisio-nado, dos prisioneiros da baía dos Porcos. (Ver Jorge Masetti, Le roi des corsaires, Paris, Stock,1992.) O próprio Jorge Masetti filho o confirmou, em conversa telefónica com o autor, em 5de setembro de 1996. 

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verão de 1963 os candidatos a guerrilheiros chegam à Bolívia, disfarçados demembros de uma delegação comercial argelina. Entre setembro e dezembrodo mesmo ano, entram e saem da Argentina, onde encontram vários can-didatos para o foco de Salta.* Justamente em setembro, Alberto Castellanos juntou-se a eles e já, em princípios de 1964, ingressaram todos em território

argentino, onde Masetti e Pena perderiam a vida. Nunca puderam recrutarmais que um pequeno grupo de jovens inexperientes, abnegados mas total-mente despreparados para a luta guerrilheira. Sua saga repercutiu na opiniãopública argentina apenas o suficiente para alertar as forças armadas. Nãodespertou a menor simpatia. 

Dispomos de três elementos para afirmar que o Che decidira, talvez jádesde sua passagem pela Argentina, abandonar Cuba e ir lutar em sua terranatal. Em primeiro lugar, praticamente todos os dirigentes daquela guerrilhapertenciam ao círculo mais íntimo de colaboradores do Che: dois membros desua segurança pessoal, seu grande amigo jornalista e seu mais próximo cola-borador cubano. Castellanos afirma que o chefe da escolta — Harry Villegas,o Pombo — não foi chamado porque era negro, e o Che disse a todos: "Aondevamos não existem negros".22 Por sua vez, José Argudín, o quarto integrantedo grupo de guarda-costas, foi posto de lado por Guevara, segundo Castel-lanos, por ter seduzido a mulher de Pena na ausência deste.Zi Nas duas expe-dições seguintes, o Che se faria acompanhar por todos os membros de suaescolta e muitos integrantes da velha-guarda da sierra Maestra e da "invasão":Pombo, Papi, Tuma (Carlos Coello). Pelo caráter do nosso personagem, éimpossível supor que tivesse decidido o envio de seus colaboradores mais pró-ximos em uma missão tão perigosa se não planejasse incorporar-se a ela. 

Em segundo lugar, quando o Che mandou chamar Castellanos na escolade oficiais de Guantánamo e disse que decidira confiar-lhe uma tarefa quepoderia durar vinte anos, avisou: "Eu vou em seguida. Você me espera lá, for-

ma o grupo, e ficam esperando até eu chegar".24 Em janeiro de 1964, Papi eCastellanos se encontraram, já em Tucumán, para contatar alguns possíveisrecrutas argentinos (trotskistas, segundo Castellanos). Levavam, entreoutras coisas, 20 mil dólares para entregar a um certo doutor Canelo, deTucumán. Castellanos recorda: "Então Papi me contou que, por enquanto, oChe não viria, que mandara um recado para Masetti, que ainda não vinhaporque estava complicado, que viria algum tempo depois. Não dizia o porquê. 

(*) Ricardo Rojo lembra como em várias ocasiões reuniram-se ele, Masetti e o Che, emHavana, entre o início de fevereiro e meados de abril de 1963. A imprecisão das datas no livrode Rojo aconselha certa reserva a respeito. 

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Pelo menos a mim não disse. Não, naquele momento não podia vir, disse quedevíamos esperar, continuar explorando e não recrutar camponeses até ini-ciarmos os combates".25 

Trinta anos depois, em Havana, Castellanos afirmaria que nunca tevea menor dúvida de que seu chefe pensava reunir-se ao grupo guerrilheiro em

Salta. Quanto à presença de Colomé, um dos homens mais próximos de RaulCastro, e à lógica da missão, não havia nenhuma margem para confusão.Furri mantivera-se sempre ligado a Raul, desde a sierra Maestra e o SegundoFront. Raul se comprometeu com a operação e todos concordaram em apoiá-la porque "aquilo era coisa do Che. Cuba o apoiou em tudo porque ele pre-tendia mesmo ir embora em 63".Z6 Por último, há a pista do nome de guerraque Masetti escolheu em Salta: Comandante Segundo, ou Segundo Sombra,interpretado como um aceno ao Che: fosse porque o "primeiro" comandanteseria o próprio Guevara ou porque, enquanto don Segundo Sombra era umpersonagem da literatura argentina dos anos 20, Martin Fierro era uma figu-ra-chave da literatura gauchesca do século XIX, e o Che costumava adotar

esse codinome. Qualquer que fosse a explicação, o duplo sentido erademasiado óbvio para que não se deduzisse que Guevara tinha o firmepropósito de engajar-se na guerrilha argentina em fins de 1963 ou princípiosdo ano seguinte. Suas instruções a Castellanos — "Não recrutem campone-ses por enquanto, dediquem-se apenas a explorar a região" — podem serentendidas como um reforço a essa tese: os combates não deviam ser inicia-dos até que ele chegasse à área de operações. 

Talvez o motivo de sua decisão de incorporar-se à expedição de Saltatenha sido a prolongada estadia de Castro na URSS em 1963, ou a passagemdo próprio Che pela Argélia. Em ambas as hipóteses, seu estado de ânimo eraclaríssimo. No retorno de Argel para Havana, em julho, o Che fez escala em

Paris, onde permaneceu por alguns dias e refletiu sobre o destino que oaguardava em Cuba, em vista da reconciliação de Fidel com a URSS e dascrescentes polémicas económicas em que se metera. Na Cidade Luz, fez umapalestra na Maison de 1'Amérique Latine, em pleno Saint Germain. Aliencontrou Carlos Franqui, que vivia desde o início de 1963 em um semi-exílio, entre a Argélia e a Europa. As relações entre os dois não eram boas.Em várias ocasiões divergiram, mas acabavam de celebrar uma virtual re-conciliação na Argélia, onde Franqui entrevistara Ben Bella e inaugurarauma exposição de arte cubana. Conforme relata Franqui em suas memórias,os dois concordaram em muitos pontos: "Nós dois éramos amigos de BenBella. O Che estava procurando outros caminhos. Considerava a situação 

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cubana muito difícil, apesar da aparente trégua do sectarismo e da crise doCaribe. Foi um dos nossos melhores encontros".27 

O Che pôs o braço no ombro de Franqui e os dois foram caminhandopelo bulevar. Guevara tentou convencê-lo a regressar a Cuba, sem negar osproblemas da ilha, nem seus atritos com Castro. E ali, sob os castanheiros em

flor do verão parisiense, Che Guevara pronunciou a frase que, se nossa com-prensão do personagem se aproxima da realidade, logo o condenaria a afas-tar-se de seu amigo, seu companheiro de armas e seu chefe: "Com Fidel, nemcasamento, nem divórcio".28 Permanecer em Cuba significaria para o Cheadotar uma postura que ele jamais poderia sustentar. Seria uma atitude detotal cinismo e hipocrisia, para a qual teria de aceitar a coexistência de sen-timentos e posições incompatíveis entre si e intoleráveis para ele. A fugapara a frente da guerrilha argentina deve ter acontecido em consequênciadas dificuldades internas da Revolução Cubana, ainda não superadas em finsde 1963. A situação seria a mesma até o ano seguinte, quando começou a seesboçar uma nova saída, o início de uma nova etapa vital. A mudança era

mais iminente do que o Che suspeitava. A guerrilha de Jorge Masetti logo acabaria em desgraça e tragédia. Aba-

lada por conflitos internos, ferozmente isolada das cidades e confrontada com •o retorno da Argentina à democracia com a eleição presidencial de Arturo Illía,em outubro de 1963, a guerrilha tornou-se presa fácil das forças armadas. Acompetência e o poderio do Estado argentino aniquilaram o contingente e ossonhos do jornalista da sierra Maestra. A coluna foi destruída depois deenfraquecer-se devido a suas próprias divisões e excessos, a infiltrações, àperseguição militar e à agressividade do entorno. Castellanos foi capturado em4 de março de 1964- Em seu julgamento foi defendido por Gustavo Roca, umamigo do Che residente em Córdoba, que solicitou ao conterrâneo ajuda para

seus companheiros. N inguém soube da relação entre Castellanos e Guevara até amorte deste na Bolívia, quando foi publicada a foto do casamento do Che comAleida, na qual o cubano aparecia como anfitrião. A floresta de Salta devoraMasetti. Castellanos dá a seguinte explicação — quase que idêntica àquelaque se oferece em El tesoro de Ia Siena Madre — para o fato de o cadáver nuncater sido encontrado, embora o Che tenha enviado vários emissários encarrega-dos de buscá-lo. Ele trazia mais de 20 mil dólares consigo, além de boa quanti-dade de dinheiro argentino e dois relógios Rolex. Provavelmente, foi encontradopor soldados do exército. Se ainda não tivesse morrido de fome, eles trataram dematá-lo para ficar com o dinheiro, repartindo-o entre si e dando Masetti pordesaparecido. Se o cadáver aparecesse, o dinheiro teria de aparecer também.29 

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Em quase todos os sentidos, a operação argentina foi um ensaio para aboliviana, três anos mais tarde. Em Cochabamba, os cubanos conheceram acomisão de comunistas bolivianos sob as ordens de Mário Monje, secretário-geral do partido, incumbida de prestar apoio a certas ações armadas naregião: os irmãos Peredo, Rodolfo Saldaria e Luis Tellería. Seriam os mesmos

que, com Papi Martínez Tamayo, se encarregariam do trabalho preparatóriopara a guerrilha do Che no país andino. Ê possível que Tâmara Bunke, ouTânia, que chegou à Bolívia em outubro de 1964, tivesse mais a missão dedeterminar o destino de Masetti e eventualmente ajudar a resgatar os sobre-viventes, do que organizar de imediato uma nova guerrilha na Bolívia.* CiroBustos, detido com Régis Debray na Bolívia em abril de 1967, ao abandonaro acampamento do Che, e que era responsável de manter o contato entre aexpedição boliviana e a argentina, já figurava entre os participantes da ope-ração de Salta. Saiu de Havana e chegou a Buenos Aires com Furri, e inclu-sive visitou Castellanos na prisão em várias ocasiões.30 

Talvez o Che não pensasse em participar desde o início da guerrilha de

Salta, mas sua intenção de fazê-lo mais tarde era evidente. Se já conhecemoso protagonista destas páginas, sabemos que a morte de Masetti e de Pena e aprisão de Castellanos devem ter causado um tremendo impacto em sua cons-ciência. Reabria-se uma ferida: era a segunda vez que grandes amigos seusmorriam em combates dos quais ele também poderia ter participado. Emdezembro de 1961, o Che se despedira em Havana de Júlio Roberto Cáceres,El Patojo, seu amigo querido, seu companheiro de viagem desde a fronteiraguatemalteca, seu colega fotógrafo nas ruas da Cidade do México, cujo retra-to penduraria depois no gabinete do Ministério da Indústria. Cáceres tomboulutando na Guatemala, poucas semanas depois de integrar-se à guerrilha. Porque morriam pondo em prática suas ideias e métodos? Não seria o caso de par-

tilhar sua sorte, ou então mostrar na prática que o desenlace podia ser outro?  Não é preciso muita perspicácia para perceber que as relações de CheGuevara com os partidos comunistas da América Latina e a União Soviéticacomeçaram a ficar tensas em 1963. E como isso ocorria justamente no momentoem que Cuba mais se aproximava de Moscou — se alinhava, diriam alguns —, as tensões inevitavelmente se exacerbaram. Desde abril daquele ano, o 

(*) Quem sugere a tese é Ulises Estrada, o companheiro de Tânia na época, que tam-bém confirma a intenção do Che de ir à Argentina. "Havia dois oficiais cubanos na colunade Masetti e ele (o Che) planejava essa guerrilha para depois, ou seja, criar a guerrilha-mãe edepois ele próprio incorporar-se aos guerrilheiros. E Tânia estava incluída nesse plano." (Uli-ses Estrada, entrevista com o autor, Havana, 9/2/95.) 

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ravam um "ardoroso pró-China". O Che interrompeu as palavras deDaroussenkov com amargura: 

Alguns companheiros soviéticos tendem a entender meus pontos de vista —sobre temas como a guerra de guerrilhas como principal meio para a libertaçãodos povos latino-americanos, ou o problema da autogestão financeira contra

o financiamento orçamentário — como posições chinesas e tiram daí a con-clusão de que Guevara é pró-China. Por acaso não posso ter minha própriaopinião sobre essas questões, independente do que pensem os chineses?*

A questão chinesa tornava-se cada vez mais recorrente e irritante para oChe. Ele se sentia agredido pelos soviéticos. Em fins de 1963, recriminouamargamente Alexeiev por ter deixado de visitá-lo e considerá-lo pró-chinês.Este replicou que não era verdade, mas mentiu ao Che quando o argentino per-guntou se ele lera seu ensaio sobre a guerrilha na América. O embaixadorsoviético preferia evitar o debate, assim como, de fato, preferia encontrar-se cadavez menos com o Che." Este aceitava muito a contragosto a posição cubana deneutralidade diante do conflito. "Não pode ser publicado (um artigo de Paul

Sweezy sobre a Iugoslávia) devido à nossa linha de neutralidade absoluta, de nãoiterferir, por pouco que seja, na polémica sino-soviética."'6 O Che já se sentiavítima da perseguição aos simpatizantes da China em Cuba e em toda parte, e decerta forma havia sido escolhido como um dos alvos da investida anti-China. * * 

(*) MID-463-26.XII.63 Oleg Daroussenkov, "Nota da conversação de 20 de dezembrode 1963 com o ministro da Indústria", Ernesto Guevara, 26/12/63 (secreto), Ministério dasRelações, op. cit. A partir de meados de 1963, quando Cuba foi formalmente incluída no blo-co socialista, cópias dos telegramas da embaixada da URSS em Havana iam para o Departa-mento do Comité Central do Partido Comunista da URSS encarregado das relações com ospaíses socialistas. O chefe do departamento, a quem se encaminhavam as cópias, era YuriAndropov. A primeira acusação direta de que o Che era pró-China apareceu nos telegramas

soviéticos em fevereiro de 1963. Provinha de um alto dirigente do Partido SocialistaOperário da Hungria, Ishtvan Tempe, que passara várias semanas em Havana: "Alguns diri-gentes cubanos (Che Guevara, Vilma Espin) estão sob forte influência dos chineses". ("Notada conversação de 28 de fevereiro de 1963 com Istvan Tempe, 4/3/63", Arquivo Estatal daRússia, op. cit., fólio nfi 5, lista 49, documento na 653.) 

(* *) Sergo Mikoian recordou, anos mais tarde, a seguinte cena do Che em Genebra, durantea Conferência da UNCTAD de que falaremos adiante: "O Che indicou com um gesto de cabeça umchinês sentado um pouco à parte e sorriu, dizendo que ainda havia quem o considerasse pró-Chi-na, enquanto uns coitados como aquele ficavam ali para registrar todos os seus movimentos eencontros. E, de fato, o impenetrável e preocupado chinês continuava ali três horas depois, quan-do, depois de muito passear e conversar naquela sala, saímos, deixando Guevara diante de umaescrivaninha abarrotada de papéis". (Sergo Mikoian, Encuentros con Che Guevara, em América Latina, Academia de Ciências da URSS, Instituto da América Latina, ns 1,1974, p. 193.) 

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ideólogo do PCUS, Mikhail Suslov, declarou que os partidos comunistas daAmérica Latina "cometeriam um sério equívoco se depositassem todas suasesperanças na luta armada" e que "a revolução não pode ser acelerada ou fabri-cada sob medida, nem pode ser incentivada do exterior"." No momento, não setratava de um rompimento explícito. Mas à medida que cresciam as divergên-

cias quanto à economia e à política internacional, opondo o Che aos soviéticos,aos comunistas cubanos e latino-americanos, as discordâncias veladas e recri-minações discretas se transformariam em confrontos cada vez mais declarados eviolentos. Convém examinar algumas das principais discrepâncias de Guevaracom a URSS antes de passar à análise, abstrata porém indispensável, das grandesquestões económicas que opuseram o Che aos "ortodoxos". 

Antes da partida de Fidel Castro para Moscou, o Che reuniu-se com oembaixador soviético, Alexander Alexeiev, para rever alguns aspectos técnicosda viagem. Comentou que as cartas de Krushev aos dirigentes cubanos sobretemas comerciais eram um exemplo de sensibilidade e sabedoria, mas que amissiva de Nikita a Castro, citada no capítulo anterior, era "constrangedora".

Quando Alexeiev perguntou-lhe se não queria acompanhar Fidel à URSS, oChe respondeu, em tom meio sério, meio brincalhão, que isso poderia ser útil,mas em Moscou ele era considerado um "patinho feio" e um "brigão"." •Alexeiev replicou: "Que eu saiba, é todo o contrário, pois em nosso país o se-nhor é apreciado justamente por sua honestidade e sinceridade, pela firmezacom que defende suas ideias, mesmo quando são equivocadas, pela coragem dereconhecer seus erros. E, para nós, o gosto pela briga não é um defeito"." 

Outro conflito teve lugar em meados de abril de 1963. Conformerelatórios confidenciais do Serviço de Informação militar dos EstadosUnidos, por esses dias, contingentes importantes das milícias cubanascomeçaram a ser desarmados. No mesmo sentido, as instalações militares de

San António e los Banos, nos arredores da capital, San Julián e Pinar dei Riopassaram ao controle soviético. O comandante cubano da base aérea foidetido por recusar-se a entregá-la aos oficiais soviéticos, só sendo libertadodevido à intervenção pessoal do Che.'4 

Em fins de 1963, quando o conflito sino-soviético se acirrou e a URSSaumentou as pressões para que Cuba rompesse claramente com Pequim, oChe começou a queixar-se com seus amigos russos do comportamento dos"burocratas" soviéticos, que cada dia o atormentavam mais. Conversandocom seu professor de russo e amigo Daroussenkov, este propôs que a embai-xada da URSS em Havana organizasse um torneio de xadrez e o convidasse,pois assim poderia aparar as arestas com alguns funcionários que o conside-  

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ravam um "ardoroso pró-China". O Che interrompeu as palavras deDaroussenkov com amargura: 

Alguns companheiros soviéticos tendem a entender meus pontos de vista —sobre temas como a guerra de guerrilhas como principal meio para a libertaçãodos povos latino-americanos, ou o problema da autogestão financeira contra

o financiamento orçamentário — como posições chinesas e tiram daí a con-clusão de que Guevara é pró-China. Por acaso não posso ter minha própriaopinião sobre essas questões, independente do que pensem os chineses?*

A questão chinesa tornava-se cada vez mais recorrente e irritante para oChe. Ele se sentia agredido pelos soviéticos. Em fins de 1963, recriminouamargamente Alexeiev por ter deixado de visitá-lo e considerá-lo pró-chinês.Este replicou que não era verdade, mas mentiu ao Che quando o argentino per-guntou se ele lera seu ensaio sobre a guerrilha na América. O embaixadorsoviético preferia evitar o debate, assim como, de fato, preferia encontrar-se cadavez menos com o Che.15 Este aceitava muito a contragosto a posição cubana deneutralidade diante do conflito. "Não pode ser publicado (um artigo de Paul

Sweezy sobre a Iugoslávia) devido à nossa linha de neutralidade absoluta, de nãoiterferir, por pouco que seja, na polemica sino-soviética."i6 O Che já se sentiavítima da perseguição aos simpatizantes da China em Cuba e em toda parte, e decerta forma havia sido escolhido como um dos alvos da investida anti-China. * * 

(*) MID-463-26.XII.63 Oleg Daroussenkov, "Nota da conversação de 20 de dezembrode 1963 com o ministro da Indústria", Ernesto Guevara, 26/12/63 (secreto), Ministério dasRelações, op. cit. A partir de meados de 1963, quando Cuba foi formalmente incluída no blo-co socialista, cópias dos telegramas da embaixada da URSS em Havana iam para o Departa-mento do Comité Central do Partido Comunista da URSS encarregado das relações com ospaíses socialistas. O chefe do departamento, a quem se encaminhavam as cópias, era YuriAndropov. A primeira acusação direta de que o Che era pró-China apareceu nos telegramas

soviéticos em fevereiro de 1963. Provinha de um alto dirigente do Partido SocialistaOperário da Hungria, Ishtvan Tempe, que passara várias semanas em Havana: "Alguns diri-gentes cubanos (Che Guevara, Vilma Espin) estão sob forte influência dos chineses". ("Notada conversação de 28 de fevereiro de 1963 com Istvan Tempe, 4/3/63", Arquivo Estatal daRússia, op. cit., fólio n9 5, lista 49, documento n2 653.) 

(**) Sergo Mikoian recordou, anos mais tarde, a seguinte cena do Che em Genebra, durantea Conferência da UNCTAD de que falaremos adiante: "O Che indicou com um gesto de cabeça umchinês sentado um pouco à parte e sorriu, dizendo que ainda havia quem o considerasse pró-Chi-na, enquanto uns coitados como aquele ficavam ali para registrar todos os seus movimentos eencontros. E, de fato, o impenetrável e preocupado chinês continuava ali três horas depois, quan-do, depois de muito passear e conversar naquela sala, saímos, deixando Guevara diante de umaescrivaninha abarrotada de papéis". (Sergo Mikoian, Encuentros con Che Guevara, em América Latina, Academia de Ciências da URSS, Instituto da América Latina, n2 1,1974, p. 193.) 

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Em uma conversa com Daroussenkov, ele fora forçado a realizar diversos ma-labarismos para explicar o que o encarregado do PCUS em Havana chamoude "campanha de propaganda anti-soviética da embaixada chinesa local".O enviado russo protestou porque "se difundia propaganda anti-soviéticacom a solicitação explícita de que ela chegasse aos cubanos que trabalhavam

em algumas organizações cubanas"." O Che defendeu os chineses, argu-mentando que se tratava de uma provocação de alguma outra embaixada dobloco socialista, que podia ser a albanesa, já que ele discutira o assunto pes-soalmente com o embaixador chinês e este negara qualquer iniciativa dessetipo. Os folhetos chegaram até a ser examinados pelos laboratórios doserviço cubano de segurança, que concluíram que eles não procediam daChina. Os textos tinham chegado a Cuba no malote diplomático de umaembaixada, sendo depois divulgados por alguns trotskistas cubanos e umtrotskista argentino, funcionário do Ministério da Indústria, que estava sobobservação.38 O Che tornava-se "chinês" malgré lui* ainda que não ocul-tasse seu respeito por Mao (disse a Mancilla que era uma pessoa sábia) e sua

gratidão pela ajuda da República Popular a Cuba: "A direção chinesa temuma posição em relação a Cuba que é difícil criticar. Dispensa-nos uma aju-da considerável, que não podemos desprezar. Pedimos, por exemplo, armasaos tchecos, e eles negaram. Os chineses concordaram em questão de dias esequer cobraram, dizendo que não se vendem armas a amigos".19 

O cerco geopolítico, ideológico, burocrático e afetivo começou a fechar-se em torno do Che. Se em 1963 ele viajou pouco pelo mundo, em 1964 pas-sou meses inteiros fora de Cuba. Começava outra vez a fuga para a frente. 

O pomo da discórdia entre a China, a URSS e o Che não era exclusiva-mente ideológico, nem se referia apenas ao apoio a movimentos revolu-cionários em outros países. O verdadeiro motivo residia na política

económica. Em janeiro de 1964, Fidel Castro retornou a Moscou para nego-ciar com a URSS a especialização de Cuba como fornecedora de açúcar. OChe concordava com o princípio teórico da especialização e partilhava dacrítica ao abandono do cultivo de cana-de-açúcar nos anos anteriores, masdivergia quanto às implicações da decisão. 

Ele não podia contentar-se com os resultados da segunda viagem deFidel. Uma análise norte-americana dessa viagem enfatiza que a URSS exerceuforte pressão sobre Castro para que este contivesse "seu impulso natural parapromover revoluções violentas". E o esforço surtiu efeito. De fato, a URSS evi-  

(*) Apesar de si próprio. Em francês, no original. (N. T.) 

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tou toda e qualquer ingerência cubana na crise panamenha que eclodiunaquela época.* Conseguiu fazer com que Cuba aceitasse a ideia de pôr ordemem sua economia interna e, sem condenar a China, adotasse uma atitude me-nos neutra no conflito entre Moscou e Pequim.40 De início, Castro cedeumenos do que os dirigentes russos queriam, mas, nos, meses seguintes, a

pressão moscovita aumentou e as concessões cubanas também. Segundo umrelatório apresentado pelo governo do Brasil ao dos Estados Unidos, por inter-médio de seu secretário de Estado, Dean Kusk, o embaixador soviético emBrasília manifestou ao presidente brasileiro Castelo Branco que: 

Fidel Castro cortou seus laços com Pequim, o governo de Cuba suspendeu seuscontatos com a China e mostra uma disposição pacífica para com outros paí-ses, em particular o Brasil e os Estados Unidos. As armas encontradas naVenezuela em novembro do ano passado, que motivaram a expulsão de Cubada OEA, podem ter sido enviadas pelos chineses. Muitos panfletos revolu-cionários e outros instrumentos de propaganda guerrilheira atribuídos a Cubana realidade provinham de agentes chineses.41 

Alguns meses depois, em novembro de 1964, seria realizada emHavana uma reunião de partidos comunistas da América Latina para a qualnão se convidou nem a China, nem nenhum grupo pró-Pequim. O comuni-cado final da reunião mostrava clara inclinação para as posições soviéticas,a tal ponto que os chineses receberam com frieza uma delegação enviadapelo conclave para mediar o conflito entre a URSS e Mao.42 A angústia doChe era fruto do mesmo dilema dos milhões de jovens que exibiram sua fotoe seu emblema nas intermináveis e colossais manifestações do fim dos anos60. Como eles, ele queria os fins, mas não os meios; aceitava as metas, masnão os passos para alcançá-las. Em seu discurso na Argélia, o Che assumiacom toda a clareza que a diversificação antiaçucareira fora um erro, mas

rejeitava as consequências lógicas do retorno à monocultura. Fazia-o porqueas mudanças económicas em curso na URSS provocavam nele uma série dereações negativas. Somadas a suas divergências com a URSS a respeito decomércio internacional e da revolução latino-americana, vêm acirrar aindamais a desavença e o ressentimento em relação a Moscou. 

(*) Os próprios norte-americanos reconheceram que "não existe nenhuma evidênciaque vincule Castro aos motins no Panamá. Nada prova que o líder cubano tenha se reunidocom os castristas panamenhos ou fornecido apoio material aos distúrbios". (Department ofState, Bureau of Intelligence and Research, INR to Secretary, Castroist and communistinvolvement in the Panamanian disorder, 31/1/64 (secreto). NSF, Country File, Cuba,Cables, vol. 1, LBJ Library.) 

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As críticas do Che ao socialismo real já eram explícitas, embora nãopúblicas, e pareciam-se cada vez mais com as reservas e questionamentosapresentados pelos chineses. Eram críticas "à esquerda", atribuindo os fra-cassos da URSS à guinada direitista de Krushev. A semelhança dos chineses,o Che criticou a URSS pelo atraso na ajuda e pelo não-cumprimento das

promessas em relação à indústria. No ano de 1963, o argentino sofreu umadupla desilusão com a URSS. Primeiro, ele comprovou que as fábricas, a tec-nologia, a maquinaria e o material de transporte que os navios soviéticos efe-tivamente desembarcavam no porto de Havana eram de uma qualidadelamentável e de um atraso estarrecedor; segundo, descobriu que muita coisanão chegava, ou por não ter sido enviada, ou simplesmente por não existir.O comandante compreendeu que a URSS era, a um só tempo, menos capaz deajudar do que ele pensava e mais mesquinha em conceder a parca ajuda aoalcance de suas possibilidades.* 

O Che Guevara começou a distanciar-se da União Soviética, assumin-do posições radicais, que hoje seriam chamadas fundamentalistas e eram

idênticas às denúncias chinesas do revisionismo russo. Em uma reunião doMinistério realizada em 12 de outubro de 1963, expressou suas divergênciascom a maior clareza até então, embora elas não viessem a público. Ele jáadquirira plena consciência das mudanças em curso na União Soviética edas enormes agruras económicas daquele país. Não vinculava a superação detais dificuldades a uma liberalização, muito menos a uma reforma à Gorba-chev, mas, pelo contrário, a uma maior centralização económica e à aboliçãoda chamada lei do valor de todas as transações, exceto o comércio externocom os países capitalistas. Seu diagnóstico era inquestionável: 

Os problemas agrícolas que a União Soviética enfrenta hoje tiveram umaorigem. Algo vai mal... Tenho a forte impressão de que isso tem a ver com aorganização dos kolkhozes e sovkhozes, com a descentralização, os incentivosmateriais, a autogestão financeira, além naturalmente de alguns problemas 

(*) Em um memorando de inteligência de 1965, a CIA considerava que os principaismotivos do fracasso do esforço industrializador de Cuba eram: 1) a escassez de equipamento,material e mão-de-obra qualificada; 2) a falta de experiência em construção pesada; 3) a fal-ta de disciplina no planejamentoe programação da economia. (Central Intelligence Agency,Intelligence Memorandum, Cuba: delay and misdirection of the industrial production pro-gram, 1950-1965, novembro de 1965 (secreto), p. 1. NSF, Country File, Cuba, W.G.BowdlerFile, vol. I, # 8 report, LBJ Library.) 

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como as terras particulares para os kolkhozianos. Em uma palavra, a poucaatenção dada ao desenvolvimento e incentivos morais, sobretudo no campo,preocupados que estavam com uma infinidade de problemas... Assim, a UniãoSoviética enfrenta hoje uma catástrofe agrícola do mesmo tipo da nossa, o queindica que algo vai mal... Cada dia há mais indícios de que o sistema que servede base aos países socialistas deve mudar.4'

O Che tomava partido claramente dentro de uma das mais acirradaspolémicas internas da URSS. De um lado da disputa estavam os partidários daliberalização krushevista, das reformas económicas descentralizadoras, deum planejamento mais flexível, em uma palavra, de uma perestroika avantIa lettre, geralmente identificada com os economistas Memtchinov,Trapeznikov e, sobretudo, Yevsey G. Liberman. Do outro lado, os adversá-rios dessas reformas. O problema de Cuba, corretamente apontado peloChe, era que a influência soviética naquele momento não visava a radica-lização e aprofundamento do socialismo, mas — o que ele considerava umretrocesso — um passo rumo ao que os chineses chamariam depreciativa-

mente de "comunismo goulash", numa referência à origem húngara demuitas daquelas concepções. O ministro da Indústria vinculava a prioridade dada para a agricultura

e o açúcar a um menosprezo e abandono do esforço de industrialização. Rela-cionava o estreitamento de laços com a URSS ao empenho descentralizadordaquele país, à chamada autogestão financeira e ao incentivo material, emoposição ao sistema orçamentário que ele, Che, defendia. Vinculava essesistema à ideia de incentivos morais, à centralização de decisões e investi-mentos. Guevara punha no mesmo saco o conjunto das posições rivais, ain-da que seus adversários não tivessem clara consciência da inter-relaçãoentre elas. 

Por sua vez, os opositores do Che, dirigentes de empresas estatais e altosfuncionários que os representavam, bem poderiam ser discípulos de Liber-man sem sabê-lo, como recorda um dos assessores franceses daquela época.Mas os partidários da autonomia empresarial e da autogestão financeiradefendiam essas posições devido à pressão da própria realidade administra-tiva, não por influência dos soviéticos ou de Liberman.44 

O Che englobava tudo em uma discussão teórica sobre o papel dachamada lei do valor no socialismo. O termo, extraído da economia clássi-ca e do Capital, de Marx, transformou-se, nessa polémica, em um eufemismodo que hoje se denomina "mercado". Segundo Guevara, a lei do valor ou domercado vigorava na URSS de maneira negativa. Ele identificava a vigência 

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da lei do valor com suas betes noires:* a descentralização, o incentivo mate-rial e a autogestão financeira. Estava convencido de que:

O Sistema Orçamentado é parte de uma concepção geral do desenvolvimentodo socialismo e, portanto, deve ser estudado em seu conjunto. O orçamento[...] [implica um] sistema de direção da economia [...] e todas as suas relações, as

relações entre o incentivo moral e o incentivo material na construção dosocialismo. Todas essas coisas estão ligadas. A autogestão financeira exige oincentivo material como alavanca fundamental, exige a descentralização etoda uma organização de planos que contemple essas relações [...] No SistemaOtçamentário tem de haver outro tipo de plano, outro tipo de concepção dodesenvolvimento, outro tipo de concepção do incentivo material [...]45 

Como perceberam os técnicos russos e franceses que assessoravam oChe naqueles fatídicos anos de 1963 e 1964, suas preocupações não eramestritamente económicas. Victor Bogorod e Charles Bettelheim, dois eco-nomistas franceses de inspiração marxista que assessoravam os cubanos noinício dos anos 60, concordam que ele não dominava a economia nem tinha

muito interesse pelo assunto. A parte de que mais gostava em seu trabalhoera o contato com os operários, com o pessoal das empresas.46 No fundo, oChe se propunha a abolir as relações mercantis, baseadas no valor, entre oshomens e mulheres de Cuba e entre as empresas do setor estatal. A expli-cação para suas posições supostamente técnicas sobre o sistema orçamen-tário, o incentivo moral, a centralização da indústria estatal encontra-se noúltimo ensaio de sua vida, e talvez o mais lembrado: El socialismo y el hombreen Cuba. As suas teses sobre o "homem novo", porém, só viriam a público em196 5. A polémica de 1963 -4 tem por base a economia, terreno em que o Cheestava em desvantagem, fosse pela deficiência de seus conhecimentos téc-nicos, fosse pelo contexto internacional da época. Ele seria completamente

derrotado nos três temas destacados por Alban Lataste, um antigo colabo-rador chileno que acompanhou o Che em sua primeira viagem a Moscou,mas depois discordou de suas posições:" 1) A aplicação do princípio do inte-resse material individual e coletivo na gestão económica; 2) o aperfeiçoa-mento do sistema de salários reais e nominais, de modo a alcançar uma ver-dadeira equivalência entre o esforço realizado e sua remuneração; 3) amelhoria do sistema de preços, como elemento redistributivo da rendanacional e como fator de cálculo económico".47 

A derrota do Che deveu-se justamente a sua insistência em abordar as 

(*) Expressão em francês no original: seus piores inimigos. (N. T.) 

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questões polémicas por meio de toscas generalizações, transformando cadapequena discordância na expressão de uma divergência profunda, geral e ili-mitada. Ele tendia a converter a discussão de pontos de simples técnica admi-nistrativa em um elevado debate de princípios filosóficos ou doutrinários.4*1 

Depois, quando deixou de ser o responsável pela economia da ilha,

algumas de suas teses foram retomadas pela direção, devido em parte a umanova disputa de Castro com a URSS e em parte a uma relativa melhora daeconomia em 1965. Até a própria postura internacionalista do Che seria res-gatada em Cuba, não mais como fundamento para teses económicas, e simcomo postulado moral e ético. A revolução tentaria ressuscitar esse postula-do mais uma vez em 1969, no ocaso de sua independência frente à URSS. Mascomo assinala um dos principais adversários intelectuais do Che naqueletempo, Carlos Rafael Rodríguez, as teses económicas e contábeis então apli-cadas "não tinham nada a ver com o Che".49 Fidel Castro comentou em1987: "Algumas ideias do Che em certo momento foram mal interpretadase inclusive mal aplicadas. De fato, nunca se tentou colocá-las em prática, e

em determinado momento foram se impondo ideias diametralmenteopostas ao pensamento económico do Che".* No discurso de Argel, o Che explicitou seu arrependimento por ter

abandonado o açúcar e pelas políticas que desequilibraram o balanço de paga-mentos. Relacionou o fracasso económico com os defeitos do planejamentosocialista em Cuba e com os excessos de ambição e idealismo de que já falamos.Mas é preciso enfatizar que, embora reconhecendo ter subestimado a importân-cia da cana-de-açúcar, ele não se resignava com um futuro monocultor e espe-cializado para Cuba. Afirmava com toda clareza que o futuro deveria ser outro: 

A estrutura monocultora de nossa economia ainda não foi superada depois dequatro anos de revolução. Mas já existem as condições para que, com o tem-

po, possa tornar-se uma economia solidamente assentada sobre a base dematérias-primas cubanas, com uma diversificação produtiva e um nível téc-nico que lhe garantam um lugar nos mercados mundiais. Estamos desenvol-vendo nossas próprias linhas de produção e pensamos que [...] no ano de 1970teremos assentado as bases que hão de permitir um desenvolvimento inde-pendente de nossa economia, baseado em uma técnica própria, em matérias-primas próprias, quase totalmente processadas com equipamento próprio.50 

(*) "Uma das maiores heresias que se cometeu neste país foi supor que o que estávamosfazendo entre 1967 e 1970, o descontrole económico da época, podia realizar-se [...] invocandoo Che." (Fidel Castro Ruz, "En el acto central por el XX aniversario de Ia caída en combate deiComandante Ernesto Che Guevara"; Cuba Socialista, Havana, nov.-dez. 1987, p. 93.) 

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O tempo provaria que os acordos firmados por Castro durante a viagemde 1963 à URSS e ratificados no início de 1964 equivaliam a condenar aeconomia cubana ao papel de monoprodutora de açúcar e importadora debens de consumo, combustíveis e maquinaria ligeira. De fato, a margem demanobra era exígua:* a monocultura açucareira acabaria impondo-se como

a melhor alternativa, ou pelo menos a única disponível. Mas não era a que oChe teria escolhido, pois jamais poderia vangloriar-se dela no exterior,sobretudo na América Latina. Quem percebeu suas razões foi o embaixadorcanadense, George Kidd, com sua habitual lucidez: 

Agora parece que os dirigentes cubanos querem transformar a ilha em umaNova Zelândia tropical, em vez de uma Suíça do Caribe [...] Sem dúvida é sen-sato que Cuba se mostre sensível às necessidades de seu principal cliente (aURSS) [...] Mas é difícil acreditar que um programa económico dessa naturezapossa ser atrativo para os nacionalistas de esquerda da América Latina, queexigem uma industrialização rápida, em boa medida semelhante àquela queCuba empreendeu nos primeiros anos.51 

A concordância entre o Che e os outros acerca da insuficiência da pro-dução açucareira não se traduzia em um acordo quanto ao rumo a seguir.Surgiu então a primeira grande discordância que opôs Guevara a Castro e osdemais. Como outras vezes, o argentino tinha uma ponta de razão. Comoreconheceriam anos mais tarde alguns de seus críticos mais ferrenhos e bonsconhecedores da economia agrícola cubana, era razoável voltar a priorizar aagricultura, mas talvez isso não exigisse o abandono de tantos projetosindustriais. O Che provavelmente não errara ao defender tanto a industria-lização. Parecia lógico restaurar a primazia do açúcar [...] Mas, como per-guntou o agrónomo francês René Dumont, seria necessário, nessa primeiraetapa, superar a meta realista de 8,5 milhões de toneladas? Outra coisa ésaber se colocações menos radicais e mais equilibradas seriam compatíveiscom o caráter e o enfoque do Che.52 

A discordância com relação à industrialização e ao açúcar ficou patenteem uma discussão entre o Che e Daroussenkov sobre a nova ênfase agrícolae a entrega de uma usina siderúrgica prometida pela URSS. Cuba já travaraum agressivo debate sobre a construção da siderúrgica. Em um telegramaconfidencial da embaixada inglesa ao Foreign Office, de dezembro de 1963, 

(*) Os países socialistas chegaram mesmo a afirmar que cumpririam com seus compro-missos de ajuda para 1964, mas nada podiam prometer para o futuro. Foi o que informou oFinancial Times de Londres, em artigo publicado em 29 de julho de 1964- 

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um funcionário britânico enviou ao conselheiro Eccles — provavelmente oresponsável pelo M-15 em Havana — uma síntese da avaliação do Serviçode Informação inglês:

Devido à necessidade de desenvolver a agricultura, a industrialização terá deesperar até depois de 1965. Che Guevara queixou-se de que muitas das

unidades industriais entregues não servem [...] O sr. Castro declarou que atarefa da indústria é ajudar a agricultura, produzindo máquinas agrícolas e fer-tilizantes. Afirmou que a construção de uma enorme usina de aço pela UniãoSoviética, antes considerada um dos mais importantes projetos cubanos elargamente propagandeado na ilha, poderia ser adiada ou abandonada."

O Che não contradizia abertamente Fidel, mas suas dúvidas e ques-tionamentos transparecem claramente no informe sobre uma conversação,enviado a Moscou por Daroussenkov:

Perguntei como então deviam ser entendidas as palavras de Fidel Castro [...] deque a agricultura seria a base do desenvolvimento da economia cubana naspróximas décadas, de que, do ponto de vista económico, talvez fosse mais

proveitoso investir dinheiro não na construção de uma usina siderúrgica, masem obras de irrigação, na indústria química e no fabrico de maquinaria agríco-la. Guevara respondeu que a questão da necessidade de construção da usinasiderúrgica ainda não fora decidida. Disse que havia muitos argumentos a favor[...] Nas condições atuais do mundo, qualquer país que não possua seu próprioaço sempre terá dificuldades para desenvolver sua economia [...] A UniãoSoviética procura atender nossa demanda, mas às vezes é incapaz de fazê-lo sim-plesmente porque ela própria enfrenta dificuldades na produção de alguns itensque nos faltam. Tomemos como exemplo as folhas-de-flandres. Temos grandesperspectivas de desenvolvimento da produção de frutas em conserva, mas issoexige grande quantidade de uma folha-de flandres especial para esse uso, que aUnião Soviética não pode fornecer. Cuba precisa muito desenvolver sua indús-

tria de construção naval. Vivemos em uma ilha. Nosso comércio se realiza pormar, e nós praticamente não temos frota ptópria, nem sequer pesqueira. Maspara construir embarcações modernas é preciso aço, e onde vamos consegui-lo ?Claro que não será importando-o através do oceano [...] Alguns dizem que,como Cuba não tem seu próprio coque, o custo do metal seria muito elevado e,portanto, não convém ao país desenvolver sua própria siderurgia. Mas elesesquecem que é possível empregar uma tecnologia progressiva e uma organiza-ção avançada da produção. Então, a importação de coque já não seria pro-blemática. A siderurgia japonesa, por exemplo, trabalha não só com coqueimportado, mas também com minério importado, e compete vantajosamentecom outros países. Em suma, a questão de construir ou não a usina siderúrgicaainda não está resolvida, e insistiremos firmemente que seja construída.14 

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O problema não era simplesmente de estratégia de desenvolvimento.A agricultura cubana, dirigida a partir do INRA por Carlos Rafael Rodríguezdesde 1961, adotava princípios com os quais o Che discordava completa-mente. O incentivo material, a autogestão financeira das empresas, as altasdiferenças salariais vinculadas à produtividade e os programas de investi-

mento altamente descentralizados prevaleciam em toda a agriculturacubana, exceto, até 1964, a indústria açucareira. Quem trabalhava mais,ganhava mais.* Cada empresa conservava seus recursos e só entregava aoINRA ou aos bancos o excedente. Em resumo, tolerava-se e até estimulava-se a vigência da "lei do valor" no socialismo. Mesmo depois da segunda refor-ma agrária, promulgada em outubro de 1963, 30% das terras continuamsendo privadas. Dar prioridade à agricultura revelava uma clara preferênciapor esses traços diferenciais. Dar-lhe absoluta preponderância, como foi ocaso, implicava, aos olhos do Che, imprimir ao conjunto da economiacubana uma marca nociva para o socialismo que desejava construir em suapátria adotiva. Ele até aceitava que o sistema centralizado, vigente na indús-

tria, pudesse conviver com o incentivo material, imperante em toda aeconomia, mas considerava o incentivo moral incompatível com a chama-da autogestão financeira da agricultura: "Com autogestão financeira, o in-centivo moral não dá nem dois passos. Tropeça nas próprias pernas e cai deboca. E impossível".55 

Em poucas palavras, a plena aplicação da "lei do valor" consolidaria oestado de coisas, a situação relativa entre a agricultura e a indústria, entre asdiferentes regiões, entre a cidade e o campo. Como o Che chegou a dizer,talvez em um momento de descuido ou informalidade: "para mim agora éevidente que, onde quer que se empregue a lei do valor, exatamente aí

estaremos introduzindo o capitalismo de contrabando".

56

 Um dos estudosmais recentes sobre o que se chamou "o grande d" sintetiza-o assim: 

(*) Uma conversa entre o Che e Alexeiev ilustra a crescente polémica sobre esse ponto:"Guevara comunicou-me que, naquele momento, introduziam-se em todos os ramos daindústria normas de trabalho, em cuja elaboração os técnicos soviéticos eram de grande aju-da. Disse que discordava da remuneração progressiva e que ele só aplicaria incentivos morais.Disse a Guevara que ele estava profundamente enganado se pensava que era possível aumen-tar a produtividade sem oferecer incentivos materiais. Ele respondeu que naquele momentoo objetivo principal não era elevar a produtividade, mas introduzir novas tecnologias e desen-volver a consciência revolucionária". (Alexander Alexeiev, "Nota de conversación dei 25de diciembre de 1963 con el Ministro de Industrias Ernesto Guevara", 29/1/64 (secreto),Arquivo Estatal da Rússia, op. cit., fólio n2 5, lista n2 49, documento ne 760.) 

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Ernesto Guevara e outros acreditavam que Cuba não podia permitir que a leido valor determinasse os investimentos sem negar a possibilidade de superar osubdesenvolvimento. A indústria não gozava da vantagem comparativa daagricultura, não era tão "rentável". O planejamento a partir da autogestãofinanceira reforçaria o desenvolvimento desigual e a especialização. Já o sis-tema orçamentário de planejamento centralizado em seu conjunto permitiaque se corrigissem as desigualdades do passado e se promovesse um desen-volvimento mais equilibrado. O fato de Cuba ser um país pequeno, comriquezas limitadas e uma economia voltada para o exterior, obrigava o Estadoa canalizar os recursos mais abundantes, a vontade, a energia e a paixão dopovo cubano. A autogestão financeira fomentava o incentivo material porrazões de eficiência e racionalidade. Mas o incentivo material privatizava aconsciência, e a ineficiência não se restringia aos recursos económicos. O estí-mulo moral desenvolveria a consciência enquanto alavanca económica e pro-moveria a criação de novos seres humanos."

Em 3 de outubro de 1964, o Che perdeu o controle da indústria açu-careira — que passou a formar um ministério à parte. Embora a nova pasta

fosse dirigida por Orlando Borrego, um dos mais próximos colaboradores deGuevara, ele encarou a medida como um sinal.* No mesmo momento,Osvaldo Dorticós substitui Regino Boti no Ministério da Economia eassume o comando da Juceplan (Junta Central de Planejamento). Era umsegundo golpe para o Che, não porque tivesse más relações com Dorticós,mas porque criava um pólo alternativo, igualmente poderoso, para a con-dução da economia. Guevara escreveu naquele ano um novo capítulo dapolemica, ao publicar três ensaios sobre os grandes temas que o afastavamdos soviéticos, dos comunistas e dos técnicos: a centralização, o sistemaorçamentário e os incentivos materiais. Charles Bettelheim comentariatrinta anos depois que o diagnóstico do Che sempre apresentava um viésburocrático. Via a economia cubana das alturas dos grandes empreendi-mentos do Ministério da Indústria, de onde seria possível estabelecer formasde controle adequadas. Mas não era possível centralizar o controle sobre ainfinidade de pequenas empresas nacionalizadas em 1963. Não havia capaci-dade administrativa, nem quadros, nem recursos. As ilusões centralizadoras deGuevara padeciam de gigantismo. Ele não enxergava os desafios que asmudanças na economia e na sociedade de Cuba opunham ao seu esquema.58 

(*) A princípio, o Che não deu maior importância à divisão do Ministério: "Haverádois ministérios novos [...] Um, naturalmente, o do Açúcar, com Borrego, que nada mais éque uma subdivisão [...]". (Guevara, Actas dei Ministério, op. cie, p. 508.) 

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Sobretudo nesses meses, o Che expôs a pedra angular de seu pensa-mento sobre esse conjunto de temas, formulada nos termos do jargão mar-xista da época, porém transparente em sua sinceridade e em suas impli-cações: "A consciência dos homens de vanguarda pode discernir oscaminhos a serem seguidos para conduzir a revolução socialista ao triunfo

[...] mesmo que [...] não existam objetivamente contradições entre o desen-volvimento das forças produtivas e as relações de produção que tornariam arevolução indispensável ou possível".59 

Nessa resposta a Bettelheim, o Che conclui que Cuba pode não estar"pronta" para um planejamento tão preciso e amplo como ele desejaria, paraos incentivos morais como ele os concebe, para a extrema centralização daindústria que defende, mas isso não importa. O essencial é que surja e se con-solide uma consciência avançada o bastante, no grupo dirigente cubano enos setores mais progressistas do povo, para que se possam "queimar etapas",como ele sugere. Essa atitude envolve todas as polémicas: sobre o açúcar e aindústria, a centralização e o orçamento, os incentivos morais e materiais.

Não se trata de teses económicas no sentido estrito, mas de postulados políti-cos que partem de uma premissa: a consciência (em geral vista pelo Checomo vontade) é condição necessária e suficiente para avançar. O aspectoadministrativo vem depois e é secundário. 

Até certo ponto Guevara tinha razão. Caso existisse essa consciência,não seria impossível planejar como um relógio uma economia tão simplescomo a cubana, centralizar tudo em algumas mãos, definir preços, salários einvestimentos segundo critérios morais. E sem dúvida essa consciência pare-cia aflorar em determinados momentos da Revolução Cubana: a baía dosPorcos, a crise do Caribe, a alfabetização etc. O grande drama do Che residiano caráter inevitavelmente efémero da consciência mais alta e profunda.

Além disso, ele parecia incapaz de aceitar que sua própria aptidão para man-ter o pulso firme e ânimo vivo não era partilhada pelos outros. 

Da industrialização passou-se à centralização, ao Sistema Orçamentárioe à direção unificada dos investimentos, dos salários, do sistema bancário; detudo isso, ao incentivo moral versus estímulo material, que na verdade cons-tituíam o ponto de partida. O grau de divergência variava; Carlos RafaelRodríguez afirmou mais de vinte anos depois que ele e o Che tiveram apenas"pequenas diferenças na concepção dos incentivos".60 E, de fato, analisando-se à distância as divergências do Che com o resto da direção económicacubana, pode-se concluir que quase todas eram mais de grau ou matiz que defundo. O que não impedia que as discussões por vezes se tornassem violentas: 

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m técnico soviético recorda uma reunião do INRA da qual o Che se retiroutão brusca e furiosamente que sua própria escolta não teve como acompanhá-lo Um homem de pavio curto como ele dificilmente conseguia discutirtemas de relevância histórica com moderação e serenidade.6' 

O governo cubano montou uma operação que visava amenizar as

divergências com Guevara, insistindo em que não passavam de diferençasde grau. No que diz respeito aos incentivos, Rodríguez alega que o Che nun-ca propôs a eliminação dos incentivos materiais, o que é verdade. Tampoucose pode dizer que os outros exigissem a eliminação pura e simples dos incen-tivos morais. Mas a contradição era real, fosse de grau ou de substância: parao Che, a ênfase devia recair sobre o incentivo moral; para os demais, sobre omaterial.* O ciclo se encerrou com a segunda viagem de Fidel Castro aMoscou. O alinhamento com a URSS em matéria económica tornou-se quasetotal e, na prática, vantajoso para Cuba, pois o combalido tesouro da ilhaacumulou reservas, beneficiando-se de uma alta do preço mundial do açúcare da tranquilidade de um mercado garantido a longo prazo. 

No início de seu último ano em Cuba, Che Guevara encontrava-se jámuito à margem da condução económica da ilha. Nem por isso se afastou dogoverno cubano em outras matérias ou descuidou de suas tarefas e interessesparticulares. Desde o início de 1963 voltara a dedicar-se ao trabalho voluntário.Na safra daquele ano, bateu todos os recordes quanto ao corte e a horas con-secutivas de trabalho. Seu exemplo tinha um duplo sentido: por um lado, for-talecia o espírito revolucionário dos líderes cubanos e mostrava que os própriosdirigentes continuavam sendo capazes de assumir os mesmos compromissos esacrifícios que exigiam do povo; por outro, resolvia um problema. Com efeito,

a partir de 1963, devido ao aumento da safra, e de 1964, com a decisão de voltarà monocultura canavieira, a mão-de-obra escasseava. O campo ainda não seesvaziara, mas a população rural tinha diminuído e a mecanização — prometi-da pelos soviéticos e desejada de todo coração pelo Che — não vinha. MasGuevara fora amadurecendo sua avaliação sobre o trabalho voluntário. Àquelaaltura já admitia que um esforço mal planejado torna-se insustentável: "Do- 

(*) Eis uma amostra particularmente clara dessa questão: "Acontece que se está colo-cando a discussão sobre o 'incentivo moral' no centro de tudo; e o incentivo moral em si nãoe o centro [...] O incentivo moral é a forma [...] predominante que o estímulo deve adquirirnesta etapa da construção do socialismo [...] mas está longe de ser a única forma [...] O incen-tivo material deve existir". (Guevara, Actas dei Ministério, op. cit., p. 345.) 

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mingo passado foi meu dia de ir perder meu tempo no trabalho voluntário,e realmente aconteceu algo que nunca me acontece em um trabalho volun-tário, a não ser na cana: ficar olhando o relógio a cada quinze minutos paraver quando acaba a jornada e poder ir embora, porque aquilo não fazia omenor sentido [...]".62 

O trabalho voluntário era uma solução parcial para o problema da fal-ta de braços. A lei do serviço militar obrigatório, de dezembro de 1963 — osprimeiros recrutas seriam convocados em março de 1964 —, a lei de normasde trabalho e a de classificação salarial, ambas promulgadas no primeirosemestre de 1964, eram outras soluções para o mesmo problema. A consoli-dação das forças armadas e a definição de cotas para as milícias tambémserviam a um propósito análogo e fortaleciam a hegemonia da direção emseu conjunto, mas limitavam a influência do Che, já bem reduzida. Nem osexilados de Miami, nem a máfia dos Estados Unidos lhe atribuíam a força deantes: agora só estavam dispostos a pagar 20 mil dólares por sua cabeça,enquanto a de Fidel Castro valia 100 mil.61 

O Che continuava escrevendo seus ensaios e concedendo entrevistas adiversos órgãos da imprensa internacional, como um dos porta-vozes maiseficazes da Revolução Cubana, talvez o mais confiável, ao lado de Castro.Observava como a revolução marcava passo na América Latina, apesar dos 'esforços na Venezuela, na Guatemala e no Peru. Sentia-se só e paralisado.Escreveu à diretora de uma escola primária: "Às vezes nós, revolucionários,ficamos sós. Até nossos filhos nos olham como a um estranho".64  Cada diatinha menos a fazer em Cuba. Crescia seu desejo de movimento, de viversituações definidas, sem ambiguidades. Foi um ano de transição, que nãopoderia prolongar-se. Ele o sabia: em fins de março, dias antes de partir parauma nova viagem pela Europa e a África, teve uma conversa de várias horas

com Tâmara Bunke. Depois que ela concluíra seu treinamento como agentedos Serviços de Informação de Cuba, o Che a convocara para dar-lhe asseguintes ordens: "Fixar-se na Bolívia, onde devia estabelecer relações noâmbito das forças armadas e da burguesia governante, viajar pelo interior dopaís [...] e esperar por um contato que lhe indicaria o momento da ação defi-nitiva".65 O contato seria ele mesmo, dois anos depois. 

Além das derrotas em matéria de política económica e da aproximaçãoentre Cuba e a URSS, outros fatores pesaram na partida do Che. Em 19 demarço de 1964 nasceu, em Havana, Ornar Pérez, filho de Ernesto (sem usarseu sobrenome) com Lilia Rosa López, o único concebido fora do casamentoe reconhecido pelo Che, embora existam indícios de que houve outros. 

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Lilia Rosa, uma bela havanesa de seus trinta anos, conhecera o Che em LaCabana, em 1959. Ainda em 1996, assistia à comemoração anual da toma-da do quartel, no dia 2 de janeiro. Ornar Pérez (deve seu nome a OrnarKhayyan, o autor dos Rubayat; o Che presenteou Lilia Rosa com uma ediçãodos poemas), poeta e tradutor dissidente, recolhido por algum tempo em

campos de trabalho por negar-se a prestar o serviço militar e opor-se aoregime, não nega suas origens.* Conserva os olhos e sobretudo o sorriso deseu pai: quando se alegra, o rosto se ilumina, tal como acontecia com o Che.Ornar não fala de sua filiação. Tem os cabelos negros, longos e lisos, assobrancelhas bem marcadas, os olhos tristes e misteriosos de seu pai e a mar-ca indelével da ascendência nos gestos, no olhar e na discrição.  

Em um belo dia no fim dos anos 80, Lilia Rosa apareceu na casa doentão companheiro de Hilda Guevara Gadea, a filha mais velha do Che,com um pacote de livros do comandante Guevara. As dedicatórias estavamcheias de palavras e frases que não deixavam lugar a dúvidas quanto ao tipode vínculo que tinha havido entre os dois. Lilia revelou sua relação com o

Che e apresentou Ornar a Hilda. Este quase de imediato tornou-se umgrande amigo da primogénita de Guevara. Hildita, como todos a chamavamem Cuba, já sofria de câncer, alcoolismo e depressão, em parte devido aodesprezo que sempre sofrera por parte da viúva do Che e de seus meio-irmãos. Até sua morte, em agosto de 1995, Ornar e Hildita partilhariam umaparte especialmente bela da herança paterna: a rebeldia e o inconformismo.Hilda Gadea nunca teve a menor dúvida de que Ornar era seu irmão. Assimo tratava e assim pediu aos filhos que o tratassem.** 

Ignoramos se o Che soube do nascimento de Ornar em 1964, mas dequalquer forma a situação não deve ter sido fácil para ele. Sempre se opusera,por princípio, às frequentes aventuras de seus companheiros de liderança

revolucionária e resistira com relativo êxito às incontáveis tentações do 

(*) Lilia Rosa gentilmente revelou ao autor a origem do nome de seu filho, assim comoas circunstâncias em que conheceu o Che, em uma carta datada de 2 de novembro de 1996.  

(**) A história de Ornar é conhecida em Cuba, circulando ao lado de outras versõessobre filhos naturais do Che. Um deles em particular, Mirko, chegou a ser investigado pelasautoridades cubanas, para logo ser deixado em paz. O caso de Ornar é diferente por uma razãomuito simples: foi aceito e reconhecido, primeiro pelo pai, mais tarde por Hilda. O neto me-xicano do Che, Canek Sánchez Guevara, assegurou ao autor que sua mãe apresentou-lheOrnar como um tio, e foi como ele sempre o considerou. A soma de versões tão largamentedifundidas, da semelhança física e do testemunho da filha do Che parece-nos suficiente paradar esse fato por verdadeiro. (Canek Sánchez Guevara, entrevista com o autor, Havana,26/1/96 e Cidade do México, 15/8/96.) 

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trópico e do poder. Mas algo ocorreu em meados de 1963, se não antes, quedeve ter aumentado sua já crescente intranquilidade na ilha. Daí sua atitudemais moderada e flexível em torno dos temas delicados do Ministério daIndústria, como ilustra o caso do companheiro Mesa, diretor da Empresa deBrinquedos. Casado e com filhos, Mesa apaixonou-se de sua secretária e foi

visto com ela em circunstâncias bem pouco protocolares. O caso chegou aoconhecimento do Che em 11 de julho de 1964, quatro meses depois donascimento de Ornar. Sua resposta merece ser reproduzida: 

Até hoje ninguém disse que nas relações humanas um homem tem de vivercom uma mulher o tempo todo [...] Como eu disse, não sei por que tanta dis-cussão, pois acho que é uma coisa lógica, que pode acontecer com qualquerum. Seria até o caso de examinar se a sanção [...] não é excessiva [...] Evi-dentemente, se o fato acontece, é porque a mulher o deseja, do contrário seriaum delito grave. Mas sem o consentimento da mulher isso não ocorre [...] Nóstemos procurado não ser extremistas com relação a esses assuntos. Além domais, há uma ponta de beatice socialista nessas manifestações. A verdade ver-

dadeira é que, se alguém pudesse penetrar na consciência de todo mundo, aíeu queria ver quem atiraria a primeira pedra nesses assuntos [...] Nós semprefomos partidários de não levar a coisa aos extremos, principalmente de nãofazer disso uma questão capital e não deixar que caia na boca do mundo, o quepoderia inclusive destruir lares que não precisariam ser destruídos, pois sãocoisas bastante naturais, bastante normais, que acontecem.66 

A inquietação, como sempre, levava o Che a viajar mais e mais. Em 17de março, ele partiu para Genebra, encabeçando a representação cubana àPrimeira Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvi-mento (UNCTAD), cujo secretário-geral era seu compatriota e conhecidoRaul Prebisch. Permaneceu um mês fora de Cuba, a maior parte do tempo

na Suíça, com breves escalas em Praga e Paris, mais dois ou três dias em Argelpara conversar com seu amigo Ben Bella. Seu discurso em Genebra foi trans-cendente e profundo. Expôs, nas entrelinhas, vários dos temas que domi-nariam seus pensamentos e pronunciamentos no ano seguinte. 

Quando o Che subiu à tribuna, o plenário do Palácio das Nações o rece-beu com um sonoro aplauso. Ele já era um personagem legendário. 67

Começou com uma queixa: ali faltavam algumas delegações, como a da Chi-na, do Vietnã do Norte e da Coreia do Norte; enquanto pelo menos uma daspresentes nem sequer devia ter sido convidada: a da África do Sul. Em segui-da, delimitou seu campo de batalha político e ideológico: "Entendemosclaramente — e o dizemos com toda a franqueza — que a única solução cor-  

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reta para os problemas da humanidade, no momento atual, é a supressãoabsoluta da exploração dos países dependentes por parte dos países capita-listas desenvolvidos, com todas as consequências que isso implica".68 

O discurso foi breve, retórico, inteligentemente irónico ("os imperia-listas alegarão que a culpa do subdesenvolvimento é dos subdesenvolvi-

dos"), mas carente de propostas ou maiores voos. Foi apenas respeitoso paracom os países socialistas. Repetidamente pôs sua ênfase nas nações pobres,nos povos "que lutam por sua libertação", nos "pobres do mundo", mas nãona União Soviética. Mencionou-a poucas vezes e anunciou, sutilmente, oproblema que começava a obcecá-lo e contribuiria para suas desavençascom o regime cubano. 

Referiu-se primeiro à chamada distorção dos termos do intercâmbio, quetende a rebaixar os preços das matérias-primas exportadas pelos países subde-senvolvidos e a encarecer os bens e serviços que eles importam dos paísesindustrializados, forçando os pobres a exportar cada vez mais para importar omesmo. Disse que "muitos países subdesenvolvidos chegaram a uma con-

clusão com bases aparentemente lógicas": nas relações comerciais com os paí-ses socialistas, "estes se beneficiam do estado de coisas existente".69 Afirmouque se devia reconhecer essa realidade "honesta e corajosamente". Mas emseguida acrescentou que os países socialistas não eram os culpados por essainjustiça. E que a situação mudava quando se estabeleciam acordos de longoprazo, como o que Cuba havia negociado com a União Soviética. Mesmoassim, as palavras que empregou para descrever o pacto açucareiro com a URSS("relações de novo tipo") revelam que, embora mantenha a convicção de quecomerciar com o bloco socialista é melhor do que fazê-lo com o capitalista, jáperdera muitas de suas ilusões. Sentiu-se ferido com a frieza e o isolamento quesofreu por parte das delegações socialistas. Já não era visto como um membro

da família, se é que alguma vez o fora: "Guevara teve uma má impressão doscontatos com os companheiros soviéticos e de outros países socialistas emGenebra. Queixou-se de que mostraram desconfiança. A delegação cubanaestava isolada. As da Europa oriental se reuniam, discutiam e só depois con-sultavam Cuba, para cumprirem o protocolo. Aquilo o magoou muito".*  

(*) Oleg Daroussenkov, "Nota de Ia conversación de 29 de abril de 1964 con ErnestoGuevara", 18/5/1964 (secreto). Arquivo Estatal da Rússia, op. cit., fólio n fi 5, lista nfi 49, do-cumento 760. O académico norte-americano Robert J. Alexander, que conheceu o Che naGuatemala e voltou a vê-lo em Cuba, recorda que o então representante de Cuba no ComitéInternacional do Açúcar lhe contou que jantara com o Che em Genebra e que este passou otempo todo "desancando a URSS". (Robert J. Alexander, ao autor, 5/12/95.) 

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A estadia na cidade de Rousseau encerra alguns enigmas. Poucos(talvez nenhum) dos chefes das delegações enviadas à UNCTAD permanece-ram em Genebra durante todo o mês que a conferência durou. A relação doChe com os demais latino-americanos era tensa. Segundo um integrante dacomitiva mexicana, nem sequer o convidavam para as reuniões do grupo

regional.70

 Ele se hospedou em um pequeno e modesto hotel perto do lago,cercado de forte esquema de segurança. Só relaxava visitando alguns dele-gados mexicanos, onde se bebia tequila, cantavam-se tangos e boleros e oChe mostrava sua faceta argentina. Ele também manifestava suas saudadesdo México. Pedia informações de lá, perguntava sobre pessoas e aconteci-mentos, recordava seus dias no país com um afeto que talvez só tenha surgi-do depois da partida para Cuba. Um dia, um dos delegados mexicanosencontrou-o caminhando sozinho pelas margens do lago de Genebra,detendo-se um bom tempo junto a uma das pedras da orla, contemplando oSalève a distância. Pensava, talvez, nas duras escolhas que teria de fazer aovoltar a Cuba. 

A viagem relâmpago à Argélia — formalmente para assistir ao PrimeiroCongresso da Frente de Libertação Nacional — serviria também para exami-nar junto a Ben Bella os acontecimentos na África. As lutas de libertação nocontinente já então mereciam do Che uma atenção constante: em seu discur-so em Genebra, ele citou várias vezes o exemplo de Patrice Lumumba. Aretomada dos combates no Congo e a debilidade do governo de Moise Tshom-bé começavam a interessá-lo ao máximo. Reuniu-se em Argel com alguns dosdirigentes congoleses no exílio. Seu sexto sentido advertiu-o de que o movi-mento rebelde de 1961, esmagado após o assassinato de Lumumba, mas aindalatente, estava às vésperas de uma nova eclosão.* Seu envolvimento não erapuramente académico. Desde janeiro ele conseguira que Pablo Ribalta, seu

velho colaborador da sierra Maestra, de origem afro-cubana, fosse nomeadoembaixador na Tanzânia. A recém-formada república compreendia a ilha deZanzibar, onde Cuba mantinha relações com o Partido Nacionalista desdesetembro de 1961, treinando seus combatentes e militantes.71 

(*) Nesse particular, a opinião do Che coincide com uma estimativa nacional deinteligência da CIA, datada de 5 de agosto de 1964, portanto redigida naquela mesma pri-mavera, que começa dizendo: "Nos últimos meses, a divisão regional e a violência adquiri-ram proporções preocupantes e geraram a ameaça de um colapso da autoridade governa-mental". (Director of Central Intelligence, "Special National Intelligence Estimate: ShortTerm Prospects for the Tshombe Government in the Congo", 5/8/64 (secreto), The Declas-sified Documents Catalog, Carrollton Press, vol. XVI, #5, sept.-oct., 1990, n2 de série 2439.) 

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Na viagem de regresso, o Che fez uma escala em Paris e almoçou comCharles Bettelheim, em um restaurante do boulevard Saint-Michel, empleno Quartier Latin. Confessou então que se equivocara em seu julgamentosobre a União Soviética, ao confiar em suas promessas.72 De Paris volta aHavana, à polémica económica e às tarefas administrativas à frente do Mi-

nistério. Cumpria-as com diligência, mas suas intervenções em diversasreuniões mostravam uma sombra de aborrecimento, de cansaço. Seu inte-resse pelos temas económicos arrefeceu, seu poder deliberativo também.Nessa época, a equipe de assessores soviéticos no Banco Nacional recebeunovo reforço. De acordo com um telegrama da embaixada do Reino Unido:"Alguns observadores encaram o fato (o referido reforço) como uma provade que os russos estão assumindo maior responsabilidade no comando daeconomia cubana, e de que os governos cubano e soviético decidiram, decomum acordo, elevar o grau de controle soviético".* 

Em novembro, o Che já estava pronto para viajar de novo, agora comorepresentante cubano nos festejos do aniversário da Revolução Russa. A visita

prometia ser de particular importância, pois Krushev acabava de ser destituídoe, embora desde a crise do Caribe não restasse muito do velho carinho entre oscubanos e Nikita, os novos dirigentes moscovitas eram uns ilustres desco-nhecidos em Havana. A própria maneira como Kruschev fora destituído e aforma como sua queda foi anunciada deixaram uma impressão desagradá-vel no Che.7' Tudo indica que a estadia em Moscou foi um êxito protocolar, masvazia de substância. Várias testemunhas recordam Guevara no vôo de regressode Murmansk para Havana, eufórico, ligeiramente embriagado, contandocasos de sua vida íntima, o que não era de seu feitio. Foi nessa viagem que se deua conversa com Daroussenkov em que ele confessou ter aceitado casar-se comHilda Gadea em um momento de excitação etílica. Também foi nesse vôo que

fez um impagável comentário para Salvador Cayetano, dirigente do PartidoComunista de El Salvador, estando sentado entre os secretários-gerais do par-tido mexicano, Amoldo Martínez Verdugo, e da Bolívia, Mário Monje: "Aquiestou eu, Carpio, sentado entre um monge e um verdugo".74 

(*) Havana Telegram n2 48 to Foreign Office, Cuba: Political Situation, 23/11/64(secreto), FO371/174006, Foreign Office, Public Record Office, Londres. O Che já tinharelações tensas com os funcionários do banco, em particular com os assessores estrangeiros:"Vocês sabem que nós sempre tivemos relações bastante tensas com o banco, praticamentedesde que eu saí de lá. Ele sempre foi, através dos assessores tchecos e também dos soviéticos,o arauto da autogestão financeira". (Ernesto Che Guevara, Atas do Ministério, 11/7/64, op.cit.,p. 530.) 

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De volta da URSS, o Che convocou uma das últimas reuniões privadascom seus colaboradores do Ministério da Indústria. Expôs com crua fran-queza suas impressões sobre os países socialistas e disse por que se opunha àschamadas reformas económicas em curso na Europa Oriental e na URSS.Convém reproduzir várias passagens, pois além de inéditas elas refletem com

grande fidelidade os dilemas que atormentavam o argentino às vésperas desua nova odisseia:

Tive uma reunião em Moscou com todos os estudantes (cubanos) que queriamconversar. Convidei-os à embaixada. Reuniram-se uns cinquenta. Eu fui dis-posto a travar uma tremenda batalha contra o sistema de autogestão. Poisbem, nunca tive um auditório mais atento, mais preocupado e que tenha com-preendido mais depressa as minhas razões. Vocês sabem por quê ? Porque tudoestava acontecendo ali, porque muitas das coisas que eu digo de forma teóri-ca, porque não as conheço diretamente, eles conhecem. E as conhecemporque estão lá, quando vão ao médico, quando vão ao restaurante, quandovão comprar alguma coisa nas lojas, e acontece que coisas incríveis ocorremhoje na União Soviética... Um artigo de Paul Sweezy diz que a Iugoslávia é um

país que caminha para o capitalismo. Por quê? Porque na Iugoslávia vigora alei do valor, e cada dia vigora mais. Krushev disse (que era interessante o queacontecia) na Iugoslávia, que até mandou gente estudar o caso [...] Pois issoque ele viu na Igugoslávia, e lhe pareceu tão interessante, está muito mais,desenvolvido nos Estados Unidos, porque o nome disso é capitalismo [...] NaIugoslávia vigora a lei do valor; na Iugoslávia as fábricas não-rentáveis sãofechadas; na Iugoslávia há enviados da Suíça e da Holanda que procuram mão-de-obra ociosa e levam para seus países, para trabalhar nas condições que seoferecem à mão-de-obra estrangeira em um país imperialista [...] A Polónia vaipelo caminho iugoslavo, claro: reverte a coletivização, retorna à propriedadeprivada da terra, estabelece uma série de sistemas especiais de câmbio, temcontato com os Estados Unidos [...] A Tchecoslováquia e a Alemanha tam-bém começam a estudar o sistema iugoslavo para aplicá-lo. Então já temosuma série de países, todos mudando de rumo. Diante do quê? Diante de umarealidade que não se pode desconhecer: que, embora não se diga, a economiados países capitalistas do Ocidente está avançando mais rápido que a do blocoda democracia popular. Por quê ? Em vez de ir-se ao fundo nesse porquê, pararesolver o problema, deu-se uma resposta superficial. E então se trata dereforçar o mercado, implantar a lei do valor, reforçar o incentivo material."

Já naquele momento o Che concebera uma ideia clara e definitivasobre os países socialistas, em seu aspecto interno. Eles perdiam a com-petição com o Ocidente não por apego aos axiomas do marxísmo-leninis-mo, mas por traição e abandono dos mesmos. Ao comprovar sua derrota na 

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competição com o capitalismo, adotavam mudanças de rumo indispen-sáveis, mas na direção oposta àquela que o Che indicava como correta. Seacrescentarmos a tudo isso a exacerbação do conflito sino-soviético, vere-mos como o Che se aproximava perigosamente do fim de seu caminho, dabeira do abismo. Os comunistas que encontrou no avião ao voltar de

Moscou vinham de Pequim. Junto com Carlos Rafael Rodríguez, parti-cipavam de uma missão latino-americana que buscava mediar a disputaentre os dois grandes do socialismo, uma iniciativa nascida, entre outras, deuma proposta do mexicano Martínez Verdugo, formulada na reunião dospartidos comunistas da América Latina realizada havia pouco em Havana.Os cubanos influíram na decisão de ir à China, organizaram a viagem etalvez tenham induzido a iniciativa de Verdugo; manobraram para que Car-los Rafael Rodríguez fosse o porta-voz da delegação. Mao, segundo o mexi-cano, recebeu-os com afeto, mas logo disse: "Vocês vêm enviados pelosrevisionistas. Não concordamos com vocês, mas sejam bem-vindos".76 Agestão mediadora não prosperou. O Che voltaria a tentá-la meses mais

tarde, mas também fracassaria. A ideia de interceder no conflito recebeu novo alento porque, entre

outras coisas, o Che, Cuba e as potências socialistas estavam a ponto de seremarrastados no sorvedouro africano. Desde o verão de 1964, Pierre Mulele, oministro da Educação de Lumumba, seu virtual herdeiro político e espiritual,reacendera a rebelião congolesa na região centro-ocidental de Kwilu. OComité Nacional de Libertação fizera o mesmo no Leste e no Norte do país,perto de Stanleyville. Todos se levantaram em armas contra o regime deTshombé, imposto três anos antes pelas Nações Unidas, os belgas e a CIA. Seo governo congolês cambaleava, Washington e Bruxelas dispunham-se arespaldar seus aliados. Quando os rebeldes tomaram Stanleyville, em agosto,

a Bélgica e os Estados Unidos dispararam seus alarmes. Poucos meses depois,enviariam batalhões de pára-quedistas para retomar a cidade, esmagar ainsurreição, recuperar o controle da parte leste do país e, segundo eles,impedir um banho de sangue. Já se produzira um massacre quando os rebeldesentraram em Stanleyville, tomaram como reféns o cônsul norte-americano,dezenas de missionários estadunidenses e trezentos cidadãos belgas, enquantofuzilavam 20 mil congoleses da classe média ilustrada.77 

A nova insurreição congolesa teve um duplo efeito na mente do Che edos cubanos. Por um lado, persuadiu-os de que, por fim, a luta anticolonia-lista de Lumumba ressuscitara; por outro, reforçando o primeiro impacto, aintervenção das potências coloniais e de Washington parecia confirmar o 

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caráter antiimperialista da rebeldia africana renovada. O Che, portanto, ti-nha suas razões para comprometer-se a fundo com a causa congolesa: entra-va em campanha para combater o imperialismo e para apoiar uma luta justa.  

A campanha começou j ustamente em Nova York; prosseguiu na Áfricaem fins de 1964 e durante todo o ano seguinte. Em 9 de dezembro, apenas

três semanas depois de regressar da URSS, o Che fez de novo as malas: ia àsNações Unidas. Sua nomeação como chefe da delegação cubana à 19a

assembleia não causou maior impacto em Havana. Ao lado de sua missão naUNCTAD, meses atrás, foi vista por alguns observadores como sinal de perdade poder: "A nomeação do Che Guevara para encabeçar a delegação cubanaàs Nações Unidas parece não ter maior importância. Guevara também re-presentou Cuba na UNCTAD, em Genebra, e seus conselhos políticos pare-cem ter cada vez menos peso".78 

Ao trilhar o caminho que o levaria à glória, o Che se aproximava tam-bém do seu ocaso em Cuba. Os escassos oito dias que permaneceu nos Esta-dos Unidos — sua primeira visita ao país desde a passagem por Miami,

quinze anos antes — permitiram-lhe poucos momentos de descanso. Asatividades seriam as mais variadas, em alguns casos até excêntricas. Sua ve-lha amiga Laura Bernquist, da revista Look, quis que ele se reunisse com in-telectuais e jornalistas nova-iorquinos. Laura Berquist era amiga de infânciade Bob Rockefeller, viúva de Winthrop, ex-governador do Arkansas, e pos-suía uma esplêndida residência bem em frente ao prédio da Nações Unidas.Não havia lugar mais apropriado para atender aos imperativos de segurançacomplicados pelas manifestações anticastristas. Para lá acorreram osesquerdistas de Nova York, desejosos de conversar com o Che. A tradutorafoi Magda Moyano, irmã de Dolores, vizinha de Guevara em Córdoba e pri-ma de Chichina Ferreyra. Ela e o visitante conversaram sobre a juventude e

o passado já distante. O Che participou também de um programa dominicalde televisão, Face the nation. Ele se saiu tão bem que alguns governos latino-americanos protestaram junto à Casa Branca pelo espaço que a rede CBS lheabrira.* Também se reuniu e conversou em segredo com o senador demo-crata e liberal Eugene McCarthy e teve inúmeros encontros com delegados 

(*) "Várias delegações latino-americanas protestaram contra o que consideram umapublicidade desnecessariamente favorável a Fidel Castro: a entrevista de Che Guevara naCBS... Também manifestaram seu desagrado com o fato de a imprensa dos Estados Unidos nãoter dado maior destaque às réplicas latino-americanas ao discurso de Guevara na ONU." ("CheGuevara CBS Interview", 14/12/64 (secreto), Department of State, Incoming Telegram, NSF,Country File, Cuba, Activitiesof Leading Personalities, telegrama#62 ,LBJ Library.) 

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'rabes e africanos nos corredores e no Salão dos Delegados do Palácio deVidro. Ali preparou a viagem que, a partir de 18 de dezembro, o levaria anove países em três meses e à decisão de abandonar Cuba para sempre. 

O discurso do Che foi incendiário, pelo tom, pelo conteúdo e pela per-sonalidade do orador. Reiterou a tradicional posição de Cuba frente aos

Estados Unidos, inclusive os chamados cinco pontos de outubro de 1962, eperante a América Latina, incluindo, como sempre, a denúncia à OEA e aos"fantoches" latino-americanos. A novidade foi a ênfase africana.* Serialembrado também porque, tal como o pronunciamento de Genebra, porémmais explicitamente, manteve distância em relação à URSS e aos paísessocialistas. Guevara continuava a revelar seu afastamento de modo indire-to, mas seu discurso já vinha despojado dos eufemismos utilizados em Gene-bra: "Também é preciso esclarecer que não só nas relações que envolvemEstados soberanos os conceitos sobre a coexistência pacífica devem ser bemdefinidos. Como marxistas, temos sustentado que a coexistência pacífica en-tre as nações não inclui a coexistência entre exploradores e explorados, entre

opressores e oprimidos".79

 Porém, as passagens mais vibrantes foram as dedicadas ao Congo e àinvasão aérea de Stanleyville: 

Tal vez sej am filhos de patriotas belgas mortos em defesa da liberdade de seu paísos que assassinaram a sangue-frio milhares de congoleses, em nome da raçabranca, assim como antes sofreram sob a bota germânica porque sua taxa desangue ariano não era suficientemente elevada [...] Nossos olhos livres se abremhoj e para novos horizontes e são capazes de ver o que ontem nossa condição deescravos coloniais ocultava: que a "civilização ocidental" esconde por trás desua vistosa fachada um quadro de hienas e chacais. Porque só merecem essenome aqueles que foram cumprir tarefas tão "humanitárias" no Congo. Animal

carniceiro que engorda devorando povos indefesos; assim faz o imperialismocom o homem, é isso que distingue o "branco" imperial [...] Todos os homenslivres do mundo devem estar dispostos a vingar o crime do Congo.80 

As conversações com os norte-americanos — aquelas cujas trans-crições deixaram os arquivos secretos — mostraram um intenso vigor nadefesa da revolução permanente e a recusa em diferenciar-se, por pouco que  

(*) A insistência guevarista sobre o Congo surpreendeu; basta dizer que os trabalhospreparatórios do Departamento de Estado antecipando o discurso do Che nem sequer men-cionavam a possibilidade de uma abordagem do tema congolês. Ver WG Bowdler a Cleveland,Guevara Plenary Speech, 10/12/64, Nova York. NSF, Country File, Activities of Leading Per-sonalities, Cuba, LBJ Library. 

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fosse, de Fidel Castro. Na televisão, o Che se absteve de tomar partido entrea URSS e a China, preferindo insistir no dever da unidade. Deixou entreveralgumas reservas em relação à URSS, mas com tal discrição que obrigou osobservadores a um exercício de interpretação.* Distinguiu-se com maiorclareza o aspecto comentado por Tad Szulc, que participou do programa Face

the nation e a seguir conversou longamente com Guevara: "O Che se distan-ciara da política económica e se dedicava aos contatos com o Terceiro Mun-do [...] Parecia gostar muito dessa missão".81 

Houve um episódio particularmente curioso na conversa com Mc-Carthy, o senador liberal do Minnesota que se tornaria, três anos mais tarde,o principal crítico norte-americano à Guerra do Vietnã, forçando LyndonJohnson a desistir da pretensão de reeleger-se em 1968. A reunião foi, maisuma vez, obra da incansável Lisa Howard. Ela procurou convencer seus con-tatos na administração Johnson a aproveitarem a presença do Che nasNações Unidas para um encontro. Sem dúvida, sugeriu o mesmo a Guevara.Washington desde o início viu o ardil da repórter com ceticismo: 

O assunto Che Guevara chegou até o subsecretário George Bali. A ideia porenquanto é usar um inglês das Nações Unidas para fazer o contato (Bali e todos osdemais concordam que devemos manter distância de Lisa Howard). O ^ inglêsdiria ao Che amanhã: "Um colega norte-americano transmitiu-me o comentárioque uma fonte da imprensa teria feito com ele, afirmando que você teria algo adizer a um funcionário do governo dos Estados Unidos. Meu colega americano nãotem muia certeza quanto à qualidade de sua fonte. O senhor a confirma?". Bali etoda a equipe do Departamento de Estado acreditam que não devemos tomar ainiciativa. Se a montagem da operação exigir que demonstremos interesse, não valea pena [...] Duvido que o Che tenha algo a nos dizer que já não saibamos, ainda quepossa haver interesse em ouvi-lo.82 

Como a reunião com os funcionários de Washington não se con-cretizava, o Che atendeu às súplicas de sua amiga Lisa e conversou por duashoras com McCarthy, no apartamento da jornalista. Segundo o informe deMcCarthy a George Bali no dia seguinte, o comandante revolucionáriomostrou-se muito confiante. Afirmou que a Aliança para o Progresso fra-cassaria e que a América Central e a Venezuela estavam à beira de uma 

(*) O primeiro funcionário com quem o Che se reuniu em Nova York, Enrique Berns-tein, do Chile, informou depois à embaixada dos Estados Unidos em Santiago que o Cheexpusera "por completo a linha de Pequim". (WTDentzer/AmEmbassy Santiago a ARA / DOS

Washington (secreto), 21/12/64. NSF, Country File, Activities of Leading Personalities,Cuba, telegrama#57, LBJ Library.) 

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revolta. Dedicou algum tempo a examinar os principais temas da agendabilateral — voos americanos sobre a ilha, venda de medicamentos, a basede Guantánamo, a CIA em Cuba. Porém, o que mais causa impacto nosmemorandos de conversação recentemente liberados — na realidade só em2994 foi revelada a identidade do interlocutor do Che8' — é a clareza, a

irreverência ou o franco descaramento com que o Che se vangloria doapoio cubano à revolução latino-americana. Segundo as notas deMcCarthy: "Guevara em nenhum momento tentou ocultar as atividadessubversivas de Cuba. Admitiu explicitamente que eles treinavam revolu-cionários e continuariam a fazê-lo. Sentia que essa era uma missãonecessária do governo cubano, já que a revolução oferecia a única espe-rança de progresso para a América Latina".84 

Justo no momento em que Fidel Castro acenava com a suspensão deseu apoio à revolução continental em troca de uma coexistência pacíficacom Washington,* no instante em que a nova cúpula soviética pareciaoptar pela distensão com os Estados Unidos, o Che, no contato cubano-

estadunidense de mais alto nível em vários anos, proclamava o compro-misso internacionalista de Havana. O episódio lembra o comportamentodo jovem médico argentino no escritório de migração da Cidade do Méxi-co, uma década — ou uma vida inteira atrás, proclamando aos quatro ven-tos que era comunista. 

Seu antiamericanismo alcançara graus extremos. Em um discurso emSantiago de Cuba, no início de dezembro — antes de partir para NovaYork —, ele expôs sem rodeios seus verdadeiros sentimentos: "Devemosaprender uma lição, aprender a lição sobre a absoluta necessidade da repul-sa ao imperialismo, porque diante desse tipo de hiena não há remédio exce-to a repulsa, não há outra saída afora o extermínio... Devemos acatar essa

lição de ódio".ss

 Durante todo o ano de 1964, especialmente nos meses e semanas finais,o Che passava uma sensação de inquietude e ansiedade, sinais de uma "tro-ca de pele". Muitos de seus amigos ou meros conhecidos pressentiram quesua vida estava às vésperas de uma transformação radical. Não há registro denenhuma previsão apontando para um desenlace trágico, mas são muitos ospressentimentos políticos e pessoais, desprovidos de dramaticidade ou 

(*) Em uma longa entrevista concedida a Richard Eder, do New York Times, publicadaem 6 de julho do mesmo ano, Castro "propôs um acordo para interromper a ajuda às guerri-lhas na América Latina", caso Washington suspendesse sua ajuda aos exilados de Miami.(The New York Times, 6/7/64, primeira página.) 

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avançar. A situação do Che tornou-se tão absurda como as duas frases quepossivelmente a resumiam: "com Castro, nem casamento, nem divórcio" e"nem com Fidel, nem contra ele". Nada pior para Ernesto Che Guevara queesse emaranhado de ambivalências, contradições e meios-tons crepuscu-lares. Chegara a hora de partir. 

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angústia. Citemos dois. Um proveio de um conselheiro do governo de suamajestade britânica radicado em Havana, que desde 1964 informava a Lon-dres sua premonição profissional: "Eu não me surpreenderia se até o próprioGuevara recebesse em breve um emprego mais apropriado — ou um cargomeramente decorativo que o liberasse para exercer suas importantes funções

na relação com os demais latino-americanos".* A segunda foi de um ita-liano, o jornalista do  L'Espresso, Gianni Corbi, que passou várias semanasem Cuba no verão de 1964 e muitas horas conversando com Guevara. "Nãome surpreenderia ver o Che Guevara e seus caixeiros-viajantes da revoluçãopermanente na América Latina sacudirem a poeira cubano-castrista e diri-girem-se para as montanhas. Quando voltarmos a ouvir falar deles, estarãoencabeçando bandos guerrilheiros nas inóspitas alturas andinas."87 

Encerrava-se um ciclo para o Che em Cuba. Sua fase cubana estavaacabando, embora ainda fosse viver vários meses na ilha em 1966, escondi-do, doente e deprimido. Ele voltou à África em 16 de março de 1965 paracinco semanas depois entregar-se à aventura congolesa. Na verdade, desde

que partira para Nova York em dezembro de 1964, deixara para trás sua vidaem Cuba. As grandes decisões ainda não se tinham consumado. Faltavam asperipécias africanas e argelinas das páginas que se seguem. Mas os dadosestavam lançados, sobretudo no estreito terreno em que convergiram duasgrandes epopeias de nossa época: a de Castro e a do Che Guevara. 

Durante aquele longo ano de 1964, Guevara perdeu seus amigos esuas batalhas, travou incontáveis combates e polémicas sobre mil e umtemas conflituosos e cruciais para a Revolução Cubana. Comprovaram-se suas inconfundíveis características. Castro guardava grande estimapor ele, apoiava seus extravagantes projetos argentinos, argelinos,venezuelanos e agora africanos. Nunca lhe negou o lugar que conquis-

tara, nem lhe recriminou os deslizes ou rompantes. O Che não tinha,portanto, do que se queixar. Mas ele também comprovava que Fidel, ofiel da balança por excelência, não tomava partido. Apenas deixava-olivre para travar seus combates e sofrer seus reveses. Reconhecia seusesporádicos e isolados triunfos, mas nunca ficava a seu lado; às vezesporque se posicionava no campo contrário, em nome das necessidades darevolução; em outras oportunidades, porque simplesmente não partilha-va das teses de Guevara. 

Lance após lance, luta após luta, o Che foi entendendo que estava só,não contra Fidel, mas tampouco com ele. E como o caudilho estava em tudo,não contar com ele era carecer do essencial, do apoio indispensável para 

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O CORAÇÃO NAS TREVAS DECHE GUEVARA 

« 

Como disse Ahmed Ben Bella, "chegamos tarde ao Congo".1 ErnestoGuevara dedicou o antepenúltimo ano de sua vida a apoiar uma luta que játerminara, em um país esfacelado, no coração de um continente assoladopor rivalidades milenares e trágicas intervenções estrangeiras. Entre tantasoutras, a que colocou frente a frente os revolucionários cubanos comanda-dos pelo Che e os pilotos cubanos a serviço da CIA, a milhares de quilóme-tros da terra natal. Sim, houve uma rebelião no Congo; em seu conjunto, foi

a insurreição armada mais importante da África negra desde a luta pela inde-pendência.* Mas quando o Che empreendeu a viagem preparatória de suaexpedição ao Congo, o principal foco da nova revolta já havia sido vencido,esmagado por pára-quedistas belgas, mercenários rodesianos e sul-africanos,apoiados por aviões norte-americanos. "Operação Dragão Vermelho" foi onome dado a esse bem-sucedido ataque da ex-potência colonial e da novapotência imperial visando retomar a cidade de Stanleyville (atual Kisan-gani, no Zaire).** 

A crise eclodira em julho de 1964- Era o fim da frágil paz e da integri-dade territorial alcançadas a ferro e fogo em 1962 pelas Nações Unidas, 

(*) É preciso ressaltar a sequência dos fatos: a etapa da independência, da morte deLumumba e dos "gendarmes catangueses" já se encerrara havia quase cinco anos.  

(**) Os nomes do ex-Congo Belga mudaram por completo nos anos 70.0 próprio país,antes conhecido como Congo-Léopoldville, passou a chamar-se Zaire. A capital,Léopoldville, ganhou o nome de Kinshasa. A capital das províncias orientais, antes chama-da Stanleyville, foi batizada como Kisangani. Elizabethville passou a ser Lumumbashi eAlbertville, Kalemie. Empregamos a nomenclatura antiga por ser a vigente nos anos 60. 

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Washington e Bruxelas. Depois de afastado o risco de secessão do territóriominerador do Alto Katanga, a Organização de Unidade Africana (OUA) jánão tinha interesse em que os capacetes azuis fossem mantidos no Congo. Amissão da ONU, desgastada em uma operação cara e desacreditada, retirou-seem meados de 1964, deixando um vazio por onde se infiltraram rapidamente

as mesmas forças políticas e sociais já confrontadas do início da década.  Imediatamente, reavivaram-se as chamas da rebelião lumumbista no

Leste. Em le de janeiro de 1964, eclode uma rebelião dirigida por PierreMulele, exilado por algum tempo em Pequim e agora contando com o apoiodo regime maoísta. Foi "a primeira grande revolta camponesa em um paísafricano independente"2 ou, segundo um biógrafo e admirador, "a primeiragrande revolução popular contra o neocolonialismo na África pós-inde-pendente".' 

O primeiro-ministro congolês logo renunciou, e o presidente Kasavubunomeou para substituí-lo o desprestigiado ex-dirigente das guerras de inde-pendência Moise Tshombé, provavelmente respaldado pela Société

Générale de Bruxelas, órgão que exercia a tutela sobre a semicolônia con-golesa. Tshombe era desprezado pelos mandatários da OUA, em especial porsua facção mais radical — o chamado Grupo dos Seis, composto por Nasser,do Egito; Ben Bella, da Argélia; Nkrumah, do Gana; Sekou Touré, da Guiné;Nyerere, da Tanzânia e Modibo Keita, do Mali —,* que ainda o responsabi-lizava pela morte de Lumumba. A rebelião se expandiu para o Leste, dirigidapor antigos partidários de Lumumba e por um revolucionário de credenciaisduvidosas, Gaston Soumialot. Todos eles se organizaram, em outubro de1963, no Comité de Libertação Nacional (CLN), que receberia apoio da URSS,dos cubanos e da própria OUA. Desde princípios de 1964, o CLN estabelecerabases no vizinho Burundi, na margem oeste do lago Tanganica. Em 18 de ju-

nho de 1964, os rebeldes tomaram Albertville, um importante centro mi-nerador; em agosto, Stanleyville4 — a capital provincial que trazia o nome do jornalista do New York Herald, de fama livingstoniana. A estratégia do CLNde instalar-se no Burundi foi fundamental: depois da derrota do final do ano,apenas essa base rebelde permaneceria intacta. Ali desembarcou o Che, emabril do ano seguinte: era o verdadeiro fim do mundo. 

Existiam, portanto, duas rebeliões, duas direções e duas guerrilhas noCongo: a do CLN, no Leste e Norte, e a de Pierre Mulele, no Oeste. A  

(*) Segundo Ben Bella, esses dirigentes formavam um grupo à parte em todas asreuniões da OUA; consultavam-se à parte, conspiravam. (Ben Bella, op. cit.) 

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primeira contava com maior apoio africano e soviético; a segunda estavamais organizada, possuía maior densidade e coesão ideológica e talvez raízesmais profundas na sociedade congolesa. Mulele era um líder nato, o herdeirode Lumumba, se é que houve algum. Mas sua campanha nunca transcendeuos limites de sua base tribal — os bapendes e os bambundas — e regional —

Kwilu e o Noroeste do país. O CLN, em contrapartida, chegou a cobrir umterritório mais vasto, mas seus dirigentes ganharam desde o início uma mere-cida fama de corruptos, covardes e desunidos. O radicalismo de ambos osmovimentos era muito relativo. A direção do CLN mantinha relações tantocom o chanceler belga, Paul-Henri Spaak, como com o chefe da CIA no Con-go, Lawrence Devlin.5 Mesmo assim, era uma ameaça preocupante para osinteresses económicos belgas — simbolizados pela arquetípica UnionMiniére du Haut Katanga, dona secular da imensa riqueza mineral congole-sa —, para os fins geopolíticos dos Estados Unidos — que, em plena cam-panha para as eleições presidenciais, não podiam permitir um avançosoviético na África — e para os sul-africanos e catangueses — que temiam

uma revanche dos massacres perpetrados no início da década. A CIA rapidamente decidiu liquidar a rebelião, ajudada, entre outros,

por pilotos cubanos anticastristas, pela África do Sul — que enviou cente-nas de mercenários liderados pelo legendário Mike Hoare, o louco — e pelaBélgica, que mobilizou até 450 soldados, inicialmente como assessores edepois como combatentes. Em novembro de 1964, a campanha já encur-ralara os rebeldes em Stanleyville. Só faltava o golpe de misericórdia: a"Operação Dragão Vermelho", com 545 pára-quedistas lançados pela avia-ção norte-americana sobre a capital oriental do país. 

As consequências foram as previstas: um banho de sangue, incluindo oassassinato de milhares de congoleses por mercenários sul-africanos e o assas-

sinato a sangue-frio de cerca de cinquenta reféns ocidentais. A condenaçãointernacional foi ensurdecedora, mas o êxito militar indiscutível. Os rebeldes,chamados simbas, sobreviveriam na região durante anos, mas em fins denovembro já estavam em plena debandada e "em março de 1965, com a que-da do povoado de Watsa, na fronteira leste do Congo, a rebelião estava derro-tada [...] Depois da 'Operação Dragão Vermelho', o movimento deixou deconstituir uma ameaça séria".6 A tomada de Stanleyville e as atrocidades quese seguiram foram o objeto das eloquentes e apaixonadas denúncias do Chenas Nações Unidas. Muitos interpretaram a derrota de Stanleyville como umaetapa da luta; na verdade, a reconquista dos brancos assinalaria o fim, até 1996,da rebelião de massas, generalizada e viável no Congo oriental. 

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Em Kwilu, a revolta durou, formalmente, até 1968, quando PierreMulele entregou-se ao governo de Mohutu Tsetse Seko, nos termos de umapaz negociada, e foi prontamente esquartejado. Seus restos foram tragadospelo rio Congo e seus crocodilos. Na verdade, o mulelismo estava condena-do desde a cisão interna, de origem tribal, surgida em março de 1965: "Uma

grave derrota atingiu o prestígio de Mulele e a fé no futuro do movimento.A unidade do mulelismo rompeu-se. Muitos jovens abandonaram a guerri-lha. Foi a única decisão tribalista de Mulele, mas teve repercussões desas-trosas para ele".7 

Por tudo isso, Ben Bella lamentou o atraso da intervenção progressista.Por essa e muitas outras razões, a expedição do Che já nasceu derrotada. Semsaber, Guevara propunha-se a apoiar uma luta perdida, definitivamente sub- jugada por seus inimigos. Quando ele embarcou no Aeroporto Kennedy, emNova York, rumo a Argel, em 18 de dezembro de 1964, a nova insurreiçãono Leste congolês já terminara. Em toda a sua epopeia africana, ele remariacontra a maré, e foi essa sua grande falha. Ao mesmo tempo, baseava-se

numa série de eventos reais: as primeiras grandes mobilizações populares,armadas e insurrecionais contra o regime pós-colonial, em um país no cen-tro do continente, tão importante para todos que, de Washington a Pequim,todos se interessavam por ele e conspiravam para dominá-lo. Um país tãoingovernável e trágico que, trinta anos depois, se converteria na síntese donaufrágio da descolonização, devastado pela AIDS, a corrupção, a violência,a pobreza extrema, carente de qualquer razão aparente de ser. A região orien-tal dos chamados grandes lagos assistiria a algumas das mais cruéis tragédiasmodernas de fome, genocídio e migração em massa. Muitos dos atores de1965 continuam presentes em 1997, em novo papel dramático. 

Aparentemente, a viagem do Che pela África foi programada em Nova

York ou pelo embaixador cubano em Argel, Jorge Papito Serguera.* Ossoviéticos não foram consultados.** O comandante Guevara permaneceu 

(*)Um telegrama da embaixada dos Estados Unidos em Haia advertia, citando fontesholandesas em Havana, que nenhuma das missões locais dos países visitados pelo Che foraavisada de sua iminente chegada. (Department of State, Airgram AmEmbassy The Hague toDOS, African Traveis of Che Guevara, 16/2/65 (secreto). NSF, Country File, box 17, vol. 4,#71. Airgram, LBJ Library.) 

(**) Em uma conversa com Oleg Daroussenkov em Havana, a 8 de dezembro, vésperade sua partida para Nova York, o Che não mencionou sua intenção de seguir para a África.(Ver Oleg Darushenkov, "Nota da conversa de 8 de dezembro de 1964 com Ernesto Gue-vara", 10/12/64 (secreto), Arquivo Estatal da Rússia, op. cit., folio ne 5, lista ns 49, do-cumento 758.) 

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uma semana inteira em Argel, onde organizou o resto da viagem, que ines-peradamente se prolongou por quase três meses. Examinou com Ben Bella asituação da África; reuniu-se, em um primeiro encontro, com alguns diri-gentes congoleses e líderes dos movimentos de libertação nacional das coló-nias portuguesas, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Imediatamente

compreendeu que, no caso do Congo, haveria sérios problemas para retomara luta com alguma chance de vitória. O primeiro residia na unificação dasdireções, centralização do comando e coordenação das operações militares.Nos meses que se seguiram, o Che voltou repetidamente ao tema, sempre emvão, em inúmeras escalas nos oito países africanos que visitou. 

O segundo problema era igualmente complexo. Consistia em garantire compatibilizar a ajuda soviética e chinesa às facções em luta: Mulele, aju-dado pelos chineses, e o Comité de Libertação Nacional, pelos soviéticos. Oconflito sino-soviético não só se intrometia nos debates africanos, como àsvezes atrapalhava a ajuda, que não chegava com a rapidez e facilidade dese- jáveis. Derivava daí a terceira tarefa do Che: comprometer ao máximo os

demais dirigentes africanos — como Ben Bella e Nasser — para que com-pletassem a ajuda chinesa e russa aos rebeldes do Congo. 

Em 26 de dezembro, o Che partiu para Bamaco, capital do Mali, certa-mente por sugestão de Ben Bella, que considerava o chefe do Estado ma-linês, Modibo Keita, o mais antigo e respeitado membro do Grupo dos Seis.8

A visita não teve a importância esperada: o comunicado conjunto não foiassinado por um membro do birô político ou um ministro de maiorimportância. O presidente Keita costumava tirar férias durante o Natal, enão se promoveu nenhum ato público de massas nas ruas de Bamaco. Acobertura de imprensa foi escassa. Foi, sem dúvida, uma visita programadaem cima da hora. 

Em Mali, o Che frisou o erro cubano de ter se aproximado e alinhadodemais à URSS e à China. Foi o que afirmou ao ministro malinês que o rece-beu.1* Em le de janeiro, seguiu viagem para a República Popular do Congo(Brazzaville), onde anunciou que vinte jovens receberiam treinamento mi-litar em Cuba. Nesse momento criou-se um dos mais fortes laços de Cuba naÁfrica: meses mais tarde, chegaria a Brazzaville um contingente de tropascubanas comandado por Jorge Risquet, para integrar o corpo da guarda dopresidente Jean-François Massemba Debat. Parte dos soldados que acom-panharam o Che no Congo em abril de 1965 se incorporaria depois a essedestacamento, que ficaria em Brazzaville até muito tempo depois de Gue-vara ter deixado as terras africanas. Também permanecerá por muitos anos 

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a marca do encontro do Che com Agostinho Neto, chefe e fundador doMovimento Popular pela Libertação de Angola: até as tropas cubanasdeixarem a ex-colônia portuguesa, em 1992. 

Entre 7 e 14 de janeiro, o Che permaneceu na Guiné. Mantinha aliuma velha relação com Sekou Touré, talvez o líder africano mais simpático

à Revolução Cubana. A recepção foi mais efusiva que no Mali, exceto quan-do o cubano se incorporou à comitiva presidencial para uma entrevista como mandatário senegalês Leopold Senghor, no posto fronteiriço de Labe. Opoeta da negritude e seus colaboradores se "indignaram" com a presença deGuevara em conversações entre africanos. O Che reiterou a necessidade deapoio aos movimentos de libertação da África. Voltou a enfatizar aimportância da unidade no "combate ao imperialismo". Era preciso cons-truir a unidade congolesa e dos demais movimentos, garantir a proximidadecom os países socialistas — em especial os dois maiores. Essa última ideia,entretanto, era uma faca de dois gumes. Em um telegrama secreto, a CIAatribuía ao Che as seguintes intenções na África: 

Alertar seus amigos africanos para que não se aproximem demais dos comu-nistas soviéticos ou chineses [...] De acordo com Guevara, embora Cuba con-tinuasse socialista, os funcionários cubanos estavam muito descontentes como grau de ingerência em seus assuntos internos por parte da URSS e da China.Guevara disse que já era tarde demais para que Cuba fizesse algo a respeito, masnão para os africanos. Acrescentou que os cubanos estavam especialmentepreocupados com seus amigos argelinos e que partilhara essa preocupaçãodiretamente com Ben Bella.* 

Em Gana, além de longas conversações com Kwame Nkrumah, o caris-mático e corrupto líder tradicional da luta pela independência, o Che co-nheceu Laurent Kabila, o dirigente congolês da região vizinha ao lago Tan- 

(*) Central Intelligence Agency, Intelligence Information Cable, "Statements ofErnesto Che Guevara on the Primary Purpose of his Mission to África" (secreto). O telegra-ma cita informações datadas de até fins de dezembro de 1964 e traz a data de 15 de janeiro de1965. (NSF, Country File, Cuba, vol. 4, LBJ Library.) Sua veracidade foi confirmada: um mêse meio mais tarde o Che tornou pública, justamente em Argel, sua ira contra a União Soviéti-ca. A mesma advertência de Guevara para que se evitassem relações muitos estreitas com aURSS e a China reapareceria em um relatório da seção de Inteligência e Pesquisa do Departa-mento de Estado, assinado por seu diretor, Thomas Hughes, e dirigido ao secretário de Esta-do. Conhecendo-se Hughes e Adriãn Basora, que elaborava os informes sobre Cuba nessaépoca, é difícil conceber que dessem crédito a qualquer informação de fonte duvidosa. (VerÍNR/Thomas Hughes ibidem, 19/4/65. NSF, Country File, Cuba, Activities of Leading Per-sonalities, #18 memo, LBJ Library.) 

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ganica, onde três meses mais tarde estabeleceria finalmente sua base guer-rilheira.* Passados trinta anos, Kabila, o principal interlocutor do Che noCongo, encabeçaria a rebelião tutsi no Leste do Zaire e participaria da crisehumanitária de fins de 1996. Continuava em busca da libertação do Congo,para a qual pedira ajuda ao Che em 1965. 

Em fins de janeiro, Guevara voltou a Argel para trocar impressões comBen Bella e decidir o passo seguinte. A partir desse momento, começa ainclinar-se por uma participação direta no combate congolês; em uma entre-vista ao órgão oficial da FLN, Argel Ce Soir, reconhece que a crise no Congoé um problema africano, mas acrescenta que Cuba está moralmente com-prometida com a luta naquele país. A essa altura, o Che já havia definidoalgumas ideias centrais sobre a África, o Congo e seu próprio destino. BenBella recorda ter ouvido dele que "a África era o continente do mundo ondeo terreno era mais favorável a grandes mudanças. A África era onde se anun-

ciava um crescimento da luta antiimperialista".

10

 Para o Che, como explicaJorge Serguera, a África era uma espécie de terra de ninguém, onde asgrandes potências ainda não tinham feito uma nova partilha de esferas deinfluência e portanto era mais possível uma luta vitoriosa." E o Congo-Léopoldville era o país — ou, melhor dizendo, o território — onde as pers-pectivas pareciam mais promissoras. Graças à intensa guerrilha do Leste e àunificação das forças sob a égide do Comité Nacional de Libertação, haviapossibilidades reais de triunfo. E mais, com os Estados Unidos atolados noVietnã, as possibilidades de uma nova intervenção direta e maciça deWashington tornavam-se mais remotas. Por fim, embora o Congo carecessede uma saída para o mar, excetuando Cabinda, entre o Congo-Brazzaville e

Angola, fazia fronteira com muitos países: o Congo-Brazzaville, a Repúbli-ca Centro-Africana, o Sudão, Uganda, Zâmbia, Tanzânia, Ruanda-Burun-di (na época formando um só país). Era uma Bolívia africana, e não faltaramparalelos entre os dois países e as duas aventuras de Guevara. 

Para Serguera, outro elemento crucial na decisão de internar-se pelaÁfrica foi a situação geográfica e estratégica do continente. Segundo oembaixador cubano na Argélia — acusado de ter "embarcado" o Che naÁfrica, ao pintar-lhe um panorama excessivamente otimista12 —, Guevara 

(*) Ao menos assim recorda Oscar Fernández Mell, que conheceu Kabila em DarAssalaam e passou quatro meses com o Che no Congo. (Entrevista com o autor, Havana,24/8/96.) 

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apostou que a União Soviética toleraria um apoio cubano à luta e à re-volução na África, o que não acontecia em relação à América Latina. O êxitoafricano, por sua vez, poderia tornar Moscou mais receptiva a um apoiocubano à revolução latino-americana." Segundo Serguera, à medida que oChe avançava em sua aventura africana, foi se comovendo com a miséria, o

atraso, a opressão colonial e racial que desde o século XIX massacravam ocontinente africano. Também comprovou na prática a divisão das forçasprogressistas, a mediocridade das lideranças guerrilheiras e a possibilidadede influir realmente no desenrolar dos acontecimentos, mesmo com forçase recursos limitados. Mas ele subestimou dois fatores vitais: a possibilidadede os norte-americanos fazerem o mesmo, influenciando sensivelmentecom um pequeno investimento; e o fato de os conflitos internos das direçõespolíticas refletirem, indireta mas fielmente, rivalidades tribais ou étnicas.Tudo se complica quando se chega à ideia de "povo": em boa parte da África,onde se deram as sucessivas intervenções cubanas — Brazzaville, Angola,Etiópia (Eritréia e Ogaden) —, o "povo" não existe. Era falsa a ideia de que o

enfrentamento com a metrópole, ou com "o imperialismo", depois da des-colonização bastaria para unificar comunidades secularmente confrontadas,sem nenhum laço além de uma fronteira imposta pelo poder colonial. 

Durante esses meses, o Che fez duas escalas no Cairo: uma, muitobreve, em 11 de fevereiro, ao regressar da China; outra, de doze dias, emmarço, às vésperas de seu retorno a Cuba. Das conversações que teve comNasser conservam-se as anotações de Mohamed Heikal, publicadas um anodepois da morte do presidente.* Logo no início do primeiro encontro, Nas-ser enxerga no argentino "uma profunda angústia" e uma sombria tristezainterior. O Che a princípio não quis partilhar suas preocupações; apenascontou que ia à Tanzânia para estudar a situação dos movimentos de liber-

tação no Congo, mas Nasser sentiu que ele não manifestava grande entusias-mo. De volta da Tanzânia, acompanhado por Pablo Ribalta, o embaixadorde Cuba em Dar Assalaam, o Che confidenciou que percorrera os acampa-mentos guerrilheiros na zona tanzaniana do vértice Congo-Tanzânia-Burun-di. Resolvera partir para o Congo e liderar ele próprio a ação das tropascubanas junto aos combatentes congoleses. "Quero ir ao Congo porque é hojeo lugar mais revolucionário do mundo. Com a ajuda dos africanos, através do 

(*) Mohamed Heikal, The Cairo ducuments, DouMeday & Company, Inc. Garden City,Nova York, 1973. Convém ler o texto de Heikal com precaução, não porque ele invente, masporque a maneira como foi escrito pode induzir a uma imagem distorcida. Em todo caso, osentido geral coincide com outros testemunhos sobre o estado de ânimo do Che na época. 

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Comité na Tanzânia, e com os batalhões de cubanos, acho que podemos gol-pear os imperialistas no coração de seus interesses em Katanga." 

Nasser manifestou seu assombro e procurou fazê-lo desistir da ideia.Insistiu em que um dirigente branco e estrangeiro comandando negros naÁfrica poderia parecer uma paródia de Tarzan. O Che procurou convencer

o presidente da República Árabe Unida a prestar ajuda ao Congo. Nasseraceitou colaborar, mas sem enviar tropas, argumentando que seria um erro:"Se você vai ao Congo com dois batalhões cubanos e eu envio junto umbatalhão egípcio, isso vai ser chamado de ingerência estrangeira e trará maisprejuízos do que benefícios". Ao fim de longas e repetidas conversações,Nasser concluiu que o Che não estava muito convencido de sua decisão:"Pensei em ir ao Congo, mas vendo o que acontece ali inclino-me a concor-dar com seu ponto de vista de que seria prejudicial. Também pensei em ir aoVietnã [...]". No último encontro, o Che esclareceu que, de qualquermaneira, não ficaria em Cuba. A obsessão do Che pela morte impressionouo presidente egípcio. Segundo Heikal, ele expôs uma tese que era quase um

aforismo: "O momento decisivo na vida de cada homem é a hora em quedecide enfrentar a morte. Se a enfrentar, será um herói, com a vitória ou semela. Pode ser um bom ou um mau político, mas se não enfrentar a morte, nun-ca passará de um político". 

Parte desse testemunho bate com o de Ben Bella, que também recordao Che comunicando-lhe sua intenção de incorporar-se à luta no Congo. Oargelino também lembra que se empenhou em convencer Guevara a desis-tir de seu delírio ou, pelo menos, não assumir uma posição de profeta nemares de messias junto à população africana, já que a questão racial possuíafacetas muito delicadas: "A situação na África negra não era semelhante àque imperava em nossos países. Nasser e eu advertimos o Che do que podia

acontecer".14 Guevara teve várias reuniões no Cairo com alguns dirigentes congole-

ses, exilados desde a derrota de novembro. Conversou várias vezes com Gas-ton Soumialot, na ilha de Zamalek, onde ele vivia; voltou a encontrar Lau-rent Kabila, um dos vice-presidentes do Comité de Libertação Nacional; ooutro era Pierre Mulele, que não saía do Congo. A ausência de Mulele e oaniquilamento da frente de Stanleyville se contrapunham à necessidadeimperiosa de justificar o recebimento de dinheiro e de ajuda para a luta no seuconjunto. A solução foi reforçar ao máximo a frente de Kabila, onde faltavamcombatentes, armas e moral revolucionário, tendo como única vantagem aretaguarda da Tanzânia. Quando o Che visitou os acampamentos, em mea- 

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dos de fevereiro, comprovou as complicações inerentes àquela luta e as fero-zes rivalidades entre grupos distintos. Mas não assimilou inteiramente o fatode que a margem ocidental do lago Tanganica mal merecia o nome de frentede combate. Por isso, insistiu na ideia de enviar tropas cubanas para treinar ereforçar os congoleses, mas não para combater com eles, nem muito menos

para substituí-los, como aconteceria. O Che esperou meses a fio no Congo,aguardando que Laurent Kabila conduzisse os combates. Mesmo ao deixar opaís, ainda estava confuso quanto ao que acontecia em sua própria frente decombate, embora já compreendesse o que ocorrera nas demais regiões: "Háduas áreas onde se pode dizer que existe alguma revolução organizada: esta emque estamos e uma parte da província onde está Mulele, que é a grande incóg-nita. No resto do país, há apenas bandos isolados que sobrevivem na selva.Perderam tudo sem combater, como sem combater perderam Stanleyville".15 

A luta na região onde o Che se internou dependia, na realidade, quaseexclusivamente da presença dos cubanos. Por sua vez, a rebelião de Mulele viviauma prolongada agonia. A revolução congolesa terminara antes de começar. 

Três testemunhas cubanas confirmaram a disposição do Che de lançar-seà aventura congolesa antes de voltar a Havana. O primeiro é Pablo Ribalta, queGuevara enviara à Tanzânia como embaixador, em fevereiro de 1964- Ribaltanão vacila em afirmar que desde sua participação nas Nações Unidas o Che esta-va disposto a engaj ar-se a fundo na luta de algum país.'6 Conforme o testemunhode Papito Serguera, "quando ele deixou Argel, já havia uma conspiração emmarcha; ele já estava decidido a ir ao Congo".17 E Benigno — o coronel DarielAlarcón Ramírez, um dos três sobreviventes da guerrilha da Bolívia, que assu-miu um papel decisivo na vida do Che desde aquele momento até o dia de suacaptura, tornando-se em uma testemunha valiosíssima dos dois anos seguintes—narra, em seu livro, que na época ele já estava comissionado na África. Benig-

no encontrou o Che na Argélia em dezembro de 1964, por ocasião de um aci-dente com um dos homens de sua escolta. Quatro meses depois, incorporou-seà expedição ao Congo. Para Benigno, foi na Argélia que o Che decidiu ir para oCongo: "Eu acho que ele tomou a decisão na Argélia, porque foi naquelesmomentos que o Che começou a ser acusado de trotskista e maoísta. Da Argéliaele me mandou para o Congo: 'Vá com Ribalta e espere por mim lá' ".*  

E evidente, portanto, que o Che resolveu comprometer-se pessoal-mente com a luta no Congo durante sua longa peregrinação africana, em- 

(*) Dariel Alarcón Ramírez, Benigno, entrevista com o autor, Paris, 3/11/95. Benignofoi nomeado chefe da escolta pessoal do Che quando este era presidente do Banco Nacionalde Cuba. (Revista Habanera, Havana, jan. 1995, p. 16.) 

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bora já revelasse uma clara vontade de ficar longe de Cuba. Faltavam ape-nas três coisas para consumar sua decisão. Uma foi sua estadia em Pequim,em final de janeiro. Outra, sua intervenção no seminário de planejamentorealizado em Argel a 24 de fevereiro de 1965, célebre por marcar seu rompi-mento com a URSS. Finalmente, foi decisiva sua passagem pela Tanzânia e os

acampamentos dos supostos guerrilheiros congoleses. A viagem à China se deu num contexto de tensões crescentes entreHavana e Pequim. Desde o ano anterior, saltava à vista o crescente ali-nhamento de Fidel Castro com as posturas russas no conflito sino-soviético.A neutralidade anterior transformou-se primeiro em esforço mediador— avisita da delegação de partidos comunistas encabeçada por Carlos RafaelRodríguez, que recebeu o repúdio de Mao — e a seguir numa virtual identi-ficação cubana com Moscou. A escolha cubana era cada vez mais patente.A mudança ocorrida entre 1964 e 1966 foi assim resumida pelo mais desta-cado estudioso da política externa cubana: 

Apenas sete dias após o Che Guevara ter denunciado em Argel o pacto

soviético com o capitalismo, Raul Castro viaja a Moscou, para assistir a umareunião mundial de partidos comunistas. A reunião foi boicotada pela China,consumando sua exclusão do movimento comunista internacional. Cuba,que não respondera a outros convites para reuniões pró-soviéticas interpar-tidárias, em março e junho de 1964 finalmente o aceitou, alinhando-se à URSScontra os chineses. Em 13 de fevereiro (dois dias antes do retorno do Che aCuba — JGC), Fidel Castro advertiu os cubanos de que "a divisão perante oinimigo nunca foi uma estratégia correta, uma estratégia revolucionária".Seguiu-se uma rápida deterioração das relações sino-cubanas, concomitantea uma provisória melhoria das relações soviético-cubanas. Em meados de1965, a China estava invadindo Cuba com sua propaganda, dirigida sobretu-do aos militares cubanos [...] Anunciou que compraria menos açúcar que oprevisto e entregaria menos arroz que o combinado. Negou-se a conceder maiscréditos a Cuba [...] Em 2 de janeiro de 1966, na inauguração da chamada Tri-continentat, Castro denunciou o governo chinês.* 

(*) J orge Domínguez, To make a worid safe for revolution: Cubas foreign policy , HarvardUniversity Press, Cambridge, 1989, pp. 68-9. Essa também era a opinião do Departamentode Estado em Washington: "No inverno de 1964-5 Cuba passou definitivamente para o ladoda URSS na disputa sino-soviética [...] A URSS conseguiu atrair Castro para suas posições emquatro temas-chaves: relações com os chineses, relações com os Estados Unidos, revoluçãona América Latina e problemas económicos cubanos". (Ver "Thomas Hughes to The Se-cretary", INR Research Memorandum 21, The Cuban Revolution: Phase Two (secreto),10/8/65,pp. 9-10.NSF, Country File,Cuba, W. G. Bowdlerfile, vol. I,#46 memo, LBJ Library.) 

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A reunião dos partidos comunistas de novembro, em Havana, teveconsiderável importância tanto para os soviéticos como para os cubanos.Por um lado, Cuba obteve uma conquista nada desprezível: um apoio maisconsistente dos partidos comunistas da América Latina à revolução e aoregime de Havana.18 Se recordamos os contundentes comentários do Che

sobre a falta de compromisso desses partidos com a epopeia cubana,podemos avaliar a importância da decisão comunista. Em contrapartida, ossoviéticos e os dirigentes dos partidos latino-americanos arrancaram deCuba duas concessões de primeira grandeza. Para começar, a partir daquelemomento, a coordenação e a aliança dos grupos de inspiração cubana nocontinente se realizaria através dos partidos locais, com o objetivo depreparar amplas frentes políticas e vastas campanhas continentais. Emsegundo lugar, a conferência aprovou (no comunicado da reunião) uma vi-gorosa condenação das "polémicas públicas e atividades facciosas", ou seja,dos chineses e seus adeptos na América Latina.19 Fidel Castro pode ter con-siderado que o verdadeiro sentido da conferência era evitar as divisões e

chamar à unidade sem tomar partido. Mao e os comunistas de Pequim,porém, a encararam de modo muito diferente, como parte da ofensiva "revi-sionista" soviética. 

Alguns latino-americanos e possivelmente os próprios cubanos com-preenderam que uma definição tão explícita poderia acarretar problemascom os chineses e tiveram a ousadia de viajar a Pequim, procurando reduzir oimpacto da reunião. Mas, talvez devido à participação de velhos comunistascomo Rodríguez e os chilenos, a missão enviada à China em novembroaumentou ainda mais a irritação chinesa e levou a mediação ao fracasso. Piorainda, ocorreram verdadeiras altercações entre Rodríguez e Mao Tse-Tung,quando este, falando sobre a América Latina, tocou de passagem o tema da

Revolução Cubana. Mário Monje, secretário-geral do Partido Comunista daBolívia, ainda recorda os comentários depreciativos do Grande Timoneiro ea reação do cubano: "Mao disse que o ocorrido em Cuba era uma manifes-tação nacionalista pequeno-burguesa; Carlos Rafael levantou-se e declarouque não podia permitir que se falasse assim da Revolução Cubana, nem quese pusesse em dúvida o papel do comandante Fidel Castro".20 

Isso não impediu que o Che e os cubanos, cada qual com seus motivos,empreendessem um segundo esforço mediador para defender os interessescubanos e, na pior das hipóteses, os do próprio Che. Ele tinha várias razõesdiretas e imediatas para tentar isso. Queria verificar se a responsabilidadepelo confronto de novembro, entre Mao e a delegação encabeçada por seu 

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principal adversário em Cuba, Carlos Rafael Rodríguez, cabia mesmo aoschineses e não ao sobrevivente do PSP, como acreditara originalmente.21

Castro confidenciou a Monje em Havana que "nós escolhemos o Cheporque sabemos do conflito que houve entre a delegação latino-americanae Pequim. Enviamos o mais próximo dos nossos para investigar o ocorrido,

e ele confirmou a versão que vocês apresentaram na época. Ninguém men-tiu. O Che comprovou o enfrentamento que houve, e ponto final: a culpaera mesmo dos chineses".22 

Guevara sabia que seria muito difícil livrar-se do estigma de pró'chinês. Um conflito declarado e virulento entre Pequim e Havana — comoocorreu nos meses seguintes — acarretaria para ele uma série de problemasmuito graves, talvez insolúveis, que ele queria evitar a todo custo. Aambiguidade decorrente de ser o único cubano pró-chinês — ou, pelomenos, não-antichinês —, num contexto de pleno conflito político-ideo-lógico, podia resultar intolerável.* Portanto, era melhor evitar a con-frontação a ser tragado por ela. 

Por último, o Che compreendia claramente que qualquer iniciativacubana na África, ou pelo menos no Congo e na Tanzânia, precisaria neces-sariamente da aprovação da China. Pequim acumulara uma experiênciavaliosíssima na região. A assistência técnica que prestara à construção daferrovia da Tanzânia ao Atlântico, por exemplo, fora muito bem recebida.Nyerere nutria um afeto sincero pelos dirigentes chineses — Chu En-Laivisitaria Dar Assalaam em outubro de 1965 — e Pierre Mulele, por sua vez,era o líder congolês mais importante e mais pró-chinês. Sem o consenti-mento chinês, uma incursão africana não parecia possível nem para Cuba,nem para o Che. 

Assim, em fins de janeiro de 1965, iniciou-se em Havana uma nova

missão mediadora, encabeçada pelo secretário de organização do novo par-tido cubano, Emilio Aragonês, amigo e colaborador do Che, e OsmanyCienfuegos, homem da absoluta confiança de Fidel, excluindo ostensiva-mente qualquer membro do velho PSP. Depois de aguardar por mais de um 

(*) Não é preciso dizer que os chineses e os latino-americanos pró-chineses não lhefacilitavam as coisas. Um relatório do Serviço de Informação militar dos Estados Unidos assi-nalava, em março de 1965, como um grupo pró-chinês do Peru — o Movimento de UnidadeReformista — difundiu entre seus militantes o ensaio do Che, La guerra de guerrillas: un méto-do, com o seguinte título adicional: Una interpretación de Ia Segunda Declaraáón de Ia Habana.(Dept. of Defense Intelligence Report, ns 2230027265, Cuban-Supported Politícal Subver-sive Activity (secreto), Miami, 25/3/65, copy LBJ Library.) 

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mês o retorno do Che a Argel, onde ele deveria estar, segundo os organi-zadores da viagem — a equipe de Manuel Pifleiro, o Barbaroja, do Ministériodo Interior de Havana —, Aragonês preferiu aguardá-lo em Paris.* Depoisde alguns dias, o Che uniu-se a ele e, após uma breve estadia na capitalfrancesa, descansando e fazendo contatos, eles embarcaram para Pequim via

Paquistão, pois uma escala em Moscou poderia ofender os chineses. Segundo as versões oficiais, a viagem dos cubanos terminou emcatástrofe. Mao recusou-se a receber a delegação. As discussões, conduzidasdo lado chinês por Liu Shao-Shi, presidente da República, e Deng Xiao Ping,secretário-geral do partido, não levaram a nada. Com isso, descartou-se porcompleto a possibilidade de uma reconciliação com a URSS ou de um abran-damento das polémicas. Chu En-Lai concordou apenas com o envio àTanzânia de um navio carregado de armas, destinadas aos combatentes con-goleses que seriam treinados pelos assessores cubanos. Talvez os cubanos nãotenham percebido — nem tinham como perceber — que o país mais popu-loso da Terra estava às vésperas de uma das convulsões que o sacodem com

extraordinária frequência: a Grande Revolução Cultural proletária, queMao desencadearia poucos meses depois, num comício na Cidade Proibida.Nesse contexto, era impensável qualquer entendimento com os russos oumesmo com Cuba.** 

A versão de Emilio Aragonês sugere que as conversações foram um tan-to mais complexas. Os chineses logo apresentaram sua opinião básica: "OPartido Comunista Cubano se colocara equivocadamente do lado dossoviéticos. Segundo eles, nós não éramos maus, éramos bons comunistas,mas fomos confundidos. Nós não aceitávamos isso, sustentávamos queninguém nos confundira, que eles é que se deixaram confundir".21 

Apesar do cuidado com que o Che preparou sua intervenção e da 

(*) Emílio Aragonês, entrevista, op. cit. O comentário de Aragonês de que Pineirorealmente não sabia onde estava o Che ou quando chegaria a Argel, confirma que Guevaraplanejou sua turnê pela África quase que só com Serguera, informando apenas o indispen-sável ao governo de Havana sobre seus deslocamentos e passos seguintes. 

(**) Segundo a conversação de um agregado da embaixada da URSS em Havana, Prons-ki, com Anastasio Mancilla, o professor de economia do Che, este "manifestou uma profun-da satisfação com a explosão da primeira bomba atómica dos chineses, em outubro de 1964.Aquilo era bom, opinou Guevara, pois tendo a bomba a República Popular da China podiafalar com outros países na qualidade de grande potência. Guevara inclusive pronunciou-secontra a posição da URSS de não transferir à China o segredo do átomo. Isso obrigara o povochinês a fazer grandes sacrifícios". E. Pronski, Nota da conversação de 6 de novembro de1964, Archivo Estatal de Rusia, op. cit., folio 5, lista 49, documento 759. 

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grande habilidade de sua fala, tudo foi em vão. Diante daquela excelenteargumentação com tão sólidos fundamentos, os chineses, segundo Ara-gonês, não tiveram outro remédio senão se calar e concordar. Os cubanosdeixaram a reunião exultantes, convencidos de ter transformado por com-pleto a falsa impressão chinesa de que estariam alinhados com a URSS. Tive-

ram uma grande surpresa no dia seguinte, quando Deng Xiao Ping repetiu amesma ladainha de sempre, como se nada tivesse ocorrido na véspera. Oscubanos ficaram atónitos, como recorda Aragonês. Ainda não compreen-diam o estilo oriental de negociar, que consiste em reiterar a mesma colo-cação, diga o que disser o interlocutor. O fato de ter ganhado alguns debatesnão impediu que o Che perdesse a discussão. Por exemplo, quando Liu Shao-Shi recriminou o governo cubano por ter convidado Gilberto Vieyra, o lídercomunista colombiano que comparara Mao a Hitler, a visitar Havana, oChe replicou, com sua refinada ironia portenha: "Se vocês reabilitaram Pu-Yi, o último imperador, por que não poderíamos reabilitar um pobre comu-nista colombiano?". A farpa não teve resposta, nem consequências.24 

Apesar das divergências de fundo, os anfitriões brindaram seus convi-dados com a tradicional e esplêndida hospitalidade local. Sempre os aten-deram bem e, no final, chegaram a insinuar que, se solicitassem uma audiên-cia com Mao, a resposta seria afirmativa. No fim da última reunião, oschineses perguntaram se o Che e seus acompanhantes tinham algum outrointeresse além de visitar um trecho da Grande Muralha. Na prática, estavamoferecendo uma entrevista com Mao, na qual seriam absolvidos. Mas paraos visitantes isso implicaria em reconhecer que o Partido ComunistaCubano, o partido revolucionário, fora "confundido" pelos revisionistas.Como recorda Aragonês, "o Che, Osmany e eu decidimos não pedir maisnada, para não lhes dar esse gosto".25 Talvez tenham cometido um erro. 

De Pequim o Che foi a Dar Assalaam, onde chegou em 13 de fevereiro.Foi recebido no aeroporto por um ministro de menor importância e aimprensa noticiou sua visita nas páginas internas. Talvez Julius Nyerere jásuspeitasse do que aconteceria. Logo ao chegar, o Che comprovou a primeiraconsequência de seu fracasso na China: o jantar oficial oferecido pelochanceler tanzaniano contou com a presença de todos os embaixadoresafricanos e do representante soviético, mas ninguém da embaixada chinesacompareceu.26 Fosse como fosse, o argentino começou imediatamente a dis-cutir com os dirigentes congoleses as modalidades de uma possível ajudacubana. Declarou a Laurent Kabila que, na sua opinião, o problema do Con-go dizia respeito ao mundo inteiro, não apenas à África. Em consequência, 

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"ofereci em nome do governo uns trinta instrutores e as armas de quepudéssemos dispor. Ele aceitou com grande satisfação. Recomendou urgên-cia no envio de ambos os itens, solicitação repetida por Soumialot em outraconversa. Este último observou que seria conveniente se os instrutores fos-sem negros".27 

Para formar uma ideia própria da verdadeira disposição de luta dos/ree-domfighters* africanos, o Che realizou diversos encontros com eles. Uma dasreuniões transformou-se em uma sessão tumultuada, com mais de cinquentaparticipantes de uma dezena de países. O Che respondeu com cautela efirmeza a suas inflamadas solicitações de ajuda:

Analisei os pedidos que quase todos tinham feito de ajuda financeira e treina-mento de homens. Expliquei-lhes o custo de treinar um homem em Cuba, oinvestimento de dinheiro e de tempo e a pouca garantia de que se tornasse umcombatente útil ao movimento [...] Propus, portanto, que o treinamento nãose realizasse em nossa longínqua Cuba, mas no próprio Congo, onde se lutavanão contra um fantoche qualquer como Tshombé, mas contra o imperialismonorte-americano [...] Falei-lhes da importância fundamental da [...] luta delibertação do Congo. A reação foi bastante fria, embora a maioria não tenhafeito quaisquer comentários. Houve inclusive os que tomaram a palavra paracriticar-me violentamente por aquele conselho. Acrescentaram que seuspovos, maltratados e humilhados pelo imperialismo, reclamariam caso se pro-duzissem vítimas não da opressão em seu próprio país, mas de uma guerra paralibertar outro Estado. Tratei de mostrar-lhes que ali não se tratava de uma lutaconfinada em fronteiras, mas de uma guerra contra o opressor comum,onipresente [...] mas ninguém entendeu assim. Ficamos com a impressão deque há muito que caminhar na África antes de alcançar uma verdadeira con-dução revolucionária. Mas tivemos a alegria de encontrar gente disposta acontinuar lutando até o fim. A partir daquele encontro, impunha-se a tarefa

de selecionar um grupo de cubanos negros e enviá-los, voluntariamente, éclaro, para que reforçassem a luta no Congo.28 

Existiam precedentes: desde 1961, Cuba treinava revolucionários deZanzibar. Em um campo do exército popular da Argélia, nas montanhas deKabila, dez técnicos cubanos treinavam argelinos e africanos de váriosoutros países, inclusive a Tanzânia.29 As inúmeras discussões do Che com osdirigentes congoleses na Argélia, e com outros líderes africanos no Mali,Brazzaville e Conakry também estabeleceram um precedente. Aos poucos,configuraram-se as condições e o conteúdo da assistência cubana: o envio de

(*) Em inglês no original: combatentes da liberdade. (N. T.)

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trinta assessores — que não teriam papel algum nos combates —, armas euma equipe de comunicações. Cuba também se prontificou a colaborar paraa coordenação e unificação dos diferentes grupos congoleses e, casonecessário, a buscar o apoio de governos africanos como a Argélia e o Con'go-Brazzaville.* Em nenhum momento colocou-se a possibilidade de o

próprio Che dirigir a operação. Ao contrário, tentar-se-ia evitar a partici-pação de qualquer figura destacada para não atrair a atenção nem provocarrepresálias das potências ocidentais. A partir desse momento, os futuros con-selheiros cubanos começaram seu treinamento na ilha. Rafael dei Pino recor-da que, já em janeiro de 1965, foi instruído a enviar um grupo de oficiaisnegros da unidade aérea de Pinar dei Rio a uma unidade especial.'0 Ainda nãose sabia bem quem iria, nem para quê, nem exatamente para onde; mas a ope-ração já estava em marcha, faltavam apenas algumas decisões pontuais. 

O Che regressou a Argel para participar, no início de março, da Con-ferência Afro-Asiática de Solidariedade. Decidiu voltar à terra de Ben Bel-la também para rever com ele sua experiência em Pequim e decidir o que fa-

zer. E provável que, em Pequim, Guevara ainda não tivesse tomado a decisãode partir para o Congo. Em seu diário, ao explicar por que não informaraLaurent Kabila de sua intenção de comandar ele próprio as operaçõescubanas, afirma que ainda não havia decidido se iria mesmo ao Congo." Malchegara à metade de sua odisseia, e vários fatos decisivos ainda estavam poracontecer. Um deles foi o discurso de rompimento com a URSS, em Argel, a25 de fevereiro. 

Um fator que provavelmente influiu no conteúdo e no tom do pro-nunciamento de Argel foi a assinatura em Moscou, em 17 de fevereiro, deum acordo de longo prazo entre Cuba e a URSS, sobre comércio e meios depagamento. O texto previa o incremento do comércio bilateral e um con-

siderável aumento do fornecimento de açúcar por parte de Cuba. As nego-ciações se prolongaram por três meses, sugerindo a existência de tensões econtrariedades de ambos os lados. Os cubanos se queixaram em particulardos elevados preços de venda das máquinas e equipamentos soviéticos. 

(*) O Serviço norte-americano de Informação militar sugeriu outra versão do acordo.Segundo ela o Che "propôs a entrega ao governo de Cuba dos cubanos (exilados) aprisiona-dos no Congo. Cosime Toribio, um piloto cubano exilado, era prisioneiro dos rebeldes con-goleses. Castro instruiu Guevara para que providenciasse a entrega de Toribio a Cuba comocondição para o envio de quatrocentos a quinhentos homens para combater junto aosrebeldes do Congo". (Department ofDefenselntelligenceReport.n» 2210002365, Proposedooc Aid to Congo Rebels, 23/3/65 (secreto), Miami.) 

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Inclusive circularam rumores de que Castro afastara o negociador cubano, oeconomista Raul Maldonado. Mas Fidel não tinha saída, apesar das queixasdo Che e da arrogância de Moscou. 

O discurso do Che em Argel começa com a reafirmação da já tradi-cional tese guevarista: 

Desde que os capitais monopolistas controlam o mundo, mantêm na pobrezaa maioria da humanidade, repartindo os lucros entre o grupo de países maisfortes. O nível de vida desses países alimenta-se da misétia dos nossos. Por-tanto, para elevar o nível de vida dos povos subdesenvolvidos é preciso lutarcontra o imperialismo. E toda vez que um país se desliga da árvore imperialista,está não só ganhando uma batalha parcial contra o inimigo fundamental, mastambém contribuindo para sua real debilitação [...].'2 

Até aí, nada de novo ou muito importante. Porém, em seguida o Chelança uma autêntica catilinária contra os países socialistas: 

O desenvolvimento dos países que iniciam agora o caminho da libertaçãodeve custar aos países socialistas [...] Não se deve mais falar de um comércio debenefício mútuo baseado nos preços que a lei do valor [...] impõe aos paísesatrasados. Como pode haver "benefício mútuo" vendendo aos preços do mer-cado mundial as matérias-primas que custam suor e sofrimento sem limites aospaíses atrasados e comprar aos preços do mercado mundial as máquinas pro-duzidas em grandes fábricas automatizadas [...]? Se estabelecermos esse tipo derelação entre os dois grupos de nações, devemos convir que os países socialis-tas são, em certa medida, cúmplices da exploração imperial [...] do caráterimoral do câmbio. Os países socialistas têm o dever moral de liquidar suacumplicidade tácita com os países exploradores do Ocidente." 

O Che formula em seguida uma série de propostas, mais ou menos pre-cisas e utópicas, que em seu conjunto equivalem a um chamamento à soli-

dariedade dos países socialistas para que financiem o desenvolvimento doTerceiro Mundo e a uma série de denúncias não tão veladas ao comporta-mento do bloco socialista. A seguir, ele volta ao tema das relações com ospaíses capitalistas, para advertir sobre a ilusão dos investimentos conjuntosou da concorrência entre países vizinhos do mundo em desenvolvimento.Conclui com uma apaixonada e eloquente exortação a "institucionalizarnossas relações", ou seja, criar algum tipo de união entre os países do TerceiroMundo e os do bloco socialista, não sem antes tocar o tema que mais o preo-cupa no momento: as armas destinadas às lutas de libertação. Ele investenovamente contra os países socialistas, embora reconheça que, nesse pontoem particular, seu comportamento para com Cuba foi sempre exemplar: 

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Se é absurdo que um diretor de empresa de um país socialista em guerra vacileem enviar os tanques que produz para um front sem ter garantias de pagamen-to, não é menos absurdo calcular-se a possibilidade de pagamento de um povoque luta pela libertação [...] As armas não podem ser mercadoria em nossosmundos. Elas devem ser entregues sem custo algum, nas quantidadesnecessárias e possíveis, aos povos que as pedem para disparar contra o inimigo

comum. É esse o espírito que levou a URSS e a República Popular da China abrindar-nos com sua ajuda militar [...] Mas nós não somos os únicos.'4 

Para Ahmed Ben Bella, o Che sabia perfeitamente o que fazia.* Tinhaplena consciência do impacto que causaria em diversos círculos e dos proble-mas que isso causaria a Fidel Castro e à Revolução Cubana. Não podiadesconhecer as implicações de sua intervenção e as repercussões que ela teria.Os soviéticos já o tinham na mira. Sua real ou suposta simpatia pelos chine-ses, sua viagem a Pequim, suas andanças pela África e sua tenaz oposição àsrecomendações russas para a economia cubana tinham despertado grandeanimosidade em Moscou. Também devia estar ciente da aproximação entreCuba e a URSS desde o início de sua peregrinação pelo mundo, em princípiosde novembro. Compreendia perfeitamente que suas críticas à União Soviéti-ca cairiam em Havana como um balde de água fria e causariam um sério con-fronto com Fidel Castro. O que ele provavelmente não calculava era a inten-sidade da reação. Mas podemos concluir que, tal como no México em 1956 eem Nova York, os rompantes do Che encobriam um inconsciente à flor dapele. A provocação era sua forma predileta de expressar-se em momentos demaior tensão. Diante do risco de cair na incerteza, sua saída era a definiçãoexacerbada, extrema, desnecessária. Pode-se até ler o discurso de Argel comoum ato provocador, friamente premeditado, mas é inegável que foi concebidono limite entre a reflexão e a angústia. 

Durante os dois dias frios e escuros de uma escala involuntária emShannon, Irlanda, em 13 e 14 de março, a caminho de Cuba, o Che pôderefletir sobre seu futuro. Rafael dei Pino pilotava o Britannia da CompanhiaCubana de Aviação enviado para trazê-lo. O Che jamais viajava só, masdessa vez ninguém o acompanhou. Osmany Cienfuegos vinha no mesmovôo, mas os dois sequer conversaram, porque este justo voltava da reuniãopreliminar para uma nova conferência dos partidos comunistas em Moscou.O avião demorou a chegar à Irlanda e ali sofreu uma avaria. Por fim, Gue- 

(*) "Discutimos o discurso a noite inteira. Ele tinha plena consciência do que iria di-zer; era um homem extremamente simpático, mas muito dogmático e teimoso em suasposições ideológicas." (Ben Bella, entrevista, op. cit.) 

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vara procurou Del Pino para conversar, e quando este lhe perguntou — "E aÁfrica?" —, respondeu: "É foda fazer algo na África; as pessoas são tão difí-ceis, é tudo tão diferente [...]". Começou a explicar que os africanos aindanão possuíam um espírito nacionalista, porque cada tribo tinha seu chefe,seu pedacinho de terra e sua nação, embora vivessem no mesmo país. E

arrematou: "É muito difícil, mas há a possibilidade de fazê-los sentir a re-volução, porque os cubanos têm essa facilidade [...]".* A situação económica de Cuba melhorara em relação ao ano anterior.

Mesmo o Departamento de Estado, em Washington, identificou váriossinais de aumento da safra e de um desempenho económico menos sofrível. '5

Aos poucos superavam-se as circunstâncias que tinham impedido o Che departir para a Argentina um ano antes. Embora tendo perdido batalhas ideo-lógicas e de política económica, ele também tinha pelo menos a satisfaçãode ver que seus adversários tampouco haviam vencido. Carlos RafaelRodríguez acabava de ser removido da direção do INRA. Além de Fidel Cas-tro, presidente do Instituto, fora designado para sua direção um jovem

fidelista, Raul Curbelo. O Che podia ir embora se quisesse. Tinha fortes motivos pessoais epolíticos para fazê-lo. Sua marginalização da direção económica era patente: já não participava das negociações com os soviéticos, nem da determinaçãodos rumos da política económica, e todas as suas teses estavam praticamentederrotadas. Em março circulou o rumor de que seria nomeado ministro deRelações Exteriores, devido ao adoecimento de Raul Roa, o ministro emexercício.** Essa versão não parece muito verossímil: depois da acusaçãolançada pelo Che contra a URSS na Argélia, dificilmente ele poderia assumiras relações internacionais de um país socialista. É mais plausível a interpre-tação de Saverio Tuttino, correspondente de L' Unha em Cuba. Além de ser 

(*) Rafael dei Pino, entrevista, op. cit. Cienfuegos acompanhara Raul Castro aMoscou; a distância que, segundo Del Pino, prevaleceu entre ele e o Che durante o vôo seriatalvez um prelúdio do que ocorreria ao chegarem em Havana. 

(* *) O rumor chegou a ter eco em dois telegramas secretos, das embaixadas inglesas emHavana e em Washington, ambos para o Foreign Office. O segundo telegrama assinala que ainformação provém do Departamento de Estado; no primeiro, os ingleses em Havanaatribuem pouca credibilidade ao boato. (Ver Lord Harlech to Foreign Office, n2 581,10/3/65(secreto), FO/371/AK1015, Public Records, op. cit., e Mr. Watson to Foreign Office, n9 186,13/3/65 (secreto), For/317/AK 1015, ibidem. Também existe um telegrama norte-americanoa respeito: Central Intelligence Agency, Intelligence Information Cable, "Alleged CurrentActivity of Che Guevara" (secreto), 2/6/65. NSF, Country File, Cuba, Activities of LeadingPersonalities, #14, LBJ Library.) 

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o mais astuto dos jornalistas internacionais radicados na ilha, Tuttino tinhaacesso a ótimas fontes no interior da nomenclatura cubana — entre outras,desfrutava da simpatia de Manuel Pineiro, chefe do Serviço de Informação— e tinha a bagagem política e intelectual necessária para entender as vicis-situdes da conjuntura cubana. Em um longo telegrama, a embaixada britâni-

ca remeteu a Londres a interpretação de Tuttino: Castro teria decidido afas-tar o Che da direção da economia, remoção já consumada na prática, devidoà sua ausência e à transferência de seus principais colaboradores. Mas, poramizade, respeito e necessidade, oferecera ao Che um alto cargo no âmbitopolítico da revolução, mostrando com toda clareza que conservava sua con-fiança e o correspondente status hierárquico. O Che, segundo Tuttino,aceitara renunciar ao Ministério da Indústria, mas rejeitara qualquer outroposto, acrescentando que, embora suas ideias tivessem sido vencidas, con-siderava um erro descartá-las. Sendo assim, resultaria erróneo, desonesto efútil "trabalhar por algo em que não acreditava".'6 

Por outro lado, depois da derrota do foco guerrilheiro na Argentina edas evidentes debilidades dos movimentos na Colômbia, Venezuela eGuatemala, o Che parecia resignado com a remota possibilidade de umtriunfo revolucionário na América Latina que não provocasse uma imedia-ta intervenção dos Estados Unidos. Um informe inglês afirma que, emArgel, "até o indomável Che Guevara parecia pessimista quanto à possibi-lidade de surgirem mais 'Cubas' na América Latina; 'Os Estados Unidosinterviriam para evitá-lo', disse".* Entretanto, havia muitos motivos para sepensar que a veemente oposição de Moscou a novas aventuras cubanas naAmérica Latina não se aplicava à África: os próprios soviéticos forneciamarmas aos rebeldes congoleses, mesmo que fosse apenas para não ficar atrásdos chineses. Além do mais, a aposta norte-americana no Congo e paísesvizinhos, embora não fosse desprezível, não se comparava à que prevalecia

no hemisfério americano. Se já não havia o que fazer em Cuba, e na AméricaLatina o panorama não inspirava grandes perspectivas, a melhor alterna- 

(*) British Embassy in Havana, Research Memorandum, "Che Guevara's AfricanVenture", sem data (secreto), FO/371/AK1022, Foreign Office, Public Records, op. cit. Esterelatório é idêntico, exceto em alguns comentários adicionais como os aqui citados, ao doDepartamento de Estado, com o mesmo título, datado de 13 de abril de 1965 e com códigoRAR-13 (cópia da LBJ Library). Isso apenas confirma que os serviços de informação ingleses enorte-americanos trabalhavam em estreita colaboração, em Cuba como em muitos outrospaíses. (Ver Thomas Hughes to The Secretary, "Che Guevara's African Venture", INR/DOS(secreto), 19/4/65. NSF, Country File, Cuba, Activities of Leading Personalities,# 18 memo,LBJ Library.) 

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tiva era a África. Não havia mistérios quanto à disposição doGhe. Suadeterminação não admitia titubeios. Faltava apenas consultar Fid<el, obtero apoio necessário e pôr mãos à obra. 

Mas nem só de razões políticas vivia nosso personagem, por mais re-volucionário que fosse. Ao menos duas outras razões o incitavam àn ova fuga

para a frente. A primeira já foi mencionada: seu casamento falido, sua vidadoméstica em pedaços. Ele confessou a Nasser: "Já rompi dois casamentos"."Voltou a estar ausente em um parto de Aleida, quando nasceu seu filhoErnesto, em 24 de fevereiro de 1965. O desejo febril de movimento apode-rou-se de novo do comandante Guevara, e o estado precário e conturbadode suas relações afetivas, como tantas outras vezes, ao invés de prendê-lo,empurrava-o a novos distanciamentos. Também devia sofrer a pressão deoutra perda, já advertida pelo Che, mas só confirmada em Paris, enx meadosde janeiro do mesmo ano. Ali ele se encontrou com Gustavo Roca, seu ami-go cordobês que assumira a defesa dos sobreviventes da guerrilha de JorgeMasetti nos tribunais argentinos. Roca comunicou-lhe os detalhes do mas-

sacre de Salta: a notícia deve ter doído fundo na alma do Che, tanto pelamorte de seus amigos como pelo inevitável sentimento de culpa que o episó-dio suscitava nele. Já não era possível continuar mandando os outros para aguerra, com fuzil ou sem fuzil. 

Por último, havia a relação com Fidel Castro. Nem casamento, nemdivórcio, jurara o Che, mas era cada vez mais difícil compatibilizar essapalavra de ordem com sua permanência em Cuba. Ele não podia capitularfrente às teses que Castro de um modo ou de outro acatava e punha em práti-ca na ilha; tampouco queria — nem podia — romper com ele. Nunca cogi-tou a possibilidade de fazer o papel de um Trotski, ou melhor, de um anti-Trotski, ou seja, um dirigente marginalizado que se defende quando ainda

dispõe das armas para fazê-lo. Na Irlanda, enquanto esperava o conserto doavião em que viajava, o Che pôde repassar sua vida em Cuba. Resolveuesperar chegar a Havana para tomar uma decisão. Mas, no fundo, a sorteestava lançada. 

Em 15 de março, três meses depois da partida, ele chegou a Havana. Foirecebido no aeroporto por Fidel, Raul, o presidente Dorticós e sua esposa,Aleida. Algo ia mal. Em vez de convocar uma coletiva de imprensa ou gravarprograma de televisão para expor os resultados da viagem, Guevara desa-pareceu por vários dias e fechou-se quarenta horas com Fidel, Raul e outrospara discutir os temas pendentes. Até hoje não há nenhum testemunhodireto daquela conversa tensa, nem de Fidel, nem de Raul, nem de seus ami-  

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gos mais próximos. Se existem escritos do Che a respeito, sua viúva não ostornou públicos. No entanto, testemunhos indiretos permitem que se tenhapelo menos uma ideia do conteúdo do diálogo. Seja como for, o encontro serealizou quando o fundamental já estava resolvido. A conversa com Fidelpode ter sido um catalizador, um estopim, mas não a causa definitiva para

que o Che deixasse Cuba. Menos de um mês mais tarde, enquanto o Con-gresso dos Estados Unidos aprovava a resolução do golfo de Tonquim, quemarca formalmente o início da guerra do Vietnã, ele partirá da ilha. 

 Benigno, o sobrevivente da Bolívia, o artilheiro do Congo e ajudante deCamilo Cienfuegos na sierra Maestra, descreve da seguinte forma uma dis-cussão entre Raul e o Che, enquanto Fidel se recusa a tomar partido. A fonteé segura.* Sua versão corresponde ao que já foi dito aqui sobre a atitude deFidel nas polémicas com o Che. E dadas as semelhanças com uma discussãoentre Carlos Franqui e Raul Castro ocorrida um ano mais tarde, na qual oirmão mais novo de Fidel acusa o Che (de um ano antes) de ser pró-chinês.Pode-se portanto confiar na absoluta veracidade do relato de Benigno. * * Portratar-se de um testemunho inédito, fizemos sua transcrição na íntegra, semcorreções de estilo nem cortes: 

O Che foi acusado de trotskista e de pró-chinês. Quando ele voltou da Argélia,sei que houve uma conversa muito tensa entre ele e Fidel, e ele saiu muitochateado de lá, o que o levou a ficar em Tope de Collantes durante mais oumenos uma semana, com umas crises de asma terríveis. Sei disso pelo compa-nheiro Argudín, um dos guarda-costas dele. Argudín está em suas funções de 

(*) Em 9 de outubro de 1996 o jornal boliviano La Razón publicou uma avaliação doChe sobre seus homens na campanha da Bolívia. O documento foi encontrado com o Che emoutubro de 1967, mas nunca tinha sido divulgado. Nele aparece a seguinte apreciação sobreBenigno: "11 -3-67, três meses: Muito bom, um rapaz simples, sem fingimentos, forte, modesto

e extremamente trabalhador, sempre mantendo um espírito elevado. 11-6-67, seis meses:Muito bom, teve pequenas falhas na tarefa de distribuir a comida. Em tudo mais, é de primeira.11/9/67, nove meses: Muito bom; tem se aperfeiçoado, superou totalmente as estreitezas ante-riores". Comparadas com as impiedosas avaliações de outros elementos, essa dá um teste-munho de confiança e admiração que só se encontra em outras duas avaliações, se tanto.  

(**) Carlos Franqui, Re trato de família con Fidel, Seix Barrai, Barcelona, 1981, pp. 464-70, em particular a p. 466. Entrevistado, Franqui deu ao autor uma versão mais detalhada epertinente do mesmo diálogo entre Raul, o Che e ele próprio, no palácio de Ia Revolución,em 1B de janeiro de 1964: "Raul logo disparou: 'Por que você e o Che são pró-chineses?'.Quando ouvi isso, fiquei totalmente surpreso por dizer isso do Che. Raul Castro tirou isso darevista Revolución, editada por um advogado francês, Vergés, que sem permissão do Che pu-blicou um artigo dele e uma foto da minha exposição. Claro que Raul sabia que o Che sim-patizava com a China". (CarlosFranqui, entrevista, op. cit.) 

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guarda-costas. Conversa comigo porque ele e eu somos companheiros da escol-ta, e eu estava ausente. Ele me diz: "Porra, estou preocupado". "Que foi?" "Ouvium bate-boca muito feio entre o Fidel e o Che." Daí eu digo: "E sobre o que era ?".Ele diz: "Estavam discutindo sobre a política chinesa e sobre outro líder soviéti-co" — porque ele era semi-analfabeto. Então eu comecei a mencionar algunslíderes. Ele disse: "Não, é um que já está morto. Ê aquele que chamam Trotski. E

aí chamaram o Che de trotskista. Foi o Raul. Foi ele quem chamou o Che de tro-tskista, e que estava claro por suas ideias que ele era um trotskista". Argudín mecontou que o Che ficou uma fera, que quase partiu para cima do Raul, e faloupara ele: "Você é um imbecil, um imbecil". Diz que ele repetiu a palavra "imbe-cil" três vezes e aí ele vira para o Fidel, segundo Argudín, e o Fidel não diz nada.Ou seja, cala, consente. E quando vê aquilo, ele sai, muito contrariado, quasederruba a porta e vai embora. E daí a poucos dias vem a decisão, prematura, de irpara o Congo. Ficou uma semana em Topes de Collante, no sanatório que ficano centro do país, no Escambray. Teve umas crises de asma terríveis, parece quedo desgosto. Argudín e eu fazíamos esse tipo de coisa. Quando ele não estava tra-balhando, era eu que trabalhava. E se eu tinha que acompanhar numa reuniãoimportante, alguma coisa assim, depois contava para o Argudín o que eles ti-

nham falado. E quando ele estava de serviço, me contava... Foi assim que ele mecontou, uns sete dias depois, dois dias antes de eu embarcar para Dar Assalaam. *

Carlos Franqui contou em um livro sua versão da acalorada discussão esuas causas. A fonte foi Célia Sanchez, a assessora, companheira e confi-dente de Fidel Castro, que faleceu em 1980: 

O certo é que Guevara, ao chegar a Cuba, é recebido no aeroporto por FidelCastro, Raul e o presidente Dorticós e energicamente censurado, acusado deindisciplina e irresponsabilidade, de comprometer as relações de Cuba com aURSS, com Fidel furioso por sua irresponsabilidade em Argel, como disse amuitos, entre eles o cronista. Guevara reconheceu que eles tinham razão, queele não tinha o direito de dizer o que disse em nome de Cuba, que assumia suaresponsabilidade, mas que aquele era o seu modo de pensar, e não podia mudá-lo. Que não esperassem nem uma autocrítica pública, nem um pedido diretode desculpas aos soviéticos. E, com aquele seu humor argentino, disse que omelhor era ele punir a si próprio indo cortar cana.'8 

(*) Dariel Alarcón Rodríguez, o Benigno, entrevista com o autor, Paris, 7/3/96. Umdocumento forjado, o chamado Informe R-Habana, atribuído ao Serviço de Informaçãoalemão-oriental, dá conta de uma séria perturbação psicossomática do Che imediatamentedepois do episódio, na qual teria sofrido de delírios e alucinações. Sem dúvida nada dissoaconteceu, mas a crise de asma mencionada por Benigno pode explicar o rumor. E o descansono sanatório de Tope de Collantes pode ter sido confundido com uma internação prolonga-da. (Ver Frederik Hetmann, Yotengosietevidas,Salamanca, Loguez Ediciones, 1977,p. 128.)

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Raul Castro também estava chegando de Moscou. No dia em que oChe pronunciou sua catilinária em Argel, o irmão de Fidel, junto comOsmany Cienfuegos, realizava importantes reuniões com a nova direçãosoviética na capital russa. Em particular, assistiram a uma reunião prelimi-nar da conferência dos partidos comunistas do mundo (sem a China), pro-

gramada para março. Obviamente, Raul ouviu de viva voz as reclamaçõesdos dirigentes soviéticos contra a atuação do Che, já não apenas com relaçãoà forma como conduzia economia e a insolência na Argélia, mas contra asrepetidas atitudes de simpatia pela China e o apoio a Pequim. Raul Castro,o homem que sempre defendeu o vínculo cubano com o bloco socialista, queobteve as armas e os mísseis para defender a ilha, quem mais insistiu paraforçar um alinhamento com a URSS e contra a China, foi também quemescutou o rosário de queixas dos soviéticos contra o Che. Assim que acaboua reunião em Havana, Raul viajou de novo para a Polónia, a Hungria, a Bul-gária e, por duas vezes, a Moscou, para tranquilizar os dirigentes socialistas eassistir à conferência de partidos comunistas.* Raul, por convicção, e Fidel,

por pragmatismo, compreenderam que era simplesmente insustentável pro-longar a indefinição quanto ao conflito sino-soviético. Não interessa saberse, além disso, os ressentimentos pessoais acumulados por Raul contra o Cheexplodiram nesses dias. O Che perdera a batalha. Ninguém, nem mesmoFidel Castro, poderia salvá-lo. 

E provável que, nesse momento, tenha-se deliberado a formação de umcontingente de uns cem homens, comandado pelo Che, para treinar e apoiaros freedom fighters congoleses, se necessário combatendo ao lado deles, masnunca no seu lugar. Talvez alguns combatentes tenham sido escolhidosantes da apressada decisão; outros, como os subordinados de Rafael dei Pinona força aérea, foram convocados alguns dias depois do retorno do Che a

Cuba. Del Pino recebeu ordens para selecionar os combatentes "maisnegros" da base de Holguín, sobretudo os que contassem com experiência deartilharia anti-aérea, já que muitos pilotos cubanos anticastristas lutavamno Congo contra os rebeldes. Selecionou quinze, entre eles o tenente Barce-lay, que com o nome de Changa ou Lavuton salvou a vida do Che oito mesesmais tarde, nas margens barrentas do lago Tanganica.'9 

(*) Segundo a Cl A, Moscou pressionou Fidel Castro para que enviasse seu irmão à con-ferência dos partidos; o caudilho cubano concordou. (Ver Central Intelligence Agency,Directorate of Intelligence, "Castro and Communism: The Cuban Revolution in Perspec-tive", Intelligence Memorandum, 9/5/66 (secreto), p. 18. NSF, Country File, Cuba, Bowdlerfile, vol. 2, box 19, #71 report, LBJ Library.) 

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Uma série de fatores levou Cuba a enviar uma força expedicionária aocoração da África. Se alguma sombra de dúvida persistia na mente do Che,o comportamento de Fidel a dissipou — e não porque tivessem discutido,nem porque Castro condenasse seu discurso anti-soviético na Argélia, suasimpatia pela China ou o virtual abandono das tarefas administrativas por

três meses. Por mais acostumado que o Che estivesse com a omissão de Fidelnas sucessivas polémicas da revolução, a falta de apoio naquela ocasião,ignorando as acusações de Raul, não lhe deixou alternativa. Chegara a horade partir. Felizmente, o caminho já estava livre: existia uma luta da qualpodia participar com dignidade e eficácia. Havia inclusive, como sugereSerguera, a possibilidade de obter vitórias na África40 capazes de convenceros soviéticos e seus amigos comunistas da conveniência das incursõescubanas na América Latina. Se o espaço para uma nova investida latino-americana permanecia fechado no momento, a chave para abri-lo podiaestar j ustamente no Congo. Além disso, a penetração cubana no continentenegro não se limitaria ao Che e ao Congo-Léopoldville. Poucos meses

depois, um contingente foi enviado ao Congo-Brazzaville. Em meados de1966, mais de seiscentos praças e oficiais cubanos estavam em terrasafricanas. Naquele verão, sufocaram um golpe de Estado contra o presidenteAlphonse Maseemba-Debat. 

Os grupos rebeldes congoleses, sem serem ideais, tinham o grandemérito de existir. Simbolizavam a primeira luta pós-colonial da África inde-pendente, solicitavam a assistência de Cuba, e a impressão inicial entre elese o Che não fora negativa. Para Guevara, o esquema substituía adequada eprovisoriamente o desejado desde 1963: voltar para sua Argentina natal,mesmo que as condições fossem mais do que desfavoráveis. Para EmilioAragonês, que logo se uniria ao Che no Congo, em relação a esse plano

havia duas obsessões em tensão: a do próprio Che, de voltar a seu país denascimento para ali fazer a revolução, e a de Fidel Castro, de salvá-lo do queconsiderava sua morte certa nas mãos do exército platense: 

Eu sabia que ir para a Argentina era seu sonho, e era esse seu objetivo final.Tenho a impressão de que Fidel estimulou e facilitou a ida do Che à África paralivrá-lo da viagem à Argentina. Fidel sabia que o exército argentino não era omesmo que os soldados de Tshombé. Achou que a expedição à África era umaboa solução, que lá o risco de os ianques se intrometerem era menor. Imaginoque tenha sido o Fidel quem lhe vendeu a ideia de ir para a África, e acho queo Che também voltou encantado com o continente. Depois de falar com todosos dirigentes africanos, ele saiu de lá muito entusiasmado. Acho que o Fidelbotou lenha na fogueira porque pensou que o risco lá seria menor. Em vez de ir 

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à Argentina, ele ficaria na África, onde as coisas seriam diferentes, porque nãohaveria uma reação tão brutal, que nenhum país ia se dar ao trabalho, que nemiam dar importância a uma luta no meio da selva. Tudo isso é uma impressãopessoal, não cheguei a falar desse assunto com Fidel. Mas, para mim, o queFidel queria era ganhar tempo. Fidel não podia quebrar o pacto feito com oChe no México, mas tentava por todos os meios impedir que matassem seu

companheiro.41 

O conhecido pacto do México citado por Aragonês permite a separaçãoChe-Fidel, mas não é sua causa. Em várias ocasiões, Castro relatou que, quan-do o Che se integrou à expedição do Granma em 1956, ambos concordaramque, quando Guevara quisesse seguir seu caminho, nenhuma razão de Estadoou obrigação política o impediria. Graças a esse acordo, o Che poderia deixarCuba sem remorso, embora, de fato, ainda se debatesse durante um ano emeio na decisão de despedir-se de um país e um governo tão carentes dequadros confiáveis e qualificados. Se algo o fez vacilar em partir, foi a ideia deabandonar um barco equipado com um capitão magnífico, mas com poucos

e medíocres oficiais. Em março, encerrou-se a discussão entre os dois amigoscom estas palavras amargas e categóricas do Che, recebidas com resignaçãopor Fidel:" 'Bom, a única alternativa que me resta é ir embora para bem longedaqui. E se vocês puderem me ajudar nisso, por favor, quero que o digam deuma vez. Se não, que me avisem, para que eu possa pedir ajuda a outros.' Fideldisse: 'Não, não, quanto a isso não tem problema' ".42 

O Che fez as malas e preparou a despedida, desta vez para uma longaausência. Em 22 de março, realizou a última reunião no Ministério da Indús-tria. Deu duas palestras, uma de ordem geral, a outra no Conselho de Direção.Em ambas relatou suas experiências no continente negro e destacou asafinidades entre as culturas cubana e africana, sublinhando as raízes africanas

da moderna Cuba. Evidentemente, não disse que estava de partida para oCongo. Desde o início, combinou com Castro que se justificaria sua ausênciadizendo que fora cortar cana no Oriente. A explicação era verossímil, poistodos sabiam que o Che era um entusiasta do trabalho voluntário. Tratava-seantes de mais nada de ganhar tempo.* A operação de acobertamento foi tãometiculosamente montada que chegou a remexer até os fantasmas do Che. 

(*) Até o italiano Saverio Tuttino não descartou que o Che tivesse de fato passado umaou duas semanas nos canaviais, impondo-se uma espécie de autoflagelação por ter desobede-cido às instruções ao expressar sua própria opinião na Argélia. Carlos Franqui partilha dessacrença: "Eu acredito que era verdade, conhecendo sua maneira de ser". (Carlos Franqui,entrevista, op. cit.) 

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Um assessor que trabalhava com ele no décimo andar do Ministério lembraque uma noite de domingo, em fins de março, quando estavam empacotan-do seus documentos, o Che chegou com seu motorista e subiu ao gabinete. Ocarro ficou com o rádio ligado, tocando tangos. No porta-malas aberto parareceber os papéis, via-se um facão e luvas para cortar cana, indicando que o

Che partiria para Oriente. Quando Guevara chegou ao seu gabinete, ouvia-se a voz de Carlos Gardel cantando o tango da saudade, "Adiós muchachoscompaneros de mi vida". O Che disse "aumente o volume", mas o motoristatentou desligar o rádio. O Che, em uma de suas clássicas explosões, gritou:"Eu disse para aumentar o volume, porra!".4' 

Entretanto, a farsa não duraria para sempre. Logo seria necessárioinformar o paradeiro do Che. Mas a essa altura, Guevara e seus expedi-cionários já estariam sãos e salvos nas colinas africanas. Antes de partir, nos-so personagem enviou livros, presentes e elípticas cartas de despedida avários amigos. Ao mesmo tempo, escolhia os principais colaboradores queviajariam com ele: Victor Dreke, um combatente negro do Diretório; Papi

(José Maria Martínez Tamayo); Pombo (Harry Villegas), que, agora sim,podia ir justamente por ser negro, e mais alguns. Dos aproximadamente 130cubanos que desembarcariam às margens do lago Tanganica, quase todoseram negros e muitos tinham se alistado voluntariamente na expedição.Mas um grande número de "voluntários" desconhecia por completo seu des-tino geográfico e político. Ê bem verdade que os imperativos da segurançaestreitavam a margem de manobra, mas a ignorância dos "internacionalis-tas" quanto ao objetivo da missão teria consequências funestas. Ao fim deum ano, abatido pela derrota e enfraquecido pela disenteria, o Che escreveu: 

Pouquíssimos dos nossos principais militares ou dos quadros intermediárioscom boa preparação eram negros. Quando nos pediram que enviássemos de

preferência cubanos negros, escolhemos entre os melhores elementos doexército, que contassem com alguma experiência de combate, e o resultado éque nosso grupo tem... excelente espírito de combate e conhecimentos especí-ficos de tática no terreno, mas pouco preparo académico... O certo é que nos-sos companheiros tinham uma base cultural muito precária e pouco preparopolítico.44 

Se considerarmos, ainda, o desabafo feito por Aragonês meses maistarde, no Congo ("Porra, Che, ninguém sabe que merda viemos fazer aqui"),entende-se perfeitamente o descontentamento, a raiva e a indisciplina quelogo tomaram conta de grande parte da tropa cubana. Mas, como sempre,Guevara tinha pressa: todo o processo de seleção, treinamento e transporte 

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durou menos de dois meses. Na madrugada de 2 de abril de 1965, com acabeça rapada e uma prótese na boca, o Che, Dreke e Papi embarcaram noaeroporto José Marti, em Havana, rumo a Dar Assalaam. O próprio Castrorevelaria, vinte anos depois: "Eu mesmo disse ao Che que era preciso espe-rar, ganhar tempo; ele queria preparar os quadros, desenvolver a experiên-

cia [...]".45

 Soa razoável, portanto, a versão que Carlos Franqui atribui a CéliaSánchez, segundo a qual o Che partiu de Cuba sem despedir-se de Castro.46 

Em meados de abril, tarde da noite, Franqui recebeu um chamado deFidel. Conduzido por seguranças do comandante até urna casa da rua 11,encontrou um Fidel irreconhecível, indo e vindo pelo terraço como um leãoenjaulado. Apenas duas vezes Franqui o vira assim: no posto migratório deMiguel Schultz, no México, e na sierra Maestra, em junho de 1958, quandoa contra-ofensiva de Batista chegou a meio quilómetro de seu quartel-ge-neral. Castro ordenou que trouxessem Giangiacomo Feltrinelli e um jorna-lista italiano, ambos a ponto de voltar a seu país, para dizer-lhes que era fal-so o boato sobre a morte de Guevara na República Dominicana, que o Che

estava bem e seguira para o Vietnã. Franqui o dissuadiu, argumentando queisso despertaria mais suspeitas ainda. Mas o ex-diretor do Revolución com-preendeu duas coisas: que o Che não estava no Vietnã, e que Fidel sentia umenorme mal-estar por não ter se despedido do amigo. Guevara decidira irembora, com ou sem o abraço de Fidel. "Depois Célia me disse que Fidel esta-va muito triste por não ter visto o Che antes de sua partida. Que estava comtanto trabalho, que não tinha conseguido despedir-se dele, e que o Chehavia deixado uma carta."47 

Com a mesma precipitação e improvisação — e a mesma audácia —,foram sendo enviadas à Tanzânia novas levas de combatentes e de armas. Asfamílias dos combatentes e os governos envolvidos só eram avisados em

cima da hora, sobre fatos consumados. Em 19 de abril o primeiro contin-gente, liderado pelo Che, chegou à capital da Tanzânia. Quatro dias depois,segundo Victor Dreke, internaram-se pela savana a caminho de Kigoma, umpovoado às margens do grande lago Tanganica, ponto de partida para a tra-vessia rumo ao Congo.48 

A preocupação do Che por cercar toda a operação do mais estrito sigilocontrastava com a necessidade política de Fidel Castro de manter seusprincipais parceiros internacionais informados. O percurso seguido pelamaioria dos combatentes foi o tradicional: Havana—Moscou—Argélia—Cairo—Dar Assalaam.49 Mas, para evitar vazamento de informações ouexcesso de curiosidade, mesmo por parte de países amigos, o percurso do Che 

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foi muito mais longo e tortuoso, prolongando-se por dezessete dias. Mesmoem seu diário, Guevara diz que não pode revelar seu itinerário até a Tanzâ-nia. Uma fonte do Serviço de Informação cubano, que na época trabalhavana embaixada de Cuba em Praga, informa que o Che, Dreke e Papi chegaramà capital tcheca diretamente da ilha e ali permaneceram por alguns dias, sem

que os soviéticos se inteirassem de sua presença. Para consegui-lo, talvez otrajeto até lá tenha sido menos direto, via Bruxelas, Paris e Madri. Umenorme esforço em vão, pois enquanto isso Fidel Castro ia revelando aoembaixador soviético em Havana um dos segredos mais bem guardados domundo.* 

Alexander Alexeiev visitou o Che no Ministério da Indústria nos últi-mos dias de março. Perguntou se ele iria com Fidel acompanhar a colheitade cana em Camagúey, para onde o corpo diplomático fora convidado. OChe respondeu que não, que ele iria "cortar de verdade, em Oriente". Seuamigo então lhe deu um conselho tardio: "Não faz sentido brigar, Che". "Eusei, mas vou assim mesmo", respondeu o comandante. Preocupado pela ten-

são que sentiu entre os dois, o embaixador encontrou-se com Castro emCamagúey, em 18 ou 19 de abril. Fidel tomou-o pelo braço, afastou-o dosdemais e sussurrou-lhe ao ouvido: 

O Che não foi cortar cana em Oriente; foi para a África. Ele acha que a Áfricaé uma terra de ninguém, onde nem a Europa, nem a URSS, nem os EstadosUnidos têm hegemonia; que é um lugar propício para Cuba. Você sabe que oChe é um revolucionário nato e é como tal que ele pode ser útil ao mundo. Nãotransmita essa informação a Moscou por meio de mensagem cifrada, mas façoquestão que você saiba disso e o comunique pessoalmente a seus superioresassim que puder.50 

Segundo Alexeiev, a URSS jamais protestou nem discutiu com Castro oproblema da presença do Che ou dos cubanos no Congo, ao menos não pormeio de sua representação diplomática. A opinião do embaixador e de seussuperiores em Moscou era de que, se a decisão da ida do Che ao Congo par-tira de Fidel, não havia problema. Oleg Daroussenkov e Nikolai Leonov,assim como outros funcionários soviéticos encarregados na época dasrelações com a ilha, afirmam o mesmo. A URSS sabia o que estava aconte- 

(*) Essa é a opinião de um estranho personagem, o ex-agente dos Serviços de Infor-mação da ditadura franquista na Espanha, cujo relato mistura fantasias delirantes compequenos grãos de verdade e perspicácia. (Ver Luis M. González-Mata, Cisne, Ias muertes deiChe Guevara, Barcelona, Argos Vergara, 1980, p. 19.) 

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cendo, mas não fez nenhuma objeção nem se intrometeu nos enredoscubanos na África. Sem dúvida, o fato de Fidel Castro mantê-los informa-dos sobre a operação foi útil, sobretudo depois de Raul Castro ter feito a suaparte no desagravo a Moscou, assistindo à conferência de partidos comu-nistas. Já o Che não informou seus planos a ninguém, nem à própria mãe,

dando lugar a uma série de trágicas confusões. Ao regressar a Havana em março, o argentino se encontrara com Gus-

tavo Roca, que estava a ponto de voltar a Buenos Aires. Pediu-lhe que fosseo portador de uma carta para sua mãe, às portas da morte devido a um câncerque a atacava desde os anos 40. A carta, datada em 16 de março, chegou aCélia em meados de abril. Por sua resposta, enviada a Cuba através de Ricar-do Rojo e publicada por este em 1968, sabemos que o Che confessou à mãesua intenção de renunciar à direção revolucionária, retirar-se para cortarcana durante um mês e depois dirigir uma fábrica durante cinco anos. Diziaa Célia que não fosse a Cuba por enquanto e contava-lhe sobre a família, onascimento do filho Ernesto, tudo em um tom formal que ela recrimina

amargamente. A resposta de Célia nunca chegou ao Che, e sem dúvida foimelhor assim, pois não seria fácil responder a suas perguntas sobre a ideia defazer "o trabalho de Castellanos e Villegas" (membros de sua escolta) e a pos-sibilidade de ir à Argélia, ou a Gana, caso não o quisessem em Cuba. 

Em meados de maio, o estado de saúde de Célia piorou ainda mais. Elapediu a Rojo que ligasse para Havana e falasse com seu primogénito. Alei-da atendeu e disse que o Che estava bem e em Cuba, mas que era impossí-vel comunicar-se com ele. Alguns dias depois, Aleida voltou a falar comCélia, confirmando que Ernesto não podia ser localizado. Nem é precisodizer que a comoção na família foi tremenda. Dois dias depois, Célia fale-ceu. Só muito depois seus filhos saberiam onde se encontrava naqueles dias

o irmão mais velho e por que ele não pôde falar ao telefone com a mãe ago-nizante. Roberto Guevara, o segundo filho de Célia, só se inteirou da pas-sagem de Ernesto pelo Congo em fins de 1967, quando viajou a Cuba parauma entrevista com Fidel depois da execução de seu irmão na Bolívia.51 Arevolução impôs sua lei ao Che até na morte de sua mãe. Os diplomatassoviéticos conheciam seu paradeiro com mais precisão que a consternadafamília em Buenos Aires. • 

Desde seu sumiço, em 22 de março, até 5 de outubro de 1965, quandoFidel Castro leu em público a carta de despedida do Che, proliferaram os 

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boatos sobre o esconderijo do argentino e o estado de suas relações com Cas-tro.* Os serviços de informação cubanos contribuíram para a confusão comuma série de manobras de desinformação: que o Che fora lutar contra osmarines na República Dominicana; que fora visto por um padre no estadobrasileiro do Acre; que estava internado em um sanatório de Cuba; que fora

fuzilado por Castro. A espionagem norte-americana também fez correr algu-mas versões com o propósito de fazer aflorar a verdade, mas sem sucesso,exceto, como veremos, no próprio Congo. O profissionalismo dos cubanosnessa matéria e a obsessão do Che pelo sigilo e pela clandestinidade evi-taram qualquer vazamento até junho, e mesmo então a CIA demorou a acre-ditar nos informes de seus enviados. 

Em compensação, o crescente distanciamento entre Castro e o Chetornou-se cada vez mais público e evidente. As embaixadas e os serviços deinformação o captaram com clareza e examinaram com minúcia, emboratardiamente. O melhor resumo aparece em um memorando da CIA, elabo-rado em 18 de outubro de 1965, poucos dias depois de Fidel ter revelado a

decisão do Che de ir buscar a revolução em outras paragens." Além de rese-nhar as divergências anteriores entre o Che, os russos e os comunistas, aanálise norte-americana examinava detalhadamente as discordâncias entreFidel Castro e Guevara durante o ano. A ruptura teria começado em 21 de janeiro, quando o comandante-em-chefe anunciou que na colheita desseano os melhores cortadores receberiam diversos prémios, como motocicle-tas, viagens ao exterior e férias em hotéis cubanos de primeira classe: era ofim dos incentivos morais. Antes até, em dezembro do ano anterior, o go-verno já anunciara um programa-piloto de salários definidos por contrato,participação na produção e distribuição de prémios para os trabalhadores emgeral. Posteriormente, em um discurso de 26 de julho, em Santa Clara, ten-

do ao fundo um imenso retrato do Che, Castro investiu contra os incentivosmorais e a centralização administrativa: 

Nem métodos idealistas, que concebam a humanidade inteira guiada disci-plinadamente pela consciência do dever, porque a realidade da vida não nos 

(*) O desaparecimento de Guevara também suscitou dúvidas e críticas de amigos nãocubanos, como mostra a seguinte pergunta, formulada pela revista de esquerda norte-ameri-cana Monchly Review, editada por Paul Sweezy e Leo Huberman: "Fidel Castro tem cons-ciência do que está realmente em jogo no caso Guevara ? Percebe que cada dia de demora noesclarecimento do mistério aumenta a angústia e as dúvidas de revolucionários honestos e aalegria de seus inimigos?". (Cit. em Léo Sauvage, Lê Cas Guevara, Paris, Éditions La TableRonde, 1971, p. 49.) 

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permite acreditar nisso..., nem aqueles caminhos que buscam acima de tudodespertar o egoísmo dos homens... Seria absurdo tentarmos fazer com que cadaindivíduo da grande massa de homens que ganha seu pão cortando cana fossedar o máximo de si, simplesmente dizendo que ele tem o dever de fazê-lo, inde-pendente de ganhar mais ou menos."

Em 28 de setembro, Fidel voltou à carga, afirmando em um discurso queera "partidário da administração e desenvolvimento locais".54 Convémacrescentar, como último grande marco do distanciamento de Castro, acomposição do Comité Central do recém-fundado Partido Comunista deCuba, cujo anúncio, em ls de outubro, ensejou a leitura pública da carta doChe a Fidel. Era compreensível que o Che não figurasse entre seus membros.Afinal, em sua carta de despedida, ele havia renunciado à cidadania cubana.A desculpa, entretanto, não valia para seus colaboradores no Ministério daIndústria, todos ausentes da cúpula do novo partido. Mais ainda, os únicosministros excluídos do gabinete foram Luis Álvarez Rom, o ministro dasFinanças, aliado do Che na disputa com o Banco Nacional, Orlando Bor-

rego, ministro do Açúcar, e Arturo Guzmán, substituto do Che na pasta daIndústria. Salvador Villaseca, o professor de matemática amigo do Che e ex-diretor do Banco Nacional, tampouco foi convocado. A equipe económicado Che fora aniquilada politicamente. 

Guevara não ficou de braços cruzados. Respondeu imediatamente,primeiro em uma entrevista — que ainda hoje não foi incluída em nenhu-ma edição cubana de suas obras completas — concedida à revista egípcia AiTalia e publicada em abril de 1965. E, logo em seguida, naquela queprovavelmente é sua obra maior, Eí socialismo y el hombre en Cuba, um tex-to enviado a Carlos Quijano (diretor da revista uruguaia Marcha) e publi-cado originalmente em abril de 1965. Na entrevista ao semanário egípcio,

Guevara ataca duas teses, uma diretamente ligada a Cuba, outra ao confli-to sino-soviético. A propósito dos incentivos, declara sem rodeios que osiugoslavos, por exemplo, "deram preferência ao incentivo material" e queisso deve ser "liquidado"; rejeita também a participação operária nadefinição dos salários e a existência de sistemas de prémios e participaçãona produção. Diz: "Uma indústria 'automatizada' que distribui seu altorendimento exclusivamente entre seus trabalhadores privilegiados negarecursos ao conjunto da comunidade. Os esforços dos operários dessasempresas de alta produtividade equivalem aos esforços feitos pelos cam-poneses em seus lotes. Tais condições criam um grupo privilegiado e for-talecem os elementos de natureza capitalista"." 

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Era uma resposta direta'às medidas recém-estabelecidas em Cuba.Quanto à postura internacional da Iugoslávia, o Crie revelou seus senti-mentos contraditórios e sua exasperação com o estado do movimento comu-nista internacional: "Nossas diferenças em relação à experiência iugoslavaconcentram-se em dois pontos: em nossa reação ao stalinismo e em nossa

oposição a que a União Soviética nos imponha seus ideais de economia e li-derança".56 Mesmo que o sentido original das frases possa ter sofrido algumadistorção nas sucessivas traduções — do espanhol ao árabe, do árabe aoinglês e do inglês de volta ao espanhol —, as restrições do Che à atitude dosiugoslavos com relação ao stalinismo têm uma ótica claramente chinesa. Elenão partilha do virulento anti-stalinismo de Tito; pelo contrário, suaposição é mais próxima à dos chineses, que vêem no anti-stalinismo de Titoe de Krushev a marca do revisionismo. 

Em El socialismo y el hombre en Cuba, Guevara volta ao assunto doincentivo moral, ao mesmo tempo que contesta algumas das críticas dirigi-das a ele: 

E muito forte a tentação de seguir a trilha já aberta e batida do interesse mate-rial, como alavanca propulsora de um desenvolvimento acelerado. Corre-se orisco de as árvores impedirem a visão da mata. Se nos deixarmos iludir pelamiragem de realizar o socialismo com ajuda das armas cegas que o capitalismonos deixou (a mercadoria como célula da economia, a rentabilidade, o inte-resse material individual como motor etc), poderemos acabar em um becosem saída. Para construir o comunismo não basta a base material, é preciso, aomesmo tempo, forjar o homem novo. Daí ser tão importante escolher corre-tamente o instrumento de mobilização das massas. Esse instrumento deve serfundamentalmente de ordem moral, sem que por isso se tenha que descartaruma correta utilização do incentivo material, sobretudo de natureza social.

Como já disse antes, é fácil elevar os incentivos morais nos momentos deextremo perigo; mas para manter sua vigência é necessário desenvolver umaconsciência na qual os valores ganhem maior importância.'7 

Guevara volta a citar os erros cometidos pelos dirigentes cubanos nopassado e reexamina as especificidades cubanas, não necessariamente vin-culadas a tais erros. A ligação entre a liderança caudilhesca de Fidel Castro— que o Che exalta — e o "revisionismo" — que condena — simplesmentenão tem lugar em seu ideário ou mecanismo mental. Talvez resida aí uma daschaves de sua dificuldade em formular uma crítica a um só tempo eficaz econstrutiva do processi/i revolucionário em seu conjunto. Se cotejarmos aspassagens sobre Fidel c- sobre os equívocos cubanos, compreenderemos o 

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desamparo do Che ao arremeter contra os desvios da ilha, ao mesmo tempoque glorifica uma de suas causas mais profundas:

Nas grandes concentrações públicas, observa-se algo que parece um diálogode dois diapasões, cujas vibrações provocam outras nos interlocutores. Fidel ea massa começam a vibrar em um diálogo de intensidade crescente, até

alcançarem o clímax em um final abrupto, coroado por nosso grito de luta e dehistória. O difícil de entender, para quem não viveu a experiência da re-volução, é essa estreita unidade dialética entre o indivíduo e a massa [...] Emnosso país não ocorreu o erro do mecanicismo realista, mas outro, de sinalinverso. E este ocorreu por não se compreender a necessidade da criação dohomem novo [...] A reação contra o homem do século Xix levou-nos a rein-cidir no decadentismo do século xx. Não é um erro demasiado grave, masdevemos superá-lo, sob pena de abrir uma larga brecha para o revisionismo.*

Por último, o Che inclui uma breve mas significativa reflexão sobre suaprópria aventura como revolucionário, a relação entre sua própria imageme sua noção do que seja o homem novo. O homem novo é, em certo sentido,

o comunista cubano, o veterano da sierra Maestra e do trabalho voluntário,da baía dos Porcos e da crise do Caribe, das missões internacionais e da so-lidariedade. E, em uma palavra, Ernesto Che Guevara. Ele nunca careceu decapacidade de auto-análise e de uma ideia própria sobre seu destino. Maisainda, a fantasia de que teria um destino diferente ocorreu-lhe e obcecou-odesde a juventude, sob o céu estrelado de Chuquicamata e da Amazóniaperuana. Por isso identifica o homem novo com o dirigente revolucionário,dando seu próprio exemplo; por isso identifica-se com aquele homem novoque nunca veio à luz nem na Cuba de ontem, nem na de hoje:  

Em nossa ambição de revolucionários, tratamos de caminhar tão depressaquanto possível, abrindo caminhos... com nosso exemplo [...] Os dirigentes da

revolução têm filhos que aprendem a falar sem mencionar o pai e mulheres quedevem ser parte do sacrifício de sua vida, visando levar a revolução a seu des-tino. O círculo das amizades corresponde estritamente ao dos companheirosde revolução. Não há vida fora dela. Nessas condições, é preciso uma grandedose de humanidade, uma grande dose de sentido de justiça e de verdade [...]E preciso lutar todos os dias para que esse amor à humanidade viva se trans-forme [...] em atos que sirvam de exemplo. w 

Entretanto, o Che logo se afastaria de suas polémicas marxistas e deter-minações quase-testamentárias, das intrigas e dos desacertos económicos deHavana. Já estava outra vez em campanha, atraído pelo mistério africano epela excitação do combate. Após alguns incidentes menores e com crés-

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cente impaciência, chegou nos últimos dias de abril ao acampamento dos freedom fighters em Kibamba, onde uma guarda rendeu homenagem aosassessores recém-chegados. Ali, na margem ocidental do lago Tanganica,estavam os cubanos Dreke, ou  Moja (número 1, em swahili), MartínezTamayo, ou M'Biíi (número 2), e o Che, ou Tatu (número 3), que se apre-

senta como médico e tradutor. Permaneceriam sete meses na região, à esperade uma guerra que demoraria a chegar. 

Logo de início, surgiu um dilema: informar ou não a verdadeira identi-dade de Tatu aos congoleses e às autoridades da Tanzânia. Kabila, o princi-pal líder da área, preferia que o Che não divulgasse a notícia de sua presençano Congo. O embaixador cubano em Dar Assalaam não informaria o presi-dente Julius Nyerere até a partida do argentino, em novembro. Como recor-da agora, estava submetido a pressões contraditórias. Por um lado, o Cheentrara na Tanzânia com o consentimento das autoridades locais e insistiaque o embaixador informasse o quanto antes sobre sua presença. Por outro,Havana ordenava-lhe reiteradamente que não revelasse a identidade de

Tatu ao governo anfitrião. Ribalta recorda agora que quase enlouqueceu emmeio a esse fogo cruzado.60 

O motivo da indecisão era evidente, e forte. A simples chegada de maisde cem assessores cubanos já poderia internacionalizar o conflito, mas anotícia de que Che Guevara os dirigia atrairia tal quantidade de mercenáriossul-africanos e represálias belgas e norte-americanas que neutralizaria rapi-damente qualquer vantagem resultante da solidariedade cubana. Além domais, Kabila permanecia no Cairo, onde uma conferência de apoio à rebe-lião congolesa formara o Conselho Supremo da Revolução, presidido porGaston Soumialot. A ausência deliberada de todos esses dirigentes ofereciaao Che um excelente pretexto para a decisão de internar-se pelo Congo sem

avisar ninguém: "Para ser franco, eu temia que minha oferta provocassereações negativas e que algum dos congoleses, ou o próprio governo amigo(tanzaniano), pedisse que não me lançasse à empreitada".61 

Não demorou muito para que o Che percebesse que boa parte de suaestadia no Congo se resumiria em esperar: a chegada de Kabila, a recupe-ração de um acampamento, a autorização para instalar-se em outra colina, odesembarque de provisões ou de emissários de Havana. Ele se dedicava aoofício de médico e ao treinamento da tropa congolesa. Mas, sobretudo, aesperar. Como lamenta em seu diário, "tínhamos de fazer alguma coisa paraevitar o ócio absoluto... Nosso moral ainda se mantinha elevado, mas jácomeçavam as murmurações entre os companheiros, que viam os dias pas-  

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sarem inutilmente"." No início de maio, já haviam chegado todos oscubanos. Chegara também um lugar-tenente de Kabila, com a orientação deseu chefe de que se mantivesse em segredo a identidade do Che. Enquantoisso, Guevara ia conhecendo os mistérios da dawa, a crença dos soldadoscongoleses em uma poção com que os mugangas ou xamãs untavam seus cor-

pos. Para eles a dawa possuía uma força mágica, capaz de proteger das balasinimigas os que acreditassem nela. Guevara compreendeu que, embora acrença pudesse estimular o valor no combate, também poderia se voltar con-tra os cubanos, caso muitos nativos perecessem na luta, pois eles tenderiama pôr a culpa na falta de fé dos estrangeiros. 

O revolucionário errante sofreu quase imediatamente as consequên-cias políticas e pessoais de sua situação. Contraiu uma terrível febre tropicalque causou um "extraordinário abatimento, tirando-me o ânimo até paracomer". Sua saúde, sempre precária, sofria ainda mais com as adversidadesnaturais da região. Para piorar, o chefe interino da luta decidiu dar a ordemabsurda de atacar Albertville, uma importante cidade mineira situada

duzentos quilómetros ao sul do acampamento de Kibamba. Não havia amenor condição para uma investida dessa ordem, mas tampouco existia umcomando que pudesse impedi-la. Nem Kabila, nem seu lugar-tenenteestavam em condições de comandar, um por estar ausente, o outro por care-cer de capacidade para tanto. O Che muito menos: ele não era o chefe. Eranatural que sofresse constantes crises de asma e emagrecesse espantosa-mente durante a jornada africana. Estava no próprio reino da incerteza,como bem descreveu Oscar Fernández Mell, seu companheiro de armas emSanta Clara, enviado por Fidel para ajudá-lo: "Ele não estava ali como chefenem como nada. Era obrigado a fazer uma das coisas que mais detestava:mandar nos outros, sem que ele próprio pudesse agir".* 

Em fins de março, Osmany Cienfuegos chegou, de visita, trazendo anotícia de que Célia estava à beira da morte em Buenos Aires. A notíciadeprimiu Guevara ainda mais. Seu estado de ânimo transparece no resumomensal registrado no diário: 

O maior defeito dos congoleses é que não sabem atirar... A disciplina aqui épéssima, mas tem-se a impressão de que melhora no front [...] Hoje podemosdizer que a aparente disciplina nas frentes de combate era falsa... A principal 

(*) Oscar Fernández Mell, op. cit. Segundo algumas versões, o general Fernández Mell,na época vice-ministro da Saúde, foi enviado ao Congo como castigo, devido a um escânda-Io envolvendo sua esposa, Oladys Fuentes, uma atriz de novelas. (Ver Dariel AlarcónRamírez, Benigno, entrevista, op. cit.) 

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característica do exército Popular de Libertação era ser parasita: nao traba-lhava, não treinava, não combatia, exigia da população mantimentos e tra-balho, às vezes extremamente duro. É claro que um exército desse tipo só podiase justificar caso lutasse ao menos de vez em quando, como fazia o inimigo...Mas nem sequer isso ele fazia... a revolução congolesa estava irremediavel-mente condenada ao fracasso, devido a suas próprias debilidades internas.'1'

A catástrofe não acontecia apenas em Kibamba, mas em toda a região.O resultado das missões exploratórias que o Che enviara a diversos povoa-dos — Baraka, Lulimba, Katenga — foi desanimador: bebedeiras, esbanja-mento, excessos e preguiça, nenhuma disposição de combate ou resistência.Ao mesmo tempo, havia armas de sobra: continuavam chegando da URSS eda China, via Tanzânia. Em junho, Chu En-Lai visitou Nyerere em DarAssalaam. Consolidou-se o apoio chinês à luta no Congo e surgiu um novopretexto para que Kabila permanecesse longe da zona de combate. Por essesdias, seu lugar-tenente morre afogado, deixando o desamparado exércitosem comando. O tempo passava, sem nenhuma atividade: dois meses

depois, "ainda não tínhamos feito nada". O único objetivo militar que podiaser atacado ainda era Albertville, um alvo muito superior à força dos re-volucionários congoleses e seus conselheiros cubanos. Na verdade, o Cheentrara numa ratoeira: quando os mercenários sul-africanos de Mike Hoareterminassem suas operações na fronteira com o Sudão e Uganda e se dirigis-sem com sua pequena força aérea para o sul, não haveria como resistir. 

Em parte para fazer alguma coisa, em parte para evitar que isso aconte-cesse, o Che e Kabila combinaram por carta um ataque ao povoado de Front deForce, ou Bendera, situado a uns quarenta quilómetros da base cubana, nocaminho para uma hidrelétrica próxima a Albertville. Na realidade, o Cheteria preferido uma ação limitada ao povoado de Katenga, menor e mais

acessível. Kabila insistiu em Bendera, apesar do risco de alertar as forças deTshombé para a presença cubana. O Che já ansiava por envolver-se direta-mente nas operações, mas desistiu, por não contar com uma autorização expres-sa de Kabila. Dreke comandou os quase quarenta soldados cubanos e 160 sol-dados ruandeses que participaram da tentativa de assalto a Front de Force. 

O ataque, realizado nos últimos dias de junho, redundou em um desas-tre militar e, pior ainda, revelou a presença cubana. Quatro soldados natu-rais da ilha morreram nos combates, e seus cadáveres ficaram em poder dosmercenários. Os cubanos desrespeitaram a ordem terminante do Che dedespojar-se de todos os pertences e documentos pessoais antes de entrar emcombate. Os sul-africanos, ao examinar os cadáveres, logo descobriram a 

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nacionalidade dos atacantes.* Imediatamente informaram os assessoresnorte-americanos no Congo. Foi assim que Lawrence Devlin, chefe local daCIA, soube que os rebeldes da região de Albertville recebiam apoiocubano. ** A notícia espalhou-se rapidamente. Duas semanas depois, foi pu-blicada pela imprensa de Dar Assalaam, e assim caía o sumário disfarce da

missão. Em sua síntese do mês de junho, o Che escreveu: "E o balanço maispobre até o momento". Kabila continuava sem dar sinais de vida, mas opu-nha-se toda vez que o Che sugeria que se informasse sua presença pelo menosao governo da Tanzânia. 

Não é preciso dizer que a derrota de Front de Force abateu o moral dosexpedicionários cubanos. Eles constataram com amargura e ressentimentoque os congoleses se negavam a combater, jogavam fora os fuzis e fugiam oudisparavam para o ar. Vários membros da tropa manifestaram formalmenteo desejo de voltar para Cuba. O caso que mais abalou o Che foi o de Sitaini,ou El Chino, um de seus ajudantes desde os combates da sierra Maestra, quealegou não ter sido informado sobre a duração da guerra (de três a cinco anos,

segundo o Che). Como se tratava de um membro de sua escolta pessoal,Guevara não podia conceder-lhe a baixa; mas forçá-lo a permanecer foiextremamente prejudicial. Pela primeira vez, Guevara sofreu os efeitos desua intransigência na própria carne e em condições de guerra. Os outros sim-plesmente não conseguiam manter-se à altura de suas exigências, por care-cerem da vontade, da mística e da visão para enfrentar adversidades tãograndes como as do Congo dos anos 60. 

Em 11 de julho, Guevara finalmente reuniu-se com Kabila. A per-manência do africano durou poucos dias, pois ele em seguida regressou a DarAssalaam, a pretexto de encontrar-se com Soumialot, então de passagempela capital tanzaniana. A nova partida de Kabila acabou de vez com a tropa

congolesa. Com toda a razão, seus soldados não concebiam que seus chefes,além de não tomarem parte dos combates, sequer permanecessem na área 

(*)Mike Hoare relata em suas memórias que encontraram o passaporte e o minuciosodiário de um cubano morto em combate. O passaporte registrava o itinerário percorrido atéa África; o diário se queixava de que "os congoleses eram preguiçosos demais, até para trans-portar o canhão de 76 milímetros e seus obuses". (Ver Richard Gott, "The Year Che WentMissing", "The Guardian Weekend", 30/11/96, p. 30.) 

(**) Somente em 6 de julho a embaixada dos Estados Unidos em Léopoldville infor-mará Washington sobre a descoberta de cadáveres de soldados cubanos, e apenas em 21 desetembro fornecerá uma estimativa final do número de cubanos destacados no Congo: 160.brron por quase quarenta (Ver Godley/AmEmbassy/Léopoldville do Soe State (secreto), 21de setembro, NSF, Country File, Congo, vol. XI, #7 cable, LU] Library.) 

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para comandá-los. Também aumentou a insatisfação entre os cubanos. Doismédicos e vários membros do Partido Comunista pediram para retirar-se daluta. O Che reagiu com violência — menor que no caso anterior, segundoele próprio. Sabia que, se não fizesse alguma coisa, toda a expedição se veriaameaçada. Decidiu partir para o front, mas esbarrou na imediata resistência

dos chefes congoleses. A razão, segundo o Che, era óbvia: eles se desmo-ralizariam aos olhos de seus homens quando estes percebessem que o lídercubano se aventurava no front, enquanto seus próprios comandantes não seatreviam a fazê-lo. 

Em fins de julho, a situação melhora um pouco: uma emboscada com aparticipação de 25 cubanos e 25 ruandeses é bem-sucedida, mas algunscubanos ainda insistem em voltar para casa. O Che descreve sua própriasituação com ironia e tristeza: "continuo como um bolsista".64 Por isso, em16 de agosto, j á sem esperar a permissão de Kabila, lançou-se à frente de com-bate, chegando na mesma noite à zona de Front de Force, exausto e sentin-do-se "como um delinquente". Ali pôde verificar a grande quantidade de

armas disponíveis e a completa dispersão das forças rebeldes pela estradapara Albertville. Já se sentia mais perto dos acontecimentos: logo preparouuma emboscada e se envolveu diretamente nos primeiros tiroteios. A adre-nalina começava a fluir. Seu resumo de agosto é o mais otimista até então: 

Para mim, a bolsa acabou, o que significa um passo à frente. No balanço geral,este mês pode ser considerado muito positivo. Além da ação de Front de Force,pode-se notar uma melhora nos homens. Meus próximos passos serão visitarLambo, em Lunimba, e fazer uma visita a Kabambare, para convencê-los danecessidade de tomar Lumimba e seguir adiante. Mas para tudo isso é precisoque esta emboscada e as próximas ações tenham bom resultado.65 

As desventuras do Che no Congo não passavam despercebidas em

Havana, embora as informações fossem fragmentadas e coloridas pelo ingé-nuo otimismo das fontes. Após a derrota do primeiro ataque a Front de Force,o Che enviou uma carta a Fidel através de António Machado Ventura, médi-co e alto funcionário que estivera no Congo mais ou menos de visita. Quan-do a carta chegou a Havana, Castro convocou Emilio Aragonês e o generalAldo Margolles para uma reunião na rua 11 com Osmany Cienfuegos eManuel Pifíeiro. Segundo Aragonês, até o momento do encontro, Pifieironão tinha interferido na aventura do Che na África. Tanto que, meses antes,fora procurá-lo em seu gabinete na Secretaria de Organização do partido,acompanhado de um jornalista mexicano da revista Siempre, perguntandopelo Che, sem saber que ele estava no Congo fazia mais de um mês. 

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Quando Aragonês chegou, Fidel disse-lhe: "Leia isto". Era a carta doChe, que descrevia com todas as letras a terrível confusão em que semetera. Narrava o desastre de Front de Force, em cujos combates osafricanos tinham fugido e o Che perdera vários oficiais. Contava, ainda,que alguns soldados africanos em debandada tinham assaltado um cami-

nhão de bebidas. Segundo Aragonês, Fidel não se enganava: percebia quea carta não vinha de alguém arrependido ou desesperado, e sim de umcomandante lúcido e profissional. Mas outros acharam que não passava dolamento de um pessimista. Pineiro, por exemplo, depois de ler o texto,exclamou: "Isto aqui é coisa de cagão". Depois de refletir, Fidel decidiumandar Aragonês e Oscar Fernández Mell para a África. Não os envioupara resgatar o Che, e sim para ajudá-lo. Só em caso de desespero deviamtrazê-lo de volta para Cuba.66 

O médico Fernández Mell guarda uma lembrança um pouco diferentedo episódio. Quando Manuel Pineiro foi procurá-lo na praia onde passavasuas férias, ele encarou aquilo como uma chance de combater ao lado de seu

amigo e ex-chefe. Mas ninguém sequer insinuou que a situação no Congofosse tão alarmante: 

Quando falei com Pineiro, e ele me disse o contrário: que tudo ia às mil ma-ravilhas, que a campanha era um completo sucesso, que o combate de Benderatinha sido uma vitória total e estava tudo bem. Foi o que me disseram, e foi comessa impressão que eu embarquei para a África, porque Aragonês também nãome disse nada, nem comentou nada sobre a carta do Che. Eu nem sabia daexistência dessa carta.67 

Entre os últimos dias de agosto e 21 de novembro, quando os cubanosfinalmente deixaram o Congo, Aragonês e Fernández Mell estiveram todoo tempo junto do Che. De acordo com suas lembranças, o argentino não osrecebeu com muita alegria, pois achou que o reforço causaria mais proble-mas ainda na missão congolesa.* Os dois se surpreenderam ao ver que "oChe era mantido praticamente preso na base; não deixavam que desse umpasso, por mais que pedisse permissão".6" Aos poucos, o Che foi perdendo asestribeiras. Eram cada vez mais frequentes suas explosões de ira contra oscongoleses e sobretudo contra os cubanos que "fogem da raia", ao mesmotempo que exigia cotas cada vez maiores de sacrifício e esforço, tanto de si  

(*) "Ao saber quem eram os companheiros que vinham de Cuba, tive medo de quetrouxessem alguma mensagem obrigando-me a voltar." (Ernesto Che Guevara, Pasajes, op.cit.,pp. 66-7.) 

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próprio como dos demais. Quando decidia punir algum subordinado, recor-ria ao mais severo de todos os castigos: deixar o culpado sem comida por um,dois, três dias. Dizia que era a pena mais eficaz em uma guerrilha.  

Os recém-chegados colaboradores se espantaram quando, por exem-plo, Fernández Mell, como chefe do estado-maior da expedição, pediu ao

Che que solicitasse a Kigoma botas para a tropa cubana e recebeu esta répli-ca lapidar: "Os negros andam descalços, os cubanos têm de andar igual".Quando observou que deviam solicitar vitaminas e sais minerais para me-lhorar a dieta dos cubanos, a resposta foi: "Desde quando os povos subde-senvolvidos tomam vitaminas?". O médico cubano protestou ante a obsti-nação do Che, e em troca recebeu uma saraivada de críticas e comentáriossarcásticos. Entretanto, pôde notar que a tropa já tinha um conceito nega-tivo de seu líder e estava disposta a correr riscos consideráveis para salvar-seda catástrofe. Certa noite, à luz das fogueiras, um dos combatentes cubanosentregou a Aragonês um bilhete que dizia: "Companheiro, você é membrodo secretariado do partido, assim como o Che. O Che está obcecado. Você

tem de tirá-lo daqui".69 O grau de insubordinação era intolerável para umaguerrilha, mas o Che se mantinha isolado e fechado. 

Os reforços cubanos também confirmaram que a já precária situaçãomilitar se deteriorava rapidamente, com o governo congolês e os sul-africanos revidando a limitada ofensiva cubana de agosto. Com efeito,como relatava o chefe do estado-maior belga da OPS-SUD — a missão militarbelga em Albertville —, uma investigação mais minuciosa junto aos pri-sioneiros confirmara, em setembro, que os rebeldes tinham se fortalecido eque "a certeza da presença de numerosos cubanos em solo congolês agrava-va a ameaça rebelde às cidades de Albertville e Kongolo".* A partir dessasconclusões, os belgas decidiram retomar a iniciativa dos combates e passar

à ofensiva o quanto antes. Encabeçados pelo 59 Batalhão de Comandos sul-africano, dirigido por Mike Hoare, com um total de 350 homens, em doismeses cercaram os rebeldes em sua base de Kibamba. Tiveram mais traba- 

(*) Major Bem Hardenne, "Les Opération Anti-Guerilla dans PEst du Congo en 1965-1966", informe apresentado em fevereiro de 1969, mimeo., pp. 19-20. Tal como os belgas, aCIA e o Departamento de Estado julgavam relevante a presença dos cubanos: "Embora onúmero de cubanos tenha sido exagerado, não surpreende que sua presença preocupe a PPS-SUD (os belgas). Mesmo um pequeno número de 'assessores', em papéis de comando nos com-bates, pode dar aos rebeldes a espinha dorsal de que precisam para resistir ao exército con-golês e se converter em um verdadeiro problema". (Godley/AmEmbassy/Léopoldville toSecState (secreto), 21/9/65, NSF, Country File, Congo, vol. XI, # 7, LRJ Library.) 

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lho que no resto do Congo. Os guerrilheiros e os soldados ruandesescomeçavam a defender-se com maior afinco. Por outro lado, como ressaltouo já citado comandante belga, a tropa oficialista padecia dos mesmos víciosde combate dos rebeldes: assim que começavam os tiroteios, jogavam asarmas fora, nunca faziam pontaria, fugiam com frequência e acreditavam

no mito da invencibilidade dos rebeldes. Apesar de tudo isso, os dois bata-lhões — o dos mercenários sul-africanos e o do exército congolês a serviçodos belgas — avançavam sempre mais rumo ao lago. Não capturaram seusadversários, mas obrigaram-nos a retirar-se do Congo para a Tanzânia. 

Como temia Guevara, a confirmação da presença de cubanos preocupouas autoridades congolesas e a CIA. Disse o major Hardenne: "Os sul-africanosinformaram que as unidades rebeldes mostram disciplina, agressividade e sedeslocam no terreno como tropas bem treinadas. Não localizaram nenhumcubano, mas estão certos de sua presença, pois várias mensagens em espanholforam interceptadas pelos rádios do 5S Batalhão de Comandos".70 

Na batalha de Baraka, no final de outubro — na qual tombaram centenas

de rebeldes —, os sul-africanos avistaram vários cubanos brancos no comandodos insurgentes, mas não conseguiram aprisionar nenhum. Os agentes locais daCIA, por sua vez, estavam convencidos de que Tatu era Che Guevara, emboranunca tenham conseguido convencer sua direção nos Estados Unidos. Oprimeiro a suspeitar foi Lawrence Devlin, o chefe local da agência, que anosmais tarde seria apontado como o mandante do assassinato de Patrice Lumum-ba no início de 1961. Ele mostrou fotos do Che a doze prisioneiros rebeldes queafirmavam ter conversado com Tatu em Kibamba e mais tarde em Bendera. Emalgumas, Guevara usava bigode, em outras, barba e em outras, ainda, tinha orosto limpo. Onze dos doze prisioneiros afirmaram que o homem das fotos eraTatu, o que deu à suspeita um alto grau de certeza.71 Pouco depois, analisando os

diários dos cubanos mortos em combate, Devlin considerou absolutamentecerta a presença de Guevara no Congo, mas nunca lhe deram ouvidos na sededa CIA em Langley, Virgínia.72 Como especula Fernández Mell, talvez nãoimportasse aos norte-americanos se o Che estava ou não no Congo. * Ou então, 

(*) Em um informe secreto sobre a situação no Congo, datado de 26 de agosto, a CIAresumia: "Embora os rebeldes ainda controlem a faixa de Fizi, no lago Tanganica, estão quie-tos no resto do país [...] Milhares de rebeldes se entrincheiraram na faixa de Fizi. Estão bemarmados, possivelmente acompanhados por alguns assessores cubanos e chineses. Parecemmelhor treinados e mais dispostos à luta que seus colegas a noroeste". (Central IntelligenceAgency, Intelligence Memorandum, "Situation in the Congo" (secreto) 26/8/65, NSF,Country File, Congo, vol. XI, # 106 memo, LBJ Library.) 

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como sugere o médico militar, a não-divulgação da sua presença no Congoimpediu que "o Che pudesse atuar como o verdadeiro chefe guerrilheiro queera, sem tanto medo daquele bosta do Kabila e do governo da Tanzânia. Talvezessa falta de informação tenha influenciado para que o Che não tenha mostra-do na África o desempenho do grande guerrilheiro e grande político que eu

conheci".7

' Gustavo Villoldo, um dos ex-combatentes cubanos da baía dos Porcos

enviados ao Congo pela CIA como reforço às tropas de Tshombé, evoca comcarinho a oportunidade de combater contra o Che na África, mas lamentaamargamente que o grupo de assessores cubanos tenha voltado a Cuba comvida. Os cubanos anticastristas — todos brancos, segundo Lawrence Devlin— queriam aniquilar os cubanos castristas — todos negros, exceto o Che,Papi, Benigno, Fernández Mell e Aragonês — que, no final, só estavamprocurando a saída da ratoeira. Com exceção de algumas metralhadas aéreasna estrada para Albertville, os dois grupos de cubanos nunca se enfrentaramdiretamente. O encontro poderia ter ocorrido na noite de 21 de novembro,

mas não aconteceu. Não é impossível que o Che e os cubanos que o acom-panharam no delírio africano devessem suas vidas ao ceticismo dos analis-tas da CIA nos Estados Unidos. Como veremos, a fuga pelo lago nos últimosdias de novembro ainda encerra vários enigmas por resolver. 

O Che passou os meses de setembro e outubro percorrendo a região.Visitou Fizi, Baraka, Lilamba e outros povoados. Em todos eles, os chefeslocais e as tropas lhe pediram dinheiro e soldados cubanos. Ao perambularpelas trilhas que levavam de um povoado a outro, por várias ocasiões o Chesofreu ataques tanto da aviação mercenária como da anticastrista, sem nuncacorrer verdadeiro perigo. Debatia-se na dúvida entre dispersar sua pequenatropa — na verdade, como ele mesmo disse, nunca contou com mais de

quarenta homens em condições de combate, devido às doenças e à insubor-dinação —, para que reestruturasse os grupos rebeldes, ou concentrá-la emuma única força, eficaz e poderosa. Mas, em fins de setembro, tudo veioabaixo. O próprio Che se recriminaria por sua cegueira: "Nossa situação eracada vez mais difícil, e o projeto de um exército, com todos seus homens, suasarmas e munições, desmanchava em nossas mãos. E eu, ainda tomado pornão sei que cego otimismo, não era capaz de enxergar isso f...]".74 Uma expli-cação para essa fé infundada era que ninguém se atrevia a dizer-lhe a ver-dade: "Ninguém nunca o encarou".75 Mesmo os cubanos de alta patentetemiam que o comandante interpretasse qualquer dúvida, qualquer ques-tionamento como uma demonstração de covardia. Por outro lado, o Che 

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sempre raciocinou em termos de analogias com a sierra Maestra: esperavaque algum dia a população congolesa reagisse, mas isso nunca aconteceu.*No início de outubro, José António Machado Ventura, o ministrocubano da Saúde, voltou ao Congo. Trazia notícias da apoteótica visita deGaston Soumialot a Havana e uma mensagem de Fidel Castro na qual,

segundo o Che, o caudilho cubano aconselhava-o a "não me desesperar;dizia que lembrasse a primeira fase da luta e recordasse que esses inconve-nientes sempre aconteciam, assinalando que os homens eram bons". 76  Issoreforçava no Che a suspeita e a revolta de ser tachado de pessimista emCuba, quando, na realidade, ele chegava a ocultar as adversidades queenfrentava. Em 5 de outubro, enviou a Fidel Castro uma longa carta cujosparágrafos principais convém reproduzir na íntegra:

Recebi sua carta, que provocou em mim sentimentos contraditórios, já que emnome do internacionalismo proletário cometemos erros que podem custarmuito caro. Também me preocupa que, seja por minha falta de seriedade aoescrever ou porque você não me tenha compreendido plenamente, possa pen-

sar que padeço da terrível doença do pessimismo sem causa. Quando seu pre-sente de grego (Aragonês) chegou, disse-me que uma de minhas cartas tinhapassado a impressão de um gladiador condenado. O ministro (Machado Ven-tura) agora vem confirmar sua opinião, ao entregar-me sua mensagemotimista. Você poderá conversar longamente com o portador, e ele lhe trans-mitirá suas impressões em primeira mão [...] Direi apenas que aqui, segundomeus colaboradores, perdi minha fama de ser objetivo, e que estou mantendoum otimismo sem bases reais. Posso assegurar que, se não fosse por mim, estebelo sonho já estaria completamente destruído em meio à catástrofe geral. Emminhas cartas anteriores, pedia-lhes que não mandassem muita gente, masquadros, dizia-lhes que aqui praticamente não faltam armas, exceto algumasespeciais. Ao contrário, sobram homens armados, mas faltam soldados. Aler-

tava muito especialmente sobre a necessidade de só dar dinheiro aos poucos edepois de muita insistência. Nenhuma dessas coisas foi levada em conta.Arquitetaram-se planos fantásticos que nos expuseram ao risco de descréditointernacional e podem colocar-me em situação muito difícil [...] Esqueçam oenvio de homens para dirigirem unidades fantasmas. Preparem até cemquadros qualificados, mas não apenas negros [...] Tratem com muito tato aquestão das lanchas (não esqueçam que a Tanzânia é um país independente e

(*) Emílio Aragonês, op. cit. Aragonês até hoje se pergunta como o Che pôde ter sidotão cego: "Eu não sei se ele falava por acreditar ou porque não queria ir embora. Não queriaque aquilo se desmantelasse, sei lá. Mas é muito difícil que um homem tão inteligente comoele acreditasse naquilo". 

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é preciso jogar limpo com ela). Mandem depressa os mecânicos e um homemque saiba navegar, para cruzar o lago com relativa segurança [...] Não reinci-dam no erro de soltar dinheiro [...] Confiem um pouco em meu critério e não

 julguem pelas aparências. Apertem os encarregados de fornecer informaçõesconfiáveis para que deixem de apresentar imagens utópicas, que nada têm aver com a realidade. Procurei aqui ser claro e objetivo, sintético e realista. Vãoacreditar em mim?.77 

No final, o Che se refere a um problema que iria atormentá-lo até o fimde seus dias. Desde meados do ano, a responsabilidade por seu acompa-nhamento, apoio, comunicação e logística passara para as mãos de ManuelPineiro, ou seja, do Vice-Ministério do Interior e sua chamada "Seção deLibertação". Com Aragonês fora de Cuba, a tarefa deixou de ser do partido.Osmany Cienfuegos viajava cada vez mais e, portanto, carecia do aparatonecessário para realizar esse trabalho. Desde o início de agosto, chegaram aDar Assalaam dois funcionários de Pineiro: Ulises Estrada, responsável pelaÁfrica (de origem africana, seria embaixador de Cuba na Jamaica em mea-

dos dos anos 70, sendo expulso por irresponsabilidade e ingerência indevi-da), e um oficial subalterno chamado Rafael Padilla. E a eles que o Che serefere quando aconselha Castro a desconfiar das informações procedentesda Tanzânia. Conhecendo há anos a equipe de Pineiro, depois reagrupadano Departamento do Partido Comunista para a América, sabia que em meioa suas muitas virtudes destacavam-se dois enormes defeitos. 

Quem se dedica a exportar a revolução tem de acreditar nela. Quemconstantemente solicita dinheiro, armas, apoio moral e diplomático paraperipécias revolucionárias no exterior não pode agir como uma ave de mauagouro. Pineiro e seus colaboradores sempre foram os mais empenhados naslutas da América Latina e da África. Seu entusiasmo e sua fé nunca fraque-

 jaram. Mas a contrapartida inevitável desse fanatismo eram informesilusórios, ingénuos ou simplesmente maquiados sobre o estado real de cadaoperação. A tendência ao exagero e a menosprezar os obstáculos, a inca-pacidade de avaliar a correlação de forças com isenção são uma constante notrabalho do chamado Ministério da Revolução. O Che sofreu as conse-quências das ilusões do aparato. Na África, não chegaram a ser fatais; naBolívia, sim. 

O segundo defeito dos serviços cubanos dedicados ao fomento de insur-reições pelo mundo foi a imperícia, inevitável em uma revolução tão recentee disposta a tudo, mas carente de quadros adequados para buscar seus fins. Oencarregado em Havana — que resolvia as questões do Congo, Bolívia, El 

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Salvador ou Nicarágua — dependia do observador no terreno. Pineiroapoiava-se em Estrada e Padilla; Fidel, em Pineiro. As informações proce-dentes das frentes de combate mostraram-se desastrosas, e Pineiro, Raul eFidel Castro tiraram delas conclusões totalmente falsas. Por isso o Che pediaque não levassem em conta os informes provenientes de Dar Assalaam; por

isso desembarcaria na Bolívia, um ano mais tarde, sem a mais remota possi-bilidade de êxito. Além do ânimo abalado pelas divergências internas da tropa cubana e

pelos reveses da luta, também a saúde do Che se deteriorava dia a dia. Foivítima de uma terrível diarreia, provavelmente uma disenteria. Já não sobra-va muito de seu humor e resistência. O abatimento se refletia no trato comos congoleses e os cubanos, até os mais próximos: 

Seu estado de ânimo estava péssimo. Acho que por isso as crises de asma eramcada vez mais frequentes. Teve inclusive uma diarreia, que durou quase doismeses, junto com a asma que o maltratava sem parar. Estava cada dia maismagro e mais mal-humorado. Não que nos tratasse mal, mas ficava o tempo

todo sozinho, com seu livro, só lendo, sem aquela disposição. Não se juntavaconosco como no início. Aquele não era o Che que estávamos acostumados aver. Todo mundo perguntava: Que é que há com o Che ? Não sei. Teve um quefoi perguntar e recebeu uma resposta atravessada. Era o comentário que cir-culava entre nós.78 

Como se não bastasse, entre 6 e 10 de outubro chegava à tropa cubanauma notícia que caiu como uma verdadeira bomba: em Havana, Fidel Cas-tro lera em público a carta de despedida do Che Guevara. Era o famosoescrito em que o Che se despede de Cuba e de Fidel, abrindo mão de seus car-gos, seus títulos, da cidadania cubana, em suma, onde renuncia ao poder einicia sua caminhada rumo à crucificação. Na carta, Che Guevara recapi-

tula a história de seus anos na ilha e assume inteira responsabilidade por seusatos, fossem quais fossem. O objetivo da leitura pública desse texto eraóbvio: ao anunciar-se a composição do Comité Central do Partido Comu-nista, ninguém entenderia a ausência injustificada do Che. Além disso, osboatos sobre seu paradeiro e destino se multiplicavam dia após dia em todoo mundo. A pressão era insuportável.* Á margem da beleza do texto —provavelmente o mais bem escrito de todos os que Guevara deixou —, sua 

(*) "A certa altura, tornou-se inevitável a divulgação da carta, pois todos aquelestumores eram muito prejudiciais sem uma resposta, uma satisfação para a opinião públicainternacional. Não restava nenhuma alternativa a não ser divulgar a carta." (Fidel Castro,cit. emGianni Mina, LJn encuentro, op. cit., p. 327.) 

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divulgação teve um fortíssimo efeito que repercutiu em todo o mundo, massobretudo no pequeno círculo de combalidos cubanos acuados no Congo. 

As lembranças de Aragonês e Fernández Mell apresentam duas versõesdifrentes do modo como o Che soube da leitura pública de sua carta. Oprimeiro jura que foi através de uma emissão da Rádio Pequim; o segundo,

que Drake contou-lhe depois de ter recebido um pacote de cartas e revistasde Havana. Em todo caso, os dois testemunhos coincidem sobre a perplexi-dade e resignação do Che ao inteirar-se da leitura de Fidel. Nas observaçõespessoais que aparecem no final de seu diário, Guevara indica os estragos quea notícia causou na tropa. Fez com que "os companheiros vissem em mim umestrangeiro entre cubanos, algo que só me acontecera no início da luta nasierra Maestra. Naquele momento, o que estava chegando; agora, o que esta-va de partida. Deixávamos de ter muitas coisas em comum... Eu me separa-va dos combatentes".79 Na verdade, a consequência mais grave da divul-gação da carta não era o afrouxamento dos laços com os soldados cubanos.Aquilo na verdade vinha queimar os navios do Che. Dada sua maneira de

ser, a divulgação pública da carta liquidava de vez a opção de voltar a Cuba,mesmo que por pouco tempo. A ideia de uma mentira pública parecia-lheodiosa e inadmissível: depois de anunciar sua partida, não podia mais voltar.A isto se deve sem dúvida sua violenta reação. Benigno, uma testemunhadireta, recorda um episódio particularmente dramático: 

Quando Dreke chega e comunica que houve em Cuba um ato público em queFidel leu a carta, o Che estava sentado num tronco [...] Estava com febre, comdiarreia e em plena crise de asma. Parou e disse: "Repita isso, repita. Como é ?".Então Dreke ficou um pouco assustado e disse: "Calma, Tatu. Veja, foi assimque me contaram". Começa então a explicar. Aí o Che começa a andar de umlado para o outro, resmungando: "Bando de bostas", dizia. "São uns imbecis,

uns idiotas." A gente foi se afastando, porque quando ele se enfurecia a melhorcoisa era deixar a fera solta, nem chegar perto. Nessas horas todo mundo que-ria distância, porque sabia como era quando ele se enfurecia.80* 

Os problemas se multiplicavam e as soluções pareciam cada vez maisremotas. Até o que poderia encher o coração do Che de alegria e saudade —a primeira e única participação em um combate no Congo — resultou emdesastre. Em 24 de outubro, houve um ataque ao acampamento, onde se  

(*) Dariel Alarcón Ramírez, Benigno, op. cit. Em outras entrevistas e em seu própriolivro, Benigno deu a mesma versão, mas com outras circunstâncias. De acordo com essesrelatos, o Che teria convocado vários de seus colaboradores para escutar o discurso de Fi-del pelo rádio. 

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construíra um depósito para pólvora, morteiros, rádios e outros equipamen-tos. O Che vacilou entre a retirada e a resistência, optando pela segunda.Mesmo assim, os congoleses fugiram em debandada e, depois de resistir poralgumas horas, o próprio Che acaba ordenando a retirada. Perdeu-se o paiol,o equipamento e a posição. Os congoleses desempenharam novamente um

papel lamentável. O Che conclui em seu diário: "Pessoalmente eu estavacom o moral terrivelmente baixo. Sentia-me culpado por aquele desastre,por falta de previsão e firmeza".81 Talvez o Che tenha chegado então à mes-ma conclusão do encarregado da África no Conselho de SegurançaNacional em Washington, que informou a seu chefe, McGeorge Bundy, em29 de outubro de 1965: "A guerra no Congo provavelmente terminou".82 

A partir daí, o relacionamento de Guevara com a tropa cubana sedeteriorou por completo. Ninguém acreditava na perspectiva de vitória.Cada vez mais homens (a metade deles, pelos cálculos do Che) voltariam aCuba se pudessem. As queixas se multiplicavam. Havia quem perguntasse:Se é impossível exportar a revolução e os congoleses se recusam a lutar, o

que estamos fazendo aqui? Aragonês chegou a lembrar ao Che que, por sercubano há mais tempo, sabia que os comentários da tropa se voltavam cadavez mais contra os superiores. Como ele recorda, as orientações de Guevaratocavam as raias do absurdo. Exigia que se tomassem alimentos do inimigo,mas o inimigo não tinha alimentos, nem havia inimigo. "Então, comíamosmandioca sem sal." A revolta entre os soldados cubanos aumentava ao verque os congoleses se negavam a carregar o equipamento e os mantimentos,gritando-lhes que não eram caminhões nem cubanos para andar carregan-do quilos de material. Pior ainda: a tropa rebelde exigia dos cubanos umaatenção extra. Já no fim da campanha no Congo, em um dos acampamen-tos fora da base de Kibamba, enquanto o Che lia um de seus livros de sem-

pre, ouviu-se o eco de um bombardeio. Erguendo levemente os olhos, o Cheinstruiu Fernández Mell: "Mande pôr um cubano na porta de cada cabana,para que os congoleses não saiam em disparada", e voltou a mergulhar naleitura. Minutos depois, acontecia o ataque das hostes de Mobutu. Oscubanos não conseguiam ver por qual das duas vias de acesso, e de fuga,avançavam os mercenários e congoleses oficialistas. Nem o Che sabia poronde bater em retirada. Quando os bombardeiros e morteiros já forçavam amovimentação, ele decidiu: "Vamos pelo caminho de baixo. Tomara queeles estejam vindo pelo outro".S! Aquela altura, tudo se resumia a um"tomara". 

A partir de outubro, quatro fatores vieram contribuir para a retirada 

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final das tropas cubanas. A situação piorava à medida que os mercenários eos oficialistas congoleses avançavam rumo ao lago, tomando os povoadosaté então em poder dos rebeldes. No balanço do mês de outubro, o últimoescrito no Congo, o Che escreveu, sem meias-palavras: "Mês de desastretotal. À vergonhosa derrota em Baraka, Fizi e Lubonja [...] soma-se [...] uma

total desmoralização dos congoleses [...] Os cubanos não estão muito me-lhor, desde Tembo e Siki (Aragonês e Fernández Mell) até os soldados".84

Sendo assim, mesmo que não tivesse ocorrido mais nada, a aventura de Gue-vara no Congo chegara ao fim: ou ele escapava, ou seria capturado, ou seentregaria a uma luta suicida às margens do Tanganica. Os mercenáriosavançavam pelo norte e pelo sul, cercando os cubanos entre as montanhas,a oeste, e o lago, a leste. Porém, dois outros fatores ajudariam a aniquilar ossonhos africanos de Che Guevara. 

Graças às cartas do Che e aos relatos de seus enviados, Fidel Castrocomeçou a perceber que a iniciativa na África não prosperava. Por issoenviou à Tanzânia um contigente de comunicações, além de novos pilotos

com barcos mais apropriados para o caso de ser necessária uma retirada pelolago fronteiriço. Mais uma vez mandou Osmany Cienfuegos ao Congo, des-ta vez para persuadir o Che de abandonar a expedição, reconhecer a derro-ta e salvar-se.*" Por fim, escreveu uma carta, que o Che recebeu em 4 denovembro: 

Devemos fazer tudo, menos o absurdo. Se Tatu avalia que nossa presença setornou injustificável e inútil, devemos pensar na retirada, agir de acordo coma situação objetiva e o espírito de nossos homens. Se vocês considerarem quedevem permanecer, trataremos de enviar todos os recursos humanos e mate-riais que julgarem necessários. Preocupa-nos que vocês abriguem o temor,equivocado, de que sua atitude possa ser considerada derrotista ou pessimista.

Se optarem pela retirada, Tatu poderá manter sua condição, regressando paracá ou indo para outro lugar. Qualquer que seja a decisão, nós a apoiaremos.Evitem toda aniquilação."6 

A carta expressava claramente o desejo de Fidel de que o Che se reti-rasse e ao mesmo tempo oferecia uma saída: ou o regresso a Cuba ou umanova epopeia em outro lugar. Castro sabia que era impossível o retorno à ilhadepois da leitura da carta. Já acenava com uma alternativa. 

Os acontecimentos de outubro no Congo seriam o golpe mortal naquixotesca, absurda e heróica tentativa de liderar uma revolução no coraçãodas trevas. Em 13 de outubro de 1965, às vésperas de uma reunião com acúpula da OUA a ser realizada em Acera, o presidente Kasavubu demitiu o 

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primeiro-ministro Tshombé.* Um mês depois de Guevara deixar o Congo,Kasavubu seria derrubado por Mobutu. Logo após o afastamento de Tshombe,o mandatário congolês compareceu à OUA com um espírito conciliador.Acabara de cumprir com a principal condição para que a organização fizesseas pazes com ele. Por outro lado, o grupo dos Estados radicais não tinha mais

motivos para continuar ajudando os rebeldes. Mesmo antes disso, algunslíderes já haviam deixado de fazê-lo: Ben Bella fora deposto em junho porHouari Boumedienne; Obote, da Uganda, suspendera o apoio de seu país;Nkrumah, do Gana, seria derrubado poucos meses depois. Julius Nyerere, oprincipal suporte dos rebeldes, estava praticamente isolado e não tinhagrandes pretextos para continuar respaldando uma luta que definhava e seconsumia em suas eternas divisões. 

Nyerere chegou a propor a Kasavubu que, ao retornar de Acera, sereunisse com os rebeldes. Entrou em contato com o governo do Congo-Braz-zaville para que este também reduzisse a ajuda à rebelião de Pierre Mulele.Assim, a conjuntura regional transformou-se radicalmente no final de ou-

tubro. A frente dos países progressistas se esfacelou ao mesmo tempo que afrente de batalha às margens do grande lago. Agora só faltava que Nyerere,obedecendo à resolução da cúpula de Acera sobre a não-intervenção nosassuntos internos dos países-membros da OUA, solicitasse a retirada doscubanos, junto com a dos sul-africanos. Ele o fez no início de novembro.Mike Hoare abandonou o Congo no mesmo mês, embora alguns de seushomens ainda tenham permanecido até 1966. No dia l e de novembro,chegava ao acampamento do Che a mensagem de Nyerere solicitando for-malmente a suspensão da ajuda cubana. Com isso, punha-se um ponto finalna política de ajuda ao que restara da rebelião congolesa. Para o Che, era "ogolpe de misericórdia em uma revolução moribunda". 

Mas o alquebrado e desnutrido argentino não dava o braço a torcer.Enquanto os mercenários sul-africanos permanecessem no Congo, consi- 

(*) Vários autores suspeitam da participação da CIA e de Lawrence Devlin na derrubadade Kasavubu em 25 de novembro, mas não necessariamente no caso de Tshombé. Entre-tanto, alguns pensam que foram duas etapas de uma mesma operação. (Ver, por exemplo,Ellen Ray, William Schapp, Karl van Meter e Louis Wolf (eds.), Dirty work, theCIA in África,vol. 2,LyleStuart, Secaucus, 1979, p. 191.) A proximidade entre Devlin e Mobutu pode serconfirmada por este comentário do embaixador dos Estados Unidos em Léopoldville:"Devlin está mais próximo de Mobutu que qualquer não-congolês que eu conheça". (AmEm-bassy to SecState, 25/11/65 (secreto), National Security File, Country File, Congo, vol. XII,#47,LBjLibrary.) 

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derava injusto abandonar a luta, a menos que os rebeldes congoleses o pedis-sem. O único líder restante na área era Masengo, lugar-tenente de Kabila.Em meados de novembro, ele e o Che celebraram uma reunião decisiva,enquanto os mercenários fechavam o cerco em torno da base. Guevaraexpôs as alternativas: "Resistência e morte, ou retirada". Masengo tomou a

palavra: "Não, não concordo com você. Se nós não somos capazes de colo-car um congolês, um único que seja, ao lado dos cubanos para que morra comeles, não podemos pedir aos cubanos que o façam". E o Che replicou: "Adecisão tem de ser de vocês, e tem de ser muito clara. Ou seja, não pode havernenhuma ambiguidade. Nós faremos o que vocês decidirem que devemosfazer. Mas a decisão deve partir de vocês e de mais ninguém".87 

Parecia iminente um último combate, o do auto-sacrifício. Oscubanos insistiram na solicitação formal de retirada: "Basta você redigirum documento dizendo que considera que os cubanos devem se retirar, jáque sua presença aqui provoca maior repressão". O Che reitera: "Veja, eles já estão a um passo, estão a um passo daqui. Só nos resta agora preparar-nos

para nosso enterro. As coisas aqui estão bem claras: é resistência e morteou retirada".88 Por fim, o líder congolês atendeu a seu pedido e todos oscubanos se dirigiram para os barcos, prontos para cruzar o lago rumo a Ki-goma e à salvação. 

O Che, porém, ainda fez um último esforço por manter vivo o sonhoafricano. Antes de embarcar na lancha, avisou a Aragonês e FernándezMell que preferia ficar, com uns poucos homens, e empreender uma longamarcha de mais de 1500 quilómetros, atravessando o Congo até Kwilu, paraunir-se a Mulele nas bases do Leste e continuar a luta. Seus grandes amigoscubanos não entenderam sua posição. Fernández Mell jogou seu chapéu nochão e, pela primeira vez, perdeu a paciência. Aragonês, mais flexível e

experiente, argumentou: "Escute aqui, Che, até agora eu fiz tudo o que vocêmandou, sem discutir, e não por falta de vontade, tudo sempre à risca, comoum subordinado. Mas agora eu vou dizer uma coisa, Che: nem tente man-dar que eu vá embora com a tropa enquanto você fica aqui". O Che con-cordou, mas ainda não era sua última palavra. Logo inventaria outro pre-texto: "Eu vou ficar aqui com cinco cubanos fortes para procurar nossossoldados mortos ou desaparecidos". Segundo ele, "a ideia de levantar acam-pamento e partir como tínhamos chegado, deixando ali camponeses inde-fesos e homens armados, mas também indefesos, dada sua reduzida capaci-dade de luta, derrotados e com a sensação de terem sido traídos, essa ideiame doía profundamente".39 Os barcos se enchiam de mulheres e crianças 

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das aldeias rebeldes que se lançavam às praias do lago fugindo do inevitávelavanço dos mercenários. O encarregado cubano das lanchas, Changa ouLawton, ficou perplexo ao ver seus barcos, tão zelosamente cuidados, abar-rotados de mulheres e crianças gritando que não as abandonassem, enquan-to seu próprio comandante, em terra, recusava-se a zarpar. O Che então

apelou para uma última alegação: mulheres e crianças, primeiro. Lawtonreplicou que não era essa a ordem que tinha recebido, e argumentou: "Olhe,esses negros são daqui, da selva, estão dispostos a viver aqui. Não são elesque os mercenários perseguem. Perseguem o senhor e os negros cubanos".O Che insistiu: "Quando chegarem aqui vão massacrar essa gente". E Law-ton: "Pode ser, mas eu recebi ordens de não deixar os cubanos serem mas-sacrados, portanto são os cubanos que devo tirar daqui. Eu tenho muitorespeito pelo senhor e acato todas as suas ordens, mas vim aqui cumprindoordens de Fidel, e se eu tiver de levar o senhor amarrado, eu não tenho dúvi-da: amarro e levo".* 

Tal como o Che lamenta na introdução de seu diário do Congo, foi tudo

a história de um fracasso.90

 As razões foram muitas, algumas sagazmenteapontadas pelo comandante guerrilheiro, outras visíveis agora, trinta anosdepois. De fato, como Ben Bella lastima no início deste capítulo, o Chechegou atrasado ao Congo. Isso ocorreu porque seu tempo, o tempo de seusdemónios e anseios, não era o das lutas africanas. Guevara quis repetir noCongo sua versão da epopeia da sierra Maestra. Nem a cópia, nem o originalcorrespondiam à realidade. Talvez o maior desmentido das aspirações edelírios de nosso personagem resida numa curiosa nota marginal, que bempode servir de epílogo para este alucinado relato. 

Três fontes indiscutivelmente autorizadas formulam a mesma pergunta eapresentam três respostas diferentes, em uma estranha recriação da Mandrá-

gora de Maquiavel. Como foi possível a fuga de uma centena de cubanos edezenas de combatentes ruandeses e rebeldes de outras etnias, atravessandoem plena luz do dia um lago incessantemente patrulhado pelas velozes lanchassul-africanas, pela CIA e pelo exército congolês? Benigno acrescenta mais deta-lhes ao enigma: em suas lanchas fazendo água e sobrecarregadas, rodeadas porembarcações de um inimigo que conhecia todos os seus horários e itinerários,os cubanos se conformaram à perspectiva de um combate no lago onde certa-mente perderiam até o último homem. Mas isso não aconteceu. Ninguém os 

(*) "Esse diálogo enlouquecedor foi narrado ao autor por Benigno e confirmado, emseparado, por Aragonês e Fernández Mell. A existência de três fontes justifica sua reproduçãotextual, com a natural licença dos anos transcorridos e o exagero cubano. 

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viu, ou quem os viu não quis abrir fogo e massacrá-los.* O desfecho foi descon-certante. Mesmo cercados, os cubanos conseguiram escapar ilesos. A missãobelga se enfureceu. Não estava convencida de que a retirada cubana fossedefinitiva. Lawrence Devlin apresentou uma explicação que, no coração daÁfrica milenar, não é de todo inverossímil: "Deixei uma lancha a postos para

impedir que os cubanos cruzassem o lago, mas ela quebrou, e os cubanosescaparam. Nunca vou me perdoar por isso".91 O major Bem Hardenne con-fessou sua perplexidade e apresentou a seguinte versão do episódio: 

As condições atmosféricas tinham melhorado sensivelmente, o posto decomando da OPS-SUD dirigia as operações a partir de um avião DC-3. A aero-nave detectou a partida dos cubanos, a bordo de numerosas embarcações queatravessavam o lago ou costeavam suas margens rumo ao sul. Por razões quenunca serão explicadas, os aviões e lanchas do ANC, pilotados por mer-cenários, não só não estavam a postos, apesar das estritas ordens recebidas,como não responderam aos chamados do avião do posto de comando. Essa máexecução das ordens permitiu a fuga dos cubanos.92 

Jules Gérard-Libois, do Centro de Pesquisa e Informação Sócio-Política(CRISP), de Bruxelas, que há trinta anos estuda as guerras do Congo, consideraincompreensível o fato de os belgas, sul-africanos e cubanos anticastristasterem permitido que o Che deixasse o Congo. Segundo ele, as ordens da OPS-SUD transmitidas aos batalhões congoleses sob sua jurisdição diziam clara-mente que a vida dos cubanos devia ser preservada. Enquanto isso, os dois pilo-tos belgas a serviço da CIA eram retidos em seu quarto de hotel. De acordo comGérard-Libois, o próprio chefe da agência norte-americana em Albertvillecomentara com dois oficiais belgas que havia recebido instruções superioresno sentido de não provocar nenhum incidente com os cubanos antes de 1 ° dedezembro. Tais instruções parecem ter prevalecido sobre aquelas que deter-minavam a "destruição operacional do inimigo" por parte dos aviões e lanchassob o comando da CIA, pois nada foi feito nesse sentido.** Gérard-Libois rela-  

(*) Dariel Alarcón Rodríguez, o Benigno, op. cit.: "Fiquei muito surpreso com o lugarpor onde cruzamos ao amanhecer. Para mim era impossível cruzar por ali sem sermos vistos,porque íamos passar entre duas fragatas. Tivemos que desligar os motores e nos jogar na água,todos os que sabiam nadar, para ir empurrando a lancha até passar entre as duas fragatas, queestavam bem próximas. Eu achava que de um momento para outro iam começar a atirar emnós. Era humanamente impossível que não nos vissem".  

(**) Tais comentários foram amavelmente transmitidos ao autor por Jules Gérard-Libois em várias conversas telefónicas, sobretudo em 18 de novembro de 1995 e ao longo dedezembro de 1995, e em uma série de cartas com data do início de 1996.  

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ciona toda essa misteriosa clemência com um fato ocorrido na mesma épocado outro lado do mundo: o chamado acordo migratório de Camarioca entreCuba e os Estados Unidos, intermediado pelo embaixador da Suíça emHavana, que permitiria, durante vários meses, a saída de milhares de cubanosdesejosos de abandonar a ilha. Durante o primeiro ano de vigência, mais de 45

mil cubanos emigraram para a Flórida com base nas disposições do acordo. Em 27 de outubro, Castro anunciara seu propósito de deixar sair da ilha

quem assim o desejasse. Segundo ele, a dificuldade para a emigração era causa-da por Washington, que não fornecia vistos de entrada. A declaração de Castrodeixou uma porta aberta para a negociação, que seria conduzida pela embaixa-da da Confederação Helvética em Cuba e anunciada nas duas capitais em 4 denovembro, em simultâneas coletivas de imprensa. Segundo a interpretação deGérard-Libois, os norte-americanos preferiram evitar qualquer ato que atra-palhasse ou impedisse a aplicação de um acordo de tão difícil obtenção. O temada migração reapareceria nas relações entre os dois países, com a mesma comple-xidade, em 1980, com o êxodo do Mariel, e no verão de 1994, com o drama dos

balseros. Segundo o pesquisador belga, parece lógico que Washington advertissetodas as suas missões no mundo para que evitassem qualquer atrito ou enfrenta-mento com os cubanos, fosse qual fosse o motivo, até que o acordo de Camariocacomeçasse a ser aplicado e as migrações se consumassem. Obviamente, osnorte-americanos não imaginavam que com isso permitiriam a retirada do CheGuevara. Era apenas uma orientação genérica, que os funcionários norte-ame-ricanos no Congo parecem ter interpretado mal. O fato é que, com isso, teriampermitido a evacuação dos combatentes cubanos de Kibamba. 

De todos os funcionários norte-americanos envolvidos na teia de con- junturas e mistérios da época, nenhum recorda qualquer instrução dessetipo, nem atribui maior credibilidade à tese de Gérard-Libois. Devlin diz que

 jamais recebeu uma ordem dessa natureza. A pedido do autor, consultou seusantigos subordinados em Albertville (em particular Richard Johnson), masnão obteve nenhuma informação nesse sentido. Gustavo Villoldo, um doscubanos anticastristas que combateram no Congo, jura que jamais teriaacatado uma ordem dessas, mas que de qualquer forma ela nunca foi dada.Por fim, William Bowdler, o diplomata que negociou o acordo de Camario-ca em nome do Departamento de Estado norte-americano, também nãorecorda qualquer decisão de Washington nesse sentido. 

No entanto, o mistério continua: como e por que o Che conseguiu sairdo Congo? Não seria a última ironia de sua história se ele devesse sua sobre-vivência na África a uma estranha e feliz coincidência. A fuga do Congo e a  

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curta sobrevida até a tragédia na Bolívia poderiam ser atribuídas a um acor-do tácito entre Fidel Castro, as autoridades diplomáticas e de migração dosEstados Unidos, a CIA e os mercenários sul-africanos nos arredores do lagoTanganica. Se tivesse terminado seus dias ali, não seria menor seu sacrifício,nem menos sólida a base sobre a qual se ergueu um dos maiores mitos do sécu-

lo, mas com certeza seria diferente. A história avança de viés, mascarada.Ninguém melhor que o próprio Che para avaliar sua atuação na guer-

rilha congolesa. Ele nunca perdeu sua lucidez e capacidade de auto-análise.Encerra o último livro de sua vida com uma cruel avaliação de seu desem-penho na África:

Fiquei de mãos atadas pela forma um tanto atípica como entrei no Congo enão fui capaz de superar esse inconveniente. Fui inconstante em minhasreações. Mantive por muito tempo uma atitude que poderia ser consideradademasiado complacente e, por momentos, tive explosões de cólera muito con-tundentes e ofensivas, o que talvez seja uma característica natural de minhapersonalidade. O único setor com o qual mantive relações corretas foi o dos

camponeses, pois estou mais habituado à linguagem política e à explicaçãodireta, por meio de exemplos, e acho que nesse terreno poderia ter alcançadobons resultados [...] Quanto ao contato com meus homens, acho que meu sa-crifício foi suficiente para que ninguém possa recriminar-me qualquer debili-dade no aspecto pessoal e físico. Minhas duas principais fraquezas foram satis-feitas no Congo: o tabaco, que quase nunca faltou, e a leitura, sempreabundante. O desconforto de um par de botas furadas, uma muda de roupasuja, de comer a mesma comida da tropa e viver nas mesmas condições paramim não significa sacrifício. Mas acho que o fato de retirar-me para ler, fugin-do dos problemas cotidianos, tendia a afastar-me de meus homens, sem con-tar que há certos aspectos de meu caráter que tornam difícil o trato comigo.Fui duro, mas acho que não me excedi, nem fui injusto. Empreguei métodos

que não são usados em um exército regular, como o de suspender a comida, masque é o único eficiente que conheço em tempos de guerrilha. No início quisaplicar castigos morais, mas fracassei. Tentei fazer com que minha tropativesse o mesmo ponto de vista que eu, e fracassei. Ela não estava preparadapara encarar com otimismo um futuro que só podia ser visto através de brumastão negras no presente [...] Não me atrevi a pedir o sacrifício máximo naquelemomento decisivo. Deparei com um bloqueio interno, psíquico. Seria muitodifícil para mim ficar no Congo. Do ponto de vista do amor-próprio de umcombatente, era o certo. Sob o prisma de minha atividade futura, se não era amelhor coisa a fazer, era, no mínimo, indiferente. Quando refletia sobre adecisão a tomar, eu sabia como seria fácil para mim assumir o sacrifício decisi-vo, mas essa certeza acabou sendo prejudicial. Na esteira desta análise

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autocrítica, considero que eu deveria ter vencido a mim mesmo e impor ogesto final a um pequeno grupo de combatentes. Que fôssemos poucos, masdevíamos ter ficado [...] Saí de lá com mais fé do que nunca na luta guerrilheira,mas o fato é que fracassamos. Minha responsabilidade é grande; nunca esque-cerei a derrota nem seus mais preciosos ensinamentos.1"

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; TRAÍDO POR QUEM? 

A vida parara de sorrir para Che Guevara, mas sua admirável vontadee sua sorte durariam o bastante para uma nova aventura. O homem queemergiu da derrota do Congo conservava sua força interior, suas convicçõese os grandes traços de seu caráter, mas trazia algumas marcas da caminhada.Perdera muito peso, não chegava nem a cinquenta quilos, enquanto a asmae a disenteria o castigavam com tremenda frequência e crueldade. * Para pio-rar, o desânimo e o desespero ante um destino sombrio logo se transfor-maram em depressão. Por várias semanas, ele permaneceu prostrado em umaminúscula sala no primeiro andar da embaixada de Cuba em Dar Assalaam. 

Logo, porém, começaria a se recuperar, primeiro das doenças, depois doabatimento que começou a desvanecer-se à medida que avançavam seusplanos para o futuro. Como recorda uma pessoa que esteve com ele duranteaqueles meses na Tanzânia: "Eu não acho que ele tenha saído com um espíri-to de derrota. Saiu, sim, com um espírito crítico em relação à cúpula políti-ca da organização e com um espírito de compreensão e amor pelas brigadascongolesas".1 

Desde que foi acolhido por Pablo Ribalta na capital da Tanzânia, oChe tomou duas decisões definitivas: não voltaria a Cuba e seu próximodestino seria Buenos Aires. Benigno recorda: "Ele não quer regressar a Cuba,não quer por nada deste mundo".2 A razão era evidente: a leitura pública de

sua carta de despedida por Fidel Castro. Ele não queria quebrar seu com- 

(*) Segundo Colman Ferrer, seu secretário na Tanzânia, "estava magro, pálido, mal ali-mentado". (Entrevista com o autor, Havana, 25/8/95.) 

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promisso, nem que fosse na mais absoluta clandestinidade. Se renunciara atudo em Cuba, não poderia regressar vencido e cabisbaixo. Além disso, aeconomia cubana tomara um rumo completamente alheio a suas con-vicções. Seus colaboradores mais próximos tinham sido excluídos doComité Central do Partido Comunista; suas teses internacionalistas ti-

nham naufragado frente à dura realidade do atraso e das idiossincrasiasafricanas. No fundo ele não tinha para onde ir. Por isso, voltaria ao pontode partida. Agora, sim, retornaria, não como o filho pródigo que se reinte-gra ao torrão natal e familiar, mas para fazer a revolução onde sempre qui-sera fazê-la: na Argentina. 

Angel Braguer, o Lino, um dos responsáveis na Bolívia pelos serviçoscubanos de informação, não tinha dúvidas a esse respeito. Desde sua conva-lescença em Dar Assalaam, o Che perseguia um único propósito: ir a BuenosAires, com ou sem preparativos, recursos e acompanhantes. "Ele se impôsuma missão muito heróica, quase sem nenhuma condição. Era o mesmo quepermanecer às margens do lago Tanganica sem apoio. Era muito semelhante

a continuar o combate às margens do rio, quase em campo aberto, contrauma força superior que o estava vencendo".* Os últimos meses do Che na África encerraram uma intensa disputa

entre Havana e Dar Assalaam: Guevara, puxando sem descanso para ocone sul; Castro e Cuba inventando novos subterfúgios e estratagemas paraevitar uma tragédia nas mãos do exército argentino, que Emilio Aragonêstanto e com tanta razão temia. Uma das primeiras armas que Castro empre-gou para evitar a viagem foi Aleida; outra, Ramiro Valdés, o maior amigodo Che em Cuba, escolhido como tutor de seus filhos em caso de morte.Pablo Ribalta recorda a passagem de Aleida pela Tanzânia: "Sua esposachegou a Dar Assalaam. Ficaram na embaixada. O Che estava muito afá-

vel, muito contente, falaram das crianças, se abraçaram... Ela ficou maisalgum tempo".' Ou, segundo uma fonte do aparato cubano: "Foi uma joga-da de Fidel para que (o Che) não fosse à Argentina, mas voltasse a Cuba.Fidel mandou Aleida e outras pessoas para vê-lo. O Che queria ir diretopara Buenos Aires. Fidel inventou a Bolívia, usando os recursos existentesnaquele país, para convencê-lo a regressar a Cuba em vez de ir para aArgentina".4 

(*) Angel Braguer, o Lino, entrevista com o autor, Havana, 24/1/96. Benigno apresen-ta exatamente a mesma versão em seu livro de memórias, publicado em Paris em 1995, sus-citando diversas e violentas reações oficiais cubanas. (Ver Dariel Alarcón Ramírez,  Benigno,Vie et Mort de \a Révolution Cubaine, Paris, Fayard, 1995, p. 108.) 

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Aos poucos, o Che foi aceitando a ideia de ir à Bolívia ou, pelo menos,de passar por lá a caminho da Argentina, mas não a de voltar a Cuba. Logomandou José Maria Martínez Tamayo, o Papi, para a Bolívia. Ele chegou aLa Paz em março, com a missão de preparar a viagem para sua terra natal.Também instruiu o Pombo e Tuma para que fossem ao país andino, recu-

perassem umas malas cheias de dólares e o esperassem na fronteira com aArgentina. Na verdade, esses seus dois colaboradores se demoraram emCuba, onde as autoridades os fizeram mudar de planos, pelo menos até julho,quando desembarcaram na capital boliviana.5 

Enquanto esperava, o Che preencheu o tempo livre com sua ativi-dade preferida, depois do combate e da leitura: escrever. A partir do diáriode seus sete meses de estadia no Congo, iniciou a redação do livro citadovárias vezes no capítulo anterior: Pasajes de Ia guerra revolucionaria (el Con-go). Colman Ferrer, um jovem secretário da embaixada cubana em DarAssalaam, fez as vezes de assistente; o Che ditava, com base nas anotaçõesde campanha; Ferrer transcrevia. Mais tarde, Guevara revisava o texto.

Ao escrever, o Che fazia uma avaliação dos combatentes e, segundo aspalavras de Ferrer, via os dias correrem, "matando o tempo, preparando ascondições para outro cenário". Com certeza, não sofria de tédio. OscarFernández Mell recorda: "Uma das grandes virtudes do Che era seu gostopela leitura [...] Ele era capaz de ficar lendo horas a fio, feliz da vida, mes-mo estando só".6 

Nosso personagem trabalhava com extrema minúcia. Como obser-va Ferrer, "tinha muito cuidado com aquilo que escrevia, evitando come-ter erros. Era muito zeloso, analisava, relia as transcrições da gravação".7

Concentrava-se por completo no que estava redigindo e dava poucaatenção a seus passatempos. "Escrevia dia e noite. Só muito de vez em

quando se distraía jogando umas partidinhas de xadrez comigo. Um diaem que eu lhe dei um xeque-mate, ficou olhando para mim como se nãose desse conta do que tinha acontecido. Via-se que sua cabeça não estavarealmente no jogo."" 

Finalmente, no fim de fevereiro ou início de março de 1966, ele aceitoupartir para Praga e preparar a próxima etapa de sua vida.* O encarregado deconduzi-lo à capital tcheca foi Ulises Estrada, o responsável pela África nos 

(*) A referência ao final de fevereiro provém de várias fontes: Fernández Mell, queficou por mais tempo em Dar Assalaam; Ulises Estrada, que acompanhou o Che na viagem aPraga, via Cairo; Colman Ferrer, que recorda quanto tempo trabalharam juntos no manus-crito de Pasajes; e Pablo Ribalta. 

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serviços de Pineiro.* Em Praga, o Che passou quatro meses recolhido, aindarecuperando-se das doenças e da depressão — Castro enviara seus médicosparticulares para atendê-lo — e organizando a nova expedição. Os fun-cionários cubanos que o receberam — entre eles José Luis Ojaldo, da equipede Pineiro — inicialmente o alojaram em um apartamento na cidade, depois

em uma casa de subúrbio, a uns vinte quilómetros do centro, no caminhopara a aldeia de Lídice. Ulises ficou um mês em Praga junto ao Che. Depoisfoi substituído por Juan Carretero, que mais tarde se celebrizaria como Ariel,destinatário e emissor das mensagens cifradas entre a Bolívia e Cuba, eAlberto Fernández Montes de Oca, o Pacho, ou Pachungo, com quem Gue-vara viajaria à Bolívia em novembro. Estrada recorda sua estadia naTchecoslováquia em tons sombrios: o inverno centro-europeu, o estado deânimo do Che, a incerteza sobre o futuro estavam bem longe de formar umquadro alegre ou animador: 

Fiquei com ele até que decidiu que eu voltaria a Cuba. Morávamos em umapartamento de trabalhadores, onde se supunha que o Che teria calma.

Vivíamos um tanto aflitos. Não saíamos para a rua e, quando saíamos, com ocompanheiro José Luis (Ojaldo), íamos sempre para os arredores de Praga, arestaurantes afastados, no campo. Eu chamava muito a atenção, as arru-madeiras mexiam no meu cabelo... Então ele teve uma conversa comigo efalou: "Olhe, eu posso ser descoberto por sua causa, porque você chama muitoa atenção. Por onde a gente passa, todo mundo fica olhando. Você tem o pri-vilégio de ser negro. Em outro lugar, seria discriminado; aqui é admirado. Euvou ter que pedir ao Fidel que mande um substituto.** 

Foram talvez os piores meses de sua vida: sombrios, tristes, solitários,cheios de incerteza, impregnados da frieza e escuridão do ambiente. Segun-do uma versão verossímil mas não comprovada, o Che levou semanas recu-

perando-se de uma espécie de intoxicação provocada por um medicamentoantiasmático soviético com prazo de validade vencido. Continuava abatidopela doença e sujeito a um sem-número de pressões contraditórias. Suasrecentes experiências o privaram das certezas que antes lhe permitiam re- 

(*) "Mas todos voltaram a Cuba e ele ficou só ali na Tanzânia; então ocorreu-me tirá-lo da Tanzânia e levá-lo para um lugar seguro até que ele decidisse o que faria." Ulises Estra-da, entrevista com o autor, Havana, 9/2/95. 

(**) Ulises Estrada, op. cit. Paço Ignacio Taibo U, em sua biografia do Che, cita pas-sagens semelhantes dessa mesma entrevista. Através de um fecundo e solidário intercâmbiode documentações e fontes, Taibo e o autor partilharam informações obtidas em suaspesquisas. Neste caso a entrevista foi concedida ao autor, que a pôs à disposição de Taibo.  

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sistir às pressões e ditar seu próprio destino. Os meses se arrastavam, marca-dos apenas pelo esforço de manter-se incógnito e organizar, à distância, umanova tentativa de estopim revolucionário. Nem os tchecos, nem os soviéti-cos chegaram a saber da presença de Ernesto Guevara em seu país, ou pelomenos é o que supõem até hoje as pessoas que o acompanharam. A obsessão

de Guevara pelo sigilo certamente dificultou sua localização, embora sejadifícil acreditar que Fidel Castro não tenha avisado Moscou sobre oparadeiro de seu famoso e turbulento companheiro. Seja como for, os movi-mentos devem ter despertado suspeitas. Afinal, por que tantos conspi-radores cubanos apareciam de repente na Europa Central ? 

Com efeito, Castro lançou mão de todo tipo de recursos na luta paraconvencer o Che a, pelo menos, adiar o retorno a Buenos Aires e prepará-loadequadamente.* Aleida visitou-o mais uma vez, pedindo que voltasse.Ramiro Valdés tornou a ir a Praga. Benigno encontrou o Che em Moscou, naescala de um vôo, e hoje ele acredita que foi Ramiro quem o convenceu aregressar a Cuba.9 Tâmara Bunke, ou Tânia, a intérprete germano-argentina

convertida em agente cubana, também viajou a Praga,** segundo UlisesEstrada, que foi seu namorado por mais de um ano. * * * Depois de ter se inter-rompido a comunicação entre os cubanos e Tâmara, que se encontrava naBolívia, ela foi chamada a Praga para apresentar uma avaliação de seu tra-balho e das possibilidades que o país oferecia: "Durante um ano, Tânia ficou 

(*) Entrevistado por Gianni Mina em 1987, Fidel Castro confirmou que Guevararecusava-se a regressar a Cuba: "[O Che] não queria voltar porque, depois da divulgação desua carta, era algo muito doloroso para ele [...] Mas no fim eu o convenci a voltar, dizendoque era o mais conveniente para tudo aquilo que ele pretendia fazer". (Fidel Castro, entre-vista a Gianni Mina, Havana, Oficina de Publicaciones dei Consejo de Estado, Havana,1988, p. 327.) 

(* *) Estrada, op. cit. Com base nos documentos recolhidos pela CIA na Bolívia, DanielJames, um biógrafo do Che com acesso à informação dos serviços secretos norte-americanos,reconstituiu parte do itinerário de Tânia. Segundo James, ela saiu da Bolívia em meados defevereiro de 1966, via Brasil, chegando ao México em 14 de abril, e "perdeu-se" a partir de 30de abril. James deduz que ela foi a Cuba para receber instruções do Che, mas hoje sabemosque Guevara continuava em Praga e Tânia, na verdade, dirigiu-se à Tchecoslováquia, emborapossa ter feito uma escala em Havana. (Ver Daniel James, Che Guevara: una biografia, Edi-torial Diana, México DF, 1971, pp. 268-9.) 

(***) Estrada, op. cit. Tânia refere-se a Estrada em uma carta a seus pais, escrita em 11de abril de 1964; espera que não "roubem meu negrinho antes que eu volte. Aí vou me casar[•■•] Se depois vão vir uns mulatinhos, isso eu não sei [...] [Ele é] magro, alto, bem negro, tipi-camente cubano, muito carinhoso[...]" (Instituto Cubano dei Libro, Tânia Ia guerrillerainolvidabk, Havana, 1974, p. 195.) 

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incomunicada em La Paz. Por fim, conseguimos fazer contato com ela noMéxico e, depois, na Tchecoslováquia. Ali as cifras foram trocadas. Foi láque ela recebeu treinamento de comunicação cifrada e aprendeu a usar oscódigos, o horário radial, uma porção de coisas desse tipo. Foi em Praga".10 

Segundo Ulises Estrada, os cubanos conseguiram um sítio nos

arredores de Praga para as reuniões do Che com Tâmara Bunke. Ali "eleesteve com Tânia".* Com isso, cresciam os rumores acerca de um romanceentre o Che e a agente germano-argentina. As especulações remontavam aotempo em que os dois se conheceram em Havana, e a frequência em queeram vistos juntos em reuniões e festas logo alimentou os boatos. Nosserviços de informação de Cuba chegou a circular o comentário de que a ver-dadeira intenção do Che ao desfazer-se de Estrada em Praga era afastá-lo deTânia. Não é impossível. Nem se pode descartar a versão de que teria havi-do uma tremenda briga entre Guevara e sua esposa, em uma das visitas deAleida à capital tcheca, provocada, justamente, pela presença de Tânia. Ofato é que todas essas visitas, manobras e promessas começaram a montar

cenário da expedição do Che à Bolívia. Todos — Aleida, Fidel Castro,Manuel Pineiro, os auxiliares tradicionais do Che, seus amigos, Tânia — seempenharam em forjar uma alternativa à operação na Argentina e con-vencê-lo de sua conveniência. 

A tarefa, entretanto, não era nada fácil. Para evitar uma tragédia emseu país natal, era preciso apresentar ao Che uma opção que lhe parecesseviável e que, de preferência, não ficasse longe de seu objetivo maior.Primeiro, tentou-se a Venezuela. Carlos Franqui recorda que Fidel Castrorecorreu a seus bons contatos junto à guerrilha venezuelana, para que elaacolhesse o Che." Segundo Franqui, a resposta foi negativa. TeodoroPetkoff, o líder guerrilheiro venezuelano, na época preso na penitenciária de

San Carlos, hoje ministro de Estado, confirma que, de fato, recebeu um pedi-do dessa natureza, mas que foi recusado.12 Germán Lairet, ex-representantedas FALN em Havana, recorda que essa não foi a primeira vez: desde 1964, oscubanos vinham fazendo sondagens sobre uma possível integração do Che 

(*) Outra confirmação da presença de Tânia em Praga consta nos arquivos secretos doPartido Comunista da Alemanha Oriental (SED). Ali aparece uma carta de um colaboradorargentino da revista Problemas de Ia Paz y dei Socialismo, dirigida aos pais de Tânia em 27 deabril de 1969, que diz: "Nós conhecemos sua filha, como devem se lembrar [...] Durante suaestada [sic] em Praga, ela nos visitou várias vezes." (Instituí fur Marxismus-Leninismus beimZentral Komitee der SED, Zentrales Parteiarchiv, SED Internationale Verbindungen, Argen-tinien 1962-72, DY 30/iv A2/20/694, Berlim.) 

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à luta guerrilheira venezuelana.* Entretanto, devido às divisões internas, àofensiva do governo e à conjuntura internacional, o grupo considerava quenão estava em condições de garantir a segurança de Guevara. Mas, acima detudo, os interessados queriam manter distância de Guevara porque, segun-do Petkoff, a presença de alguém como ele confirmaria a acusação de que o

movimento era fomentado por estrangeiros. No início de 1967, com o Chena Bolívia e a guerrilha venezuelana agonizando, Fidel Castro lançaria umferoz ataque contra os dirigentes desta, acusando-os de traição por teremabandonado as armas. A Venezuela não era mesmo o refúgio mais apropria-do para o comandante Guevara. 

Outra alternativa era o Peru. Desde 1963, as lutas guerrilheiras de Luis deIa Puente e Hugo Blanco vinham oferecendo possibilidades interessantes.Porém, na verdade, o movimento semitrotskista de Blanco no vale da Con-vención levara à prisão de seu líder, em 29 de maio de 1963. Semanas depois,outro núcleo, liderado pelo jovem poeta Javier Hefaud, foi aniquilado em Puer-to Maldonado quando penetrava no país vindo da Bolívia. Quanto ao foco

mais tipicamente castrista de Luis de Ia Puente, após alguns êxitos na ofensivade junho de 1965, suas colunas foram dizimadas, entre setembro do mesmo ano— quando seu líder tombou em combate — e o início de 1966.0 último sus-piro, uma nova frente guerrilheira dirigida por Héctor Bejar, foi dado emdezembro de 1965. Além disso, o Partido Comunista do Peru se opusera sis-tematicamente a essas iniciativas, argumentando que as condições objetivaspara a luta armada não estavam dadas. Assim, apesar das intenções originais, oscubanos foram obrigados a informar os peruanos sobre a decisão de "nosso go-verno de iniciar a luta pela Bolívia e, posteriormente, passar ao Peru". * * Acres- 

(*) Germán Lairet, conversa telefónica com o autor, outubro de 1996. Régis Debray

apresentou, em 1974, uma versão diferente. Segundo ele, foram os venezuelanos, em parti-cular Luben Petkoff, irmão de Teodoro, que convidaram o Che para ir a seu país, convite queGuevara recusou por não querer "pegar o bonde andando". (Ver Régis Debray, La critique desarmes, t. 2, Les epreuves dufeu, Paris, Seuil, 1974, pp. 21-2.) As duas versões não são neces-sariamente incompatíveis. É possível que, em 1966, Fidel tenha voltado a fazer a proposta aosguerrilheiros venezuelanos justamente porque, em 1964, eles já haviam mostrado interessepela possível incorporação do Che. 

(**) Harry Villegas, Pombo, El verdadero diano de Pombo, La Paz, La Razón, 9/10/96, p.17. Até 1996, a única versão disponível do diário do Pombo era uma tradução para o inglês,retraduzida para o espanhol, entregue pela CIA aos editores Stein and Day em 1968. Em finsde 1996, o Banco Central da Bolívia, em cujas dependências estão guardados os documentosda campanha do Che na Bolívia, permitiu a entrada de dois jornalistas para examiná-los eliberou alguns para publicação, entre eles a versão original do diário do Pombo, aqui citada. 

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centavam que as condições não eram propícias. Convidávamos peruanos a con-tinuar colaborando com eles, enviando homens à Bolívia para participar da guer-rilha no país vizinho e mais tarde formar o núcleo de sua própria luta guerrilheira. 

Já não restavam muitas opções em que as velhas desavenças entre cas-tristas e comunistas latino-americanos não representassem um obstáculo,

tanto ao desenvolvimento das operações como à persuasão do Che, aindaobcecado por seu delírio argentino. Pior ainda: era preciso convencer o Chede que, qualquer que fosse a alternativa apresentada, seria apenas uma escalano caminho para sua pátria. Daí a ideia de organizar uma guerrilha-mãe, daqual nasceriam várias outras, sendo a principal delas justamente a que pene-traria na Argentina. Por toda^ essas razões e pelos recursos que os cubanospossuíam na Bolívia, o país oferecia as melhores possibilidades de êxito.* Sófaltava convencer os bolivianos e o Che. 

A Bolívia, com efeito, apresentava uma série de vantagens à primeiravista insuperáveis para a criação de um foco guerrilheiro. Para começar, den-tro do Partido Comunista (PCB), formara-se havia já um bom tempo um

núcleo de quadros vinculados aos cubanos. Outro pequeno grupo, compos-to de estudantes bolivianos, havia recebido treinamento militar em Cuba,em 1965. Vários deles morreriam com o Che na guerrilha; outros per-maneceriam retidos em Havana durante a epopeia boliviana. Como recor-da Mário Monje, o secretário-geral do partido, desde 1962 estabeleceu-seuma relação peculiar entre o PCB e Havana. Naquele ano, os comunistasperuanos tinham enviado um grupo de estudantes a Cuba. Eles receberamtreinamento militar, sem o consentimento do partido, como de hábito.Depois quiseram voltar ao Peru, só que fardados e armados, prontos para aluta, e decidiram entrar em seu país pela fronteira com a Bolívia, a melhorvia para um retorno clandestino. Quando os cubanos pediram a Monje que

ajudasse os recém-formados guerrilheiros, este respondeu que o melhor seriaeles procurarem o apoio do Partido Comunista Peruano. Os cubanos respon-  

(*) Segundo Mário Monje, o secretário-geral do Partido Comunista da Bolívia, o Checonfessou-lhe explicitamente: "Acontece que o único lugar onde temos uma estrutura sériaé a Bolívia, e os únicos que têm condições reais para a luta são os bolivianos. Eu não contariacom isso na Argentina, que está em um período embrionário, e no Peru, onde ela malcomeçou". Ao que o boliviano respondeu: "Mas essa estrutura não é para vocês. Vocês estãoquerendo aproveitar uma estrutura que não criaram". Mário Monje, entrevista com o autor,Moscou, 25/10/95. Esta versão corresponde à que foi fornecida pelo argentino Ciro Bustos àsautoridades bolivianas que o interrogaram sobre uma conversa com o Che. (Ver  Account byCiro Roberto Bustos ofhis stay with Guevaras guerrillas in Bolívia, citado em Jay Mallin (ed.),Che Guevara on revolution, University of Miami Press, 1969, p. 200.) 

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deram: "O partido peruano enviou esses rapazes a Cuba, mas agora não querassumir responsabilidades"." 

A questão logo se complicou e obrigou Monje a viajar a Havana paramanter várias conversações com Manuel Pineiro e, por fim, entrevistar-secom o próprio Fidel. Caso o partido boliviano passasse por cima do peruano,

ajudando um grupo de guerrilheiros treinados em Cuba a penetrar no ter-ritório do país vizinho sem a aprovação nem o conhecimento do PCP, vio-laria as normas das relações entre "partidos irmãos". Fidel pôs todo o peso desua autoridade na balança e fez um último esforço junto a Monje: 

Vejam, nós tivemos a nossa experiência. Não vamos impedir que esses jovenstenham a deles. Se eu peço a vocês, independente de sua opinião, que ajudemesses rapazes a entrar no país deles, é para que eles tenham a chance que nóstivemos. Por que negar-lhes a chance? Eles são tão jovens como nós éramos nasierra Maestra. Por que vocês não ajudam essa gente, em nome do interna-cionalismo proletário?14 

A partir de então, criou-se o aparato militar clandestino do partido

boliviano, que acarretava riscos reais para as relações do PCB com outros par-tidos latino-americanos. Pouco depois, os cubanos voltaram a pedir a coope-ração de Monje, para preparar a incursão de Jorge Masetti em Salta. Um au-xiliar do Che procurou Monje e disse à queima-roupa: "Trago um pedido doChe, falo em nome do Che. E quero apenas que você nos ajude a mandar essagente para a Argentina".15 Monje respondeu que não podia assumir o com-promisso sozinho e tinha a obrigação de informar o resto da direção, emespecial Jorge Kolle — na época, o número dois do PCB e, depois de 1968, osucessor de Monje como secretário-geral. Ao ser informado, Kolle censurouseu dirigente: "Você se meteu outra vez nisso, primeiro de um lado, agora dooutro. Temos que avisar os argentinos que os cubanos estão se metendo nos

assuntos deles, que os cubanos estão querendo entrar lá". Monje concordoue perguntou: "Mas, e se eles mandarem mesmo essa gente, o que nós vamosfazer? É o Che que está por trás disso. Eles me pediram apoio logístico".16

Convém lembrar que o Partido Comunista da Argentina era um dos princi-pais inimigos da linha castrista na América Latina. Seu líder máximo, Víc-tor Codovilla, opunha-se às teses guevaristas com particular veemência eobstinação. Nada disso importava: no final de 1963, Fidel Castro reiteroupessoalmente o pedido, frisando que se tratava de uma operação do Che. E,para dourar a pílula, expôs suas teses sobre a Bolívia: "Eu tenho muita penade vocês, da Bolívia, porque aí é muito difícil levar adiante uma luta guer-rilheira. Vocês são um país interior, onde foi feita uma reforma agrária. Por-  

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tanto, seu destino é serem solidários com os movimentos revolucionários deoutros países, porque a Bolívia será um dos últimos países a alcançar sua li-bertação. A luta guerrilheira não é possível na Bolívia".17 

O Che abonará essa tese em uma conversa com Monje, em Havana,1964, para grande surpresa do seu interlocutor: "Eu já estive na Bolívia, co-

nheço seu país, e sei que é muito difícil desenvolver a luta guerrilheira naBolívia. Lá se fez uma reforma agrária, e não acredito que aqueles índios sesomem à luta guerrilheira. Por isso, vocês têm de apoiar as ações em outrospaíses".18 

Como dissemos, José Maria Martínez Tamayo, o assistente do Che,chegou à Bolívia em março de 1966. Começou imediatamente a recolherinformações relacionadas com a nova missão, valendo-se de todos essesantecedentes e de sua antiga amizade, que remonta ao caso Masetti, comvários comunistas bolivianos, entre eles os irmãos Inti e Coco Peredo, JorgeVázquez Viana, Rodolfo Saldana, Luis Tellería Murillo, Orlando Jiménez, oCamba, e Júlio Luis Mendez, o Nato. Tudo parecia antecipar uma operação

bem-sucedida na Bolívia. Por um lado, já existia um pequeno destacamen-to, jovem, familiarizado com os cubanos e suas atividades no país. Por outro,a direção nacional do PCB compreendia que, apesar do flerte dos cubanoscom seus dissidentes pró-chineses, Havana jamais se intrometera emquestões internas do partido, nem se propusera, até então, a instalar um focoguerrilheiro na Bolívia. Não fizera como no Peru, na Argentina, naVenezuela, na Guatemala e, mais recentemente, na Colômbia. Pelo menosformalmente, os comunistas bolivianos concordaram. 

Mas isso não significava que Monje, Kolle e os outros membros dodiretório nacional — diferentemente dos integrantes da juventude do par-tido — tivessem alguma simpatia pela luta armada ou conservassem grande

independência em relação a Moscou. Nos arquivos secretos da ex-URSSconsta o protocolo de uma reunião do Politburo do Comité Central do PCUSaprovando um orçamento que destinava 30 mil dólares ao PCB em 1966 eoutros 20 mil dólares à Frente Nacional da Bolívia, o braço eleitoral do par-tido.19 Eram somas consideráveis que, na prática, cobriam boa parte dasdespesas da organização e representavam um poderoso fator de persuasão. 

Assim, astutamente, Monje e o resto da cúpula comunista tinhamdemonstrado menos hostilidade à luta armada que outros agrupamentoslatino-americanos. Monje frequentou um curso de adestramento guerri-lheiro em Cuba, no primeiro semestre de 1966; pôs à disposição dos cubanoso pequeno aparato clandestino do PCB; vários comunistas — entre outros, os 

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irmãos Peredo — também passaram semanas ou meses na ilha, recebendotreinamento militar. Acrescentando-se tais antecedentes dos militantesbolivianos às características geográficas de seu país — fronteira com cincopaíses, vales e montanhas, florestas tropicais e neve. A Bolívia apareciacomo uma alternativa quase que natural para a ansiada luta argentina de

Ernesto Guevara. A existência ou ausência de condições políticas internaspara o início de um processo revolucionário nunca teve um papel determi-nante na escolha do cenário. O essencial era oferecer uma saída para o Chee dispor dos recursos para efetivá-la. 

Durante toda a primavera em Praga, o Che continuou discutindo comHavana seus próximos passos, ao mesmo tempo que avançavam os prepara-tivos na América do Sul. Quanto mais Guevara se aferrava à ideia de voltarà Argentina, diretamente ou via Bolívia, mais crescia a pressão do governode Havana para que voltasse à ilha, se organizasse devidamente, escolhesseele mesmo seu grupo de apoio e o treinasse para, só então, partir para aBolívia. Em um diálogo ocorrido em 31 de dezembro de 1966, reproduzido

por Monje, Guevara confessou a origem das tensões: Che: Você sabe que eu saí de Cuba pela porta da frente. Fidel insistiu váriasvezes para que eu voltasse, mas eu fiquei trancado num apartamento em certopaís (Tchecoslováquia - JGC), pensando, tentando encontrar uma saída. Eunão podia voltar a Cuba, não podia aparecer por lá. Para mim isso estava forade cogitação. 

Monje: E por que foi encontrar a solução aqui? Você veio para cair numaarmadilha." 

Talvez um dos grandes mal-entendidos — ou enormes equívocos — detoda esta saga estivesse na sutil diferença entre uma passagem pela Bolívia e acriação de um/oco na Bolívia. Mário Monje — segundo Fidel Castro, o culpa-

do pela traição que levou o Che à morte — apresenta como um dos principaisargumentos em sua defesa o fato de o caudilho ter pedido, de início, algo muitodiferente do que acabou acontecendo. Segundo Monje, na conversa que man-teve com Fidel, em maio de 1966, durante um vôo Moscou—Havana, este lhedisse: "Escute, Monje, eu agradeço toda a ajuda que você sempre nos deu, fazen-do tudo que pedimos. Agora, há um amigo comum que deseja voltar para seupaís, e eu lhe peço que escolha pessoalmente quem deve proteger esse homem.Ninguém pode suspeitar de sua condição de revolucionário. Ele só quer voltarpara seu país. Nos assuntos da Bolívia eu não me meto".21 

Monje concordou imediatamente, tendo em vista as boas relações comCuba e por não se tratar mais de peruanos ou argentinos, mas de algum líder 

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da Revolução Cubana com destino à Argentina. O boliviano não hesitouem consentir, nem demorou a adivinhar que se tratava de Che Guevara. Oresto da cúpula do PCB não suspeitava disso, mas fez a mesma interpretaçãodas intenções cubanas.* Jorge Kolle confirma:

Achávamos que seria uma repetição da experiência de Masetti, pois, embora

não soubéssemos o roteiro completo, tomaríamos parte de uma sequência deatos que nos davam uma ideia do que ia ser feito, e onde. Nancahuazú fica maisperto da Argentina, mais perto da Argentina ou do Paraguai que de La Paz.Está numa área quase sem população que possa abastecer a guerrilha, em umaprovíncia, Cordillera, que tem 82 mil quilómetros quadrados, quase a área detoda Cuba, mas só com 40 mil habitantes. Isso nos levava a acreditar que nos-sa tarefa seria transportar um grupo para a Argentina.22 

O PCB pôs à disposição dos cubanos os quatro quadros que já vinhamcolaborando com eles: Roberto Peredo, o Coco, Jorge Vázquez Viana, o Loro,Rodolfo Saldana e Júlio Mendez, o Nato. Os três primeiros foram quase ime-diatamente despachados para Havana, para um novo período de instrução

para a guerrilha. Voltaram em julho, via Praga, onde provavelmente seencontraram com o Che. Ao regressar, encarregaram-se de reunir um grupode membros da Juventude Comunista para enviá-los, junto com Inti Peredo,o irmão de Coco, para o treinamento militar em Cuba. A manobra era muitomais ambiciosa e complicada do que parecera num primeiro momento: visa-va nada menos que estabelecer uma guerrilha-mãe na Bolívia. Monje, apeli-dado de Altoperuano por seus correligionários — por causa de seu caráterimpenetrável e ardiloso, identificado com o dos habitantes do Alto Peru —,acredita hoje que Fidel o enganou, e é bem provável que esteja certo. 

Mas pode-se aventar outra hipótese: ao fazer o acordo com Monje, Cas-tro talvez pensasse que o Che insistiria em logo cruzar a Bolívia e voltar para

a terra natal. Ainda não o convencera a permanecer em território boliviano,em vez de marchar para a morte certa na Argentina. Não se sabe se Fidelenganou Monje ou não. Na realidade, os comunistas bolivianos nuncachegaram a descartar categoricamente a luta armada em seu país, querendocom isso evitar uma clara divergência com cubanos. Quando Pombo e Tumachegaram a La Paz, em fins de julho, e celebraram a primeira reunião com 

(*) Desde agosto de 1966, Jorge Kolle intuiu que os cubanos escondiam algo. No con-gresso do Partido Comunista Uruguaio, realizado naquele mês em Montevidéu, Kolle confi-denciou a Rodney Arismendi, o dirigente do partido anfitrião, que existia "um projeto guer-rilheiro orientado para o sul, em que os cubanos desempenham um papel de destaque". (VerRégis Debray, La guerriíla dei Che, SigloXXl, México DF, 1975, p. 79.) 

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membros do partido, estes afirmaram que Monje se incorporaria à luta arma-da ou, do contrário, o resto do partido o faria.25 Na mesma reunião, o próprioMonje prometeu aos delegados do Che que cederia pelo menos vinte ho-mens para a guerrilha. Quando os cubanos sondaram Monje sobre a possívelintegração do Che à luta, o boliviano respondeu que "se isso acontecer,

lutarei ao lado dele, seja onde for".24

 Ninguém punha as cartas na mesa, etodos se vangloriavam de sua habilidade para blefar, como confessaria JorgeKolle anos mais tarde: "Eu me orgulho de ter despistado os cubanos, pois umdia eles achavam que eu era pró-guerrilha e no dia seguinte, antiguerrilha.Ou seja, eu os despistei completamente".25 

Segundo Williatn Gálvez, o hipotético autor de uma biografia oficialinédita do Che, sua passagem por Praga prolongou-se até julho.* QuandoGuevara achou que tudo estava em seu devido lugar, decidiu voltar a Cuba.Foi recebido no aeroporto de Rancho Boyeros por Raul Castro, em missãode paz e reconciliação. Logo foi para uma casa de veraneio em San Andrésde Taiguanabo, na cordilheira de los Organos, onde procurou, por várias

semanas, minimizar os estragos causados por longos anos de ausência.Começou também a preparar seriamente a nova epopeia, procurando evitaros erros que teriam causado o desastre no Congo. Mas, como lamentariaanos mais tarde um de seus amigos, sua obsessão por não repetir os erros daÁfrica levou-o a cometer outros incontáveis equívocos: fez na Bolívia o quedevia ter feito no Congo, e vice-versa. 

Desta vez, ele mesmo selecionou o grupo, homem a homem, junto como comandante René Tomasevich, a equipe de Pifieiro e Raul Castro. Mui-tos dos que insistiram em ser incluídos na lista não o foram: Ulises Estra- 

(*) "Cuando el Che se Uamó Ramón", entrevista com William Gálvez, revista Cuba

 Internacional, ns 296,1995, p. 31.0 general Gálvez escreveu, em tese, um relato da passagemdo Che pelo Congo, pelo qual chegou obter o prémio Casa de Ias Américas de 1995, mas quese particularizou por não ter sido publicado [...] Sem dúvida foi o primeiro livro a ser premia-do antes de estar pronto. É provável que as mesmas razões de 1967 tenham impedido qual-quer outro cubano de escrever uma biografia do Che, ou mesmo a publicação em Cuba dedocumentos como as Actas dei Ministério de Industrias ou Pasajes... {el Congo), e dificultemtambém a conclusão e edição do texto de Gálvez. Benigno afirma que o Che voltou a Cubaem abril de 1966, mas essa data provavelmente esteja antecipada. Não é preciso dizer que emCuba esse capítulo da vida do Che permanece cercado de mistério. Os "cronólogos" cubanosnão fornecem nenhuma informação sobre o período, embora indiquem a data de 20 de julhocomo a de seu retorno a Cuba. (Ver Dariel Alarcón Ramírez, Benigno, Vie et mort, op. cit., p.113, e Adys Cupull e Froilán González, Un hombre bravo, Ediciones Capitán San Luis,Havana, 1995, p. 309.) 

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da, Emilio Aragonês, Alberto Mora, Haydé Santamaría e vários outros. OChe estabeleceu comunicações com o país andino e começou a definir onde,com quem e quando as operações teriam início. Logo surgiram as primeirasdúvidas: operar em uma área boliviana chamada Alto Beni, no noroeste dopaís, e concentrar-se na microrregião semitropical chamada Los Yungas,

próxima a La Paz? Ou no sudeste, na bacia do rio Grande, perto de Camiri,a capital petrolífera do país? Apoiar-se no Partido Comunista da Bolívia,que, segundo Fidel Castro e Manuel Pifieiro, já estava plenamente compro-metido com a ação armada? Ou buscar alianças com grupos maoístas com osquais o Che já havia feito contato, entre outros o encabeçado por OscarZamora — a quem Guevara conhecera na ilha em 1964, antes de sua expul-são do PCB como pró-chinês? Depender exclusivamente do aparato cubano,em especial dos homens de Pifieiro e Raul, que tanto o decepcionaram noCongo por sua incrível incompetência? Ou montar paralelamente uma redeprópria de comunicações, apoio, logística e informação? Entre julho enovembro — quando abandonou a ilha para sempre —, o Che debateu-se

entre essas alternativas, sem chegar a se decidir definitivamente por umadelas, exceto no que dizia respeito à localização do foco. E mesmo nesse pon-to, a decisão foi fruto mais das circunstâncias que de uma deliberação pon-derada e consciente. 

Os principais combatentes eram quase todos quadros ligados ao Chedesde a "invasão", inclusive vários que o acompanharam ao Congo e outrosque estiveram com ele no Ministério da Indústria. Uma vez escolhidos,foram aquartelados em um campo de treinamento em Ocidente. Ali ficaramaté serem levados para a casa do Che em San Andrés, onde aconteceu umacena célebre: René Tomasevich conduziu os futuros e os antigos guerri-lheiros ao terraço, onde logo apareceu um homem idoso, de estatura media-

na, calvo, sem barba e de óculos, que começou a insultá-los, chamando-osde "bostas" e incapazes, ineptos para a luta armada. A audiência foi se irri-tando, até que Jesus, o Ruivo, Suárez Gayol vice-ministro de Indústrias ecompanheiro do Che desde a batalha de Santa Clara, reconheceu-o eabraçou seu antigo chefe.26 Os recrutas se encheram de orgulho e felicidade; ahonra de terem sido escolhidos superava qualquer possível dúvida ou temor.Não imaginavam que quase todos iriam morrer nos grotões bolivianos. 

Pouco depois do aniversário de Fidel, em 13 de agosto, começou otreinamento a sério. O Che partilhava com seus homens o ritmo desenfrea-do de todas as tarefas, físicas e burocráticas. Começou com uma advertên-cia: teriam de esquecer sua condição de oficiais, convertendo-se novamente 

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em soldados rasos, porque na Bolívia eles seriam exatamente isso. As sessõesde tiro começavam às seis da manhã, uma hora depois do toque de alvorada.Às onze havia uma hora de descanso e em seguida uma marcha forçada dedoze quilómetros pelas colinas, com uma mochila de vinte quilos nas costas.Mais uma hora de repouso, às seis da tarde, e o trabalho recomeçava, com

aulas de cultura geral: línguas, história, matemática, espanhol. Às nove,para encerrar, duas horas de estudo do idioma quíchua. A lógica do Che eraevidente: para evitar as tragédias do Congo, queria guerrilheiros bem for-mados militar e politicamente, conscientes do que faziam, dispostos aenfrentar a morte. Precisava de um batalhão de Che Guevaras. 

Nos fins de semana, recebiam visitas de altos funcionários. SegundoBenigno, Fidel Castro compareceu em várias ocasiões. Explicou aos inte-grantes os objetivos e o motivo da nova expedição: desviar a atenção dosEstados Unidos. Na ótica de Castro, os compromissos de Cuba em matériade produção açucareira impunham uma participação desmedida da popu-lação na colheita da cana. Com isso, a educação e o esforço para diversificar

a economia eram preteridos. Cada combatente custava a Cuba 10 mildólares. Era preciso impor ao "imperialismo" um custo de 100 mil dólares porguerrilheiro tombado. A luta na Bolívia seria renhida e prolongada; durariade cinco a dez anos. Aliviaria pelo menos uma parte da pressão sobre Cuba.  

O raciocínio de Fidel, sem ser absurdo, representava, no fundo, um argu-mento forjado para justificar uma decisão tomada por outros motivos.Inscrevia-se na recente mas já inegável tradição cubana de apoio aos movi-mentos revolucionários no resto do continente. Com uma pequena diferença:no caso da Bolívia, à diferença da Venezuela, Nicarágua, Haiti ou mesmo daColômbia, o movimento não existia. Os cubanos seriam a vanguarda, e nãouma força de apoio. A suposta disposição do PCB para lançar-se à luta armada

não equivalia a um foco preexistente. Os cubanos e o Che não chegariam pararespaldar uma iniciativa anterior à sua chegada, eles mesmos seriam o estopimda guerrilha. Com isso, levava-se ao extremo a tese de que a revolução pres-cindia de condições objetivas prévias: elas seriam criadas por um grupoestrangeiro. Pela primeira vez desde a invasão da República Dominicana em1959 — que redundou no massacre de todos os expedicionários —, um grandenúmero de combatentes cubanos era destacado para lutar em um ponto daAmérica Latina onde não havia um núcleo anterior de combatentes locais. 

A guerrilha boliviana foi inteiramente concebida e preparada deencomenda para o Che. Mas como era indispensável formar um foco, foinecessário dar-lhe um embasamento estratégico, pois, do contrário, saltaria 

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aos olhos sua irracionalidade política. Daí o raciocino, montado a posteriori,de distrair a atenção do imperialismo para romper o bloqueio imposto aCuba. E verdade que uma vitória revolucionária em outro país daria novofôlego à ilha. Mas se a luta que levasse a tal vitória se identificasse demaiscom Cuba, o preço a ser pago pelo regime neutralizaria os ganhos da vitória.

Assim ocorreu na Nicarágua sandinista, uma década depois, mesmo semuma presença cubana tão decisiva como na Bolívia: os custos para Cubaforam tão altos como os benefícios. 

Parecia uma última aposta de Fidel Castro: era um tiro no escuro. Sea aventura boliviana frutificasse e triunfasse, ou se o foco-mãe conduzisseao êxito em uma nação vizinha, o isolamento de Cuba diminuiria, novoshorizontes se abririam. Do contrário, Castro se resignaria a um inevitávelalinhamento com Moscou, até que surgisse uma nova trégua ou umalargamento de sua margem de manobra. Durante o período de sobre-vivência do Che na Bolívia, um pouco antes e um pouco depois, Castromudou nitidamente seu discurso e seu comportamento com relação à

URSS. Voltou a apoiar as tentativas insurrecionais no continente. Emprincípios de 1968, as relações cubano-soviéticas atravessaram sua piorcrise, com a suspensão do fornecimento de petróleo russo a Cuba. Depoisda derrota definitiva do Che e dos focos remanescentes em outros países,chegou a hora de Fidel arcar com os prejuízos. Em agosto de 1968 ele securvou ante a invasão soviética da Tchecoslováquia, concordando comuma medida que marcaria para sempre o futuro do socialismo no mundoe em Cuba. Foi a verdadeira consequência do fracasso boliviano do Che.Outro futuro aguardaria a América Latina se o argentino não tivesse sidocrivado de balas em La Higuera. Mas efeitos não são causas. A guerrilhana Bolívia representava a solução de um compromisso, não um objetivo

estratégico. 

A partir de agosto de 1966, os preparativos se intensificaram. Váriosbolivianos receberam treinamento em Cuba. Ao mesmo tempo, Pombo,Papi e Pachungo arrematavam orgulhosamente os últimos detalhes naBolívia. Tâmara Bunke, a Tânia, de volta a La Paz ao fim da viagem a Praga,assumiu o papel de contato. Escondeu os cubanos, introduziu-os em dife-rentes círculos locais e garantiu a logística: dinheiro, casas seguras, do-cumentos, armas. Logo, porém, os cubanos perceberam que nem tudo eratão fácil: algo ia mal. 

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A relação com o partido boliviano se complicou. Quando Monje e osoutros dirigentes do PCB de deram conta de que os cubanos não passariamsimplesmente pela Bolívia, rumo à Argentina, mas pretendiam se estabele-cer no país, ficaram extremamente incomodados. Os cubanos solicitaram aodirigente boliviano os vinte homens prometidos, mas ele desconversou.

Disse ter "problemas com o Comité Central, que se opõe à luta armada". Osdelegados de Guevara sentiram que havia "muita incerteza quanto à decisãode aderir à luta armada". Nada avançava, os planos marcavam passo: "Hápouco entusiasmo sobre o assunto". Concluíram que "somos os únicos quefazemos toda a organização; eles não estão nos ajudando".27 Quando infor-maram Havana sobre a confusão e a adversidade, provocaram desânimo edesconcerto: "Eles estão loucos (na Bolívia) porque nada está pronto aqui".28 

A situação se agravou no inverno de 1966, quando entrou em cena umpersonagem pouco ortodoxo, o escritor francês Régis Debray, que visitara LaPaz em 1964 como uma espécie de emissário chinês, designado pelos maoís-tas de Paris. Agora chegava à Bolívia enviado por Fidel Castro, com outro

propósito: estudar as diferentes regiões do país para verificar qual seria a maispropícia para um foco; fazer contato com os sindicalistas pró-China deMoisés Guevara (um líder sindical mineiro), distanciados tanto do PCBcomo do grupo maoísta encabeçado por Oscar Zamora, com quem ele tam-bém manteve conversações.* Além de escolher a área mais indicada para aguerrilha, Debray fora incumbido de reforçar o trabalho de convencimentodo Che sobre a viabilidade do esquema boliviano. A vinculação do escritorfrancês com o caudilho cubano estava longe de ser um segredo. Para quemainda tivesse alguma dúvida, acabava de ser publicado seu livro Revolução na

 Revolução?, com prefácio do próprio Fidel Castro. Foi justamente a aparição de Debray em setembro, aliada à presença de

Pombo, Papi e Tuma em La Paz e Cochabamba desde julho de 1966, que des-pertou as suspeitas de Mário Monje. A versão inicial de Fidel, da mera "pas-sagem" de um alto dirigente cubano rumo à Argentina, não combinava coma chegada de personagens como Debray e os auxiliares do Che. Como recor-da Jorge Kolle, "conhecíamos Debray fazia muito tempo, sabíamos de suasrelações com os venezuelanos e de seu alinhamento com a dissidênciamaoísta, a dissidência chinesa".29 Quando os comunistas souberam da pre-sença do francês em Los Yungas, compreenderam que os cubanos "estavam 

(*) "Eu conversei com Zamora. Fui falar com ele sobre a guerrilha. Ele disse sim." (RégisDebray, entrevista com o autor, Paris, 3/11/95.) 

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sonegando informações, não nos deram o roteiro completo".30 Monje, ao verRégis Debray certo dia em Cochabamba, enfureceu-se e interpelou Papi ePombo: "O que Régis Debray está fazendo na Bolívia? Vocês o conhecem,mas nós não temos nenhum contato com ele. Ele veio para que vocês come-cem a luta guerrilheira". "Nada disso", responderam os cubanos, "nós não

temos nada a ver com ele." E Monje: "Vamos ter que apurar isso. Vocês estãoquerendo desenvolver a luta guerrilheira aqui e não estão cumprindo o com-promisso".* 

Desencadeou-se nova série de discussões, agora entre Monje e a maio-ria da cúpula de seu partido, de um lado, e Castro e Pineiro, de outro, tendoo Che como espectador mais ou menos inocente. Os cubanos faziam jogoduplo: incitavam Monje a participar da luta armada, que ele não desejavadesencadear em seu país por considerá-la inviável.** Ao mesmo tempo,procuravam infiltrar-se no Partido Comunista da Bolívia para provocardivisões, reforçando como podiam a facção partidária da via militar, com-posta por d irigentes como os Peredo, J orge e Humbero Vázquez Viana, e pela

Juventude, encabeçada por Loyola Guzmán. Era lógico que o Che e oscubanos se identificassem com esses interlocutores dentro do partido, liga-dos a eles por laços de solidariedade, afeto, experiências comuns e umagrande afinidade ideológica. Para não colocarem seus amigos diante da duraescolha entre a luta armada e a disciplina partidária, Guevara e os cubanosnão podiam romper com a direção do PCB.*** Mais tarde, em 31 de dezem-bro, ocorreria a ruptura, a cisão, a hostilidade declarada do PCB, mas atéaquele momento era indispensável suavizar as tensões entre cubanos ecomunistas locais. A única forma de consegui-lo era por meio de artima- 

(*) Mário Monje, op. cit. Debray confirma que, de fato, não conhecia Papi nem Pom-

bo. (Régis Debray, entrevista com o autor, Paris, 3/11/95.) (**) Apesar das arestas que ainda persistem entre Monje e Kolle, suas visões coinci-

dem. Kolle afirma: "Como íamos nos meter em um projeto que tínhamos combatido? A vidainteira nós fomos solidários com a Revolução Cubana, a vida inteira, e estamos dispostos asuportar tudo para defender a revolução — inclusive que nos acusem de traidores, covardesou o que for. Mas uma coisa é o fato histórico da Revolução Cubana e outra são as vicissitudesdos personagens através da história". (Kolle, op. cit.) 

(***) O Che tinha consciência do dilema dos comunistas dispostos a se incorporar à lutaarmada. Em um dos primeiros registros de seu diário de campanha, ele diz: "Adverti os bolivianossobre as responsabilidadesque assumiriam violando a disciplina de seu partido ao adotarem outralinha". (Ernesto Che Guevara, "Diário de Bolívia", nova edição comentada, em Carlos SoriaGalvarro (ed.), ElChe en Bolívia, documentos y testimonios, t. 5, La Paz, Cedoín, 1994, p. 63.Esta é a edição mais recente do diário e a que contém notas mais detalhadas.)  

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nhãs. O Che e seus homens não se equivocavam quanto à integridade, cora-gem e compromisso dos comunistas simpáticos a sua causa, tanto dos mem-bros da Juventude como da facção pró-castrista. Mas pagaram um alto preçopor dedicar tanto tempo e esforços exclusivamente ao PCB, em detrimentode outros grupos. Além disso, a estratégia de alimentar divisões internas e

agir às escondidas da direção teria graves consequências. Monje, por seu lado, logo começou a preparar suas próprias armadilhas

e disfarces. Primeiro, fez que o sítio dos cubanos não fosse comprado em AltoBeni-Los Yungas — os lugares mais indicados para as operações cubanas. Onovo lugar escolhido, Nancahuazú, respondia a seu próprio objetivo: tirar oquanto antes o Che e os cubanos da Bolívia. A diferença com a localizaçãoinicial, no noroeste, era evidente. A primeira não tinha boas vias de acesso.Era apropriada para uma luta na Bolívia, mas não para uma coluna-mãe daqual sairiam contingentes rumo a outros países, nem muito menos para umarápida incursão à Argentina. O Sudeste, ao contrário, reunia as melhorescondições para esse fim. Em seguida, Monje convocou o birô político do par-

tido e advertiu em tom solene: "Senhores, a luta guerrilheira vai começar naBolívia em setembro ou outubro. Régis Debray está reconhecendo o ter-reno"." Decidiu viajar a Havana, para consolidar o compromisso inicialcom os cubanos ou rompê-lo de uma vez. 

Ao mesmo tempo, Fidel e Pineiro escondiam do Che, na medida dopossível, a contradição de interesses e posições em jogo. Até a véspera de suaviagem à Bolívia, o Che ignorava que Monje não apoiava sua incorporaçãoà luta armada e fora até certo ponto enganado por Fidel. Nem imaginava queos comunistas efetivamente comprometidos com o plano representavamapenas uma minoria marginal do PCB. Os motivos de Castro eram com-preensíveis: o principal atrativo alegado para estabelecer um foco na

Bolívia, e não na Argentina, eram os "recursos" de Cuba no país. Revelar aoChe a situação real, o ceticismo dominante e a precariedade de recursos seriacontraproducente: Guevara responderia que, nesse caso, o melhor seria par-tir de uma vez para sua pátria. Construiu-se assim uma cadeia de enganos,mal-entendidos, eufemismos e simulações a fim de sustentar uma decisão játomada: iniciar a luta armada na Bolívia, contra tudo e todos. Mais tarde,convergiriam para o trágico desfecho: o completo fracasso da tentativa e amorte, atroz ou heróica, de todos os seus protagonistas diretos. 

Durante as duas últimas semanas em San Andrés de Taiguanabo,acelerou-se o treinamento e começou a ser elaborada uma falsa biografiapara cada um dos cubanos. Uns seriam uruguaios (o Che); outros, equato- 

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rianos (Benigno); uns terceiros, peruanos e até bolivianos. No total, partiram21 cubanos.'2 O grupo incluía cinco membros do Comité Central do partidoe dois vice-ministros. Guevara esboçou um primeiro plano e um cronogra-ma de longo prazo, que seria totalmente desobedecido. A intenção era criarduas frentes, uma perto da cidade de Sucre, outra no Alto Beni. Até 20 de

dezembro deviam chegar todos os cubanos escolhidos, além de sessenta boli-vianos. A partir desse núcleo inicial não seria criado apenas um foco guer-rilheiro, e sim uma espécie de escola de quadros qualificados para a guerrilhasul-americana. As características principais do acampamento deveriam ser,portanto, o sigilo, a impenetrabilidade, o isolamento, e não tanto a proxi-midade de povoações camponesas que facilitassem o recrutamento eabastecimento. Em princípios de 1967, seria feito um apelo às liderançasrevolucionárias latino-americanas para que enviassem seus melhoresquadros, pelas vias de acesso facilitadas pelo PCB e por Monje.* Do acampa-mento inicial partiriam diversas colunas nacionais, rumo a seus países, paraincursões mais de treinamento e reconhecimento que de combate. Ao fim

de vários ensaios, essas colunas entrariam definitivamnte em seus países,com o Che à frente da coluna argentina.** Antes, porém, em 26 de julho de1967, a guerrilha faria sua primeira aparição pública na Bolívia, tomando deassalto o quartel de Sucre em Chuquisaca, promovendo o batismo de fogodos recrutas." Saltava aos olhos a semelhança com a experiência da sierraMaestra: a criação de uma coluna-mãe da qual se desdobrariam outras. 

O dia D foi 15 de outubro. Nessa data, desmontou-se o campo de treina-mento de San Andrés e começaram as transferências à Bolívia, todasescalonadas e seguindo longos e complicados trajetos. Com isso, a operaçãocontou com a vantagem inicial do sigilo absoluto, mas, por outro lado, oenorme esforço para mantê-lo logo se mostraria desproporcional. Como o

próprio Che confessaria a Renán Montero, um de seus contatos na capitalboliviana, quando os dois se encontraram na fronteira com o Brasil, em mea- 

(*) Talvez algumas partes desse plano delirante fossem factíveis. Um relatório confi-dencial da Seção de Informação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos assinalava,em 16 de março de 1967, que um grupo de revolucionários panamenhos pensava em zarparclandestinamente de seu país com destino à Argentina, onde receberia treinamento militarem um acampamento comandado por Ernesto Guevara. (Department of Defense Intelli-gence Report, AUeged trainingofPanamanian revolutionaries in Argentina, Colón, 16/3/67, nfi

2230024967, secreto.) (**) Esta versão já foi divulgada por Régis Debray, em  La guerrilla, op. cit., p. 75. O

testemunho de Benigno é valioso por confirmar que a ideia partiu de Cuba, concebida poralguém que esteve no campo de treinamento. (Ver Vie et Mort, op. cit., p. 127) 

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dos de novembro, os dispositivos de segurança das autoridades fronteiriçasbolivianas revelaram-se muito mais falhos e permeáveis do que ele pensara.O empenho por manter o sigilo foi, em parte, desnecessário.* Talvez tantoesforço tivesse outra finalidade. É provável que os soviéticos não tenham seinteirado imediatamente dos preparativos e da missão na Bolívia. Dessa vez

Castro não informou Alexeiev.M

 Uma nota secreta da CIA, com data do anoseguinte, relata que, no outono de 1966, Castro "informou Brejnev sobre aida do Che à Bolívia, com homens e equipamento fornecidos por Cuba".'5 

Mas o fato é que os preparativos desgastaram o Che. Dias antes da par-tida de Cuba, ocorreu um incidente que é uma boa amostra de sua obsessãopelo segredo, bem como de seu estado de ânimo e o de seus companheiros.Aleida costumava visitar o Che no acampamento. Já na iminência daviagem, quando os outros combatentes não tinham mais permissão paraencontrar-se com os familiares, Ramiro Valdéz levou-a a San Andrés paraque passasse os últimos dias com o marido. O Che armou um enorme escân-dalo, insultando Valdéz e proibindo Aleida de descer do carro. Em pleno

bate-boca, chegou Fidel. Ao entender o que estava acontecendo, sugeriu aoChe que deixasse que todos os expedicionários vissem seus entes queridosmais uma vez antes da partida. Assim, nenhuma regra de ouro da clandes-tinidade seria violada. Guevara concordou e, nessas condições, aceitou queAleida ficasse em San Andrés. * * As exageradas exigências que ele impunhaa si mesmo e aos demais contribuíram bastante para o desastre boliviano. 

Foi montado um impressionante aparato de desinformação em tornoda expedição à Bolívia. Se tivessem dedicado o mesmo tempo e esforço aoutros aspectos da operação, com certeza tudo seria bem diferente. RamiroValdéz e os serviços do Ministério do Interior forjaram uma história para que 

(*) Renán Montero, o Ivan, entrevista com o autor, Havana, 25/8/95. De todas asentrevistas realizadas para este livro, essa é a única que não pôde ser gravada nem feita na pre-sença de uma testemunha. Renán Montero nunca falara sobre seu papel na Bolívia, nemmuito menos de sua participação na Nicarágua, onde combateu desde 1961, com ToraásBorge e o grupo de sandinistas armados pelo Che, e onde foi subchefe de segurança do Esta-do entre 1979 e 1990. Um correspondente estrangeiro em Havana acompanhou o autor atéa casa onde Montero se encontrava de passagem, comprovou que era efetivamente ele e podeconfirmar que Montero concordou em ser entrevistado pelo autor, mas não presenciou aentrevista. 

(**) Dariel Alarcón Ramírez, Benigno, Vie et mort, op. cit., pp. 131-2. O filho de JesusSuárez Gayol, o primeiro expedicionário cubano morto na Bolívia, confirmou o sentido ge-ral desse relato, em companhia de sua esposa Marial, durante uma conversa em Havana em janeiro de 1996. 

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cada combatente pudesse justificar sua hipotética viagem de estudos à URSS.Entregaram-lhes cartas, postais e documentos falsos a fim de que seus pa-rentes se convencessem do destino que os aguardava, chegando ao refina-mento de elaborar a lista dos presentes típicos dos países do Leste europeuque cada um traria para suas esposas e filhos. 

Conta-se que, pouco antes da partida, na barranca de San Andrés,onde tinha sido instalado um cabo para a prática de tiro com alvos móveis,o Che e Fidel sentaram-se juntos em um imenso tronco e tiveram sua últimaconversa a sós.* Um oficial do Ministério do Interior que assistiu a todos ostreinamentos, mas que acabou sendo excluído da expedição, conseguiuentreouvir parte da conversa e deduziu o resto pelos gestos dos dois amigos:Castro, falando; o Che, carrancudo e retraído; Castro, intenso, loquaz; Gue-vara, silencioso. O Caballo, como sempre chamaram Fidel em Cuba, insistiunos problemas que haviam surgido e nas dificuldades inerentes à expediçãoboliviana. Enfatizou a deficiência das comunicações com o longínquo paísandino. E revelou — agora sim — as reservas de Monje e a deficiência de

organização de Inti e Coco Peredo. Procurava dissuadir o Che, ou ao menosconseguir que ele adiasse a viagem. Ambos pararam e trocaram fortes pal-madas nas costas, que não chegavam a ser socos, mas eram mais que umabraço. Os gestos de Fidel revelavam seu desespero diante da teimosia doargentino. Sentaram-se de novo, em silêncio. Depois, Fidel levantou-se e foiembora. 

Pela última vez na vida, o Che foi vencido pela pressa. Embora lhe fal-tassem muitas informações, pôde compreender que boa parte dos planospara a Bolívia tinham ido por água abaixo. A medida que fora tomandoconsciência da envergadura do esquema, Mário Monje passara a sabotá-lode forma explícita. Os encontros com Pombo e as andanças de Debray

demonstraram suas suspeitas, confirmadas nas viagens de seus colegas à ilha:os cubanos queriam montar um foco no Alto Beni. Ele decidiu então "quei-mar" a área de operações, ou seja, fazer com que a notícia dos planos cubanoschegasse aonde não devia. Assim, obrigou os colaboradores do Che a aban- 

(*) Essa versão foi confiada ao autor por uma fonte que pediu para não ser citada, masque já provou ser segura. Ela não contradiz necessariamente o testemunho de Fidel Castro emsua entrevista de 1987 para Gianni Mina. Castro conta como, "no dia em que ele foi embo-ra", fez uma brincadeira com o Che, convidando-o para jantar com vários companheiros dacúpula cubana. Ninguém o reconheceu, mas essa não foi a última vez em que estiveram a sós,Fidel e o Che. Na ocasião, Guevara já estava clandestino. Até mesmo seus companheiros departido não sabiam onde ele estava. 

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donarem o projeto do Alto Beni-Los Yungas e trocá-lo pelo do canhão deNancahuazú, no Sudeste boliviano, um lugar totalmente impróprio para aguerrilha, embora adequado para uma remota escola de quadros ou paraservir como base de um novo foco argentino.* Hoje, Monje confessa queinduziu o deslocamento para Nancahuazú sabendo que era uma ratoeira,

pois queria aproximar ao máximo o Che da Argentina, evitando a defla-gração da luta armada na Bolívia.** 

Debray complica ainda mais o assunto ao afirmar que o melhor textopolítico de sua vida foi justamente o informe, encomendado por Fidel eentregue a Pineiro, expondo por que o Alto Beni-Los Yungas era a regiãomais propícia para uma guerrilha, devido ao clima, ao relevo, aosantecedentes políticos, rurais e urbanos. *** Porém, de acordo com as lem-branças atuais de Debray, o Che jamais recebeu o estudo que foi entregue aPineiro e, portanto, não assimilou de todo a enorme diferença entre a regiãodo Alto Beni e a de Nancahuazú.**** Em abril de 1968, meses depois damorte do Che, reuniriam-se em Havana os três sobreviventes cubanos da

Guerrilha: o mais novo dos irmãos Peredo, António; o irmão de JorgeVázquez Viana, Humberto; Juan Carretero, ou  Ariel; e Angel Braguer, o

 Lino. Pombo disse: "Nós pensávamos que a luta se desenvolveria no Norte[...] Não achamos que ia ser em Nancahuazú".16 E, dirigindo-se a Ariel, acres-centou: "O Che foi enganado. Tinham dito para nós que era uma zona de 

(*) Monje afirma que, em sua conversa com Guevara em 31 de dezembro de 1966,esclareceu a questão da seguinte forma: "Nós compramos essa propriedade, em primeirolugar, para ser um ponto de passagem para o sul, de concentração e deslocamento de forças.O lugar é ruim; estrategicamente é muito ruim. Não só porque os montes são raros e quase semvegetação, mas porque quase não há povoações por perto. E uma espécie de arapuca: nãoserve para sustentar uma luta guerrilheira. Para a luta armada, é um lugar mal escolhido,porque na verdade não era esse seu propósito." (Mário Monje, op. cit.) 

(**) Humberto Vázquez Viana, elemento próximo à guerrilha, um dos responsáveispela rede urbana e irmão de Jorge, o LOTO, sustenta que Monje também se opunha ao Alto Beniporque na região havia organizações camponesas de inspiração maoísta, controladas por seusarquiinimigos pró-chineses de Oscar Zamora. (Ver Humberto Vázquez Viana, Antecedentes delaguerrilla en Bolívia, Universidade de Estocolmo, Research Paper, 1988, p. 27.) 

(***) Régis Debray, entrevista com o autor, Paris, 3/11/95. Debray acrescenta: "Eu pre-parei um informe e o entreguei a Pineiro. Não falei com o Che".  

(****) Debray até hoje ignora se seu trabalho não foi aproveitado por razões de tempo— quando terminou o relatório, o Che já estaria a caminho da Bolívia — ou por motivospolíticos — por hesitação de Pineiro e/ou Castro em apresentá-lo. Depois, comentaram queseu informe na realidade serviria para a abertura da segunda e terceira frentes, no AltoBeni e em Chapare. (Debray, entrevista, op. cit.) 

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colonização, e não era. É preciso rever os relatórios, que devem estar poraí".'7 Como concluiu Humberto Vázquez Viana, aquilo significava que aescolha da zona de operações da guerrilha não se baseara em um estudo sérioe ponderado: Pombo e Papi simplesmente não conheciam o país.* Além dis-so, o Che não escondia seu descontentamento com o desempenho de seus

enviados. Na versão integral do diário de Pombo, Martínez Tamayo relata queem setembro foi vítima de uma das conhecidas explosões do Che: "Meugrande erro foi enviar você (à Bolívia), pois não serve para nada". Papi respon-deu que o comentário lhe doía na alma, pois estava naquele país "não por uminteresse particular pelas coisas da Bolívia, mas por lealdade ao Che".'8 

Eis aqui mais uma consequência do fracasso do Congo: o Che não quisdepender dos Serviços cubanos de Informação, valendo-se de seus próprioscolaboradores. Nenhum dos homens de Pineiro foi enviado para a ação dereconhecimento na Bolívia.** Nenhum dos funcionários antes lotados naembaixada de Cuba em La Paz foi requisitado para viajar ao país andino.Debray não pôde ser ouvido. Não se ouviu sequer Furri, o confidente de Raul

Castro que participara dos preparativos da guerrilha de Salta. Depois do com-portamento dos homens de Pineiro no Congo, o Che desconfiava de todos,exceto de seus colaboradores mais próximos. Mas estes, como o próprio Gue-vara reconhecerá na conversa com Monje no final do ano, eram militares enão operadores políticos. Enquanto o argentino esteve em Cuba, as infor-mações procedentes da Bolívia também foram filtradas pela equipe de Pineiro.O próprio Barbaroja, Armando Campos e Juan Carretero o visitavam quasetodos os fins de semana. Segundo Benigno, "as informações só chegavam ao 

(*) Viana e Saraiva, Bolívia: ensayo, op. cit. Benigno sugere outra explicação para o fatode Papi Martínez Tamayo ter aceito a região de Nancahuasú: "Papi era um homem que se ilu-dia. As ilusões andavam junto com seus problemas pessoais. Por ali, em Lagunilla (perto deNancahuasú) havia umas moças que ele e Coco Peredo tinham conhecido. Aquilo fez que elesestabelecessem mais relações na região". A ideia parece ligeiramente rebuscada, mas quandoconhecemos a avaliação que o Che faz do Papi, inédita até princípios de 1996, torna-se maisplausível, embora ainda improvável: "7/2/67 (três meses). Não atingiu plenas condições físi-cas, nem tem o caráter ideal. Um pouco rancoroso e ressentido, aparentemente porque suaposição privilegiada no C. fica muito diluída nesta constelação." "7/5/67 (seis meses). Mal.Apesar de eu ter falado com ele, não melhorou suas deficiências e só se mostra ativo e entu-siasta na hora do combate." (Carlos Soria Galvarro, "El Che evaloa sus hombres", La Razón,9/10/96, La Paz.) 

(**) "O aparato de Pineiro tinha condições de apoiar a ação de Ernesto, fosse no Con-go, na Argentina ou na Bolívia, mas eles não tinham preparado esquema algum na Bolívia.Ninguém da equipe de Pineiro esteve aqui." (Jorge Kolle, op. cit.) 

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Che através de Pineiro [...] Levavam-lhe notícias de tudo que se fazia naBolívia, o abastecimento, a logística, e só lhe diziam maravilhas".'9 O Che ti-nha razão em desconfiar deles. Repetiram a mesma jogada do Congo. 

Desde agosto Guevara deu instruções precisas a Pombo, Tuma e Papipara que comprassem o sítio no Alto Beni. Mas eles, manipulados por Mon-

 je e constrangidos pela necessidade de manter relações cordiais com ele paraprotegerem seus amigos do PCB, insistiram no Sudeste boliviano. Apresen-taram ao seu comandante um fato consumado, a compra de uma propriedadeem Nancahauzú e começaram a levar as armas para lá. O Che cedeu, talvezpor não conhecer o informe de Debray, por ainda não ter definido clara-mente sua intenção — se um foco na Bolívia ou uma mera escala a caminhoda Argentina —, ou ainda porque o tempo o premia.* Opor-se a seus delega-dos no país andino significaria recomeçar do zero. Também implicaria adiarsua própria partida para a Bolívia, já que ele não poderia permanecerindefinidamente nas cidades, sendo obrigado a internar-se com certa rapi-dez em algum acampamento, para evitar indiscrições e delações. Não teria

como instalar-se sem comprar um sítio, e não teria sítio se não aproveitasseo que o PCB escolhera justamente em Nancahuazú. Em vez de esperar, o Chepreferiu apressar-se e sair de Cuba o quanto antes. Temia, com razão, que ademora fizesse que Monje e o PCB o "queimassem", ou que Fidel Castro, aoperceber o fracasso dos preparativos, abortasse a expedição. Como recordaLino: "Não havia tempo para preparar mais nada".** 

Ao chegar à Bolívia, o Che confirmou a inexistência dos combatentesprometidos ou solicitados por Castro e cedidos a duras penas por Monje. Emvez de reaproximar-se dos comunistas bolivianos ou dos pró-chineses deOscar Zamora (que também se abstiveram de participar da guerrilha), oumesmo de reorientar suas atividades para o movimento popular e dos

mineiros, o Che optou por recrutar um grupo maoísta dissidente, encabeça-do pelo sindicalista Moisés Guevara. Quanto menores eram as exigênciaspara o recrutamento e quanto mais as redes se ampliavam, maior era a pos-sibilidade de infiltrações e escolhas equivocadas: gente que aceitava incor- 

(*) Lino afirma, ao contrário de Debray, que "o Che leu o informe do francês, masaceitou o fato consumado do Sudeste porque tinha pressa e, principalmente, não queria maisbrigas em Cuba". (Entrevista, op. cit.) 

(**) Lino, entrevista, op. cit. Segundo a versão de Ciro Bustos para sua conversa como Che no acampamento, Guevara lhe contou que, quando Papi Martínez Tamayo viajou aCuba, em setembro, disse-lhe que, se não entrasse logo na Bolívia, nunca mais conseguiriaentrar. (Ver Ciro Bustos, Account ofhis stay, op. cit., p. 201.) 

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porar-se à guerrilha por dinheiro ou promessas e desertaria no primeirochoque com a realidade da guerra. Mas selecionar as pessoas com mais cuida-do implicaria também adiar o início das operações. Era impossível começarsem combatentes bolivianos, e os de Monje tinham se reduzido a quatro oucinco quadros, alguns dos quais deveriam permanecer nas cidades. Resta-

vam apenas peruanos resignados e cubanos superexcitados. Era indispen-sável a presença de bolivianos, independente de sua filiação. Esse conjuntode circunstâncias, pela lógica, devia levar o Che a repensar toda a aventura,ou pelo menos adiar a partida de Cuba. Mas ele, ao contrário, optou pela fugapara a frente, aquela que seria a última de sua vida. Apesar de tudo, resolveumanter o cronograma previsto, com os planos incompletos e os meios que ti-nha à mão. Um homem sensato, prudente, com tempo e paciência, mesmonão sendo guerrilheiro, teria recuado ao avistar a beira do abismo. O Che, não.Ele tinha pressa, ansiava por sair de Cuba, onde já não havia lugar para ele.  

Antes de partir, ele se despediu de Aleida e das crianças. Disfarçado defuncionário uruguaio e com o nome falso de Ramón, calvo, barrigudo e

míope, jantou com suas filhas sem revelar-lhes sua identidade. Elas só sabe-riam disso bem mais tarde, quando foi confirmada a notícia de sua morte. Em23 de outubro deixou Havana, rumo a Moscou, em companhia de Pachun-go, seu companheiro de viagem. Em Moscou tomou um voo para Praga e, detrem, passou por Viena, Frankfurt e Paris. Depois seguiu de avião para Madrie São Paulo e, novamente de trem, chegou a Corumbá, na divisa com aBolívia, em 6 de novembro. Os viajantes cruzaram a fronteira sem maioresproblemas. Horas depois, Papi, Renán Montero e Jorge Vázquez Viana ospegaram em um jipe, levando-os a Cochabamba e La Paz. O jipe quase capo-tou quando Vázquez Viana, observando o rosto familiar, embora desco-nhecido, do passageiro, descobriu que se tratava do legendário comandante

Guevara. Até aquele momento, ele não sabia quem era. Durante muito tempo, circularam diversas versões e houve muitas

dúvidas quanto ao verdadeiro itinerário do Che. Há ainda certas incon-gruências nos passaportes que ele utilizou. Quando o exército bolivianopenetrou no acampamento e apreendeu grande quantidade de documentos,descobriu dois passaportes falsos uruguaios, com a mesma foto, um em nomede Adolfo Mena González, o outro de um certo Ramón Benítez Fernández.Cada um deles tinha os carimbos de entrada e saída do aeroporto de Madri,mas em dias diferentes do mês de outubro. Também circularam muitosrumores sobre a presença do Che em outras partes do mundo. Betty Feijin,ex-esposa de Gustavo Roca, o amigo do Che em Córdoba, recorda que, em 

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setembro ou outubro de 1966 seu marido a avisou de que se ausentaria poruns dias. Ao voltar, insinuou que se reunira com Ernesto Guevara emTucumán ou Mendoza. Nora, irmã de Betty, casada com um funcionáriodiplomático argentino lotado em Santiago do Chile, e que conviveu com oChe na juventude, jura que estava em seu carro quando viu Ernesto, cami-

nhando pela rua Monjihas, perto do clube de golfe, em um dia de primaverana capital chilena. Ele ia em mangas de camisa, disfarçado, mas perfeita-mente identificável por quem o conhecesse bem.* Ela acenou para ele e oChe respondeu com um gesto, como dizendo: por favor, não dê sinais de queme reconheceu. Nora seguiu seu caminho. Ao informar seu marido, estepediu-lhe que esquecesse o assunto, pois do contrário seria obrigado a noti-ficar o adido do Serviço de Informação Nacional na embaixada.** 

Também j á se especulou que o Che teria passado por Córdoba e inclusivese hospedado na casa da família Beltrán, nos arredores da cidade. Nenhumadessas suposições é inteiramente descartável, devido ao absurdo segredo ain-da imposto por Cuba sobre esse período da vida do Che. Vários autores, desde

o argentino Hugo Gambini até os bolivianos González e Sánchez Salazar,mencionam diversas escalas no périplo de Guevara até a Bolívia. O generalAlfredo Ovando, o militar boliviano de mais alta patente que participou dire-tamente da campanha contra o Che, anunciou, meses depois, que o coman-dante ingressara no território boliviano entre 15 e 22 de setembro de 1966,voltando, definitivamente, em 24 de novembro.40 Daniel James não só afirmaque Guevara esteve na Bolívia e em vários outros países latino-americanos naprimeira metade de 1966, como cita um artigo do jornal mexicano Exsélsior,publicado em 14 de setembro de 1966, indicando o local exato da entrada doChe na Bolívia, mas dois meses antes da data conhecida.41 No entanto, já sãotantos os relatos publicados, e tão irracionais parecem as razões para manter o

estudioso desinformado, que tudo permite concluir que o trajeto de Cuba àBolívia foi efetivamente o que consta nos documentos apreendidos. 

(*) Nora Feijin, conversa telefónica com o autor, Washington DC, 22/9/95. Pergunta-do diretamente, Gustavo Villoldo, um dos três cubanos enviados pelos Estados Unidos àBolívia, confirmou que o Che esteve no Chile. (Gustavo Villoldo, entrevista com o autor,Miami, 21/11/95.) 

(**) Reyna Carranza, segunda esposa de Gustavo Roca, confirmou ao autor que estelhe contara ter encontrado o Che no aeroporto da cidade argentina de Mendoza (quase nafronteira com o Chile). O Che estava com os cabelos louros, de óculos, e vinha do Chile.Roca morreu nos anos 80 e seus papéis foram destruídos em fins da década anterior, quandoteve de exilar-se na Argentina. (Reyna Carranza, entrevista com Marcelo Monje, por incum-bência do autor, Córdoba, 19/9/96.) 

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Em princípios de novembro, finda a odisseia e instalado no acampa-mento de Nancahuazú, Guevara constatou que pouco do que estava previstoexistia e funcionava. Não havia armas. Não havia comunistas além dos jáconhecidos. Monje nem sequer estava no país. A equipe de comunicaçõesera praticamente inoperante. A zona escolhida tinha todo tipo de inconve-

nientes.* O otimismo de Guevara superava obstáculos e reveses, mas Benig-no, ao chegar ao acampamento em 10 de dezembro, achou-o "espantosa-mente impaciente e de péssimo humor".42 Não importava: o prazer de estarnovamente em campo, pronto para o combate, livre das incertezas dos últi-mos meses em Praga e Cuba, logo o acalmaram enormemente. Nenhumadificuldade parecia insuperável. O alto grau de preparação dos cubanos per-mitiu pôr em prática os planos iniciais, apesar dos tropeços. 

O país onde Che Guevara se propôs a iniciar o incêndio da revoluçãolatino-americana já não era o que ele conhecera em 1953. A crónica instabi-

lidade política cedera espaço momentaneamente a uma incipiente e efémerainstitucionalização, marcada pela eleição mais ou menos democrática do pre-sidente René Barrientos, em 1966.0 estreito vínculo com os Estados Unidos,nascido da missão de Milton Eisenhower em 1953 — quando o Che peram-bulava pelos vales e picos andinos —, traduzira-se em uma relação de íntimaajuda e cumplicidade. Em meados dos anos 60, a ajuda militar norte-ameri-cana à Bolívia era a mais alta da América Latina e a segunda do mundo, sóficando atrás da que se concedia a Israel. Mais de mil oficiais bolivianos ti-nham passado pela Escola das Américas, no Panamá. A cooperação entre osdois exércitos se fortalecera a tal ponto que Barrientos solicitou um avião daforça aérea norte-americana para realizar uma viagem pela Europa, e o pedidofoi prontamente atendido pela embaixada dos Estados Unidos.** A Bolívia eraum país tipicamente subordinado aos Estados Unidos, mas o nacionalismo daRevolução de 1952 impunha um viés particular a essa submissão. 

(*) Segundo Benigno, "não há comida, não há remédios, não há armas". (Entrevista,op. cit.) 

(**) Hurwitch/Amembassy La Paz to Ruehcr/SecState (secreto), 4/1/66, NSF, Coun-try File, Bolívia, vol. IV, Box 8, LB] Library. O chefe da CIA em La Paz conta em suas memóriasinéditas que, em certa ocasião, Barrientos suspeitou de uma doença do coração e a CIA en-viou um cardiologista dos Estados Unidos exclusivamente para examiná-lo: "Barrientos eramuito amigo dos Estados Unidos para que descuidássemos de uma possível enfermidade".(John Tilton, Unpublished Memoirs, Chapter 9, "Chasing OY Che", gentilmente cedidas aoautor por John Tilton, p. 113.) 

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Era, ainda e mais do que nunca, uma nação pobre: a mais atrasada edesamparada da América Latina depois do Haiti, com uma grande parcelada população vivendo em zonas rurais, marginalizada e miserável. Mas erauma miséria sui generis, à moda mexicana: os camponeses tinham recebidoterras graças à reforma agrária; os operários pertenciam a sindicatos

poderosos, ora proibidos, ora legalizados; os recursos naturais — principal-mente o estanho, o antimônio e o petróleo — tinham sido nacionalizadospela revolução; e as forças armadas, sempre prontas a intervir no país edetentoras do recorde continental de golpes militares, faziam uso de umestranho enxerto de nacionalismo e conservadorismo pró-americanoimportado do Brasil. O Movimento Nacionalista Revolucionário de VíctorPaz Estenssoro abandonara o governo; a Central Operária Boliviana (COB),de Juan Lechín, mantinha-se na oposição; a sociedade civil boliviana con-servava um vigor e uma diversidade pouco comuns na região. 

Por último, a ascensão de Barrientos à presidência refletia outra pecu-liaridade boliviana. O novo mandatário era um homem da força aérea que

se destacara como fundador e ativo membro do Programa de Ação Cívicadas forças armadas. Desde 195 2, o velho exército formado no início do séculopelos alemães coexistia com as milícias camponesas e operárias surgidas darevolução, produzindo uma íntima relação entre militares e líderes cam-poneses envolvidos na divisão de terras. A partir da criação da Aliança parao Progresso, a Ação Cívica "permitiu que as forças armadas tomassem a ini-ciativa política quanto às necessidades locais da população: construção deescolas e estradas nas zonas rurais, por exemplo".4' Barrientos falava quíchuacorrentemente e gozava de real simpatia entre os camponeses. Pouco depoisde assumir o poder como presidente eleito pelas urnas de 1966, assinou oPacto Militar-Camponês, que, entre outras coisas, estipulava: "As forças

armadas garantirão o respeito às conquistas obtidas pelas classes majo-ritárias, tais como a reforma agrária, o ensino básico, o direito à sindicaliza-ção [...] Os camponeses, por sua vez, defenderão firme e lealmente a institui-ção militar, em qualquer circunstância. Colocar-se-ão sob ordem militarcontra as manobras subversivas da esquerda".44 

A complexidade da vida política e cultural da Bolívia já não cabia naimagem caricaturesca que muitos cubanos tinham do país: uma espécie derepública de bananas do altiplano, cheia de riquezas minerais, repleta depobres à espera de algum benfeitor que os libertasse, viesse de onde viesse.Em particular, a importância do fator indígena não impedia um forte senti-mento nacionalista, cuja vigência, sobretudo no seio das forças armadas, 

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baixava muitas das expectativas de Che Guevara. O país ostentava mais umparadoxo. Por um lado, tinha um movimento operário altamente politiza-do, concentrado nas minas de estanho e antimônio, organizado na poderosaConfederação Operária Boliviana (COB), com inspiração de esquerda e emcertas ocasiões até trotskista. Por sua importância económica, o sindicalis-

mo mineiro, apesar de francamente minoritário, exercia uma enormeinfluência. Em 1965, os mineiros representavam apenas 2,7% da populaçãoeconomicamente ativa do país, mas garantiam 94% do valor das expor-tações, as quais, por sua vez, respondiam por uma altíssima porcentagem doProduto Interno Bruto: "Trinta mil mineiros do estanho alimentavam umpaís de 5 milhões de habitantes".45 

Em contrapartida, a debilidade da esquerda em seu conjunto tambémera evidente. Desde a Revolução de 1952, ela vira suas bases abaladas. O Par-tido Comunista, os grupos maoístas, as organizações civis, embora nãodesprezíveis, estavam muito divididos e lutando entre si. Por isso, a CIA, emum informe secreto de 1966, classificava a Bolívia como o país "de risco"

menos suscetível a sofrer um levante revolucionário. Segundo a agência, aBolívia estava em último lugar entre os nove países onde prevaleciam insta-bilídades capazes de provocar pressões que conduziriam a uma intervençãodireta dos Estados Unidos.46 

Era nesse país que, em novembro de 1966, o Che pretendia realizar umaproeza totalmente oposta à concebida inicialmente. Não havendo qualquerpossibilidade de convocar inexistentes guerrilheiros peruanos, nem pros-perando de imediato uma série de iniciativas argentinas, a Bolívia conver-teu-se em berço do foco continental. E tudo em Nancahuazú, o pior lugarpossível para se implantar um foco guerrilheiro. Faltavam comunicações,população e camponeses sem terra — os lavradores existentes eram princi-

palmente colonos favorecidos pela reforma agrária. Tampouco abundavama vegetação, a fauna ou a água, recursos necessários à sobrevivência de umaguerrilha. Em vez de um sistema de apoio complexo e bem organizado, o Chedeparava-se com um PCB cuja direção era reticente e pouco confiável,enquanto os quadros que o apoiavam, embora entusiastas, eram limitados emarginalizados dentro da agremiação. Ainda assim, menos de três mesesdepois de o Che ter se instalado no vale do rio Grande, a escola de quadrose de treinamento de grupos guerrilheiros de todo o continente se converte-ria, involuntária e inoportunamente, no palco de uma batalha mortal. 

A guerrilha do Che nunca venceu a maldição que a perseguiu desde oinício. Atravessou uma crise atrás da outra, desde a chegada do comandante  

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ao acampamento, em princípios de novembro, até o trágico final de LaHiguera, em outubro de 1967. As peripécias da saga boliviana são conheci-das em muitos de seus detalhes graças à publicação póstuma do diário do Chee a uma vasta coleção de livros. Mais do que resenhá-las, convém narrar eanalisar suas sucessivas vicissitudes, bem como a reação cada vez mais deses-

perada e contraditória de Guevara frente a cada uma delas. O destino finaldo Che se aproximava. Ele não tinha vontade de morrer, mas desde muito jovem era fascinado pelo martírio; o sacrifício exemplar em breve oalcançaria. 

A primeira crise girou em torno de um inesperado fim das vacilações doPartido Comunista. Não era possível tolerar a incerteza que persistia, sobre-tudo quando a apatíàrfoPCB ameaçava provocar um autêntico desastre. Asarmas não chegavam; a rede urbana não se consolidava; os combatenteseram uma notável ausência; e Mário Monje perambulava pelo mundo. Esta-va fugindo do Che. Ao voltar de Havana, em junho de 1966, recusara-se apassar por Praga, acreditando, talvez com razão, que os comunistas cubanosqueriam confrontá-lo com Guevara para que o carismático comandanteexercesse pessoalmente a pressão necessária.* Mas ao voltar do congresso doPartido Comunista Búlgaro, em dezembro do mesmo ano, Castro intercep-tou-o em Havana. Informou-lhe que, chegando à Bolívia, seria conduzidoao acampamento do Che, sem dizer exatamente onde ficava, nem sequer seera em território boliviano. Monje conseguiu ouvir Pineiro sussurrar a Fidel,em seu gabinete, que o povoado perto de onde estava o Che chamava-sequalquer coisa como Ancahuázu.** 

Monje chegou a La Paz em fins de dezembro de 1966. Convocou umareunião de emergência do secretariado do partido. Anunciou que fora con-vidado a reunir-se com o Che em um acampamento e pediu a convocaçãode reuniões do birô político e do Comité Central para quando voltasse. Ele

sabia que um acordo com o Che seria impossível e que devia a todo custoconservar a unidade da direção do partido, já que a facção castrista — o 

(*) "Alguém, não sei se foi Pineiro, perguntou: Por onde você vai voltar para a Bolívia?Vou voltar por Moscou — Praga — La Paz. Sabe por que estou perguntando ? Pode ser que lheinformemos algo em Praga. Então eu cheguei a Moscou e falei: Consigam uma passagem numvôo direto para a Bolívia. Nada de Praga. Estavam querendo me aprontar alguma em Praga".(Mário Monje, op. cit.) 

(**) Mário Monje, op. cit. Em uma mensagem cifrada de Castro ao Che, datada de 14de dezembro de 1966 e encontrada entre os papéis apreendidos em outubro de 1967, Fidelavisa ao Che que "desinformou" Monje sobre a localização do acampamento. (Ver CarlosSoriaGalvarro, ElChe, op. cit., t. 4, p. 299.) 

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aparato clandestino, a Juventude — apoiaria os cubanos e se uniria à lutaarmada. 

Em 31 de dezembro, Tânia conduziu Monje ao quartel-general de Gue-vara. As instalações já estavam concluídas e tinham capacidade para alojare alimentar uma centena de homens. Havia várias bases secundárias afas-

tadas da "casa de zinco", no sítio, postos de segurança, um anfiteatro paraconferências, um forno de pão, um pequeno e bem aparelhado hospital. Apropriedade se transformara em uma praça de guerra, defendida por um sis-tema de comunicações, trincheiras, esconderijos para provisões, medica-mentos, equipamentos e papéis. 

A reunião seria tensa e decisiva: se a proposta do Che se apoiava nacolaboração do Partido Comunista da Bolívia, e ela simplesmente deixarade existir, salvo pela participação de alguns indivíduos heróicos e talentosos,mas apenas indivíduos, qual o sentido de insistir no projeto? Segundo Mon- je, o Che deu com a língua nos dentes, dizendo que ele e Fidel o tinhamenganado: "Na verdade, enganamos você. Eu diria que Fidel não tem culpa.

Ele foi parte da minha manobra, já que lhe fez um pedido em meu nome. Ini-cialmente, eu tinha outros planos, mas mudei-os... Desculpe o companheiroque o procurou; ele é muito bom, de absoluta confiança, mas não é político,por isso não pude transmitir-lhe meus planos. Sei que ele foi muito grosseirocom você".47 

O "companheiro" era Papi Martínez Tamayo. Os planos iniciais, o pro- jeto de ir para a Argentina. Já se falou aqui da hipótese, não de todo descar-tável, de que em algum momento Castro tenha considerado impossível dis-suadir o Che de seu despropósito na Argentina. Mas também é concebível atese de Monje, aqui admitida pelo próprio Che: os cubanos o enganaram,sabiam perfeitamente que a intenção era instalar um foco guerrilheiro na

Bolívia, assim como tinham plena consciência de que Monje e o resto do PCB jamais aceitariam isso. Por isso era preciso ludibriá-los com a ideia da "pas-sagem para o sul". 

Em seguida, o Che convidou Monje a se incorporar à luta armada,como chefe político, esclarecendo que a direção militar permaneceria comele. Monje disse que renunciaria à direção do partido para incorporar-se àguerrilha, mas sob três condições. Primeiro, a formação de uma ampla frentecontinental, a começar por uma nova conferência dos partidos comunistasda América Latina. Segundo, insistiu em que a luta armada deveria seracompanhada de um movimento rebelde nas cidades, obviamente coorde-nado pelo PCB, enfatizando a necessidade de criar uma frente política  

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nacional que reunisse todos os grupos do país em um comando revolu-cionário único. Por último, reivindicou que a luta não fosse exclusivamentearmada, ou seja, que a guerrilha se conjugasse com outras formas de luta e,em todo caso, que a chefia militar se subordinasse à política, a qual eleaceitaria exercer. Não concordava que a direção da luta ficasse com um

estrangeiro, por mais ilustre e experiente que fosse. A autoridade máximadevia ser exercida por um boliviano. Segundo as versões dos diários dealguns dos colaboradores do Che, Monje insistiu também na exclusão dosmaoístas de Oscar Zamora, com o que o Che concordou, confessando ter seenganado a respeito de Zamora.48 

Guevara registrou em seu diário que as três condições lhe pareciamartificiosas: na realidade, o boliviano queria romper com o Che. Para tanto,inventara exigências que certamente seriam inaceitáveis para Guevara.*Este advertiu Monje de que sua renúncia à Secretaria-Geral do PCB seria umerro, mas disse que, de qualquer forma, a decisão era dele. Quanto à condiçãode formar-se uma frente continental, mostrou certa indiferença, mas um

forte ceticismo: seria inócua. Mas, acima de tudo, rejeitou terminantementea exigência em relação ao comando: "Não poderia admitir isso, de jeitoalgum. O chefe militar seria eu, e não aceitaria dúvidas a esse respeito".49 

Para Emílio Aragonês, esse foi o erro fatal de seu amigo: um políticoteria aceitado as exigências de Monje para depois tentar superá-las ou con-torná-las. Fidel teria concordado.** O Che, porém, quase que preferia pres-cindir de Monje. Talvez ainda acreditasse nas fantasias do aparato cubanode que a maior parte dos membros e dirigentes do Partido Comunista seuniria à sua causa, virando as costas para o secretário-geral. Talvez por issoanotasse a seguinte conclusão em seu diário: "A atitude de Monje pode, porum lado, retardar o desenvolvimento, mas, por outro, contribui para liber-

tar-me de compromissos políticos".*** Aqui o Che estava redondamenteenganado: onze dias mais tarde, Monje obteve o total apoio do birô político 

(*) "Minha impressão é que, ao notar [...] minha decisão de não ceder em questõesestratégicas, ele se aferrou a esse ponto para forçar o rompimento". (Che Guevara, Diário, op.cit.,p . 73.) 

(**) Monje diz que Castro enviou uma mensagem ao Che em dezembro, antes doencontro, aconselhando-o a "fazer todas as concessões, exceto no aspecto estratégico", quepoderia ser, justamente, a questão do comando do movimento. (Mário Monje, op. cit.) 

(***) Ernesto Che Guevara, Diário, op. cit., p. 72. Ao fazer o balanço do mês, o Cheafirma, resignado: "O partido está se levantando contra nós e não sei até onde chegará, masisso nos retardará e talvez, a longo prazo, seja benéfico (tenho quase certeza). As pessoas maishonestas e combativas ficarão conosco [...]" (ibidem, p. 88). 

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e do Comité Central, que redige uma carta coletiva e unânime a Fidel Cas-tro reiterando a postura assumida perante o Che.* 

Mas nem por isso as esperanças estavam perdidas. Em fins de janeiro,quando Jorge Kolle e Simón Reyes se entrevistaram com Castro em Havanabuscando uma conciliação, foram avisados de que o Che seria "duro com

eles". Aceitaram repensar sua atitude, ao serem informados da natureza con-tinental do projeto. De certa maneira, era uma nova fraude. As alternativasem outros países já estavam afastadas, se é que algum dia existiram: a opçãoperuana fora descartada, a argentina não decolava e a brasileira sempre forauma quimera. Fidel procurou minimizar a intransigência do Che, justifican-do seu empenho em dirigir a guerrilha boliviana com o suposto caráter inter-nacional do empreendimento. Recorreu a seus maiores dons de persuasão,mas de nada adiantou. Por momentos, a discussão chegou a ser violenta,segundo o relatório secreto prestado ao governo alemão por um outro mem-bro do birô político do PCB, Ramiro Otero: 

A luta armada foi imposta ao Partido Comunista Boliviano por parte doscamaradas cubanos e de outros países. O PCB dirigiu-se por carta a Fidel Cas-tro pedindo-lhe que a decisão sobre quando e como seria essa luta fosse reser-vada ao partido. Fidel reagiu de forma negativa. Resultado: o aparato de pro-paganda da organização se desintegrou completamente, o partido foi proibido,os membros do Birô Político foram detidos [...] O camarada Otero vê con-tradições entre Guevara e Fidel Castro. Acredita que o Che é mais inteligente,mas politicamente mais perigoso.** 

Os bolivianos em Havana assumiram o compromisso de pelo menosdar apoio logístico ao Che e, se possível, enviar mais gente. Mas, em princí-pios de fevereiro de 1967, Pombo registrava em seu diário que no acampa-

mento eta esperada uma segunda visita de Monje.50

 De acordo com Benigno,36 bolivianos tinham sido treinados em Cuba e poderiam ter se integrado à 

(*) "A revolução boliviana e a luta armada deverão ser planejadas e dirigidas por boli-vianos. Nossa direção não se esquiva e assume seriamente sua responsabilidade nesse terreno.Tal exigência não subestima nem recusa a ajuda voluntária que possa advir de quadros re-volucionários e militares experimentados de outros países [...] Essa forma de pensar da Comis-são Política foi unanimemente apoiada pelo Comité Central." (Cit. em Carlos Soria Gal-varro, El Che, op. cit., t. 1, p. 51.) 

(**) Informe sobre Ia situación en Bolívia (en base ai informe de Ia delegación dei PC Boli-

viano en conmemoración de Ia Vil Reuntón Partidária en Ia RDA). Institut fur Marxismus-

Leninismus beim Zentral Komitee der SED, Zentrales Parteiarchiv, SED InternationaleVerbindungen, Bolívia 1963-70, DY 30/lV A2/20/142, Berlim. 

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guerrilha, mas isso simplesmente não aconteceu.51  A discussão sobrecumprir ou não os compromissos assumidos em Havana logo se tornouociosa: a deflagração dos combates, em 23 de março, eliminou a possibili-dade de qualquer visita do PCB à guerrilha. 

Aqui deparamos novamente com as cicatrizes do Congo. Depois de

definhar por oito meses na savana africana, devido a restrições impostas pelaausência de uma hierarquia de comando, o Che não podia tolerar nenhumadúvida a esse respeito.* Em outras condições, talvez tivesse admitido umconselho de direção, ou outra solução cómoda, embora pouco prática, quecontornasse a principal objeção de Monje sem entregar-lhe o comando.Mas, depois do calvário congolês, o Che não estava disposto a sutilezas ouarranjos de conveniência. Pagaria isso com a vida. 

As conversações se encerraram com um total desacordo. Monje pedepara dirigir-se aos comunistas bolivianos já incorporados à guerrilha, expli-cando sua posição. O Che concorda, acrescentando que todos os quequisessem deixar o acampamento e retornar junto com o líder máximo do

partido poderiam fazê-lo: todos permaneceram. Monje expôs sua posição,mas logo confirmou o que mais temia: os cubanos tinham conquistado suagente, em especial os Peredo, nos campos de treinamento da ilha. Concluiucom uma advertência trágica e profética: "Quando o povo souber que estaguerrilha é dirigida por um estrangeiro, vai voltar-lhe as costas e negar-lheapoio. Tenho certeza de que ela vai fracassar por ter à frente não um boli-viano, mas um estrangeiro. Vocês morrerão com muito heroísmo, mas nãotêm perspectiva de vitória"." 

O Che, por sua vez, se manteve impassível, mas sentiu o golpe. Benig-no relata: "Ele procurava não demonstrar, mas imagine, aquilo o obrigava amudar todo o plano. Reuniu-nos e disse: 'Bom, isto aqui acabou antes de ter

começado. Não temos nada a fazer aqui'. Disse que tanto os bolivianos comoos cubanos que desejassem abandonar a base podiam fazê-lo, que o cubanoque quisesse ir embora ao lado de um boliviano podia fazê-lo também, quenão ia ser considerado desertor nem covarde"." 

Com o fracasso das negociações com Monje, acelerou-se o recruta-mento de outros grupos, em especial os dissidentes maoístas liderados por  

(*) Esse ponto de vista é não só de um de seus companheiros de armas do Congo e deRégis Debray (ver Laguerrilla, op. cit., p. 103), mas também o que o Che transmitiu a MárioMonje: "Falou-me da experiência na África. Começou a contar-me os problemas que tiveralá, como dependia de determinadas forças que nunca se mobilizavam, que havia contradiçõesque ele não podia resolver". (Monje, op. cit.) 

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Moisés Guevara. Como isso tomaria tempo, o Che aproveitou para organi-zar uma marcha de reconhecimento e treinamento, prevista para duraralguns dias, que se prolongariam por semanas. Deixou quatro homens nabase, para receberem visitantes e novos recrutas, e formou três grupos para amarcha: a vanguarda, integrada por cinco combatentes e dirigida por  Mar-

cos (ou António Sánchez Díaz, ou comandante Pinares); o centro, a cargodo próprio Che, com dezoito homens; e a retaguarda, composta por seis guer-rilheiros, sob responsabilidade dejoaquín (Juan Vitalo Acufia). Os 29 expe-dicionários — quinze cubanos, catorze bolivianos — voltariam em franga-lhos, exaustos e desmoralizados. 

O percurso, previsto inicialmente para ser completado em 25 dias,demorou mais de seis semanas, terrivelmente árduas, estafantes e desgas-tantes. Eles percorreram vales, cruzaram riachos que se transformaram emrios, passaram por pequenos povoados quase desertos; exploraram escarpase desfiladeiros, até o rio Grande e o rio Masicuri. Dois novos recrutas — Ben- jamin e Carlos — morreram afogados no caminho, sem terem disparado um

só tiro. A vegetação espinhosa e cerrada, os mosquitos e outros insetos —entre eles o boro, uma mosca que deposita sua larva debaixo da pele —, aescassez de caça para alimentar a tropa, as chuvas e a cheia dos rios, tudo con-figurava um quadro dramaticamente diferente da sierra Maestra e das expec-tativas do Che. Os exploradores tinham de abrir caminho a golpes de facão.No terceiro dia, o terreno acidentado deixou vários combatentes sem suasbotas. A fome e a sede os atormentavam. Os recrutas esgotaram suas pro-visões de mantimentos antes do tempo e o Che tornou a aplicar o castigo desuspender a ração. Esgotados os mantimentos, decidiram devorar o cavaloque tinham comprado dias antes; "um banquete de cavalo", com as pre-visíveis consequências intestinais, anotou o Che. E, como era de se esperar,

as tensões cresceram, as divisões e conflitos afloraram entre os guerrilheiros.A marcha foi útil para expor esses pontos fracos, mas a um custo alto demaispara uma guerrilha embrionária. Por fim, a 17 de março, a tragédia começoua despontar: ao atravessar um rio torrentoso, a balsa em que estavam virou.Perdem-se mochilas, equipamento, seis fuzis e um terceiro homem, o melhordos bolivianos da retaguarda, segundo o Che. 

Em 20 de março, voltaram à base, arrasados por quase sete semanas defome, sede, cansaço e brigas. Quando viram o Che pela primeira vez, seusvisitantes se comoveram: era um homem macilento, com vinte quilos amenos, o rosto, as mãos e os pés inchados. Reinava um "caos terrível". Pordiversas razões que o argentino ainda desconhecia, caíra a máscara do acam- 

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pamento, da guerrilha e do próprio comandante. As deserções do grupo deMoisés Guevara, as suspeitas da vizinhança e o trabalho de inteligência dosbolivianos e da CIA, além dos encontros com vários técnicos em prospecçãode petróleo de Camiri, alertaram o exército, que marchou imediatamentepara o sítio de Nancahuazú. 

Entre 11 e 17 de março, ocorreu mais uma série de acontecimentosfatais para a guerrilha. Desde meados de fevereiro, haviam se incorporado àbase sete homens do sindicalista Moisés Guevara. Dentre eles, um acom-panharia o Che até a morte, sendo, como ele, executado a sangue-frio, e trêso trairiam naqueles fatídicos dias de março. Embora ninguém soubesse, oDepartamento de Investigação Criminal do Ministério do Interior já vinhaseguindo o dirigente sindical. Em janeiro, ele fora localizado em Camiri, junto com seus companheiros. Em março, quando Moisés Guevara dirigiu-se para o acampamento, acompanhado por Tânia e Coco Peredo, foi nova-mente seguido pela polícia. A informação foi transmitida à 4S Divisão doexército, com sede em Camiri.54 Em 11 de março, Vicente Rocabada Ter-razas e Pastor Barrera Quintana, dois dos recrutas encarregados da caça, fugi-ram do acampamento principal, desfizeram-se de suas armas e fugiram paraCamiri. Em 14 de março, depararam com a polícia, que os entregou à 4-Divisão. Ali forneceram informações completas e detalhadas sobre a guer-rilha, o acampamento, o número de homens e, acima de tudo, a presença deChe Guevara, seus nomes de guerra, as datas de sua entrada no país e muitosoutros detalhes. Ambos mencionaram o Che, embora reconhecendo quenunca o tinham visto, pois saíra em missão de reconhecimento.* Rocabadadeclarou que desde 12 de janeiro, quando Moisés Guevara convidou-os a seunirem à guerrilha, sabia da identidade do Che. 

Duas circunstâncias se aliaram contra o desamparado punhado decubanos. Por um lado, Moisés Guevara fora displicente ao fazer seu recruta-

mento. Superestimara seu prestígio como líder e, para não fazer feio com umnúmero demasiado escasso de combatentes, aceitou homens sem con-vicção, em alguns casos oferecendo-lhes dinheiro e exagerando a força daguerrilha à qual se integrariam. Haveria atrativo maior do que a chance decombater sob o comando do legendário Che Guevara? Ao deparar com arealidade, esses recrutas semivoluntários e semiconscientes desertaram. Aculpa, porém, não coube apenas a Moisés Guevara. Sem o apoio do PCB e  

(*) O texto do interrogatório — que demonstra de maneira incontestável ter sidoessa a primeira informação fidedigna sobre a presença do Che na Bolívia — é transcrito naíntegra em Prado Salmón, Laguerrilla, ibidem, pp. 80-2. 

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obcecado pela necessidade de aumentar a participação de bolivianos, o Checontagiou a todos, inclusive Moisés Guevara, com sua pressa em acelerar orecrutamento. O próprio Che assinalou em seu balanço do mês de janeiro: "Oque andou mais lentamente foi a incorporação de combatentes bolivianos"." 

Por outro lado, apesar do longo treinamento em San Andrés de Taigua-

nabo, a ausência do Che provocara nos cubanos um repentino relaxamentoda disciplina. Regras elementares de segurança foram violadas. Os guerri-lheiros da ilha foram os autores da maioria das indiscrições no contato comos homens de Moisés Guevara. Cometeram muitas outras durante as váriasvisitas que receberam no acampamento durante essas semanas, incluindo amania quase doentia de posar para fotografias — um costume que era tam-bém do Che. A delação de Rocabada e Barrera forneceu informações pre-cisas e detalhadas ao exército, já alertado por outras fontes sobre a possívelpresença de homens armados na região. Seguiu-se o envio de uma patrulhapara investigar a "casa de zinco" no sítio de Nancahuazú. Com trinta ho-mens em missão de reconhecimento fora da base central da guerrilha, os

outros se repartiram pelas bases secundárias, ficando na principal apenas umdos recrutas de Moisés Guevara, Salustio Choque Choque. Quando a patru-lha do exército chegou, o boliviano entregou-se sem resistência e, nos inter-rogatórios, confirmou todas as informações de seus companheiros. A qui-nhentos metros da casa, a patrulha encontrou vestígios de um acampamentoprovisório, inclusive seis malas contendo roupas com etiquetas cubanas emexicanas. 

Outros dados, além dos fornecidos pelos desertores, chegaram aos mi-litares bolivianos. O general Ovando revelaria, meses mais tarde, que, desdefins de fevereiro, as forças armadas dispunham da informação de que cincoestrangeiros tinham interrogado moradores locais, perguntando em particu-

lar sobre os pontos onde se podia vadear o rio Grande. Mais tarde, os mesmoscinco homens tinham sido vistos nadando e levando grandes quantidades dedólares e pesos bolivianos. Por sua vez, o pelotão de vanguarda, dirigido porMarcos, ao desligar-se dos outros dois para voltar antes ao acampamento,provocara um incidente na aguada de Tatarenda, ostentando suas armas enão escondendo sua condição de guerrilheiros, agindo com arrogância eindiscrição diante do técnico de prospecção petrolífera Epifanio Vargas. Ocomportamento de Marcos e seus homens despertou a suspeita de Vargas, queprimeiro seguiu-os e em seguida correu a Camiri para denunciá-los.  

Havia antecedentes: desde a instalação do foco guerrilheiro, emnovembro, um certo Ciro Algaranaz, morador da região, mostrara-se exces- 

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sivamente interessado no trabalho do acampamento e se oferecera para aju-dar os supostos sitiantes, pensando que se tratava de uma plantação de cocae um posto de refino de cocaína. Depois confiou a um de seus empregados —que os guerrilheiros chamavam de vallegrandino — a tarefa de vigiar a casade zinco. Ao chegarem, em março, os militares já contavam com as infor-

mações e suspeitas levantadas por Alagaranaz e o vallegrandino. Assim, quando o chefe da 4a Divisão do exército boliviano enviou a

patrulha para inspecionar o sítio, já acumulara um bom número de indíciosde que ali havia um grupo armado. Marcos e sua vanguarda cruzaram com apatrulha do exército. Os guerrilheiros mataram um soldado e em seguidarecuaram, evitando o combate e abandonando o sítio. Os militares retor-naram a Camiri, estimulados pelo mais precioso trofeu: a informação segu-ra sobre a existência de um grupo "subversivo" no canhão de Nancahuazú.A guerra tinha começado, nas piores condições imagináveis. Em vez de serecuperar da marcha, descansar, treinar os novos recrutas, atender às visitase melhorar o abastecimento, os combatentes recém-chegados à base tive-

ram de enfrentar de imediato as consequências de sua descoberta pelasforças repressivas. 

 Marcos  já esgotara a paciência do Che durante a marcha, por suasrepetidas brigas com os demais, em especial com Pachungo, também vítimade vários rompantes do argentino. Depois de restabelecido o contato, jáinteirado do ocorrido com Marcos e da descoberta da casa de zinco, Guevaraexplodiu. Insultou o chefe da vanguarda, acusando-o de covardia por teradotado uma posição defensiva e recuado. "Uma guerrilha não se retira semlutar. Não se vence sem combater", anotou o Che em seu diário. SegundoDebray, a reação foi violenta: "O que está acontecendo aqui? Que bagunçaé esta? Por acaso estou rodeado de covardes e traidores? Nato, não quero nem

ver os seus bolivianos cagões. Estão todos sem comida até segunda ordem".56

Não importava ao comandante que a posição defensiva visasse preparar umaemboscada, nem que ocorrera uma longa discussão entre Marcos, Rolando e

 António (Orlando Pantoja) sobre sua melhor decisão a tomar. Contrariadocom o curso dos acontecimentos, desgastado pela fome, pela sede, pelaansiedade, pelas eternas brigas internas, invejas e mesquinharias, em cir-cunstâncias terrivelmente adversas, Che Guevara tomou então uma dasdecisões mais críticas e questionáveis de sua vida. Contrariando suaspróprias teorias e experiências, e apesar da oposição silenciosa mas expres-siva de seus subordinados, armou uma emboscada contra o destacamentomilitar que, sem dúvida, viria nos próximos dias, quando o quartel de Camiri 

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reagisse à descoberta da base e à morte de um de seus homens. A guerrilhanão estava minimamente preparada para iniciar as hostilidades. Tanto aprecária coesão como a estratégia escolhida desaconselhavam qualquer ini-ciativa desse tipo. Por mais que já soubessem de sua existência, naqueleprimeiro momento ainda seria possível fugir, evitar o contato com o inimi-

go. O Che decidiu o contrário. Tanto Humberto Vázquez Viana, integrante da rede urbana e irmão do Loro, como Gary Prado, o militar boliviano que em outubro capturaria oChe na Quebrada dei Yuro, concordaram que a decisão de Guevara pareciainevitável e planejada. Vázquez Viana acha que tanto a localização como omomento eram os originalmente previstos, que o Che nunca pensou emficar meses sem submeter seus quadros — bolivianos novatos e cubanos mal-acostumados — a uma prova de fogo. Em sua opinião, o fracasso ocorreu nãopor causa da precipitação dos combates, mas devido a vários outros fatores."Prado, por sua vez, julga a decisão do Che acertada em vista das circunstân-cias, pois as alternativas — fugir ou dissolver a guerrilha — seriam piores. A

fuga não anularia a descoberta do exército, e dissolver o grupo seria impos-sível.58 Por outro lado, o próprio Fidel declarou que a antecipação dos com-bates custou caro à guerrilha do Che.* Não é absurdo supor que a confusãodo exército, naturalmente propenso a evitar o combate, tivesse permitidoque os guerrilheiros se afastassem e recomeçassem adiante, sem grandes difi-culdades. Os serviços de informação dos Estados Unidos enfatizaram repeti-damente que as patrulhas da 4a Divisão de Camiri só perseguiram os guerri-lheiros com muita relutância e a contragosto.** 

Em 23 de agosto, na quebrada do rio Nancahuazú, metade do contin-gente militar de oitenta homens enviado para o acampamento do Che foiatacada pelos guerrilheiros, em uma emboscada clássica. Os voos da aviação 

(*) A CIA também considerou que os acontecimentos se precipitaram: "O profissio-nalismo dos guerrilheiros manifestou-se, apesar de que foram descobertos acidentalmentemuito antes de estarem preparados para iniciar as operações". (Central Intelligence Agency,Directorate of Intelligence, Intelligence Memorandum, The Bolivian guerrilla movement: anínterim assesment, 8/8/67 (secreto), NSF, Country File, Bolívia, vol. IV, Box 8, Intelligencememo, LBjLibrary.) 

(**) "Depois de muita insistência, as patrulhas do exército começaram a levantarinformações sobre estranhos barbados no Sudeste boliviano. Em 23 de março encontraramacidentalmente um esconderijo guerrilheiro." (Central Intelligence Agency, IntelligenceMemorandum, Cuban-inspiredguerrúíaactivity in Bolívia, 14/6/67 (secreto), National Securi-ty File, Intelligence File, Guerril!a/>rob/emmLatin America, Box 2, Memo, ne6, LBjLíbrary.) 

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alertaram os rebeldes. A larga experiência do Che e de seus companheirospermitiu-lhes efetuar a operação com absoluta perfeição. No enfrentamen-to, morreram sete integrantes das forças armadas, inclusive um oficial;outros catorze se renderam, entre eles quatro feridos. A guerrilha não sofreunenhuma baixa. O butim capturado incluiu dezesseis fuzis com 2 mil balas,

três morteiros com projéteis, duas metralhadoras Uzi, uma submetralhadorae dois equipamentos de rádio. Do ponto de vista estritamente militar e táti-co, foi uma bela vitória: um batismo de fogo vitorioso, eficaz e económico.Mas, daí em diante, o pequeno bando, isolado, exausto, com homens malarmados e subalimentados, teria de enfrentar todo o poder de um exército,sem dúvida medíocre, mas apoiado pelos Estados Unidos. Já era impossívelesconder: havia uma guerrilha na Bolívia, com a participação de bolivianose estrangeiros. Sua localização, força e capacidade tática eram conhecidas.As reuniões programadas com a direção do Partido Comunista, o recruta-mento de novos quadros bolivianos, a formação coordenada da rede urbana,a difusão das teses e realizações da guerrilha — todos os planos minuciosa-

mente traçados foram aniquilados. Em 14 de abril, o PCB foi declarado ilegal.Até os militantes marginalizados pela direção — como Loyola Guzmán, adirigente da Juventude encarregada das finanças da rede urbana — passaramà clandestinidade, não podendo, portanto, desempenhar as funções desig-nadas para as cidades. 

Debray recorda que, para o comandante, o saldo da escaramuça não foi detodo negativo. Ele compreendia perfeitamente que do ponto de vista estratégi-co fora inconveniente, mas sentia certa satisfação com o fim da inatividade eda incerteza. O combate endurecia a tropa, elevava o moral, punha as coisas àsclaras.59 E preciso relembrar o contexto de derrotismo e apatia em que o Chetomou a decisão fatal. Convém, ainda, atentar para o estado de ânimo do

comandante. Ele se tornara mais taciturno e introspectivo do que nunca: Afastado, sentado na rede, fumando seu cachimbo, sob um teto de plástico, elelia, escrevia, pensava, tomava chimarrão, limpava o fuzil, escutava a RádioHavana à noite em seu transistor. Ordens lacónicas. Ausente. Fechado em simesmo. Atmosfera tensa no resto do acampamento. Disputas, suscetibili-dades nacionais, discussões sobre a tática a seguir, tudo exacerbado pelo esgo-tamento, a fome, a falta de sono e a permanente hostilidade da selva. Outrapessoa teria se integrado com a tropa, conversando, brincando. O Che punhaa disciplina a nu, sem rodeios nem relações pessoais.60 

Antes do regresso do Che, tinham sido introduzidos no acampamentotrês personagens que já deixaram suas marcas nestas páginas: Régis Debray, 

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Ciro Bustos e Tâmara Bunke. Esta não deveria estar ali; sua tarefa era enca-minhar os recrutas e visitantes ao acampamento e voltar a La Paz. Mas ela,por assim dizer, queimou seus navios. Talvez movida por uma decisão pensa-da, talvez inconscientemente — um emaranhado de fantasmas, culpas,desejos e obsessões onde se misturavam a aspiração guerrilheira, um prová-

vel amor por Guevara, a displicência e o nervosismo —, a agente dosserviços cubanos de informação abandonou seu jipe na casa de zinco, que foiocupada pelo exército dias depois. No veículo esqueceu agendas telefónicas,roupas e outros objetos que facilitaram sua identificação pelo Serviço deInformação do exército. Como disse o Che em seu diário, Tânia foi "identi-ficada e perderam-se dois anos de bom e paciente trabalho".61 Segundo arevista alemã Der Spiegel, Guevara esbofeteou-a ao voltar ao acampamentoe encontrá-la ali, vestida de guerrilheira.62 Rompia-se mais um dos poucoselos da diminuta rede urbana do Che na Bolívia. Os outros se quebrariam nassemanas seguintes, privando a guerrilha de qualquer contato com o exterior:com La Paz e com Havana. 

Quem era Tanial Por que teimou em engajar-se numa guerrilha para aqual não estava fisicamente preparada e à qual poderia servir com maiseficiência na cidade l Convém, antes de mais nada, descartar as versões fan-tasiosas que surgiram na esteira de sua morte, três meses mais tarde, e de suatransformação em "guerrilheira heróica", como a batizaram os cubanos. Atese de que Tarda era uma agente dupla — da KGB ou do Ministério da Segu-rança do Estado (MFS) da Alemanha Oriental — surgiu por vários motivos,mas principalmente devido à entrevista concedida por Gunther Mannel,que fora responsável pelos serviços secretos alemães-orientais, publicada em26 de maio de 1968.6' Mannel, que bandeou para o Ocidente em 1961, con-tou que reconheceu Tânia assim que viu sua foto, já morta. Ele fora seu "con-

trolador" nos serviços da Alemanha Oriental. Recordava perfeitamente queela trabalhava para o MFS desde 1958. Especializara-se na relação com visi-tantes estrangeiros — foi assim que conheceu o Che, quando ele fez suaprimeira viagem a Berlim, em 1960 — e recorria a todas as artimanhas fe-mininas da literatura de espionagem. Segundo Mannel, em 1960, a KGB quisampliar o número de agentes em Cuba e foi ele o encarregado de recrutarTânia para a nova missão, tarefa realizada em uma estação ferroviária deBerlim.64 Tais afirmações nunca puderam ser confirmadas, e Mannel jamaisforneceu maiores detalhes. Daniel James retomou a versão em sua biografiado Che, mas sem oferecer mais evidências ou informações. 

Marcus Wolf, renomado chefe da contra-espionagem alemã-oriental 

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— o deslumbrante personagem dos romances de John Le Carré conhecidocomo Karla —, foi entrevistado em 1995 pelos produtores de um documen-tário sobre Che Guevara. Afirmou que, ao menos que ele soubesse, Tânianunca trabalhou para o MFS.65 Além disso, Wolf nunca a mencionou em ne-nhuma de suas declarações públicas nem nos julgamentos que ocorreram na

Alemanha depois da queda do muro de Berlim. Tampouco se refere a elacomo agente em suas memórias, publicadas em 1997. Pode ser que estivessementindo, ou que aos oitenta anos não recordasse o nome de todos os seusantigos subordinados. Mas a fama de Tânia não era pequena. É improvávelque ele não se lembrasse de uma Mata Hari desse gabarito se já tivesse tra-balhado sob suas ordens. 

O mais provável é que, em 1961, Tâmara Bunke já tivesse sido aborda-da pelos serviços de informação de seu país, assim como ocorria com mi-lhares de jovens da Alemanha e de todo o bloco socialista. Como falavamuito bem o castelhano e nascera na Argentina, era candidata natural a tra-balhar na área internacional. Não parece inverossímil que tenha viajado a

Cuba em agosto daquele ano ainda sob orientação indireta de Karla. Masnão existe absolutamente nenhum indício que sugira que ela desempenhouo papel de agente dupla, nem nos arquivos alemães, nem em Moscou, nemno comportamento de Tânia na Bolívia. Outra coisa é se ela se apaixonoupelo comandante Guevara e que isso a tenha levado a cometer uma série deimprudências ou descuidos incompatíveis com sua formação e experiência. 

Ulises Estrada confirma-o agora, trinta anos depois: Tânia estava maisdo que apaixonada, estava fascinada pelo Che, e quis estar ao lado dele, fos-se como fosse. Tal como aconteceria com Michèle Firk na Guatemala dosanos 60 e com as admiradoras do subcomandante Marcos em Chiapas, seudesejo era ser guerrilheira e não um contato burocrático dos chefes e com-

batentes com La Paz, transportando-os de hotel em hotel e de contato emcontato, sempre distante das grandes decisões e proezas. Queria, de uma vezpor todas, tomar parte de tarefas e aspirações mais grandiosas. O início dashostilidades, ao fechar as saídas do quartel-general de Guevara, impossibi-litava seu retorno a La Paz com a identidade anterior. Seu desejo, conscienteou não, realizava-se: permaneceria no acampamento com Debray e Bustos. 

Ela foi amante do Che? Isso nunca se saberá ao certo. Os testemunhosdos sobreviventes que conviveram com os dois são contraditórios. Das cin-co pessoas vivas que poderiam ter uma opinião fundamentada e ao mesmotempo independente, duas — Debray e Bustos — negam ou ao menosrecusam-se a afirmar; outras duas — Urbano e Pombo — são burocratas 

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cubanos sem voz própria. Debray não acredita num romance entre os doispor considerar que faltava o mínimo de energia indispensável a qualqueramor não-platônico. Bustos jamais mencionou o assunto. Em seu livro,

 Benigno não adota uma posição fechada, mas, em uma entrevista posterior,afirma categoricamente a existência de um namoro, sem argumentos ou

provas muito convincentes.66

 Dois fatores alimentam a especulação. Oprimeiro são os antecedentes: Tânia e o Che se conheciam desde fins de1960, tinham se encontrado em uma infinidade de reuniões e festas, estive-ram juntos em Praga durante uma temporada na primavera de 1966 e tudoindica, pelo menos, que ela estava perdidamente apaixonada por ele. 

Em segundo lugar, quando o corpo de Tânia foi resgatado, em agosto,circularam rumores de que trazia no ventre um feto de três meses de idade.Não ficou claro se ela passou por uma autópsia. Alguns dizem que o mesmomédico que cortou as mãos do cadáver do Che — o boliviano Abraham Bap-tista Moisés, hoje funcionário do Hospital Universitário da cidade dePuebla, no México — efetuou uma necropsia completa no corpo de Tânia.

Sempre correu o boato de que ela morreu grávida.* Não é provável nemimpossível que o pai fosse o Che, mas seria de se esperar que, nesse caso,algum testemunho confiável e direto teria surgido ao longo desses trintaanos.** É mais provável que Tânia fosse uma espécie de entusiasta da re-volução, logicamente enfeitiçada pelo fascinante personagem que co-nhecera em Berlim seis anos antes. É natural que toda a situação se preste àsmais variadas interpretações e tentações, mas parece improvável que o Chetenha reencontrado o encanto das "minas" argentinas nos traços austeros equase masculinos de Tânia. 

Ciro Bustos foi o primeiro argentino convocado para a Bolívia. Nosprimeiros dias de fevereiro, Eduardo Josami, um dirigente do Sindicato dos

Jornalistas, foi contatado por Tânia em La Paz e depois conduzido a Camiri. 

(*) Diz o chefe do Country Team da CIA enviado à Bolívia, Gustavo Villoldo: "Aautópsia de Tânia não foi feita. Ela não estava grávida. Não se sabia de nada, primeiramenteporque não houve autópsia. Havia o rumor de que estava grávida, mas eu não acredito quefosse verdade". (Villoldo, entrevista, op. cit.) Já Felix Rodríguez, outro dos agentes da CIApresentes na Bolívia, declarou em diversas entrevistas, inclusive uma com o autor, que Tâniarealmente esperava um filho. Ver Felix Rodríguez, entrevista com o autor, Miami, 24/4/95.Ver também Tâmara Bunke, Der Spiegel, op. cit. 

(**) Benigno observou que se a gravidez tinha três meses, o Che não podia ser o pai. Adivisão da guerrilha em dois grupos deu-se em 20 de abril, e Tânia morreu em 31 de agosto.Para Benigno, o pai seria Alejandro, um dos integrantes do grupo de retaguarda, com quemTânia tinha uma relação de amor e ódio. 

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Ali foi informado sobre a marcha de reconhecimento do Che. Teria deesperar algumas semanas até o regresso do comandante. Resolveu voltar ummês depois, em vez de esperar em Camiri, exposto a todo tipo de perguntase suspeitas. O próprio Josami recorda hoje que "o objetivo da viagem nuncaesteve claro para mim", que ficou um tanto impressionado com "a pre-

cariedade dos meios", temeroso de que o vaivém do jipe de Tânia com doisperuanos engajados na guerrilha alertasse as forças armadas.67 Foi o que ocor-reu. Ele nunca chegou ao acampamento. 

Já Ciro Bustos chegou, sim. Seus contatos com o Che remontavam a1963, por ocasião da frustrada guerrilha de Jorge Masetti. Tânia convidaraBustos para ir ao acampamento em janeiro, mas só o levaria, com Debray, em6 de março. Ele era um pintor medíocre e um ativista ingénuo. Sua missãofora definida pelo Che tempos atrás: preparar seu retorno ao país natal, orga-nizando as facções e dissidências comunistas, peronistas e até trotskistaspara que dessem início a um grupo armado argentino. Bustos não pensavaem uma visita prolongada. Sua passagem deveria ser rápida e silenciosa.

Dividiu por mais de três anos a prisão de Camiri com Régis Debray. O francês realizava sua terceira viagem à Bolívia em três anos, mas na

ocasião seu propósito era mais político e público que das vezes anteriores. Elefora enviado por Fidel Castro, trazendo algumas mensagens e análises parao Che e para levar outras de volta. Devia atuar como uma espécie de inter-mediário entre o Che e outros grupos latino-americanos. Programara aseguir uma visita a São Paulo, para coordenar as ações de Guevara com as deCarlos Marighela.68 Esperava ficar apenas alguns dias no acampamento, jáque sua missão exigia que deixasse a Bolívia o quanto antes. 

Os três visitantes ficaram menos de um mês com o Che na base guer-rilheira. Sua partida provocaria uma nova crise, de consequências desas-

trosas, mas antes disso a paz interna já havia sido quebrada por outros acon-tecimentos. O primeiro foi o corte das comunicações devido a uma avaria oulimitação dos transmissores da guerrilha; o outro, a ocorrência de novasdeserções e indiscrições que permitiram ao exército boliviano ter uma ideiaexata do inimigo. 

As comunicações foram o calcanhar-de-aquiles da guerrilha do Che.Havia dois enormes transmissores norte-americanos, pesados, de válvulas,herdados da Segunda Guerra Mundial, para os quais era necessário um ge-rador elétrico autónomo. Um dos encarregados da comunicação com aBolívia em Cuba recorda: "Eles tiveram um rádio transistor que jamaischegou a funcionar, um aparelho enorme, com motor, que nem foi instala- 

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do. Nunca tiveram comunicação externa. O único rádio que tinham era umreceptor de seis faixas. Com ele ouviam a Rádio Havana, mas não tinhamcondições de transmitir nenhuma mensagem".69 

Um dos aparelhos molhou e deixou de funcionar desde janeiro, por tersido enterrado em um esconderijo malfeito; duas válvulas do outro

queimaram. Loro Vázquez Viana foi encarregado de comprar outras válvulasem Santa Cruz. Em vez de comprar uma caixa, contentou-se com duas e jogou-as no chão do jipe. Ao fim de seiscentos quilómetros por caminhosprecários, as válvulas chegaram a Nancahuasú totalmente imprestáveis.70 Emmarço, acabou a gasolina para o gerador; os guerrilheiros não voltaram a tercombustível. Seus dois aparelhos adicionais, para radioamadores, tambémestragaram rapidamente. Por fim, dispunham somente de um aparelho deradiotelegrafia, mas não da chave para utilizá-lo. Em outras palavras: "Foitudo improvisado. O equipamento para as comunicações parecia bom, masna hora não serviu para nada, uma bosta. Então compraram-se walkie-talkies,pareciam os melhores do mundo, mas depois não funcionavam, eram brin-

quedos de criança. E quando as baterias acabaram, não havia outras".71 A partir de fevereiro, o Che ficou sem comunicação com La Paz, Cuba

e o mundo. Somente podia receber mensagens. Não podia enviar informes,pedidos de ajuda ou comunicados de guerra.* Quando, além disso, caiu arede urbana e interrompeu-se a comunicação por via pessoal, todos os laçosestavam cortados: o Che ficara só. Os cubanos sabiam, desde antes defevereiro, que a guerrilha já não tinha transmissores nem qualquer outromeio de comunicação com a ilha. A partir de então, Havana dependeria dasagências de notícias para saber o que acontecia na Bolívia. Carecia por com-pleto de qualquer informação direta, exceto algumas mensagens enviadasdo acampamento nos primeiros meses e, em março, as notícias trazidas com

a volta a Cuba de Renán Montero, um dos contatos urbanos. Dada a enormeimportância desse fator na guerra de guerrilhas, o isolamento era um sinal dealarme, mas não causou maior inquietação na ilha. 

O início dos combates e a descoberta da guerrilha levaram a novasdeserções e conduziram as forças armadas aos acampamentos. Em umareunião em 25 de março, com todo o pessoal, o Che criticou todos; descar-regou sua ira contra Marcos e destituiu-o da chefia da vanguarda, dando-lhea opção de ser rebaixado a simples combatente ou voltar para Havana. Disse  

(*) "Não, não pudemos enviar uma só mensagem do monte. Nunca. Sempre recebe-nws, mas nunca transmitimos. Nada. Não tínhamos como". (Benigno, entrevista, op. cit.) 

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que mais três recrutas de Moisés Guevara — Chingolo, Pepe e Paço — nãoserviam, pois não trabalhavam nem contribuíam em nada; tinham pedidopara se separar do grupo e voltarem a suas casas. O Che achou que deviamser afastados na primeira oportunidade. De imediato, caso não trabalhas-sem, ficariam sem comida, assim como outro recruta boliviano, chamado

Eusebio, "ladrão, mentiroso, hipócrita", que também pedira baixa. Em 7 de abril, a 4a Divisão do exército boliviano ocupou o acampa-

mento central, tomando o hospital de campanha. Foram apreendidos osmedicamentos, o forno e uma grande quantidade de objetos dos guerri-lheiros, abastecendo a Inteligência militar com uma infinidade de infor-mações e detalhes. O achado não bastou para livrar o exército de uma novaderrota, em 10 de abril: algumas emboscadas guerrilheiras à beira do rio, acaminho do acampamento, provocou no inimigo nove mortes, uma dezenade feridos, treze prisioneiros, e proporcionou um considerável butim dearmas, granadas e equipamento. O grupo comandado por Rolando mostrougrande engenho tático depois do primeiro enfrentamento: em lugar de

atacar e fugir, atacou duas vezes. Foi a vitória mais importante dos insurre-tos. Desmoralizou o governo, deu alento aos simpatizantes da guerrilha eabalou seriamente o regime de René Barrientos. 

A situação das autoridades bolivianas era de fato preocupante. Em ape-nas duas semanas, elas contabilizavam dezoito mortos, vinte feridos e perdasmateriais consideráveis. No mesmo período, a guerrilha só teve uma baixa— Jesus Suárez Gayol, o Rubio —, e o moral da tropa oficial era baixíssimo.Os oficiais exageravam as proezas e o número de combatentes rebeldes —alguns falavam em quinhentos. Barrientos percorreu a região e prometeuerradicar o grupo armado o quanto antes, mas mostrava nervosismo e umcomportamento titubeante. Só com o tempo e por insistência norte-ameri-

cana o comandante-em-chefe das forças armadas, general Alfredo Ovando,retomou aos poucos o controle da ação governista. Ele concluiu que a lutaseria prolongada. Seria preciso obter apoio externo, em armas, treinamentoe inteligência, e formar corpos de elite para a luta contra as forças rebeldes. 

Embora convencidos da presença do Che, os militares preferiam falarde cubanos e estrangeiros em geral. Evitavam mencionar o comandanteErnesto Guevara: "As primeiras notícias que se tem sobre a provável pre-sença do Che Guevara são tratadas com cuidado. Sem divulgá-las, estãosendo contatados os serviços de informação de outros países para se tentarobter uma confirmação".72 Os norte-americanos também não queriam darpublicidade à participação do Che e evitaram que a imprensa estrangeira  

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soubesse dela.* Essa atitude mostrou-se bastante proveitosa: como declarouMário Monje em sua carta de 1968 ao Comité Central do PCB, o segredosobre a identidade do Che, antes e depois de o governo descobri-la, talveztenha protegido o argentino, mas impediu que dezenas ou centenas de mi-litantes se somassem à luta encabeçada por aquele que era uma verdadeira

lenda viva latino-americana. Quando e como se confirmou a presença do Che na Bolívia? SegundoGustavo Villoldo — que chegou pela primeira vez à Bolívia em fevereiro eretornou em fins de julho para encabeçar o Country Team da CIA —, ele seconvenceu da presença de Guevara graças à infiltração de três pessoas noaparato urbano montado pelos cubanos e pelo PCB. Ainda hoje, Villoldonega-se a fornecer os nomes dos dois bolivianos e um peruano, que aindavivem sob "proteção"do Estado. Mas acrescenta: "Posso dizer, sim, que infil-tramos uma série de agentes e foram eles que começaram a nos dar a infor-mação necessária para neutralizá-los. Todo esse mecanismo, esse apoiologístico, ao ser neutralizado, deixou a guerrilha totalmente desamparada.

Penetramos totalmente no aparato urbano".7

' Larry Sternfield, chefe da equipe da CIA na Bolívia até abril de 1967,declarou que, de fato, confirmou a presença do Che antes das autoridades boli-vianas, por intermédio de fontes locais de nível médio que trabalhavam emcontato com a CIA. John Tilton, substituto de Sternfield, corrobora essa ver-são em suas memórias inéditas: "Certa noite, o presidente René Barrientostelefonou-me para perguntar sobre um boato de que Che Guevara estaria naBolívia. Encontramo-nos e eu lhe disse que o rumor parecia procedente".74

Não é de estranhar que a cúpula da CIA em Langley não desse crédito a seuschefes de equipe em La Paz. Ocorrera o mesmo com os relatórios de LawrenceDevlin sobre o Che no Congo. Tilton ainda hoje lamenta as dificuldades que

teve para convencer a matriz a levar suas suspeitas a sério. Quando Debray e Bustos foram presos, em 20 de abril, as forçasarmadas já dispunham dos dados fornecidos pelos desertores e por SalustioChoque Choque, em poder das autoridades. Com eles, já podiam ter comocerto que o chefe da guerrilha era o Che. * * Além disso, em 24 de abril, Jorge 

(*) "A imprensa recebeu todo tipo de provas e confidências da embaixada dos EstadosUnidos e dos assessores militares de Washington, assegurando que o pânico boliviano erauma manobra para arrancar mais ajuda militar norte-americana". (Andrew St. George,"How the US got Che", True Magazine, abril, 1969, p. 92.) 

(**) "O que houve com Debray e Bustos não foi decisivo do ponto de vista de [saber]que era ele. Já se sabia." (Gustavo Villoldo, op. cit.)  

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Vázquez Viana foi ferido e capturado pelo exército, segundo alguns quandotentava fugir, segundo outros por desorganização. Depois de ser submetido auma cirurgia em um hospital militar, foi interrogado por um agente da CIAque operava com o nome de Eduardo González. Para complicar ainda maisas coisas, havia na Bolívia dois agentes da CIA com o mesmo nome frio: esse

González, que chegou primeiro, e o outro, cujo verdadeiro nome é GustavoVilloldo e que aparece nas fotos junto ao cadáver do Che em Vallegrande.*O primeiro González, hoje já falecido, interrogou Vázquez Viana, Debray eBustos. Ele armou uma cilada para o Loro, fingindo ser um jornalista pana-menho de esquerda. Viana contou tudo, de fio a pavio." 

Durante as primeiras semanas de interrogatórios e torturas, Debray sus-tentou a história combinada: era jornalista e fora à Bolívia para entrevistaros guerrilheiros. Escutara rumores sobre a presença do Che, mas não o vira.Depois, acabou reconhecendo que o entrevistou, mas disse acreditar que elenão se encontrava mais na Bolívia. Munido da informação obtida do Loro,González fez a acareação entre Debray e Bustos. Este descreveu os guerri-

lheiros e a vida no acampamento com riqueza de detalhes, fornecendomapas e rotas de acesso. Trocando em miúdos, abriu o bico. Cedeu a seusinterrogadores quando estes lhe mostraram as fotos de suas duas filhas eameaçaram sequestrá-las. Não tinha a integridade e a firmeza necessáriaspara resistir. Sequer foi espancado. 

Obrigado a deslocar-se, a encontrar uma saída para seus visitantes ebuscar novas fontes de abastecimento, privado de comunicações e da redeurbana, em 18 de abril o Che provocou uma nova crise na campanha daBolívia, ao dividir suas forças. A divisão, a princípio provisória, tornou-sedefinitiva e fatal: uma força tão pequena não poderia repartir-se. Separadose incomunicados, os dois destacamentos passaram quatro meses procuran-

do-se mutuamente pelas serras bolivianas, às vezes a poucas centenas demetros e até abrindo fogo um contra o outro, sem jamais se reencontrarem. A divisão foi feita devido à necessidade de conseguir uma saída para

Bustos e Debray. Ao verificar que seria difícil se afastar da área, cercada peloexército, os dois visitantes expressaram sua disposição de se unir à guerrilha,mas o Che, pelo menos no caso de Debray, respondeu que ele serviria me-lhor à causa se permanecesse fora, levando mensagens a Fidel e organizando 

(*) A existência de dois González foi comunicada ao autor por Gustavo Villoldo, naentrevista de 2 2 de novembro de 1995, em Miami. Ainda foi confirmada por Larry Sternfield,chefe da equipe da CIA na Bolívia até meados de 1967, em uma conversa telefónica com oautor em 4 de novembro de 1966. 

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uma campanha internacional de solidariedade. Uma esforço desse tipoadquiria maior importância com o início das hostilidades e o desbarata-mento da rede urbana. O diário do Che destaca que Debray expôs comdemasiada "veemência" seu desejo de abandonar o acampamento, mas mes-mo assim Guevara concordou e agiu de acordo. Deixou dezessete homens

com juan Vitalo Acufia, o Joaquín, seu lugar-tenente; entre eles, Tânia —debilitada e já sem poder voltar à cidade —, os doentes e os quatro homensde Moisés Guevara — conhecidos como "a ressaca" —, que deveriam darbaixa o quanto antes. Com os trinta combatentes restantes, o Che marchoupara o Sul, em direção a Muyupampa, um povoado que pretendia ocupar,aproveitando a confusão resultante para deixar os dois estrangeiros. Deu ordensprecisas a joaquín para que ao fim de três dias se reencontrassem no mesmolugar, evitando enfrentamentos que pudessem dificultar a reunificação. 

Mas o exército regular boliviano se adiantou e ocupou Muyupampa,impedindo a tomada pelas armas. No caminho, porém, a vanguarda gue-varista topou com um jornalista anglo-chileno, de aparência suspeita, que

descobrira o bando armado guiado por dois meninos. George Andrew Rothaceitou um acordo: em troca de uma entrevista com Inti Peredo, concordouem voltar a Camiri com Debray e Bustos, confirmando junto às autoridadesque eles eram jornalistas.* O ardil foi inútil. Debray e Bustos foram descober-tos, detidos pela polícia e entregues à 4a Divisão. Ali foram interrogados, coma violência característica dos exércitos latino-americanos. Provavelmente,teriam sido eliminados se não fosse o escândalo na imprensa e a pressão daCIA. Esta não agiu movida por nenhum alto sentimento humanitário, maspela certeza de que os dois poderiam fornecer mais informações. Ambos se-riam julgados, condenados a trinta anos de prisão e libertados em 1970, logoque o governo progressista de Juan José Torres subiu ao poder. 

O Che não fixou pontos de reunião com a retaguarda caso o exércitoou qualquer outro fator forçasse a dispersão. A falta de comunicações — fos-se entre os dois destacamentos ou com um terceiro centro, em La Paz ou mes-mo Havana — impossibilitou o reagrupamento. Quando o exércitoexecutou novas manobras e obrigou o Che a seguir para o norte, longe daárea onde Joaquín o aguardava, o vínculo se rompeu definitivamente. O Chenunca desistiu das tentativas de reunificação. Mais tarde, quando seus com-panheiros suplicaram que abandonasse a ideia, enfureceu-se: "Nós certa vez 

(*) Em seu próprio relato, Roth não menciona essa troca. Diz apenas que recebeuinstruções dos guerrilheiros para proceder dessa maneira. (Ver George Andrew Roth, "I wasarrested wirh Debray", Evergreen Magazine, 1967.) 

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nos atrevemos a dizer-lhe: Por que não paramos de procurar o grupo de Joaquín, para que eles se virem como puderem? Ele nem nos deixou termi-nar. A explosão que se seguiu foi gigantesca".76 Como a zona era poucohabitada e os raros moradores que conversavam com os guerrilheiros rea-giam com temor ou hostilidade, o reencontro só dependia da sorte. E a guer-

rilha do Che na Bolívia nunca contou com a sorte. Por que o Che não estabeleceu alguns pontos alternativos de reunião coma retaguarda? Trinta anos depois, o mistério ainda persiste. Na mais profundaanálise escrita por um militar boliviano, Gary Prado atribui o erro a uma supe-restimação das forças guerrilheiras e um erróneo desprezo pelo exército.77 Aresposta está provavelmente no estado de ânimo do Che, torturado pela fraque-za, o mau humor e a asma, acossado por uma infinidade de problemas. No seudiário, o Che registra constantes crises de asma e uma negra nuvem depressiva.As circunstâncias não ensejavam decisões inteligentes, cuidadosas e prudentes. 

Ao longo de abril e maio, quando Guevara esperava estabelecer vín-culos com os camponeses da região — embora tivesse consciência dos

obstáculos que enfrentaria —, ocorreu o inverso. A morte de dois civis teveuma péssima repercussão entre a população local. A campanha anticomu-nista desencadeada pelas forças armadas surtiu efeito. Os comunicados dorecém-batizado Exército de Libertação Nacional tiveram pouca difusão naimprensa, cada vez mais censurada. Os camponeses aceitavam vendervíveres aos combatentes, mas com receio. Falavam com eles, mas muitotemerosos, e costumavam informar rapidamente as autoridades de qualquercontato com a guerrilha. 

Em 15 de abril, Havana publicou na revista Tricontinental o ensaio doChe em que o comandante formula seu mais célebre slogan: "Criar dois, trêsVietnãs". Sua exaltação à violência e ao sacrifício da vida — a busca do

martírio, diriam alguns — torna-se explícita: "O ódio como fator de luta. Oódio intransigente ao inimigo, que impulsiona o ser humano para além doslimites naturais e o converte em uma eficaz, violenta, seletiva e fria máquinade matar. Nossos soldados têm de ser assim. Um povo sem ódio não podetriunfar sobre um inimigo brutal".7S 

O tom anti-soviético do discurso também é patente, assim como o tompanfletário.* Seis fotos do Che são divulgadas, duas à paisana e quatro de  

(*) "Há uma triste realidade. O Vietnã [...] está tragicamente só. A solidariedade domundo progressista para com [...] o Vietnã assemelha-se, com amarga ironia, ao que o estí-mulo da plebe representava para os gladiadores do circo romano. Não se trata de desejarvitórias para o povo agredido, mas de partilhar sua sorte" (ibidem, p. 642).  

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uniforme verde-oliva. O jornal registra, em 15 de abril, que a publicidadedada a sua mensagem garante que "não deve haver dúvida quanto à minhapresença aqui". Enquanto isso, na Bolívia, o combate contra os guerrilheirostransformava-se numa verdadeira caçada. Todos os recursos locais forampostos a serviço de uma única causa: caupturar e/ou matar Che Guevara.

Logo, milhares de soldados passaram um pente fino em uma área imensa,mas particularmente hostil, rastreando menos de quarenta homens fa-mintos e doentes, divididos em dois grupos isolados. 

Os Estados Unidos se envolveram desde o início na guerra da Bolívia.Os dois agentes cubanos da CIA ainda vivos, Félix Rodríguez e Gustavo Vil-loldo, só se incorporaram plenamente à luta antiguerrilha em junho, ater-rissando em 31 de julho no aeroporto El Alto, de La Paz. Mas, em Washing-ton, as reuniões para análise da situação na Bolívia vinham sendo realizadasdesde abril. De acordo com o relato de Andrew St. George, o jornalista que

entrevistara Fidel e o Che na sierra Maestra, em 9 de abril reuniu-se pelaprimeira vez um comité de alto nível visando dar uma resposta ante as provascontundentes da presença do Che na Bolívia.* Segundo St. George, a pro-va definitiva da presença do Che foi a foto do forno de pão de Nancahuazú,feito de barro batido, redondo e bojudo, copiado dos fornos de pão vietna-mitas de Dien Bien-Phu. 

Após a visita do general William Tope a La Paz, em meados de abril,Washington concluiu, segundo o general, que "essa gente enfrenta umenorme problema e vamos ter grandes dificuldades para encontrar umenfoque comum, para não falar de uma solução".79 Desde 29 de abril embar-caram para a Bolívia quatro oficiais e doze soldados liderados por Ralph Shel-

ton. Imediatamente iniciaram o treinamento de seiscentos soldados boli-vianos, um curso de dezenove semanas que os converteu no primeiro grupode Rangers na Bolívia, que capturaria o Che e derrotaria sua guerrilha. 

Os meses de maio e junho não foram os piores para a guerrilha. Em fins 

(*) St. George, How the VS, op. cit., p. 93.0 primeiro documento da Casa Branca afir-mando a presença do Che tem a data de 11 de maio e diz: "Esta é a primeira informação dignade fé de que o Che está vivo e em atividade na América do Sul". (Walt Rostow to the Presi-dem, 11/5/67 (secreto). NSF, Country File, Bolívia, vol. 4, box 8, LBJ Library.) O primeiroinforme disponível da CIA afirmando categoricamente que o Che estava na Bolívia é de 14de junho. Trata-se de um resumo, evidentemente sintetizando relatórios anteriores. (CentralIntelligence Agency, Cuba-inspiredguerrillaactivity, op. cit.) 

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de maio, ela ocupou três povoados em um só dia, numa demonstração demobilidade e profissionalismo de comando que voltou a desmoralizar oexército. A guerrilha tinha valor e tenacidade em abundância, mas começa-va a faltar-lhe imaginação ofensiva. Na prática, o Che quase não empreen-deu ações ofensivas. Nunca atacou, nem por meio de comandos nem com

forças concentradas, as instalações militares bolivianas, as vias de comuni-cação ou os povoados de maior magnitude. Apenas reagiu às investidas doexército com emboscadas, ações defensivas ou a tomada de pequenas vilas. 

Nesse período, Guevara perdeu homens valorosos e queridos: em 25 deabril, San Luis, o Rolando, a quem conhecia desde a sierra Maestra, talvez omelhor militar da equipe; Tuma, ou Carlos Coello, cuja morte lamentoucomo se fosse a de um filho; e em 30 de julho de 1967, em uma escaramuçamenor, Papi, cuja morte, apesar das decepções anteriores, abalou-o muitíssi-mo. O Che devia saber que, perdendo guerrilheiros a esse ritmo, sem que oscamponeses compensassem as baixas com sua adesão, sua epopeia estavacondenada: por mais golpes que acertasse no exército, o próprio desgaste o

derrubaria. Nos círculos mais íntimos do poder cubano circulava a avaliaçãode que as coisas não andavam bem. As notícias da morte de guerrilheirospermitiram que os cubanos bem informados percebessem a iminência de umnovo fracasso.* 

O equilíbrio militar até o momento não desfavorecia os revolu-cionários. Em um memorando secreto para Lyndon Johnson, escrito emmeados de junho, o assessor de Segurança Nacional Walt Rostow confessa-va: "Os guerrilheiros levam clara vantagem, face a forças de segurança boli-vianas inferiores. O desempenho das unidades governamentais mostrouuma séria falta de coordenação de comando, de liderança dos oficiais, detreinamento da tropa e de disciplina".80 

Mas a vantagem era ilusória. O verdadeiro drama do Che era a falta deapoio por parte dos habitantes da região por onde ele vagou sem rumodurante meses. Eles jamais lhe deram boas-vindas, nem compreenderam osentido de seu movimento. Não houve um só camponês que tenha se unidoà guerrilha, nem mesmo em fins de junho, quando as atividades do grupo opuseram em contato direto com a população e o Che até chegou a fazer asvezes de dentista das vilas. A essa altura o país vivia um momento de inten-sa mobilização social que tivera início quando os trabalhadores das minas de 

(*) Lino, op. cit. Lino reconhece, entretanto, que Cuba não tomou conhecimento daseparação do grupo de Joaquín antes do anúncio público do aniquilamento da retaguarda, em31 de agosto. 

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Siglo XX, Hanuni e Catavi entraram em greve, recebendo imediato apoio domovimento estudantil. Mas nem mesmo essa circunstância aparentementetão favorável pôs a guerrilha em contato com o restante do país. A existên-cia de um movimento operário fora uma das razões mais fortes para que Cheoptasse pela localização da guerrilha na Bolívia. Mas os guerrilheiros

estavam isolados no Sudeste, separados pela cordilheira dos Andes e pormais de mil quilómetros, sem comunicações nem laços políticos com osmineiros. Testemunharam, impotentes, o massacre de dezenas de manifes-tantes no dia de São João e a rápida extinção do movimento. 

Duas novas crises atingiram a expedição entre abril e setembro. Aprimeira compreendia o velho problema da rede urbana, que terminara emmãos de militantes comunistas marginalizados do PCB, os quais sofreram asconsequências da proscrição do partido e da repressão legalista. Mário Mon- je atacava alguns comunistas que pretendiam solidarizar-se com a guerrilha;o governo se encarregava do resto. O PCB não forneceu víveres, armas,medicamentos nem ajuda. Combatentes, muito menos. Com a incorpo-

ração de Tânia à retaguarda e a captura de Debray, apenas um cubano per-maneceu nas cidades: era Ivan, ou Renán Montero, cujo desempenho aindaconstitui um dos enigmas da aventura boliviana do Che Guevara. A con-clusão era evidente para os cubanos na guerrilha: "Ou se escalava alguémpara fazer contato com a cidade, ou as coisas iriam muito mal. Mas só falá-vamos isso entre nós, ninguém era capaz de dizer uma coisa dessas ao Che".81 

Montero era de origem cubana, embora mais tarde obtivesse a nacio-nalidade nicaragúense pelos serviços prestados à revolução sandinista. Eraprovavelmente o único cubano da rede não propriamente ligado ao Che. Erafuncionário dos serviços de segurança do Estado, mas não da equipe dePineiro. Ao chegar à Bolívia, em setembro de 1966, foi encarregado, junto

com Tânia, de receber os cubanos, inclusive o Che. Discutia constante-mente com a germano-argentina, segundo Ulises Estrada, por causa de umcaso amoroso que inclusive explica parcialmente seu intempestivo afasta-mento da Bolívia.82 Como diz o diário de Pombo, as tensões entre os dois ti-nham se exacerbado perigosamente. Uma vez sãos e salvos todos os futuroscombatentes de Nancahuazú, a missão de Montero e Tânia consistia em "fa-zer negócios", segundo o diário do Che, e enraizar-se solidamente nasociedade boliviana. Ivan cumpriu com o segundo item, porque contavacom a vantagem de ter caído nas graças de uma jovem pertencente à famíliado presidente Barrientos. Incentivado pelo Che, chegara até a dispor-se acasar com ela.8' 

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Mas depois, em meados de fevereiro, sumiu do mapa: abandonou aBolívia, viajou para Paris e pouco depois apareceu em Cuba, em fins de abril,segundo uma mensagem cifrada de Havana para o Che.M A julgar pelo teste-munho de Montero, o motivo da partida era simples: devia manter seuspapéis em ordem, já que a sua missão era incompatível com a clandes-

tinidade. Seu passaporte e o visto de permanência venceram após seis mesesna Bolívia. Sem receber instruções do Che — inexistentes porque as comu-nicações entre a guerrilha e a cidade se interromperam semanas antes —, eledecidiu fazer o que fora combinado antes: sair do país para renovar seuspapéis.85  Trata-se de uma explicação, ou ingénua, ou ardilosa. Comoesclarece Benigno, "sozinho ele não partiria. Não era ele quem decidia. Nãotenho dúvidas de que recebeu instruções. Mandaram que ele fosse para aFrança, para que se recuperasse, e depois voltasse, mas não sei que motivoso impediram de voltar. Não estou certo sobre o caso do Renán".* 

Segundo Montero, ele ainda estava em La Paz quando Tânia foi aoacampamento pela última vez, no início de março, com Debray e Bustos.

Sabia, portanto, que ela não podia mais atuar como contato urbano.** Ti-nha plena consciência do início dos combates e das dificuldades dos mem-bros do Partido Comunista, agora relegados à vida clandestina. Além disso,seus planos de casamento avançavam, proporcionando-lhe contatos dealtíssimo nível que poderiam facilitar a regularização de seus papéis. "Três ouquatro dias depois do primeiro combate, encontrei-me com Barrientos, e suafamília aproveitou para apoiar a solicitação de terras que eu fizera para o AltoBeni".86 Nessas condições, não teria o menor sentido abandonar seu posto epartir para Paris apenas para regularizar sua situação legal. 

A outra explicação, apresentada tanto por Montero como pelo Che,em seu diário, era a doença. Mas ela também não se encaixa com o costume

imperante de resistir a tudo para cumprir a missão histórica. O diário dePombo assinala desde janeiro que Papi Martínez Tamayo comunicara aoChe seus temores em relação a Montero: "Ivan não ficará porque está va-cilando". A previsão logo se confirmou. Mesmo dando-se crédito à versão 

(*) Benigno, entrevista, op. cit. Lino, ao contrário, considera que, quando a comuni-cação entre Havana e a Bolívia se interrompeu por completo, Montero decidiu voltar porconta própria. Julga que ele agiu levado por uma forte amebíase e pela depressão que o atin-gira ao comprovar que o Che recusava seu desejo mais ardente: incorporar-se à guerrilha.  

(**) lván, entrevista, op. cit. Debray, contudo, afirma que Montero não estava em LaPaz durante os primeiros dias de março. Para o francês, a essa altura, Montero já abandonaraa Bolívia. 

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de que Montero voltaria para Cuba por conta própria, cabe perguntar qualfoi a reação dos cubanos ao verem que o único integrante da rede urbana ain-da em condições de ação abandonara a Bolívia. O próprio Ivan confessa queficou "esperando longos meses em Cuba", mais ou menos do início de abrilaté setembro, para retornar, mas "foi decidido que não, por motivos de segu-

rança. Como a presença da guerrilha tinha sido revelada, seria arriscado"."7

 Naquele tempo, os quadros guerrilheiros deviam morrer em seu posto.

Do contrário, pagavam caro por sua indisciplina ou traição. Renán Mon-tero, longe de ter sido castigado por abandono de posto, continua gozando,trinta anos depois, do favor e proteção do Estado cubano. Os motivos que eleapresenta são pouco verossímeis. Surgem então duas hipóteses: ou alguémlhe deu a "dica" para que fugisse da Bolívia e refizesse o contato com Havanaa partir de um país seguro, ou ele fez o pedido a Cuba e recebeu uma respostaambígua, que interpretou como aprovação. O essencial, entretanto, é quedesde sua chegada a Havana, ou mesmo a Paris, os dirigentes cubanos pas-saram a contar com toda a informação necessária para concluir que a guer-

rilha do Che fracassara. Sua fonte foi Ivan, e graças a esse serviço ele goza atéhoje de garantias especiais: Renán Montero sabia que Castro, Raul e Pineirosabiam. A penúltima mensagem cifrada que o Che recebeu de Havana infor-mava que um "novo companheiro" ocuparia "oportunamente" o lugar de

 Ivan. Mas o novo companheiro nunca chegou à Bolívia. Uma segunda crise acabaria por enterrar o Che na Bolívia. Foi causada

pela fraqueza que o seguia como uma sombra desde a infância: a asma. Des-de abril e o início dos combates, o aumento de adrenalina, em vez de deteras crises, agrava a doença, acompanhada por outros sofrimentos. Em maio,o Che escrevia: "No início desta caminhada tive uma fortíssima cólicaintestinal, com vómitos e diarreia. Deram-me demerol e perdi a noção de

tudo enquanto me carregavam numa rede. Quando acordei, sentia-me ali-viado, mas estava cagado como um bebé de colo".88 

A aflição abalava sua capacidade de decisão e agilidade mental. Em duasocasiões — em 3 de junho e quando da saída de Debray e Bustos —, ele anotouem seu diário frases como "o cérebro não funcionou com suficiente rapidez","não tive a coragem", "faltou-me energia".89 A vegetação, o clima, o ambientee, acima de tudo, a falta de medicamentos derrubam Guevara. Cada decisão,cada disputa interna ou perda de um guerrilheiro admirado agravavam seuestado. Ele recorria a todo tipo de preparados e artifícios, desde dependurar-sede uma árvore e pedir a seus homens que lhe golpeassem o peito com coro-nhadas até fumar diferentes ervas locais, enquanto buscava efedrina desespe- 

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radamente. Injetou-se novocaína endovenosa, evitou alimentos que pudessemprovocar crises asmáticas. Quando não podia caminhar, montava uma mula. Jánão suportava a mochila nas costas. Pela primeira vez, pediu a ajuda de seuscompanheiros. A vontade de ferro persistia, mas o corpo já não respondia. 

A partir de 23 de junho, as referências à asma são quase cotidianas no

diário, ao lado de comentários sohre a falta de medicamentos, a inutilidadedos sucedâneos, o desespero com o fim dos medicamentos disponíveis. Aangustiante busca de um remédio eficaz levou o Che a tomar uma decisãoque foi também uma oportunidade: a tomada do povoado de Samaipata,num cruzamnto de estradas entre Santa Cruz e Cochabamba, o maiorpovoado que a guerrilha ocupou em sua trágica marcha pelo Sudeste boli-viano. Os combatentes realizaram a operação com o mesmo profissiona-lismo das primeiras emboscadas. Enquanto uns falavam com a população,outros procuravam víveres e medicamentos. O Che ficou em uma cami-nhonete roubada para a ação e incumbiu seus homens de procurarem osremédios, mas estes não existiam, ou os guerrilheiros não souberam encon-

trá-los. Frustrou-se o objetivo da operação: "No que toca ao abastecimen-to, a ação foi um fracasso — não se comprou nada que valesse a pena.Quanto aos remédios, não se conseguiu nenhum dos que eu preciso".90 

Mário Monje tirou suas próprias conclusões do fracasso de Samaipata. Ini-cialmente, pareceu-lhe excelente a incursão guerrilheira pela planície. Indica-va que os rebeldes rompiam o cerco e se aproximavam do Chapare, a melhorregião para a luta armada. Mas quando a imprensa informou que os guerri-lheiros retornavam ao sul, Monje declarou em uma reunião da cúpula do par-tido: "Senhores, o Che não sairá vivo daqui. Todo o grupo será exterminado.Cometeram o pior dos erros. Precisamos enviar alguém a Cuba e dizer-lhes queé preciso salvar o Che".91 Depois de uma longa discussão, decidiu-se mandar a

Havana o próprio Monje para expor seu plano de evasão. Ele saiu via Chile e,em Santiago, comunicou aos comunistas chilenos seu propósito de ir a Cuba,pedindo que o ajudassem em sua missão. Ainda recorda o desconcerto dadireção chilena, primeiro incrédula, depois hesitante. Deteve-se em Santiagopor meses e não conseguiu viajar para Cuba. Mas se os comunistas chilenos nãoo ajudaram, isso se deveu à relutância do próprio governo cubano em receber olíder do PCB. Os chilenos jamais teriam agido assim por conta própria.* 

(*) A explicação foi sugerida ao autor por Volodia Teitelboim, o escritor e dirigentecomunista chileno, em uma conversa na Cidade do México, em 12 de novembro de 1996. Em1967, Tetelbiom compunha a cúpula do PCch e teria conhecimento de qualquer decisão par-tidária a respeito. 

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Depois da tentativa frustrada de conseguir medicamentos em Sa-maipata, o Che decidiu enviar Benigno, o mais forte dos sobreviventes, aosesconderijos da base de Nancahuazú, distantes mais de duzentos quiló-metros, para recuperar os antiasmáticos guardados lá desde novembro doano anterior. Ao chegar, Benigno constatou que o exército já os levara. Foi a

pior notícia do pior mês da guerrilha. Em 31 de julho, os guerrilheiros já ti-nham perdido onze mochilas, os últimos medicamentos e o gravador usadopara registrar as mensagens que vinham de Havana. A comunicação de forapara dentro também se rompia. Em 8 de agosto, o Che já perdia a calma,ferindo a égua que montava, desesperado com a asma, a diarreia e os reveses,como confessou no diário.92 Um militar boliviano, o capitão Vargas Salinas,relatou inclusive que desde agosto eram os irmãos Peredo que conduziam asoperações e que o Che tentou o suicídio — afirmação que não foi confirma-da em nenhum outro testemunho ou diário.* 

A descoberta dos esconderijos foi "o pior golpe que recebemos. Alguémnos delatou. Mas, quem? E uma incógnita".9' Um informante conduziu os mi-

litares ao esconderijo perto do primeiro acampamento, onde estavam guarda-dos documentos, fotos, víveres, medicamentos e armas. Segundo a versão dequatro sobreviventes, três do lado guerrilheiro e um das forças repressivas, oinformante foi Ciro Bustos.** O Che o convocara devido aos antigos laçoscom a guerrilha de Salta. Confiava nele sem conhecê-lo bem. SegundoDebray, foi Bustos que levou os militares ao acampamento. "Ele sumia, só con-seguíamos trocar algumas palavras no pátio da prisão. Mas eu sabia o que elecontava, pois podia perceber o que os interrogadores já sabiam".94 

 Benigno também especula que foi Bustos quem guiou o exército até olocal. Ele havia sido convocado à Bolívia pelo Che para que tivesse umanoção geral de todo o esforço guerrilheiro e pudesse atrair combatentes

argentinos. Por isso mostrou-lhe os esconderijos. "Eu saía andando comCiro Bustos e mostrava-lhe onde estavam os esconderijos. Alguns deles 

(*) Mário Vargas Salinas, El Che, mito y realidad, Cochabamba e La Paz, Editorial LosAmigos dei Libro, 1988, p. 57. Vargas Salinas foi o general da reserva que, em novembro de1995, declarou à imprensa que o cadáver do Che não foi cremado, mas enterrado, desen-cadeando uma longa, cara e infrutífera busca. 

(**) Em cinco ocasiões ao longo de um ano, em telefonemas à sua residência em Mal-mo, Suécia, ou por escrito, Ciro Bustos recusou-se a responder às perguntas do autor arespeito. Os cubanos, por seu lado, acusam a "ressaca" e em particular o Chingolo de teremguiado os militares ao esconderijo. (Ver Cupull e González, La CIA, op. cit., p. 96.) O proble-ma é que não parece que o Chingolo e seus companheiros tenham visto o esconderijo quandofoi feito. 

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eram conhecidos pelos bolivianos, outros não".95 Segundo Villoldo, Bustosforneceu retratos e descrições dos guerrilheiros que foram muito impor-tantes.96 Também ele confirma que Bustos levou-os ao esconderijo, emboranão saiba a data e diga: "Não posso explicar por que o fez, já que na verdadesua vida não corria perigo. Não posso dizer que tenha sido por falta de con-

vicção. Ele simpatizava muito com o Che".97

 Descoberto o esconderijo, perderam-se os medicamentos do Che. O

enorme esforço de Benigno foi em vão. O governo também conseguiu fotosde todos os guerrilheiros, inclusive Guevara. Exibiu-as na OEA como provadefinitiva de que o comandante Guevara estava na Bolívia. Já o Che nuncadeclarou sua identidade, jamais fez um chamamento à solidariedade local ouinternacional aproveitando sua imagem cada vez mais mítica. Na conferên-cia da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), realizadaem Havana a 15 de agosto, tanto Osvaldo Dorticós como Fidel Castro omi-tiram toda e qualquer informação referente ao Che. Não revelaram sualocalização nem sua desesperadora situação, e sequer se cogitou uma cam-

panha para apoiá-lo, protegê-lo ou salvá-lo. Talvez o ingénuo otimismo daequipe de Pineiro se mantivesse incólume, apesar dos incontáveis e desas-trosos indícios procedentes da Bolívia. Ou Fidel Castro e os cubanos jáestavam resignados com um desenlace fatal, já iminente. 

Depois de três meses seguindo obstinada e cegamente as instruções doChe de não se afastar da zona sul, onde os dois contingentes se separaram, ogrupo de retaguarda comandado por Joaquín dirigiu-se para o norte, com cin-co homens a menos. As tensões no seu interior vinham num crescendo já des-de o início. Tânia mantinha uma péssima relação com os demais, a ponto desofrer violências e insultos por parte dos cubanos, que a acusavam de ter sidoa causadora da divisão. Em 30 de agosto, a retaguarda tentou vadear o rio

Grande, com a ajuda do camponês Honorato Rojas, que no início do anoprestara certa colaboração, joaquín pediu o conselho de Rojas não se sabe porquê, já que em muitas ocasiões cruzara o rio sem ajuda. Combinaram uma se-nha: Rojas poria um pano branco junto à margem para indicar que não haviaperigo. Depois que os insurretos se foram, o camponês topou com uma patru-lha encabeçada pelo chefe do Serviço de Informação da 8ã Divisão, MárioVargas Salinas, a quem informou tudo imediatamente. Salinas armou umaemboscada nas duas margens do vau assinalado por Rojas e esperou os guer-rilheiros pacientemente. Na tarde de 31 de agosto, minutos antes do pôr-do-sol que os teria protegido, eles iniciam a travessia do rio. Em Vado dei Yeso,com a água pelo peito e os fuzis para o alto, eles foram crivados de balas. Mor-  

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reram dez combatentes, inclusive Joaquín, Tânia, Moisés Guevara e Bráulio.Seus corpos foram arrastados pela correnteza. 

Dois rebeldes bolivianos foram presos. Um morreria por causa dos fe-rimentos, o outro informaria em detalhes a peregrinação da retaguarda. Estehomem, cujo codinome era Paço, espalhou o rumor de que Tânia, ao morrer,

sofria de câncer de útero, o que constantemente a levava a retardar-se eexplicaria os vestígios de sangue encontrados em suas toalhas higiénicas.*Paço também divulgou histórias sobre os eternos conflitos entre os guerri-lheiros do grupo de Joaquín, em particular as crises emocionais de Tânia.Como Lyndon Johnson seria informado quatro dias mais tarde, por seu asses-sor de Segurança Nacional: "Ao fim de uma série de derrotas impostas pelosguerrilheiros, as forças armadas bolivianas finalmente obtiveram sua pri-meira vitória, e foi uma grande vitória".98 

Com a aniquilação da retaguarda, esgotava-se o tempo do Che. Vadodei Yeso foi o fim da caminhada não só para os que ali pereceram, mas paratoda a guerrilha boliviana. Isolada, dizimada por baixas, doenças e

deserções, com um líder torturado pela asma e a depressão, cercada por umexército cada dia mais enérgico e competente, ela não tinha saída. Faltavamcinco semanas para o cruel mas previsível epílogo. Antes de descrevê-lo erefletir sobre a "bela morte" que produz o mito do Che Guevara, é necessáriobuscar uma explicação para o que aconteceu. 

Descartadas as teorias fantasiosas — o Che continua vivo, o Che mor-reu antes, o Che nunca foi à Bolívia** —, a tragédia dá lugar a duas inter-pretações verossímeis e bem fundamentadas. Uma baseia-se na hipotéticadecisão do governo de Cuba de inicialmente apoiar o Che com meios limi- 

(*) "Na verdade Tânia sofreu muito, pois tinha câncer e isso não a deixava dormir."(Paço, cit. em Mário Vargas Salinas, op. cit., p. 102. Ver também Tâmara Bunke, Der Spiegel,op. cit.) 

(* *) Uma das histórias mais rebuscadas e inteligentes aparece no romance La septièmemort du Che, de Joseph Marsant, publicada originalmente em Paris e traduzida para o espa-nhol em 1979 (Plaza y Janés). Marsant é pseudónimo de Pierre Galice, adido cultural daembaixada da França em Havana em fins dos anos 60. Sua tese central é que Manuel Pineiroinfiltrou um homem seu na equipe do Che, que no final traiu o argentino. O propósito datraição era culpar os soviéticos pela morte para induzir um distanciamento entre Castro eMoscou. Fontes dos serviços de informação de outro país europeu ocidental assinalam — issosalta aos olhos no próprio texto — que Galice estava muito bem informado e, por mais fan-tástica que sua história pudesse parecer, não lhe faltam elementos verídicos. 

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tados e mais tarde sacrificá-lo. A outra pressupõe a boa vontade da ilha, masuma enorme imperícia que redundou em fracasso. Convém resumir rapida-mente as duas teorias, deixando a última palavra ao leitor, e à história.  

Fidel Castro teria "vendido" a ideia da Bolívia ao Che para evitar queele morresse nas ruas de Buenos Aires. O Che originalmente concebia um

esquema continental a partir da Bolívia, projeto que logo se limitou àsexíguas dimensões do vale do rio Grande, no Sudeste boliviano. Os recursospostos à disposição do comandante mostraram-se muito inadequados: nemos homens, nem as armas, nem as comunicações, nem os aliados satisfizeramas expectativas ou as necessidades. No início da aventura, a insuficiênciatalvez não fosse evidente para o Che ou os operadores de Havana, incluídoFidel Castro. Mas em fins de março de 1967, seria impossível alguém igno-rar ou sequer duvidar desse fato. Os cubanos tinham plena consciência deque Monje e o PCB não quiseram comprometer-se, que os combates haviamcomeçado prematuramente, que as comunicações se interromperam, que arede urbana nunca se consolidou e que os Estados Unidos tinham assumido

o caso para si. Mesmo ignorando a divisão da guerrilha em dois grupos,àquela altura os fatos aqui resumidos, todos de domínio público, oudedutíveis a partir das informações existentes, deixavam claro que o Cheproduzira uma guerrilha natimorta. 

Aceitando-se tais premissas, havia duas atitudes possíveis: apoiar aguerrilha com um novo e maior esforço ou montar rápida e vigorosamenteuma operação de resgate. Os recursos materiais e humanos permitiam ambasas opções: graças aos relatos de Lino e Benigno e às mensagens cifradas de

 Ariel (Juan Carretero), sabe-se que entre vinte e sessenta bolivianos treina-dos em Cuba dispunham-se a voltar à pátria para abrir uma nova frente guer-rilheira ou apoiar a do Sudeste.* Entre eles, convém recordar os nomes de

Jorge Ruiz Paz, El Negro, e Ornar. A oposição à atitude passiva de Monje eKolle entre os militantes do próprio PCB podia até provocar uma colaboraçãoda base partidária superior à inicialmente prometida pela cúpula. E a divul-gação da presença do Che poderia ter despertado enorme simpatia e so-lidariedade no país, no hemisfério e no mundo. Essa postura, em suma, pode- 

(*) Segundo Lino, mais de sessenta bolivianos tinham sido treinados em Cuba e se dis-punham a apoiar o Che na Bolívia. Nunca receberam a ordem para viajar. Lino, op. cit. Apenúltima mensagem cifrada dirigida ao Che de Havana, em julho de 1967, informa que"estamos preparando um grupo de 23 pessoas, na grande maioria pertencentes às fileiras daJuventude do Partido Comunista da Bolívia". (Ver Carlos Soria Galvarro, El Che, op. cit.,t.4,p.3O7.) 

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ria ter proporcionado ao Che os meios realmente necessários à sua emprei-tada, uma vez constatado que os meios iniciais era insuficientes.* O preçoseria elevado, mas pagável, ao menos em termos militares, em recursoshumanos e dinheiro. 

Mas aumentar a aposta na luta boliviana daria à presença cubana na

América Latina um novo perfil, incompatível com o recente alinhamentopolítico e os laços de dependência que ligavam a ilha a Moscou. Uma coisa eraenviar mais um punhado de homens à Venezuela e ser apanhada em flagrante;outra muito diferente seria declarar guerra a uma república irmã para apoiaruma guerrilha dirigida por um ex-ministro do Estado cubano. Independentedas consequências da iniciativa, Cuba simplesmente não podia dar-se ao luxode tomá-la, mesmo que seu povo e seus dirigentes se dispusessem a arcar comos custos. De qualquer maneira, Moscou não a toleraria. 

Várias fontes, a começar pela nota secreta do assessor de SegurançaNacional de Lyndon Johnson, Walt Rostow, indicam que desde princípiosde 1967 desencadeara-se um feroz conflito entre Cuba e a URSS, em torno da

política latino-americana de Fidel Castro. O memorando, datado de 18 deoutubro, dez dias depois da morte do Che, afirma: "Entrego-lhe um interes-santíssimo informe sobre um ríspido intercâmbio de cartas entre Fidel Cas-tro e Leonid Brejnev, sobre a forma como Castro enviou o Che à Bolívia, semconsultar os soviéticos. A correspondência foi uma das razões da visita deKossiguin a Havana depois da reunião de cúpula de Glassboro".** 

Se em algum momento os cubanos chegaram a pensar em um maiorcomprometimento na Bolívia, a atribulada visita de Alexei Kossiguin aHavana em 26 de junho de 1967 dissuadiu-os da ideia. Moscou e Havana 

(*) Em um balanço póstumo, datado de maio de 1968, a CIA estima que os cubanos

investiram menos de 500 mil dólares em toda a operação boliviana. Nem é preciso dizer queos analistas da agência norte-americana consideravam que "o número de homens, o finan-ciamento e o planejamento cubanos foram totalmente desproporcionais à envergadura e aosobjetivos da operação". (Central Intelligence Agency, Directorate of Intelligence, "Cubansubversive policy and the Bolivian guerrilla episode", Intelligence Report, p. 40 (secreto). Thedeclassified documents catalogue, Carrolton Press, file serie number 2408.) 

(**) Walt Rostow to the President, 18/10/67 (secreto), NSF, Country File, vol. IV, Box8, LBJ Library. O encontro Johnson-Kossiguin em Glassboro, Nova Jersey, foi em julho de1967; a visita do premiê soviético a Havana ocorreu em 26 e 27 de julho. Sabe-se que Kos-siguin foi muito mal acolhido em Cuba. Castro nem sequer foi recepcioná-lo no aeroporto.(Ver Central Intelligence Agency, Intelligence Information Cable, 27/7/67 (secreto), NSF,Country File Soviet Union, Document Information 26-7 de junho de 1967, distribuído em27 de julho de 1967.) 

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discutiam sobre a "questão Che" desde o início do ano. Mas como os soviéti-cos descobriram um dos segredos mais bem guardados do mundo? Apenasagora pode-se ter uma noção do emaranhado de conspirações, ardis e segre-dos que ainda envolvem os últimos meses de vida do Che Guevara. MárioMonje sempre sustentou que não fez nenhuma escala em sua viagem a Sofia

para assistir ao congresso do Partido búlgaro, em novembro de 1966, excetouma, em Havana, para falar com Castro. Mas  Benigno, em seu livro dememórias publicado em 1996, afirma que, ao voltar da capital búlgara, Monjepassou por Moscou. Não apresenta fontes para sua afirmação, mas sugereque foi justamente nessa escala que o dirigente comunista informou a URSSdas intenções de Che Guevara e recebeu o aval para sua decisão de nãocooperar com o comandante. Em carta ao autor, de outubro de 1996, Mon- je confirma sua passagem pela capital soviética, alegando motivos eco-nómicos: os búlgaros pagavam o bilhete, mas em uma viagem com escala emMoscou. Numa posterior conversa telefónica com o autor, Monje declarouque esteve duas vezes em Moscou, na ida e na volta da viagem à Bulgária.

Benigno, por sua vez, acrescenta ao que já contou em seu livro que um coro-nel hispano-soviético da KGB, apelidado Angelito e encarregado da discretapassagem de cubanos e latino-americanos pelo aeroporto Sheremetovo, nacapital soviética, informou que, quando Monje desceu do avião, foi recebidopor um funcionário do Comité Central, que rapidamente o levou à cidadede automóvel. O boliviano teria ficado uma semana em Moscou." 

Além de confirmar a afirmação de Benigno—confirmação importante,dada a odiosa campanha desencadeada contra ele pela máquina cubana —,a fugaz passagem pela capital soviética sugere várias reflexões sobre areunião de Monje com o Che em 31 de dezembro de 1966.* Embora Monjeainda hoje o negue com veemência, parece evidente que ele comentou com

os encarregados da América Latina, no Comité Central do PCUS ou na KGB,suas suspeitas e certezas acerca da expedição cubana em seu país.** Comovimos, Monje recebia altas somas da URSS (residiu em Moscou a partir de1968) e mantinha muito mais lealdade à pátria-mãe do socialismo que à ilhacaribenha. Ê quase certo que tenha consultado seus colegas moscovitas 

(*) Em seu livro, Benigno conclui que, durante a estadia em Moscou, "Monje reveloutodo o plano aos soviéticos, que pressionaram Fidel, e assim perdemos o contato. O Che nãofoi informado de nada e foi abandonado". (Benigno, Vie et mort, op. cit., p. 170.) 

(**) É o que dizem vários dirigentes comunistas que conhecem Monje quando inter-rogados a respeito. Entre eles, destacam-se o mexicano Amoldo Martínez Verdugo e ochileno Volodia Teitelboim. 

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sobre como agir em relação às solicitações cubanas de ajuda. Pode ser que ossoviéticos não tenham pressionado o boliviano para que apoiasse apenasformalmente a guerrilha,* mas é de se supor que tenham apoiado sua decisãode limitar severamente a ajuda. E, mesmo que Monje não tenha falado doChe aos seus anfitriões, é muito provável que durante a visita de Raul Cas-

tro e Dorticós a Moscou, entre 7 e 22 de outubro de 1966, o irmão de Fideltenha revelado o segredo de Guevara, seja ao ministro soviético da Defesa,Grechko, seja à KGB. E difícil imaginar Raul Castro escondendo uma coisatão importante de seus amigos soviéticos.** Daí a seguinte versão dos fatos,hipotética mas plausível. 

Em janeiro, após a passagem de Monje pela capital russa, Moscou exigeuma explicação de Havana.*** Convoca ao Kremlin o embaixador cubanona URSS, Olivares, e o repreende duramente, dispensando-lhe pela primeiravez um vil tratamento de país-satélite. O cubano deduz que os soviéticostemem uma intervenção norte-americana contra Cuba e trata de lavar asmãos. Parte imediatamente para seu país e informa seus superiores sobre a

situação, o que leva a uma série de tentativas cubanas de enganar Moscou efaz Fidel Castro pronunciar um irado discurso em 13 de março, claramentedirigido contra o Partido Comunista da Venezuela, mas na verdade alvejan-do a URSS: "Esta revolução segue sua própria linha. Nunca será satélite deninguém. Nunca pedirá permissão para manter sua própria posição". As ten-sões se acirram quando os soviéticos confirmam que o Che está na Bolíviamontando um foco guerrilheiro e que os norte-americanos decidiram com-batê-lo. 

Em uma troca de mensagens de alto nível entre Moscou e Havana,preparando a visita de Kossiguin, a URSS queixa-se amargamente da violaçãode diversos acordos anteriores, entre eles os da Conferência de Partidos 

(*) É o que afirmam os encarregados da América Latina no aparato do Comité Centraldo PCUS naquela época: "Estávamos convencidos de que não ia dar certo, mas não nos mete-mos. Não houve nenhuma tentativa de dissuadir o PCB". (Konstantin Obidin, entrevista como autor, Moscou, 31/10/95.) 

(**) A afirmação da CIA (ver nota 56) de que Cuba informou Moscou das intenções doChe desde o outono de 1966 reforça essa suposição. 

(***) A seção de análise da CIA parece também ter concluído que a URSS soube daexpedição do Che à Bolívia desde princípios de 1967: "Ao contrário de Pequim, Moscouprovavelmente estava ciente de que Castro planejava embarcar em uma de suas aventuras noexterior, e isso desde que as hostilidades se iniciaram na Bolívia, em março de 1967. (CentralIntelligence Agency, Directorate of Intelligence, "Cuban subversive policy and the Bolivianguerrilla episode", Intelíigence Report, maio 1968 (secreto), copy LB] Library, p. 44.) 

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Comunistas Latino-Americanos, em novembro de 1964, e vários pactosbilaterais. O Comité Central do PCUS lamentou em particular que Cubativesse agido sem informar Moscou. Afirmou que, portanto, Havana nãodeveria responsabilizar a URSS pelas represálias que os Estados Unidos pode-riam lhe impor. Cuba respondeu que a União Soviética enfraquecia a causa

revolucionária na América Latina ao celebrar acordos e fornecer créditos a"governos burgueses da região e ao estabelecer relações diplomáticas comregimes que assassinavame torturavam revolucionários".* Acrescentou queMoscou também sabotara a expedição do Che ao pressionar Monje para quenão cooperasse. O Che partira por conta própria e, embora não se tratasse deuma ação de Estado, não podiam deixar de ajudá-lo. 

Em julho, quando Kossiguin viajou aos Estados Unidos e se reuniucom Johnson em Glassboro, os cubanos e os russos concordaram que seriadesejável uma visita do número dois soviético a Havana, para serenar osânimos, acirrados ainda mais depois que Brejnev manifestara sua"decepção com a negativa de Castro em avisar previamente a URSS sobre a

saída de Guevara e criticara fortemente a decisão de Castro de lançar novasoperações guerrilheiras na Bolívia. Perguntou com que direito Castrofomentava a revolução na América Latina sem se articular com os demaispaíses socialistas".100  Kossiguin comprovou que Johnson acompanhava deperto os movimentos do Che na Bolívia. Embora a reunião de cúpula seconcentrasse nos temas do Oriente Médio — onde a Guerra dos Seis Diasacabara recentemente —, do Vietnã e do desarmamento, o presidentenorte-americano manifestou ao dirigente soviético seu enérgico protestocontra o intervencionismo cubano: 

Por último, instei Kossiguin a empregar a influência soviética em Havana paradissuadir Castro de apoiar ativa e diretamente as operações guerrilheiras. Disse-lhe que tínhamos provas de que os cubanos operavam em vários países latino-americanos. Citei em particular o caso da Venezuela e disse que essa atividadeilegal de Castro era muito perigosa para a paz no hemisfério e no mundo.101 

(*) Na conferência da OLAS, em Havana, os cubanos apresentaram um projeto de re-solução reafirmando o discurso de Castro e condenando a política de cooperação dos paísessocialistas na América Latina. Apesar de várias ameaças soviéticas e de uma intensa pressão,a resolução foi aprovada por quinze a três, com nove abstenções, embora o texto não fosse le-vado a público. (Ver Central Intelligence Agency, Directorate of Intelligence, "The LatinAmerican solidarity conferenceand itsaftermath", IntelligenceMemorandum (secreto), 20de setembro de 1967, The declassified document catalogue, Carrollton Press, vol. XXI, ng 2,mar.-abr. 1995, file serie numberO649.) 

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A URSS viu-se obrigada a pressionar novamente Castro para que desis-tisse de suas aspirações continentais, ao mesmo tempo que buscava uma re-conciliação.102 Kossiguin foi recebido com frieza em Havana, mas encon-trou-se três vezes com Fidel: em 26 de julho, com todo o birô político cubanoe Osmany Cienfuegos, em 27 e 28 de julho, a portas fechadas, apenas com

Raul Castro e Dorticós. Na reunião de 27 de julho, o soviético queixou-se deque as aventuras na região "faziam o jogo dos imperialistas e enfraqueciam edesviavam os esforços do mundo socialista para libertar a América Lati-na".10' Fidel tocou no doloroso tema do Che. Conforme as anotações de OlegDaroussenkov, o único intérprete presente na reunião: 

Gostaria de ressaltar que a revolução é um fato, não pode ser detida. Assumi-mos uma determinada posição revolucionária e temos consciência dos riscosque dela advêm. Os imperialistas fazem seus cálculos, podem atacar-nos aqualquer momento, mas não conseguirão esmagar o movimento revolu-cionário, nem aqui, nem em outras partes da América Latina. O companheiroGuevara encontra-se agora na Bolívia. Mas não participamos diretamente

dessa luta, simplesmente porque não podemos fazê-lo. Limitamo-nos a apoiaro partido local e a fazer declarações públicas.104 

Kossiguin replicou que, em primeiro lugar, tinha sérias dúvidas quanto aoacerto das ações de Guevara na Bolívia: "Não se pode pretender que o envio deuma dezena de homens a um país conduzirá imediatamente a uma re-volução. Não se pode pensar que o Partido Comunista não existe enquanto ocompanheiro Guevara não chega e faz a revolução".105 Criticou a própria ideia deque é possível exportar a revolução e protestou contra as palavras usadas porCastro em suas críticas aos partidos comunistas latino-americanos.106 Ao mesmotempo, tentou convencer Fidel de que o alarmante informe remetido pot ; seuembaixador em Moscou, dando conta de um iminente ataque dos Estados

Unidos a Cuba, era falso e de que Moscou mantinha sua solidariedade paracom a ilha. O encontro foi excepcionalmente tenso e embaraçoso. A recon-ciliação fracassou. As relações entre os dois países permaneceriam frias pormais de um ano, atingindo seu nível crítico no início de 1968.  

A pressão soviética impossibilitava uma ação de apoio como a aqui su-gerida. As alternativas se limitavam a resgatar o Che ou abandoná-lo à própriasorte, com dor no coração e a alma aos pedaços, mas resignadamente. Depoisda viagem de Kossiguin, até mesmo a opção do resgate teve que ser descartada. 

Quase dez anos mais tarde, movido por seu ressentimento em relação aManuel Pineiro e sua culpa frente a Benigno, Juan Carreteto, então embai-xador de Cuba no Iraque, confessou ao sobrevivente da Bolívia os por- 

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menores de um dos momentos mais dramáticos da Revolução Cubana. Porocasião da visita de Kossiguin, ele fora convocado para a primeira reuniãocom os soviéticos. Sua presença se explicava pela ausência de Pineiro. Nor-,malmente, o convidado da ala Liberación seria o próprio  Barbaroja. Car-retero evocou o ultimato feito pelo soviético: ou a ajuda cubana às guerrilhas

da América Latina cessava, ou cessaria a ajuda soviética a Cuba. Nessemomento, Carretero foi convidado a abandonar a reunião e procurarPineiro para substituí-lo. Nunca voltaria a ser convidado. 

Carretero e Armando Acosta tinham formado fazia algum tempo umgrupo de cubanos para salvar ou apoiar o Che caso se fizesse necessário. Fi-zeram-no "por conta própria", sem instrução alguma de Castro, mas con-vencidos de que um belo dia Fidel poderia dar a ordem. Era preferíveladiantar-se à hipotética decisão do caudilho. Porém, alguns dias depois,Pineiro avisou-o das conclusões do encontro com Kossiguin: "Escute, tome asmedidas para mandar de volta para casa aqueles homens que preparamos".107 

Em uma entrevista de 1987 concedida a um jornalista adepto da causae sem capacidade de réplica, Fidel Castro descartou com desprezo a opção do

resgate. Disse que não havia a menor possibilidade de enviar um grupo dehomens e tirar o Che da Bolívia. O isolamento, o cerco militar e a falta decomunicações comprometeriam irremediavelmente qualquer tentativa deoperação de comando. Como de costume quando se trata de Fidel, essaaparente verdade de polichinelo deve ser relativizada. Dispomos de váriostestemunhos sobre a disposição cubana de fazer um esforço que teria exata-mente essas características. Ao voltar da Bolívia, em 1968, Benigno, um dostrês sobreviventes da epopeia, manteve em Havana o seguinte diálogo comArmando Campos e Juan Carretero: 

"Se sabiam que a única via de comunicação eram vocês, porque não agiram?"Carretero e Armando Campos, como querendo se desculpar, disseram: "Não

tivemos responsabilidade nenhuma quanto a isso porque, logo que soubemosda morte de Tânia e da relação das pessoas que desertaram, começamos imedia-tamente a preparar um grupo aqui em Cuba, para o caso de o alto comandoordenar uma operação de resgate. Nós preparamos tudo, informamos Pineiro,e ele disse que informou Fidel, mas nunca recebemos a ordem para iniciar aoperação". E eles disseram: "Nossa responsabilidade ia até aí. Fizemos o quetínhamos de fazer, mas nunca recebemos ordens para nada".* 

(*) Benigno, op. cit. Entre os cubanos mobilizados para a missão, havia muitos vetera-nos da "invasão" de 1958 que não tinham sido aceitos na expedição à Bolívia. Conhecemosalguns nomes: Henrique Acevedo (irmão de Rogelio, um dos heróis de Santa Clara), osirmãos Tamayito (do pelotão suicida de Vaquerito) e Harold Ferrer.  

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O certo é que os três sobreviventes conseguiram escapar da ratoeira boli-viana atravessando a cordilheira até o Chile, graças em parte aos contatosque conseguiram estabelecer com os restos intactos da rede urbana. O pro-blema não residia, portanto, nas remotas possibilidades de um resgate, e simno momento, no lugar, na disposição das forças e na decisão de agir. Caso se

enviassem vários grupos separados, empregando os conhecimentos de Mon-tero — que estava em Cuba —, Rodolfo Santana — que continuava em LaPaz — e dos demais bolivianos ainda livres e familiarizados com as rotas deacesso à região, um salvamento não seria impossível. As comunicações "deida" permitiriam que se avisasse ao Che sobre o envio das equipes. Seria pos-sível combinar pontos de encontro por mensagens cifradas, até ocultando anatureza da iniciativa, apresentando-a como um reforço e não como um res-gate. O pior que poderia acontecer seria o fracasso. E quantos cubanos dariamcom satisfação suas vidas pela salvação do comandante Ernesto Guevara! 

Fidel tinha vários outros motivos para descartar essa alternativa. Oprincipal dilema advinha não do possível fracasso da operação, mas de seu

remoto êxito: O que fazer com o Che se ele escapasse da nova peripécia?Seria a terceira vez em três anos: ele já se salvara de Salta por ter demoradoa partir e pela rápida eliminação do foco, do Congo e agora da Bolívia. Fidelenfrentaria novamente um terrível conflito: encontrar para seu compa-nheiro de armas uma alternativa entre a morte e o misto de rendição,resistência e resignação que ele fatalmente viveria se voltasse a Cuba. O eter-no guerrilheiro teria de estar plenamente convencido de que sua nova aven-tura se encerrara. E, supondo-se que o Che se deixasse persuadir, persistiria ovelho problema: Qual seria o passo seguinte, após o amargo regresso a Cuba?*  

Ao cogitar seriamente a possibilidade de um resgate, é provável queFidel tenha decidido que um Che mártir na Bolívia serviria mais à revolução

que um Che vivo, abatido e melancólico em Havana. O primeiro permitiriaa criação do mito, o aval para decisões cada dia mais difíceis, a construção domartírio emblemático que a revolução precisava para levá-lo ao panteão deseus heróis, junto a Camilo Cienfuegos e Frank País. O outro acarretariaeternas discussões, tensões, divergências, todas insolúveis, e, no fim, conse- 

(*) No último capítulo de um romance inacabado sobre a vida do Che, seu amigo deinfância Pepe Aguilar afirma que, quando a guerrilha já era insustentável, Fidel Castro pediua Guevara que deixasse a Bolívia. Reproduz uma conversa que teria mantido com Castropouco depois de saber da morte de seu amigo. "O erro do Ernesto foi não ter voltado quandovocê lhe pediu." Se essa versão for verídica, confirmaria que Fidel tinha plena consciência dagravidade da situação. (Pepe Aguilar, manuscrito inédito obtido pelo autor.) 

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quências semelhantes, se não idênticas. Julgar Fidel Castro incapaz de umcálculo de tamanha frieza e cinismo seria desconhecer os meios que garan-tem sua permanência no poder há quase quarenta anos. Significaria ignorarseu comportamento em circunstâncias análogas, embora sem a mesma car-ga emocional e mítica do martírio de Che Guevara. Fidel não enviou o Che

para morrer na Bolívia. Nem o traiu. Nem o sacrificou. Simplesmentedeixou que a história seguisse seu curso, com plena consciência de qual seriao desfecho. Não fez, deixou que se fizesse. 

Dois fatores reforçam as evidências em favor dessa hipótese. Oprimeiro é posterior à morte do Che: em 1968, os cubanos enviaram umamissão de resgate à Venezuela, de onde conseguiram arrancar 24 guerri-lheiros sitiados, inclusive Arnaldo Ochoa, fuzilado por ordem de FidelCastro 21 anos depois. Eles saíram através do Brasil, graças, em parte, aoapoio do Partido Comunista local. Em segundo lugar, convém acrescentarao dossiê a estranha experiência de François Maspéro, o editor francês que já então era muito próximo dos cubanos. Viajou duas vezes à Bolívia, em

parte para tentar visitar Debray no cárcere de Camiri, em parte a pedidodos cubanos. Deixou La Paz justamente a tempo de assistir, em Havana, aum grande encontro cultural de verão e às comemorações do 26 de julhona sierra Maestra. Quando chegou sua vez de saudar Fidel, a quem já co-nhecia e que tinha pleno conhecimento de sua missão boliviana, respon-deu com um irreverente "mal" à pergunta do caudilho sobre como estavao país andino. Mas nunca foi convidado a informar Fidel, que não queriasaber mais do que j á sabia. Pelo mesmo motivo, os cubanos evitaram a visi-ta de Mário Monje nessa ocasião. Preferiam deixá-lo encalhado no Chilea esquivá-lo em Cuba. 

Essa atitude corrobora a impressão de duas testemunhas que estiveram

com Fidel Castro nas horas imediatamente posteriores à morte do Che. PepeAguilar descreve um homem obcecado por convencer a família do Che naArgentina de que este realmente estava morto. Mais do que consternadopela perda do amigo, Fidel mostrava-se preocupado com o manejo políticoda situação. Angustiava-o o fato de possuir informações de primeira mão,enviadas por vários virtuais agentes cubanos na Bolívia — AntónioArguedas, Gustavo Sánchez, Carlos Vargas Velarde —, mas não poder uti-lizá-las para persuadir Ernesto Guevara Lynch do falecimento de seu filho.Carlos Franqui, que fora convocado por Castro para confirmar se as páginasdo diário do Che divulgadas pelas autoridades bolivianas eram realmente desua autoria, recorda um Fidel "claramente eufórico". Esses dois retratos 

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mostram um personagem que já se resignara muito antes ao inevitável des-fecho da campanha e à perda de seu companheiro de mil batalhas. 

A outra explicação baseia-se no impressionante acúmulo de erros emal-entendidos ocorridos na Bolívia e em Cuba, e também possui forte dosede verossimilhança. A inépcia do aparato cubano e dos colaboradores de

Guevara, as confusas teorias deste, a insensibilidade de Castro em relaçãoaos comunistas bolivianos, a irresponsabilidade dos recrutas e recrutadoresda Bolívia, tudo isso junto configura uma característica essencial da ope-ração: uma incrível desproporção entre os fins e os meios. Vejamos três bonsexemplos disso. 

Primeiro: o Che não duvidou que o conflito que pretendia desencadearse internacionalizaria vertiginosamente. Assim que o exército bolivianoconsiderasse que a situação escapava de seu controle, pediria ajuda a seus vi-zinhos, sobretudo a Argentina e os Estados Unidos. Isso daria à guerra umaconotação nacional, rumo à criação dos famosos dois ou três Vietnãs. Aintervenção ianque arrastaria para o lado revolucionário as forças bolivianas

indecisas ou recalcitrantes. Era uma quimera. A ingerência externa no con-flito foi limitada no tempo e na forma. Resumiu-se a modestos envios dearmamentos, alimentos e material, um já mencionado punhado de agentesda CIA e as duas dezenas de boinas-verdes sob o comando de Pappy Shelton— para treinarem o Segundo Batalhão de Rangers da 8a Divisão. Gary Pra-do e os militares bolivianos subestimaram a importância da ajuda norte-americana. Ela certamente teria aumentado caso fosse necessário. E, comoafirma Larry Sternfield, a resistência inicial dos bolivianos a enfrentarem aguerrilha reverteu-se em grande parte devido aos norte-americanos. OsEstados Unidos fortaleceram a espinha dorsal de Barrientos.108 Mas o Che foivencido pelas forças armadas da Bolívia, assistidas por uma potência impe-

rial que alcançou seu objetivo sem maiores comprometimentos. Se Guevarapensou que os Estados Unidos se meteriam num cipoal semelhante ao doVietnã, enganou-se; se acreditou que permaneceriam passivamente naexpectativa, também errou. 

Segundo exemplo: a seleção de pessoal. Os desastres, abandonos, aspromessas quebradas e a incompetência foram mais do que frequentes entreas forças de Guevara. Papi Martínez Tamayo, Tânia, Renán Montero, JuanCarretero (Ariel), Pinares (Marcos), ]oaquín (Vital Acuna), ArturoMartínez Tamayo (o irmão de Papi encarregado do rádio que nunca con-seguiu operar) e outros, cuidadosamente escolhidos pelo Che e por Havana,simplesmente não serviram. Mal escolhidos, mal treinados, desestimulados, 

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esses quadros jamais conseguiriam levar adiante um processo revolucionáriocontinental. Sua abnegação e valor não compensavam a inadequação paraas tarefas a eles confiadas. Sua imperícia superava qualquer previsão: se amissão só podia contar com eles, deveria ser cancelada. 

Terceiro: a improvisação e os desencontros na relação com o Partido

Comunista boliviano. No fundo, o que os cubanos poderiam recriminar nelefoi ter se oposto à criação de um foco guerrilheiro dirigido pelo Che Guevaraem seu país: uma posição perfeitamente natural, dados os seus antecedentese as suas posições. Pensar que Monje era partidário da luta armada e se enga- jaria no foco contra a maioria da direção, ou que a facção pró-cubana do par-tido arrastaria consigo a maioria, foi uma típica fantasia da equipe deManuel Pineiro. Desvario maior ainda — infelizmente comuníssimo nosanais da esquerda latino-americana — foi supor que meia dúzia de quadrosmarginalizados dentro do PCB, apoiados pelos jovens treinados em Cuba epor líderes da Juventude, como Loyola Guzmán, poderiam arrastar para aguerrilha o resto do partido, em particular seu magro contingente nas minas. 

Frente a tamanha improvisação e imperícia, não é de estranhar areação inoportuna e impensada dos combatentes diante das adversidades.Como assinala Gustavo Villoldo, o principal agente da CIA na Bolívia deentão: 

Acontece que foi tudo muito rápido. Fidel, em Havana, não sabia do númerode efetivos que tínhamos no país e tinha medo de que uma ação de sua partepudesse ser identificada por nós. Por isso, não tomou qualquer iniciativa nosentido de ajudar o Che. Não que houvesse um racha, uma divisão, ou proble-mas entre Havana e o Che. Nada disso. Simplesmente, o esquema deles falhou,e quando isso aconteceu eles não souberam o que fazer. Em casos assim, ou vocêé muito agressivo ou opta por ficar quieto. E a opção dele foi esta. Ele se expo-

ria demais, por exemplo, se tirasse os homens da zona de operação por via aéreaou estabelecesse um esquema alternativo de comunicação. Isso demonstra quea montagem da operação não tinha tal grau de profissionalismo.109 

Nem os quadros, nem o esquema, nem a direção cubana estavam àaltura de uma tarefa do calibre que se impusera por solicitação do Che ou,caso se prefira, para oferecer uma opção ao Che. François Maspéro não seesquece do dia em que a notícia da queda do grupo de  Joaquín chegou aHavana. Pineiro, Anel, hino e Armando Campos o convidaram para assistira um dos noticiários mostrando os cadáveres dos guerrilheiros. Em seguida oconvidaram a permanecer na sala de projeção e ver um filme com RonaldReagan. Mostravam a maior indiferença. 

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Assim como no Ministério da Indústria, Guevara exigiu demais da re-volução, dos cubanos, da economia nacional, da URSS. Também na Bolíviasuas demandas tácitas foram exageradas. Por devoção, audácia e irrespon-sabilidade, seus companheiros tentaram atender a suas exigências e aspi-rações. A envergadura da empresa estava muito além de suas possibilidades,

sobretudo em sua dimensão mais ambiciosa e crucial: compartilhar davocação para o martírio que norteava o Che Guevara desde sua primeira juventude. 

Como em toda tragédia, o último ato da epopeia do Che, inevitável elancinante, inscreve-se em sua origem e em sua trama. O destino trágico doChe estava escrito. Só a morte o salvaria da condenação, oferecendo-lhe olugar na história que ele buscou por toda a vida. Alcançou-o em uma manhãde outubro, em La Higuera, um ermo povoado do Sudeste boliviano. Ali ter-minam a marcha e o calvário de Che Guevara. Ali começam a ressurreiçãoe o mito que darão ao rosto despojado da foto de Vallegrande a tão almejadapaz interior. 

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 MORTE E RESSURREIÇÃO 

A morte de Che Guevara deu significado a sua vida, e sua vida a seumito. Se o comandante não fosse executado pelo tenente Terán, na escu-ridão da miserável escolinha de La Higuera, teria igualmente realizadoproezas épicas e gloriosos feitos, mas seu rosto não estaria hoje em tantos mi-lhões de paredes e peitos. Caso o governo boliviano o tivesse indultado, oua CIA lhe salvasse a vida, a contribuição do Che a sua causa poderia ter sidomuito maior, mas o auto-sacrifício jamais teria as dimensões que teve. Suamorte, aguardada, quem sabe até bem-vinda, não foi um final triste e defi-nitivo, mas o previsível e irrevogável início de uma nova jornada. As cir-

cunstâncias da execução transcenderam a tragédia que toda morte encerrapara gerarem um mito que perduraria até o fim do século. Como ele sempreimaginou, foi uma morte grandiosa: a sangue-frio, heróica, bela, estóica —assim a retrataram as fotos póstumas que deram origem a esta história. Numapalavra, foi uma morte emblemática. 

As condições de sua morte são indissociáveis da lenda que engendrou.O momento, da mesma forma, está ligado à aura que emana do límpido olhardo cadáver de Vallegrande, que tanta admiração despertou. Se Guevarativesse morrido dois anos antes, no Congo, ou um depois, na Argentina,talvez o homem e sua época não tivessem se cristalizado em tão singular har-monia. O Che pereceu às vésperas de um ano crucial para a segunda metade

do século XX: 1968, quando pela última vez tudo pareceu possível e pelaprimeira vez a juventude de uma boa parte do mundo desempenhou umpapel decisivo nos rumos da história. Ninguém melhor do que o Che per-sonificou as inquietudes da época. Poucas semanas após sua morte, as tropas  

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norte-vietnamitas e o Vietcong iniciaram a ofensiva do Tet, que marcou oinício da derrota dos Estados Unidos na antiga Indochina. Em sua esteira,rebentaram apaixonados protestos e mobilizações nos Estados Unidos,Europa ocidental e América Latina. 

As primeiras imagens do comandante — a foto de Alexander Korda,

com a América Latina como fundo — apareceram durante o turbulento ou-tono de Turim. Depois, encabeçaram as irreverentes e indignadas marchasdos estudantes da Universidade de Columbia, em Nova York, e as manifes-tações de massas do Quartier Latin, em Paris. Quando ainda não se comple-tara um ano da captura do Che em Quebrada dei Yuro, sua imagem tentariaconjurar os tanques soviéticos nas ruas de Praga. E, já às vésperas do primeiroaniversário da execução, centenas de estudantes que marchavam carregan-do sua imagem na praça de Tlatelolco, na Cidade do México, tombariamcrivados de balas do exército mexicano. A sincronia entre esses fatos é a umsó tempo surpreendente e enganosa: o que permitiu ao Che encarnar osdesejos e sonhos daqueles milhões de jovens enlutados foi o fato de ter mor-

rido justo naquele momento. Mas o vínculo entre a figura exangue de LaHiguera e as ilusões de uma geração nascida do naufrágio da Segunda Guer-ra Mundial foi sua própria vida. 

As analogias são incontáveis. Segundo a sociologia alternativa norte-americana,1 por exemplo, a consonância ideológica no seio das famílias quedirigiram o "movimento" foi uma constante dos anos 60: eram os chamadosred-diaper babies. * Foi justamente o que ocorreu na família do Che: as ideiaspolíticas de Guevara coincidiram com as de sua mãe até a morte desta naBuenos Airesde 1965. Praticamente todos os personagens do que se chamou"a nova esquerda" europeia e norte-americana pertenciam à classe médiabranca e instruída do baby boom.** Esses eram também os traços funda-

mentais da família que Ernesto Guevara Lynch e Célia de Ia Serna consti-tuíram em Córdoba às vésperas da Grande Depressão. Também em torno àmorte são muitas as semelhanças. Nos anos 50, milhões de adolescentes e,nos 60, outros tantos milhões de estudantes tiveram revelações políticas eintelectuais a partir do trágico e prematuro desaparecimento de seus ídolos:primeiro James Dean, em 1954, aos 24 anos; para os mais sofisticados, AlbertCamus e Lenny Bruce, já no fim da década; nos anos 60 e 70, para os menospolitizados, Jimi Hendrix, Jim Morrison e Janis Joplin; para os afro-ameri- 

(*) Bebés de fraldas vermelhas. Em inglês no original. (N. T.)(**) O aumento mundial da natalidade no pós-guerra. (N. T.) 

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canos, seus amigos e aliados do resto do mundo, Martin Luther King e Mal-colm X; e os irmãos Kennedy para os liberais e social-democratas de muitospaíses. A vida promissora interrompida por uma morte prematura se con-verteu em leitmotif da época. E ninguém a encarnou melhor que o Che. Osparalelismos semearam e cultivaram a identificação entre o mito e seu con-

texto. Nenhuma outra vida captaria como a sua o espírito da época. Ne-nhum outro momento histórico se espelharia com a mesma intensidade emuma vida como a dele. 

Mais do que a pressa ou a arrogância, o que distinguiu a juventudedaqueles anos foi um misto de idealismo e sentimento de onipotência repre-sado durante anos, sem encontrar vazão, até 1968. A determinação exacer-bada e narcisista de conseguir tudo aqui e agora; slogans como laplage sousles pavês, <we want the world and we ivant it now, * "devemos ser realistas e exi-gir o impossível" anunciavam o advento do império da vontade. Nesse ter-reno lançaram raízes a vida e a morte do Che. Também os objetos de desejomudaram radicalmente: em vez de dinheiro, liberdade; em vez de poder, re-

volução; em vez do lucro, a batida do rock. Deter a violência e a guerra, dis-tribuir a riqueza, pregar a liberação das paixões e do desejo, experimentarsensações fortes e inéditas aparentemente sem risco nem custo, eis os valoresda geração que se espelhou no Che Guevara. 

A identificação entre o Che e a juventude de seu tempo inspiroumuitas metáforas, porém a de Júlio Cortázar talvez seja a mais eloquente: "Osestudantes argentinos que tomaram o dormitório na Cidade Universitáriade Paris batizaram-no 'Che Guevara' pela mesma simples razão que a sedeleva à água e o homem, à mulher".2 Quando o Che se converteu no símbolodas barricadas parisienses, já não era um homem jovem, mas a precocidadede sua morte o fez rejuvenescer, permitindo que uma geração posterior à sua

fizesse dele o seu mito: um homem jovem — quase de meia-idade — foi exe-cutado na Bolívia; era não só um revolucionário, mas um mártir, "puro". Outalvez a vítima tenha sido reconhecida como reflexo justamente devido àmaneira como morreu. 

Uma pesquisa de 1968 mostrou que o Che era o personagem históricocom o qual os universitários norte-americanos mais se identificavam, maisdo que com qualquer um dos candidatos presidenciais daquele ano ou dasdemais personalidades sugeridas.' Em 1969, no mesmo universo, 80% dos  

(*) "A praia sob os paralelepípedos", em francês no original. "Queremos o mundo e oqueremos agora", em inglês no original. (N. T.) 

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entrevistados se reconheciam acima de tudo em "minha geração": um sen-tido de pertinência e autodefinição que por muito tempo não se repetiria.4

Como era de se esperar, os traços diferenciadores daquela geração não resis-tiram ao tempo. O processo natural de envelhecimento fez com que a imen-sa maioria dos manifestantes, militantes e heróis daquela época rebelde ter-

minassem recuando. Nesse ínterim, contudo, a necessidade de criar laçosentre o "aqui" e o "lá", entre o presente e o futuro, entre as posturas políticase estilos de vida acabariam impregnando o pensamento da geração de 68, a"geração Che Guevara". 

A juventude de Paris ou de Berkeley reclamava igualmente a revoluçãoem seu país, seu bairro, a solidariedade para com o Vietnã ou Cuba. O Chese propunha a forjar na ilha um homem novo e ao mesmo tempo combaterpela libertação do ex-Congo belga. Os estudantes não se propunham merasmudanças na política, mas transformações na própria vida — rompendocom velhos costumes, preconceitos, gostos e tabus —, sem esperar um glo-rioso amanhecer ou a "construção do socialismo". Com seu trabalho volun-

tário, seu ascetismo e sua solidariedade internacional, Guevara tentou con- jugar os esforços individuais de seu tempo com utopia sóciopolítica queimaginava para o futuro. Porém, jamais abandonou a postura apolítica quecultivara quando universitário. Sempre foi um político sui generis. Desseparadoxo nasceu a identidade entre ele e aquela geração tão politizada e aomesmo tempo tão hostil às posições políticas e existenciais de seus pais. OChe jamais se dedicou à política propriamente dita. 

Outro princípio que orientou sua vida e coincidiu com as atitudes daépoca foi a permanente recusa da ambiguidade, que o perseguiu como umasombra desde a infância asmática até Nancahuazú. Os anos 60 foram em grandemedida um categórico não às contradições da vida, uma permanente fuga para

a frente de boa parte da geração do pós-guerra, rejeitando desejos, metas, políti-cas ou sentimentos contraditórios. As atitudes e a têmpera dos manifestantesde então não deixavam espaço para sutilezas, nem para o realismo ou a coe-xistência entre pólos contrapostos. Tanto a natureza das lutas empreendidascomo o momento histórico eram incompatíveis com raciocínios sensatos,moderados, buscando ponderar os prós e contras de cada escolha. Mas tambémé verdade que tanto os jovens dos anos 60 como o Che abrigavam uma reservade tolerância que brotava de outra fonte: o fascínio pelo difernte, que com otempo se traduziria em indulgência e respeito para com o outro. 

E desnecessário dizer que um grande emaranhado de contradições con-ceituais separa o verdadeiro Che do personagem que seus admiradores cons- 

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truíram. As excessivas exigências que ele fazia a si mesmo não podiam seraplicadas aos demais sem uma dose de brutal autoritarismo. O homem novoque buscara construir e pretendia encarnar não cabia no mundo de suaépoca, nem talvez em nenhum mundo concebível por seus contemporâ-neos. Os milhões de manifestantes que marcharam sob sua efígie nos anos

60 não se davam conta da contradição. Viam nele somente o símbolo da sub-versão que veneravam e cultivavam. 

Como já assinalaram vários autores cubanos,5 o efeito duradouro dafigura do Che deve-se também ao fato de ter sido assimilada ao espírito sub-versivo do momento. Ela converteu-se em emblema de três tipos de subver-são. O primeiro e mais evidente relaciona-se diretamente com a RevoluçãoCubana: buscava inverter a hierarquia mundial que mais tarde seria defini-da em termos de Norte-Sul. Implicou um esforço, por fim infrutífero masteoricamente realizável, que visava reverter a relação entre os países ricos,poderosos e dominantes, e os demais, pequenos, pobres e subjugados comoa ilha caribenha. Para os jovens que protestavam no início dos anos 60 con-

tra a colonização francesa na Argélia e pouco depois repudiaram os bom-bardeios norte-americanos contra o Vietnã, a tarefa de transformar um sta-tus quo geopolítico injusto e cruel era a um só tempo heróica e factível.  

A segunda subversão, simbolizada pelo Che em 1967-8, estava arraiga-da na juventude de classe média dos Estados Unidos e da Europa ocidental.Seu alvo era a ordem interna imperante em seus países. Segundo a acertadaexplicação de Todd Gitlin,6 a juventude rebelde dos países industrializados,em sua desesperada procura de modelos e valores, foi buscá-los justamenteem seus antípodas. Seus ídolos e arquétipos políticos provinham dos inimi-gos de seus inimigos: primeiro, Patrice Lumumba, o FLN argelino e suas guer-rilhas em Kasbah e no deserto; depois, Ho Chi Minh e a FLN vietnamita; e,

sempre em destaque, a Revolução Cubana e o próprio Che. Quanto maismirradas fossem as manifestações nos Estados Unidos, França e Holanda,mais numerosos eram os retratos do comandante Guevara e as proclamaçõesde solidariedade para com "a luta dos povos do mundo". Quanto mais remo-tas fossem as chances da revolução no país em questão, mais atraente se tor-nava o substituto exótico, fosse ele argelino, vietnamita ou cubano. 

O terceiro objeto da subversão era o socialismo existente: o cinzacarcerário do stalinismo e a pisoteada Primavera de Praga, a traição do Par-tido Comunista francês ao Maio parisiense e a do Partido Comunista ita-liano ao outono milanês, tudo amalgamado em uma repulsiva distorção dautopia. A afinidade do Che com essa luta não era nem um pouco evidente. 

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Como apontou Régis Debray, os estudantes que exibiam cartazes do Che nosparques, universidades e avenidas do Ocidente e da Tchecoslováquia igno-ravam que o herói deles tinha sido, em sua primeira juventude, um fãincondicional da União Soviética. Resistiam a ver que o espírito libertárioguevarista dificilmente desafiava os valores do caudilhismo e a hierarquia

militar cultuada na boina, na estrela e nas roupas verde-oliva.7

 E, no entan-to, sua percepção não era de todo errónea: tanto o espírito como as teses eposturas do Che, até o final de seus dias, foram uma crítica feroz e aguda aosocialismo na Europa oriental e a sua implantação em Cuba. 

O que mais favoreceu a criação do mito, e a consonância do homemcom seu tempo, foi a morte. Desde o início de outubro de 1967, quandocomeçaram a circular as primeiras notícias sobre sua captura e execução, atéo verão de 1968, quando seu diário de campanha foi sub-repticiamente res-gatado da Bolívia para reaparecer nas editoras Ramparts, nos Estados

Unidos, François Maspéro, na França, Feltrinelli, na Itália, e Arnaldo Orfi-la e Siglo XXI, no México, cada detalhe e cada minuto da vida do Cheencaixou-se na matriz que daria forma a seu mito. A dele foi uma morte quevale a pena reviver. 

A princípio, o Che não deu crédito à notícia da aniquilação do grupodejoaquín em Vado dei Yeso. Seu diário assinala que as notícias podiamprovir da propaganda governista ou de informações erróneas. Á medida queforam surgindo maiores detalhes, pareceu resignar-se com a perda dos com-panheiros. Pombo, um dos três sobreviventes, afirmou em numerosasocasiões que o Che acabou aceitando a morte de Tânia e dos demais.8  Benig-no, outro que escapou com vida, é menos categórico.* Em todo o caso, o

comandante não viu na destruição de sua retaguarda uma perda irreparávelpara a campanha, nem um motivo para fugir da Bolívia ou da zona de ope-rações. Perseverou em seu projeto. Em nenhuma parte do diário ou dos teste- 

(*) Félix Rodriguez recorda a conversa de duas horas que teve com ele depois de tersido capturado. Guevara comentou, sobre o desaparecimento da retaguarda: "Já que vocêdiz, eu acredito, mas até agora pensei que fosse mentira. Supus que alguns podiam ter mor-rido, mas que isso de todos mortos era coisa do governo". Félix Rodriguez, entrevista como autor, Miami, 24/4/95. Vale mencionar que há certas dúvidas sobre a veracidade das afir-mações de Rodriguez. Gustavo Villoldo, seu supervisor na Bolívia, declara: "O Che esta-va em um pequeno salão da escola e Félix do lado de fora, fotografando o maternal. Félixnão falou com ele e tampouco estava ali quando o mataram". Gustavo Villoldo, entrevistacom o autor, Miami, 27/11/95. 

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munhos há qualquer indício de que Guevara pensasse em escapar da mortalarmadilha que se fechava ao seu redor. 

Acossado pelas doenças, pela fadiga, pela desnutrição e pelas disputasinternas, o pequeno grupo guerrilheiro — seriam entre vinte e 25 — vagoudurante o mês de setembro seguindo o rumo nordeste, do rio Grande até os

povoados de Pucará e La Higuera. Em Vallegrande, o maior povoado dacomarca, instalara-se o quartel-general da 8ã Divisão do exército boliviano.Sua missão consistia em fechar qualquer rota de fuga ao sudeste, ou seja, parao outro lado do rio. Com ajuda da Ar Divisão, aquartelada em Camiri, a tropacercara o Che: a sudeste estava o rio Grande; a leste e a oeste, a passagemestava bloqueada por gargantas e grotões; ao norte, rodeada por milhares desoldados, estava Vallegrande. A partir dessa povoação, o 2B Batalhão deComandos empreenderia a busca e o extermínio do bando rebelde. "Pappy"Shelton e dois agentes cubanos enviados dos Estados Unidos pela CIAestavam a ponto de completar o treinamento da tropa boliviana. Se o bata-lhão de Rangers ainda não havia participado da caçada, era porque só estaria

pronta para a ação em meados de setembro. Mesmo então, sua intervençãofoi prematura. Entretanto, no final do mês, mais de mil militares bolivianos,bem treinados ou não, dedicavam-se à captura do Che e seus companheiros.Tudo era apenas de uma questão de tempo. 

O princípio do fim começou em 26 de setembro. Chegando ao casariode Alto Seco, ao sul de La Higuera, o Che falou para uma minúscula audiên-cia e em seguida conversou com os moradores, tentando obter alguma infor-mação. Confirmou o que já anotara com pesar em seu diário: os camponesesbolivianos eram impenetráveis; não conseguia comunicar-se com eles.Segundo as impressões dos moradores registradas pela imprensa boliviana, asaúde do Che piorara a olhos vistos: "Guevara parecia doente e exausto;

montava uma mula e via-se que não conseguia caminhar sem apoio".9 Naprimeira oportunidade, alguns camponeses desapareceram rapidamentepara informar ao exército a chegada dos revolucionários. Um destacamentode três guerrilheiros dispôs-se a explorar a trilha que conduzia a Jaguey,mas do alto da escarpa que ladeava o caminho uma patrulha militar desco-briu-os e abriu fogo. Miguei e Júlio morreram na hora; Coco Peredo foi feridode morte e, embora Benigno tenha conseguido retirá-lo dali, não conseguiuescapar levando o companheiro nas costas. Talvez Peredo tenha morrido deoutra rajada, quando já pendia dos ombros de Benigno, ou ele próprio tenhadado o tiro de misericórdia ao ver que só lhe restavam algumas horas de vida.A morte de um dos mais importantes combatentes bolivianos abalou o âni- 

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mo do grupo. Já não havia para onde ir. Dois bolivianos desertaram na con-fusão: Camba, ou Orlando Jiménez Bazán, um dos primeiros e mais velhosmilitantes do Partido Comunista, e António Rodríguez Flores, o León. 

Em 30 de setembro, a 8ã

 Divisão interrogou Rodríguez Flores. Arran-cou informações muito valiosas sobre os planos, a força e a disposição doChe. O exército logo deduziu que Guevara pretendia avançar até Valle-grande, seguindo pelas quebradas próximas de La Higuera, que conduziam aum povoado um pouco maior chamado Pucará. Os soldados se deslocaramao longo das colinas que dominavam a baixada, visando obrigar os rebeldesa subir para uma área de escassa vegetação, exposta, ou encurralá-los nosgrotões. A intenção do Che, nesses últimos dias, permanece confusa. Pom-bo recorda que a ideia de "tomar" Vallegrande, mesmo parecendo comple-tamente descabida, tinha certo sentido. Aquele ato desesperado lhes per-mitiria deixar ali os feridos — Chino, o peruano, e o dr. Morogoro, ambos em

péssimo estado — com uns hipotéticos simpatizantes; conseguir, afinal, osmedicamentos de que o Che tanto precisava; proclamar sua existência parao resto do mundo e, por último, romper o cerco militar rumo ao nordeste,para Cochabamba e a região de Chapare.10  Benigno, ao contrário, destaca osaspectos irracionais da estratégia. Em sua opinião, o Che pretendia apenastravar um último e glorioso combate, sacrificando a si e a seus homens naschamas da imortalidade. Se seu único desejo era conseguir remédios, per-gunta, por que não ordenou que ele e mais outro cubano em boas condiçõesfísicas assaltassem uma farmácia em Vallegrande? E mais: se o Che pretendiatransformar a tomada da capital provincial em um golpe espetacular, nãotinha sentido fazer que seus homens carregassem mochilas de quarenta qui-

los e vários feridos para onde quer que fossem." Na penúltima anotação de seu diário, datada de 6 de outubro, Guevara

conta que o grupo encontrou uma mulher idosa, acompanhada de sua filha,uma anã. Na esperança de que não os delatassem, os guerrilheiros lhes entre-garam uma pequena soma em dinheiro, mas no fundo não acreditavam emseu silêncio. O grupo imaginava que, marchando à noite e descansando dedia em barrancos abrigados, talvez conseguisse furar o cerco a seu redor. Avelha procedeu como eles previram: informou o posto militar mais próximo.O círculo se estreitou. Após um "descanso bucólico", como o Che o descrevena última anotação que aparece em seu diário, na noite de lua cheia de 7 deoutubro, os dezessete homens reemprenderam a marcha pelas quebradas dos  

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afluentes do rio Grande. Avançam por entre uma vegetação mais densa queno topo das colinas, mas muito rasteira para ocultá-los. A luz da lua, umlavrador avistou suas silhuetas do outro lado do riacho: um bando deesquálidos fantasmas barbados, levando fuzis e imensas mochilas que os ver-gavam. Não teve dúvidas: eram os guerrilheiros. Despachou seu filho para o

posto de comando do capitão Gary Prado Salmón, a poucos quilómetrosdali. Este, um perfeito militar, não esperou a confirmação e logo tratou depreparar uma emboscada seguindo a receita mais ortodoxa. Posicionoualguns homens na entrada da quebrada dei Yuro (ou Churo), outros na saí-da e seu posto de comando no alto. Estava a ponto de começar a última bata-lha do Che. 

Guevara também dera suas ordens de combate, mas ainda não tinhaplena certeza de que o exército o havia localizado. Decidiu dividir a colunaem vários grupos, para que verificassem se haveria alguma saída pelas estrei-tas grotas da quebrada. Ao amanhecer, Benigno e Pacho—que tinham acom-panhado o Che em Praga e em outras incontáveis missões — notaram a pre-

sença de dezenas de soldados aguardando-os no alto do desfiladeiro. Sótinham duas opções: recuar para a entrada do grotão, na esperança de nãoserem vistos, ou permanecer em silêncio até o anoitecer e confiar que oexército não descobriria o destacamento. Escolheram a segunda alternativae colocaram seus homens em um círculo de defesa, para o caso de um ataque.Aproximadamente à uma e meia da tarde de 8 de outubro, o exército abriufogo da boca da ravina contra a unidade de vanguarda. Os outros guerri-lheiros estavam dispersos. Pouco tempo depois, dois jatos e um helicópterosobrevoaram a área, sem metralhar nem bombardear as colinas. A esquadrado Che, composta por sete homens, tentou entrar por uma grota para abri-gar-se, pois não poderia sustentar por muito tempo o tiroteio com o exérci-

to. Guevara decidiu dividir seus homens em dois grupos: um com os mais fra-cos e feridos, outro com ele e mais dois, que ficariam na retaguarda,dando-lhes cobertura. 

Minutos depois, uma rajada de metralhadora arrancou das mãos doChe sua carabina M-l, inutilizando-a. Outro tiro feriu-o na barriga da per-na. Era apenas um ferimento no músculo, mas dificultava-lhe o desloca-mento. Willi, ou Simón Cuba, um dos sindicalistas mineiros que militara nogrupo de Moisés Guevara, arrastou seu comandante por uma ribanceirarochosa, mantendo-o de pé com uma das mãos, enquanto com a outraempunhava a metralhadora. Aniceto Reynaga, outro boliviano, seguia-os acerta distância. Três soldados do pelotão de Prado, Choque, Balboa e Enci- 

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nas, sob o comando do sargento Bernardino Huanca, perceberam a aproxi-mação. Esperaram os guerrilheiros escalarem um pequeno penhasco e,quando estes estavam à vista, gritaram: "Joguem as armas e ponham as mãospara o alto!". O Che não podia disparar: sua pistola estava descarregada, e acarabina, avariada. Willi tampouco abriu fogo, fosse por não poder disparar

com uma só mão, fosse por considerar que a situação aconselhava prudên-cia. Segundo algumas declarações, nesse momento o comandante disse:"Não disparem. Sou Che Guevara, e valho mais vivo do que morto". Outraversão, com a marca tendenciosa dos militares bolivianos, atribui-lhe afrase: "Sou Che Guevara, e fracassei".12  Uma terceira, talvez a maisverossímil, conta que Willi jogou o rifle e, ao ver que os soldados, cansados enervosos, faziam má pontaria, gritou: "Caralho, este é o comandante Gue-vara, merece mais respeito".11 

Quando informaram o capitão Gary Prado da captura, ele correu coli-na abaixo, enquanto o tiroteio prosseguia na quebrada. Após verificarrepetidamente a identidade do Che, apreendeu sua mochila e, exaltado,

comunicou-se pelo rádio com o quarte-general: "Capturamos o Che". Aguerra terminara. O relógio do herói de Santa Clara marcava suas últimas 24horas de vida. 

Conforme percorria lentamente os dois quilómetros até La Higuera, ogrupo que conduzia o Che foi se convertendo em uma procissão de centenasde moradores do lugar, atrás dos outros prisioneiros e das mulas comcadáveres de guerrilheiros e soldados feridos. Ao chegar, aprisionaram Gue-vara na escola do povoado, em uma sala miserável com chão de terra batida.Willi ficou na sala ao lado. Naquela noite, enquanto a tropa comemorava suafaçanha, em La Paz o alto comando boliviano discutiu o destino que daria aoseu legendário e problemático prisioneiro. O Che não sofria dores intensas,

mas, segundo os testemunhos, estava deprimido. Em algum momento, deveter pensado na possibilidade de ser fuzilado e não parecia resignado com amorte. Talvez tenha achado que o governo boliviano preferiria submetê-loa um julgamento, para vangloriar-se de sua captura como um marco devitória sobre a agressão estrangeira. Não foi isso que ocorreu. 

Gary Prado, digno e cortês, e Andrés Selich, arrogante, tentaram inter-rogar o Che durante a noite e novamente ao amanhecer. O prisioneiro,porém, permanecia fechado em seu silêncio. No dia seguinte, por volta dasseis e meia da manhã, chegou de Vallegrande um helicóptero trazendo ocomandante Nino de Guzmán, o coronel Joaquín Zenteno, chefe da 8a

Divisão, e Félix Rodríguez, o operador de rádio cubano-estadunidense 

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enviado à Bolívia pela CIA. Este veio no helicóptero em sinal de deferênciaaos Estados Unidos, pelo apoio prestado, e também para confirmar a identi-dade do Che. Também lhe recomendaram que interrogasse seu compatriotapor adoção e fotografasse os cadernos e documentos encontrados nomomento da captura. Rodríguez e Zenteno, assim como alguns moradores

do lugar, conseguiram finalmente conversar com Guevara. O exército estava às voltas com um problema monumental. Na Bolívia

não havia pena de morte, nem alguma prisão de alta segurança onde o Chepudesse cumprir sua pena, que com certeza seria muito longa. Só a ideia depromover um julgamento causava calafrios tanto ao presidente RenéBarrientos como ao general Alfredo Ovando e ao chefe do estado-maior dasforças armadas, Juan José Torres. Se o governo e o país tinham sofrido umapressão descomunal e o repúdio do mundo por causa do julgamento de RégisDebray, era de se prever o tamanho do escândalo que o julgamento de CheGuevara provocaria e a campanha de solidariedade que apoiaria o heróicocomandante. O Che encarcerado, em qualquer ponto do país, representaria

uma tentação para comandos cubanos, que tentariam a todo custo libertá-lo, quem sabe até trocá-lo por reféns sequestrados em outra parte do mundo.  

Decidir o destino do Che foi um pesadelo para os três militares. A outraalternativa — entregá-lo aos norte-americanos, que o levariam ao Panamápara interrogatórios — tampouco era uma solução. A tradição nacionalistado exército boliviano jamais o permitiria. E o gesto confirmaria as denún-cias cubanas de que o esforço contra-insurgente não passava de uma formavelada de intervenção ianque. Todos os documentos e testemunhos sobre amorte do Che indicam que a opção por executá-lo foi deliberada e unânime.As autoridades decidiram liquidá-lo o mais rápido possível, antes que apressão exterior, sobretudo norte-americana, se tornasse insuportável. 

A ordem partiu de La Paz no meio da manhã. Félix Rodríguez rece-beu-a em La Higuera e remeteu-a a Zenteno. Este ordenou que um pelotãoa executasse.14 Primeiro houve uma sessão de fotografias, em que se baterammuito mais chapas além das que se publicaram até hoje. A seguir, os solda-dos tiraram a sorte para ver quem o liquidaria. O tenente Mário Terán foi oescolhido para executar aquele homem desalinhado e ferido, mas aindadesafiante, que jazia no chão da escolinha de La Higuera. O carrasco hesi-tou, fez várias tentativas fracassadas, mas depois de alguns tragos de uísque ede um pedido do Che para que prosseguisse, disparou-lhe seis tiros no tórax,um dos quais varou-lhe o coração, matando-o instantaneamente. 

Segundo o coronel Arnaldo Saucedo Parada, chefe do serviço de infor- 

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mação da 8a Divisão e responsável pelo relatório oficial sobre os momentosfinais do Che, suas últimas palavras foram: "Eu sabia que iam me matar; nãodeveriam capturar-me vivo. Digam a Fidel que este fracasso não significa ofim da revolução, que ela triunfará em qualquer outra parte. Digam a Aleidaque esqueça tudo isso, que volte a casar, que seja feliz e cuide para que os meni-

nos continuem estudando. Peçam aos soldados que façam boa pontaria".15

 O corpo foi amarrado a uma maca presa ao trem de pouso do heli-

cóptero de Zenteno, que seguiu para Vallegrande. Ali o Che foi lavado, arru-mado e posto em exibição na lavanderia do hospital de Nuestra Senora deMalta, de onde esta narração partiu. 

A princípio, o governo boliviano tentou encobrir o assassinato, mas seuestratagema desmoronou de um só golpe. Depois de examinar o cadáver, osmédicos declararam que Guevara estava morto fazia menos de cinco horas.Como seria possível que ainda estivesse vivo ao meio-dia de 9 de outubro, seo tiroteio em que supostamente falecera tinha ocorrido no dia anterior? Cen-tenas de pessoas tinham presenciado o lento cortejo da quebrada dei Yuro até

La Higuera. A multidão de jornalistas que se apinhava no hospital logo apurouque Ernesto Guevara de Ia Serna fora executado. No dia seguinte, o corpodesapareceu. Inicialmente, o general Oviedo ordenara que cortassem suacabeça e suas mãos, para uma melhor identificação, e que o corpo fosse cre-mado para impedir que no futuro se construísse um santuário em sua memória. 

Mas a história tomou outro rumo. Vários oficiais bolivianos e GustavoVilloldo, o cubano da CIA de mais alta posição na Bolívia, opuseram-se àdecapitação. Amputaram-lhe apenas as mãos, conservadas em formoldurante mais de um ano na Bolívia, para depois desaparecerem misteriosa-mente e reaparecerem mais tarde em Cuba. Diz-se que Fidel Castro pensouem colocá-las em uma espécie de mausoléu em Havana, mas não o fez porque

a família do Che se opôs. Elas se encontram agora no palácio de Ia Revolu-ción, onde vários dignitários já foram convidados a vê-las, como eles mes-mos revelaram. 

Os três enigmas que ainda persistem em torno da vida e da morte doChe não incluem, portanto, as circunstâncias e detalhes de sua morte. Qualfoi o papel dos Estados Unidos na execução? O Che queria morrer ou sim-plesmente aceitou brava e resignadamente um final inevitável? O cadáverfoi incinerado e teve suas cinzas espalhadas pelas colinas em torno de Valle-grande, ou está enterrado em alguma parte do povoado? 

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Segundo a versão oficiosa cubana, quando o presidente Barrientosinteirou-se da captura, dirigiu-se imediatamente à residência do embai-xador dos Estados Unidos, onde recebeu a ordem de eliminar o guerri-lheiro.16 Tanto os dois testemunhos existentes a respeito17  como os doisinformes que o autor recebeu do então embaixador norte-americano, Dou-

glas Henderson, rejeitam taxativamente essas acusações.18

 O ex-diplomatadiz que não só não recebeu Barrientos em casa naquela noite como jamais foiconsultado pelo governo boliviano sobre o procedimento a adotar. Explicaque havia uma boa razão para não lhe pedirem conselho: poucos mesesantes, ele se opusera à execução de Régis Debray. Era lógico que o governoboliviano supusesse que se oporia, da mesma forma, ao assassinato do Che.19 

As demais testemunhas sobreviventes tendem a confirmar essa versão,embora seja inegável que tentam puxar a brasa para sua sardinha. FélixRodríguez afirma, em suas memórias, que recebeu de La Paz a ordem de queo Che fosse fuzilado, mas, antes de cumpri-la, procurou seguir as instruçõesde sua sede em Langley: "A primeira coisa que nos disseram em Washington

foi que os bolivianos têm tendência a liquidar seus prisioneiros e que, se cap-turássemos Guevara com vida, deveríamos tentar por todos os meios man-tê-lo longe das autoridades locais para que fosse enviado ao Panamá".20 

Os demais homens da CIA que na época se encontravam na Bolívia, ouque conheceram Rodríguez mais tarde, acham que ele pode estar exagerandoseu papel — na época, era apenas o radioperador local —, mas que, em essên-cia, o que diz corresponde à verdade. John Tilton, chefe da equipe da CIA emLa Paz, estava ausente do país naqueles dias. Confirmou a versão para o autor,mas dificilmente ele a desmentiria.21 Gustavo Villoldo, líder do CountryTeam da CIA, mostra-se um pouco mais sincero em suas opiniões pessoais.Conta que, chegando à Bolívia, foi conduzido de carro à residência presi-

dencial para entrevistar-se com Barrientos. O presidente advertiu-o então deque, caso capturassem o Che, faria tudo ao seu alcance para executá-lo. Vil-loldo indagou: "E se o encontrarmos vivo, o que fará?", ao que o presidenterespondeu: "Se estiver vivo, será feito um julgamento sumário que o con-denará à morte. O senhor tem a palavra do presidente da República".22 

De todos os militares bolivianos envolvidos na captura e execução deGuevara, o único que ainda vive é Gary Prado. Os demais foram morrendocom o passar dos anos, perseguidos por uma uma espécie de "maldição doChe". Prado observa que a decisão de matar o prisioneiro coube unicamenteaos bolivianos. Admite que o fato pareceu-lhe lamentável, pois admirava oChe pela valentia e fidelidade a suas convicções. Mas, do ponto de vista dos  

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interesses do exército e do Estado da Bolívia, ainda hoje considera que adecisão era a única possível. 

O testemunho de Prado talvez seja o que mais fielmente revela asreflexões e o estado de espírito do Che em suas últimas horas. O capitãotomou nota das conversas que manteve com o prisioneiro e incluiu-as em

seu livro como apêndice. Guevara tinha consciência de que talvez a Bolívianão tivesse sido a melhor escolha, mas ela não fora exclusivamente sua.Quem mais se entusiasmara com o país andino tinham sido os próprios boli-vianos. Após interrogar o oficial sobre o que poderia esperar, comentou terescutado no rádio que, se a 8a- Divisão o capturasse, seria julgado em SantaCruz, e não em Camiri, para onde o mandariam se fosse preso pela 4-Divisão. Não eram especulações de um condenado à morte. No mesmo sen-tido, Prado destaca as condições em que o Che foi preso, escalando a escarpapara sair da grota, mostrando que queria viver: "Se ele desejasse a morte,ficaria embaixo e continuaria lutando. Mas não, estava tentando sair. Quan-do o capturamos, estava abatido, mas seu ânimo melhorou quando viu que

o tratávamos corretamente e tentávamos falar com ele."2' Rodríguez também diz que o Che parecia convencido de que seria jul-

gado e sentenciado, não fuzilado. Assinala que o prisioneiro sofreu ao saberque seu destino estava selado. Por último, há o testemunho dos habitantesde La Higuera, que falaram com ele naquela noite e na manhã seguinte.Também eles evocam um homem que mostrava apego à vida e não pareciasuspeitar que só lhe restavam algumas horas. A professora Julia Cortês recor-da que, depois de agradecer-lhe a comida que ela lhe trouxera e de falar sobrea educação em La Higuera, o Che pediu-lhe que averiguasse o que seuscarcereiros estavam tramando: "Disse: 'Não sei, talvez me matem, ou talvez

me tirem daqui vivo, mas penso que para eles é mais conveniente eu con-tinuar vivo, pois valho muito'. Ele parecia acreditar que sairia de lá comvida. Também disse que não me esqueceria".24 Os outros que trocaram algu-mas palavras com ele naquela noite — militares bolivianos, sobretudo Zen-teno e Selich — morreram antes que a sabedoria que vem com a idadepudesse garantir a veracidade e precisão de seu testemunho. Certamente,Ernesto Guevara enfrentou a morte com a enorme coragem que forjou e cul-tivou por toda a vida, e também com o medo de alguém que amava tanto avida como ele e estava a ponto de perdê-la. 

Em novembro de 1995, o New York Times publicou um artigo de pági-na inteira baseado nas declarações de um oficial da reserva do exército boli- 

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viano, o general Mário Vargas Salinas. Arquiteto da emboscada de Vado deiYeso, Vargas Salinas repetiu ao jornal o que já relatara anteriormente e queoutros oficiais bolivianos — como Luis Reque Terán, chefe da 4â Divisão,em suas memórias — vinham repetindo havia algum tempo: contraria-mente à crença generalizada de que o corpo do Che foi cremado pelos mi-

litares, estes na verdade o enterraram no campo de pouso de Vallegrande.Por sair no New York Times, a história ganhou ares de notícia-bomba, e o go-verno boliviano foi forçado a iniciar as buscas dos restos mortais do coman-dante. Muitos legistas argentinos logo acorreram ao local; mais tarde, o ve-lho povoado do Sudeste boliviano seria invadido por especialistas cubanos.Cerca de vinte meses depois, em julho de 1997, foram descobertas muitasossadas junto ao campo de pouso de Vallegrande. Com base no parecer dosespecialistas argentinos, uma delas foi oficialmente declarada pelo governode Cuba como sendo a de Che Guevara. Apesar disso, alguns atores do dra-ma original, como Felix Rodríguez, ainda se mantêm céticos a respeito. 

Embora o mito da cremação de Guevara tenha perdurado por três

décadas," sempre houve boas razões para suspeitar que seu corpo foi enter-rado.26 Por tratar-se de um país extremamente católico, na Bolívia não hátradição de cremar os mortos, o que dificultaria bastante a manutenção dosigilo da operação. A pira necessária para incinerar um cadáver não é peque-na. Se tivesse sido acesa num lugarejo como Vallegrande, naquela noite de9 de outubro em que o corpo desapareceu depois de ter sido visto porinúmeros jornalistas, moradores e curiosos, a fogueira teria sido notada numraio de muitos quilómetros. Além disso, enquanto um enterro requer apenasum par de homens fortes, a tarefa de preparar, acender e atiçar o fogonecessário para uma cremação teria envolvido um número bem maior depessoas, e pelo menos uma delas teria trazido a história a público ao longo

destes trinta anos. E ninguém o fez. Gustavo Villoldo não se encontrava em La Higuera no dia em que o

Che foi executado, mas era o principal oficial dos Estados Unidos presenteem Vallegrande nos dois dias em que tais eventos ocorreram. Ê veemente aoafirmar que foi ele próprio o responsável pelo sepultamento: 

Eu enterrei Che Guevara. Ele não foi cremado; não o permiti, assimcomo me opus terminantemente à mutilação de seu corpo. Na madrugada dodia seguinte, transportei seu cadáver numa caminhonete, junto com os demaisdois guerrilheiros. Eu estava acompanhado de um motorista boliviano e de umtenente chamado Barrientos, se não me engano. Fomos até o campo de pousoe ali enterramos os corpos. Eu não teria dificuldade para reconhecer o local. Se  

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continuarem procurando, eles vão encontrar os restos. Os do Crie poderão serreconhecidos pela amputação cirúrgica das mãos; ele não foi mutilado.'7 

Ainda hoje, passados trinta anos, La Higuera não tem luz elétrica. Opequeno povoado permanece tão perdido e miserável como no dia da mortedo Che. Neste sentido, seu sacrifício foi em vão. Só alterou leve e efemera-

mente o estado de abandono e pobreza dos camponeses do Sudeste boli-viano. E, exceto por um breve devaneio embalado por suas ideias, logodepois de sua morte e durante o verão de 1968, a Revolução Cubana logo oesqueceu. Com o fim da Primavera de Praga, o alinhamento de Havana comMoscou se consolidou. Em 1970, quando Fidel Castro converteu em cruza-da nacional o disparatado projeto de produzir 10 milhões de toneladas deaçúcar, os ideais económicos e sociais da luta do Che tinham sido relegadosao esquecimento stalinista. Embora as aventuras internacionalistas de Cubatenham se prolongado até a década de 90, por sinal com êxito bem maior quequando Guevara era vivo, todas terminaram na futilidade ou na infâmia.  

Qual é então o legado do comandante? De que valeram seu esforço e

dedicação? Estas perguntas merecem algumas considerações finais. Enquanto a geração dos anos 60 manteve as características que a mar-

caram, seu vínculo com o Che Guevara encerrou uma simbiose, quase má-gica, entre o símbolo e o Zeitgeist, baseada em uma sinonímia real. Aque-la singular mescla de determinação e ânsia transformadora, onipotência ealtruísmo, arrogância e desapego refletia a postura moral e intelectual tan-to de um indivíduo como de amplos setores juvenis de sociedades análo-gas. Se a semelhança entre as massas e seus movimentos era tanta, assimteria de ser entre seus símbolos. Talvez a ubiqúidade do Che se devesse ànatureza quase que universal dos protestos de 1968 e daqueles que osabraçaram. Evidentemente, havia diferenças entre eles, mas eram as va-

riações próprias de toda homogeneidade. Os estudantes franceses do Maiode 68 eram um setor vanguardista que também representava uma vastaclasse média descontente e exasperada. Em contraste, os jovens mexicanosmassacrados na praça de Las Três Culturas pertenciam a uma minoriaexcepcional, ilustrada e elitista, dentro de uma sociedade profundamentedesigual. No entanto, a idéia-mãe apresentada pelo Che, da vontade auto-suficiente como propulsora de mudanças, aliada a um espetacular aumentodo número de universitários, gerou uma nova universalidade. Agrupou asclasses médias majoritárias das nações ricas e as irremediavelmenteminoritárias das pobres. 

Nessa época, o crescimento do número de jovens era algo assombroso. 

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Em 1960, havia nos Estados Unidos 16 milhões de pessoas com idade entredezoito e 24 anos; em 1970, a cifra saltara para 25 milhões, um crescimentode 50% em dez anos.28 Na França, o número de universitários passara de 201mil, em 1961, para 514 mil, em 1968.29 No fim da Segunda Guerra, havia noJapão apenas 47 universidades; em 1960, já eram 236.'° Também nos Esta-

dos Unidos, o número de universitários subira de 3 milhões, em 1960, para4 milhões, em agosto de 1964; e em 1965 superara os 5 milhões." A mudançaqualitativa não foi menos significativa: nos Estados Unidos de antes daSegunda Guerra Mundial não havia universidades estatais; em 1970 já exis-tiam cinquenta com mais de 15 mil alunos.'2 Tanto no Chile como no Brasile no México, os três países latino-americanos que viveram grandes movi-mentos estudantis nos anos 60, o aumento do número de alunos matricula-dos nas universidades ficou entre 200 e 400%." 

Assim, a mudança começou pela explosão demográfica no Ocidente eo boom mundial do esnino público superior. Daí partiu para a massificaçãodo ensino, as manifestações e as revoltas contra a ordem institucional em

Berkeley, Columbia e Nanterre. Atravessou as marchas pelos direitos civisno Mississipi e os protestos generalizados contra a Guerra do Vietnã e oautoritarismo, do México à Europa Oriental. Em seguida, politizou-se pro-fundamente no Boul' Mich e nas rebeliões operárias em Billancourt e Milão,para arrematar com a estridência radical dos campi, a revolta existencial e arejeição "cultural" dos status quo nas comunas. Foi, parafraseando os Beat-les, um longo e sinuoso caminho, iniciado no início dos anos 60, quando oChe estava vivo, e desembocou, muito depois de sua morte, na desagregaçãode todos os movimentos e no recuo para a nostalgia. Desde os intermináveisdebates de 1968 no teatro Odéon de Paris até o sexo, drogas e rock'n roll deWoodstock, a passagem do político ao cultural abateu muitos, desiludiu

outros, mas transformou sociedades que, de outra forma, talvez permane-cessem estáticas. 

Os anos 60 deixaram um rastro político, embora não necessariamenteo esperado pela maioria dos seus protagonistas. A petulância daqueles jovens crédulos e exuberantes que ergueram as barricadas em Milão e noPentágono teve um fundamento que ainda hoje lhe dá sentido e atualidade.Aqueles prosélitos que sonhavam com a transformação radical do mundotinham razão. Pela última vez neste século — e quem sabe por quanto tem-po no futuro — pareceu possível mudar a ordem das coisas por meio de umplano preestabelecido e inédito. Com o correr do tempo, apareceram outrostipos de iniciativas, mais bem-sucedidas: a destruição do mundo socialista e 

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o estabelecimento da ordem capitalista, o fim do Estado de bem-estar sociale da economia keynesiana. No entanto, nunca mais setores tão amplos detantas sociedades diferentes se propuseram simultaneamente a transformaro mundo, a partir de uma premissa que não partia do status quo anterior, nemde realidades já existentes, mas de um ideal utópico. 

A Primavera de Praga de 1968 representou a última oportunidade demudar o rumo — e a alma — do socialismo real. A invasão soviética de agos-to anulou para sempre a possibilidade de reformas de fundo no bloco socia-lista, impondo um preço cujo montante só seria conhecido vinte anos maistarde. Talvez os regimes stalinistas não pudessem ser reformados. Naqueletempo, porém, as propostas reformistas pareciam tão realizáveis como dig-nas de admiração. Da mesma forma, os movimentos estudantis e operáriosda França e da Itália anunciram a última ocasião em que pareceu possíveluma transformação profunda da sociedade industrial. Nos Estados Unidos,a maré esperançosa de otimismo, ebulição e solidariedade social, desperta-da em 1968 pela candidatura presidencial de Robert Kennedy, foi um últi-

mo esforço para construir um país mais nobre e igualitário. Junto com a ten-tativa de Martin Luther King para conjungar o movimento pelos direitoscivis com a justiça econômico-social e a oposição à Guerra do Vietnã, talveztenha sido a última chance para a social-democracia na América do Norte. 

A revolução sonhada pelos militantes imberbes do Quartier Latin nãopôde acontecer. Mas, mesmo terminando em fracasso, não era impossível.Disse-o com argúcia Eric Hobsbawm: 

Se houve um momento dos anos dourados após 1945 que correspondeu ao le-vante simultâneo do mundo, com que os revolucionários sonhavam desde1917, seguramente foi em 1968, quando os estudantes se rebelaram dos EstadosUnidos e México, no Oriente, à Polónia, Tchecoslováquia e Iugoslávia socia-

listas, largamente estimulados pela extraordinária erupção do Maio de 1968 emParis, epicentro de uma rebelião estudantil de proporções continentais.'4 

Como não foi assim, o brio dos anos 60 malogrou, tal como a vida do Chenos ermos bolivianos. Portanto, se aqueles anos e seu ícone marcaram um ten-to duradouro, ele não poderia ser político ou ideológico, mas de outra natureza.Para que o Che e os que carregaram seu féretro deixassem um legado político,teriam de ter vencido alguma vez, em algum lugar, de uma ou outra forma. Nãofoi o caso, por mais injusta que a apreciação possa parecer e por mais desigualque tenha sido o campo de combate. Em 1968, arrebaram-lhes uma vitória queestava ao alcance da mão. Depois, perderam por culta de golpes de Estado eestratégias contra-insurgentes tanto na Bolívia como em toda a América 

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Latina. Foram derrotados na Alemanha, França e Itália por grandes reformassociais e uma virulenta reação conservadora. Sucumbiram na Tchecos-lováquia sob as baionetas e doutrinas de Brejnev. E foram dispersados nos Esta-dos Unidos devido a assassinatos, excessos e ao extremo pragmatismo do estab-lishment norte-americano, que limitou suas perdas ao Vietnã. 

Assim, o comandante não acabou em um mausoléu ou em uma praçafaraónica, mas em camisetas, pósteres, canecos de chope. A década que elesimbolizou não alterou as estruturas económicas e políticas das sociedadesque os jovens combateram. Seu impacto infiltrou-se por áreas maisintangíveis do poder e da sociedade. Se dependesse deles, o Che e os movi-mentos que ele simbolizou teriam escolhido a outra alternativa: alcançar, deuma ou outra forma, a revolução política pela qual lutavam. Mas talvez a ver-dadeira contribuição da época que Guevara encarnou se encontre justa-mente em outra esfera: a menos espetacular, menos imediata, menos român-tica, porém mais profunda, de maior alcance e significado. Se hoje o Che éum ícone cultural, em grande parte é porque suas pegadas marcaram mais a

fundo o terreno cultural que o político. Nos anos 60, política e cultura convergiram, mas a cultura perdurou e a

política não. Certamente, é por isso que a definição europeia do termo cul-tural, especialmente em Michel Foucault, é mais precisa. Aquela décadainfluiu a fundo na esfera do poder e dos poderes, esses sinuosos canais que,alheios aos foros do Estado, circunscrevem, ordenam, classificam e delineiama vida nas sociedades modernas. O que os anos 60 deixaram estabelecido emtodo o mundo foi, primeiro, que o poder existe em outros âmbitos além dopolítico, do económico e do Estado; segundo, que é necessário resistir a ele,questionar sua legitimidade, contestar sua permanência. Aí reside a ver-dadeira herança daquela fase e a razão de sua sobrevivência em nossa

memória. Isso lhe confere uma singular importância e explica a enorme nos-talgia que ainda hoje ela desperta. Daí a absoluta pertinência do Che. Ele foio emblema supremo da revolta cultural que se materializou em um homemcujas ideias políticas eram convencionais, mas cuja atitude frente ao poder eà política alcançaram dimensões épicas e excepcionais. 

Por isso, os anos 60 ainda nos acompanham, e a imagem do Che con-tinua aparecendo por todo o planeta. O ano de 1968 provocou uma insur-reição cultural irreversível no mundo "moderno". A comoção transformouas relações entre velhos e jovens, homens e mulheres, razão e loucura, saúdee doença, e igualmente entre os sujeitos e os objetos do poder, entre o queensina e o que aprende, entre negros e brancos e mesmo entre ricos e pobres.