o velho paquetá

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7/29/2019 O Velho Paquetá http://slidepdf.com/reader/full/o-velho-paqueta 1/5 Não havia nada na geladeira, as roupas que vendi só me renderam um pão e um pouco de café. Fui ao mercado vestindo apenas um pijama, pois não tinha outra roupa. A atendente parecia não perceber o que eu vestia, me olhou apenas com um sorriso discreto, parecia não estar interessada em mim. Depois de  procurar entre as caixas de leite disponíveis, escolhi a mais barata. Chegando em casa, ligo a televisão, está sendo transmitida a tradicional corrida da cidade, o começo dela, para dizer a verdade. Um senhor de 70 anos se  prepara para correr enquanto é entrevistado, o velho é ex-ator e ex-boxeador, segundo ele. Lembrei de já tê-lo visto correndo pelas ruas do bairro (será ele mesmo?), quando disse a cidade onde morava, não tive dúvidas. Pensei em entrevistá-lo para ganhar alguma grana no jornal onde trabalhava, fui pesquisar sobre sua vida. Lendo os jornais e revistas na biblioteca, descobri que o velho havia realmente sido ator e que protagonizou, em outros tempos, um filme de velho-oeste. A intenção era se parecer com as obras de Sérgio Leone, mas acabou por lembrar mais os filmes de Mazzaropi. O velho trabalhou durante toda a infância e juventude em plantações na zona rural, até o dia em que adquiriu uma pequena propriedade e se casou. Quando seus ganhos como agricultor se tornaram insuficientes, se arriscou a lutar  boxe, ganhando inclusive alguns campeonatos locais, época em que foi apelidado de “Paquetá”. Decidiu se aposentar das lutas quando lhe ofereceram um papel no  tal filme. A conversa ao telefone se iniciou com uma mulher dizendo, num tom áspero e desagradável, que seu marido não se encontrava no momento, pedi para deixar o recado. No dia seguinte, pela manhã, o próprio velho me ligou, num tom sereno e educado, perguntando sobre o que se tratava a ligação. Aceitou de imediato minha entrevista, com a condição de ser feita na minha própria casa. Lembrei da minha pequena sala do apartamento e de seu péssimo estado, não havia condições de receber uma visita, o chão estava todo esburacado e o sofá caindo aos pedaços. Resolvi então cobri-lo com papelão e sacolas de

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7/29/2019 O Velho Paquetá

http://slidepdf.com/reader/full/o-velho-paqueta 1/5

Não havia nada na geladeira, as roupas que vendi só me renderam um pão e

um pouco de café. Fui ao mercado vestindo apenas um pijama, pois não tinha

outra roupa. A atendente parecia não perceber o que eu vestia, me olhou apenas

com um sorriso discreto, parecia não estar interessada em mim. Depois de procurar entre as caixas de leite disponíveis, escolhi a mais barata.

Chegando em casa, ligo a televisão, está sendo transmitida a tradicional

corrida da cidade, o começo dela, para dizer a verdade. Um senhor de 70 anos se

 prepara para correr enquanto é entrevistado, o velho é ex-ator e ex-boxeador,

segundo ele. Lembrei de já tê-lo visto correndo pelas ruas do bairro (será ele

mesmo?), quando disse a cidade onde morava, não tive dúvidas.

Pensei em entrevistá-lo para ganhar alguma grana no jornal onde

trabalhava, fui pesquisar sobre sua vida. Lendo os jornais e revistas na biblioteca,

descobri que o velho havia realmente sido ator e que protagonizou, em outros

tempos, um filme de velho-oeste. A intenção era se parecer com as obras de

Sérgio Leone, mas acabou por lembrar mais os filmes de Mazzaropi.

O velho trabalhou durante toda a infância e juventude em plantações na

zona rural, até o dia em que adquiriu uma pequena propriedade e se casou.

Quando seus ganhos como agricultor se tornaram insuficientes, se arriscou a lutar 

 boxe, ganhando inclusive alguns campeonatos locais, época em que foi apelidado

de “Paquetá”. Decidiu se aposentar das lutas quando lhe ofereceram um papel no  

tal filme.

A conversa ao telefone se iniciou com uma mulher dizendo, num tom

áspero e desagradável, que seu marido não se encontrava no momento, pedi para

deixar o recado. No dia seguinte, pela manhã, o próprio velho me ligou, num tom

sereno e educado, perguntando sobre o que se tratava a ligação. Aceitou de

imediato minha entrevista, com a condição de ser feita na minha própria casa.

Lembrei da minha pequena sala do apartamento e de seu péssimo estado,

não havia condições de receber uma visita, o chão estava todo esburacado e o sofá

caindo aos pedaços. Resolvi então cobri-lo com papelão e sacolas de

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supermercado. Para realizar a entrevista, pedi emprestado uma roupa de um

amigo, companheiro do jornal onde trabalhava.

 No dia seguinte, pela manhã, a campainha tocou, estavam à porta o velho e

sua esposa, que me despertou imediata antipatia. Convidei-os a sentar e ofereciuma bebida, mesmo sabendo que não tinha nada a oferecer, por sorte recusaram.

Comecei com algumas perguntas, que eram sempre respondidas de forma

agradável e descontraída pelo velho. Quando a mulher me pediu para ir ao

 banheiro, lembrei da imundice em que se encontrava, indiquei o caminho assim

mesmo.

Enquanto a mulher usava o toillet, o velho relutou um pouco quando

 perguntei sobre o filme, disse que não poderia revelar todos os detalhes. Fiquei

curioso com essa observação, perguntei a razão e ele me respondeu que, apesar de

não mencionar isso a nenhum outro jornalista, me falaria por ter despertado nele

certa afinidade e simpatia, agradeci sua confiança.

“Jamais usei nenhum tipo de droga” - disse ele  –  mas, a pedido dos

 próprios cineastas do filme, se viu obrigado a vender pequenas quantidades

dessas substâncias em sua antiga barraca na feira, para que este pudesse ser 

custeado e produzido. A razão para agir dessa forma foi que sua família estava

 passando por dificuldades. “Não tive outra escolha” – disse o velho.

Quase encerrando a nossa conversa, quando a sua mulher ainda saía do

 banheiro, o velho me olhou e disse que eu saberia exatamente o que eu poderia

divulgar na entrevista, acenei que sim. Quase aos berros, a velha chega até minha

sala dizendo que o banheiro estava pior do que de uma rodoviária, ri

discretamente.

Antes de saírem, o velho ainda me disse que oferecia melhores condições

 para sua família hoje em dia, e que sua filha estava agora trabalhando numa

mercearia. Perguntei o nome da loja e soube que era o lugar onde havia feito

minhas minhas compras anteriormente (vestindo apenas um pijama). Resolvi não

mencionar esse detalhe, mas descobri quem trabalhava lá, se chamava Megan.

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Minha entrevista com Paquetá foi divulgada no dia seguinte, imaginei

como seria a vida do velho se transformada em um filme, tão surpreendente era a

sua história. Isso me fez lembrar de um antigo sonho que tinha na época da

faculdade, queria me tornar um cineasta, mas abandonei a ideia quando comeceia trabalhar com o jornalismo, cujos ganhos mal garantem a minha sobrevivência.

A época do inverno estava se aproximando, minha família me convidou a

viajar para um temporada num hotel fora da cidade, aceitei de imediato o convite.

A pousada em que ficamos era realmente muito bela e confortável e, por decisão

do dono, tinha até mesmo um seguro contra incêndios, que indenizava o

 proprietário e ressarcia os hóspedes dos apartamentos do hotel.

O valor que seria pago ultrapassaria em muito o necessário para realizar um

filme. Pensei na idéia de fraudar um incêndio e lembrei da história do velho

Paquetá, que ajudou sua família vendendo entorpecentes numa determinada época

de sua vida – mas são situações muito diferentes - concluí. Escrevi em meu diário

como realizaria tal feito, apesar de não ter coragem de realizar o sinistro.

 No dia seguinte resolvemos andar pelo parque e conhecer toda a cidade. Ao

término do passeio pegamos o caminho de volta, foi quando percebemos ao longe

uma movimentação incomum próximo ao hotel. Quando chegamos ao local,

descemos rapidamente do carro, os bombeiros estavam tentando apagar as últimas

chamas sobre a pousada. Fui questionado sobre a presença de um diário entre os

escombros, quando disse a quem pertencia, fui preso pela polícia.

A fiança foi fixada num valor que minha família não estava disposta a

 pagar, tamanha era a desconfiança. Liguei para o velho Paquetá, que ouviu minha

versão sobre o caso, ficou sensibilizado pela minha história e feliz com minha

ideia do filme. Perguntou o valor da fiança e estabeleceu como condição de

ressarcimento um trabalho de seis meses em sua antiga barraca.

Desacreditado de minha família, indiciado por um crime que não cometi,

sem trabalho e devendo aluguéis do meu apartamento, não tive outra escolha

senão aceitar o emprego do velho. Após os seis meses de trabalho, tendo pago

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minha dívida, tentei me aproximar de Megan, que sempre me olhava com medo e

desconfiança.

Fui até a mercearia contar toda a minha história, sobre o engano de minha

 prisão, a distância de minha família e a intenção de realizar um filme sobre o seu pai, ela não se impressionou e disse que conversaria com Paquetá antes de ter 

uma opinião. Fui visitá-la no dia seguinte, ela estava mais serena e amável,

dizendo que acreditava em mim e se lembrava da primeira vez em que estive lá.

Depois de ser inocentado do crime, voltei a trabalhar como jornalista e

retomei o contato com minha família. Tentei me aproximar um pouco mais de

Megan e chamá-la para sair. Aceitou o meu convite e depois de alguns encontros,

iniciamos um relacionamento. Depois de alguns anos de namoro, consideramos a

ideia de nos casar, notícia que foi recebida com alegria pelo velho, que só relutou

quando dissemos que iríamos morar com a tia de Megan, uma mulher solitária.

 Não dei muita importância ao fato, pois a expectativa do casamento me

alegrava tanto que cheguei a esquecer da ideia de filmar a vida de Paquetá.

Depois de alguns meses juntando nossas economias, Megan e eu resolvemos

reviver esse antigo projeto, faltava apenas o aval do velho, que se viu feliz com a

ideia. Decidimos então realizar a película, e após um ano de filmagens, ele estava

finalmente pronto.

O filme fez relativo sucesso nos cinemas da cidade, certamente pela sua

tímida divulgação, ultrapassou em pouco o valor do orçamento gasto. Megan me

falou sobre a influência de sua tia, que trabalhou com a imprensa em outras

cidades. Os motivos da relutância do velho logo se mostraram evidentes quando

esta se ofereceu para ajudar em troca de favores sexuais.

O meu relacionamento com Megan já não andava bem, e depois de

algumas brigas e discussões, começamos a nos questionar sobre a decisão de

realizar o filme. A sua renda no mercado e meus ganhos como jornalista eram

insuficientes para manter a nossa casa. Lembrei mais vez dos sacrifícios que

Paquetá fez pela sua família, decidi aceitar aquela oferta.

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Fui para o trabalho no dia seguinte pensando em realizar o acordo o quanto

antes. Depois de me despedir de Megan, fiquei à espreita para aguardar sua saída,

 buscando uma oportunidade para realizar minha sórdida tarefa. Quando o trato

com sua tia já havia sido feito, fui até a cozinha buscar um copo d’água quando ouvi um estrondo do quarto. Quando cheguei, havia sangue estava escorrendo

 pelo travesseiro.

“Como você foi capaz” – me perguntou – antes mesmo de responder ela já

estava gritando “desgraçado” de forma descontrolada. A arma que estava em suas

mãos tremia a todo instante, Megan não sabia como segura-la. Tentei acalmá-la,

mas o seu olhar de ódio só aumentava o meu pavor. A vizinhança logo se agitou,

a polícia não demorou a chegar ao local.

Suspeito novamente de um crime contratei os serviços de um bom

advogado, que quase exauriu minhas finanças. Praticamente na miséria e

separado de Megan, me senti completamente desiludo com a vida, foi quando

decidi viver pelas ruas como um andarilho. Para sobreviver, realizava pequenos

furtos com a ajuda de pivetes do meu bairro. Dormia em locais sujos e

abandonados, quase sempre fugindo da polícia e dos olhares da sociedade.

O dia em que resolvemos saquear a antiga feira da cidade foi decisivo em

minha vida. Os garotos estavam correndo pelas barracas, com sacolas cheias de

alimentos, quando a polícia apareceu mais uma vez. A prisão me parecia um

destino inevitável, o desespero já tomava conta de mim quando uma voz me falou

 –  “se esconda aqui” – ele disse. Paquetá havia me salvado mais uma vez.