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O VISCONDE PARTIDO AO MEIO

ÍTALO CALVINO

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***Este livro foi escaneado por Paulo Ribeiro Cardoso e revisado por Ana Paula Lima Cardoso. Tendo seu uso restrito a pessoas com deficiência Visual, conforme prevê legislação própria.

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ÍTALO CALVINO

O VISCONDE PARTIDO AO MEIO

Tradução de: WILMA FREITAS RONALD DE CARVALHO

Titulo original: IL VISCONTE DIMEZZATO by The Estate of Italo Calvino

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela

EDITORA NOVA FRONTEIRA S/ARua Bambina n 25 – CEP 22.251 – Botafogo – t. 86-7822 Endereço Telegráfico: NEOFRONT – Telex: 34695 ENFS BR Rio de Janeiro RJ

Revisão Tipográfica Henrique TarnapolskyGrecina Vereza Renato Rosário Carvalho

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CPI – Brasil Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de livros, RJ

Calvino, Ítalo, 1925.C168v O visconde partido ao meio / Italo Calvino; tradução de Wilma Freitas Ronald de Carvalho. – Rio de Janeiro : Nova Fronteira.(Os nossos antepassado; v.1)Tradução de: II visconte dimezzato.1. Romance italiano I. Carvalho, Wilma Freitas Ronald de. II Título, III. Série.

CDD – 853 SU328 CDU – 850-3

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I

Estávamos em guerra contra os turcos. O visconde Medardo di Terralba, meu tio, cavalgava através da planície da Boemia rumo ao acampamento dos cristãos. Um escudeiro, chamado Curzio, acompanhava-o.

As cegonhas voavam baixo, em branca revoada, em meio ao ar opaco e parado.

– Por que há tantas cegonhas? – perguntou Medardo a Curzio -, para onde voam?

Meu tio, recém-chegado, acabara de se alistar, para agradar a certos duques da vizinhança, envolvidos na guerra. Havia conseguido um cavalo e um escudeiro no último castelo nas mãos dos cristãos, e estava indo se apresentar ao quartel imperial.

– Voam rumo aos campos de batalha – disse o escudeiro, de modo sombrio. – Vão nos acompanhar por todo o caminho.

O visconde Medardo tinha ouvido dizer que, naqueles países, o vôo das cegonhas é sinal de sorte; e queria se mostrar contente ao vê-las. Contudo, mesmo involuntariamente, sentia-se inquieto.

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– Curzio, afinal o que atrai as pernaltas para os campos de batalha? – perguntou.

– Agora elas também comem carne humana respondeu o escudeiro -, desde que a carestia atingiu os campos e a seca acabou com os rios. As cegonhas, os flamingos e os grous substituíram os corvos e abutres nos locais onde existem cadáveres.

Meu tio ainda vivia a primeira juventude: a fase em que os sentimentos estão todos confusos, quando ainda não se distingue o bem e o mal, em que cada nova experiência, mesmo macabra e desumana, é intensa e impregnada de amor à vida.

– E os corvos? E os abutres? – indagou. – E as outras aves de rapina? Para onde foram? – Estava pálido, mas seus olhos cintilavam.

O escudeiro era um soldado bem moreno, bigodudo, que nunca levantava o olhar.

– Na sua voracidade de comer as vítimas da peste, esta também os atacou – e apontou com a lança para umas moitas negras, que a um olhar mais aguçado revelavam-se ser não de ramos, mas de penas e patas de aves de rapina ressequidas.

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– Veja bem, não se sabe quem morreu primeiro, se o pássaro ou o homem, nem quem se atirou sobre o outro para dilacerá-lo – disse Curzio.

Para fugirem da peste que exterminava as populações, famílias inteiras haviam se dirigido para os campos, onde foram surpreendidas pela agonia. Espalhados pela árida planície, em pilhas de esqueletos, viam-se corpos de homem e de mulher, nus, desfigurados pelos bubões e, coisa a princípio inexplicável, cheios de penas: como se naqueles macilentos braços e costelas tivessem crescido negras penas e asas. Eram os cadáveres de abutres misturados aos restos humanos.

A região já começava a apresentar sinais de batalhas travada.– O avanço tornara-se mais lento porque os dois cavalos tropeçavam em refugos e penas.

– O que está acontecendo com nossos cavalos? – perguntou Medardo ao escudeiro.

– Meu senhor – respondeu ele -, nada desagrada mais aos cavalos do que o cheiro das próprias tripas.

A faixa de planície por onde agora passavam estava, realmente, coberta de carniças de cavalos,

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algumas com os cascos virados para o céu, outras de bruços, com o focinho enfiado no solo.

– Curzio, por que há tantos cavalos mortos neste ponto? – indagou Medardo.

– Quando o cavalo sente que sua barriga foi dilacerada – explicou-lhe Curzio -, procura prender as próprias vísceras. Alguns encostam a barriga no chão, outros viram-se de costas para que não, fiquem dependuradas. Contudo, a morte não demora a atingilos da mesma forma.

– Então, quer dizer que são sobretudo os cavalos que morrem nesta guerra?

– As cimitarras turcas parecem ser feitas exatamente para abrir, de um só golpe, os seus ventres. Mais adiante verá os corpos dos homens. Primeiro caem os cavalos e, depois, os cavaleiros. Mas, veja, o campo está lá adiante.

Às margens do horizonte erguiam-se os pináculos das tendas mais altas, os estandartes do exército imperial e a fumaça.

Avançando a galope, viram que as vítimas da última batalha haviam sido, quase todas, removidas e enterradas. Restavam apenas alguns membros

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perdidos, especialmente dedos, caídos sobre os restolhos.

– De quando em quando há um dedo que nos indica o caminho – disse meu tio Medardo. – O que quer dizer isto?

– Que Deus lhes perdoe: os vivos mexem nos dedos dos mortos para lhes tirar os anéis.

– Quem é aquele? – perguntou um sentinela, cujo sobretudo estava recoberto de mofo e musgo como a cortiça de uma árvore exposta à tramontana.

– Viva a sagrada coroa imperial! – gritou Curzio.

– E que morra o sultão! – replicou o sentinela. – Mas, peço-lhes, quando chegarem ao quartel-general perguntem quando irão se resolver a me mandar o substituto porque já estou até criando raízes!

Os cavalos corriam, agora, para escapar da nuvem de moscas que circundava o campo, zumbindo sobre as montanhas de excrementos.

– As fezes de ontem de muitos valorosos soldados ainda estão na terra e eles já estão no céu – observou Curzio, persignando-se.

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À entrada do acampamento, passaram ao longo de uma fileira de baldaquinos, sob os quais as mulheres roliças e de cabelos cacheados, com longas vestes de brocado e os seios à mostra, os acolheram com risos e gritinhos.

– São as tendas das cortesãs – disse Curzio. Nenhum outro exército as têm assim tão lindas. Meu tio já cavalgava com o rosto virado para trás, olhando-as.

– Senhor, cuidado – acrescentou o escudeiro -, são tão imundas e empestadas que nem mesmo os turcos, durante um saque, haveriam de querê-las como presas. Já não estão apenas carregadas de piolhos púbicos, percevejos e carrapatos, mas os escorpiões e os lagartos verdes fazem ninhos em cima delas.

Passaram diante das baterias de campo. À noite, os artilheiros cozinhavam seu rancho de água e nabo sobre o bronze das espingardas e dos canhões em brasas após o grande tiroteio do dia.

Chegavam alguns carros cheios de terra, e os artilheiros passavam-na pelo crivo.

– Já estamos ficando sem pólvora – explicou Curzio -, mas ela se entranhou tanto na terra onde se

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travaram as batalhas que, desejando-se, pode-se recuperar alguma carga.

Depois vinham as cocheiras onde, em meio às moscas, os veterinários, sempre azafamados, remendavam a pele dos quadrúpedes com suturas, ataduras e emplastros de alcatrão fervendo: todos relinchavam e escoiceavam, até os médicos.

A seguir, via-se o acampamento cia infantaria ocupando uma grande extensão. Era o pôr-do-sol e, diante de cada tenda, os soldados estavam sentados com os pés descalços imersos em tinas de água morna. Acostumados como estavam a inesperados alarmes que aconteciam noite e dia, mesmo na hora do pedilúvio mantinham o elmo na cabeça e a lança entre as mãos. Nas tendas mais altas e enfeitadas como quiosques, os oficiais, punham talco nas axilas e abanavam-se com leques de renda.

– Não o fazem por efeminação – disse Curzio ao contrário; querem demonstrar que se encontram totalmente à vontade nas dificuldades da vida militar.

O visconde di Terralba foi logo conduzido a presença do imperador. No seu pavilhão repleto de tapeçarias e troféus, o soberano estudava nos mapas os planos de futuras batalhas. As mesas estavam entulhadas de mapas desenrolados, e o imperador os

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crivava de alfinetes, tirando-os de uma almofadinha que um dos marechais segurava para ele. Os mapas já estavam tão cheios de alfinetes que não se entendia mais nada e, para que se pudesse ler alguma coisa neles, era preciso retirá-los e depois recolocá-los em seus lugares. Neste tira e põe, para ficar com as mãos livres, tanto o imperador como os marechais mantinham os alfinetes entre os lábios e só podiam se comunicar através de grunhidos.

Diante do jovem que se inclinava à sua frente, o soberano soltou um grunhido de interrogação e retirou prontamente os alfinetes da boca.

– Um cavaleiro recém-chegado da Itália, majestade – apresentaram-no -, o visconde di Terralba, membro de uma das mais nobres famílias da República de Gênova.

– Que seja logo nomeado tenente.

Meu tio bateu as esporas, colocando-se em posição de sentido, enquanto o imperador fazia um amplo gesto real e todos os mapas enrolavam-se sozinhos e caíam no chão.

Naquela noite, embora exausto, Medardo deitou-se tarde. Caminhava para a frente e para trás, próximo à sua tenda, e escutava os chamados dos sentinelas, o

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relinchar dos cavalos e as palavras entrecortadas de soldados que falavam durante o sono. Olhava para o céu, para as estrelas da Boémia, pensava na sua nova patente, na batalha do dia seguinte, na pátria longínqua e no ruído dos juncos nos regatos. Não tinha no coração nem nostalgia, nem dúvida, nem apreensão. Para ele as coisas ainda estavam inteiras e incontestes, e ele também se sentia assim. Se pudesse ter previsto a terrível sorte que o esperava, talvez a tivesse julgado como fato natural e consumado, apesar de toda a sua dor. Olhava em direção à linha do horizonte noturno, onde sabia que se localizava o acampamento inimigo e, com os braços cruzados sobre o peito, apertava os ombros com as mãos, satisfeito por ter certeza, ao mesmo tempo, de realidades distantes e diversas, e da própria presença entre elas. Sentia o sangue daquela guerra cruel, espalhado por mil riachos sobre a terra, chegar até ele; e deixava que o roçasse, sem experimentar nem ódio, nem piedade.

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II

A batalha começou às dez horas da manhã em ponto. Do alto da sela, o lugar-tenente Medardo contemplava a longa formação das tropas cristãs, prontas para o ataque, e alongava o rosto ao vento da Boêmia, que espalhava o cheiro de cascabulho como se passasse por uma eira empoeirada.

– Não, não se vire para trás, senhor – exclamou Curzio que, com a patente de sargento, encontrava-se a seu lado. E, para justificar a frase peremptória, acrescentou, baixinho: – Dizem que– dá azar antes do combate.

Na realidade, não desejava que o visconde esmorecesse ao perceber que o exército cristão consistia quase que somente naquela fileira em formação e que as forças de apoio eram apenas alguns pelotões de infantes que mal se agüentavam sobre as pernas.

Contudo, meu tio olhava para longe, para a nuvem que se aproximava no horizonte, e pensava: “Pronto, aquela nuvem são os turcos, os verdadeiros turcos, e estes, ao meu lado, que cospem tabaco, são os veteranos da cristandade; esta corneta que agora soa é o ataque, o primeiro ataque da minha vida, e este estrondo e estremecimento, o bólido que se enfia na

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terra visto com desprezo pelos veteranos e pelos cavalos, é uma bala de canhão, a primeira bala inimiga que eu encontro. E espero que não chegue o dia em que tenha de dizer: “E esta é a última.”

Com a espada desembainhada, pôs-se a galopar pela planície, com os olhos fixos no estandarte imperial que aparecia e desaparecia em meio à fumaça, enquanto os canhonaços amigos rolavam no céu acima de sua cabeça e os inimigos já abriam brechas na frente cristã e provocavam inesperados cogumelos de terra. Pensava:

“Verei os turcos! Verei os turcos!”

Nada agrada mais aos homens do que ter inimigos, e depois verificar se são exatamente como os imaginara.

Eu os vi, os turcos. Surgiram exatamente dois por ali, com os cavalos arreados para a guerra, o pequenino escudo de couro redondo, as roupas listradas de negro e açafrão. E também o turbante, o rosto cor de ocre e o bigode como o daquele homem que, em Terralba, era chamado de “Miché, o turco”. Um dos turcos morreu, e o outro matou uma pessoa. Contudo, surgiam sabe-se lá quantos mais e lutavam com arma branca. Ver dois turcos era como ter visto todos. Também eram militares, e todo aquele aparato

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era fornecido pelo exército. Tinham rostos pequenos, mas eram cabeçudos como os camponeses. Se a questão era vêlos, Medardo já os tinha visto; podia retornar para junto de nós, em Terralba, a tempo de presenciar a passagem das codornizes. Mas, ao invés disto, resolveu permanecer na guerra. Assim, corria, desviando-se dos golpes das cimitarras, até que encontrou um turco baixo, a pé, e o matou. Vendo que era assim que se fazia, foi procurar um outro turco alto, a cavalo, e se enganou. Porque os piores eram os pequenos. Eles se enfiavam debaixo dos cavalos, com aquelas cimitarras, e os esquartejavam.

O cavalo de Medardo parou com as pernas afastadas.

O que está fazendo? – perguntou o visconde. Curzio aproximou-se, apontando para baixo:

– Olhe ali.

Estava com todas as tripas espalhadas pelo chão.

O pobre animal olhou para cima, para o dono, em seguida abaixou a cabeça como se quisesse pastar os intestinos, mas era apenas uma exibição de heroísmo: desmaiou e depois morreu. Medardo di Terralba ficou sem montaria.

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– Tome o meu cavalo, tenente – disse Curzio, porém não conseguiu fazê-lo parar porque caiu da sela, ferido por uma flecha turca, e o cavalo fugiu.

– Curzio! – gritou o visconde e aproximou-se do escudeiro, que gemia no chão.

– Não se preocupe comigo, senhor – falou o escudeiro. – Esperemos, apenas, que no hospital ainda haja um pouco de caldo ralo. Cada ferido tem direito a uma tigela.

Meu tio Medardo atirou-se à peleja. Os destinos da batalha eram incertos. Naquela confusão, tinha-se a impressão que os cristãos seriam os vencedores. De fato, haviam desfeito a formação turca e circundado determinadas posições. Meu tio, com outros destemidos, tinha se lançado até sob as baterias inimigas, e os turcos as deslocavam para manter os cristãos sob o fogo. Dois artilheiros turcos giravam um canhão sobre rodas. Lentos como eram, barbudos, encapotados até os pés, pareciam dois astrônomos. Meu tio disse.

– Agora chego lá e dou um jeito neles. – Entusiasmado e inexperiente como era, não sabia que só se deve aproximar dos canhões pelo flanco ou pela parte da culatra. Ele saltou diante da boca de fogo, a espada desembainhada, e pensava que meteria medo

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naqueles dois astrônomos. Mas, ao contrário, eles desferiram contra ele uma bala em pleno peito. Medardo di Terralba voou pelos ares.

À noite, no momento da trégua, dois carros passaram recolhendo os corpos dos cristãos no campo de batalha. Um era para os feridos e o outro para os mortos. A primeira triagem era feita ali mesmo no campo.

– Este é meu, aquele é seu.

Aqueles que tinham alguma coisa para ser salva, eram colocados no carro dos feridos; os que não passavam de pedaços esfacelados, eram postos no carro dos mortos, para receberem uma sepultura abençoada; aquilo que não era mais nada, nem mesmo um cadáver, era deixado ali para servir de comida às cegonhas. Naquela altura, tendo em vista as perdas constantes, ficou estabelecido que deveria haver feridos em profusão. Os restos de Medardo foram considerados como os de um ferido e colocados no respectivo carro.

A segunda triagem era feita no hospital. Após as batalhas, o hospital militar ambulante oferecia uma visão ainda mais atroz do que a dos próprios combates. No chão havia uma longa fila de macas ocupadas por aqueles desventurados, e os médicos

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enfureciam-se ao seu redor, arrancando um das mãos do outro pinças, serras, agulhas, membros amputados e rolos de barbante. Morto por morto, faziam de tudo para ressuscitar cada um deles. Serra dali, costura daqui, enfaixa as feridas, virando as veias ao contrário como se fossem luvas e recolocando-as em seus devidos lugares, mais cheias de barbante do que de sangue, porém remendadas e fechadas. Quando um paciente morria, tudo aquilo que havia de bom servia para reconstituir os membros de um outro, e assim por diante. A coisa mais atrapalhada eram os intestinos: uma vez desenrolados, não se sabia mais como arrumá-los novamente.

Quando puxaram o lençol, o corpo do visconde apareceu horrendamente mutilado. Não lhe faltavam apenas um braço e uma perna, mas tudo aquilo que havia de tórax e de abdômen entre aquele braço e aquela perna tinha voado pelos ares, estilhaçado por aquele tiro certeiro. Da cabeça restavam um olho, uma orelha, uma bochecha, meio nariz, meia boca, meio queixo e meia testa: da outra metade da cabeça só restava algo disforme. Resumindo, só se salvara uma metade, a parte direita que, apesar de tudo, estava perfeitamente conservada, sem nem um arranhão sequer, com exceção daquela enorme fissura que a tinha separado da parte esquerda, que se fragmentara em mil pedaços.

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Os médicos estavam satisfeitos: – Hum, que caso interessante! Se não morresse naquele meio tempo, podiam tentar salvá-lo também. E puseram-se ao seu redor, enquanto os pobres soldados com uma simples flecha no braço morriam de septicemia. Costuraram, enxertaram, empastaram: sabe-se lá o que fizeram. O fato é que, no dia seguinte, meu tio abriu o único olho, a meia boca, dilatou a narina e respirou. A forte fibra dos Terralba havia resistido. Agora estava vivo e partido ao meio.

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III

Quando meu tio retornou a Terralba, eu tinha sete ou oito anos. Foi ao anoitecer; era outubro; o céu estava nublado. Durante o dia havíamos feito a vindima e através das fileiras de vinhas vimos, no mar cinzento, as velas de um navio que se aproximava e portava o pavilhão imperial. Naquela ocasião, a cada navio que se avistava, comentava-se: – É o Mestre Medardo que está voltando – não porque estivéssemos ansiosos por sua volta, mas sim para termos alguma coisa por que esperar. Daquela vez não nos enganáramos: a certeza nos veio à noite, quando um jovem chamado Fiorfiero, esmagando a uva em cima da dorna, gritou: – Oh, lá embaixo. – Já estava quase escuro e avistamos no fim do vale uma fileira de tochas acesas rumando para a vereda; e depois, quando passou pela ponte, distinguimos a liteira que estava sendo carregada. Não havia dúvidas: era o visconde que voltava da guerra.

A novidade se espalhou por toda a extensão do vale; o pátio do castelo ficou repleto de gente: famílias, criados, vindimadores, Aiolfo, meu avô, que há muito não descia mais, nem mesmo para o pátio. Cansado dos reveses da vida, havia renunciado às prerrogativas do título em favor de seu único filho homem, antes que ele partisse para a guerra. Agora a sua paixão pelos pássaros, que criava dentro do

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castelo num grande viveiro, tornava-se cada dia mais exclusiva: o velho havia levado para o viveiro até mesmo sua cama, e se trancafiara por lá, de onde não saía nem de dia, nem de noite. Entregavam-lhe as refeições, junto com a comida dos pássaros, através das grades do viveiro, e Aiolfo dividia tudo com aquelas criaturas. Pássava horas acariciando o dorso dos faisões, das rolas, enquanto aguardava que o filho voltasse da guerra.

Nunca tinha visto tanta gente reunida no pátio do nosso castelo: já havia passado o tempo, do qual eu apenas ouvira os relatos, das festas e das contendas entre vizinhos. E pela primeira vez reparei como estavam os muros e as torres em ruínas e quão lamacento o pátio, local onde costumávamos dar capim às cabras e encher a gamela dos porcos. Enquanto aguardavam, todos discutiam como o visconde Medardo estaria; há muito tempo recebêramos a notícia de que os turcos o haviam ferido gravemente, mas ninguém sabia ainda ao certo se estava mutilado, enfermo ou apenas deformado por cicatrizes: e agora, o fato de termos visto a liteira fazia-nos esperar pelo pior.

E eis que a liteira foi colocada no chão e, em meio à sombra negra, viu-se o brilho de uma pupila. A velha e imensa babá Sebastiana tentou aproximar-se, mas daquela sombra ergueu-se uma mão com um seco

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gesto de recusa. Em seguida, viu-se o corpo na liteira agitar-se num esforço anguloso e convulso e, diante de nossos olhos, Medardo di Terralba pôs-se de pé, apoiando-se numa muleta. Um manto negro com capuz descia-lhe da cabeça aos pés; a parte direita estava atirada para trás, descobrindo metade do rosto e da pessoa apoiada na muleta, enquanto que, do lado esquerdo, parecia que tudo estava escondido e envolto nas dobras e pregas daquela roupagem ampla.

Olhava para nós, que a sua volta formávamos um círculo, e ninguém pronunciava uma palavra; mas talvez, com aquele olhar fixo, não estivesse nos olhando, e sim querendo que nos afastássemos dele.

Uma lufada de vento veio do mar, e um galho estalou na parte superior de uma figueira como um lamento. O manto de meu tio ondulou; o vento inflava-o, retesava-o como se fosse uma vela, e poder-se-ia dizer que atravessava o seu corpo, ou melhor, que este corpo não existia realmente, e que o manto estava vazio como o de um fantasma. Depois, olhando melhor, vimos que lhe aderia como a uma haste de bandeira, e essa haste consistia no ombro, no braço, no quadril, na perna, em tudo aquilo que dele se apoiava na muleta: e o resto não existia.

As cabras observavam o visconde com seu olhar parado e inexpressivo, viradas, cada uma, numa

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posição diversa mas todas juntas umas das outras, com os dorsos dispostos num estranho desenho formado por ângulos retos. Os porcos, mais sensíveis e agitados, reclamaram, e fugiram batendo uns de encontro aos outros com as barrigas e, então, nem mesmo nós conseguimos mais esconder que estávamos apavorados.

– Meu filho! – gritou a babá Sebastiana, e levantou os braços. – Pobrezinho, infeliz!

Meu tio, contrariado por ter nos dado tal impressão, adiantou a ponta da muleta sobre o terreno e, com um movimento ritmado, dirigiu-se para a entrada do castelo. Contudo, sobre os degraus do portal encontravam-se os portadores da liteira sentados com as pernas cruzadas, uns sujeitos estranhos, meio nus, com brincos de ouro e o crânio raspado sobre o qual cresciam cristas ou tufos de cabelos. Ergueram-se e um deles, que usava trança e parecia ser o chefe, disse:

– Senhor, estamos esperando o pagamento.

– Quanto? – perguntou Medardo e dava a impressão de rir.

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– Vós sabeis qual o preço cobrado para o transporte de um homem numa liteira – disse o homem da trança.

Meu tio tirou uma bolsa da cintura e atirou-a, a tilintar, aos pés do carregador.

Este limitou-se a avaliar seu peso e exclamou:

– Senhor, mas isto é muito menos que a quantia combinada.

Medardo, enquanto o vento erguia as pregas de seu manto, disse:

– A metade. – Passou pelo carregador e, dando saltos com seu único pé, subiu os degraus, entrou pela imensa porta escancarada que dava para o interior do castelo, empurrou com golpes de muleta a pesada porta dupla que fechou com um estrondo, e ainda bateu o postigo, que tinha ficado aberto, desaparecendo de nossas vistas.

Continuamos a escutar, vindo lá de dentro, o barulho alternado do pé e da muleta, que se movimentavam pelos corredores na direção da ala do castelo onde se localizavam seus aposentos particulares, e também ali ouvimos o bater e o trancafiar de portas.

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Parado atrás das grades do viveiro, esperava-o o pai. Medardo nem se dera ao trabalho de por ali passar a fim de cumprimentá-lo: tinha se fechado em seus aposentos, sozinho. Não quis aparecer nem mesmo para a babá Sebastiana, que ficou por muito tempo batendo à sua porta e chorando por ele.

A velha Sebastiana era uma mulher imensa, que se vestia de negro e usava um véu, com um rosto rosado sem uma única ruga, à exceção daquela que quase lhe escondia os olhos; havia amamentado todos os jovens da família Terralba e dormido com todos os mais velhos; e também fechara os olhos de todos os mortos. Agora ia e voltava pelo pórtico, passando de um recluso ao outro, e não sabia o que fazer para ajudá-los.

No dia seguinte, como Medardo continuava a não dar sinal de vida, voltamos à vindima; contudo, não havia alegria, e nos vinhedos não se falava de outra coisa senão da sua sorte, não porque fosse muito querido, mas porque o assunto era atraente e misterioso. Somente a babá Sebastiana permanecia no castelo, atenta a cada ruído.

Mas o velho Aiolfo, quase prevendo que o filho voltaria muito triste e esquivo, havia muito ensinado a um de seus animais mais queridos, uma lavandeira, a

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voar até a ala do castelo onde se localizavam os aposentos de Medardo, então vazios, e a entrar pela janelinha de seu quarto. Naquela manhã, o velho abriu a portinhola do viveiro para a lavandeira, acompanhou seu vôo até a janela do filho, em seguida tornou a jogar comida para as pegas e as toutinegras, imitando os seus piados.

Dali a pouco, escutou o barulho de algo atirado contra os toldos. Inclinou-se para o lado de fora e, sobre a cornija do castelo, viu a sua lavandeira morta. O velho colocou-a na palma da mão e viu que uma asa estava despedaçada, como se tivessem tentado arrancá-la, uma patinha estava decepada, como se apertada entre dois dedos, e um olho estava extirpado. O velho apertou a lavandeira de encontro ao peito e começou a chorar.

Naquele mesmo dia deitou-se na cama, e os parentes, do lado de fora do viveiro, viram que estava muito mal. Contudo, ninguém pôde entrar para tratar dele porque tinha se trancafiado lá dentro e escondido a chave. Os pássaros voavam ao redor de seu leito. A partir do instante em que se deitara, todos tinham começado a voar e não queriam pousar, nem parar de bater as asas.

Na manhã seguinte, a babá, aproximando-se do viveiro, constatou que o visconde Aiolfo estava

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morto. Os pássaros estavam pousados sobre sua cama, como sobre um tronco a flutuar no meio do mar.

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IV

Após a morte de seu pai, Medardo começou. a sair do castelo. Mais uma vez foi a babá Sebastiana a primeira a se dar conta disto, certa manhã, ao encontrar as portas escancaradas e os aposentos desertos. Uma turma de criados foi mandada para os campos a fim de seguirem as pistas do visconde. Os criados corriam e passaram sob uma pereira que tinham visto, à noite, carregada de frutas temporãs ainda verdes.

– Olhem, lá em Cima – disse um dos criados. Viram as pêras que pendiam sob o céu da madrugada e, ao vê-las, ficaram aterrorizados. Porque as frutas não estavam inteiras, eram muitas metades de peras cortadas no sentido do comprimento, cada uma ainda presa no seu galho. Porém, de cada pêra só havia a metade da direita (ou da esquerda, segundo o lugar de onde eram vistas, mas as metades pertenciam todas ao mesmo lado) e a outra metade tinha sumido, cortada ou talvez mordida.

– O visconde passou por aqui! – disseram os criados. Claro, após ter passado tantos dias enclausurado e em jejum, naquela noite sentira fome e subira na primeira árvore que encontrara para comer seus frutos.

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Andando, os criados encontraram sobre uma pedra a metade de uma rã, ainda viva e pulando, graças à conhecida resistência dessa espécie.

– Estamos na trilha certa! – e prosseguiram. Perderam-se, pois não tinham visto entre as folhas um meio melão, e tiveram que voltar atrás até encontrá-lo.

Assim, dos campos passaram para o bosque e viram um cogumelo cortado ao meio, um chapéu-de-cobra, depois um outro, um vermelho venenoso e, à medida que caminhavam pelo bosque, continuaram encontrando, de vez em quando, estes cogumelos que surgiam da terra com meio caule e só abriam a metade da cúpula. Pareciam divididos por um corte nítido e, da outra metade, não se encontrava nem um fragmento. Eram cogumelos de todas as espécies: esclerodermos vulgares, amanitas, agáricos; e os venenosos eram praticamente da mesma quantidade dos comestíveis.

Seguindo estas pistas esparsas, os criados chegaram ao prado chamado “das Monjas”, onde havia um laguinho no meio do mato. Amanhecia, e, à beira do laguinho, a figura exígua de Medardo, envolta no manto negro, refletia-se na água onde flutuavam cogumelos brancos, amarelos ou esverdeados. Eram as metades dos cogumelos que ele tinha colhido e agora se espalhavam sobre aquela superfície

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transparente. Sobre a água os cogumelos pareciam inteiros, e o visconde os olhava. Os criados esconderam-se na outra margem do laguinho e não ousaram dizer nada, observando também os cogumelos flutuantes, até que perceberam que ali só havia cogumelos bons para serem comidos. E os venenosos? Se não os tinha atirado no lago, o que fizera deles, afinal? Os criados saíram em disparada por entre o bosque. Não tinham ido muito longe quando depararam, num atalho, com um menino carregando uma cesta: dentro estavam todos aqueles meios cogumelos venenosos.

Aquele menino era eu. À noite, brincava sozinho em volta do prado das Monjas, metendo medo em mim mesmo a surgir de repente de trás das árvores, quando encontrei meu tio pulando sobre um pé só, em meio ao prado iluminado pelo luar, com um cestinho enfiado no braço.

– Olá, tio! – gritei. Era aquela a primeira vez que conseguia cumprimentá-lo.

Ele pareceu muito contente em me ver.

– Estou procurando cogumelos – explicou-me.

– E conseguiu achar algum?

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– Veja – disse meu tio. Sentamo-nos às margens daquele laguinho. Ele fazia a seleção dos cogumelos; alguns eram atirados dentro d’água, outros deixados no cestinho.

– Tome – disse -, entregando-me o cestinho com os cogumelos por ele selecionados. – Coma-os fritos.

Gostaria de ter lhe perguntado por que, no seu cesto, só havia a metade de cada cogumelo; porém, compreendi que a pergunta teria sido pouco delicada e afastei-me correndo, após ter lhe agradecido. Estava indo embora para prepará-los fritos quando encontrei a turma de criados, e fiquei sabendo que os cogumelos eram venenosos.

A babá Sebastiana, ao tomar conhecimento daquela história, disse:

– Foi a metade ruim de Medardo que regressou. Hoje, veremos como se comportará com relação ao julgamento.

Naquele dia, devia ter lugar o julgamento de uma quadrilha de bandidos, detida pelos guardas do castelo no dia anterior. Os bandidos eram pessoas de nosso território e, portanto, cabia ao visconde julgá-los. Instaurou-se o tribunal, e Medardo sentou-se todo torto na sua cadeira, roendo uma unha. Chegaram os

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bandidos acorrentados: o chefe da quadrilha era aquele rapaz chamado Fiorfiero, que tinha sido o primeiro a avistar a liteira, enquanto pisoteava as uvas. Entrou a parte lesada. Era um séquito de cavaleiros toscanos que, a caminho de Potenza, ao atravessar nossos bosques, foi atacado e assaltado por Fiorfiero e sua quadrilha. Este defendeu-se alegando que aqueles cavaleiros tinham ido caçar ilegalmente em nossas terras; ele os havia detido e desarmado, julgando, justamente, que se tratasse de caça ilegal, já que os guardas não cuidavam de nada. Devemos esclarecer que naquela época os assaltos de quadrilhas eram uma atividade muito comum, para a qual a lei era clemente. Além disso, nosso território era favorável ao banditismo; assim sendo, até mesmo alguns membros de nossa família, sobretudo nos tempos tumultuados, uniam-se às quadrilhas dos bandidos. Da caça ilegal nem falo, era o delito mais leve que se podia imaginar.

Contudo, as apreensões da babá Sebastiana tinham fundamento. Medardo condenou Fiorfiero e toda a sua quadrilha à forca, por crime de rapina. Porém, como os assaltados eram, por sua vez, os reis da caça ilegal, condenou-os também a morrerem na forca. E para punir os guardas que haviam chegado tarde demais e não souberam evitar nem as más ações dos caçadores, nem as dos bandidos, a condenação também foi à morte por enforcamento.

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Eram, ao todo, cerca de vinte pessoas. Esta cruel sentença provocou consternação e sofrimento em todos nós, não tanto pelos cavaleiros toscanos, que ninguém tinha visto antes, mas sim pelos bandidos e guardas que eram pessoas queridas. Mestre Pietrochiodo, albardeiro e carpinteiro, ficou encarregado de construir a forca. Ele era um trabalhador sério e inteligente, que se dedicava totalmente a qualquer obra sua. Com muita tristeza, pois dois dos condenados eram parentes dele, construiu uma forca ramificada como uma árvore, cujas cordas subiam todas juntas, manobradas por apenas um guincho; era um instrumento tão grande e engenhoso que se podia enforcar, de uma só vez, um número muito maior de pessoas do que as condenadas, tanto assim que o visconde se aproveitou do fato e mandou dependurar dez gatos alternados a cada dois condenados. Os cadáveres mirrados e as carniças dos gatos balançaram durante três dias, e a princípio ninguém tinha coragem de olhá-los. Contudo, logo percebemos que aquela visão era imponente e inclusive o nosso julgamento dividia-se em sentimentos diversos, tanto que chegamos até a sentir desagrado quando resolvemos retirar os mortos e desmontar o descomunal aparato.

Aqueles eram tempos felizes para mim, sempre perambulando pelos bosques, acompanhando o doutor

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Trelawney, em busca de carapaças de animais marinhos que haviam se transformado em pedras. O doutor Trelawney era inglês. Tinha chegado ao nosso litoral após um naufrágio, em cima de um tonel de vinho bordeaux. Havia sido médico de bordo durante toda a vida e feito viagens longas e perigosas, entre as quais aquelas com o famoso capitão Cook, porém nunca tinha visto nada do mundo porque estava sempre nas cobertas jogando vinte-e-um. Tendo naufragado em nossas águas, encantara-se logo com o vinho tipo cancarone, o mais rascante e espesso de nossa região, e não sabia mais viver sem ele, tanto assim que sempre levava a tiracolo uma garrafa cheia. Tinha ficado em Terralba e tornara-se nosso médico, contudo não se preocupava com os doentes, mas sim com, as descobertas científicas que fazia e o mantinham sempre para lá e para cá – e eu com ele -, em campos e bosques, noite e dia. Primeiro uma doença dos grilos, moléstia imperceptível que somente um grilo em mil tinha e, ademais, sem lhe causar qualquer dano; e o doutor Trelawney queria procurá-los todos e descobrir a cura adequada. Em seguida, procurava os sinais do tempo em que nossas terras estavam cobertas pelo mar; então, andávamos carregando pedras e silícios que o doutor afirmava terem sido, anteriormente, peixes. Finalmente, sua última e grande paixão: os fogos-fátuos. Queria descobrir um modo de pegá-los e conservá-los, e com este objetivo passávamos as noites vagueando por

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nosso cemitério, aguardando que, entre as sepulturas de terra e de mato, se acendesse algum daqueles vagos clarões e, então, procurávamos atraí-los para nós, fazê-los correr atrás de nós e capturá-los, sem que se apagassem, dentro de recipientes que, de vez em quando, testávamos: sacos, frascos, garrafões sem palha, braseiros, escorredores de massa. O doutor Trelawney tinha ido morar em um casebre próximo ao cemitério, que anteriormente fora habitado pelo coveiro, naqueles tempos de tumulto, de guerras e de epidemias em que convinha manter um homem que só executasse aquele tipo de trabalho. Lá, o doutor havia instalado seu laboratório, com ampolas de todos os formatos para engarrafar os fogos, e redes como as de pesca para agarrá-los; os alambiques e cadinhos onde pesquisava como nasciam aquelas pálidas e minúsculas chamas das terras dos cemitérios e dos miasmas dos cadáveres. Porém, não era um homem que ficasse durante muito tempo absorvido nos seus estudos: largava tudo logo, saía, e íamos juntos em busca de novos fenômenos da natureza.

Eu era livre como o ar, pois não tinha pais e não pertencia nem à categoria dos criados, nem à dos patrões. Fazia parte da família dos Terralba apenas através de um reconhecimento tardio, contudo não tinha esse sobrenome e ninguém se dedicava à minha educação. -A minha pobre mãe era filha do visconde Aiolfo e irmã mais velha de Medardo, mas tinha

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manchado a honra da família fugindo com um caçador ilegal que veio a ser, depois, o meu pai. Tinha nascido na cabana do caçador, nos terrenos sob o bosque; e pouco depois, meu pai foi assassinado numa rixa, e a pelagra acabou com minha mãe, que tinha ficado sozinha naquela cabana miserável. Fui então acolhido no castelo porque meu avô Aiolfo ficou penalizado, e cresci sob os cuidados da grande babá Sebastiana. Lembro-me que quando Medardo era ainda um adolescente e eu uma criança, às vezes me deixava participar de seus folguedos como se tivéssemos a mesma situação social; depois a distância entre nós acentuou-se e eu fiquei relegado ao nível dos criados. Agora, encontrava no doutor Trelawney um companheiro como jamais tivera em minha vida.

O doutor estava com sessenta anos, porem era do meu tamanho; tinha um rosto todo encarquilhado como uma castanha seca, sob o tricórnio e a peruca; as pernas, que as polainas cobriam até a metade das coxas, pareciam mais longas, tão desproporcionais quanto as dos grilos, até mesmo devido aos largos passos que dava; e envergava uma casaca cor de rolinha com as guarnições vermelhas, sobre a qual levava, a tiracolo, a garrafa de vinho cancarone.

A sua paixão pelos fogos-fátuos impelia-nos a fazer longas caminhadas noturnas para alcançarmos os cemitérios das aldeias vizinhas, onde era possível ver,

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às vezes, chamas mais bonitas com relação à coloração e ao tamanho do que as do nosso campo-santo abandonado. Mas, ai de nós se esta nossa manobra fosse descoberta pelos camponeses: certa vez, tomando-nos por ladrões sacrílegos, fomos perseguidos por vários quilômetros por um grupo de homens armados com foices e forcados.

Estávamos num local íngreme e cheio de torrentes: eu e o doutor Trelawney pulávamos as pedras apressadamente mas sentíamos os camponeses enfurecidos aproximando-se cada vez mais. Num ponto chamado Salto da Carranca, uma pontezinha feita de troncos atravessava um abismo profundissimo. Ao invés de passarmos pela pontezinha, eu e o doutor nos escondemos sob um ressalto de rocha exatamente na beira do precipício, bem a tempo, pois os camponeses já se encontravam nos nossos calcanhares. Não nos viram e gritaram:

– Onde estão aqueles bastardos? – e passaram em fila, correndo pela ponte. Ouvimos um ruído seco e repentino. E, berrando, eles foram tragados pela torrente que deslizava, apavorados com o que podia ter-nos acontecido, sentimos o medo transformar-se em alívio por termos escapado ao perigo. Depois ficamos novamente apavorados diante do horrendo fim que tiveram os nossos perseguidores. Ousamos apenas nos debruçar e olhar para baixo, na escuridão,

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onde os camponeses tinham sumido. Erguendo os olhos, vimos o que restava da pontezinha: os troncos ainda estavam bem presos, porém partidos ao meio, como se tivessem sido serrados; nem podíamos explicar de outro modo como aquele pedaço grosso de madeira tinha cedido com uma ruptura tão perfeita.

– Isso foi obra de alguém que conheço – disse o doutor Trelawney, e eu também já havia compreendido.

Realmente, ouviu-se um rápido barulho de cascos e, à beira do barranco, apareceu um cavalo montado por um cavaleiro meio envolto num manto negro. Era o visconde Medardo, que com seu gélido sorriso triangular contemplava o trágico resultado da cilada, talvez imprevisto até para ele mesmo: sem dúvida, sua intenção era matar-nos e, ao contrário, acabou salvando nossas vidas. Tremendo, vimos quando se afastava, montado no cavalo negro que saltava pelas pedras como se fosse filhote de cabra.

Naquele tempo, meu tio andava sempre a cavalo: o albardeiro Pietrochiodo fizera uma sela especial, na qual ele era amarrado com correias a um dos estribos, enquanto que o outro era preso com um contrapeso. Ao lado da sela estavam enganchadas uma espada e uma muleta. E assim o visconde cavalgava usando um chapéu de abas largas e cheio de plumas cuja metade

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sumia sob um lado do manto sempre esvoaçante. Onde quer que se escutasse o barulho dos cascos de seu cavalo, todos desapareciam de vista, pior do que acontecia quando passava Calateo, o leproso, e levavam as crianças e os animais, e temiam até pelas plantas, pois a maldade do visconde não poupava ninguém e podia desencadear-se, de um momento ao outro, por meio de ações as mais imprevistas e incompreensíveis.

Nunca tinha estado doente e, portanto, jamais tivera necessidade dos tratamentos do doutor Trelawney; contudo, num caso desses, não sei como o doutor teria se arranjado, ele que fazia de tudo para evitar o meu tio e nem mesmo desejava ouvir a sua voz. Quando se comentava sobre o visconde e sua crueldade, o doutor Trelawney sacudia a cabeça e franzia os lábios murmurando:

– Oh, oh, oh!... Zzt, zzt, zzt!.... – como também acontecia quando alguém dizia algo inconveniente. E, com o intuito de mudar de assunto, começava a relatar algumas das viagens do capitão Cook. Certa vez tentei lhe perguntar como, segundo ele, meu tio podia viver assim mutilado, porém o inglês nada mais soube me dizer além de seus “Oh, oh, oh!.... Zzt, zzt, zzt!!..’ Ao que parecia, sob o ponto de vista da medicina, o caso de meu tio não despertava qualquer tipo de interesse no doutor; porém, eu começava a achar que talvez ele

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tivesse se tornado médico somente por imposição familiar ou por conveniência, e que pouco se importava realmente com tal ciência. Talvez a sua, carreira como médico de bordo fosse apenas devida à sua habilidade no jogo de vinte-e-um, razão pela qual os mais famosos navegadores, a começar pelo capitão Cook, disputavam entre si o direito de tê-lo como parceiro de partida.

Uma noite, o doutor Trelawney pescava com a rede os fogos-fátuos no nosso cemitério, quando se viu diante de Medardo di Terralba, que deixava seu cavalo se alimentar sobre os túmulos. O doutor estava muito confuso e atemorizado, porém o visconde aproximou-se dele e perguntou, com a pronúncia defeituosíssima de sua boca partida ao meio:

– Doutor, o senhor está caçando borboletas noturnas?

– Oh, Milord – respondeu o doutor com um fio de voz -, ob, oh, não procuro exatamente borboletas, Milord.. Fogos-fátuos, entende? Fogos-fátuos...

– Compreendo, os fogos-fátuos. Muitas vezes também me perguntei qual seria a sua origem.

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– Há muito tempo, modestamente, isto é objeto de meus estudos, Milord... – observou Trelawney, um pouco encorajado por aquele tom benevolente.

Medardo contorceu num sorriso o seu meio rosto anguloso, cuja pele era esticada como a de um morto.

– Como um estudioso, o senhor merece todo e qualquer auxílio – disse-lhe. – É uma lástima que este cemitério, abandonado como está, não seja um bom campo para os fogos-fátuos. Contudo, prometo-lhe que amanhã mesmo tratarei de ajudá-lo naquilo que me for possível.

O dia seguinte era aquele estabelecido para a administração da justiça, e o visconde condenou à morte uma dezena de camponeses porque, segundo seus cálculos, não tinham entregue toda a parte da colheita que deviam ao castelo. Os mortos foram sepultados na terra das covas rasas, e o cemitério lançou todas as noites uma grande quantidade de fogos-fátuos. O doutor Trelawney estava muito assustado com aquela ajuda, embora a julgasse muito útil para os seus estudos.

Nestas trágicas conjunturas, mestre Pietrochiodo já havia há muito aperfeiçoado a sua arte na construção das forcas. Agora, eram verdadeiras obras-primas de carpintaria e de mecânica; e isto não apenas com

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relação às forcas, mas também aos cavaletes, aos guinchos e aos outros instrumentos de tortura com os quais o visconde Medardo arrancava as confissões aos acusados. Eu ia com muita freqüência à oficina de mestre Pietrochiodo, porque era muito bonito vê-lo trabalhar com tamanha habilidade e paixão. Porém, uma aflição torturava sempre o coração do albardeiro. Aquilo que ele construía servia de patibulo para inocentes.

– O que posso fazer – pensava – para que me mandem construir algo criativo, mas que tenha uma finalidade diversa? E quais podem ser os novos mecanismos que eu construiria com mais prazer?

Porém, não encontrando respostas para estas perguntas, procurava afastá-las da mente, dedicando-se a fazer as criações mais belas e engenhosas que lhe era possível.

– Procure não se lembrar para que servirão dizia para mim também. – Olhe-os apenas como mecanismos. Está vendo como são bonitos?

Eu olhava aquelas arquiteturas de traves, aquele sobe e desce das cordas, aquelas ligações de guinchos e roldanas e esforçava-me para não visualizar ali os corpos inertes, porém, quanto mais me esforçava, mais era obrigado a pensar, e dizia para Pietrochiodo:

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– Como posso?

– E como posso eu, rapaz – replicava ele como posso eu, então?

Contudo, aquela época, malgrado as torturas e os medos, tinha a sua parte de alegria. A hora mais linda era quando o sol já estava alto e o mar dourado; as galinhas cacarejavam depois de terem posto os ovos, e através dos caminhos estreitos ouvia-se o som do berrante do leproso. Este passava todas as manhãs recolhendo as esmolas para seus companheiros de desventura. Chamava-se Galateo e trazia dependurado ao pescoço um berrante, cujo som avisava, a distância, a sua aproximação. As mulheres escutavam o berrante e colocavam no canto do murinho ovos, ou abobrinhas, ou tomates, e, às vezes, um coelhinho sem a pele; e depois corriam para se esconder, levando consigo as crianças, uma vez que ninguém deve ficar nas ruas quando o leproso passa; a lepra é transmitida a distância e até mesmo vê-la representa um perigo. Galateo, precedido pelos sons agudos do berrante, vinha bem devagarinho pelos caminhos desertos, com um comprido bastão na mão, e a roupa toda esfarrapada que esbarrava no chão. Tinha longos cabelos louros estupendos a um rosto redondo e branco, já um pouco maltratado pela lepra. Recolhia os donativos, colocava-os na cesta de vime que

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carregava nas costas e gritava alguns agradecimentos na direção das casas dos camponeses escondidos, com sua voz melosa e sempre acrescentando alguma alusão engraçada ou malévola.

Naquela época, nas regiões próximas ao mar, a lepra era um mal difuso e, perto de nós, havia uma aldeiazinha, Pratofungo, onde só viviam leprosos, aos quais éramos obrigados a fazer donativos, recolhidos justamente por Galateo. Quando alguém que morava perto do mar ou no campo era atacado pela lepra, abandonava parentes e amigos e dirigia-se para Pratofungo, onde devia passar o resto da vida à espera de que a moléstia o devorasse. Falava-se de grandes festas com que se acolhiam os recém-chegados: de longe ouvia-se, até a noite, sons e cantos vindos das casas dos leprosos.

Falava-se muitas coisas a respeito de Pratofungo, se bem que nenhuma das pessoas sadias tivesse estado lá algum dia; mas todos eram unânimes em afirmar que em tal aldeia a vida era uma perpétua pândega. A aldeia, antes de se tornar asilo dos leprosos, tinha sido um antro de prostitutas para onde se dirigiam marinheiros de todas as raças e credos; e parecia que as mulheres ainda conservavam os costumes libidinosos daquela época. Os leprosos não cultivavam a terra, à exceção de uma videira de uva fragola cujo vinho mantinha-os, o ano inteiro, num

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estado de leve embriaguez. A grande ocupação dos leprosos era tocar estranhos instrumentos inventados por eles, harpas em cujas cordas estavam dependurados muitos sininhos, e cantar em falsete, a pintar ovos de todas as cores.como se fosse uma Páscoa perpétua. Assim, consumindo-se ao som de músicas muito doces, com guirlandas de jasmim ao redor dos rostos desfigurados, esqueciam a comunidade humana da qual a moléstia os tinha separado.

Nenhum de nossos médicos jamais tinha querido tratar dos leprosos, porém, quando Trelawney estabeleceu-se entre nós, esperávamos que ele quisesse dedicar a sua ciência ao saneamento daquela praga em nossas regiões. Até eu compartilhava esta esperança no meu mundo infantil: há muito tempo sentia uma vontade louca de ir até Pratofungo para assistir às festas dos leprosos; e se o doutor se propusesse a experimentar seus remédios naqueles infelizes, talvez me levasse, algumas vezes, até a aldeia. Contudo, nada disto aconteceu: tão logo escutava o berrante de Galateo, o doutor Trelawney saía às carreiras e ninguém parecia ter mais pavor do contágio do que ele. Algumas vezes tentei interrogá-lo a respeito da natureza daquela moléstia, porém deu-me respostas evasivas e confusas, como se apenas a palavra “lepra” fosse suficiente para deixá-lo pouco à vontade.

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No fundo, não sei por que nós teimávamos em considerá-lo um médico: para os animais, sobretudo os menores, para as pedras, para os fenômenos naturais era todo atenção, mas os seres humanos e suas enfermidades enchiam-no de repugnância e pavor. Tinha horror a sangue, tocava os doentes apenas com a ponta dos dedos e, diante dos casos graves, tampava o nariz com um lenço de seda embebido em vinagre. Pudico como uma moça, enrubescia ao ver um corpo desnudo; caso se tratasse de uma mulher, mantinha os olhos baixos e gaguejava; mulheres, em suas longas viagens pelos oceanos, parecia nunca as ter conhecido. Felizmente, na nossa região, naquela época, os partos eram casos para as parteiras e não para os médicos, pois, caso contrário, sabe-se lá como teria fugido à obrigação.

Meu tio passou a provocar incêndios. No meio da noite, de repente, um feneiro de camponeses miseráveis queimava, ou uma árvore que se transformaria em madeira, ou um bosque inteiro. Então, ficávamos até amanhecer passando baldes de água de mão em mão para apagar as chamas. As vítimas eram sempre infelizes que haviam se desentendido com o visconde, devido a alguma de suas ordens cada vez mais severas e injustas, ou devido aos impostos que ele havia dobrado. Não se satisfazendo em incendiar os bens, começou a atear

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fogo nos povoados: ao que parecia, aproximava-se à noite, lançava tochas acesas sobre os telhados e depois fugia a cavalo; ninguém conseguiu jamais surpreendê-lo em ação. Uma vez morreram duas velhas; de outra feita um rapaz ficou com o crânio quase sem pele. O ódio contra ele crescia entre os camponeses. Seus mais obstinados inimigos eram as famílias de huguenotes que moravam nos casarios de Col Gerbido; lá os homens montavam guarda, revezando-se durante toda a noite, a fim de evitar os incêndios.

Sem nenhuma razão plausível, uma noite foi até as casas de Pratofungo, cujos tetos eram de palha, e atirou contra eles breu e fogo. Os leprosos não sofrem dor quando queimados e, se fossem surpreendidos pelas chamas durante o sono, certamente não teriam acordado mais. Porém, afastando-se a galope, o visconde percebeu que da aldeia vinha o som de um violino: os habitantes de Pratofungo velavam, absortos nas suas brincadeiras. Queimaram-se todos, porém não se sentiram mal e divertiram-se como de costume. Conseguiram apagar logo o incêndio; até as suas casas, talvez por estarem também contaminadas pela lepra, pouco sofreram a ação das chamas.

A maldade de Medardo voltou-se também contra sua propriedade: o castelo. O fogo iniciou-se na ala onde viviam os criados e ardia em meio aos gritos altíssimos de quem ali ficara aprisionado, enquanto o

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visconde foi visto cavalgando em direção aos campos. Era um atentado que ele planejara levar a cabo contra a vida de sua babá e mãe postiça Sebastiana. Com a obstinação autoritária que as mulheres tendem a manter sobre aqueles que viram pequeninos, Sebastiana nunca deixava de repreender o visconde a cada novo crime, embora todos estivessem convencidos de que sua natureza estava voltada para uma crueldade irreparável e insana. Sebastiana foi retirada gravemente ferida entre as paredes carbonizadas e forçada a ficar de cama durante vários dias até se recuperar das queimaduras.

Uma noite, a porta do quarto onde ela repousava abriu-se e o visconde surgiu ao lado de sua cama.

– Que manchas são estas no seu rosto, babá? – perguntou Medardo, apontando para as queimaduras.

– Uma marca de seus pecados, filho – disse a velha, tranqüila.

– Sua pele está retorcida e cheia de pintas; o que tem, babá?

– Um mal que não é nada, filho, comparado àquele que o espera no inferno, caso não se regenere.

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– Tem que ficar boa logo: não gostaria que se comentasse por aí sobre este mal que a acometeu...

– Não tenho mais que arranjar marido, por isso não preciso me preocupar com meu corpo. Basta-me ter a consciência tranqüila. Como seria bom se você pudesse dizer o mesmo.

– Ainda assim, o seu marido a espera, para levá-la com ele, não sabia?

– Não zombe da velhice, filho, você que teve a juventude mutilada.

– Não estou brincando, não, Escute, babá: o seu noivo está tocando embaixo da sua janela... Sebastiana aguçou o ouvido e escutou, do lado de fora do castelo, o som do berrante do leproso.

No dia seguinte, Medardo mandou chamar o doutor Trelawney.

– Apareceram umas manchas muito suspeitas, ninguém sabe dizer como, no rosto de uma velha criada nossa – disse ele ao médico. – Estamos todos apavorados que se trate de lepra. Doutor, confiamos na luz de sua sabedoria.

Trelawney curvou-se, balbuciando:50

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– Meu dever, Milord... sempre às suas ordens, Milord...

Virou-se, saiu, disparou castelo afora, levou consigo um barrilzinho de vinho cancarone e desapareceu nos bosques. Durante uma semana ninguém o viu. Quando retornou, a babá Sebastiana tinha sido mandada para a aldeia dos leprosos.

Havia deixado o castelo, certa noite ao pôr-do-sol, vestida de negro e com um véu na cabeça, levando uma trouxa dependurada no braço com todas as suas coisas. Sabia que a sua sorte estava marcada: devia seguir o caminho de Pratofungo. Deixou o quarto onde fora mantida até então e não encontrou ninguém nos corredores, nem nas escadas. Desceu, atravessou a corte, foi para o campo: tudo estava deserto, todos à sua passagem se retiravam e se escondiam. Ouviu um berrante modular uma chamada em apenas duas notas; mais à frente, no caminho, estava Galateo que erguia, na direção do céu., o seu instrumento. A babá dirigiu-se para onde ele estava a passos lentos; o caminho rumava para o poente; Galateo andou à sua frente por muito tempo, de vez em quando parava como se contemplasse os zangões zumbindo em meio às folhas, levantava o berrante e soava um acorde triste; a babá olhava os jardins e as ribeiras que estava abandonando, pressentia, por trás das cercas, a

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presença das pessoas que se afastavam dela, e retomava a caminhada. Sozinha, seguindo Galateo a distância, chegou a Pratofungo. Os portões da aldeia fecharam-se atrás dela enquanto as harpas e os violinos começavam a soar.

O doutor Trelawney tinha me causado uma grande desilusão. Não ter erguido um dedo para que a velha Sebastiana não fosse condenada ao leprosário mesmo sabendo que as suas marcas não eram de lepra – era um sinal de vilania e, pela primeira vez, senti aversão pelo doutor. Além disto, ao fugir para os bosques não me levara com ele, mesmo sabendo o quanto lhe teria sido útil como caçador de esquilos e colhedor de framboesas. Agora acompanhá-lo na procura de fogos-fátuos não me agradava tanto quanto antes e, muitas vezes, perambulava sozinho em busca de novas companhias.

As pessoas que mais me atraíam agora eram os huguenotes que moravam em Col Gerbido. Era gente que tinha fugido da França onde o rei mandava cortar em pedacinhos todo aquele que professava a religião deles. Tinham perdido, durante a travessia das montanhas, seus livros e objetos sacros, e agora já não tinham mais nem a Bíblia para ler, nem missa para celebrar, nem hinos para cantar, nem orações para rezar. Desconfiados, como todos aqueles que sofreram perseguições e que vivem entre pessoas de fé

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diferente, eles não quiseram mais receber nenhum livro religioso, nem escutar conselhos sobre o modo como celebrar seus cultos. Se alguém ia procurá-los dizendo ser um irmão huguenote, eles temiam que fosse um emissário do papa, disfarçado, e guardavam silêncio. Assim, tinham começado a cultivar as duras terras de Col Gerbido e, mulheres e homens, trabalhavam desde o amanhecer até depois do pôr-do-sol, na esperança de que fossem iluminados pela graça. Sem saberem o que era pecado, e para que não cometessem enganos, multiplicavam as proibições e limitavam-se a olhar um para o outro com olhar severo, observando se algum pequenino gesto não revelava uma intenção culpável. Recordando-se confusamente das discussões religiosas, abstinham-se de pronunciar a palavra Deus e qualquer outra expressão religiosa, por medo de o fazerem de modo sacrílego. Assim, não seguiam nenhuma norma de culto e, provavelmente, não ousavam nem mesmo formular pensamentos sobre questões de fé, embora mantivessem uma gravidade absorta como se estivessem sempre pensando nisso. Em compensação, as normas de sua agricultura exaustiva tinham alcançado, com o passar do tempo, um valor idêntico ao dos mandamentos, e o mesmo acontecia com relação aos seus hábitos de parcimônia e às virtudes caseiras das mulheres.

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Eram uma grande família cheia de netos e noras, todos altos e nodosos. Trabalhavam a terra sempre enfatiotados como se fossem-a uma festa, com roupas negras e abotoadas; os homens com seus chapéus de abas largas abaixadas e as mulheres com toucas brancas. Os homens usavam barbas compridas, andavam sempre com a espingarda a tiracolo, porém comentava-se que nenhum deles jamais dera um só tiro, a não ser caçando pássaros, isto porque era contra os mandamentos.

Dos planaltos calcários onde cresciam com grande dificuldade algumas videiras insignificantes e pés de trigo mal desenvolvidos, elevava-se a voz do velho Ezequiel, que berrava sem cessar, com os punhos erguidos no ar, trêmulo e com sua barba de bode, revirando os olhos sob o chapéu em forma de funil: Peste e carestia! Peste e carestia! – enquanto gritava com os parentes que, inclinados, trabalhavam: – Vamos com esta enxada, Giona! Arranque o mato, Susanna! Tobia, espalhe o esterco! E dava mil ordens e fazia mil recriminações com a aversão de quem se dirige a um bando de ineptos e aproveitadores. E depois de ter dito aos berros as mil coisas que deviam fazer para que o campo não ficasse abandonado, punha-se a trabalhar também, afastando aqueles que se achavam ao seu redor sem parar de berrar: – Peste e carestia!

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Sua mulher, ao contrário, nunca gritava e parecia, diversamente dos outros, segura de uma religião sua, secreta, obstinada nos mínimos detalhes, mas sobre a qual nada revelava a ninguém. Bastava fixar em qualquer pessoa aqueles seus olhos que eram só pupilas, e falar, contraindo os lábios: – Irmã Raquel, você acredita nisso? Irmão Aarão, você acredita nisso? – para que os raros sorrisos desaparecessem das bocas dos parentes e os rostos voltassem a ter uma expressão grave e atenta.

Certa noite, cheguei a Col Gerbido no momento em que os huguenotes estavam rezando. Não diziam uma palavra sequer, nem mantinham as mãos postas, nem se ajoelhavam; ficavam eretos, formando uma fila no vinhedo, os homens de um lado, as mulheres do outro e no fundo o velho Ezequiel com a barba batendo-lhe sobre o peito. Olhavam para a frente, com as mãos fechadas que pendiam dos longos braços nodosos; contudo, embora parecessem absortos, não perdiam a noção daquilo que os circundava. Tobia esticou uma das mãos e tirou uma lagarta de uma videira, Raquel com apenas um golpe esmagou um caracol, e o próprio Ezequiel tirou inesperadamente o chapéu da cabeça para espantar os pássaros que tinham pousado sobre os pés de trigo.

Em seguida, entoaram um salmo. Não se lembravam das palavras, mas apenas da melodia, e

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assim mesmo não muito bem, de modo que, com freqüência, alguém desafinava ou talvez todos desafinassem sempre, porém não desistiam nunca e, terminada uma estrofe, começavam outra, sempre sem pronunciar as palavras.

Senti um puxão no braço e deparei com o pequeno Esaú que me fazia um sinal para ficar calado e acompanhá-lo. Esaú tinha a minha idade; era o último filho do velho Ezequiel; dos seus só tinha a expressão do rosto que era dura e tensa, porém com um toque de malícia marota. Afastamo-nos do vinhedo, de quatro, enquanto ele me dizia:

– Vão ficar assim durante meia hora; que amolação! Venha ver a minha choupana.

A choupana de Esaú era secreta. Escondia-se ali para que os seus parentes não o encontrassem e não o mandassem pastorear as cabras ou tirar os caracóis das hortaliças. Passava ali dias inteiros no ócio, enquanto seu pai o procurava, berrando pelos campos.

Esaú tinha um estoque de tabaco e, presos a uma parede, havia dois compridos cachimbos de cerâmica. Encheu um deles e queria que eu fumasse.

Ensinou-me a acendê-lo e soltava grandes rolos de fumaça com uma avidez tal como eu jamais vira num

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jovem. Aquela era a primeira vez que eu fumava; sentime logo mal e desisti. Para me reanimar, Esaú pegou uma garrafa de aguardente e serviu-me um copo, o que me fez tossir e revolveu meus intestinos. Ele a bebia como se fosse água.

– Eu custo muito a me embriagar – disse ele.– Onde arranjou todas estas coisas que tem na

choupana? -, perguntei-lhe.

Esaú fez um movimento rápido com os dedos:– São roubadas.

Tinha se tornado o chefe de uma turma de jovens católicos que saqueavam os campos ao redor; não se limitavam a arrancar todas as frutas das árvores, mas também entravam nas casas. e nos galinheiros. E praguejavam mais alto e com mais freqüência do que, até mesmo, mestre Pietrochiodo: conheciam todas as blasfêmias católicas e huguenotes e as trocavam entre si.

– Mas cometo também muitos outros pecados – explicou-me. – Levanto falso testemunho, me esqueço de regar as vagens, não respeito pai e mãe, volto tarde para casa. Agora quero cometer todos os pecados que existem; mesmo aqueles que dizem não ser eu ainda bastante adulto para entendê-los.

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– Todos os pecados? – indaguei. – Até matar? Ele encolheu os ombros. – Matar, por enquanto, não me convém e não me adianta.

– Dizem que meu tio mata e manda matar por gosto – disse-lhe, para ter alguma coisa minha para contrapor a Esaú.

Esaú cuspiu.

– Um gosto idiota – disse.

Então trovejou e começou a chover lá fora.

– Vão procurá-lo – disse a Esaú. Comigo ninguém se preocupava nunca, porém eu via como os outros garotos eram sempre procurados pelos pais, sobretudo quando o tempo ficava feio, e aquilo parecia-me uma coisa importante.

– Esperemos por aqui mesmo até parar de chover – disse Esaú. – Enquanto isto, vamos jogar dados. Pegou uns dados e uma pilha de dinheiro. Dinheiro eu não tinha, assim sendo joguei apitos, facas e estilingue, e perdi tudo.

– Não fique desanimado – disse finalmente Esaú. – Saiba: eu trapaceio.

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Lá fora, trovões, relâmpagos e chuva a cântaros. A choupana de Esaú foi se alagando. Ele colocou a salvo o tabaco e outras coisas, e disse:

– Vai chover assim a noite inteira; convém corrermos para casa para nos abrigarmos melhor. Chegamos ao casebre do velho Ezequiel ensopados e enlameados. Os huguenotes estavam sentados ao redor da mesa, à luz de uma lamparina, e procuravam se recordar de algum episódio da Bíblia, tendo o cuidado de contá-lo como coisa que lhes parecesse ter lido uma vez, de significado e verdade incertos.

– Peste e carestia! – gritou Ezequiel, batendo com o punho sobre a mesa. A lamparina se apagou quando seu filho Esaú e eu aparecemos no vão da porta.

Eu comecei a bater o queixo. Esaú encolheu os ombros. Lá fora tinha-se a impressão que todos os trovões e raios se descarregavam sobre Col Gerbido. Enquanto reacendiam a lamparina, o velho, com os punhos erguidos, enumerava os pecados de seu filho como os mais nefandos que um ser humano jamais tivesse cometido, mas só conhecia uma pequenina parte deles. A mãe concordava, muda, e todos os outros filhos, genros, noras e netos escutavam, o queixo enfiado no peito e o rosto escondido entre as mãos. Esaú mordiscava uma maçã como se aquele sermão nada tivesse a ver com ele.

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Eu, entre aqueles trovões e a voz de Ezequiel, tremia como uma vara verde.

A repreensão foi interrompida pelo retorno dos homens de guarda, com sacos fazendo às vezes de capuz, todos encharcados de chuva. Os huguenotes montavam guarda, em turnos, durante toda a noite, armados de espingardas, foices e forcados para o feno, a fim de evitar as incursões predatórias do visconde, já então um inimigo declarado.

– Pai! Ezequiel! – disseram os huguenotes. Está uma noite de cão. Certamente o manco não aparecerá. Podemos ir para casa, pai?

– Não há sinais do estropiado por aí? – indagou Ezequiel.

– Não, pai, a não ser o fedor de queimado que os raios deixam. Esta não é noite para o caolho.

– Fiquem em casa, então, e mudem de roupa.

Que a tempestade traga paz ao descadeirado e a nós.

O manco, o estropiado, o caolho, o descadeirado eram alguns dos apelidos com que os huguenotes se referiam a meu tio; nunca os ouvi chamá-lo por seu

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verdadeiro nome. Eles revelavam nessas conversas uma espécie de familiaridade com o visconde, como se já o conhecessem há muito tempo, quase como se ele fosse um velho inimigo. Trocavam entre si pequenas frases acompanhadas de piscadelas de olhos e risadinhas. – Eh, eh, eh, o estropiado... Isso mesmo, o meio surdo... – como se todas as tenebrosas loucuras de Medardo fossem, para eles, claras e previsíveis.

Estavam conversando assim quando, em meio à tempestade, escutaram alguém bater à porta.

– Quem bate com um tempo destes? – perguntou Ezequiel.

– Rápido, abram a porta.

Abriram e na soleira estava o visconde, de pé sobre a única perna, envolto no manto negro gotejante, com o chapéu de plumas ensopado.

– Amarrei meu cavalo no seu estábulo – disse. – Acolham-me a mim também, eu lhes imploro. A noite está horrível para o viajante.

Todos fitaram Ezequiel. Eu tinha me escondido debaixo da mesa, para que meu tio não descobrisse que freqüentava aquela casa inimiga.

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– Sente-se diante da lareira – disse Ezequiel. – O hóspede, nesta casa, é sempre bem-vindo.

Junto à soleira havia uma porção de lençóis daqueles que se estendem sob as árvores para recolher as azeitonas; Medardo acomodou-se ali e adormeceu.

Na escuridão, os huguenotes juntaram-se em torno de Ezequiel.

– Pai, agora temos o manco em nossas mãos! – murmuraram. – Devemos deixá-lo escapar? Devemos permitir que cometa outros delitos contra os inocentes? Ezequiel, não chegou a hora de o descadeirado pagar pelo que já fez?

O velho levantou os punhos contra o teto.

– Peste e carestia! – gritou, caso se possa dizer que grita quem fala sem quase emitir sons mas com toda a sua força. – Na nossa casa, hóspede algum jamais foi maltratado. Eu mesmo ficarei de guarda a fim de proteger o sono dele.

E com a espingarda a tiracolo, postou-se ao lado do visconde deitado. O olho de Medardo se abriu.

– O que faz aqui, mestre Ezequiel?

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– Protejo o seu sono, hóspede. Muitos são aqueles que o odeiam.

– Sei disto – retrucou o visconde -, não durmo no castelo porque temo que os criados me assassinem enquanto estou adormecido.

– Também aqui na minha casa não o amamos, mestre Medardo. Porém, esta noite, será respeitado.

O visconde ficou um pouco em silêncio, em seguida falou:

– Ezequiel, quero me converter à sua religião.

O velho não disse nada.

– Estou rodeado de gente desleal – continuou Medardo. – Gostaria de me livrar de todos eles e chamar os huguenotes para morarem no castelo. O senhor, mestre Ezequiel, seria o meu ministro. Declararia Terralba território huguenote e daria início à guerra contra os príncipes católicos. O senhor e seus parentes seriam os chefes. Está de acordo, Ezequiel? Pode me converter?

O velho estava rígido, imóvel, com a alça do fuzil atravessada em seu peito.

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– Já me esqueci de muitas coisas da nossa religião – disse -, para que ouse converter alguém. Permanecerei nas minhas terras com a minha consciência. O senhor, nas suas com a sua.

O visconde apoiou-se sobre o cotovelo.

– Sabe, Ezequiel, que ainda não comuniquei à Inquisição a presença de hereges em meu território? E que as suas cabeças mandadas de presente ao nosso bispo me fariam cair logo nas boas graças da Cúria?

– Nossas cabeças ainda estão presas em nossos pescoços, senhor – retrucou o velho -, porém há algo que é ainda mais difícil de arrancar de nós.

Medardo pôs-se de pé e abriu a porta.

– Dormirei mais à vontade sob aquele carvalho lá embaixo do que na casa de inimigos. – E saiu debaixo de chuva.

O velho chamou os outros:

– Meus filhos, estava escrito que quem apareceria primeiro para nos visitar seria o manco. Agora, já se foi; o caminho da nossa casa está desimpedido; não vos desespereis, filhos: talvez um dia passará um viajante melhor.

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Todos os huguenotes barbudos e as mulheres com as toucas inclinaram a cabeça.

– E se também não aparecer ninguém – acrescentou a mulher de Ezequiel -, ficaremos no nosso lugar.

Naquele momento um fulgor rasgou o ceu e o trovão fez estremecer as telhas e as pedras das paredes. Tobias gritou:

– O raio caiu sobre o carvalho! Agora está pegando fogo!

Todos correram para o lado de fora carregando lanternas e viram a enorme árvore carbonizada pela metade, da copa à raiz; a outra metade estava intacta. Ao longe, sob a chuva, escutaram o barulho dos cascos de um cavalo e, sob a claridade de um relâmpago, viram a figura de um cavaleiro delgado, coberto por um manto.

– O senhor nos salvou, pai – disseram os huguenotes. – Obrigado, Ezequiel.

O céu começava a clarear; a alvorada chegara. Esaú chamou-me a um lado.

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– Diga-me se não são uns idiotas – disse baixinho para mim -, olhe o que fiz nesse meio tempo.

– Mostrou-me um punhado de objetos brilhantes.

– Tirei todas as tachas de ouro que havia na sela, enquanto o cavalo estava amarrado no estábulo. Diga– me se não foram uns idiotas por não pensarem nisto.

Este modo de agir de Esaú não me agradava, e o de seus parentes deixava-me intimidado. E então preferi ficar sozinho e ir até a marina para juntar moluscos e pescar caranguejos. Enquanto estava sobre uma ponta de recife tentando desencovar um caranguejinho, vi, na água calma abaixo de mim, o reflexo de uma lâmina sobre a minha cabeça e, com o pavor, caí no mar.

– Segure aqui – disse o meu tio, porque era ele quem tinha se aproximado pelas minhas costas. E queria que agarrasse a sua espada, pelo lado da lâmina.

– Não, me arranjarei sozinho – respondi, e trepei sobre um esporão que um braço de água separava do resto dos recifes.

– Gosta de caranguejos? – perguntou Medardo. – Pois eu gosto dos polvos – e mostrou-me a sua presa.

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Eram enormes polvos marrons e brancos. Estavam cortados em dois com um golpe de espada, contudo continuavam a movimentar os tentáculos.

– Assim, se todas as coisas inteiras pudessem ser partidas ao meio – disse meu tio, agachado sobre o recife, acariciando aquelas metades convulsas de polvo -, todos teriam possibilidade de sair de sua unidade obtusa e ignorante. Eu era inteiro e todas as coisas eram, para mim, naturais e confusas, estúpidas como o ar; acreditava ver tudo, porém era apenas aparência. Se algum dia se transformar na metade de si mesmo, e faço votos que isto lhe aconteça, rapaz, compreenderá coisas que estão além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de si e do mundo, porém a metade que sobrar será mil vezes mais profunda e preciosa. E você também desejará que tudo seja partido ao meio e estropiado à sua semelhança, porque só existe beleza, sabedoria e justiça naquilo que é feito aos pedaços.

– Hum, hum – dizia eu -, que monte de caranguejos há aqui! – e fingia estar interessado apenas na minha caça, para manter-me distante da espada de meu tio. Não voltei para a beira da praia até que se tivesse distanciado com seus polvos. No entanto, o eco de suas palavras continuava a perturbar-me e não encontrava resposta para esta sua fúria divisória. Para qualquer lado que me voltasse, Trelawney,

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Pietrochíodo, os huguenotes, os leprosos, todos estavam sob o jugo do homem partido ao meio, era ele o patrão a quem serviam e do qual não conseguiam se libertar.

Amarrado à sela de seu cavalo saltador, Medardo di Terralba subia e descia bem cedinho através dos penhascos, e debruçava-se sobre o vale perscrutando com olho de ave de rapina. Assim, viu a pastorinha Pâmela em meio a um Prado junto com suas cabras.

O visconde pensou: “Entre os meus profundos sentimentos, não possuo nada que corresponda àquilo que os inteiros denominam amor. E se para eles um sentimento tão tolo assim tem tamanha importância, o que para mim poderá corresponder a isso será, sem dúvida alguma, magnífico e terrível.”

E resolveu apaixonar-se por Pâmela que, gorduchinha e descalça, tendo sobre o corpo um vestidinho simples cor-de-rosa, estava deitada sobre a relva, cochilando, falando com as cabras e cheirando as flores.

Contudo, os pensamentos que ele tinha friamente formulado não nos devem enganar. Ao ver Pâmela, Medardo tinha sentido um movimento confuso no sangue, algo que há muito tempo não experimentava,

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e tinha chegado àquele raciocínio com uma espécie de pressa amedrontada.

Ao meio-dia, ao voltar para casa, Pâmela viu que todas as margaridas dos prados tinham apenas a metade das pétalas e a outra metade da corola tinha si~ do despetalada.

– Meu Deus do céu! – exclamou. – De todas as moças do vale, tinha que acontecer logo comigo!

– Havia compreendido que o visconde se apaixonara por ela. Colheu todas as meias-margaridas, levou-as para casa e colocou-as entre as páginas do missal.

Na parte da tarde foi ao prado das Monjas para pastorear os patos e levá-los ao laguinho. O prado estava salpicado de florezinhas brancas, mas estas também estavam seccionadas como as margaridas, como se parte das pétalas tivesse sido cortada com uma tesourada.

– Pobre de mim! – lamentou-se. – Sou eu mesma quem ele quer! – E colheu as flores partidas ao meio, formando um ramo para pôr na moldura do espelho da cômoda.

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Depois não pensou mais naquilo, prendeu a trança em volta da cabeça, tirou o vestido e tomou banho no lago junto com seus patos.

À noite, voltando para casa pelo prado, viu que estava repleto de dentes-de-leão, também chamados “amor-dos-homens”. E Pâmela reparou que tinham perdido as pluminhas de um lado só, como se alguém tivesse se deitado no chão e soprado sobre uma parte, ou com meia boca apenas. Pâmela colheu algumas daquelas meias esferas brancas, soprou-as, e suas macias pluminhas voaram para longe.

– Pobre de mim – disse -, ele me quer mesmo. Como acabará isto?

O casebre de Pâmela era tão pequeno que depois de ter levado as cabras para o andar de cima e deixado os patos na parte de baixo, não cabia mais nada. Era circundado por abelhas, porque também havia colméias. E debaixo da terra havia uma porção de formigueiros, bastava pousar a mão em qualquer lugar para erguê-la negra e repleta de formigas. Desse jeito, a mãe de Pâmela dormia no palheiro, o pai num tonel vazio e Pâmela numa rede armada entre uma figueira e uma oliveira.

Pâmela parou na soleirada porta. Ali estava uma borboleta morta. Uma asa e metade do corpo tinham

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sido esmagados com uma pedra. Pâmela soltou um grito e chamou o pai e a mãe.

– Quem esteve aqui? – perguntou Pâmela.

– O nosso visconde passou por aqui, ainda há pouco – responderam-lhe os dois. – Disse que estava perseguindo uma borboleta que o tinha mordido.

– E desde quando borboleta morde alguém? perguntou Pâmela.

– Ora, nós também lhe fizemos esta pergunta.– A verdade é – disse Pâmela -, que o visconde

apaixonou-se por mim e devemos estar preparados para o pior.

– Ha, ha, não fantasie, não exagere – responderam os velhos, como sempre costumam responder os velhos, quando não são os jovens que lhes respondem assim.

No dia seguinte, quando chegou à pedra onde costumava se sentar para pastorear as cabras, Pâmela soltou um berro. Restos horrendos encontravam-se sobre a pedra: uma metade de um morcego e a metade de uma água-viva, uma destilando sangue negro e a outra uma matéria viscosa, uma com a asa aberta e a outra esparramando franjas gelatinosas. A pastorinha

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entendeu que era uma mensagem. Queria dizer: “Encontro esta noite à beira-mar!” Pâmela tomou coragem e foi.

Sentou-se à beira do mar sobre as pedras, escutando o rumor da onda branca. Em seguida ouviu um tropel e Medardo surgiu a galope pela beira. Parou, soltou-se e desceu da sela.

– Pâmela, eu resolvi me apaixonar por você disse ele.

– E é por isso – protestou – que despedaça todas as criaturas da natureza?

– Pâmela – suspirou o visconde -, não temos nenhuma outra linguagem para nos falarmos a não ser esta. Todo o encontro de dois seres no mundo é uma dilaceração. Vem comigo, tenho conhecimento deste mal e estará mais segura comigo do que com qualquer outro; porque eu pratico o mal como todos o fazem; contudo, diversamente dos outros, tenho a mão firme.

– E estraçalharia também, a mim como as margaridas ou as águas-vivas?

– Não sei o que farei com você. Sem dúvida o fato de a possuir haverá de me possibilitar coisas que nem sequer imagino. Eu a levarei para o castelo e a

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manterei lá, ninguém mais a verá, e teremos dias e meses para entender o que deveremos fazer e inventar sempre novas maneiras de estarmos juntos.

Pâmela estava deitada sobre o cascalho, e Medardo tinha, se ajoelhado a seu lado. Falando, gesticulava, contornando-a com a mão, mas sem a tocar.

– Pois muito bem; antes de mais nada devo saber o que faria comigo. E bem que me poderia dar uma amostra agora para que eu decida se devo ou não ir para o castelo.

O visconde aproximou lentamente a sua mão pequena e adunca da face de Pâmela. A mão tremia e não se sabia se estava estendida para fazer uma carícia ou um arranhão. Porém nem tinha chegado a tocála quando encolheu a mão de repente e ergueu-se.

– É no castelo que a quero – disse, montando com dificuldade. – Vou preparar a torre onde viverá. Deixo que pense mais um dia sobre o assunto e depois deverá ter tomado a sua decisão. – E assim falando meteu as esporas no cavalo e disparou pela praia afora.

No dia seguinte, Pâmela subiu como de hábito na amoreira para colher seus frutos e, em meio à copa, escutou gemidos e um frenético bater de asas. Por

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pouco não despencou da árvore de tanto susto. Num ramo alto havia um galo amarrado pelas asas, e lagartas enormes, azuis e peludas, o estavam devorando: um ninho de processionárias, insetos nocivos que vivem nos pinheiros, tinha sido colocado exatamente sobre a sua cabeça.

Era, sem dúvida, outra mensagem horrível do visconde. E Pâmela interpretou-a: “Amanhã, ao amanhecer, nos veremos no bosque.”

Com a desculpa de encher um saco com pinhas, Pâmela foi até o bosque, e Medardo surgiu de repente, por detrás de um tronco, apoiado na sua muleta.

– Então – perguntou a Pâmela -, resolveu ir para o castelo?

Pâmela estava deitada sobre as ramas dos pinheiros.

– Decidi não ir – disse, virando-se só um pouco. – Se me quer, venha me encontrar aqui no bosque.

– Irá para o castelo. A torre onde irá viver já está preparada e ali será dona de tudo.

– O senhor quer me manter prisioneira ali e depois, quem sabe?, deixar que um incêndio me consuma ou

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os ratos me roam. Não, não. Já lhe disse: serei sua se o quiser, mas aqui sobre as ramas dos pinheiros.

O visconde tinha se agachado junto à cabeça dela. Tinha uma rama de pinheiro na mão: aproximou-a de seu pescoço e passou-a ao redor. Pâmela percebeu que tinha ficado toda arrepiada, mas não se mexeu. Via o rosto do visconde inclinado sobre ela, aquele perfil que continuava sendo um perfil mesmo quando visto de frente, e aquela meia fieira de dentes descobertos por um sorriso anguloso. Medardo apertou a rama no punho e espatifou-a. Pôs-se de pé.

– É fechada no castelo que quero tê-la, é fechada no castelo!

Pâmela percebeu que podia se arriscar, e mexia os pés descalços no ar, dizendo:

– Aqui, no bosque, não digo que não; trancafiada, nem morta.

– Saberei muito bem levá-la comigo! – disse Medardo, colocando a mão sobre o dorso do cavalo que tinha se aproximado como se casualmente passasse por ali. Subiu no estribo e esporeou, retirando-se a galope por entre as veredas da floresta.

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Naquela noite, Pâmela dormiu na sua rede pendurada entre a oliveira e a figueira e, pela manhã, que horror! encontrou no colo uma carniça pequena e sanguinolenta. Era a metade de um esquilo, cortado ao meio como de hábito, mas com a cauda fulva intacta.

– Meu Deus, pobre de mim! – disse aos pais. – Este visconde não me deixa viver.

O pai e a mãe passaram de mão em mão a carniça do esquilo.

– No entanto – disse o pai -, deixou a cauda inteira. Talvez seja um bom sinal...

– Talvez ele esteja ficando bom... – disse a mãe.

– Sempre corta tudo em duas metades – disse o pai -, mas aquilo que o esquilo tem de mais bonito, a cauda, ele respeita...

– Esta mensagem talvez signifique – observou a mãe – que tudo aquilo que você tem de bom e de belo ele respeitará...

Pâmela pôs as mãos na cabeça.

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– Que coisa escuto de vocês, meu pai e minha mãe! Há algo de estranho por aqui: o visconde conversou com vocês...

– Conversar não conversou – disse o pai mas nos mandou dizer que quer vir aqui e que vai dar um jeito na nossa pobreza.

– Pai, se vier falar com você, descubra as colméias e deixe que as abelhas o ataquem.

– Minha filha, talvez mestre Medardo esteja ficando melhor... – disse a velha.

– Mãe, se aparecer para falar com você, amarre-o no formigueiro e deixe-o lá.

Naquela noite, o palheiro onde dormia a mãe pegou fogo e o tonel onde dormia o pai espatifou-se. De manhã, os dois velhinhos contemplavam os restos do desastre quando apareceu o visconde.

– Sinto muito tê-los assustado esta noite – disse porém não sabia como abordar o assunto. O fato é que gosto de sua filha Pâmela, e quero levá-la comigo para o castelo. Portanto, peço-lhes, formalmente, que me dêem a sua mão. A vida dela mudará, e também a de vocês.

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– Imagine se não ficaríamos contentes, senhor! – disse o velhinho. – Porém, se soubesse que gênio tem a minha filha! Veja só, disse para atiçarmos as abelhas das colmeias em cima do senhor..

– Imagine só, senhor... – disse a mãe -, imagine que ela mandou que o amarrássemos no formigueiro...

A sorte é que Pâmela voltou mais cedo para casa naquele dia. Encontrou o pai e a mãe amarrados e amordaçados, um numa colmeia, a outra sobre o formigueiro. E a sorte foi que as abelhas conheciam o velho e as formigas tinham mais o que fazer do que morder a velha. Assim, pôde salvar os dois.

– Viram como o visconde ficou bom? – perguntou Pâmela.

Mas os dois velhinhos engendravam alguma coisa. E no dia seguinte, amarraram Pâmela e trancafiaram-na em casa com os animais; e dirigiram-se ao castelo para dizer ao visconde que se queria a sua filha podia mandar buscá-la, que eles estavam dispostos a entregá-la a ele.

Porém, Pâmela sabia conversar com seus animais. Os patos soltaram-na dos nós com bicadas e as cabras, com chifradas, arrombaram a porta. Pâmela fugiu, levou consigo a cabra e a pata preferida, e foi viver no

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bosque. Ficou numa gruta que somente ela e um menino conheciam, e este levava-lhe, comida e notícias.

Aquele menino era eu. A vida era bela com Pâmela no bosque. Levava-lhe frutas, queijo e peixes fritos, e ela, em troca, dava-me algumas xícaras de leite de cabra e alguns ovos da pata. Quando ela tomava banho nos lagos e nos córregos, eu montava guarda para que ninguém a visse.

Às vezes o meu tio passava pelo bosque, contudo mantinha-se ao largo, se bem que manifestasse a sua presença de forma triste, como de costume. Às vezes uma avalanche de pedras caía bem junto a Pâmela e seus animais; outras vezes, um tronco de pinheiro no qual ela se encostava cedia, solapado na base por golpes de machado; e ainda outras vezes, descobria-se uma fonte poluída por restos de animais mortos.

Meu tio tinha começado a caçar, com uma balestra que conseguia manobrar com um só braço. No entanto, tinha se tornado ainda mais taciturno e engenhoso, como se novas penas corroessem aquele rebotalho de seu corpo.

Um dia, o doutor Trelawney andava comigo pelos campos quando o visconde veio a galope em nossa direção e investiu o cavalo de encontro a ele, fazendo-

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o cair. O cavalo parou com a pata sobre o peito do inglês, e meu tio. disse:

– Quero que me explique uma coisa, doutor. Sinto como se a perna que não tenho estivesse cansada de tanto andar. O que pode ser isto?

Trelawney atrapalhou-se e balbuciou algo, como de hábito, e o visconde afastou-se a galope. Porém a pergunta deve ter impressionado o doutor, que começou a refletir sobre a questão, com as mãos na cabeça. Jamais o vira tão interessado numa questão que envolvesse a medicina humana.

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VII

Ao redor de Pratofungo cresciam moitas de hortelã, pimenta e rosmaninho, e não se sabia se eram silvestres ou se faziam parte de uma horta de ervas aromáticas. Eu perambulava por ali com o peito cheio do ar adocicado, procurando o caminho para ver a velha Sebastiana.

Desde que Sebastiana havia desaparecido pelo caminho que levava à aldeia dos leprosos, lembrava-me com muito mais freqüência da minha condição de órfão. Sentia-me desesperado por não saber nada sobre ela; pedia notícias a Galateo, gritando de cima da copa de uma árvore quando o via passar; mas Galateo era inimigo das crianças que, às vezes, lhe atiravam lagartixas vivas lá das copas das árvores, e dava-me respostas escarnecedoras e incompreensíveis, com a sua voz melosa e estridente. E, agora, a curiosidade de entrar em Pratofungo juntava-se à vontade de reencontrar a babá, e perambulava inquieto em meio às moitas recendentes.

E eis que de um monte de tomilho ergueu-se uma figura usando roupa clara, com um chapéu de palha, que se pôs a caminhar na direção da aldeia. Era um velho leproso. Queria pedir-lhe notícias da babá e, aproximando-me apenas o suficiente para me fazer ouvir, disse, sem gritar: – Hei, senhor leproso!

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Contudo, naquele momento, talvez desperta por minhas palavras, bem pertinho de mim, outra pessoa ergueu parte do corpo e espreguiçou-se. Tinha o rosto todo enrugado como uma casca seca, uma barba rala, branca e lanosa. Tirou do bolso um apito e soprou-o na minha direção, como se zombasse de mim. Dei-me conta, então, que naquela tarde ensolarada vários leprosos estavam deitados entre as moitas. Agora levantavam-se bem devagarinho, metidos em seus camisolões de cor clara e andavam, contra a luz, rumo a Pratofungo, carregando nas mãos instrumentos musicais ou apetrechos de jardinagem, fazendo barulho com eles. Eu tinha recuado para afastar-me daquele homem barbudo, porém quase acabei caindo em cima de uma leprosa sem nariz que estava se penteando em meio às folhas de um loureiro. Por mais que pulasse pelas moitas, sempre deparava com outros leprosos, e percebi que meus passos só podiam me levar em direção a Pratofungo, cujos tetos de palha enfeitados com bandeirinhas coloridas já estavam agora muito próximos, aos pés daquele declive.

Os leprosos só se voltavam na minha direção de vez em quando, com piscadelas de olhos e acordes de gaita, porém tinha a impressão de que exatamente eu era o centro daquela caminhada, e que estavam me levando a Pratofungo como um animal capturado. Na aldeia, as paredes das casas eram pintadas de lilás e

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numa janela uma mulher meio maltrapilha, com manchas roxas no rosto e no peito, segurando uma lira, gritou: – Os jardineiros voltaram! – e tocou a lira. Outras mulheres apareceram nas janelas e nos mirantes agitando chocalhos e cantando: – Sejam bemvindos, jardineiros!

Eu tomava cuidado para me manter no meio daquela viela sem tocar em ninguém; porém, vi-me como que numa encruzilhada, com leprosos à minha volta, homens e mulheres sentados nas soleiras de suas casas, com os camisolões rasgados e desbotados, através dos quais viam-se os tumores e as partes íntimas, e com flores de pilriteiro e anemonas entre os cabelos.

Os leprosos davam um pequeno concerto que diria ser em minha homenagem. Alguns inclinavam os violinos na minha direção com movimentos exagerados dos arcos, outros, assim que olhava para eles, faziam um barulho parecido com o das rãs, outros mostravam-me estranhos fantoches que subiam e desciam por um fio. O concerto era feito exatamente de todos esses pequenos gestos e sons disparatados, porém havia uma espécie de estribilho que era repetido de quando em quando: – O pintinho sem mancha,foi procurar amoras e se manchou.

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– Estou procurando a minha babá – disse bem alto a velha Sebastiana. – Sabem onde está? Caíram na gargalhada, com aquele seu ar esperto e maligno.

– Sebastiana! – gritei. – Sebastiana! Onde está você?

– Aqui, menino – disse um leproso. – Fique sossegado. – E apontou para uma porta.

A porta abriu-se e por ela saiu uma mulher esverdeada, talvez sarracena, seminua e tatuada, tendo sobre o corpo uma porção de rabiolas de pipa, que iniciou uma dança libidinosa. Não compreendi muito bem o que aconteceu depois. Homens e mulheres atiraram-se uns por cima dos outros e começaram aquilo que, mais tarde, vim a saber que se tratava de uma orgia.

Encolhi-me todo, tentando me esconder, quando repentinamente a grande e velha Sebastiana destacou-se daquele círculo.

– Seus imundos – disse. – Tenham ao menos um pouco de respeito por uma alma inocente. Segurou-me por uma das mãos e levou-me dali enquanto eles cantavam: O pintinho sem mancha foi procurar amoras e se manchou.

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Sebastiana usava um vestido feito com um tecido roxo-claro, de feitio quase monacal, e algumas manchas já alteravam suas maçãs do rosto sem rugas. Sentia-me feliz por ter reencontrado a babá, mas desesperado por ela ter segurado a minha mão e, sem dúvida, me contaminado com a lepra. E disse-lhe isto.

– Não tenha medo – retrucou Sebastiana -, meu pai era um pirata e meu avô um eremita. Conheço as propriedades de todas as ervas contra as moléstias, sejam nossas ou mouras. Eles esfregam o orégano e a malva pelo corpo; eu, ao contrário, bem quietinha, preparo para mim tisanas de borragem e mastruço, por isso a lepra nunca me atacará.

– Mas, e essas manchas que vejo no seu rosto, babá? – perguntei, bastante aliviado mas não totalmente persuadido.

– É colofónio. Para que pensem que eu também estou leprosa. Vem comigo e lhe darei para beber uma das minhas tisanas, bem quente, porque para se andar por aqui, toda prudência é pouca.

Tinha me levado para a sua casa, um casebre um pouco afastado, limpo, com a roupa dependurada; e conversamos.

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– E Medardo? E Medardo? – indagava ela, e cada vez que eu falava me tirava a palavra da boca.

– Ah, que patife! Ah, que malandrinho, Apaixonado! Oh, pobre moça! E por aqui, não imagina! Se soubesse quantas coisas desperdiçam! Coisas que deixamos de comer para dar a Galateo, e sabe o que fazem com elas por aqui? Aquele tal de Galateo não presta pra nada, sabe? Um sujeito mau, e não é só isso! As coisas que fazem à noite! E de dia, então! E estas mulheres, desavergonhadas como ninguém! Se ao menos soubessem arrumar as coisas, mas nem isto! Bagunceiras e maltrapilhas! Ah!, disse-lhes isto bem na cara... E elas, sabe o que me responderam?

Muito contente por ter feito esta visita à babá, fui, no dia seguinte, pescar enguias.

Lancei a linha num laguinho da torrente, enquanto esperava, adormeci. Não sei quanto tempo dormi; um barulho despertou-me. Abri os olhos e vi uma mão erguida sobre a minha cabeça e, sobre aquela mão, uma aranha peluda e vermelha. Virei-me e ali estava meu tio com seu manto negro.

Assustado, pus-me de pé com um pulo, porém naquele instante a aranha mordeu a mão de meu tio e

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desapareceu mais do que depressa. Meu tio levou a mão aos lábios, chupou de leve o ferimento e disse:

– Você estava dormindo e vi uma aranha venenosa descendo daquele galho direto para o seu pescoço. Coloquei minha mão na sua frente e veja o que aconteceu: fui mordido.

Não acreditei numa só palavra; por três vezes já tinha atentado contra a minha vida com métodos parecidos. Mas, realmente, aquela aranha tinha mordido a mão dele e esta começava a inchar.

– Você é meu sobrinho – disse Medardo.

– Sou – concordei um pouco surpreso porque era a primeira vez que demonstrava me reconhecer.

– Reconheci-o logo – disse ele. E acrescentou:

– Ah, aranha! Essa é a única mão que tenho e você a quer envenenar! Mas, não há dúvida, é melhor eu ter sido mordido na mão do que este menino no pescoço.

Que eu soubesse, nunca o meu tio havia falado assim. A dúvida de que estivesse falando a verdade e que, de repente, tivesse ficado bom passou-me pela cabeça, mas logo afastei isso do pensamento: fingimentos e ardis eram habituais nele. Sem dúvida, parecia estar muito diferente, com uma expressão que

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não era mais tensa e cruel, mas sim lânguida e aflita, talvez devido ao medo e à dor da mordida. Contudo, o que me dava aquela impressão eram também suas roupas empoeiradas e um pouco diferentes das que costumava usar: o seu manto negro estava um pouco rasgado, e a gola cheia de folhas secas e cascas de castanhas grudadas; a roupa também não era de veludo negro, como de costume, mas de fustão surrado e desbotado, e a perna não estava enfiada na bota de couro de cano alto, mas numa meia de lã listada de azul e branco.

Para demonstrar que não estava interessado nele, fui ver se uma enguia não teria abocanhado a minha isca. Não havia nenhuma enguia, porém deparei com um anel de ouro e diamante enfiado no anzol. Puxei a linha para fora d’água e sobre a pedra vi o brasão dos Terralba.

O visconde seguia-me com os olhos e disse:– Não se surpreenda. Passando por aqui, vi uma

enguia debatendo-se no anzol, fiquei com tanta pena que a soltei; depois, pensando no mal que meu gesto faria ao pescador, desejei compensá-lo com o meu anel, última coisa de valor que me resta.

Fiquei boquiaberto. Medardo prosseguiu:

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– Ainda não sabia que o pescador era você. A seguir encontrei-o adormecido no meio da relva e o prazer de vê-lo transformou-se logo em preocupação por causa daquela aranha que descia sobre você. O resto, já sabe. – E assim falando olhou, com tristeza, a mão inchada e roxa.

Podia ser que tudo não passasse de uma sucessão de cruéis enganos; mas eu pensava como seria bonita uma inesperada mudança de seus sentimentos e quanta alegria também proporcionaria a Sebastiana, a Pâmela, a todas as pessoas que sofriam por sua crueldade.

– Tio – disse a Medardo -, espere-me aqui. Vou correndo procurar a babá Sebastiana que conhece todas as ervas e pedirei a ela que me dê uma que cure picada de aranha.

– A babá Sebastiana... – murmurou o visconde, deitado com a mão sobre o peito. – Como está ela, afinal?

Não confiava nele a ponto de revelar que Sebastiana não tinha sido contaminada pela lepra, e limitei-me a dizer: – Ah, mais ou menos. Já estou indo. E afastei-me correndo, desejando acima de tudo perguntar a Sebastiana o que pensava a respeito destes estranhos fenômenos.

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Encontrei a babá em seu casebre. Estava ofegante devido à corrida e à pressa, por isso fiz-lhe um relato um tanto confuso; contudo, a velha mostrou-se mais interessada na picada do que nos atos de bondade de Medardo.

– Uma aranha vermelha, foi o que disse? Sim, sim, conheço a erva adequada... Certa vez, um lenhador com o braço inchado... Ficou bom, foi o que falou? Ora, o que quer que eu lhe diga? Sempre foi um rapaz assim, você também tem que saber como lidar com ele... Mas onde enfiei a erva? Basta fazer um emplastro. Desde pequeno sempre foi um patife, o Medardo... Pronto eis aqui a erva, eu a tinha posto dentro de um saquinho... Porém, é sempre assim: quando se machucava vinha chorar na barra da saia da babá... A picada é profunda?

-A mão esquerda está inchada assim respondi-lhe.

– Ah, ah, menino... – A babá riu. – A esquerda... E onde Mestre Medardo tem a mão esquerda? Deixou-a lá na Boémia com aqueles turcos, que o diabo os carregue, deixou lá toda a metade esquerda do seu corpo...

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– É, é isso mesmo – concordei com ela -, mas ainda assim... ele estava lá, eu estava aqui, ele estava com a mão virada assim... Como é possível?

– Agora já não diferencia a esquerda da direita? – observou a babá. – E aprendeu isto quando tinha cinco anos... Não conseguia entender mais nada. Sem dúvida, Sebastiana tinha razão, eu, no entanto, lembrava de tudo ao contrário.

– Leve esta erva para ele, direitinho – disse a babá, e eu saí correndo.

Cheguei ofegante ao rio, mas meu tio não se encontrava mais lá. Olhei por todos os cantos da redondeza: tinha desaparecido com a mão inchada e envenenada.

Caía a noite e eu perambulava em meio às oliveiras. E eis que o vejo, envolvido no manto negro, de pé próximo à margem, apoiado num tronco. Estava de costas para mim e olhava na direção do mar. Senti-me dominar pelo pavor novamente; com dificuldade e com um fio de voz, consegui dizer:

– Tio, aqui está a erva para a picada...

O meio rosto virou-se logo, contraído por uma careta horrível.

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– Que erva? Que picada? – berrou.

– A erva para curar... – disse.

Mas aquela expressão doce de antes havia desaparecido, tinha sido um momento passageiro; agora, talvez, ela reaparecia em um sorriso amplo, porém via-se perfeitamente bem que era fingimento.

– Está bem... muito bem... coloque-a no buraco daquele tronco... irei apanhá-la mais tarde... disse.

Obedeci e meti a mão no buraco. Era um ninho de marimbondos. Voaram todos na minha direção. Comecei a correr, seguido pelo enxame, e atirei-me dentro d’água. Nadei por debaixo d’água e consegui dispersá-los. Erguendo a cabeça, escutei a risada tétrica do visconde, que se afastava.

Mais uma vez tinha conseguido nos enganar. Contudo, havia muitas coisas que eu não entendia e fui procurar o doutor Trelawney para trocarmos idéias a respeito. O inglês estava na sua casinha de coveiro, à luz de uma lamparina, debruçado sobre um livro de anatomia humana, coisa rara.

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– Doutor – perguntei-lhe -, já aconteceu alguma vez de um homem picado por uma aranha vermelha ter saído incólume?

– Aranha vermelha? Foi o que disse? – o doutor deu um pulo. – Quem mais a aranha vermelha picou?

– O meu tio, o visconde – respondi-lhe -, e já tinha levado para ele a erva da babá quando ele, que agora parecia bom, voltou a ser mau e recusou o meu auxílio.

– Ainda há pouco tratei do visconde, cuja mão havia sido picada por uma aranha vermelha – disse Trelawney.

– E diga-me, doutor: ele lhe pareceu bom ou mau?

Então o doutor contou-me como tudo tinha acontecido.

Depois de eu ter deixado o visconde deitado sobre a relva com a mão inchada, o doutor Trelawney passara por lá. Deu-se conta da presença do visconde e, dominado, como sempre, pelo medo, tentou se esconder atrás das árvores. Porém Medardo tinha ouvido passos; levantou-se e gritou– – Quem está aí? O inglês pensa: “Se descobre que sou eu quem se esconde, sabe-se lá o que vai aprontar contra mim!” –

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e foge para não ser reconhecido. Contudo, tropeça e cai no laguinho da torrente. Embora tivesse passado a vida em navios, o doutor Trelawney não sabe nadar, debate-se no meio do laguinho e grita por socorro. Então o visconde disse: – Espere-me!

E vai até a margem, entra n’água, segurando-se, com a mão doendo, à raiz de uma árvore que aflora na superfície, e estica o pé até que o doutor possa agarrá-lo. Comprido e fino como é, faz as vezes de uma corda para que o doutor possa alcançar a margem.

O doutor se salva e balbucia: – Oh, oh, Milord... muito obrigado, realmente, Milord... como posso... E espirra bem no rosto do visconde, pois pegara um resfriado.

– Saúde! – diz Medardo -. Mas cubra-se, por favor. – E coloca-lhe nos ombros o seu manto.

O doutor tenta se desvencilhar, mais confuso do que nunca. E o visconde lhe diz:

– Pode ficar com ele, é todo seu.

Então, Trelawney percebe a mão inchada de Medardo.

– Qual foi o bicho que o picou?94

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– Uma aranha vermelha.

– Deixe-me tratar disso, Milord.

E leva-o ate a casinha de coveiro, onde trata da sua mão com remédios e a enfaixa. Enquanto isto, o visconde conversa com ele cheio de humanidade e de cortesia. Despedem-se com a promessa de que em breve iriam se rever e reforçar os laços de amizade.

– Doutor! – exclamei, após ter escutado o seu relato. – O visconde de quem o senhor tratou, voltou logo depois a ficar dominado por sua loucura cruel e mandou que eu colocasse a mão num vespeiro.

– Não aquele de quem tratei – disse o médico, e piscou o olho.

– O que quer dizer com isto?

– Vai saber logo. Agora não conte nada para ninguém. E deixe-me estudar, pois tempos difíceis se aproximam.

O doutor Trelawney me deixou de lado: aprofundou-se naquela sua incomum leitura do tratado de anatomia humana. Devia ter em mente algum plano, e durante todos os dias que se seguiram, manteve-se reticente e absorto.

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Contudo, começavam a chegar notícias de vários lugares sobre a dupla natureza de Medardo. Crianças perdidas no bosque eram alcançadas pelo meio homem de muleta e, apavoradas, eram levadas por sua mão até em casa e dele recebiam figos e filhos; pobre viúvas eram ajudadas por ele ao transportarem molhos de lenha; cães mordidos por víboras eram tratados, presentes misteriosos eram encontrados pelos pobres nos peitoris das janelas e nas soleiras das portas, árvores frutíferas arrancadas pelo vento eram endireitadas e escoradas antes que os proprietários saíssem de suas casas.

Porém, ao mesmo tempo, as aparições do visconde meio envolto no manto negro marcavam acontecimentos tétricos: crianças raptadas eram mais tarde encontradas presas em grutas obstruídas por pedras; avalanches de troncos e pedras despencavam sobre as velhinhas; abóboras que tinham acabado de amadurecer eram espatifadas em mil pedaços por puro espírito de destruição.

A palestra do visconde já há muito atingia apenas as andorinhas; e de um modo que não as matava, mas somente as feria e estropiava. Contudo, agora começavam a aparecer no céu andorinhas com as patinhas enfaixadas e presas a talas, ou com as asas coladas ou emplastadas; havia todo um bando de

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andorinhas cuidadas desse modo que voavam juntas e com prudência, como se fossem convalescentes de um hospital de passarinhos, e, coisa inacreditável, comentava-se que o próprio Medardo era o médico delas.

Certa vez, um temporal surpreendeu Pâmela com sua cabra e sua pata num local longínquo e agreste. Sabia que ali por perto havia uma gruta, embora pequena, somente uma minúscula cavidade na rocha, e para lá se dirigiu. Viu que saía, lá de dentro, uma bota rota e remendada, e observou um meio corpo encolhido e envolto no manto negro. Já se preparava para fugir, porém o visconde já a tinha visto e, saindo sob a chuva ruidosa, disse-lhe:

– Venha, minha jovem, abrigue-se aqui.

– Não, não me abrigarei aí – disse Pâmela porque só cabe uma pessoa, e o senhor quer me ver esmagada.

– Não tenha medo – retrucou o visconde. Permanecerei do lado de fora e você poderá ficar à vontade, junto com sua cabra e sua pata.

– A cabra e a pata vão acabar se molhando.

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– Verá como também podemos abrigá-las. Pâmela, que tinha ouvido os comentários sobre os estranhos acessos de bondade do visconde, falou:

– Vejamos, então. – Encolheu-se dentro da gruta, colocando-se bem juntinho dos dois animais.

O visconde, todo empertigado diante da entrada, mantinha o manto como se fora um toldo, para que nem mesmo a pata e a cabra se molhassem.

Pâmela olhou a mão dele que segurava o manto, ficou por um momento pensativa, começou a olhar as próprias mãos, comparou uma à outra, e depois explodiu numa gargalhada.

– Estou contente ao vê-la alegre, garota – disse o visconde -, mas, se me permite perguntar-lhe, por que está rindo?

– Rio porque entendi aquilo que está deixando todos os meus companheiros malucos.

– E o que é?

– Que o senhor é um pouco bom e um pouco mau. Agora tudo é natural.

– E por quê?98

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– Porque me dei conta de que o senhor é a outra metade. O visconde que vive no castelo, aquele mau, é uma metade. E o senhor é a outra metade, que todos pensavam. que se tivesse perdido na guerra e agora voltou. É uma metade boa.

– É muita gentileza. Obrigado.

Oh, é assim mesmo, não estou querendo elogiá-lo.

Eis, portanto, a história de Medardo, como Pâmela descobriu naquela noite. Não era verdade que a bala do canhão tivesse estilhaçado parte de seu corpo: ele tinha sido separado em duas metades; uma foi encontrada pelas pessoas do exército que recolhiam os corpos; a outra ficou sob uma pilha de restos mortais de cristãos e turcos e não foi localizada. No meio da noite, passaram pelo campo dois eremitas, não se sabe muito bem se fiéis à religião verdadeira ou necromantes, os quais, como acontece a determinadas pessoas nas guerras, tinham se limitado a viver nas terras desertas entre os dois campos e talvez, comentava-se agora, tentassem servir ao mesmo tempo à Trindade cristã e ao Alá de Maomé. Aqueles eremitas,, na sua estranha piedade, ao encontrarem o corpo de Medardo partido ao meio, levaram-no para sua caverna, e ali, com bálsamos e ungüentos por eles preparados, o medicaram e salvaram. Tão logo

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recobrou as forças, o ferido se despediu de seus salvadores e, partindo com sua muleta, percorreu durante meses e anos os países cristãos para retornar ao seu castelo, maravilhando todas as pessoas ao longo do caminho com seus atos de bondade.

Após ter relatado a própria história para Pâmelaa, o meio-visconde bom pediu à pastorinha que lhe contasse a sua. Pâmela explicou como o Medardo mau a insidiava, como tinha fugido de casa e agora perambulava pelos bosques.

O Medardo bom comoveu-se com a história de Pâmela e partilhou sua piedade entre a virtude perseguida da pastorinha, a tristeza sem consolo do Medardo mau e a solidão dos pobres pais de Pâmela.

– Ora, aqueles dois! – exclamou Pâmela. Meus pais são dois velhos malandros. Não deve sentir pena deles.

– Ah, Pâmela, pense neles, como devem estar tristes agora na sua casa velha, sem ninguém que cuide deles e que trabalhe no campo e no estábulo.

– Queria que o estábulo lhes caísse sobre a cabeça? – exclamou Pâmela. – Começo a ver que o senhor é um pouco bondoso demais e, em vez de ficar zangado com sua outra metade por todas as coisas ruins que

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apronta, quase dá a impressão de também sentir pena dela.

– E como poderia deixar de sentir? Sei o que representa ser a metade de um homem, não posso deixar de sentir pena dele.

– Mas o senhor é diferente; também é um pouco maluco, porém é bom.

Então o bom Medardo disse:

– Ah, Pâmela, esta é a virtude de um ser partido ao meio: entender o sofrimento de cada pessoa e coisa do mundo diante da própria imperfeição. Eu estava inteiro e não entendia, movimentava-me surdo e incomunicável entre os sofrimentos e as feridas disseminados por todos os lados. Pâmela, não sou apenas eu um ser dividido e dilacerado, mas você também o é, assim como todo mundo. Portanto, possuo agora uma fraternidade que antes, inteiro, não conhecia: aquela com todas as mutilações e todas as carências do mundo. Se vier comigo, Pâmela, aprenderá a tolerar os males de cada um e a curar os seus ao curar os dos outros.

– Isto é muito bonito – disse Pâmela -, porém encontro-me numa situação dificílima, com aquele

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outro seu pedaço que se apaixonou por mim e não se sabe o que pretende fazer comigo.

Meu tio soltou o manto porque o temporal tinha parado.

– Também estou apaixonado por você, Pâmela. Pâmela saiu da gruta.

– Que alegria! O arco-íris está no céu e encontrei um novo apaixonado. Dividido este também, porém uma boa alma.

Caminhavam sob ramos ainda gotejantes por caminhos totalmente enlameados. A meia boca do visconde arqueava-se num doce e completo sorriso.

– Muito bem, o que faremos? – perguntou Pâmela.

– Acho que deveríamos ir à casa de seus pais, pobrezinhos, para ajudá-los um pouco em suas tarefas.

– Vai você, se está com vontade – disse Pâmela.

– Eu estou com vontade de ir, sim, querida retrucou o visconde.

– E eu fico aqui – replicou Pâmela, e parou ao lado da cabra e da pata.

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– O único meio de nos amarmos é praticando, juntos, boas ações.

– Que lástima! Pensava que houvesse outras maneiras.

– Adeus, querida. Vou lhe trazer um pedaço de torta de maçã. – E afastou-se pelo caminho, apoiando-se sobre a muleta.

– O que me diz disto, cabra? O que lhe parece, patinha? – perguntou Pâmela, sozinha com seus animais. – Será que só me aparecem tipos como esse?

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VIII

A partir do momento em que todos ficaram sabendo que a outra metade do visconde havia reaparecido, tão cheia de bondade quanto a primeira de maldade, a vida em Terralba modificou-se muito.

Pela manhã, eu acompanhava o doutor Trelawney em suas visitas aos doentes; porque o doutor, pouco a pouco, tinha recomeçado a praticar a medicina e a se dar conta dos muitos males que acometiam a nossa gente, a quem já faltava fibra, como conseqüência da longa carestia dos tempos passados; males com os quais nunca se preocupara antes.

Andávamos pelas veredas dos campos e víamos os sinais indicadores da presença prévia do meu tio. Isto é, meu tio bom, que todas as manhãs visitava não apenas os enfermos, mas também os pobres, os velhos, qualquer pessoa que tivesse necessidade de auxílio.

No pomar de Bacciccia, a romãzeira tinha as frutas maduras envoltas, uma a uma, em um pedaço de pano. Ficamos sabendo que Baccicia estava com dor de dente. Meu tio havia enfaixado as romãs para que não se abrissem e se esbagoassem agora que a enfermidade impedia que o proprietário saísse para colhê-las e também. como um aviso para que o doutor

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Trelawney fosse visitar o doente e levasse consigo o boticão.

O pároco Cecco tinha um girassol no terraço, mal desenvolvido e que nunca florescia. Naquela manhã, encontramos três galinhas amarradas ali, na grade; elas comiam vorazmente e deixavam seu estrume branco no vaso de girassol. Entendemos que o pároco devia estar com diarréia. Meu tio havia amarrado as galinhas para que adubassem o girassol, mas também para alertar o doutor Trelawney sobre aquele caso urgente.

Na escada da velha Giromina vimos uma fileira de caracóis que subia na direção da porta: caracóis dos grandões, daqueles que se comem cozidos. Era um presente que meu tio tinha trazido do bosque para Giromina, mas também um sinal de que sua doença cardíaca do coração tinha piorado e o doutor não devia fazer barulho ao entrar, para não assustá-la.

Todos esses sinais de comunicação eram usados pelo bom Medardo a fim de não alarmar os enfermos e também para que Trelawney soubesse do que se tratava, antes mesmo de entrar, e assim vencer a sua relutância em entrar em casa alheia e aproximar-se de doentes sem saber do que sofriam.

De repente, o alarme corria pelo vale:105

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– O Infeliz! O Infeliz está chegando!

Era a metade malvada de meu tio que tinha sido vista cavalgando pelos arredores. Então todos corriam para se esconder e, antes de qualquer outro, o doutor Trelawney, comigo em seus calcanhares.

Passávamos diante da casa de Giromina e, na escada, havia uma fileira de caracóis esmagados, cheios de gosma e pedaços de cascas.

– Já passou por aqui! Pernas pra que te quero! No terraço do pároco Cecco as galinhas estavam amarradas no gradil onde tinham sido colocados os tomates para secar, e bicavam toda aquela dádiva divina.

– Pernas!

No pomar de Bacciccia, as romãs estavam todas espatifadas no chão e dos ramos pendiam os pedaços dos panos vazios.

– Pernas!

Assim, vivíamos à mercê da caridade e do terror. O Bom (com era chamada a metade esquerda de meu tio, em oposição à infeliz, que era a outra) já era considerado como um santo. Os aleijados, os

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pobrezinhos, as mulheres traídas, todos aqueles que padeciam de algum mal corriam para junto dele. Ele poderia ter se aproveitado disto e se transformado no visconde. Porém, continuava a bancar o vagabundo, andando meio envolto em seu manto negro esfarrapado, apoiado na muleta, com a meia branca e azul cheia de remendos, fazendo o bem tanto àqueles que pediam como àqueles que o repeliam com maus modos. E não havia uma ovelha que quebrasse a perna num barranco, um bêbado que puxasse um facão na taverna, uma esposa adúltera que corresse à noite para perto do amante, que não vissem aparecer diante de si, como que caído do céu, negro, magro e com seu doce sorriso, para socorrer, dar bons conselhos, evitar violências e pecados.

Pâmela continuava no bosque. Tinha feito um balanço entre dois pinheiros, depois um outro mais forte para a cabra e outro mais leve para a pata, e passava as horas balançando-se junto com seus animais. Contudo, numa determinada hora, surgindo entre os pinheiros, chegava o Bom, com uma trouxa amarrada às costas. Era roupa para lavar e remendar que recolhia dos mendigos, dos órfãos e dos doentes sozinhos no mundo, e entregava a Pâmela para levar, dando-lhe a oportunidade para também praticar o bem. Pâmela, que se sentia entediada por estar sempre no bosque, lavava as roupas no regato, e ele a ajudava. Em seguida, ela colocava tudo para secar nas cordas

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do balanço, e o Bom, sentado sobre uma pedra, lia para ela Jerusalém libertada.

Pâmela não se interessava pela leitura e ficava deitada, de bruços, sobre a relva, tirando piolhos (pois vivendo no bosque tinha apanhado uma boa quantidade de parasitas), coçando-se com uma planta chamada ferrãozinho, atirando seixos para cima com os pés descalços e olhando para as próprias pernas que estavam avermelhadas e bastante roliças. O Bom, sem erguer os olhos do livro, continuava a declamar uma oitava após a outra, com o objetivo de enobrecer os hábitos daquela moça rude.

Mas ela, que não acompanhava a seqüência e se aborrecia, bem quietinha incitou a cabra a lamber a metade do rosto do Bom e a pata a pousar sobre o livro. 0 Bom deu um pulo para trás e ergueu o livro, que se fechou; mas, exatamente naquele momento, o infeliz surgiu por entre as árvores a galope, brandindo uma enorme foice contra o Bom. A lâmina da foice acertou o livro e cortou-o, ao comprido, em duas metades. A parte do dorso ficou na mão do Bom e o resto espalhou-se pelos ares em mil páginas pela metade. O Infeliz desapareceu a galope; tinha procurado, sem dúvida alguma, abater a meia cabeça do Bom, mas os dois animais tinham surgido ali no momento certo. As páginas de Tasso, com as margens brancas e os versos partidos ao meio, voaram ao sabor

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do vento e pousaram sobre os galhos dos pinheiros, sobre a relva e sobre a água dos rios, à beira de um barranco, Pâmela olhava aquele branco esvoaçar e dizia:

– Que beleza!

Algumas meias folhas chegaram até o caminho por onde passávamos, o doutor Trelawney e eu. O doutor apanhou uma delas no ar, virou-a e revirou-a, tentou decifrá-la, entender aqueles versos sem pé nem cabeça e sacudiu a cabeça:

– Mas não se entende... Zzt... Zzt...

A fama do Bom tinha chegado até os huguenotes. O velho Ezequiel era visto com freqüência parado sobre o plano mais alto da vinha, olhando na direção da vereda pedregosa que subia do vale.

– Pai – observou um de seus filhos -, vejo-o olhar para o vale como se esperasse a chegada de alguém.

– Esperar é próprio do homem – retrucou Ezequiel. – O homem justo, esperar com fé; o injusto, com medo.

– Pai, o senhor está esperando o manco-da-outra-perna?

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– Já ouviu falar sobre ele?

– No vale só se fala no maneta-canhoto. Acha que virá até aqui em cima, perto de nós?

– Se a nossa terra é de gente que vive para o bem, e ele vive para o bem, não há razão para que não venha.

– A vereda é íngreme demais para quem tem que subir de muleta.

– Já houve um Desalmado que encontrou um cavalo para chegar até aqui.

Ao ouvirem Ezequiel falar, os outros huguenotes reuniram-se à sua volta, surgindo por entre as filas de videiras. E quando ele fez alusão ao visconde, estremeceram em silêncio.

– Ezequiel, nosso pai – disseram -, quando o Astuto apareceu naquela noite e o raio incendiou metade do carvalho, o senhor disse que talvez, um dia, receberíamos a visita de um viajante melhor.

Ezequiel concordou, inclinando a barba até o peito.

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– Pai, essa pessoa de quem se fala agora é um coxo igual e oposto ao outro, tanto de corpo como de alma: tão piedoso quanto o outro era cruel. Será este o visitante anunciado por suas palavras?

– Pode ser viajante de qualquer estrada – disse Ezequiel -, portanto pode ser ele também.

– Então todos esperamos que seja – exclamaram os huguenotes.

A mulher de Ezequiel aproximava-se com o olhar fixo à sua frente, empurrando um carrinho de ramos secos de videira.

– Esperamos sempre tudo de bom – disse mas mesmo que só apareça por esses nossos montes, mancando, algum pobre mutilado de guerra, bom ou mau, devemos continuar a agir segundo a justiça e a cultivar nossos campos.

– Isto é evidente – responderam os huguenotes em uníssono -, será que falamos alguma coisa que significa o contrário?

– Muito bem, se todos estamos de acordo – disse a mulher -, podemos voltar às enxadas e aos forcados.

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– Peste e carestia! – explodiu Ezequiel. Quem lhes disse para parar de lavrar a terra?

Os huguenotes espalharam-se pela filas de videiras para apanhar os instrumentos abandonados nos sulcos. Porém naquele momento, Esaú, que aproveitando da distração do pai tinha trepado na figueira para comer as frutas temporãs, gritou:

– Lá embaixo! Quem está chegando montado naquele burro?

Realmente, um burro vinha subindo a vereda com um meio homem amarrado à sela. Era o Bom, que tinha comprado aquele velho animal sem pêlos quando estava prestes a ser afogado no rio, pois sua saúde era tão precária que nem mesmo para o açougue servia.

– Ora, eu peso a metade de um homem – disse para si mesmo -, e o velho burro poderá ainda me agüentar. E tendo, eu também, a minha montaria, poderei ir mais longe para praticar o bem.

Assim, como primeira viagem, estava indo ao encontro dos huguenotes.

Estes receberam-no enfileirados e imóveis, cantando um salmo. A seguir, o velho aproximou-se

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dele e cumprimentou-o como a um irmão. O Bom, tendo desmontado, respondeu cerimoniosamente àquelas saudações, beijou a mão da mulher de Ezequiel, que ficou rígida e carrancuda, interessou-se pela saúde de todos, estendeu a mão para acariciar a cabeça hirsuta de Esaú que recuou, preocupou-se com os problemas de cada um, pediu para que lhe contassem a história das perseguições sofridas, comovendo-se e recriminando. Naturalmente, conversaram, sem insistência, a respeito da controvérsia religiosa, como uma seqüela de desgraças imputáveis à maldade humana generalizada. Medardo abordou de leve o fato de que as perseguições partiam do lado da igreja à qual ele pertencia, e os huguenotes, por sua vez, não se envolveram em afirmação de fé, até mesmo por medo de dizerem coisas que, teologicamente, estariam erradas. Assim acabaram em vagas conversas sobre caridade, desaprovando qualquer violência e qualquer excesso. Todos pareciam de acordo, mas o conjunto foi um pouco frio.

A seguir, o Bom visitou os campos, lamentou suas colheitas tão exíguas e ficou contente porque, pelos menos, o ano tinha sido bom para o centeio.

– Por quanto vendem? – perguntou-lhes.

– Três escudos a libra – respondeu Ezequiel.113

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– Três escudos a libra? Mas os pobres de Terralba morrem de fome, meus amigos, e não podem comprar sequer um punhado de centeio. Talvez não saibam que o granizo destruiu as colheitas de centeio lá no vale, e somente vocês podem salvar muitas famílias da fome.

– Sabemos disto – disse Ezequiel -, e é exatamente por isto que podemos vender por um preço razoável.

– Mas, pensem na caridade que estariam praticando com relação àqueles pobres coitados, se baixassem o preço do centeio... Reflitam sobre o bem que podem fazer..

O velho Ezequiel parou diante do Bom com os braços cruzados, no que foi imitado pelos huguenotes.

– Praticar a caridade, irmão – disse -, não significa que se deva ter prejuízo.

O Bom andava pelos campos e via velhos huguenotes esqueléticos cavando a terra sob o sol.

– Está com um aspecto ruim – disse a um velho cuja barba era tão comprida que tocava o chão talvez não esteja se sentindo bem, não é?

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– Como pode se sentir bem uma pessoa que, aos setenta anos, cava durante dez horas com uma sopa de nabo na barriga?

– É meu primo Adamo – disse Ezequiel -, um trabalhador excepcional.

– Velho, do jeito que está, devia repousar e alimentar-se! – comentava o Bom, porém Ezequiel afastou-o bruscamente dali.

– Todos nós aqui ganhamos nosso pão com muito sacrifício, irmão – disse num tom que não admitia réplica.

Antes, ao desmontar do burro, o Bom quis amarrá-lo pessoalmente, e pediu um saco de aveia para que o animal se recuperasse um pouco da subida. Ezequiel e sua mulher entreolharam-se, porque, segundo eles, para um burro como aquele era suficiente um punhado de chicória silvestre; porém isso aconteceu no momento mais caloroso da acolhida ao hóspede, e mandaram alguém ir buscar a aveia. Mas agora o velho Ezequiel não conseguia admitir que aquela carcaça de burro comesse a pouca aveia que tinham e, cuidando para que seu hóspede não o ouvisse, chamou Esaú e disse-lhe:

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– Esaú, aproxime-se devagarinho do burro, tire a aveia e coloque qualquer outra coisa no lugar.

– Um chá para asma?

– Sabugos de milho, cascas de grão-de-bico, o que bem entender.

Esaú, tirou o saco de aveia do burro e levou um coice que o fez mancar por algum tempo. Para se vingar, escondeu a aveia que tinha sobrado para vendê-la por sua conta e disse que o burro já a tinha comido todinha.

Era o pôr-do-sol. O Bom estava com os huguenotes em.meio ao campo e não sabiam mais o que conversar.

– Meu hóspede, ainda temos uma hora de trabalho à nossa frente – disse a mulher de Ezequiel.

– Pois então não os importunarei mais.

– Boa sorte, hóspede.

E o bom Medardo voltou a montar no seu burro.

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– Um pobre mutilado de guerra – disse a mulher depois que ele se afastou. – Quantos há assim nesta região! Pobrezinhos!

– Pobrezinhos, realmente! – concordaram todos os outros.

– Peste e carestia! – gritava o velho Ezequiel, andando pelo campo, os punhos erguidos diante dos trabalhos malfeitos e dos danos causados pela seca,

– Peste e carestia!

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IX

Muitas vezes, pela manhã, eu ia até a oficina de Pietrochiodo para ver as máquinas que o engenhoso mestre estava construindo. O carpinteiro vivia angustiado e cada vez mais cheio de remorsos, depois que o Bom passara a visitá-lo à noite e a recriminar a má finalidade de suas invenções, incitando-o a construir mecanismos que fossem. colocados a serviço da bondade e não da sede de sevícias.

– Mas, então, qual a máquina que devo construir, mestre Medardo? – indagava Pietrochiodo.

– Já lhe explico: poderia, por exemplo... – E o Bom começava a descrever-lhe a máquina que ele teria encomendado se fosse ele o visconde, traçando desenhos confusos para ajudá-lo na explicação.

Primeiramente Pietrochiodo teve a impressão de que aquela máquina devia ser um órgão, um monumental órgão cujas teclas tocassem músicas dulcíssimas. Já se dispunha a procurar a madeira adequada à confecção dos tubos, quando, após uma outra conversa com o Bom, ficou com as idéias mais confusas, porque parecia que ele pretendia fazer passar pelos tubos não o ar, mas farinha. Em suma, devia ser um órgão mas também um moinho, que moesse para os pobres e, também, possivelmente, um

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forno para fazer pães. Diariamente o Bom aperfeiçoava a sua idéia e enchia, com desenhos e mais desenhos, folhas e folhas de papel. No entanto, Pietrochiodo não conseguia acompanhar a sua linha de pensamento. Isto porque este órgão-moinho-forno também devia puxar a água dos poços poupando os burros daquela canseira; devia deslocar-se sobre rodas para atender às diversas aldeias, como também, nos dias de festas, erguer-se no ar e capturar com redes colocadas ao seu redor, as borboletas.

E o carpinteiro ficava na dúvida se a construção de máquinas boas não estaria além das possibilidades humanas, enquanto as únicas que poderiam realmente funcionar com praticidade e exatidão seriam os patíbulos e os instrumentos de tortura. Na verdade, tão logo o infeliz expunha a Pietrochiodo a idéia de um novo mecanismo, o mestre logo descobria um modo de construí-lo, punha mãos à obra, e cada detalhe parecia-lhe insubstituível e perfeito, e o instrumento terminado uma obra-prima de técnica e engenhosidade.

O mestre angustiava-se:

– Será que tenho a maldade na alma pelo fato de só conseguir realizar máquinas cruéis? – Porém, apesar disto, continuava a inventar, com zelo e habilidade, outros instrumentos de tortura.

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Um dia vi-o trabalhar em volta de um estranho patíbulo, onde a forca branca emoldurava uma parede de madeira negra e a corda, também branca, passava através de dois furos na parede, exatamente no ponto do laço corrediço.

– Que máquina é esta, mestre? – perguntei-lhe.

– Uma forca para enforcamento de perfil retrucou.

– E para quem a construiu?

– Para um mesmo homem que condena e é condenado. Com metade da cabeça condena-se a si mesmo à pena capital, e com a outra metade entra no nó corrediço e exala o último suspiro. Gostaria que se confundisse entre as duas.

Compreendi que o Infeliz, sentindo crescer a popularidade de sua metade boa, tinha resolvido suprimi-la o mais rápido possível.

Realmente, convocou seus guardas e disse-lhes:

– Um vesgo vagabundo infesta, de há muito, o nosso território, disseminando a discórdia. Capturem, até amanhã, o agitador e acabem com ele.

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– Assim será feito, meu senhor – responderam os guardas e retiraram-se.

Zarolho como ele só, o Infeliz não se deu conta de que, ao lhe responderem, tinham piscado o olho entre si.

É preciso dizer que uma conspiração palaciana tinha sido urdida naqueles dias, na qual também os guardas tomavam parte. O objetivo era aprisionar e suprimir o atual meio visconde e entregar o castelo e o título à outra metade. Este, porém, de nada suspeitava. E à noite, no palheiro onde morava, acordou rodeado pelos guardas.

– Não tenha medo – disse o chefe dos guardas o visconde mandou que o trucidássemos, porém nós, cansados da sua cruel tirania, resolvemos acabar com ele e colocar o senhor em seu lugar.

– Mas o que estou ouvindo? E já o fizeram? Digo, o visconde, já o trucidaram?

– Não, mas o faremos ao raiar o dia, com toda a certeza.

– Ah, graças aos céus! Não, não se manchem com mais sangue, pois muito já foi vertido. Qual o bem que poderia emanar de um poder que nasce do crime?

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– Não faz mal: nós o trancafiamos na torre e poderemos ficar tranqüilos.

– Não levantem as mãos contra ele, nem contra ninguém, eu vos suplico! Também sofro com a prepotência do visconde; mas, ainda assim, não nos resta outro recurso senão lhe dar o bom exemplo, mostrando-nos gentis e virtuosos.

– Então, é o senhor que terá de ser trucidado.

– Não. Já lhes disse que não devem trucidar ninguém.

– Como faremos então? Se não eliminamos o visconde, devemos obedecer-lhe.

– Peguem esta ampola. Contém algumas gotas, as últimas que me restam, do ungüento com que os eremitas boêmios me curaram, e até agora tem sido para mim muito útil quando, a cada mudança de tempo, sinto dor nesta enorme cicatriz. Levem-na ao visconde e digam-lhe apenas: é o presente de alguém que sabe o que representa ter as veias terminando num tampão.

Os guardas dirigiram-se para onde estava o visconde, levando a ampola, e ele condenou-os ao

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patíbulo. Com o objetivo de salvar os guardas, os outros conspiradores resolveram se insurgir. Desajeitados, os cabeças da revolta foram descobertos e tudo foi sufocado com sangue. O Bom levou flores aos túmulos e consolou viúvas e órfãos.

Quem nunca se deixou comover pela bondade do Bom foi a velha Sebastiana. Em suas andanças para praticar o bem, o Bom passava freqüentemente pelo casebre da babá e fazia-lhe uma visita, sempre atencioso e gentil. E ela invariavelmente lhe passava um sermão. Talvez devido ao seu indistinto amor materno, talvez porque a velhice começava a embotar seus pensamentos, a babá não fazia muito caso da separação de Medardo em duas metades: ralhava com uma metade pelas más ações da outra, dava conselhos a uma que somente a outra podia seguir, e assim por diante.

– E por que cortou a cabeça do galo da vovó Bigin, pobrezinha, que só tinha aquele animal? Grande deste jeito, está sempre pregando peças...

– Mas por que me diz isto, babá? Sabe que não fui eu...

– Oh, que graça! Então, vejamos: quem foi?– Eu. Mas...

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– Ah! Está vendo!

– Porém não eu que estou aqui...

– Ora, se estou velha, acha que também estou caduca? Quando escuto alguém contar alguma traquinagem, entendo logo que foi uma das suas. E digo para mim mesma: aposto que aí tem a mão de Medardo...

– Contudo, sempre se engana ... !

– Engano-me... Vocês, jovens, dizem aos velhos que nos enganamos... E vocês? Você deu a sua muleta de presente ao velho Isidoro...

– Sim, fui eu mesmo que dei...

– E ainda se vangloria? Serviu-lhe para espancar a mulher, pobre coitada...

– Ele tinha me dito que não podia caminhar por causa da gota ...

– Fingia ... E você, tratou logo de presenteá-lo com a muleta ... Agora, quebrou-a nas costas da mulher e você anda por aí apoiado num galho bifurcado... Você não tem cabeça, sempre foi assim! E quando embriagou o touro do Bernardo com aguardente?...

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– Aquilo não fui...

– Ora, sei, não foi você? Todos dizem: é o visconde, é sempre ele!

As freqüentes visitas do Bom a Pratofungo deviam-se, além do seu apego filial à babá, ao fato de ele, naquele tempo, dedicar-se a socorrer os pobres leprosos. Imunizado contra o contágio (para sempre, parece, devido aos tratamentos misteriosos dos eremitas), andava pela aldeia procurando saber detalhadamente das necessidades de cada um, não lhes dando trégua até ter ajudado de todas as maneiras a cada um. Muitas vezes, no lombo do burro, ficava num constante ir e vir entre Pratofungo e a choupana do doutor Trelawney, pedindo-lhe conselhos e remédios. Não que o doutor agora tivesse coragem de se aproximar dos leprosos, contudo, parecia que começava, por intermédio do Bom Medardo, a se interessar por eles.

No entanto, o objetivo de meu tio ia mais além: sua proposta era curar não apenas os corpos dos leprosos, mas também as suas almas. E estava sempre no meio deles dando-lhes lições de moral, metendo o nariz nos seus negócios, escandalizando-se e fazendo sermões. Os leprosos não o suportavam. Os tempos de alegria e licenciosidade haviam terminado em Pratofungo. Com aquela figura delgada, toda empertigada sobre uma

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perna só, vestida de negro, cerimoniosa e autoritária, ninguém podia fazer aquilo que tinha vontade sem ser recriminado em público, suscitando maldades e despeitos. Até a música, de tanto o ouvirem recriminá-la como fútil, lasciva e não inspirada em bons sentimentos, transformou-se num aborrecimento para eles, e seus instrumentos ficavam cobertos de poeira. As mulheres leprosas, sem aquela válvula de escape que era a baderna, viram-se, de repente, sozinhas diante da doença e passavam as noites chorando e desesperando-se.

– Das duas metades é pior a boa do que a má – começava-se a comentar em Pratofungo.

Contudo, não eram apenas os leprosos que começavam a perder a admiração pelo Bom.

– Ainda bem que a bala do canhão dividiu-o apenas em dois – diziam todos -, se o tivesse repartido em três pedaços, sabe Deus quanta coisa mais iríamos ver.

Os huguenotes agora faziam turnos de guarda para se protegerem dele também. Agora tinham perdido todo o respeito para com eles. O Bom aparecia a toda hora para verificar quantos sacos havia nos seus celeiros, fazia-lhes sermões sobre os preços altos demais e depois andava por todos os lados tecendo

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comentários a respeito disso e arruinando seu comércio.

Assim passavam os dias em Terralba. Nossos sentimentos ficavam dúbios e indefinidos, de vez que nos sentíamos como que perdidos entre maldades e virtudes igualmente desumanas.

Não há noite de lua na qual, nos espíritos maus, as idéias perversas não se enrosquem como ninhadas de serpentes e que, nos espíritos caridosos, não brotem lírios de renúncia e dedicação. Assim, entre os despenhadeiros de Terralba as duas metades de Medardo vagavam atormentadas por impulsos opostos.

Ambas, tomada a própria decisão, deslocavam-se de manhã dispostas a pô-la em prática.

A mãe de Pâmela, tendo ido apanhar água, caiu numa armadilha e se precipitou no poço. Dependurada a uma corda, berrava: – Socorro! – quando viu, na boca do poço, contra o céu, o perfil do Infeliz, que lhe disse:

– Só queria lhe falar. Veja o que pensei: na companhia de sua filha, Pâmela, vê-se muitas vezes um vagabundo partido ao meio. A senhora deve obrigá-lo a casar com ela; já a comprometeu e se é um

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cavalheiro tem que reparar o erro. Pensei assim; não me peça mais explicações.

O pai de Pâmela levava para o lagar um saco de azeitonas da sua oliveira, porém o saco tinha um furo, e uma fileira de azeitonas deixava um rastro pelo caminho. Sentindo o saco mais leve, o pai tirou-o dos ombros e percebeu que estava praticamente vazio. Porém viu que, atrás, vinha o Bom; recolhia as azeitonas, uma a uma, e colocava-as dentro do manto.

– Seguia-o a fim de conversar com o senhor. Por isso tive a felicidade de salvar suas azeitonas. Eis o que sinto: Há muito tempo acho que a infelicidade dos outros, que tenho a intenção de remediar, talvez seja alimentada exatamente pela minha presença. Vou partir de Terralba. Contudo, só o farei se a minha partida devolver a paz a duas pessoas: à sua filha, que dorme numa choça quando lhe caberia um nobre destino, e ao meu infeliz lado direito que não deve continuar sozinho. Pâmela e o visconde devem se casar.

Pâmela estava adestrando um esquilo quando encontrou sua mãe que fingia estar à procura de pinhas.

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– Pâmela – disse a mãe -, é chegado o momento daquele vagabundo, chamado o Bom, se casar com você.

– De onde tirou essa idéia? – indagou Pâmela.– Ele a comprometeu, que se case. É tão gentil que

se você lhe falar nestes termos não recusará.

– Mas como meteu na cabeça esta história?

– Quieta. Se soubesse quem me disse isto, não me faria mais tantas perguntas. Foi o próprio Infeliz; foi o nosso ilustríssimo visconde quem me disse isto!

– Ora bolas! – exclamou Pâmela, deixando cair o esquilo que estava em seu colo. – Sabe-se lá que maldade tem em mente.

Pouco depois estava aprendendo a assoviar com uma folha de relva entre as mãos quando encontrou o pai que fingia estar à cata de lenha.

– Pâmela – disse o pai -, chegou o momento de você dizer o sim ao visconde Infeliz, com a única condição de que se case com você na igreja.

– Isto é uma idéia sua ou foi alguém que lhe meteu na cabeça?

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– Não gostaria de se tornar viscondessa?

– Responda à minha pergunta.

– Pois bem: imagine que quem o disse foi a melhor alma que existe: o vagabundo a quem chamam de o Bom.

– Ah, ele não tinha mais nada em que pensar. Verá o que farei com ele!

O Infeliz, andando com o cavalo magro pelos matagais, refletia sobre seu estratagema: se Pâmela se casasse com o Bom, perante a lei seria a mulher de Medardo de Terralba, portanto, sua mulher. Calcado fortemente neste direito, o Infeliz poderia, com a maior facilidade, tirá-la do rival, tão condescendente e nem um pouco combativo.

Porém, encontra-se com Pâmela que lhe diz:

– Visconde, resolvi que se o senhor estiver de acordo, nós nos casaremos.

– Você e quem? – perguntou o visconde.

– Eu e o senhor. Irei para o castelo e serei viscondessa.

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O Infeliz não esperava por esta, e pensou: “Então de nada adianta montar a farsa de fazê-la casar com a minha outra metade: caso-me com ela e pronto!”

Assim sendo, falou:– Estou de acordo.

E Pâmela:

– Combine tudo com meu pai.

Dali a pouco, Pâmela encontrou-se com o Bom montado no seu burro.

– Medardo – disse ela -, compreendi que estou realmente apaixonada por você, e se quer me ver feliz deve pedir a minha mão em casamento.

O pobre coitado, que para o bem dela tinha feito aquela enorme renúncia, ficou de boca aberta. “Mas se está feliz por se casar comigo, não posso fazer com que se case com o outro”, pensou e disse:

– Querida, vou correndo providenciar tudo para a cerimônia.

– Combine com a minha mãe, não esqueça disse ela.

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Terralba inteira ficou em sobressalto ao saber que Pâmela ia se casar. Havia quem dissesse que se casava com um, e quem afirmasse que se casava com o outro. Ao que tudo indicava, parecia que os pais dela faziam de propósito a fim de criar confusões. É verdade que no castelo estavam polindo e enfeitando tudo como se ali fosse se realizar uma grande festa. E o visconde mandara fazer uma roupa de veludo negro com um grande pufe na manga e um outro nas calças. Porém o vagabundo também tinha mandado escovar o pobre burro e remendar sua roupa nos cotovelos e joelhos. De qualquer modo, poliram todos os candelabros da igreja.

Pâmela disse que não sairia do bosque a não ser na hora do cortejo nupcial. Eu Fiquei encarregado do enxoval. Ela fez um vestido branco com o véu e a cauda longuíssimos e preparou uma coroa e um cinto com espigas de lavanda. Mas, como lhe sobrou um pouco do véu, preparou um vestido de noiva para a cabra e um outro também para a pata. Correu assim pelo bosque, seguida pelos animais, até o véu ficar todo estraçalhado entre os ramos e a cauda ter recolhido todas as ramas de pinheiro e as cascas de castanhas murchas caídas pelo caminho.

Porém, na noite anterior ao casamento, estava pensativa e um pouco amedrontada. Sentada no cume de uma colinazinha sem árvores, com a cauda do

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vestido enrolada ao redor dos pés, a coroazinha de lavanda toda torta, o queixo apoiado sobre uma das mãos, olhava para o bosque ao seu redor, suspirando.

Eu estava sempre ao lado dela, pois devia lhe servir de pajem, junto com Esaú que, no entanto, nunca estava por perto.

– Com quem se casará, Pâmela? – perguntei-lhe.

– Não sei – respondeu ela -, não sei mesmo o que acontecerá. As coisas sairão bem? Sairão mal? Do bosque erguia-se às vezes um grito gutural, às vezes um suspiro. Eram os dois pretendentes divididos que, dominados pela excitação da véspera, vagavam pelas elevações e precipícios do bosque envoltos nos mantos negros, um sobre seu cavalo magro, o outro sobre o burro pelado, e uivavam e suspiravam tomados por suas quimeras ansiosas. E o cavalo saltava através de penhascos e barrancos, o burro subia por inclinações e descia encostas, sem que jamais os dois cavaleiros se encontrassem.

Até que, ao amanhecer, o cavalo a todo galope não se equilibrou ao descer um barranco; e o Infeliz não conseguiu chegar a tempo para a cerimônia de casamento. O burro, ao contrário, andava devagar e cauteloso, e o Bom chegou pontualmente à igreja, no

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mesmo instante em que ali surgia a noiva com a cauda carregada por mim e por Esaú, que se arrastava.

A multidão, ao ver chegar como noivo apenas o Bom apoiado sobre sua muleta, ficou um pouco decepcionada. Contudo, o casamento foi celebrado, os noivos disseram o sim e trocaram alianças, e o padre disse: – Medardo di Terralba e Pâmela Marcolfi, eu vos uno pelos sagrados laços do matrimônio.

Naquele instante, no fundo da nave, apoiando-se sobre a muleta, surgiu o visconde, com sua roupa nova de veludo com os pufes encharcados de água e todo esfarrapado. E disse:

– Medardo di Terralba sou eu e Pâmela é minha mulher.

O Bom precipitou-se em direção a ele.

– Não, o Medardo que se casou com Pâmela sou eu.

O Infeliz atirou longe a muleta e sacou da espada. Nada mais restava ao Bom fazer se não o mesmo.

– Em guarda!

O Infeliz atirou-se freneticamente contra o Bom, que se defendeu, mas todos os dois rolaram pelo chão.

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Concordaram que era impossível combater equilibrando-se apenas sobre uma perna. Era preciso adiar o duelo para que pudéssemos prepará-los melhor.

– E eu, sabem o que vou fazer? – disse pâmela. – Voltarei para o bosque.

E saiu correndo da igreja, sem os pajens para ajudarem-na com a cauda. Na ponte encontrou a cabra e a pata que a esperavam e puseram-se a seu lado.

O duelo foi marcado para a madrugada do dia seguinte, no prado das Monjas. Mestre Pietrochiodo inventou uma espécie de perna de compasso que, presa à cintura dos partidos ao meio, permitia que ficassem eretos e se deslocassem, como também se inclinassem para a frente e para trás, enfiando a ponta do compasso no solo para ficarem firmes. O leproso Galateo, considerado um cavalheiro antes de adoecer, serviu como juiz de armas; os padrinhos do Infeliz foram o pai de Pâmela e o chefe da guarda; os padrinhos do Bom foram dois huguenotes. O doutor Trelawney cuidava da parte médica e apareceu com um fardo de ataduras e um garrafão de bálsamo, como se tivesse que tratar dos feridos de uma batalha. Melhor para mim, que devendo ajudá-lo a levar todas aquelas coisas, poderia assistir ao duelo.

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Amanheceu o dia; os dois magros duelistas encontravam-se a postos com as espadas em riste. O leproso soprou o chifre: era o sinal; o céu vibrou como se fora uma membrana esticada; as ratazanas enfiaram as unhas na sujeira de suas tocas; as pegas, com as cabeças enfiadas sob as asas, arrancaram uma pena da própria axila, machucando-se; a boca da minhoca comeu a própria cauda, e a víbora picou-se com seus dentes; a vespa partiu o ferrão em uma pedra, e todas as coisas voltavam-se contra si mesmas; a geada nas poças gelava, os liquens transformavam-se em pedras e as pedras em liquens; a folha seca virava terra, a seiva espessa e dura matava impiedosamente as árvores. Assim, o homem investia contra si mesmo, trazendo em ambas as mãos uma espada.

Mais uma vez, Pietrochiodo tinha feito um trabalho de mestre: os compassos desenhavam círculos sobre o prado, e os duelistas lançavam-se em assaltos impetuosos e rígidos, em paradas e golpes simulados. Porém, não se tocavam. A cada ataque, a ponta da espada parecia dirigir-se certeira contra o manto esvoaçante do adversário, cada um parecia obstinado a atingir a parte onde não havia nada, ou seja, a parte onde deveria estar ele próprio. Claro, se em vez de meios duelistas fossem duelistas inteiros, teriam se ferido sabe-se lá quantas vezes. O Infeliz batia-se com uma ferocidade odiosa, mas, assim mesmo, não

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conseguia nunca conduzir seus ataques para o ponto onde realmente se encontrava o inimigo; o Bom tinha a correta mestria dos canhotos, porém não fazia mais do que perfurar’o manto do visconde.

A certa altura viram-se empunhadura contra empunhadura: as pontas do compasso tinham se enfiado no solo como se fossem escavadeira. O Infeliz soltou-se de repente e já estava perdendo o equilíbrio e rolando pelo chão, quando conseguiu desfechar uma estocada terrível, não contra o adversário, mas quase: uma estocada paralela à linha que interrompia o corpo do Bom e tão próximo a ela que não se soube, de imediato, se estava mais para lá ou mais para cá. Contudo, vimos logo o corpo sob o manto empapar-se de sangue, desde a cabeça até a junção da perna e, então, acabaram-se as nossas dúvidas. O Bom prostrou-se, mas, ao cair, num último movimento amplo quase piedoso, desceu a espada pertíssimo do rival, da cabeça ao abdômen, entre o vazio e o ponto onde começava o corpo do Infeliz. O Infeliz agora também sangrava por toda a enorme e antiga fenda: os golpes de um e de outro tinham cortado, novamente, as veias, e reaberto a ferida que os tinha dividido nas suas duas partes. Agora jaziam de costas, e os sangues, que já tinham sido um só, voltavam a misturar-se pelo prado.

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Concentrado nesta horrenda visão, não tinha olhado para o doutor Trelawney, quando me dei conta de que ele estava pulando de alegria com suas pernas de grilo, batendo palmas e gritando:

– Está salvo! Está salvo! Deixem comigo! Passada meia hora, levamos de volta para o castelo, deitado numa maca, um único ferido. O Infeliz e o Bom enfaixados juntos, de modo bem apertado.

O doutor tivera o cuidado de encaixar todas as vísceras e as artérias de uma parte e da outra. Depois amarrara-os com um quilômetro de ataduras, tão juntinhos que mais pareciam um antigo morto embalsamado do que um ferido.

Meu tio foi velado dias e noites entre a vida e a morte. Uma certa manhã, olhando aquele rosto, que uma linha vermelha atravessava da testa ao queixo, prolongando-se depois pelo pescoço abaixo, a babá Sebastiana exclamou:

– Pronto! Mexeu-se!

De fato, um leve estremecimento das feições percorreu o rosto de meu tio, e o doutor chorou de alegria ao ver que se transmitia de uma bochecha à outra.

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No final, Medardo entreabriu os olhos, os lábios. A princípio a sua expressão estava retorcida: tinha um olho franzido e o outro afrouxado, a testa de um lado enrugada, do outro serena; a boca sorria de um ângulo e do outro rangia os dentes. Depois, aos poucos, voltou a ficar simétrico.

O doutor Trelawney disse:

– Agora está bom.

E Pâmela exclamou:

– Finalmente terei um marido com todos os seus atributos.

Assim meu tio Medardo voltou a ser um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de maldade e bondade, ou seja, aparentemente igual àquele que era antes de ser partido ao meio. Contudo, adquiriu a experiência de uma e de outra metade recolocadas juntas, por isto devia ser muito sábio. Teve uma vida feliz, muitos filhos, e seu governo foi justo. Até mesmo a nossa vida mudou para melhor. Talvez esperássemos que, com o visconde novamente inteiro, surgisse uma época de felicidade maravilhosa; mas é claro que não basta um visconde completo para que todo o mundo se torne completo.

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Enquanto isto, Pietrochiodo não construiu mais forcas e sim moinhos; e Trelawney abandonou os fogos-fátuos em favor dos sarampos e erisipelas. Eu, por minha vez, em meio a tantas manifestações de integridade, sentia-me cada vez mais triste e carente. Às vezes alguém se julga incompleto e é apenas jovem.

Tinha chegado ao limiar da adolescência e ainda me escondia entre as raízes das grandes árvores do bosque para contar histórias para mim mesmo. Uma rama de pinheiro podia representar para mim um cavaleiro, ou uma dama, ou um bufão; fazia-a movimentar-se diante de meus olhos e exaltava-me em relatos intermináveis. Depois, envergonhava-me destas fantasias e fugia.

E chegou o dia em que até o doutor Trelawney me abandonou. Certa manhã entrou no nosso golfo uma frota de navios embandeirados exibindo bandeiras inglesas, e ali ancorou. Toda Terralba dirigiu-se para a margem a fim de vê-la, exceto eu, que de nada sabia. Nos parapeitos das amuradas e na mastreação viam-se marinheiros que exibiam ananases e cágados e desenrolavam laudas onde estavam escritas algumas máximas latinas e inglesas. No convés, em meio aos oficiais de tricórnios e perucas, o capitão Cook olhava com a luneta para a costa e, assim que notou a

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presença do doutor Trelawney, deu ordem que lhe transmitissem, com as bandeiras, esta mensagem:

“Venha logo a bordo, doutor, temos que continuar aquela partida de vinte-e-um!”

O doutor cumprimentou todo o pessoal de Terralba e nos deixou. Os marinheiros entoaram um hino: “Oh, Austrália!”, e o doutor foi içado para bordo escarranchado num tonel cheio de vinho cancarone. Depois os navios levantaram âncoras.

Eu não tinha visto nada. Estava escondido no bosque, contando histórias para mim mesmo. Vim a saber de tudo tarde demais e desatei a correr na direção da costa, gritando:

– Doutor! Doutor Trelawney! Leve-me consigo! Não pode me deixar aqui!

Mas os navios já desapareciam no horizonte e eu fiquei aqui, neste nosso mundo cheio de responsabilidade e de fogos-fátuos.

junho-setembro de 1951

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