o visconde partido ao meio

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O VISCONDE PARTIDOAO MEIO

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O VISCONDE PARTIDOAO MEIO

Tradução: Wilma FreitasRonald de Carvalho

2ª edição

ITALOCALVINO

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Título original: Il Visconte Dimezzato

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira S.A. Todos os direitos reservados.

Editora Nova Fronteira S.A.Rua Bambina, 25 - Botafogo - 22251-050Rio de Janeiro - RJ - BrasilTel.: (21) 2131-1111 - Fax: (21) 2537-2659http://www.novafronteira.com.bre-mail: [email protected]

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

C168v Calvino, Ítalo, 1923-1985 O visconde partido ao meio / Italo Calvino; tradução de Wilma Freitas Ronald de Carvalho. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira(Os nossos antepassados; v.1)

Tradução de: Il visconte dimezzato

1. Romance italiano. I. Carvalho, Wilma Freitas Ronald de. II. Título. III. Série.

CDD 853 SU328CDU 850-3

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“É um rapaz sem importância coletiva;é apenas um indivíduo.”

Louis-Ferdinand Céline

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PREFÁCIO

“Algumas vezes oponho, através de uma dupla imagem, o vício à virtude, a tolice ao bom senso”. Esse parece ser o estratagema do escritor italiano Ítalo Cal-vino (1923-1985), ao contar a história do Visconde Medardo di Terralba, que divide-se em duas metades opostas, uma má e outra boa, após receber um tiro de canhão numa guerra. A novela O Visconde Partido ao Meio foi lançada em 1951 e faz parte do “ciclo com-pleto”, como descreveu Calvino, intitulado Nossos Ante-passados, junto com O Barão nas Árvores e O Ca-valeiro Inexistente. Trata-se de uma fábula. Prova disso é a frase acima sobre a “dupla imagem”, que, aocontrário do que pode ter pensado o leitor, não foi dita por Calvino, e sim pelo francês La Fontaine, no prefácio de sua primeira coletânea das Fábulas, de 1668. A fábula, gênero literário existente desde a an-tiguidade clássica, conta, em prosa ou verso, uma his-tória de natureza moral. Geralmente as personagens são

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animais com comportamento antropomórfi co, isto é, que carregam as virtudes, defeitos e vícios do homem. Esopo, fabulista grego, foi o primeiro a se destacar nesse tipo de narrativa e serviu de referência para todos os que vieram após, como o romano Fedro e, no século XVII, La Fontaine. E é no fantástico que Calvino se destaca, com obras como Fábulas Italianas, de 1954, resgate de histórias populares de diversas regiões da Itália, e As Cidades Invisíveis, onde Marco Polo descreve ao imperador Kublai Khan as cidades que visi-tou. A fábula de Calvino, escrita após a experiência da segunda guerra, no meio do século que nasceu sob a infl uência da psicanálise de Freud e em um mundo que a fi losofi a convencionou por chamar de “desencantado”, não poderia estar livre dos desígnios do tempo. Ao contrário do formato tradicional, cuja mensagem moral é explícita – muitas vezes até explicada separadamente, no fi nal – o drama do Visconde di Terralba não traz a panacéia universal que cura os males dos homens em determinada situação e os orienta na conduta; apenas exprime, de maneira alegórica, a angústia do homem contemporâneo, “mutilado, incompleto, inimigo de si mesmo”, nas palavras do autor. Assim, o primeiro im-pulso de leitura, o de situar as duas metades do Vis conde no mesmo universo de interpretação de Jekill e Hyde, um bom, o outro mal, pode ser precipitado. Não é esse, segundo o próprio Calvino, o viés correto, pois essa duplicidade, mais que um fi m da narrativa, foi apenas um meio, um artifício encontrado pelo fi ccionista, para diferenciar os diferentes viscondes da trama. Fosse esse realmente o tema principal, poderia-se considerar infantil o resultado, de tão evi dente e explícito o recurso escolhido para nos mostrar a duplicidade de caráter e de comportamento da personagem principal. As personagens são quase transparentes, enxerga-se nelas seu papel na

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fábula, sem muitos espaços para interpretações diversas. Assim são os leprosos, hedonistas pois segregados, os huguenotes, sobrevivendo às adversidades graças a um rígido código de ética, o médico cientista Trelawney e o carpinteiro mestre. Nesse mesmo caminho, a linguagem não poderia ser hermética, tampouco rebuscada, pois isso trabalharia contra o resultado fi nal, contra a fábula pretendida. É nessa ambiguidade, a de ser simples sem ser simplório, ser profundo sem ser hermético, causar a refl exão sem ser enigmático, tratar da alma humana sem ser abstrato, que Calvino trabalha com desenvoltura. O enredo é simples mas os homens não o são, é o que nosdiz, em momentos em que a prosa se torna poética, como nesse relato do narrador sobre o que sentia sobre os dois diferentes Viscondes di Terralba: “os nossos sen-timentos se tornavam incolores e obtusos, pois nos sen-tíamos como perdidos entre maldades e virtudes igual-mente desumanas”.

Estevão Azevedo

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A condição lacerada do homem, dividido entre valo-res, sistemas políticos e sociais e entre oriente e ocidente. O livro Visconde Partido ao Meio é o confl ito entre bom e mal, claro e escuro, e a fatídica e também clarifi cado-ra idéia de que sempre os dois extremos residem em nós mesmos. O confl ito é sempre interno, nunca infl uenciado por fatores de fora. Quer-se lutar contra o mundo, quando na verdade necessita-se lutar consigo mesmo.

O Visconde Medardo é um jovem tenente, que embe-bido de uma coragem adolescente, se lança na guerra contra os turcos. No meio do combate, no qual está vi-torioso, o Visconde salta na frente de um canhão inimi-go. Nesse momento leva um tiro de canhão que o parte ao meio. Uma metade de Medardo, que foi encon trada por médicos do exército cristão, retorna à casa, só que totalmente ruim e sombria. Mais tarde, retornará a par-te boa, que foi cuidada por monges. Eis a história de um homem partido.

APRESENTAÇÃO

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Esse, assim como os outros heróis calvineanos, vê a laceração como aquilo que provoca a dualidade. Tanto a parte boa quanto a parte má precisam de uma muleta para se apoiar. Cada muleta reequilibra um modo próprio de atuar no mundo e ambas reunidas revelam a oposição e a necessidade radical de uma e de outra parte, simultaneamente, completarem-se. Mesmo partidas pelo canhonaço, nenhuma das partes perde sua dignidade. A oposição entre elas faz com que cada uma siga o seu modo próprio de ser e a lógica da sua natureza.

O lado bom de Medardo é alguém que se põe a serviço da natureza. Tomará para si a devota missão de devolver as pétalas caídas às fl ores, pensará na melhor forma de extrair da terra os alimentos sem destruí-la, estará a serviço das crianças e dos velhos, ouvirá a to-dos e a ninguém se furtará. Será amado até o momento em que se torna alguém insuportável: intervém demais na vida das pessoas com opiniões des providas de senso crítico, coisas, aliás, que o homem partido “mau” temem demasia. O “bom” aparenta-se muitas vezes pie-gas, ridículo e superfi cial na sua vontade de ajudar e contribuir. E sua ação, mesmo que bem recebida, se tor-na um transtorno por ser excessiva.

O lado mau produz um outro efeito: todos o abomi-nam, assassino cruel e mesquinho, aqueles que convivem com ele despertam para a necessidade de uma união con-tra ele, e descobrem que essa união pode con tribuir para a melhoria de suas vidas. O egoísmo, a vingança e a perver-são mordaz da parte má provocam não só a necessidade de organização, mas também de sublevação por parte dos huguenotes (franceses católicos fugidos do sistema que os marginalizava) e dos moradores de Terralba.

Medardo partido, equilibrado e desequilibrado em si mesmo, sofre com o drama do seu inacabamento. Me-dardo como símbolo deste homem lacerado, é a imagem

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da tragicidade dessa divisão: “cada encontro de duas criaturas no mundo é uma dilaceração”, diz Pamela, a pastora de cabras por quem os dois lacerados se apaixo-nam. As duas criaturas aqui não são apenas Pamela e Medardo, ou a parte boa e a mesquinha, mas o homem que duela com o mundo e consigo mesmo. O duelo no fi nal do livro das duas partes dentro da igreja mostra a luta de cada uma para superar a si mesmo: “O homem se arrasta contra si mesmo, com ambas as mãos armadas de uma espada”, é uma das situações do desfecho do livro, na qual as duas metades de Medardo duelam pela pas-tora. Pelo menos em Medardo, o que provoca o desafi o e a necessidade de superar-se é o amor por Pamela. Ambos feridos pela espada caem no chão, precisam de cuidados e acabam sendo recosturados pelo Dr. Trelawney.

Com respeito à laceração a ironia é o anunciar de uma harmonia impossível, e com respeito à harmonia é a consciência da laceração real. A ironia adverte sempre do reverso da medalha”, diz o próprio Calvino, no livro Um eremita em Paris.

O desafi o de rejuntar as partes dicotomizadas é a lu-ta permanente por uma harmonia impossível a partir de uma laceração real. A laceração real mostra-nos que “a ambição de restituir a plenitude da vida revela o vazio por baixo” (Se um Viajante Numa noite de Inverno). Contra o vazio, Medardo aciona o seu desejo de harmonia consi-go, arrisca que a reunião das partes possibilite a ele um outro equilíbrio diferente daquele. A confusão provocada pela divisão gerou nas partes primeiro redução (um sendo bom o outro mesquinho) e depois uma sensação angustiante de inacabamento e incompletude.

“A laceração existe no Visconde e talvez em tudo o que escrevi. E a consciência da laceração implica e desejo de harmonia”, segue Calvino, em Um Eremita em Paris.

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SUMÁRIO

Prefácio 7

Apresentação 11

Capítulo I 17

Capítulo II 23

Capítulo III 29

Capítulo IV 35

Capítulo V 41

Capítulo VI 65

Capítulo VII 75

Capítulo VIII 91

Capítulo IX 101

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Estávamos em guerra contra os turcos. O visconde Medardo di Terralba, meu tio, cavalgava através da pla-nície da Boêmia rumo ao acampamento dos cristãos. Um escudeiro, chamado Curzio, acompanhava-o.

As cegonhas voavam baixo, em branca revoada, em meio ao ar opaco e parado.

- Por que há tantas cegonhas? - perguntou Medardo a Curzio -, para onde voam?

Meu tio, recém-chegado, acabara de se alistar, para agradar a certos duques da vizinhança, envolvidos na guerra. Havia conseguido um cavalo e um escudeiro no último castelo nas mãos dos cristãos, e estava indo se apresentar ao quartel imperial.

- Voam rumo aos campos de batalha - disse o es-cudeiro, de modo sombrio. - Vão nos acompanhar por todo o caminho.

O visconde Medardo tinha ouvido dizer que, na-queles países, o vôo das cegonhas é sinal de sorte; e que-

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ria se mostrar contente ao vê-las. Contudo, mesmo invo-luntariamente, sentia-se inquieto.

- Curzio, afi nal o que atrai as pernaltas para os cam-pos de batalha? - perguntou.

- Agora elas também comem carne humana res-pondeu o escudeiro -, desde que a carestia atingiu os campos e a seca acabou com os rios. As cegonhas, os fl a-mingos e os grous substituíram os corvos e abutres nos locais onde existem cadáveres.

Meu tio ainda vivia a primeira juventude: a fase em que os sentimentos estão todos confusos, quando ainda não se distingue o bem e o mal, em que cada nova experiência, mesmo macabra e desumana, é intensa e impregnada de amor à vida.

- E os corvos? E os abutres? - indagou. - E as outras aves de rapina? Para onde foram? - Estava pálido, mas seus olhos cintilavam.

O escudeiro era um soldado bem moreno, bigodu-do, que nunca levantava o olhar.

- Na sua voracidade de comer as vítimas da peste, es-ta também os atacou - e apontou com a lança para umas moitas negras, que a um olhar mais aguçado revelavam-se ser não de ramos, mas de penas e patas de aves de rapina ressequidas.

- Veja bem, não se sabe quem morreu primeiro, se o pássaro ou o homem, nem quem se atirou sobre o outro para dilacerá-lo - disse Curzio.

Para fugirem da peste que exterminava as po-pulações, famílias inteiras haviam se dirigido para os campos, onde foram surpreendidas pela agonia. Espalhados pela árida planície, em pilhas de esquel-etos, viam-se corpos de homem e de mulher, nus, desfi gurados pelos bubões e, coisa a princí-pio inexplicável, cheios de penas: como se naqueles macilentos braços e costelas tivessem crescido negras

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penas e asas. Eram os cadáveres de abutres misturados aos restos humanos.

A região já começava a apresentar sinais de batalhas travada.- O avanço tornara-se mais lento porque os dois cavalos tropeçavam em refugos e penas.

- O que está acontecendo com nossos cavalos? - perguntou Medardo ao escudeiro.

- Meu senhor - respondeu ele -, nada desagrada mais aos cavalos do que o cheiro das próprias tripas.

A faixa de planície por onde agora passavam estava, realmente, coberta de carniças de cavalos, algumas com os cascos virados para o céu, outras de bruços, com o focinho enfi ado no solo.

- Curzio, por que há tantos cavalos mortos neste ponto? - indagou Medardo.

- Quando o cavalo sente que sua barriga foi dilacerada - explicou-lhe Curzio -, procura prender as próprias vísceras. Alguns encostam a barriga no chão, outros viram-se de costas para que não, fi quem dependura-das. Contudo, a morte não demora a atingilos da mesma forma.

- Então, quer dizer que são sobretudo os cavalos que morrem nesta guerra?

- As cimitarras turcas parecem ser feitas exatamente para abrir, de um só golpe, os seus ventres. Mais adi-ante verá os corpos dos homens. Primeiro caem os cavalos e, depois, os cavaleiros. Mas, veja, o campo está lá adiante.

Às margens do horizonte erguiam-se os pináculos das tendas mais altas, os estandartes do exército imperial e a fumaça.

Avançando a galope, viram que as vítimas da última batalha haviam sido, quase todas, removidas e enter-radas. Restavam apenas alguns membros perdidos, espe-cialmente dedos, caídos sobre os restolhos.

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fi car com as mãos livres, tanto o imperador como os marechais mantinham os alfi netes entre os lábios e só podiam se comunicar através de grunhidos.

Diante do jovem que se inclinava à sua frente, o soberano soltou um grunhido de interrogação e retirou prontamente os alfi netes da boca.

- Um cavaleiro recém-chegado da Itália, majestade - apresentaram-no -, o visconde di Terralba, membro de uma das mais nobres famílias da República de Gênova.

- Que seja logo nomeado tenente.Meu tio bateu as esporas, colocando-se em posição

de sentido, enquanto o imperador fazia um amplo ges-to real e todos os mapas enrolavam-se sozinhos e caíam no chão.

Naquela noite, embora exausto, Medardo deitou-se tarde. Caminhava para a frente e para trás, próximo à sua tenda, e escutava os chamados dos sentinelas, o rel-inchar dos cavalos e as palavras entrecortadas de soldados que falavam durante o sono. Olhava para o céu, para as estrelas da Boémia, pensava na sua nova patente, na batalha do dia seguinte, na pátria longínqua e no ru-ído dos juncos nos regatos. Não tinha no coração nem nostalgia, nem dúvida, nem apreensão. Para ele as coisas ainda estavam inteiras e incontestes, e ele também se sentia assim. Se pudesse ter previsto a terrível sorte que o esperava, talvez a tivesse julgado como fato natural e consumado, apesar de toda a sua dor. Olhava em direção à linha do horizonte noturno, onde sabia que se localizava o acampamento inimigo e, com os braços cru-zados sobre o peito, apertava os ombros com as mãos, satisfeito por ter certeza, ao mesmo tempo, de realidades distantes e diversas, e da própria presença entre elas. Sentia o sangue daquela guerra cruel, espalhado por mil riachos sobre a terra, chegar até ele; e deixava que o roçasse, sem experimentar nem ódio, nem piedade.

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A batalha começou às dez horas da manhã em ponto. Do alto da sela, o lugar-tenente Medardo contemplava a longa formação das tropas cristãs, prontas para o ataque, e alongava o rosto ao vento da Boêmia, que espalhava o cheiro de cascabulho como se passasse por uma eira empoeirada.

- Não, não se vire para trás, senhor - exclamou Curzio que, com a patente de sargento, encontrava-se a seu lado. E, para justifi car a frase peremptória, acrescentou, baixinho: - Dizem que- dá azar antes do combate.

Na realidade, não desejava que o visconde esmore-cesse ao perceber que o exército cristão consistia quase que somente naquela fi leira em formação e que as forças de apoio eram apenas alguns pelotões de infantes que mal se agüentavam sobre as pernas.

Contudo, meu tio olhava para longe, para a nuvem que se aproximava no horizonte, e pensava: ”Pronto, aquela nuvem são os turcos, os verdadeiros turcos, e estes,

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ao meu lado, que cospem tabaco, são os veteranos da cristandade; esta corneta que agora soa é o ataque, o primeiro ataque da minha vida, e este estrondo e estre-mecimento, o bólido que se enfi a na terra visto com desprezo pelos veteranos e pelos cavalos, é uma bala de canhão, a primeira bala inimiga que eu encontro. E espero que não chegue o dia em que tenha de dizer: ”E esta é a última.”

Com a espada desembainhada, pôs-se a galopar pe-la planície, com os olhos fi xos no estandarte imperial que aparecia e desaparecia em meio à fumaça, enquan-to os canhonaços amigos rolavam no céu acima de sua cabeça e os inimigos já abriam brechas na frente cristã e provocavam inesperados cogumelos de terra. Pensava:

”Verei os turcos! Verei os turcos!”Nada agrada mais aos homens do que ter inimigos,

e depois verifi car se são exatamente como os imaginara.Eu os vi, os turcos. Surgiram exatamente dois por ali,

com os cavalos arreados para a guerra, o pequenino escu-do de couro redondo, as roupas listradas de negro e açafrão. E também o turbante, o rosto cor de ocre e o bigode como o daquele homem que, em Terralba, era chamado de ”Miché, o turco”. Um dos turcos morreu, e o outro matou uma pessoa. Contudo, surgiam sabe-se lá quantos mais e lutavam com arma branca. Ver dois turcos era como ter visto todos. Também eram milita-res, e todo aquele aparato era fornecido pelo exército. Tinham rostos pequenos, mas eram cabeçudos como os camponeses. Se a questão era vêlos, Medardo já os tinha visto; podia retornar para junto de nós, em Terralba, a tempo de presenciar a passagem das codornizes. Mas, ao invés disto, resolveu permanecer na guerra. Assim, corria, desviando-se dos golpes das cimitarras, até que encontrou um turco baixo, a pé, e o matou. Vendo que era assim que se fazia, foi procurar um outro turco al-

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Quando meu tio retornou a Terralba, eu tinha sete ou oito anos. Foi ao anoitecer; era outubro; o céu estava nublado. Durante o dia havíamos feito a vindima e através das fi leiras de vinhas vimos, no mar cinzento, as velas de um navio que se aproximava e portava o pavilhão imperial. Naquela ocasião, a cada navio que se avistava, comentava-se: - É o Mestre Medardo que está voltando - não porque estivés-semos ansiosos por sua volta, mas sim para termos alguma coisa por que esperar. Daquela vez não nos enganáramos: a certeza nos veio à noite, quando um jovem chamado Fiorfi ero, esmagando a uva em cima da dorna, gritou: - Oh, lá embaixo. - Já estava quase escuro e avistamos no fi m do vale uma fi leira de tochas acesas rumando para a vereda; e depois, quando passou pela ponte, distinguimos a liteira que estava sendo carregada. Não havia dúvidas: era o visconde que voltava da guerra.

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Aqueles eram tempos felizes para mim, sempre perambulando pelos bosques, acompanhando o doutor Trelawney, em busca de carapaças de animais marinhos que haviam se transformado em pedras. O doutor Tre-lawney era inglês. Tinha chegado ao nosso litoral após um naufrágio, em cima de um tonel de vinho bordeaux. Havia sido médico de bordo durante toda a vida e feito viagens longas e perigosas, entre as quais aquelas com o famoso capitão Cook, porém nunca tinha visto nada do mundo porque estava sempre nas cobertas jogando vinte-e-um. Tendo naufra gado em nossas águas, encan-tara-se logo com o vinho tipo cancarone, o mais rascan-te e espesso de nossa região, e não sabia mais viver sem ele, tanto assim que sempre levava a tiracolo uma garrafa cheia. Tinha fi cado em Terralba e tornara-se nosso médico, contudo não se preocupava com os doentes, mas sim com, as descobertas científi cas que fazia e o mantinham sempre para lá e para cá - e eu com ele -, em campos e bosques, noite e dia. Primeiro uma doença

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dos grilos, moléstia imperceptível que somente um grilo em mil tinha e, ademais, sem lhe causar qualquer da-no; e o doutor Trelawney queria procurá-los todos e descobrir a cura adequada. Em seguida, procurava os sinais do tempo em que nossas terras estavam cobertas pelo mar; então, andávamos carregando pedras e silícios que o doutor afi rmava terem sido, anteriormente, pei-xes. Finalmente, sua última e grande paixão: os fogos-fátuos. Queria descobrir um modo de pegá-los e con-servá-los, e com este objetivo passávamos as noites vagueando por nosso cemitério, aguardando que, entre as sepulturas de terra e de mato, se acendesse algum daqueles vagos clarões e, então, procurávamos atraí-los para nós, fazê-los correr atrás de nós e capturá-los, sem que se apagassem, dentro de recipientes que, de vez em quando, testávamos: sacos, frascos, garrafões sem palha, braseiros, escorredores de massa. O doutor Trelawney tinha ido morar em um casebre próximo ao cemitério, que anteriormente fora habitado pelo coveiro, naqueles tempos de tumulto, de guerras e de epidemias em que convinha manter um homem que só executasse aquele tipo de trabalho. Lá, o doutor havia instalado seu laboratório, com ampolas de todos os formatos para engarrafar os fogos, e redes como as de pesca para agarrá-los; os alambiques e cadinhos onde pesquisava como nasciam aquelas pálidas e minúsculas chamas das terras dos cemitérios e dos miasmas dos cadáveres. Po-rém, não era um homem que fi casse durante muito tempo absorvido nos seus estudos: largava tudo logo, saía, e íamos juntos em busca de novos fenômenos da natureza.

Eu era livre como o ar, pois não tinha pais e não pertencia nem à categoria dos criados, nem à dos pa-trões. Fazia parte da família dos Terralba apenas através de um reconhecimento tardio, contudo não tinha esse

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nhos totalmente enlameados. A meia boca do visconde arqueava-se num doce e completo sorriso.

- Muito bem, o que faremos? - perguntou Pâmela.- Acho que deveríamos ir à casa de seus pais,

pobrezinhos, para ajudá-los um pouco em suas tarefas.- Vai você, se está com vontade - disse Pâmela.- Eu estou com vontade de ir, sim, querida retrucou

o visconde.- E eu fi co aqui - replicou Pâmela, e parou ao lado

da cabra e da pata.- O único meio de nos amarmos é praticando,

juntos, boas ações.- Que lástima! Pensava que houvesse outras maneiras.- Adeus, querida. Vou lhe trazer um pedaço de torta

de maçã. - E afastou-se pelo caminho, apoiando-se sobre a muleta.

- O que me diz disto, cabra? O que lhe parece, patinha? - perguntou Pâmela, sozinha com seus animais. - Será que só me aparecem tipos como esse?

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sobrenome e ninguém se dedicava à minha educação. A minha pobre mãe era fi lha do visconde Aiolfo e irmã mais velha de Medardo, mas tinha manchado a hon-ra da família fugindo com um caçador ilegal que veio a ser, depois, o meu pai. Tinha nascido na cabana do caçador, nos terrenos sob o bosque; e pouco depois, meu pai foi assassinado numa rixa, e a pelagra acabou com minha mãe, que tinha fi cado sozinha naquela cabana miserável. Fui então acolhido no castelo porque meu avô Aiolfo fi cou penalizado, e cresci sob os cuidados da grande babá Sebastiana. Lembro-me que quando Medardo era ainda um adolescente e eu uma criança, às vezes me deixava participar de seus folguedos como se tivéssemos a mesma situação social; depois a distância entre nós acentuou-se e eu fi quei relegado ao nível dos criados. Agora, encontrava no doutor Trelawney um companheiro como jamais tivera em minha vida.

O doutor estava com sessenta anos, porem era do meu tamanho; tinha um rosto todo encarquilhado como uma castanha seca, sob o tricórnio e a peruca; as pernas, que as polainas cobriam até a metade das coxas, pareciam mais longas, tão desproporcionais quanto as dos grilos, até mesmo devido aos largos passos que dava; e envergava uma casaca cor de rolinha com as guarnições vermelhas, sobre a qual levava, a tiracolo, a garrafa de vinho cancarone.

A sua paixão pelos fogos-fátuos impelia-nos a fazer longas caminhadas noturnas para alcançarmos os cemi-térios das aldeias vizinhas, onde era possível ver, às vezes, chamas mais bonitas com relação à coloração e ao ta-manho do que as do nosso campo-santo abandonado. Mas, ai de nós se esta nossa manobra fosse descoberta pelos camponeses: certa vez, tomando-nos por ladrões sacrílegos, fomos perseguidos por vários quilômetros por um grupo de homens armados com foices e forcados.

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- Queria que o estábulo lhes caísse sobre a cabeça? - exclamou Pâmela. - Começo a ver que o senhor é um pouco bondoso demais e, em vez de fi car zangado com sua outra metade por todas as coisas ruins que apronta, quase dá a impressão de também sentir pena dela.

- E como poderia deixar de sentir? Sei o que representa ser a metade de um homem, não posso deixar de sentir pena dele.

- Mas o senhor é diferente; também é um pouco maluco, porém é bom.

Então o bom Medardo disse:- Ah, Pâmela, esta é a virtude de um ser partido ao

meio: entender o sofrimento de cada pessoa e coisa do mundo diante da própria imperfeição. Eu estava inteiro e não entendia, movimentava-me surdo e incomunicá-vel entre os sofrimentos e as feridas disseminados por todos os lados. Pâmela, não sou apenas eu um ser dividido e dilacerado, mas você também o é, assim como todo mundo. Portanto, possuo agora uma fraternidade que antes, inteiro, não conhecia: aquela com todas as mutilações e todas as carências do mundo. Se vier comigo, Pâmela, aprenderá a tolerar os males de cada ume a curar os seus ao curar os dos outros.

- Isto é muito bonito - disse Pâmela -, porém encontro-me numa situação difi cílima, com aquele outro seu pedaço que se apaixonou por mim e não se sabe o que pretende fazer comigo.

Meu tio soltou o manto porque o temporal tinha parado.

- Também estou apaixonado por você, Pâmela. Pâmela saiu da gruta.

- Que alegria! O arco-íris está no céu e encontrei um novo apaixonado. Dividido este também, porém uma boa alma.

Caminhavam sob ramos ainda gotejantes por cami-

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A partir do momento em que todos fi caram sabendo que a outra metade do visconde havia reaparecido, tão cheia de bondade quanto a primeira de maldade, a vida em Terralba modifi cou-se muito.

Pela manhã, eu acompanhava o doutor Trelawney em suas visitas aos doentes; porque o doutor, pouco a pouco, tinha recomeçado a praticar a medicina e a se dar conta dos muitos males que acometiam a nossa gente, a quem já faltava fi bra, como conseqüência da longa carestia dos tempos passados; males com os quais nunca se preocupara antes.

Andávamos pelas veredas dos campos e víamos os sinais indicadores da presença prévia do meu tio. Isto é, meu tio bom, que todas as manhãs visitava não apenas os enfermos, mas também os pobres, os velhos, qualquer pessoa que tivesse necessidade de auxílio.

No pomar de Bacciccia, a romãzeira tinha as frutas maduras envoltas, uma a uma, em um pedaço de pano.

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rolavam laudas onde estavam escritas algumas máximas latinas e inglesas. No convés, em meio aos ofi ciais de tricórnios e perucas, o capitão Cook olhava com a luneta para a costa e, assim que notou a presença do doutor Trelawney, deu ordem que lhe transmitissem, com as bandeiras, esta mensagem:

”Venha logo a bordo, doutor, temos que continuar aquela partida de vinte-e-um!"

O doutor cumprimentou todo o pessoal de Terralba e nos deixou. Os marinheiros entoaram um hino: ”Oh, Austrália!”, e o doutor foi içado para bordo escarranchado num tonel cheio de vinho cancarone. Depois os navios levantaram âncoras.

Eu não tinha visto nada. Estava escondido no bosque, contando histórias para mim mesmo. Vim a saber de tudo tarde demais e desatei a correr na direção da costa, gritando:

- Doutor! Doutor Trelawney! Leve-me consigo! Não pode me deixar aqui!

Mas os navios já desapareciam no horizonte e eu fi quei aqui, neste nosso mundo cheio de responsabilidade e de fogos-fátuos.

Junho - Setembro de 1951

118 O VISCONDE PARTIDO AO MEIO

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•Aos curiosos, informa-se que este livro foi impresso em São Paulo, em Março de 2010, pela Power Graphics unidade Berrini. O papel do miolo é alta alvura 90g/m2;

o da capa, papel cartão 250g/m2.A fonte utilizada no miolo é a Adobe Garamond Pro

(ROBERT SLIMBACH, 1989) corpo 11/13,5.Todo o projeto gráfico foi elaborado e desenvolvido por mim, Juliana Demarque, com o auxílio de meus estimados

colegui nhas, familiares e professores.

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