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Humanitas 58 (2006) 199-227 O VERDADEIRO CARÁCTER DE D. FERNANDO, O INFANTE SANTO ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO REBELO Universidade de Coimbra Resumo: Júlio Dantas and Oliveira Martins describe the character of D. Fernando, D. Duarte and D. Henrique (Prince Henry, the Navigator) in such an ignominious way that it neither takes into account the medieval spirit of crusades and chivalry, nor does it correspond to the objective truth. The author demonstrates that Júlio Dantas and Oliveira Martins based their opinion upon the informations provided by the chronist Rui the Pina. Other sources, however, show us that Rui de Pina manipulated the facts writing down one of the multiple versions available about the dreadful events in Tanger. According to the one‑sided vision of the truth presented by Rui the Pina, D. Duarte is shown as a weak, narrow‑minded king. D. Henrique, Master of the Order of Christ, successor to the Order of the Temple, is painted as a reckless warrior and is considered the one who is to be blamed for the tragic outcome of the events: according to Pina, he alone carries upon himself the heavy burden of the responsability. D. Fernando is painted either as a victim, or as an ambitious, selfish and greedy person. The author shows that there has been a clear distortion of the facts. D. Henrique and D. Fernando just followed the noble principles of 15 th cen‑ tury chivalry, as they had been taught to them by their mother, D. Philippa of Lancaster. On the other side, they aimed at the objectives of the Order of Christ. Palavras‑chave/Keywords: D. Fernando – Infante Santo – Tânger – D. Duarte – D. Henrique – Rui de Pina – Júlio Dantas – J. P. de Oliveira Martins.

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OVERDADEIROCARÁCTERDED.FERNANDO,OINFANTESANTO

ANTÓNIOMANUELRIBEIROREBELOUniversidadedeCoimbra

Resumo: JúlioDantasandOliveiraMartinsdescribe thecharacterofD.Fernando,D.DuarteandD.Henrique(PrinceHenry, theNavigator) insuch an ignominiousway that it neither takes into account themedievalspiritofcrusadesandchivalry,nordoesitcorrespondtotheobjectivetruth.TheauthordemonstratesthatJúlioDantasandOliveiraMartinsbasedtheiropinionupontheinformationsprovidedbythechronistRuithePina.Othersources,however,showus thatRuidePinamanipulated the factswritingdown one of themultiple versions available about the dreadful events inTanger.

According to the one‑sided vision of the truthpresented byRui thePina, D. Duarte is shown as a weak, narrow‑minded king. D. Henrique,Master of the Order of Christ, successor to the Order of the Temple, ispaintedasarecklesswarriorandisconsideredtheonewhoistobeblamedfor the tragic outcome of the events: according to Pina, he alone carriesupon himself the heavy burden of the responsability. D. Fernando ispainted either as a victim, or as an ambitious, selfish and greedy person.The author shows that there has been a clear distortion of the facts.D.HenriqueandD.Fernandojustfollowedthenobleprinciplesof15thcen‑turychivalry,astheyhadbeentaughttothembytheirmother,D.PhilippaofLancaster.Ontheotherside,theyaimedattheobjectivesoftheOrderofChrist.

Palavras‑chave/Keywords:

D.Fernando–InfanteSanto–Tânger–D.Duarte–D.Henrique–RuidePina–JúlioDantas–J.P.deOliveiraMartins.

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Em 1921, no 2º número dosAnais das Bibliotecas e Arquivos, saía apúblicooseguinteretratodeD.Fernando:

Estepríncipe,orgulhoso,perdulário,masescrupuloso,formalista,friocomoamãeinglesa,singularfigurasobreaqualsetemfeito,atéhoje,maishagiografiadoquehistória,rodeou‑sedumesplendorquecontrastavacoma sobriedade dos irmãos, adquiriu hábitos de dissipação que as própriasrendasdaadministraçãodomestradodeAvisnãocomportavam,lançou‑senas mãos dos judeus Abravanel e Jacob Maçou, a quem pediu dinheiroemprestado, empenhou as pratas de sua casa – e, num dado momento,reconhecendo que «a pouquidade dos bens que tinha» (palavras suas)não chegava à opulência em que pretendia viver, associou‑se ao infanteD.Henriqueearrancouaêssepobreneurasténicoqueeraoreiseuirmão,oconsentimentopara a empresadeTanger, por ele considerada comoumaformadecriarriquezaederesolveroseucasopessoal1.EraJúlioDantasoautordestaspalavrastãoásperasedeumainjus‑

tiçatãoperversaquesópodemserentendidasemfunçãodeumaleiturasuperficial,subjectivaeredutoradasfonteshistóricas.Parajá,limitamo‑nos a esclarecer que Dantas exagerou nas interpretações negativas defactosquedevemserentendidosà luzdamentalidadeeespiritualidademedievais.

Outra opinião negativa acerca dos protagonistas da guerra deTânger–equetevemaiorfortuna–éaqueOliveiraMartinsdeixatrans‑parecernafamosaobraOsFilhosdeD. João I.OliveiraMartins integraoInfanteSantonumatríadedepersonalidadesdirectamenteimplicadasnaexpedição, ondeD.Duarte eD.Henrique sãoobjectodeuma invectivainclemente2.

AoReiEloquentechamaOliveiraMartins,nummomentodeinspi‑ração“maquiavélica”3,deindeciso,fraco,tíbio,condescendente,temeroso,________________

1Vd.JúlioDantas(1921),“OsLivrosemPortugalnaIdadeMédia.AlivrariadoInfanteSanto”,AnaisdasBibliotecaseArquivos2101‑109.

2Vd.J.P.OliveiraMartins(61936),OsFilhosdeD.JoãoI,Lisboa,cap.6e8.3 Cf. NiccolòMachiavelli (1971),Tutte le Opere.A cura diMárioMartelli,

Firenze, cap. 19: “Contennendo lo fa esser tenuto vario, leggieri, effeminato,pusillanime, irresoluto” (O ser considerado vário, leviano, efeminado, pusilâ‑nime, irresoluto, torna o príncipe desprezível). Cf. tambémNicolauMaquiavel(132003),Opríncipe,trad.CarlosE.deSoveral,Lisboa.Aolongodocap.6,Oliveira

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ingénuo, “pusilânime e irresoluto, pobre erudito, a quem um destinoinjustofizerarei,equeiaesconderasuamediocridadenoplácidosilên‑ciodalivraria”,naleituracríticaqueJ.H.SaraivafazdotextodeOliveiraMartins4.________________

Martinsnãoperdeaocasiãode transmitiruma imagemnegativadeD.Duarte,considerando a sua sedução “dolentemente effeminada”, chamando‑ode “litte‑rato coroado comos vicios e qualidadesd’esta classedehomens, e, sobretudo,com essa paralysia da vontade…”, de “litteratomediocre”,mas, logo a seguir,corrige dizendo que “D.Duarte, sem ser ummedíocre, não se podia dizer umespirito superior”; consideraaindao saberda época“demasiadoparaa capaci‑dadedo seu espírito”. Para qualificarD.Duartede irresoluto,OliveiraMartinstececonsideraçõesacercada“timidezdelitterato”,da“hesitação”edainérciadeD.Duarte(“Resnonverba.Omomentodeacçãochegára.Nãocogitar,nãohesi‑tar,masproceder”).Caracteriza,depois,a“debilidadedeanimo”dosucessordeD.JoãoIpelosolhosdeD.Pedro.OliveiraMartinsfalaaindada“passividadedoseugénio”, “semenergiadecisiva”; acrescentaque “o seu espirito, semenergianemprofundidade, tinha, todavia,aextensãopropriadagente indeterminada”;acusa‑ode“indeterminaçãodopensamento”,de terum“espiritobastante inco‑lor”. Remata depois este relato da “sympathica e melancolica existencia deD.Duarte:essereicheiodevirtudes,masdestituídodequalidades, [...] incapazde mandar por debilidade constitucional da vontade e da intelligencia”, teori‑zandopretensiosamente,comveleidadesgnómicas,àmaneiradeMaquiavel:[oshomens como D. Duarte] refugiam‑se assustados no intimo recondito da suaalma [...] Não fogem, nem recuam, nem se demittem, porque para tanto serianecessariodecisãomaior”.

Masoataque feroz,movidoporOliveiraMartinsaD.Duarte,não se ficaporaqui.Pisaerepisaosmesmosargumentosetransformaatéaspoucasvirtu‑desque lhereconheceemdefeitos,denotando,assim,umaveemência inusitadanacríticagratuitaaumapessoaque lheeraanterioremmuitosséculos.Estariaele bem informado? Teria ele lido com suficiente acribia e isenção toda adocumentaçãodaépoca?Éistooquesenosoferecedizer,parajá.

4JoséHermanoSaraiva(1948),“UmacartadoInfanteD.Henriqueeopro‑blemadascausasdaexpansãoportuguesanonortedeÁfrica”,Ethnos3319‑345,respectivamentenaspp.339e334,ondecriticaocap.6deOsfilhosdeD.JoãoI,deOliveira Martins; e M. Rodrigues Lapa (41956), Lições de Literatura Portuguesa.ÉpocaMedieval,Coimbra,oqualnaspp.235‑238corrigeamaiorpartedosdefeitosqueOliveiraMartinsapontaaD.Duarte.Vd.aindaDomingosMaurícioGomesdosSantos(1931),“D.DuarteeasresponsabilidadesdeTânger1436‑1438”,Broté‑ria 12‑13: vol. 12: 29‑34, 147‑157, 291‑302, 367‑376; vol. 13: 19‑27, 161‑173 que,

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D. Henrique é qualificado de descaroável, cego, desapiedado,desumano, teimoso, inconsciente, imprudente, audaz, mas temerário.Acusa‑oOliveiraMartinsdefaltadelucidezedesigna‑omesmodelouco,de homem exaltado e desvairado, enfim, um príncipe que perdeu ojuízo5.

JáD.Fernandoé,aseuver,umavítimadaloucuradeD.Henrique:oInfanteSantofoi“paraTângercomeçarapaixãoexpiatóriadatemeri‑dade do nosso herói”6 [i. e. D. Henrique]. Designa‑o de “precursorde D. Sebastião”7 e considera‑o “mais desgraçado ainda do que Job” 8.A imagem que tem do Príncipe Constante é francamente positiva. AopesarD.HenriquecontraD.Fernando,afirma:

Onossocoração,onossoamor,asimpatia irresistíveldanossaalmavãoparaD.Fernando;e,porgrandequenospareçaaacçãodosheróis,valemais,porqueésuperioratudo,amodéstiasublimedosmártires.9Ogranderesponsávelporesteretratotãonegativodostrêsirmãosé

inegavelmenteRuidePina.Nãoiremosaquirepisarascríticasàorigina‑lidade, ao talento e à probidade científica do cronista, censuras desdelogo pronunciadas por Damião de Góis e João de Barros e que forammodernamente consubstanciadas com excelentes análises de provas________________ perfilhandoaopiniãodeD.FranciscodeS.Luiz/CardealSaraiva(1874):“Memóriaemquesecorrigemalgunserros,queandão introduzidosnaHistóriadeEl‑ReiD.Duarte”,ObrasCompletasdoCardealSaraivaD.FranciscodeS.Luiz,PatriarchadeLisboa,Lisboa,vol.3,pp.303‑313),jáconcluía,nap.157dovolume12daBrotéria:

Portodosesteselementos,seriajábemclaroqueD.Duarteseeviden‑ciou tudo menos abúlico. O ano de 1437, através da correspondência eescritosdomonarca,serátãofértilemmanifestaçõesdeactividadepessoal,metódicaeinsistente,queexcluirátodaasombradedúvidapassivista.

Cf.tambémDomingosMaurícioGomesdosSantos,SJ(1960),D.DuarteeasresponsabilidadesdeTânger (1433‑1438)(ed.ComissãoExecutivadoVCentenáriodaMortedoInfanteD.Henrique),Lisboa,pp.9sqq.

5 Vd. J. P. Oliveira Martins (61936),Os Filhos de D.João I, Lisboa, cap. 8,passim.

6Id.,ibid.,p.232.7Id.,ibid.,p.235.8Id.,ibid.,p.241.9Id.,ibid.,p.231.

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documentais de vários historiadores e críticos10, entre os quais avultaDomingos Maurício, que o acusou de interpretar tendenciosamente asfontesconsultadasedeomitiroutrasdecapitalimportância,queelenãopodiaignorar.

Na cronologia; no apuramento e seriação dos factos; na correlaçãodestes com a história geral,mesmo eclesiástica, que nem elementarmenteconhece a menos de um século de distância; na documentação que por

________________

10Osprimeirosapronunciarem‑seemdesfavordeumaautorialegítimadeRui de Pina de várias das crónicas, que lhe são atribuídas, terão sido efectiva‑mente João de Barros (naDécada primeira daÁsia, liv. 2, cap. 2) eDamião deGóis (naCrónica do FelicíssimoReiD.Manuel, Parte 4, cap. 37 e 38).No casodaChronica do Senhor ReyD.Duarte, Damião deGóis atribui o corpo da história aumacrónicadeD.Duartejáexistente,daautoriadeFernãoLopes,eoscapítulossobreTânger teriamsidoplagiadosaZurara, confinando‑seoméritodeRuidePinaaotrabalhodecolecçãoeorganizaçãodosdiversoselementosdequedispu‑nha (vd., sobreesteaspecto,o capítulo intitulado“A tesedeDamiãodeGóisafavordeFernãoLopes”deArturdeMagalhãesBasto(1959),Estudos.CronistaseCrónicas antigas. Fernão Lopes e a ‘Crónica de 1419’ (ActaUniuersitatisConimbri‑gensis),Coimbra,pp.359‑473).

AscríticasdeJoãodeBarroseDamiãodeGóisforamacolhidasporoutrosfilólogos e historiadores: Gaspar Estaço, Pedro de Maris, José Soares da Silva,AragãoMorato,D.CarolinaMichaëlisdeVasconcelos,TeófiloBraga.AlexandreHerculano(queacusaocronistadecorvoenfeitadocom“asbrilhantespenasdepavão do Homero de D.João I” –Opúsculos, vol. 5, p. 21) só lhe reconhece aautenticidadedascrónicasdeD.AfonsoVedeD.JoãoII,considerando‑oinferiora todos os outros cronistas, designadamente Fernão Lopes e Zurara, aos quaissubtraiu textosouapontamentosquecoligiueorganizoupara constituiras res‑tantescrónicas.BraamcampFreireacusa‑odeterfeitodesaparecerosoriginaisdeque se havia servido. Pelas mesmas águas navegam os mais recentes críticosliterários e historiadores: António José Saraiva, Aubrey Bell, E. Borges Nunes,A. J.daCostaPimpão,A. J.DiasDinis,DomingosMaurícioGomesdosSantos,Jacinto do Prado Coelho, Joel Serrão, José Hermano Saraiva,Magalhães Basto,M. Rodrigues Lapa. J. Veríssimo Serrão é dos poucos defensores de Pina combase no conceito anacrónico de plágio (vd. Joaquim Veríssimo Serrão (1972),AHistoriografiaPortuguesa, vol. 1,Lisboa,pp. 105 sqq).Mas as críticas aRuidePina não incidem apenas na apropriaçãode fontes que lhe eramoriginalmentealheias.

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vezes,descuravergonhosamenteoumaneja semescrúpulo, aobradeRuidePinaressente‑sedequebrasquenosinibemdeatomarcomoapoiosérioparaqualquerindagaçãoseguradoreinadodeD.Duarte11.

Deummodogeral, independentementedaquestãodeRuidePinaagirporincúriaoupormalícia,reconhece‑se,muitoobjectivamente,queo cronistaé extraordinariamentedescuidadonoapuramentodos factos,pois as crónicas têm erros e anacronismos imperdoáveis num cronistaoficial. Joel Serrão,no seuDicionário deHistória dePortugal, acusa aindaRuidePinadeomitirváriosfactosimportantesparaaHistóriadosDes‑cobrimentos,aindaqueelepudesseserdesculpadopelacélebrepolíticade sigilo alvitrada por JaimeCortesão12. JáDamião deGóis havia criti‑cadoo cronistapor terpassadoemclaromuitosacontecimentosocorri‑dosnaÍndiaenoutraspartes,comoe.g.atomadadeGoa13.Nãoadmira,pois,quealgumasdascrónicasdeRuidePinasuscitemalgumadescon‑fiança.

Este eclectismo subjectivo, aplicadoaosacontecimentosdeTânger,encontra‑seexplicitadopelopróprioRuidePinanoiníciodocapítulo10daCrónicadoSenhorReiD.Duarte:

Porque na teençam e fundamento que ElRey Dom Duarte teve, demandarhos IfantesDomAnrrique eDomFernando seus irmaaõs sobre aCidadedeTangeremAfrica,acheymuytasopinioēs:porbrevidadepoereyaquysoomenteaquemaisaprovadamepareceo.Em que se baseou Rui de Pina para seleccionar a versão que nos

apresenta?Quaisoscritériosutilizadosnessapreferência?Quetestemu‑nhos poderia ele invocar, se não era nascido quando grande parte dosfactosocorreu?

Consideremos, por outro lado, omodo comoD. Fernando é retra‑tadopelosseusbiógrafosquatrocentistas.________________

11Cf.DomingosMaurícioGomesdosSantos(1932),“DoValorhistóricodeRuidePina”,Brotéria 15 121‑139, p. 124.Vd. aindaDomingosMaurícioGomesdosSantos(1931),“D.DuarteeasresponsabilidadesdeTânger1436‑1438”,Broté‑ria12‑13vol.12:29‑34,147‑157,291‑302,367‑376;vol.13:19‑27,161‑173).

12Assim,naChronicadoSenhorReyD.Duarte,omiteasviagensafricanasouatlânticas;nadeD.AfonsoVsólhesdedicaumpobrecapítulo;nadeD.JoãoIInemsequerfazalusãoàdeBartolomeuDias.

13Vd.CrónicadoFelicíssimoReiD.Manuel,Parte4,cap.37.

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Possuímos duas biografias de D. Fernando: uma portuguesa (oTrautado da vida e feitos domuito vertuoso Senhor Ifante dom Fernando14) eoutra latina (oMartyrium et Gesta)15. Ainda que o texto latino se tenhabaseadoessencialmentenacrónicabiográficadeFr.JoãoÁlvares,secretá‑riodo InfanteSanto, forneceelementoshauridosdeoutras fontes,algu‑masdelasprovavelmenteoraisecoevasdosacontecimentosdescritos.

O texto em português pretende ser essencialmente uma biografiahistórica.Aversão latinaépuramentehagiográfica,aindaquecontenhaum núcleo genuinamente historiográfico, mas a forma como as duasobras procuram representar o Infante é idêntica. A hagiografia, maisbreve,condensaasqualidadesevirtudesfernandinasnoiníciodaobraesobretudono longocatálogodevirtudes tão típicodogénerohagiográ‑fico. A crónica biográfica de Fr. João Álvares orienta‑se, no retratodirecto,peloDecálogo,porqualidadesquereflictamasvirtudesteologais(Fé, Esperança, Caridade) e cardeais (Fortaleza, Justiça, Temperança,Prudência), pela prática das obras de misericórdia, pelo cumprimentodospreceitosestabelecidospelaSantaMadreIgreja,enfim,pelosprincí‑piosdefinidospeladoutrinacristãepelosEvangelhos.

Alémdeosdoisautoresperspectivaremasuacaracterizaçãodirectapelapositiva,alternamestemodelocomumaexaltaçãopelanegativa,ouseja,reafirmandoosvíciosepecadoscapitaisqueD.Fernandoprocuravaevitar.Todaavirtudetemumvíciocorrespondenteàfaltadasuaprática,tal como todo o pecado tem a respectiva face positiva, o seu remédio,numadasvirtudes.

Estaeraapráticahabitualdoshagiógrafosmedievais.Asantidadeerainicialmenteanalisadamedianteaverificaçãodapráticadasvirtudes.Noentanto,issonãobastava,comorefereA.Vauchez.Ossantosdeviamcultivarasreferidasvirtudesemelevadograu(emʺgrauheróicoʺ,istoé,muitoacimadoquenormalmenteseexigedequalquercristão16)eagraça________________

14JoãoÁlvares(1960),Obras.EdiçãocríticacomintroduçãoenotasdeAde‑linodeAlmeidaCalado.Vol.1:TrautadodavidaefeitosdomuitovertuosoS.orIfanteD.Fernando,Coimbra.

15Martirium pariter et gesta magnifici ac potentis Infantis Domini Fernandi,magnificiacpotentissimiRegisPortugaliefilii,apudFezprofideizeloetardoreetChristiamore.Códicenr.3634doFundoLatinodaBibliotecaApostólicaVaticana.

16ÉestaaindaaterminologiaesãoestesosparâmetrosqueaCongregaçãoparaaCausadosSantosutilizanosprocessosdebeatificaçãoedecanonização.

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divina que os animava devia manifestar‑se através de acções ultra‑humanas17.

Todavia, a santidadeevoluíano sentidodeumamaior interioriza‑çãobaseadana sujeiçãovoluntáriaao sofrimentoeprivação,à imitaçãodapobrezae renúnciadeCristo,“seguindonuaCristonu” (nuduscumChristonudo,dizabiografialatina).

Ora, a característicamaismarcante que podemos colher das duasbiografias é justamente a forma tão íntima e tão profunda da vivênciareligiosa de D. Fernando. Com isto não nos estamos a referir àsmanifestações exteriores, comoo espírito de contrição oudeprevençãobaseado no aniquilamento e humilhação do próprio corpo, i. e., amortificação através de cilícios e disciplinas, de forma a afugentar osprazereseencantosdomundo18.Nãonosestamosareferirtão‑poucoaocumprimento dos preceitos estabelecidos pela Igreja, designadamentejejuns – que eram muitos, excessivos até, e variados, como nos teste‑munham os longos elencos registados nas duas biografias –, vigílias esantificaçãodedias santos e festasdeguarda, aindaqueo sacrifíciodojejum e abstinência, aliado ao das vigílias, fosse entendidopelo Infantecomoummeiodesantificaçãoedeconsolidaçãodasuafé.Tambémnão

________________

17 Vd.AndréVauchez (1981),La sainteté enOccident aux derniers siècles duMoyen‑Âgedʹaprèslesprocèsdecanonisationetlesdocumentshagiographiques,Roma,p.606.RefereVauchezqueaexpressãosurge,pelaprimeiravez,porocasiãodacanonizaçãodeS.Luís.Ora,sehásantocujopercursodevidamaisseassemelheao do D. Fernando é precisamente o rei francês, pelo qual, aliás, D. Fernandotinhaumadevoçãoparticular.

18Oautordabiografialatinaapresentaumaoutrajustificaçãonaslin.62‑63:Et,utcumulusmeritorumsanctouiroaccresceret,ieiuniis,poenalitatibusetafflictionibuspropriumdiremacerabatcorpus(“paraqueoacréscimodosméritosdosantovarãoaumentasse, mortificava duramente o seu próprio corpo com jejuns, cilícios edisciplinas”).

Aocontráriodoqueerahabitual,oespíritodocastopríncipeD.Fernandonãoprecisavadeserpurificadoporquaisquerexercíciosmortificantes,porqueoautorpartiajádoprincípiodequesetratavadeumserimaculado,quasepredes‑tinadoàsantidade.Oscilícioseoutrossacrifícios,dequeocomumdosmortaisnecessitava,pararealizarasuacatarseecolocarasuavidanorectocaminhodasvirtudes, serviamapenaspara fazer aumentarosméritosdequem já conseguiapreservarasuapureza.

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estamos a fazer alusão ao seu mecenato na construção e reparação deigrejaseermidasouàsuapreocupaçãoemproveroslugaresdecultodealfaiaslitúrgicasedetudoomaisquepudessecontribuirparavalorizareenriqueceraliturgia.

Referimo‑nos,antes,àrecitaçãodiáriadoofíciodivinocompleto,talcomoofaziamossacerdotes,incluindoasmatinas.Lembremosquedetalformaelesealheavadaspreocupaçõesterrenas,queseusecretário,alémdeoacompanharnassuasdevoçõesedeorganizaroslivrosnecessáriosaocumprimentode todasassuasdevoções, tinhaa incumbênciade lhelembrar as obrigações terrenas. Não fora este apoio do secretário,esquecer‑se‑iadetudoomais,tãoabsortoeleficavanaoração,meditaçãoou simples leitura. Recordemos a intensidade espiritual com que parti‑cipava no ofício divino, sobretudo quando este tinha acompanhamentocoral,polifónicoougregoriano.Referimo‑nosigualmenteàlongashorasdedicadasàmeditaçãoeàsincontáveispregaçõescomqueelealimentavao espírito. Estamos a pensar ainda na devoção e adoração constante,semprequeoSantíssimoestivesseexpostona igreja.Recordamosaindaa devoção, piedade e recolhimento com que ele acompanhava asprocissões.

O idealdevidado jovemFernando edosqueviviamna sua casaassemelhava‑se muito ao de uma comunidade religiosa. Lembravamesmo o idealmonástico. BarbosaMachado comenta queD. Fernandoagia“comoseforaAnacoretadaThebaida”.

Esta evolução da religiosidade para ummisticismo cada vezmaisascético, conjugado com a laicização da espiritualidade monástica,prenunciava já o ambiente da deuotio moderna que, sob influência dosFranciscanos,seiacentralizandonaimitaçãodeCristoenameditaçãoevivência,emelevadograudeintensidade,daPaixãodeCristo19.TambémVauchezevidenciaa“espiritualizaçãocrescentedanoçãodesantidade”apartirdo finaldo séc.XIII, “no sentidodeumaclericalizaçãoacrescida,

________________

19SabemosqueodevotoInfantesecompenetravaassiduamentereflectindoemeditandosobreaPaixãodeCristo(cf.lin.622‑623:…PassionisChristiuirtutisefficaciam, quoniam illius meditationis ardor alleuiat uim doloris (“… a eficácia dopoderdaPaixãodeCristo,porqueoardordasuameditaçãoaliviaaintensidadedador”).

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sob influência das Ordens Mendicantes”20, e centralizada na práticavivencialdaimitaçãodeCristo,comoafirmaLeGoff21

Noretratoactivo,ambasasbiografiassepautamporumdecalquedavidadeD.FernandosobreadeCristo.Sãomuitosospassos,tantonacrónica portuguesa, como na hagiografia latina, exemplificativos dapreocupação demiúrgica em se objectivar uma organização de algunsprocedimentosdiegéticoseumacaracterizaçãodoprotagonistadecalca‑das na imagem e acção cristológicas. Por vezes, essa intenção é denun‑ciada explicitamente aníveldasmicroestruturaspormeiodo recurso adeterminadasexpressões.

Apanágioqueeradeumaespiritualidadetipicamenteemcrescendono séc.XV e emplena evoluçãodo idealmonásticoparaumavivênciamaisconformeaosprincípiosconsagradospeladeuotiomoderna,aconfor‑matiodasatitudesdeD.FernandoàsqueCristoassumenosEvangelhosacaba por cadenciar, de forma regular e persistente, ambas as obras,com especial relevo para oMartyrium et Gesta, por esta biografia sermenosextensaenãoseperderempormenoresdeíndolehistóricaque,naobra de Frei João Álvares fazem diluir, de alguma forma, a impressãocristológica da vida fernandina que o autor pretendia suscitar nosleitores.

LembremososvitupériosdequeoInfanteSantofoialvoporparteda populaça da mourisma, quando foi transportado de Tânger paraArzilaenaviagemdeArzilaparaFez,fazendolembrarosmesmospro‑cedimentosporpartedeRomanoseJudeusnoiníciodaPaixãodoSalva‑dor.TalcomoderamaCristoumacanaverde,tambémaD.Fernandolhecolocaramumavaranamão.

Na 553 doMartyrium et Gesta – cum sic tractaretur, non aperuit ossuum(“Eemboraelefosseassimtratado,nãoabriuaboca”)–,encontra‑

________________

20 Vd. André Vauchez (1989), “O Santo”,OHomemMedieval. Ed. JacquesLeGoff & alii, Direcção de Jacques LeGoff, Lisboa, pp. 211‑230 (citação dap. 219); eAndréVauchez (1980), “Les représentationsde la sainteté dʹaprès lesprocès de canonisation médiévaux (XIIIe‑XVe siècles)”, Convegno InternazionaleʹAgiografianellʹOccidenteCristiano.SecoliXIII‑XVʹ.(Roma,1‑2marzo1979(AttideiconvegniLincei48),Roma,pp.31‑43.

21 Vd. Jacques LeGoff, F. Cardini, E. Castelnuovo, et al. (1989),OHomemMedieval,Lisboa,p.24.

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mosumacitaçãoimplícitadoLivrodosSalmos22queintegraaliturgiadeSábado Santo e se enquadra bem no contexto doMartyrium et Gesta enapreocupaçãoconstantedoautoremprojectarafiguraevidadeCristona caracterização do ínclito mártir. Com efeito, também quando, pelaúltimavez,PilatosinterrogouJesus,oSalvadornadarespondeu23;calou‑‑se ainda quando foi acusado pelos anciãos e príncipes dos sacer‑dotes24. Assumiu igualmente uma posição tácita perante Herodes25,sofreu pacientemente os impropérios dos Judeus sem esboçar qualquerreacção26.

OssofrimentosdoInfanteeasuareacçãoaosmaustratosdequeéalvosãodecalcadosnorelatodaPaixãodoSalvador.Onossoautordi‑loexplicitamentenals.545:...totaquippeuiriDeimenscircapassionemDominiuersabatur (“todo o pensamento do homem de Deus se dirigia para aPaixãodoSenhor”).EstaconvergêncianãosignificaqueobiógrafolatinotenhaadaptadooseutextoaodosEvangelhosalmejandoaplenasintonialiterária, i. e. visando objectivos “canonizantes”27. O fervor místico doInfante,que jáacolheouantecipaalgunsdospostulados inovadoresdadevotiomoderna,deixacrerqueanimasserealmenteD.FernandoaseguiràletraavidadeCristo.

As ls. 534‑564 doMartyrium et Gesta, nas quais se encontra inte‑grada a citação em causa, são um catálogo dos vitupérios, injúrias ehumilhaçõesaqueoInfanteSantofoisujeito.Aindiferençaeatéalegriacom que ele enfrenta os seus sofrimentos são explicitados através dosseguintes termos: gaudet in uerberibus (“regozija‑se com os açoites”,ls. 544) e dicebatque ipsum uituperantes et ei illudentes suae aeternae salutisministros(“diziaqueaquelesqueovituperavameoinsultavameramos

________________ 22Trata‑sedePs37.14:sicutmutusnonaperiensos suum (“comoummudo,

que não abre a boca”), que se encontra ainda em Prv 24.7 e em Is 53.7, comrepercussõesemAct8.32.

23Vd.sobretudoMc14.61,mastambémMt26.63.24Vd.Mt27.12‑14(=Mc15.3‑5).25Vd.Lc23.8‑9.26Vd.Mc14.65eaindaMt26.68ouLc22.63‑65.27 Na nossa dissertação de doutoramento registámos já as muitas fontes

franciscanas que o autor anónimo da biografia latina cita, designadamente S.Boaventura. Ora, nós sabemos quanto este místico seráfico identificou a suaprópriavidacomaPaixãodeCristo.

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instrumentosdasuasalvaçãoeterna”, ls.560‑562).Ora,estaúltimacita‑çãopressupõequeoInfante,talcomoCristo,concedeudetodoocoração,sem lugar a ressentimentos, um perdão total e incondicional aos seusalgozes. Efectivamente, as ls. 560‑562 correspondem a um passo doTrautadodavidaefeitosdomuitovertuosoSenhorIfantedomFernandoondeopróprio Infante declara explicitamente que ele já há muito lhes haviaperdoadotudooquelhehaviamfeito:

Estoporendedigonomporvingançadoquemefezerom,catodolhetenho ja perdoado, porquanto o que me fezerom e fazem he asy comomenistrosquesomdeminhasalvaçom28.NoTrautado da vida e feitos domuito vertuoso Senhor Ifante dom Fer‑

nando, o biografado não só lhes perdoa como procura convertê‑los,quantomaisnãosejaatravésdoseuexemplo.EajulgarpelaspalavrasdeFrei JoãoÁlvares, o Infante consegue‑o após a suamorte, come semaajudadosseusmilagres.

O que mais atormentava o Infante eram os trabalhos pesadosimpostos pelos Mouros aos seus companheiros de cativeiro. Pede, porisso,aLazaraquequeosdeixeempaz,poisestãoinocentes.SeoMouroquiser descarregar a sua fúria, que o faça sobre ele, pois é ele o únicoculpado.EstaatitudedeD.FernandofazlembraraimunidadequeCristopedeparaosseusdiscípulos,nomomentoemqueépresonoMontedasOliveiras29.

D. Fernando humilhou‑se, sem quaisquer preconceitos, perante osseuscompanheirosdecativeiro, tornando‑seseuservidor.Comefeito,aexemplode Jesus,naúltimaceia, tambémele serviaos seus irmãosemCristo, mudando‑lhes a roupa, dando‑lhes de beber, alcançando‑lhes aferramentaeconfortando‑oscompalavrasdeestímulo.Acaridadefaziaderrubartodasasbarreirassociais.

________________ 28 João Álvares (1960), Obras. Edição crítica com introdução e notas de

Adelino de Almeida Calado. Vol. 1: Trautado da vida e feitos do muito vertuosoS.orIfanteD.Fernando,Coimbra,p.84,lin.4‑7.

29Vd.Jo18.8‑9:Siergomequaeritis,sinitehosabire,ut impleretursermoquemdixit «quia quos dedisti mihi non perdidi ex ipsis quemquam» (“«Se é a mim quebuscais, então deixai estes ir embora». Assim se cumpria o que dissera antes:«Dosquemedeste,nãoperdinenhum».”).

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Aliás, uma das qualidadesmuito apreciadas sobretudo pelo povoera a sua simplicidade e humildade.A sua condiçãode príncipe não oinibia de pedir conselho sobre as suas acções a quem quer que fosse,mesmoàspessoasdecondiçãoinferior.Tambémnãoserecusavaadá‑losempre que era solicitado ou quando a consciência lho exigia perantedeterminadasituação.

Associava‑se a algumas festas, jogos e cerimónias, ainda que estesfossem habitualmente celebrados e festejados somente pela populaça,masnacondiçãodeelesserealizarememhonradeDeusoudossantos.Cumprido esse requisito, não tinha pejo algum em os fazer executartambémemsuacasaenosseuslugares.

Assistia com devoção a sermões pregados na igreja ainda quedestinados ao povo, dando, assim, não só exemplo de humildade e defraternidade, na qualidade de irmão em Cristo, mas assumindo‑setambém como um cristão que procurava incentivar os outros à práticaevangélicaatravésdoseuexemplo.

Esteespíritohumildedesãconvivênciacomascamadasmaisbaixasda sociedade e respectivos usos e costumes, o seudesprendimentodosbenseasuaprodigalidadenãoo impediamdeseataviarcomasvestesmais ricas e nobres, como convinham a um príncipe, quando seencontravana corteounoutrasocasiões e lugares emque lhe convinhausá‑los por serviço e prazer d’El‑Rei e por guarda de seu estado.Mas,foraisso,nuncaosenvergavasenãonasfestasediassantos,esóofaziacomoúnicointentodelouvareserviraDeus.

Jamais,nanossaHistória,umpríncipeportuguêsserebaixaracomtamanhahumilhação.Narealidade,ahumildade,queelepreferia,tantoparasi,comoparaosseus,atodasashonras,eratambémumaformaderesistiraosimpulsosmundanos,designadamenteaosassédiosdasoberbae da avareza. Efectivamente, receando ele, desdemuito cedo, deixar‑sedeslumbrar ou pela categoria social dos pais ou pelas riquezas da casareal, ou temendoque a exuberânciada juventudeo fizesse incorrer emperigos idênticos,encomendava‑seassiduamenteasipróprioaoSenhornassuasorações.

Conservava, desta forma, o espírito da mais perfeita humildade.Nuncadeu, por isso, grande importância às críticasdomundo, nem sedeixouensoberbecercomosseuslouvores.

CumpriaD.FernandoaconstataçãoobjectivadeVauchez,aplicávelamuitos outros santos: “[...]ces saints d’un type nouveau sont surtout

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louéspour leurpauvretéet leurhumilité,vertusquisont,avec lapiété,lesbasesdelasainteté”30.

Não esqueçamos que a humilhação e obediência têm a exaltaçãocomoconsequênciafutura,comodizS.Paulo:humiliauitsemetipsumfac‑tus oboediens usque ad mortem, mortem autem crucis, propter quod et Deusillum exaltauit ... (“rebaixou‑se a simesmo, tornando‑se obediente até àmorteemortedecruz;porissomesmoéqueDeusoexaltou…”31).

No catálogo de virtudes doMartyrium etGesta, encontramos, logona l. 17, o epíteto totius humilitatis exemplum (“exemplo de toda ahumildade”), influenciado certamente pela liturgia de Domingo deRamos:Deus,quihumanogeneriadimitandumhumilitatisexemplumsalua‑toremnostrumcarnemsumereetcrucemsubirefecisti...32.

Embora a literaturahagiográfica tivesse característicasparenéticas,fornecendo aos crentesmodelos exemplares dignos de imitação, o bió‑grafoanónimodeD.FernandoexplicitouaquiessafinalidaderecorrendoàliturgiadeDomingodeRamosondeaexpressãoseaplicavaaoSalva‑dor.Maisumavez,nosétraçado,deformasubtil,oparalelismoentreocarácter do Infante e o de Jesus. O hagiógrafo insinua que omodo devida de D. Fernando se encontrava em perfeita consonância com o deDeushumanado.A imitaçãodeCristoera,pois, literalmente cumprida.Aconclusãoquedaquisepodiaextrairéadeque,sendoavidadonossoInfanteumdecalquedadoMessias,commaiorrazãosejustificavaasuacanonização.

O mimetismo cristológico dos relatos evangélicos pelos biógrafosfernandinoséaindaevidenciadopelosdoistextosnumaoutrasituação:aexemplodoepisódiodaTransfiguraçãodeCristo,noMonteTabor,tam‑bémD.Fernandopediuaoconfessorquesórevelasseoportentodequeforaalvoapóseste terregressadoaPortugal,anãoserqueo louvordeDeusedaVirgemMariaassimojustificassem.

Apósasuamorte,foiocorposuspensodamuralhasdeFez,paraosMourospoderemdescarregar nele toda a sua raiva.Algumasdaspala‑

________________

30AndréVauchez(1980),ReligionetsociétédanslʹOccidentmédiéval ,Torino,p.43=p.131deAndréVauchez(1976),“Chieranoglispirituali?”,inAttidelIIIConvegnointernazionalediStudiFrancescani(Assisi,1975),Assisi,pp.127‑143.

31Phil2,8‑9.32DominicaPalmarum,Collecta.

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vrasqueproferiamfaziam lembraroescárniocomqueCristo,“ReidosJudeus”,foiafrontado:

Perosmuroseporforadavila,osvaleseouteyroseramcubertosdeinfiindajente,quenomsoomenteIhesabastaraveeremaquelecorpopostoemtantadesonra,maisaindaqueesperavomperaveeremdeleoutramayorvingança.Hũus lançavompedras,outros larangas,outroscospiomcontraelee,compalavrasd∙escarnhoededoesto,faziombulraediziom:“Esteheo rey dos arenegados que vinhom conquistar os mouros de Deus? Quesandya jente, que nom cabiom em sua terra e queriom tomar alhea. Oratomemoquelhesaveeo”33.Éaindaassazcuriosooparalelismoentreocenturião,quereconhe‑

ceuadivindadedoMessiasapósamortedeCristonoGólgota,eocru‑delíssimomouroLazaraque,quandoestereconheceasantidadedonossoherói:

Se antre os peros arenegados dos christãaos ouve alghuum bem,neestequeoramoreoavia,e, semouro fose,por tresbondadesqueouveforamuygrande santo. Eu sey, dise ele, quenuncamentio, nemnunca oacheyemalghuãmentira.Dequantasvezesomandeyespreitardenocte,porsaberoquefazia,senpreoachavomemgiolhos,rezando,esemduvidaera homem demuita oraçom. A outra vertude que tiinha dizem que eravirgem e que nunca conheçeo molher. Çertamente grande pecadoguanharomdelesuasjentes,queoqualeixarommorrer34.ApósamortedeD.Fernando,os seus companheiros sãoacusados

pelosMourosdeonegarem,fazendolembraratriplanegaçãodeCristoporS.Pedro:

Jaagoraestestaaes,queaquijazemcomele,onegavomdeseuReyediziomqueoutromayorreytẽememPortugal.Ainda no relato dos milagres encontramos vestígios deste parale‑

lismocristológico.Aumdosmouros,quehaviasidocuradoporinterces‑sãodeD.Fernando,é‑lheimpostoosilêncioabsolutosobpenademorte.________________

33Trautado,p.97,lin.12‑21.34 João Álvares (1960), Obras. Edição crítica com introdução e notas de

Adelino de Almeida Calado. Vol. 1: Trautado da vida e feitos do muito vertuosoS.orIfanteD.Fernando,Coimbra,p.90,lin.18‑27.

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Ora,tambémassimaconteceu,apósaressurreiçãodeCristo,comossol‑dadosqueguardavamosepulcro35.Mesmodepoisdamorte seprocuraestabeleceroparaleloentreavidadeCristoeadoInfanteSanto.

AimitaçãodavidadeCristoporD.Fernando,tãotípicadofrancis‑canismo e da deuotio moderna, assume o seu expoente máximo com aentregavoluntáriadeD.Fernandocomorefémemproldasalvaçãodosseus companheiros de armas e sobretudo de seu irmão, D.Henrique,abnegado e generoso auto‑sacrifício que valeu ao Infante a auréola demártir.

Na Idade Média, se os nobres queriam imitar verdadeiramente aCristo, deviam irmais alémno seu desprendimento dos bens terrenos.DizLeclercqqueatravésdoexemplodeSanta IsabeldaHungriaoudode São Luís,mais tardio, surge claramente um novo conceito de santi‑dade.Apartirdeentãojánãobastava,paraaalcançar,oplenocumpri‑mento das exigências do estado de cada um, nem o exemplo dasmaisaltasvirtudesmorais;eraimperiosoimitarCristonoseudespojamentoenosseussofrimentos...36.Vauchezsublinhaesteaspectoexplicandocomodeve ser interpretada a genuína pobreza no âmbito da sequela Christi:“…êtrepauvre, cen’estpasseulementmenerunevie simpleet frugale,c’est avant tout imiter leChristdans le refusde toute installation etdetouteappropriation...”37.________________

35Cf.Mt28,11‑15:Enquanto elas iam a caminho, alguns dos guardas foram à cidade

participaraossumossacerdotestudooquetinhaacontecido!Elesreuniram‑‑secomosanciãos;e,depoisdeteremdeliberado,derammuitodinheiroaossoldados,recomendando‑lhes:«Dizei isto: ʹDenoite,enquantodormíamos,osseusdiscípulosvierameroubaram‑no.ʹE,seocasochegaraosouvidosdo gover‑nador, nós o convenceremos e faremos com que vos deixetranquilos.»Recebendoodinheiro,elesfizeramcomolhestinhamensinado.Eestamentiradivulgou‑seentreosjudeusatéaodiadehoje.36 Vd. Jean Leclercq (1990), LʹAmour des Lettres et le Désir de Dieu, Paris,

p.167.37AndréVauchez (1980),Religion et sociétédans lʹOccidentmédiéval,Torino,

p.39(=p.127deAndréVauchez(1976),“Chieranoglispirituali?”,inAttidelIIIConvegnointernazionalediStudiFrancescani(Assisi,1975),Assisi,pp.127‑143).Vd.tambémAndréVauchez(1970),“LapauvretévolontaireauMoyenÂge”,Annales,Economies,Sociétés,Civilisations251566‑1573.

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Ora, não haverá pessoa no séc. XV português que tenha sido tãodesprendida dos bens materiais e tão generosa na repartição dos seusrendimentos. De bom grado estendia a mão aos pobres e carenciados,socorrendo‑osnamedidadassuasposses,perdoando‑lhesasdívidas,emsuma, aliviando as misérias daqueles que haviam sido atingidos pelainfelicidadedapobreza,mastambémdadoença,sobretudoos leprosos,oudecircunstânciasbempiores, comoocativeiro.Efectivamente,dedi‑cavaespecialatençãoaoresgatedecristãoscativose,quandotalnãoerapossível, dava muitas esmolas para acudirem às necessidades maisprementes durante o cativeiro.Nem no seu testamentoD.Fernando seesquecedaremissãodecativos,preferindoqueasdespesascomassuasexéquiassejamantesaplicadasemmissasporsuaalma,emesmolasenaremissãodecativos.Quandoo InfanteSanto,mais tarde,duranteo seupróprio cativeiro, tem ocasião de contactar pessoalmente com eles, nãoperde a oportunidade de os confortar espiritualmente, nutrindo‑os evestindo‑osàsuacusta,porintermédiodosmercadorescristãosejudeusquedemandavamaquelas paragensdoNortedeÁfrica. E, apesarde odinheiro ser escasso, conseguiu, mesmo assim, resgatar uns 12 cativosqueaíseencontravam.Ora,oresgatedecativoseraumadasprincipaisobrasdemisericórdiana IdadeMédia. Justamenteumadas razõesque,nocativeiro, lhedavamalgumalentoe coragempara resistir, em terrastão hostis, aos sofrimentos e maus‑tratos era a de poder intercederjunto d’El‑Rei e de seus irmãos pela libertação dos cristãos cativos dosMouros.

TambémodesvelodemonstradoporD.Fernandonaconversãodosinfiéis, judeus e mouros contribuía para agravar os seus já parcosrecursos.Éque,graçasàssuasexortaçõeseensinamentos,forammuitososInfiéisqueabraçaramafécristãpelagraçadoBaptismo.

Se a sua prodigalidade provinha do mais íntimo do espíritocaridoso, também não existia nele réstea de inveja, demalquerença ouqualquer intenção de prejudicar o próximo. Pelo contrário, sentia umaprofundaalegriacomaprosperidadedosseussemelhantesetalcomosealegravacomobemdopróximo,damesmaformasecontristavacomasuainfelicidade.

Jamaiseleinvejava,cobiçavaouseapropriavadoalheio.Porvezesaconteciaqueosjuízesmandavamconfiscarosbensdecriminosos.El‑Reiquisoferecê‑los,pordiversasocasiões,aD.Fernando,maselesempreserecusouaaceitá‑los,pormais justoe legítimoque fosseomotivodessa

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expropriação, pois recusava‑se a enriquecer a sua casa com a desgraçaalheia.

Também jamais instaurou algum processo contra alguém para seapoderardebensalheios.Damesmaforma,nuncaempreendia,porsuaprópria iniciativa ou a pedido de outrem, o que quer que fosse dondepudesse advir prejuizo para alguém. Pelo contrário, mostrava tantasatisfação comasmercês feitas aos outros como se estes fossemda suacasa.Mas também não admitia que se deixasse de se fazer justiça noscasosemquealguémfosseprejudicado.

Tão escrupuloso era em não se apropriar de bens alheios que serecusou a aceitar o Mestrado de Avis, argumentando que os bens daIgreja não deviam ser entregues ao usufruto dos leigos, pois “haviamsido consagrados somente aCristo”. Perante as fortes insistências d’El‑‑Rei,resolveaceitá‑loemboraacontragostoeapenasporobediênciaaEl‑‑Rei,enquantoseusuperior.

Efectivamente, sempre foi muito obediente aos mandamentos daSantaMadreIgrejaeàsordensdeEl‑Rei,seupai,e,maistarde,deE‑ReiD.Duarte,seuirmão,contrariamenteaoqueRuidePinapretendefazercrer.

Porém, D. Fernando tinha esta solução do Mestrado de Avis porprovisóriaeexprimiaosecretodesejodeessesrendimentosregressaremaousoaquehaviamsidodestinados.

Estes escrúpulos são corroborados pelo seu testamento, redigidoapenasquatrodiasantesdeaesquadranavallevantarferroemdirecçãoaTânger38.

Apartefinaldotestamentofernandinoéumlongocatálogoindivi‑dualizado de doações e pagamentos de dívidas. Além disso, procuraacautelarofuturodosseuscriadoseservidores.Todasestasprevençõesseencontramrelacionadascomosescrúpulosacimareferidosdeseapro‑priardoalheiooudecausarprejuízoaopróximo.

________________

38Quatrodiasenãoummês,comoafirmaDiasDinis:vd.A. J.DiasDinis(1970),“Emtornodos testamentosdo InfanteSanto”,Ultramar 10,4,nº401‑19.Efectivamente,emboraapelejasóse tenha iniciadocercadeummêsdepoisdadata da assinatura do testamento – porque a frota lusa largou primeiro paraCeutaedaíéquefoipreparadaaincursãosobreTânger–,aarmadadeuàveladapraiadoResteloquatrodiasapósaqueladata:a22deAgostode1437.

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Nessa perspectiva deve ser considerado o aditamento às suasdisposiçõestestamentárias,queeleredigiu,jánasmasmorrasdeFez,em1443,porformaaincluiropagamentodasdívidascontraídasparacomomercadormaiorquinoCristóvãodeXalóm,que,contraavontadedasuafamíliaecomgrandeprejuízoparaosseusnegócioseperigoparaasuaprópria integridade física, socorrera monetariamente D.Fernando e osseuscompanheirosnocativeiro.

Se tivermos em consideração que D. Fernando era um defensor eprotectordosmaiscarenciadosedesprotegidos,queotinhamporpai,equeaprotecçãoqueoInfanteprestavaaosórfãoeàsviúvas39,contrariavaprecisamenteumdosquatro“pecadosquebradamaoCéu”,umasituaçãoqueéduramentecriticadaaolongodequasetodooAntigoTestamento40– a “opressão dos pobres, principalmente dos órfão e viúvas” –, nãopodemos compreender como é que Rui de Pina pôde afirmar que aexpedição recorreuaodinheirodosórfãos.OsexemplosquevimosdosescrúpulosdeD.Fernandoemaceitarproventosoubensalheios,ouqueele considerava alheios, ainda que o não fossem aos olhos de todos osoutros, permitem‑nos afirmar categoricamente que jamais o InfanteD.Fernandoconsentiriaparticiparnumeventoqueusurpasseospoucosrecursos destes frágeis membros da sociedade, múltiplas vezes pro‑tegidas porDeus ao longo de toda a Sagrada Escritura e que ele tantoprocurava salvaguardar dos abusos e explorações a que eram fre‑quentementeexpostos.Seumaatitudepassiva,derecepçãodessesbens,é impensável num Príncipe de Avis, muito menos se nos afiguraadmissívelumaatitudeactiva,napromoçãodeumactotãoinfame.Seriaesse mais um dos rumores que circulavam na época, falsamenteimputados à família real, numa tentativa de justificar a posteriori como________________

39 Os órfãos e as viúvas eram os membros mais indefesos da sociedade,sujeitosaabusoseexplorações,equeurgiaproteger.

40Vd.Lv19.13;Dt26.12;Jb12.21;Ps93.6;Ps145.9;Is1.17(subueniteoppresso,iudicatepupillo);Bar6.37; Jr7.6; Jr21.12;Za7.10,mas,sobretudo,Ps9.39: ([...]utiudices pupillum et oppressum) e Ps 67.6 (patri pupillorum et defensori uiduarum oupatris orfanorum et iudicis uiduarum, conforme as versões da Vulgata”). No AT,aparecemuitasvezespupillusemvezdeorfanus(vd.e.g.Ex22.22e24;Dt10.18;Dt 14.29; Dt 16.11 e 14; Dt 24.19‑21; Dt 26.12‑13; Dt 27.19,... só para referir ospassosdoPentateuco).Dispensamo‑nosdeapresentarmaisexemplospelavastacópiaqueostextossagradosnosoferecem.

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castigo divino o êxito infeliz da campanha, atenuando, assim, a ver‑gonhadaderrotaeaquebradareputaçãodosquenelaparticiparam,ouentão no intuito de agravar maliciosamente a culpa dos Príncipes deAvis.

EntreascaracterísticasdignasdeimitaçãofiguraavirtuosidadedoInfantenousodapalavra,queé igualmente referenciadanasduasbio‑grafias.Porém,contrariamenteaosseusirmãosmaisvelhos,nãoescreveuqualquer obra.Mas tal não significa que fossemenos culto,muitopelocontrário. Foi eleque adquiriuumexemplardoDeOfficiis deCícero, omesmoqueviria a ser oferecido aD.Pedroparaque este o traduzisse.Também se correspondia com os monges de Alcobaça solicitando‑lhescópiasdeobrasdabibliotecalocal.AtéparaFlorença,porintermédodoabadeD.Gomes,pediacópiasdeobrasparaasuabiblioteca,que,àdatadaredacçãodoseutestamento,reunia44espécimesbibliográficos.

Porém, se os irmãos se dedicaram à palavra escrita, D. Fernandodedicou‑seàpalavraoral.Eraestaquemaisseprestavaàtransmissãodadoutrinacristã.Seosirmãoseopaitinhamcomopúblicopreferencialosmembrosmais cultos da nobreza e de alguma burguesia, D. Fernandoprivilegiava,comasuapalavraoral,ascamadasmais incultasdasocie‑dade,opovoquemereciasereducadoeevangelizado.

D. Fernandodedicava grande importância à palavra: a palavradaevangelização,adoaprofundamentodafé,adaconversãodosinfiéis,apalavra de conforto espiritual para os enfermos e indigentes, mastambémaausênciadapalavraperantesituaçõesdeconflito,deintrigas,injúrias,difamações.

Dizem os seus biógrafos que nunca se lhe ouviram palavrasobscenas nem injuriosas, nem admitia que outros as dissessem na suapresença. Guardou‑se sempre de, em qualquer circunstância, sob qual‑quer pretexto, asseverar o que quer que fosse sob juramento, ou deproferir palavras estéreis, vãs ou torpes. Pelo contrário, tinha todo ocuidadoemevitaraconversaçãovãe frívola.Assuaspalavraseramdegrande sabedoria e tal era a sua eficácia, quepenetravamno íntimodocoraçãodosseuscompanheiros,queosdeixavamcompletamentearreba‑tadoseserenavamosseusespíritos.

Tão‑pouco se lhe conheciam quaisquer expressões de escárnio ouque revelassemsequeromenordesprezopelosoutros. Jamaisos rebai‑xava,mesmoaosseuscriados,nemescarneciadopróximo.Considerava‑‑osatodosirmãosemCristo.

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EstesdepoimentosdosdoisbiógrafosfernandinoslançamumfortedescréditosobreaacusaçãoqueRuidePinadirigeaD.Fernandonocap.11daChronicadoSenhorReyD.Duarte:

[...]mas o Ifante Dom Fernando, como quer que sobre sua partidanomimportunasseaElReyempessoa,nomleixavadeseagravardissoemsuaausência, e apessoasdequeElReyho soubesse:hoqueElReymuytosentia.Umapessoa tão obediente aEl‑Rei e tão respeitadorde seu irmão

maisvelhonuncaseprestariaaandarpeloscantosametervenenocontraseurégioirmão,criticando‑ocobardementenassuascostas,assegurando‑‑se cruelmente de que seu irmão o viesse a saber.Atitude tão falha deedificaçãonuncapoderiacaracterizar–énossaforteconvicção–umfilhodeD.FilipadeLencastre.JamaisumPríncipedeAvisdesceriatãobaixo.

Podemos, pois, afirmar queD. Fernando era comedido no uso dapalavraeprocuravautilizá‑laparaobem,sobretudoparaasalvaçãodasalmas. A todos os infiéis que converteu com os seus ensinamentos ebaptizou, a todos acarinhou com especial dedicação, provendo‑os donecessário,aolongodasuavidanaTerra.

Perante este espírito de desprendimento pelos bensmateriais, quetemos vindo a analisar até agora, não admira que não raras vezesexperimentassesériasdificuldadesfinanceiras.

PoderíamosadmitirqueD.FernandopretendesseirparaInglaterrapor razões económicas. Uma das preocupações era a de obter maioresproventos,deformaapodersocorrereajudardevidamenteopessoaldasuacasa.E,defacto,oreiinglêsjálhehaviaasseguradoumatençasufi‑cienteparasieparaosseus.Masnãoseriaoprincipalmotivo.

RuidePina insinua subtilmentequeD. Fernando tinha invejadasmaiores posses dos irmãos, não hesitando em fazer chantagem comD.DuartesobaameaçadeabandonaraPátriacasoEl‑Reinãolhedessemaioresproventos:

Eporquelhepareciaquecomestascousas,aindaemhonrra,terraserendaseradesigualemmuytaparteaosIfantesseusirmaaõs,mostravadesigrandedescontentamento...41

________________

41Vd.RuidePina,ChronicadoSenhorReyD.Duarte,cap.10.

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Pelo desprendimento de D. Fernando, a que fizemos já alusão,custa‑nosacrerquetalcorrespondesseàrealidade.

E aindanomesmocap. 10daChronica doSenhorReyD.Duarte, nafala que imediatamente se segue, Pina atribui ao Infante Santo asseguintespalavras,dirigidasaseurégioirmão:“seyquesomesfaymadodahonrraedemeuspropriosmerecimentosperaaver”.Umpoucomaisadiante, ainda no mesmo capítulo, acrescenta: “[...]e eu sommanceboqueaindanomfizpermymcousa,perqueousechamar‑meeufilhodetalPadreouirmaaõdetaaesirmaaõs[...]eamimprocurareyhonrraepro‑veito,comosomobrigado”.

ContrariamenteaoqueRuidePinainsinua,D.Fernandonãoestavaimpacientedeespóliosoudeoutrasriquezasafins.

D.Fernandohavia sidoeducadonumambienteemquesepressu‑punha a priori que um escudeiro ou aspirante ao grau de cavaleiro sedeviasentirobrigadoairporseusméritosembuscadehonrasuficienteparalheserematribuídasasesporasdecavaleiro.Acalentou,anosafio,noseuíntimo,oanseioespiritualdeserdignaemerecidamentearmadocavaleiro.Eramsobretudoahonraeoidealdecavalariaqueomoviam.OInfanteestavahabituadoaouvirdesdecriançaasfaçanhasdoscavalei‑rosdaTávolaRedonda.EraestamatériadaBretanhaqueentusiasmavanão só os jovens da época, como também cavaleiros da fibra de umÁlvaro Vaz de Almada ou de um Álvaro Gonçalves Coutinho (oMagriço) a demandarem, à aventura, outras terras, onde granjeavamprestígioefortunasportodaaEuropa.Eraesteoideáriodoséc.XVquecompelia a nobreza da época a partir à aventura. “Impaciente por darpastoàforçadaidade”42,D.Fernandoacusava,portanto,onobrecarácterdamais alta estirpe de Lencastre e deAvis que o instava a alcançar adignidadeporméritopróprio, tal comooutrora o haviam exigido aEl‑Rei, seu pai, os seus irmãosmais velhos43. Por outras palavras, Tânger

________________ 42J.P.OliveiraMartins(61936),OsFilhosdeD.JoãoI,Lisboa,p.163.43EdgarPrestageconcluíaassimaanáliseàsvirtudesdeD.Fernando:

Nada faltoupara fazerdesteGrãoMestredeAvisoperfeito tipodecavaleiro,porque,comoosirmãos,erahábilemtodososjogosedesportosdaépoca,assimcomotambémamavaos livros,emboranãofosseescritor,comoD.DuarteeD.Pedro.Vd. Edgar Prestage (s. d.), A cavalaria medieval: ensaios sobre a significa‑

ção histórica e influência civilizadora do ideal cavalheiresco, por professores do

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estáparaD.Fernando,comoCeutaesteveparaD.Duarte,D.PedroeD.Henrique.OjovemMestredeAvisexplicitaessedesejo,logoaseguir,namesmacrónica:

esperodevós,nomsoomentecomodemeuprincipalSenhor,mascomodeirmaaõ e Padre, que queiraisminha honra e acrecentamento, pois sabeesqueaindapermynomfizcousaquepareçadeCavaleyro;porquevóseosIfantesDomAnriqueeDomPedromeusirmaaõsfostesnaCidadedeCeita,natomadadaCidade,ehoIfanteDomJohamfoydespois,nodescercodaCidade, em cuja empresa e perigo merecestes e vos deram a honrra daCavallariaque tendes:eeu ficosoo,emmayor idadedaqueentomerees,semateer,nemvejoesperançaperaysso44.Nãoopodemos censurarpor isso,pois a fibrada ínclita linhagem

deAvispulsava‑lhenasveias.Aglóriaouahonraera,pois,motivosufi‑cienteparaseparticiparemaventurasdestegénero,sobretudoquandosetratavade espíritosdestemidos, dominadospelonobre idealde cavala‑ria45. E, se há dinastia que, em Portugal, maior atenção dedicou a esteaspecto,foisemdúvidaadeAvis.

Tendoemconsideraçãoo idealdecavalaria,dequea ÍnclitaGera‑çãoseencontravaimbuída,aliadoàprotecçãoimplícitaqueoscavaleirostributavamàsdonzelas e viúvas, tendo ainda ematenção as considera‑ções por nós anteriormente desenvolvidas sobre o apoio aos órfãos e o________________ King’CollegedeLondres,traduçãodoinglêsporAntónioÁlvaroDória,Porto,s.d., p. 174, no cap. 6, da autoria do próprio Edgar Prestage, intitulado “ACavalariadePortugal”.

44Vd.RuidePina,ChronicadoSenhorReyD.Duarte,cap.10.45 Sobre o ideal de cavalaria, remetemos para Edgar Prestage (s. d.),

A cavalariamedieval: ensaios sobre a significação histórica e influência civilizadora doidealcavalheiresco,porprofessoresdoKing’CollegedeLondres,traduçãodoinglêspor António Álvaro Dória, Porto; J. Huizinga (1932), Le déclin au Moyen Age,traduitduHollandaisparJ.Bastin,préfacedeGabrielHanotaux,Paris,1932,pp.113‑129; Maurice Keen (1984), Chivalry, New Have‑London; e Ernst RobertCurtius(1996),LiteraturaEuropéaeIdadeMédiaLatina(LinguagemeCultura,24),traduçãoTeodoroCabralePauloRónai,SãoPaulo,pp.633‑654,queconstituemocapítulo intitulado “El código moral caballeresco”; Albano António CabralFigueiredo(1996),OidealdeCavalarianacrónicadatomadadeCeutadeGomesEanesdeZurara,Diss.,Coimbra,sobretudoocap.1.

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quedissemosacimasobreosescrúpulosdeD.Fernandoemaceitarpro‑ventosoubensalheios,i.e.,queeleconsideravaalheios,somoslevados,maisumavez,adesacreditarconvictamenteoabsurdoregistadoporRuidePinadequeD.Duarteteriarecorridoaodinheirodosórfãosparasub‑sidiaradesditosaexpedição46.

DiferentesjáterãosidoasmotivaçõesdeD.Henrique,sobreoqualpesavamasresponsabilidadesdeMestreOrdemMilitardeJesusCristo,fundada em Portugal por bula do Papa João XXII em substituição daOrdemdoTemplo.Eratodaumatradição,todoumpatrimónioculturaleespiritualque jávinhadeS.BernardoaqueesteMestredanovaordemsucessora dos Templários procurava dar prosseguimento. Não iremosaquitratardaculpabilizaçãodoInfanteD.Henriqueoudaresponsabili‑zaçãodeD.DuartepelotrágicodesfechodaconquistadeTânger,desig‑nadamente a problemática dos conselhos de D. Duarte e a nãomenoscomplexa questão dos pareceres dosmembros doConselhoReal. Tam‑bémpassaremosemclaroaquestãodorigorhistórico,dafaltadeimpar‑cialidadeedodescréditolançadosobreasCrónicasdeRuidePina.Jáofizemos na nossa dissertação de doutoramento, para onde remetemos.Vamo‑noscentrarnaafirmaçãoacimatranscritadeRuidePina.

As contradições entre os registos dos biógrafos e a opinião “quemaisaprovada”pareceuaRuidePinasãoabundantes,significativasesópodemserexplicadasmedianteaorigemnumadasdeformadasversõesda nobreza que pelejou em Tânger, a qual, certamente envergonhadacom o vexame de Tânger, encontrou no Infante D.Henrique o bodeexpiatório ideal. E os nobres estavam à vontade para o fazer, pois oNavegador retirou‑se completamente da Corte, após a desventuradacampanhadeTânger.Nãosepoderiadefenderdasacusaçõesquecontraeleeramlançadas.

Poder‑se‑ia alegar que Fr.João Álvares não quis comprometerD.Henrique,omitindoos informesemqueRuidePinasebasearaparaestabeleceraopiniãoque“maisaprovada”lheparecera.Lembremosqueo fiel secretário deD.Fernando se encontrava ao serviço do Infante deSagresquandoescreveuoTrautadodavidaefeitosdomuitovertuosoSenhorIfantedomFernandoequeestaobralhehaviasidoencomendadaprecisa‑mentepeloNavegador.TendoemcontaoenormedébitodoMartyriumet

________________ 46Vd.ChronicadoSenhorReyD.Duarte,cap.22.

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Gesta para com oTrautado, poder‑se‑ia argumentar ainda que oMarty‑riumetGestaselimitariaarepetiroqueacrónicaportuguesadiziaaesterespeito.

Porém,levamosmuitoasériootópicodaveracidadedosfactosqueFr.João Álvares exprime no prólogo com a solenidade de um jura‑mento47. Nesse propósito, assumido com tanta gravidade, estava emcausaoprestígionãosódasuaobra,mastambémdosfactosnarradose,consequentemente,odasantidadedeseufalecidoamo.Fr.JoãoÁlvarestinha plena consciência de que se incorresse namais ínfima inverdadequefosse,tudoomaissedesmoronariaecairiaemdescrédito.

Poroutrolado,numdosseusdiscursosregistadosnoMartyriumetGesta, D.Henrique bem previra as críticas que o povo faria quando astropas regressassem derrotadas de Tânger. E tinha muita razão, poisforam os próprios combatentes que mais alimentaram essas mentiras,para branquearem o que, na perspectiva destes, tinha sido um vergo‑nhoso desempenho48. Utilizando as palavras de Oliveira Martins, “achusmadesembarcavaesfarrapada,semarmaseespavorida;faziamgalada sua miséria, exagerando instintivamente, para desculpa, o poderincomensuráveldosMouros”49.

QuantoerafácilpôrmentirasacircularnaCortedeAvis,demons‑tra‑oadesgraçaqueseabateusobreoInfanteD.Pedropordesvalorizaraforçaeopoderdaviletorpecalúniaque,engenhosamenteurdidasobaformadeintriga,podeterconsequênciasfunestasparaobomnomeeatéfataisparaaintegridadefísica,comosecomprovounoseucaso.

D.Henriquebemsabiaquãoperversoe ignóbilo carácterdos fre‑quentadores da corte podia ser. Daí que se acautelasse, para que nadativessemadizerdasuapessoa.Porexemplo,apósaretiradadeTânger,D.HenriquepermaneceuemCeutaparapoder intervirmais lestamente

________________ 47Vd.Trautado,p.1‑2.Quasesepoderádizerquetodooprólogoédedicado

aotópicodaveracidadedosfactos,sendotodososoutros–odahumildade,odaimperícia,odacaptatiobeneuolentiae,odadedicatóriaeodaencomendadaobra–merosacessóriosdoprimeiro, tal é aveemência comqueo cronista fernandinonelepõeatónicadoseudiscurso.

48 Álvaro Vaz de Almada não é dessa opinião. O Capitão‑Mor do Marapresenta‑se vitorioso a D. Duarte. Em sua opinião, perante tão elevada infe‑rioridadenumérica,jáeravitóriasuficientesaircomvidadeTânger.

49J.P.OliveiraMartins(61936),OsFilhosdeD.JoãoI,Lisboa,p.233.

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nocasodeseproporcionar,dealguma forma,a libertaçãodeseusantoirmão. D. Duarte, porém, ordenou‑lhe que regressasse a Portugal. OInfantede Sagres retirou‑separa oAlgarvepelasmesmas razões queolevarama ficaremCeuta.QuisD.Duarteentregar‑lhe“o regimentodeÇeptaegovernança,comodantetinha”50,naspalavrasdeFr.JoãoÁlva‑res,masD.Henrique“nomoquisreçeberporlhenomdizeremqueeleestorvavaadadadeÇeptaporsentiremelloalghũupro[p]riointerese”51.D. Henrique tinha bem consciência da facilidade com que os falsosrumores circulavam na Corte e como a difamação prevalecia sobre averdade.Daíanecessidadedeseprecaveredenãodarazoacomentáriosmaliciosos.

MaséZuraraquemnospodeconfirmaroambientealeivosoepér‑fidoquesevivianacortedeD.Duarteedeseufilho,sobretudodurantearegênciadeD.Pedro.AodescreveroemocionanteepisódiodamortedeD.Filipa,GomesEanesdeZurararelata,nocapítulo43dasuaCrónicadaTomadadeCeuta,comoD.Filipaincitouosfilhosaconservarem‑semuitounidos, lembrando a famosa história do molho de flechas (a versãomodernamenteconhecidafazalusãoaummolhodevimes)que,noseutodo,nãopodeserquebrado,masqueumporumnãooferecequalquerresistência52.

Masjánocap.42damesmaCrónica,D.Filipa,nassuasrecomenda‑ções finais, havia insistido no respeito e amor entre os irmãosdeAvis.________________

50Vd.Trautado,p.33,lin.17‑18.51Vd.Trautado,p.33,lin.19‑21.52 Gomes Eanes de Zurara (1915), Crónica da tomada de Ceuta por El‑Rei

D. João I, publ. por ordem da Academia das Ciências de Lisboa por FranciscoMariaEstevesPereira.Lisboa,cap.43.AspalavrasemotivasdaRainhaforamasseguintes:

Porquesempreuosuyemhuũamoreuoomtade,semaueramtreuosnehuũ a desaueemça per obra nem pallaura, assy como uerdadeirosjrmaãos, uos rroguo e emcomemdo, que assy comouos ata aqui amastes,assy uos amees daqui em diamte em seruiço de nosso Senhor. [...] E, sefordesdesuayradosejmmijgos,nomaueraemuosaforçaqueha,seemdoambosemhuũamor,comoclaramentepodeesemtemderpolloexemplodafrecha, de que em nossa terra ha huũ a estoria, em que sse diz queligeiramente pode huũ homem quebrar huũ a e huũ a, e, pera quebrarmujtasjumtas,compremujtomayorforça.

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Nessemomentodescritivo,Zuraranãohesitaemregistaroseutestemu‑nhoocularsobreoqueaconteceunacortedepoisdodesastredeTânger:

«[...]E posto que alguũs por emueia sse entremetam de uos dizeralguũ a cousa comtra elles, numca lhes dees comprida ffe, amte os ouuysempre, e bem creo que acharees, que elles numca sse partem daquellauerdadeiratemçom,quedeuemteeraseusenhorejrmaão».Econtinuaoautor:

PorçertoestoguardouoIffamteDuartemuyespiçiallmente,oqueeuuymuy bem, quamdo o IffanteDomHamrrique ueo de Tamger, porquealguũs daquelles fidallguos que com elle forom, queremdo emcobrir seusfalleçimentos, deziam alguũas cousas comtra o Iffante, aas quaaes seujrmaãonomquisdarnehuũa ffe,amtedeziaqueseu jrmaãonompoderiafazercousaquenomfossejustaeboa,masqueellesodeziamporseescusardoquecomtraellesrrazoadamentepodiaseerdito.Lembremos que, enquanto Fernão Lopes privilegiava essencial‑

menteadocumentaçãoescrita,Zuraraconcediaprimazia,nassuascróni‑cas, ao registo oral, ao registo de testemunhas oculares dos aconteci‑mentosnarrados,comoRodriguesLapaesclarecidamentecomprovou53.

Quemelhorprovapodehaverdoqueotestemunhopessoal?Zuraraconfirmaquehaviaváriasversõessobreoacontecimentoeaausênciadecríticaoudecomentáriosequer,porpartedeZurara,aosargumentosdeD.DuartecaucionaajustezaeautenticidadedaexplicaçãoavançadapeloReiEloquente.SimultaneamentepõeemcausaaversãoseleccionadaporRuidePina, aquela quemais sepropagou eprevaleceupara aposteri‑dade e que serviu de base às injustas caracterizações produzidas porOliveiraMartinseJúlioDantas.

________________

53 Vd. M. Rodrigues Lapa (41956), Lições de Literatura Portuguesa. ÉpocaMedieval,Coimbra,pp.385‑390.

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