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1 O USO DE JOGOS PARA O DESENVOLVIMENTO DE NARRATIVAS NO ENSINO DE HISTÓRIA RAFAEL VICENTE KUNST Colégio de Aplicação UFRGS [email protected] Entre os debates atuais sobre a teoria e a razão científica dos estudos da História, a construção do conhecimento histórico e sua expressão, sua escrita, ou seja, a elaboração das narrativas históricas, são a origem de grandes reflexões nos círculos de pesquisa dessa disciplina. A narrativa surge como a forma de interpretação e significação do árduo trabalho feito a partir das fontes históricas. Caracterizado por algumas correntes historiográficas como a marca de uma história positivista, que estaria preocupada apenas em “contar os fatos”, o caráter narrativo dessa disciplina foi negado ou subestimado por diversos historiadores. Entretanto, as observações sobre as limitações de uma escrita da História de forma objetiva, a revisão do seu potencial puramente explicativo, próprio da ciência, que sobrepujaria as articulações de uma “boa escrita”, além de estudiosos do campo literário que apontaram, a exemplo de Hayden White, o caráter essencialmente narrativo que envolve qualquer tentativa de explicação histórica, fizeram com que as estratégias argumentativas fossem revistas no discurso histórico. Em sua obra sobre as bases teóricas do trabalho historiográfico, Jörn Rüsen aponta o papel da racionalidade narrativa nessa disciplina: Ela aparece, na pesquisa histórica e na historiografia, como utilização de pensamento de tipo teórico, de modelos, de tipos ideais em suma: de constructos intelectuais, que de forma alguma foram extraídos das fontes, mas são elaborados e construídos pelos historiadores, a fim de poderem interpretar conceitual e historicamente os resultados da pesquisa nas fontes. (2010, p. 210) Dessa forma, Rüsen afirma que a operação do historiador não se restringe à observação das fontes, mas tem como fase principal a significação da pesquisa, elaborada e apresentada através da construção narrativa. Mais do que isso: as escolhas teóricas, os ideais, os modelos argumentativos e mesmo o estilo de escrita influenciam o trabalho historiográfico. O sentido dado ao contexto histórico estudado depende da posição de cada pesquisador na sua própria realidade, assim como as perspectivas sobre

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O USO DE JOGOS PARA O DESENVOLVIMENTO DE NARRATIVAS NO

ENSINO DE HISTÓRIA

RAFAEL VICENTE KUNST

Colégio de Aplicação – UFRGS

[email protected]

Entre os debates atuais sobre a teoria e a razão científica dos estudos da História,

a construção do conhecimento histórico e sua expressão, sua escrita, ou seja, a

elaboração das narrativas históricas, são a origem de grandes reflexões nos círculos de

pesquisa dessa disciplina. A narrativa surge como a forma de interpretação e

significação do árduo trabalho feito a partir das fontes históricas. Caracterizado por

algumas correntes historiográficas como a marca de uma história positivista, que estaria

preocupada apenas em “contar os fatos”, o caráter narrativo dessa disciplina foi negado

ou subestimado por diversos historiadores. Entretanto, as observações sobre as

limitações de uma escrita da História de forma objetiva, a revisão do seu potencial

puramente explicativo, próprio da ciência, que sobrepujaria as articulações de uma “boa

escrita”, além de estudiosos do campo literário que apontaram, a exemplo de Hayden

White, o caráter essencialmente narrativo que envolve qualquer tentativa de explicação

histórica, fizeram com que as estratégias argumentativas fossem revistas no discurso

histórico. Em sua obra sobre as bases teóricas do trabalho historiográfico, Jörn Rüsen

aponta o papel da racionalidade narrativa nessa disciplina:

Ela aparece, na pesquisa histórica e na historiografia, como utilização de

pensamento de tipo teórico, de modelos, de tipos ideais – em suma: de

constructos intelectuais, que de forma alguma foram extraídos das fontes,

mas são elaborados e construídos pelos historiadores, a fim de poderem

interpretar conceitual e historicamente os resultados da pesquisa nas fontes.

(2010, p. 210)

Dessa forma, Rüsen afirma que a operação do historiador não se restringe à

observação das fontes, mas tem como fase principal a significação da pesquisa,

elaborada e apresentada através da construção narrativa. Mais do que isso: as escolhas

teóricas, os ideais, os modelos argumentativos e mesmo o estilo de escrita influenciam o

trabalho historiográfico. O sentido dado ao contexto histórico estudado depende da

posição de cada pesquisador na sua própria realidade, assim como as perspectivas sobre

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o futuro formadas por seus contemporâneos (RÜSEN, 2010, p.108). A partir de

reflexões como essas, a narrativa histórica deixou de ser vista como “mero relato” de

eventos passados, assumindo o papel de uma significação do passado tecida no

presente, influenciada por seus interesses, opiniões e estilos.

Tais posições também repercutem nas reflexões sobre o ensino de História.

Afinal, se há estratégias de escrita próprias para a significação do conhecimento

histórico, os estudantes dessa disciplina devem se familiarizar com esses modelos e,

com isso, dominar a própria produção historiográfica, adquirindo competências para

formular suas próprias interpretações sobre o passado, através da elaboração de suas

próprias narrativas. Desse modo, o aluno deixaria de ser um simples receptor de

informações históricas, que deveria absorver e decorar modelos preestabelecidos sobre

diferentes contextos históricos, assumindo um papel passivo no processo de

aprendizagem. O ensino tradicional, voltado para a recepção do conhecimento, não

desenvolve a criatividade ou o espírito crítico dos indivíduos, repetindo interpretações

históricas que muitas vezes não coincidem com interesses e especificidades próprias da

realidade que os cercam. Rüsen aponta os problemas desse modelo de aprendizado

baseado na recepção:

O conhecimento histórico que é aprendido simplesmente pela recepção,

impede, ao invés de promover, a habilidade de dar significado à história e

orientar a si mesmo de acordo com a experiência histórica. Um significado

que é simplesmente “dado” não pode ser observado como tal e a preocupação

com sua função fundamental de organizar o conhecimento é negligenciada.

Além disso, a subjetividade, enquanto uma fonte para novas questões e uma

vontade direcionada a novas experiências, não pode ser explorada. (2011, p.

90)

Uma das principais funções da educação histórica conferida pelo autor, o

domínio que possibilita a orientação do presente a partir da interpretação histórica, só

pode ser exercida quando o aluno é estimulado a construir sua própria interpretação

sobre a experiência histórica, ou seja, que ele tenha condições de tecer sua própria

narrativa. De certo modo, o que esse pesquisador está propondo é a abertura da

possibilidade de se relacionar e significar o passado. Porém, para alcançar tal objetivo,

seria necessário estabelecer uma relação diferente entre os estudantes e o conhecimento

histórico. Como incentivá-los a se interessar e relacionar a sua realidade aos diversos

contextos históricos? Quais meios facilitariam o domínio dos instrumentos de

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elaboração dessas interpretações que, segundo Rüsen, orientar-nos-iam a partir da

observação das experiências históricas?

Esse trabalho trata de um projeto realizado para responder essas questões –

através de um jogo de tabuleiro, três turmas do Ensino Fundamental de uma escola

municipal de Guaíba/RS foram estimuladas a formular suas próprias narrativas sobre

aspectos fundamentais das transformações sociais da Idade Moderna. Por meio dessa

atividade lúdica criada por mim e confeccionada pelos próprios alunos, foram

apresentados a eles elementos desse contexto histórico que foram usados posteriormente

para que eles pudessem estabelecer suas interpretações. Apresento a seguir algumas

reflexões sobre essa experiência e seus resultados. Acredito que os jogos sejam um

instrumento de ensino com peculiaridades ideais para alimentar a criatividade e

estabelecer vivências significativas sobre questões abstratas distantes da realidade dos

jogadores, como é o caso da conjuntura social renascentista, por exemplo, distinta do

contexto de alunos do século XXI.

Primeiramente, é essencial definir quais são as principais características de um

jogo e como pode ser utilizado no ensino de História. A seguir, traço algumas reflexões

sobre a caracterização e as funções da educação histórica, destacando a influência dos

estudos de Jörn Rüsen. Esse autor também serve como guia para elaborar a definição da

narrativa histórica e seu papel na aprendizagem. Ao final, analiso a atividade lúdica

construída e seus resultados entre os alunos observados.

Por que jogar nas aulas de História?

A ação de jogar tem implicações específicas na formação social, moral e

cognitiva dos indivíduos que foram analisadas por diversos intelectuais – pedagogos,

sociólogos, psicanalistas e mesmo filósofos. Devido a essas peculiaridades que o

envolvem, esse conceito é de difícil definição. O jogo faz parte da vida dos indivíduos

desde o começo da sua vida, envolve o processo de sua socialização e está presente em

diversos momentos da vida adulta, em especial, dos relacionados ao entretenimento.

Entretanto, como definir uma ação que assume formas tão diversas? Uma pequena

criança pode jogar com seus amigos utilizando algumas pedras, enquanto um grupo de

adultos envolve-se em complexas regras para participar de uma partida de futebol ou

estuda dezenas de estratégias para vencer uma partida de xadrez. A atividade lúdica

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pode envolver um prazer descontraído ou exigir a extrema concentração de seus

participantes. Entre as tentativas de definir o jogo, o filósofo Johan Huizinga

desenvolveu uma das mais conhecidas atualmente:

(...) o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos

e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente

consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si

mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma

consciência de ser diferente da "vida quotidiana". Assim definida, a noção

parece capaz de abranger tudo aquilo a que chamamos "jogo" entre os

animais, as crianças e os adultos: jogos de força e de destreza, jogos de sorte,

de adivinhação, exibições de todo o gênero (HUIZINGA, 1995, p. 24)

Na busca de abarcar os mais variados tipos de jogos, o autor elaborou um conceito

amplo, mas que carregaria as principais marcas da ação lúdica, distinguindo-a do

trabalho (visto que esse tem outros fins) e da realidade cotidiana. Portanto, alguém se

disporia a jogar interessado apenas no jogo, tratando aquela ação, de alguma forma,

como uma “fuga temporária” da normalidade. Entretanto, o conceito de Huizinga não

explica como essa fuga seria possível, como o jogador estabelece essa “realidade

temporária” própria do jogo. Para aprofundar essa reflexão e analisar questões que não

estão presentes nessa definição, recorri a Roger Caillois, um sociólogo que parte dos

estudos de Huizinga, mas elabora delimitações mais claras para o termo em questão,

resumindo suas características em seis elementos essenciais:

1. – livre: uma vez que, se o jogador fosse a ela obrigado, o jogo perderia de

imediato a sua natureza de diversão atraente e alegre;

2. – delimitada: circunscrita a limites de espaço e de tempo, rigorosa e

previamente estabelecidos;

3. – incerta: já que o seu desenrolar não pode ser determinado nem o

resultado obtido previamente, e já que é obrigatoriamente deixada à

iniciativa do jogador uma certa liberdade na necessidade de inventar;

4. – improdutiva: porque não gera nem bens, nem riqueza nem elementos

novos de espécie alguma; e, salvo alterações de propriedade no interior do

círculo dos jogadores, conduz a uma situação idêntica à do início da partida;

5. – regulamentada: sujeita a convenções que suspendem as leis normais e

que instauram momentaneamente uma legislação nova, a única que conta;

6. – fictícia: acompanhada de uma consciência específica de uma realidade

outra, ou de franca irrealidade em relação à vida normal. (1990, p.29-30)

Cada um desses itens levanta certos questionamentos sobre jogos, além de

propiciar algumas reflexões sobre o uso de jogos em sala de aula. Para iniciar: como

falar de liberdade em uma atividade educativa? Se o jogo é fruto da espontaneidade, o

aluno só jogaria quando quisesse? Acredito que, no uso pedagógico dos jogos, é preciso

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encontrar equilíbrio, pois se essa ferramenta for proposta como parte do aprendizado,

seria importante que todos os estudantes participassem. Entretanto, visto que a

experiência lúdica se desmancharia diante da sua imposição, nesses casos, o aluno deve

se sentir convidado a jogar, em um diálogo que leva o professor a planejar

adequadamente seus projetos para que a “sedução do lúdico” envolva seus alunos nas

aulas anteriores ao momento da atividade. Entretanto, nem sempre o uso pedagógico

dos jogos respeitou essa característica desse instrumento. Analisando o histórico da

relação entre jogos e educação, Gilles Brougère afirma que, desde a Idade Média até o

século XIX, as correntes pedagógicas que abriram espaço para o uso de jogos,

defendiam o rígido controle desses momentos: “Estamos em uma pedagogia da

vigilância que rejeita a confiança no uso, na espontaneidade da expressão”

(BROUGÈRE, 1998, p.59).

O aspecto delimitador do jogo é responsável por criar uma “nova realidade” para o

jogador, em que ele pode experimentar estar em outro tempo, em outro lugar, em um

mundo criado apenas para aquele jogo. Assim, as delimitações temporais e geográficas

criadas pelos jogos possibilitam que os jogadores experimentem momentaneamente o

“mundo fictício” que os envolvem nessas situações. Por exemplo, em um jogo que

tenha como proposta a ambientação e simulação de outros contextos históricos como,

por exemplo, no caso do jogo analisado nesse artigo em que as delimitações criadas

simulam uma cidade renascentista, o estudante em sala de aula sabe que não é um

comerciante ou artista da Idade Moderna, mas, ao mesmo tempo, também não se vê

mais como um simples aluno de sua comunidade: naquele jogo, ele pode ser um padre,

um pastor protestante, um cientista, enfim, ele assume os papeis escolhidos nessa nova

experiência. É dessa forma que essa atividade lúdica proporciona novas visões aos

alunos sobre o passado discutido em aula, que podem ser usadas posteriormente pelos

professores para que seus alunos compreendam aquela realidade histórica.

A incerteza e a improdutividade, próprias de qualquer jogo são, segundo Tânia

Ramos Fortuna, algumas das principais causas para a desconfiança de muitos

professores diante do uso pedagógico dos jogos (FORTUNA, 2013, p.32). A incerteza

faz com que, em um jogo sobre grupos sociais na Idade Moderna, por exemplo, os

alunos não necessariamente tenham as impressões adequadas o cotidiano daqueles

indivíduos. Não há como garantir que um dos seus jogadores não interprete o papel dos

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comerciantes daquele período como se fossem indivíduos atuais negociando produtos

“daquela época”, por exemplo. Entretanto, se o professor souber aproveitar tais

experiências recém assimiladas pela turma para debater e orientá-los em direção à

interpretações mais apuradas historicamente. Portanto, é importante que o professor

aceite que não possui controle absoluto dos rumos tomados pelos seus estudantes

durante a atividade lúdica, mas os possíveis obstáculos podem ser aproveitados como

oportunidades de questionamentos e aprendizagem.

As últimas características, a regulamentação e a ficção, ou seja, as regras e o

imaginário, estão sempre em tensão em diversos jogos. Enquanto o jogo cria uma

“realidade paralela” por seu distanciamento do cotidiano, as leis estabelecidas pelo jogo

e aceita pelos jogadores servem para dar forma, organizar esse espaço lúdico. Como

afirmam Therezinha Vieira, Alysson Carvalho e Elizabeth Martins, as regras

condicionam a liberdade proporcionada pelo imaginário da criança na realidade própria

do jogo:

Por oposição, quando as crianças jogam xadrez (ou qualquer outro jogo com

regras), embora saibamos que as pedras usadas têm valor simbólico,

remetendo-nos a um universo imaginário, na verdade, é o sistema de regras

que comanda este uso e se destaca em primeiro lugar. O imaginário, como

tal, mostra-se contido por esse sistema. (2005, p.45-46)

Portanto, em um jogo como o xadrez, por exemplo, não basta que tal peça

simbolize um rei para que ela exerça essa função na partida – é o conjunto de regras que

define a importância do rei, que não pode ser perdido e, portanto, é constantemente

protegido por um jogador e procurado por seu adversário. De forma semelhante, no jogo

analisado nesse artigo, o caminho percorrido pelos peões de cada jogador faz com que

eles se vejam como artistas ou pastores protestantes, por exemplo. Assim, o próprio

mecanismo do jogo cria a ilusão de experimentar o cotidiano daquele período. No caso

de um jogo de regras como esse, percebemos que essas não são simples limitações para

o imaginário dos alunos, mas buscam (e aqui, mais uma vez, carregando a incerteza)

moldar a imagem criada pelos jogadores diante dos componentes do jogo. Em sua

pesquisa sobre a formação moral da criança, Jean Piaget analisa a relação da

comunidade de jogadores com as regras que os envolvem. Para o autor, as combinações

firmadas entre os participantes de um jogo criam um laço de respeito entre eles, pois

ambos aceitam estar em igualdade diante de um acordo feito pelo grupo. Além disso, e

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mais importante, a aceitação e domínio dos mecanismos do jogo incentivam o

desenvolvimento da autonomia dos indivíduos, pois nessas atividades as regras

progressivamente deixam de ser concebidas como sagradas e imutáveis e passam a ser

compreendidas como negociações construídas e passíveis de modificações, desde que

aceitas pela comunidade (PIAGET, 1994, p.91).

Novas perspectivas sobre o ensino de História – o papel da narrativa

Acredito que exista um consenso de que a História atualmente não é mais

concebida segundo valores positivistas, que acreditavam que a função dessa área se

restringiria a narrar acontecimentos do passado construídos de forma independente das

ações humanas. O saber histórico recuperou a muito tempo a análise das causas e

motivações dos eventos narrados, como as diferentes forças sociais de cada contexto

histórico atuaram e foram simultaneamente influenciadas pelo processo histórico, no

qual passaram a ser protagonistas. Assim, as reflexões históricas passaram a conferir o

papel de agente histórico ao “homem comum” – revoltas de escravos, criações culturais

camponesas, trabalhadores na liderança de movimentos políticos – esses são exemplos

de inserção de grupos sociais antigamente negligenciados na elaboração dos discursos

sobre o passado. Dessa forma, como o Ensino de História poderia continuar

fundamentado na memorização de datas e nomes de importantes líderes de cada evento?

Se cada indivíduo tem papel ativo na construção da sociedade em que vive, não caberia

ao professor dessa disciplina o dever de preparar seus alunos para que eles

compreendam o mundo em que vivem e que podem modificá-lo? Através dessas

questões, podemos perceber o quanto as mudanças no modo como se produz o

conhecimento histórico influenciaram os debates sobre os objetivos e métodos do

ensino de História.

Para construir um conhecimento histórico em sala de aula que atenda a essas

expectativas, Mario Carretero aponta aspectos fundamentais presentes no processo de

compreensão dessa disciplina: “(...), dois elementos parecem ser importantes para a

compreensão das Ciências Sociais e da História: de um lado, o conhecimento prévio do

aluno, e, de outro, as características específicas do conhecimento social e histórico”

(CARRETERO, 1997, p.32). Seja no ambiente escolar, familiar ou comunitário, o aluno

adquire diferentes experiências sobre a realidade em que vive – diferenças sociais,

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mercado e consumo, disputas de poder, etc. Tais conhecimentos prévios também são

destacados por Carretero: “No entanto, parece claro que os estudantes também possuem

idéias prévias sobre muitos conceitos sociais e históricos que são ensinados na escola”

(1997, p.34). Mesmo que tais noções não tenham a complexidade própria dos conceitos

históricos trabalhados em sala de aula, elas podem ser usadas pelo professor para

envolver e inserir seus alunos tanto no processo de construção desse conhecimento,

quanto na própria História. Trabalhar o conceito de classes sociais a partir da inserção

deles e de suas famílias na realidade em que vivem leva-os a entender que aquelas

disputas sociais da Revolução Francesa, por exemplo, não estão desconectadas do

mundo que os cerca. Conforme Maria Auxiliadora Schmidt e Marlene Cainelli,

trabalhar com as experiências dos alunos permite que eles possam dialogar e intervir na

sociedade:

Esse trabalho baseado na experiência dos alunos remete, de um lado, à

compreensão de que uma das funções do ensino da História é fazer os alunos

e professores, de um diálogo entre presente e passado, poderem identificar

as possibilidades de intervenção e participação na realidade em que vivem.

Por outro lado, é importante superar a opinião de que trabalhar com base na

experiência do aluno significa valorizar sua aprendizagem espontânea.

(2004, p.51)

Portanto, esse diálogo entre a realidade do aluno e o conteúdo trabalhado na

disciplina de História não encerra a produção de seu saber. Se a aprendizagem não é

“espontânea”, significa que as informações trazidas pelos estudantes não abarca,

evidentemente, a complexidade dos conceitos históricos. Assim como outras

disciplinas, a História carrega suas peculiaridades para a sala de aula. Entre os

elementos específicos desses conceitos históricos, Carretero destaca “um nível de

abstração muito elevado” e a “complexidade de muitos deles exigirem a compreensão

de outros conceitos” (1997, p.34). Com base nessas afirmações, o saber prévio dos

alunos deve ser pensado como um ponto de partida que, ao dialogar com outros

conceitos mais complexos apresentados pelo professor, é revisto e transformado,

alcançando assim a abstração própria para aplicação de tais conceitos na investigação

tanto dos processos históricos, quanto da realidade dos próprios estudantes. Além disso,

é importante lembrar que as experiências dos alunos não se restringem ao ambiente

extraclasse, pois é possível proporcionar a eles vivências significativas e úteis para a

educação histórica na própria sala de aula, contrariando a noção conservadora deste

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ambiente como um espaço de simples absorção, ignorando o aprendizado proveniente

da vivência dos indivíduos. Defendo que esse é o papel do jogo na construção do

conhecimento histórico – proporcionar aos alunos a oportunidade de vivenciar, de

inserir em seu “arcabouço de experiências” um aprendizado adquirido de forma lúdica.

Através do jogo, experimenta-se a realidade criada por aquele universo imaginado, do

qual o aluno passa a partilhar e construir socialmente com os demais colegas.

Entre as possíveis soluções para os questionamentos do diálogo entre a vivência

dos alunos e o conhecimento histórico, Jörn Rüsen confere à consciência histórica o

papel de unir os interesses do contexto do indivíduo do presente com as visões

construídas sobre o passado. Através dela, confere-se uma função à História para a vida

cotidiana, servindo de orientação para perceber como o passado influencia no presente:

A consciência histórica serve como um elemento de orientação chave, dando

à vida prática um marco e uma matriz temporais, uma concepção do “curso

do tempo” que flui através dos assuntos mundanos da vida diária. (...) A

consciência histórica evoca o passado como um espelho da experiência na

qual se reflete a vida presente, e suas características temporais são, do mesmo

modo, reveladas. (RÜSEN, 2011, p. 56-57)

Portanto, a partir da interpretação das experiências do passado, é possível

compreender e orientar-se no presente. Isso não significa imitar ações históricas, mas

aprender a analisar os rumos temporais de eventos que nos rodeiam atualmente – nada é

natural, tudo surgiu em dado momento e pode ser modificado. Essa é a orientação que

pode ser apreendida através da conscientização da nossa “localização temporal”. O

processo de significação histórica torna-se fundamental para a conquista desses

conhecimentos úteis ao indivíduo do presente. Da mesma forma, a necessidade

específica de cada realidade do presente influencia a elaboração dessas interpretações,

originando assim as narrativas históricas. Rüsen relaciona diretamente essa busca da

identidade histórica à comunicação desses significados construídos:

A consciência histórica vem à tona ao contar narrativas, isto é, histórias, que

são uma forma coerente de comunicação, pois se referem à identidade

histórica de ambos: comunicador e receptor. As narrativas, ou seja, histórias

contadas aqui, são produtos da mente humana; com sua ajuda as pessoas

envolvidas localizam-se no tempo de um modo aceitável para si mesmas.

(2011, p.80)

Para o autor, a narrativa histórica atuaria como um elo de comunicação entre

interesses e expectativas do presente com um passado analisado que responderia a

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questionamentos atuais. Desse modo, aprender a narrar eventos históricos é uma forma

de significar o passado de modo que ele dialogue, oriente os indivíduos no presente.

Com esse papel de destaque no ensino de História que é conferido a essa operação,

torna-se essencial incentivar e facilitar a assimilação dessas habilidades pelos estudantes

dessa disciplina. Quanto mais próxima for a relação entre o aluno e o evento a ser

narrado, maior será seu interesse e sua facilidade em interpretá-lo. Para cumprir a tarefa

de alcançar essa aproximação, acredito que o jogo seja um instrumento de grande valor.

A experiência histórica através do jogo – uma ferramenta didática

Ao analisar o papel da narrativa na produção do conhecimento histórico e seu

diálogo com o presente, Rüsen carrega a noção de experiência como um elemento

fundamental para compreender a disciplina histórica. São as experiências do presente

que moldam nossas interpretações sobre o passado, visto por nós como experiências dos

indivíduos daqueles períodos. O objeto pesquisado pelos historiadores relaciona-se com

a nossa realidade assumindo a forma de relatos e interpretações sobre a vida de pessoas

que tiveram suas emoções, suas dificuldades e alegrias, apresentando algo a dizer para o

presente, como defende o autor: “Histórias, as quais têm a sua própria realidade no

mundo real da vida humana, constroem uma ponte entre a experiência de seus próprios

relacionamentos da vida e a versão documental da experiência humana” (RÜSEN, 2011,

p.83). A relação que estabeleço entre o jogo e o ensino de História parte desse pilar –

como percebemos a História como experiências do passado, o momento lúdico pode

atuar como forma de concretizar esses elementos para os aprendizes dessa disciplina

para que, ao menos no universo criado pelo jogo e suas regras, eles possam

compreender as dinâmicas que envolviam as pessoas daqueles contextos históricos.

Por meio da definição de Caillois, compreende-se que o jogo é uma atividade

que cria seus próprios limites temporais e geográficos, além de ser consensual entre seus

participantes de que ela é fictícia, em uma realidade diversa da cotidiana. Essas

características propiciam um ambiente que envolve fortemente seus participantes,

proporcionando a eles vivências únicas:

Quando se vive o tempo de jogo, vive-se o tempo da experiência indizível,

profundamente arrebatadora e por demais complexa e misteriosa para ser

traduzida através da linguagem verbal. A experiência de ser embalado pelo

jogo, advinda do mergulho do jogador pela esfera imaginária, ficcional e

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criadora, pode levá-lo ao êxtase da experiência numinosa. (RETONDAR,

2007, p.80)

Ao envolverem-se plenamente no jogo, os participantes esqueceriam os

problemas da realidade cotidiana e se prenderiam às situações “impostas” pelo ambiente

lúdico a sua frente. Aproveitando-me das sensações provenientes dessas atividades,

desenvolvi um jogo que tivesse como proposta a simulação de experiências que seriam

próprias de grupos sociais da Idade Moderna para que, posteriormente, os jogadores

construíssem suas narrativas históricas através dos relatos das situações que

“vivenciaram” no momento lúdico.

O jogo, batizado de “Trilhas da Idade Moderna”, foi inspirado no famoso

produto conhecido no Brasil como “Jogo da Vida”, distribuído pela empresa Estrela.

Nesse clássico tabuleiro, cada jogador percorria uma trilha em que se adquiria uma

profissão, casava-se, tinham-se filhos, enfim, cada espaço percorrido pelos peões fazia

com que os participantes passassem por possíveis situações que fariam parte da vida de

qualquer indivíduo, onde eles teriam prejuízos ou lucros. Ao final, vencia o jogador que

tivesse arrecadado mais dinheiro. Para a minha criação, adaptei alguns desses elementos

para o contexto histórico da modernidade, em um momento em que as grandes cidades

europeias floresciam, conflitos religiosos começavam, artísticas alcançavam a fama e

cientistas publicavam suas teorias. Assim, em um tabuleiro confeccionado pelos

próprios alunos representando uma cidade renascentista e ilustrado com desenhos da

própria turma, foram projetadas quatro trilhas partindo de um início comum, em que

cada caminho representaria o modelo de um grupo social da época – artista, cientista,

comerciante e religioso. O objetivo foi apresentar situações que poderiam ter formado

as experiências de algum indivíduo daquela época – um artista que é contratado para

fazer o retrato de um político da cidade; um comerciante que financia uma longa viagem

comercial rumo à Índia; um religioso que vê seus adeptos crescendo após um belo

discurso na paróquia da cidade, etc. Além dos acontecimentos específicos de cada trilha,

algumas decisões deveriam ser tomadas por todos os jogadores, cada um em seu

momento – por exemplo, sobre a devoção religiosa que teriam, mantendo-se fieis ao

catolicismo ou aderindo aos grupos protestantes que surgiam. Também havia momentos

de interação entre os diferentes grupos: por exemplo, um comerciante poderia financiar

uma viagem à América em busca de novas mercadorias, auxiliando o cientista que

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viajaria com ele para estudar novas espécies de plantas. Em resumo, o avanço nas trilhas

apresentava possíveis situações que preenchiam a “carga de experiências” do

personagem dos estudantes jogadores.

Mesmo que após as partidas os alunos soubessem que aquela vivência recém

adquirida foi fruto de um mundo imaginário, aquilo que havia acontecido aos seus

mercadores ou pintores por eles “incorporados” fazia parte das suas próprias

experiências a partir daquele momento. Ou seja, a “ilusão” havia terminado, mas o que

foi apreendido durante aquele estágio não foi esquecido. Conforme Jeferson Retondar:

Quando o jogo possibilita ao sujeito mergulhar em seu mundo imaginário e

manifestar-se de maneira visceral durante o ato de jogar, tudo o que se

vivencia e o que se vivenciará no decorrer do jogo não se perde quando do

término do mesmo. Ao contrário, é nesse ponto que estamos fazendo questão

de reforçar, pois, ainda que o jogo tenha terminado, as sensações de

intensidade e de excitação provocadas durante o jogo ficam registradas

sensivelmente. (2007, p.86)

Aliando os sentimentos provocados pela ação lúdica à memória do que foi

vivenciado naquele “mundo imaginário” em que o jogador mergulhou, é possível

concluir que tais sensações colaboram para a aproximação do indivíduo com o contexto

representado pelo jogo. No caso analisado nesse artigo, observou-se, por exemplo, que a

vibração com uma negociação bem-sucedida de seu mercador ou a decepção com as

críticas sofridas pelo seu pintor no jogo levaram-nos a significar imediatamente no

momento daquela jogada as possíveis experiências do passado com que se

confrontavam. Após a realização de algumas partidas do “Trilhas da Idade Moderna”

em sala de aula, houve um espaço para a reflexão e organização do que foi destacado

pelos alunos sobre a atividade para, a seguir, cada um elaborar o seu relato sobre seu

personagem. Lembrando que esses personagens desenvolvidos durante as disputas eram

fictícios, mas inspirados no estudo sobre elementos do contexto histórico da Idade

Moderna. Nesses textos, foi possível verificar o desenvolvimento de importantes

habilidades entre os estudantes. Primeiramente, destaco a organização de grande parte

desses relatos, conectando experiências recebidas de forma desconexas ao longo do

avanço das trilhas, mas que tomaram a forma da história de um indivíduo daquele

período histórico. Além disso, é importante observar que a dinâmica do jogo abriu

espaço para que fossem percebidas as conexões entre os personagens/grupos sociais em

questão, uma vez que alguns eventos que afetavam os cientistas também poderiam

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afetar artistas. Durante as aulas expositivas sobre essas questões, parte das turmas tinha

dificuldade em compreender a interação entre os diferentes elementos que se

influenciavam mutuamente no período moderno. Entretanto, a compreensão dessas

complexas relações foram alcançada (em níveis diversos, evidentemente) e explicitada

em muitas narrativas avaliadas.

BIBLIOGRAFIA

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1990.

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Alegre: Artes Médicas, 1997.

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HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 1995.

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