o trauma da emergencia da razão

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Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 1 O trauma da emergência da razão 1 Olavo de Carvalho INTUIÇÃO E RAZÃO: o conhecimento de natureza simultânea e o de natureza sucessiva A intuição é dita tripla por ter três aspectos unidos num único ato, fazendo com que o encadeamento sujeito-objeto-conhecimento se dê de modo simultâneo e imediato. Entendemos assim que se não existisse sol ou nenhuma outra fonte de luz, esse encadeamento não teria acontecido jamais, impedindo a constatação instantânea de qualquer objeto por parte do sujeito e, assim, o reconhecimento e o conhecimento de ambos. Sendo assim, nenhum conhecimento efetivo teria se operado jamais. Devemos, pois, o conhecimento, seja lá do que for, à luz. Entretanto, não seria impossível que num mundo obscuro surgisse a diferença entre o som e o silêncio. Esse conhecimento poderia ter se operado - só que ele demoraria um pouquinho mais. Afinal, a diferença entre som e silêncio não poderia ser percebida de modo simultâneo, e isto porque existe luz e obscuridade ao mesmo tempo - mas não existe som e silêncio ao mesmo tempo. Posso fechar os olhos enquanto há luz lá fora e saber que está escuro dentro de mim ao mesmo tempo que está claro lá fora, ou seja, posso ter a consciência da obscuridade no mesmo instante que tenho a consciência da claridade. Portanto a tripla intuição não nos dá apenas a consciência da luz mas também a consciência da obscuridade no mesmo ato e no mesmo instante, inseparavelmente, ao passo que o processo que se dá entre silêncio e ruído não é assim. Afinal, o som é algo que se desenrola no tempo. Som tem que durar - senão não é som. Podemos dizer, assim, que a percepção visual nos dá a idéia do simultâneo ao passo que a percepção auditiva nos dá a idéia do sucessivo. Poderia surgir uma tripla intuição, entre aspas, auditiva. Mas já não seria propriamente intuição: seria um raciocínio. E isto porque primeiro ouviu-se o som e depois o silêncio; isto é, foi-se combinando o presente com o ausente até chegar à conclusão de que há uma relação entre eles. É a razão que nos permite conectar o presente com o ausente - coisa que a intuição não pode fazer. E esta é a diferença específica entre elas. Com a razão, o homem pode construir esquematicamente a presença do ausente, representada por uma imagem ou por um conceito, e relacioná-la com uma coisa presente, ou até com uma outra coisa também ausente. Características da razão O procedimento da razão é um procedimento inicialmente destrutivo, crítico. Ela destrói o bom para ver o que resta no fim, como se fosse um cadinho de alquimista que vai esmigalhando o objeto em busca de sua essência. A entrada em cena desse processo crítico é a coisa mais 1 Texto para aulas do curso de Astrocarcterologia, ministrados de 1990 à 1992, em São Paulo.

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    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou

    transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permisso expressa do autor.

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    O trauma da emergncia da razo1

    Olavo de Carvalho

    INTUIO E RAZO: o conhecimento de natureza simultnea e o de natureza sucessiva A intuio dita tripla por ter trs aspectos unidos num nico ato, fazendo com que o encadeamento sujeito-objeto-conhecimento se d de modo simultneo e imediato. Entendemos assim que se no existisse sol ou nenhuma outra fonte de luz, esse encadeamento no teria acontecido jamais, impedindo a constatao instantnea de qualquer objeto por parte do sujeito e, assim, o reconhecimento e o conhecimento de ambos. Sendo assim, nenhum conhecimento efetivo teria se operado jamais. Devemos, pois, o conhecimento, seja l do que for, luz. Entretanto, no seria impossvel que num mundo obscuro surgisse a diferena entre o som e o silncio. Esse conhecimento poderia ter se operado - s que ele demoraria um pouquinho mais.

    Afinal, a diferena entre som e silncio no poderia ser percebida de modo simultneo, e isto porque existe luz e obscuridade ao mesmo tempo - mas no existe som e silncio ao mesmo tempo. Posso fechar os olhos enquanto h luz l fora e saber que est escuro dentro de mim ao mesmo tempo que est claro l fora, ou seja, posso ter a conscincia da obscuridade no mesmo instante que tenho a conscincia da claridade. Portanto a tripla intuio no nos d apenas a conscincia da luz mas tambm a conscincia da obscuridade no mesmo ato e no mesmo instante, inseparavelmente, ao passo que o processo que se d entre silncio e rudo no assim. Afinal, o som algo que se desenrola no tempo. Som tem que durar - seno no som. Podemos dizer, assim, que a percepo visual nos d a idia do simultneo ao passo que a percepo auditiva nos d a idia do sucessivo.

    Poderia surgir uma tripla intuio, entre aspas, auditiva. Mas j no seria propriamente intuio: seria um raciocnio. E isto porque primeiro ouviu-se o som e depois o silncio; isto , foi-se combinando o presente com o ausente at chegar concluso de que h uma relao entre eles. a razo que nos permite conectar o presente com o ausente - coisa que a intuio no pode fazer. E esta a diferena especfica entre elas. Com a razo, o homem pode construir esquematicamente a presena do ausente, representada por uma imagem ou por um conceito, e relacion-la com uma coisa presente, ou at com uma outra coisa tambm ausente. Caractersticas da razo

    O procedimento da razo um procedimento inicialmente destrutivo, crtico. Ela destri o bom para ver o que resta no fim, como se fosse um cadinho de alquimista que vai esmigalhando o objeto em busca de sua essncia. A entrada em cena desse processo crtico a coisa mais

    1 Texto para aulas do curso de Astrocarcterologia, ministrados de 1990 1992, em So Paulo.

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    traumtica na vida do ser humano. E isto porque vai limpar, purificar seu mundo afetivo e imaginativo, embora o sujeito (em quem o processo ocorre e no momento em que ocorre) tenha a impresso de que est havendo a destruio de seu mundo imaginativo. Essa purificao far com que o mundo imaginativo fique com menos coisas - porm mais valiosas - o que aumentar a capacidade de discernimento do sujeito.

    A razo permite generalizar e resumir o conhecimento de forma a no ser necessrio carregar imensa carga de memria. Ela obedece, ento, a funo prtica de descarregar a memria. Tambm permite que se veja as coisas mais de longe: quando pensamos por conceitos, no temos todo o trabalho de recordar uma por uma as imagens dos objetos que lhes correspondem e, portanto, diminumos a emoo, o impacto das imagens, que s so evocadas de longe e de leve, graas rapidez com que passamos de um conceito a outro.

    A razo , sobretudo, uma elaborao de intuies. A intuio se desenvolve sozinha at um certo ponto: a partir da entra a razo em funcionamento e, quando entra, se ope dialeticamente a intuio. A razo nega a intuio, operando uma espcie de poda; mas ela nunca poder podar tudo pois ela se apia nesta mesma intuio que sofre a poda. Neste processo a intuio vai se aprimorando, florescendo, da mesma forma que uma planta, quando podada no momento certo. Mas este movimento que vai da intuio para a razo extremamente doloroso porque a razo pesa; ela desmente a intuio e esmaga os sentimentos.

    Por tudo isso que podemos dizer que a razo a capacidade de dar forma coerente totalidade da experincia. Esse desenvolvimento, entretanto, teria que ser em dois sentidos: 1) ir abarcando reas e domnios de informao cada vez maiores: seria um crescimento quantitativo e horizontal. Porm, s esse crescimento no basta; 2) preciso que internamente, as estruturas da razo se tornem tambm mais complexas, isto , que ela seja capaz de abrir novas chaves que estabeleam novas modalidades de relaes entre os dados: seria um crescimento de integrao.

    Ento, esse duplo processo da extenso do conhecimento e da integrao do mesmo - cada vez mais perfeito e mais organizado - se daria no sentido de uma abstrao cada vez maior. Isto que dizer que a razo, idealmente, procura abarcar toda a experincia e resumi-la em trs ou quatro princpios bsicos ( em convices bsicas, em certezas bsicas), sendo capaz de referir a esses toda a experincia real que lhe acontece. Se no houvesse nenhum obstculo, a razo prosseguiria abarcando tudo aquilo que, atravs da intuio, penetrou na memria; ela iria abarcando, classificando e integrando os dados de uma maneira cada vez mais coerente, at que todo o edifcio da experincia pudesse facilmente ser resumido em um ou em alguns princpios bsicos. Sendo assim, cada vez que se vai ampliando a experincia do indivduo, mais facilmente ele vai classificando essa experincia dentro de conceitos abstratos mais abrangentes; e se existe o crescimento ao mesmo tempo da extenso e da integrao, existe uma simplificao cada vez maior.

    A razo procura, assim, reduzir a um mnimo o trabalho do pensamento. por isso que pensar no razo. Na verdade, quanto menos racional o indivduo, mais ele vai ter que pensar, e isto

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    porque, se o mundo da razo estiver de fato organizado, a maior parte da experincia j estar conhecida, podendo assim catalog-la facilmente nos gneros, espcies e princpios j conhecidos de modo a no haver necessidade de um novo exame. Sendo assim, a razo, medida que d coerncia aos dados da experincia vivida e aos dados da memria, medida que simplifica o trabalho do pensamento, concorre para que o indivduo no precise experimentar mil vezes a mesma coisa para saber no que vai dar pois, to logo a experimente, faz imediatamente a induo devida, economizando, assim, tempo e energia. Desse modo, a razo est diretamente ligada ao instinto de auto-conservao do indivduo. Comparando com os animais, a razo - para o homem - aquilo que um princpio de auto-regulao instintiva para os animais: a razo uma auto-regulao do homem.

    Se o animal crescido tem sua auto-regulao suficiente para assegurar sua subsistncia no meio em que foi criado, a razo, no homem adulto, deveria ser suficiente para ele dar conta de todos os novos problemas e todas as novas situaes que poderiam surgir dentro de uma certa regularidade no seu meio. Entretanto, isto no acontece. Da, este homem se socorre da razo comunitria, isto , da organizao da comunidade. evidente que o indivduo necessita de tanto mais socorro quanto menos est estruturado. E claro que existem seres humanos capazes de enfrentar at situaes de emergncia - mas a maioria no nem capaz de enfrentar situaes de rotina, e vive escorada nos outros.

    Podemos dizer ento que no ser humano acontece um desnvel: alguns seres humanos vo muito alm das necessidades rotineiras, enfrentando inclusive situaes espantosas, enquanto outros, no. Ou seja, alguns tm muito a mais e outros tm muito a menos. Isto no acontece em nenhuma espcie animal. Numa outra espcie, a capacidade de auto-regulao de todos os membros mais ou menos homognea; no existe nenhum que seja muitssimo mais hbil do que os outros e, se existe, so mnimas quando comparadas s diferenas entre seres humanos. A espcie humana no tem um nvel de capacidade que ns possamos dizer mdia ou normal; o ser humano pode estar muito abaixo ou muito acima, e ser considerado normal em ambos os casos. E - mais ainda - graas ao apoio da comunidade, a maioria de incapazes no ser destruda - ser protegida. Essas diferenas de capacidade de auto-regulao so, enfim, diferenas na capacidade racional de um indivduo para o outro.

    O processo de formao da razo

    H no ser humano, logo que ele nasce, um princpio de auto-regulao animal. Afinal, nem todo o aprendizado que o indivduo faz j tem uma relao com a razo. A pergunta, ento, : quando que o indivduo passa da pura auto-regulao animal para a razo propriamente dita? Esse ponto de passagem se marca no instante em que o indivduo faz uma pergunta a si mesmo, isto , onde entra em cena uma dvida consciente. E a dvida consciente pressupe o conhecimento da linguagem - o que quer dizer que a razo s comea efetivamente a se desenvolver depois que o indivduo tem uma linguagem suficiente para poder fazer uma pergunta a si mesmo. Quando ele faz uma pergunta a si mesmo, isso quer dizer que ele tem conscincia de que possuidor de um conhecimento e que um outro determinado conhecimento lhe falta naquele momento.

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    O desencadear do processo racional uma espcie de salto qualitativo em relao ao puro e simples aprendizado. O aprendizado comea desde que o indivduo nasce e vai prosseguindo, encontrando obstculos no ao nvel da dvida mas, sim, ao nvel do erro. Muita coisa pode ser aprendida por tentativa e erro e enquanto o mtodo de tentativa-e-erro bastar, este aprendizado ainda no ter nada a ver com a razo. Porm, chega um momento em que o indivduo sente necessidade de algum conhecimento, de alguma resposta que ele no obtm por tentativa-e-erro. Quando isto ocorre, conscientemente ele est admitindo que lhe falta algo e que esse algo muito importante. Ele est tendo conscincia de si como detentor de um conhecimento insuficiente e falho, e isto em funo de necessidades que sente como reais e urgentes.

    Surge, assim, na sua cabea, uma pergunta grave e urgente. Mas isso no quer dizer que ele saiba expressar essa pergunta perfeitamente, porque seno ele poderia faz-la em voz alta. Alm do qu, a pergunta que desencadeia o processo racional pode surgir sob formas muito variadas e disfaradas. Por isso que, se o indivduo soubesse formular perfeitamente sua pergunta, encontraria a resposta. Porm, ns s podemos formular perguntas a partir dos conceitos e das palavras que temos, enquanto a dvida e a interrogao vm da experincia real, intuda, de modo que acabamos no tendo nomes para tudo aquilo que intumos.

    Tudo isso basta para se notar que quase todas as perguntas so formuladas com outros nomes. Sendo assim, coisas que voc conhece por experincia pessoal, por intuio, cujos nomes ou sinais voc no possui, voc acaba possuindo de maneira muito imperfeita, no conseguindo ento manipular esse conhecimento. Isto quer dizer que a insuficincia da linguagem do indivduo j um primeiro obstculo para que ele domine a si mesmo. A razo do indivduo s pode operar com uma parte mnima da sua experincia: aquela cujos nomes ele conhece, que ele tem sinais para designar, e aquela que a sua linguagem abarca. E a outra parte, onde que fica? Fica fora da alada da sua razo, isto , no so manipulveis racionalmente por ele, de modo que as questes mais profundas, mais dramticas, mais radicais do indivduo podem estar colocadas justamente neste sedimento no-utilizvel pela razo. E pode acontecer que as experincias que lhe suscitam a interrogao sejam justamente estas cujo nome ele no tem, e que, por permanecerem formuladas de outro modo - mascaradas - acabam recebendo uma outra resposta. A partir da, cinde-se o mundo da experincia e o mundo da razo. A partir dessa ciso, a razo do indivduo opera numa direo e a sua existncia numa outra. A razo j no funciona direito, e isto porque s funciona para resolver uma parte muito insignificante, e essa parte pode no ser a mais relevante para aquele indivduo. A questo verdadeira, que est no fundo, e que no se conseguiu expressar - por assim dizer - jogada para o subconsciente para ser respondida mediante a auto-regulao animal espontnea que, evidentemente, no est capacitada a lidar com estes problemas. Afinal, a auto-regulao animal espontnea no pode responder perguntas humanas.

    A razo fica, assim, enganada, pois ela s recebeu uma parte dos dados. enquanto a parte mais significativa est l no fundo e vai ser trabalhada pela memria e no pela razo. Mas a memria, apesar de tambm operar uma classificao dos dados, funciona fundamentalmente por analogia, ou seja, uma classificao puramente analgica, aproximando o similar do similar e no por

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    um processo racional mas, sim, por um processo de simbolismo. A partir desse momento, o indivduo fica funcionando com duas mentes:

    A) uma mente racional, que tenta organizar o todo da experincia; B) uma mente simblica-analgica, que opera na memria atravs de uma outra classificao.

    Ocorre, assim, a coexistncia dessas duas metades, que esto normalmente superpostas - mas que se comunicam muito mal entre si. O indivduo passa a funcionar com dois crebros: um que funciona pelas categorias lgicas e outro que funciona por categorias analgicas. E ele acredita naquilo que ambas dizem. O ideal seria, ento, que se pensasse ao mesmo tempo com a parte lgica e com a analgica, de comum acordo. Sendo assim, quanto maior for a limitao da capacidade expressiva do indivduo, mais ele se ver obrigado a contar somente com esse computador analgico que funciona no andar debaixo. Por isso que aquilo que permanece sedimentado e fechado dentro da memria acaba sendo trabalhado por uma espcie de analogismo louco que converte o dado em coisas muito diferentes, aparecendo no fim sob uma linguagem to disfarada que haja analista para decifrar tal mensagem. Tudo isso quer dizer que experincias que deveriam ser idealmente abarcadas pela razo so devolvidas memria e passam a operar subconscientemente, e que tudo o que feito subconscientemente muitssimo mal feito - o que no ocorre quando existe um interesse efetivo em resolver o problema. Alis, quando o trabalho da razo e da conscincia so eficientes e completos, o subconsciente consente em dar o toque final. O inconsciente um depsito de um milho de imagens, todas confusas. Como ele funciona por analogia, da mesmo que poderemos tirar vantagens pois, quando dermos uma estrutura que for anloga a algum dado que ele tem l dentro, essa mesma estrutura ser capaz de puxar esse dado, que se oferecer para ns. O dado, por assim dizer, atrado pela estrutura que voc lhe forneceu. Ou seja: a pergunta estruturada e formulada claramente atrai a resposta devida. Se o homem fosse capaz de dirigir as perguntas certas a sua memria, ele seria um gnio. A experincia de cada ser humano enormemente variada e, dadas as perguntas estruturadas certinhas, a memria faria o restante do servio e concorreria docilmente para as finalidades conscientes.

    A paternidade como smbolo da razo

    A partir do momento em que o contedo da razo devolvido memria que a razo mesma (como funo) adquire uma personificao mitolgica na cabea do sujeito. A partir da, a prpria razo se torna um personagem no cenrio subconsciente. a partir do momento em que o sujeito no consegue desenvolver normalmente a sua razo que ele comea a operar, em nvel subconsciente, com os smbolos da razo, ou seja, com smbolos que tm um poder descomunal sobre ele. E qual este smbolo? Quem este personagem? Muito simples: existe algum que est colocado l fora no mundo e que no parece ter esses dramas que tenho; ele parece dominar as circunstncias que no domino, e tanto domina tais circunstncias que domina at a mim mesmo

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    e me d ordens: portanto, ele a razo - que auto-regulao e auto-conservao. Ele o poder. a que surgem, ento, todos os smbolos do pai.

    O pai um fator que entra na vida da criana relativamente tarde, j que durante o primeiro ano de vida a criana praticamente nem sabe que isto existe. O pai volta a entrar em cena quando comea o aprendizado da linguagem e, logo, ele se transforma no smbolo da razo e do poder. Teme-se, inclusive, ele. Mas notem: o pai no a sua razo, no a sua auto-regulao, no o seu poder - apenas o simboliza dentro de voc. Isto ocorre de tal modo que o indivduo se torna incapaz de colocar os problemas da sua auto-regulao sem referncia ao pai. Portanto, o padro de racionalidade do mundo vem de uma destas alternativas:

    1) simbolicamente, atravs do pai; 2) esforo pessoal para encontrar esse padro.

    Esse padro jamais poderia vir da me porque ela, afinal, o prprio sujeito. A ligao dele com a me muito ntima: de ordem fsica. A me no um elemento exterior, no um elemento estranho; ela no est fora do sujeito: afinal, ele um pedao do corpo da prpria me; , e ser sempre. Entretanto, o que caracteriza o pai que ele no tem esta ligao orgnica com a criana: ele vem de fora. Ele um outro, enquanto que a sua me no um outro. O primeiro dado a seu respeito de que se toma conhecimento j um dado que no biolgico: sociolgico. Por isso que ele entra muito mais facilmente como smbolo da razo do que a sua me j que ela, antes de causar um impacto sociolgico, j causou um impacto biolgico muito mais intenso. Por isso, ento, ela j tem uma outra funo; e o pai, no. O pai nunca teve nenhum contato mais profundo. E a primeira coisa que voc repara nele que ele cumpre uma funo dentro da famlia. Por causa disso normal que o sujeito projete no pai essa sua auto-regulao. Na me, ao contrrio, ele projeta a sua dependncia. Afinal, tudo aquilo em que voc no se auto-regula a sua me quem supre: seu corpo expressa uma necessidade e atendido desde fora, sem nenhum esforo de auto-regulao. Portanto, voc est acostumado a lidar com a sua me em todos os pontos onde voc no tenta uma auto-regulao. O pai, ao contrrio, lhe d em parte um sistema racional e pronto; ele lhe d ordens e mantm essas ordens com uma certa regularidade - isto o mximo que ele faz.

    Caso no haja nenhuma figura paterna, o indivduo ter - por aberrao, se for um gnio - que captar algo como sendo a Ordem Csmica, a Lei, Deus ou qualquer coisa assim - o que muito mais difcil. A razo uma s para todos os seres humanos. A razo impessoal e justamente esta impessoalidade e universalidade que o indivduo deveria copiar e no o seu prprio pai, a figura do pai. A imitao de uma figura concreta e particular jamais ligar voc com a universalidade da razo.

    Por isso mesmo que a funo educativa do pai consiste em ser a ponte entre aquele indivduo e a universalidade da razo. O pai, alis, est ali - para a criana - como um representante da razo. Quando se diz que a vontade do pai a lei, isto significa que ela soa para a criana como uma mxima universal, vlida em todos os casos. A criana politiza as ordens do pai, e isto porque ela no o ouve como a um indivduo mas, sim, como a prpria voz da razo. Se o pai racional e

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    lgico, e racional e lgico para e naquilo que transmite criana, a ponte entre a sua situao de criana e a razo universal estar estabelecida. O pai uma ponte, como se fosse um guru: o guru inicia-a apenas, leva a criana atravs das vrias etapas at a conquista da razo universal. Nem todo mundo gnio para captar uma ordem csmica abstrata. Na realidade, precisa-se de algum smbolo para passar por esta. Ento, todo homem precisa de um pai, precisa de um smbolo. Mas qual a funo do smbolo? Tornar-se transparente. A funo do smbolo anular-se - enquanto smbolo - para deixar vir por trs de si a coisa que ele simboliza. E se algum est aqui como o seu guru, este deveria transmitir o qu? A lei universal. Quanto menos racional for o pai nas suas relaes, quanto menos ele transmitir objetiva e transparentemente a idia de uma lei social externa, a idia de uma ordem csmica, e quanto mais ele impuser a sua figura, mais confuso voc vai estar entre o seu pai e a razo. Voc estar obedecendo quele papai concreto que voc teve e no razo. Voc continuar apelando para o smbolo da razo ao invs de desenvolver a razo. Voc continuar imitando - seja de maneira positiva ou negativa - a imagem paterna, ao invs de desenvolver a razo.

    Notem que, se o pai representa a razo, a ordem, a lei, e se ao mesmo tempo a sua relao com ele negativa, ou seja, o medo predomina muito sobre a confiana, mais tarde voc s confiar naquilo de que tem medo; aquilo que lhe parea maligno, destrutivo, que lhe parea dotado de um poder enigmtico, feroz, que se volta contra voc, lhe parecer a prpria encarnao da razo. O diabo, ento, uma das figuras do pai. o pai que no fornece uma imagem transparente da ordem, da lei universal. Ao contrrio, uma imagem do absurdo, do terror, do incompreensvel. Entretanto, voc s confia neste, e s este que lhe parece racional.

    Desligar-se desta imagem de pai, substituindo-a pela imagem verdadeira uma das tarefas mais difceis. A noo de bem e de mal colocada a, nessa imagem de pai. O indivduo somente se livrar da falsa imagem da razo na medida onde ele mesmo obedecer razo, isto , tomar a autoridade desse falso pai para coloc-la nas mos da sua razo. H antigos mitos que falam de indivduos que se reuniam e comiam o prprio pai. Esses, talvez, no devam ser interpretados de maneira to literal, nem talvez num sentido freudiano, isto , onde comer uma coisa incorpor-la a si. Sendo assim, a partir do momento em que o portador da razo - e do poder - passa a ser voc mesmo e no o seu pai, isto significa que voc comeu seu pai. Assim, todo mundo, de certo modo, deveria comer o prprio pai.

    A razo, contudo, significa tambm ordem e disciplina. Ou seja: somente o indivduo capaz de ordenar-se e disciplinar-se a si mesmo mais duramente do que lhe exige o prprio pai que vai se livrar deste. Voc tem que dizer adeus ao pai de carne e osso e comear a se referir a uma figura divina de alguma maneira. Todas as figuras mitolgicas que representam uma fora positiva no so nada mais do que o impulso do ser humano de reencontrar uma figura simblica que neutralize o pai maligno, ou satans. A razo, em si mesma, teria fora para isso; mas ns no temos, e isto porque no nos motivamos por idias abstratas mas por imagens. A imagem atrai o desejo e o desejo atrai a vontade. Para o indivduo ser racional, ele precisa ter uma imagem de racionalidade que possa copiar. Ele tem que ter vontade de pensar. por isso que voc no pode voltar a sua razo crtica contra o pai maligno porque s ele coloca a sua razo em

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    funcionamento, no sentido que ele quiser. Voc no pode voltar a sua razo crtica contra o smbolo da razo: voc est desarmado. Voc no pode raciocinar contra ele porque ele o fundamento da razo. Uma das tcnicas usadas pelo falso guru pode ser a de desacreditar as imagens paternas autnticas, as dos sbios. O sbio um indivduo que ensina a razo universal, uma figura transparente; se a imagem do sbio for tirada ou apagada de uma sociedade, ocorre a perda de uma poderosa defesa contra o mal.

    Tudo isso aqui exposto , em suma, um sistema de psicologia gentica e evolutiva, e tambm o princpio de uma psico-patologia, formada a partir da idia do trauma da razo em determinado estgio de desenvolvimento. H um caminho ideal de desenvolvimento da personalidade; caminho este que raramente se d, por encontrar obstculos das mais diversas ordens. Estes obstculos ou so de ordem particular, histrico-biogrfica, marcada por vivncias traumatizantes, ou de ordem geral e antropolgica, marcada por um desvio que se introduz na formao da personalidade de todo o ser humano e que pode ser chamado, ento, de desvio da imagem paterna.

    Razo e psique

    s vezes a razo representada como uma cruz que se carrega: o homem carrega sua razo como se carregasse uma cruz. Na lngua rabe, a palavra que designa cruz a mesma que designa espinha dorsal: ulb. Ou seja: a mesma cruz que o mantm de p aquela mesma que o derruba. Dito de outro modo: somente aquilo que lhe d poder pode destru-lo ou, como no ditado muulmano, s quem pode ajud-lo pode atrapalh-lo. esta cruz, alis, que vai conferir dignidade ao homem pois atravs dela que ele pode obter a conscincia da necessidade da busca incessante da verdade. E esta busca que vai humaniz-lo cada vez mais. s vezes, no entanto, a verdade di, e esta dor gera um trauma cognitivo que surge no instante em que desponta a razo. No existe nenhum trauma que seja pior do que este pois todos os outros traumas so localizados, afetam uma parte da psique enquanto este afeta toda a psique. Notem que quase todos os processos teraputicos se baseiam no fato do indivduo trazer para a luz da conscincia certos contedos subconscientes, enquanto que este processo aqui descrito passa-se inteiramente dentro da conscincia, sem qualquer coisa de subconsciente. Ele to geral e abrangente que, resolvendo-o, o subconsciente se resolve sozinho. E isto desmente a tese clssica de Freud de que o inconsciente preside o consciente. Afinal, tudo que est no subconsciente passou pela conscincia: ela quem determina o que entra e o que sai do subconsciente. Do que decorre que o ponto fundamental a ser destacado na cura psicolgica a reestruturao das bases da conscincia do sujeito.

    O critrio de organizao da conscincia fundamentalmente intuitivo at uma certa fase; depois, entra em funcionamento a razo. Se a o indivduo no faz uma transio gigantesca, uma adaptao bem sucedida ao mundo racional em que est penetrando, e tenta continuar na base da organizao intuitiva, ele se torna um inadaptado vida adulta e muito provavelmente ser vtima de neurose ou outra coisa do tipo.

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    O trauma da emergncia da razo , pois, um mal antropolgico e no apenas psicolgico. Seria um mal prprio da espcie humana; mal, este, que se coloca na base de todos os problemas psicolgicos individuais possveis. Afinal, estes afetam apenas o indivduo enquanto que aquele, antropolgico, afeta a espcie como um todo.

    A represso da atividade da razo

    A represso da atividade crtica da razo um dos fundamentos da neurose. O indivduo faz a crtica racional mas, ao mesmo tempo, ele se impede de ver que est fazendo isto. No quer saber. Por isso que a represso da razo parece ser muito mais grave do que a represso do sexo: o homem pode viver sem sexo mas, sem razo, ele no vive nem cinco minutos. Se voc reprime, por exemplo, o instinto sexual, o mximo que voc pode fazer sublim-lo no sonho - e est resolvido. Mas como vamos sublimar a razo? Como faremos, se os contedos crticos negativos da razo so passados para o inconsciente?

    Pelo fato da razo ter uma coerncia, ela pode continuar presidindo seu comportamento pois, de certa maneira, voc passa tambm a agir de acordo com uma lgica interna que vai se tornando mais desconhecida medida que permanece no campo do inconsciente - e, assim, voc vive em permanente perigo para a prpria integridade.

    Sendo assim, pode-se ou assumir a atividade crtica da razo ou reprimi-la por completo, chutando-a para o inconsciente. Mas, se eu a chuto para o inconsciente, mantenho a coerncia aparente do campo consciente, fazendo com que minha conduta acabe sendo levada para direes que eu no quero. Essa divergncia acaba se transformando, pois, num comportamento que podemos chamar de crtico.

    A razo e as correntes psicolgicas

    Excluindo a idia de que todos possamos ter nascido doentes, a hiptese que aqui se lana a de que na maior parte dos casos nascemos sos nas reas inferiores. Os conflitos vem de alguma maneira de fora para dentro, na medida em que h uma situao inacomodvel (vide Piaget), isto , ao longo do processo de assimilao das informaes do mundo externo. a partir da que podemos ficar doentes. O homem padece, fica neurtico e eventualmente at psictico no porque tem instintos ou traumas de ordem afetiva e sexual, mas porque no consegue desempenhar a funo que lhe prpria. claro que o ser humano tem tambm problemas na esfera animal, mas no so estes os conflitos caractersticos. Existem doenas que so prprias de cada espcie animal enquanto que as ligadas razo que seriam prprias do homem. Esta a questo essencial.

    Tudo isto contrrio ao que a Psicologia - pelo menos na rea de psicoterapia - tem feito h 100 anos, procurando interferir somente na esfera afetiva para baixo. A quase totalidade das correntes psicolgicas da atualidade est muito enganada quando ignora o aspecto intelectual das neuroses, pensando que os traumas provem de problemas ligados ao aspecto passional do homem. Porm,

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    a grande dificuldade enfrentar o racional. O nico grande psiclogo que deu importncia a isto foi Viktor Frankl, fundador da logoterapia. Frankl foi o primeiro que formulou o aspecto intelectual das neuroses. Mas, em geral, a psicologia no aborda este ponto. Na realidade, o homem tem infinitamente mais medo da parte clara da sua alma do que da obscura: ele foge menos dos seus fantasmas do que de certas verdades inegveis s quais se chega pela razo. Mesmo a psicoterapia de Viktor Frankl, que pertence s esferas mais superiores, trata apenas do aspecto moral, dos valores e do sentido da vida - mas nunca da esfera lgica. O nico que pensou nesses termos foi um sujeito chamado W.R.Bion. Ele imaginou algo neste sentido, porm no disse que o problema est a. Afinal, se o Dr. Freud nos ensina a reconstituir a histria do indivduo, porque no h a possibilidade de reconstituir a sua histria lgica, isto , como se foi formando sucessivamente os seus quadros de referncia? nesse sentido que a obra de Bion pode ser til, se bem que ela muito complicada. Bion um freudiano que leu Kant; comeou a interpretar os sintomas neurticos como Kant interpretou as formas a priori de entendimento, isto , como algo que est a priori na cabea da pessoa e que faz com que ela veja a situao de uma forma diferente. Bion chama isso de grade. Mas o prprio fato de chamar de grade mostra como difcil reconstituir a histria porque, na verdade, uma sucesso de grades que mudam com o tempo.

    Para poder reconstituir a histria preciso ter a chave central, ou seja, como que o indivduo comeou a construir estas grades de referncia, que acabam se constituindo, para ele, numa razo absoluta a que obedece indiscutivelmente. E nem adianta persuadir a quem montou seu esquema lgico de modo errado a pensar corretamente, e isto porque ele acaba remontando a idia na sua forma original e equivocada. Para levar o indivduo a admitir com toda a sua alma que, por exemplo, 2 + 2 = 4, deve-se permitir que seu esquema racional comporte tal informao e, para isso, s vezes se precisa ir at as premissas iniciais. Se o indivduo lembra dos seus fundamentos primeiros e percebe a inadequao deles, o seu esquema lgico pode desmontar e remontar com uma velocidade impressionante. Por isso que, se voc prope ao indivduo tal reavaliao, pode ser que isto funcione como um catalisador, proporcionando que ele veja instantaneamente o eixo gerador de falsas interpretaes.

    bvio que temos que avaliar se estas falsas interpretaes provem ou no do fato do indivduo ter torcido a verdade por estar movido por impulsos de outra orbe. Isto pode acontecer, mas raro. Na maior parte dos casos as crianas vo torcer a realidade porque no tm informaes suficientes e experincia, ou seja: no se trata de um trauma ou de uma distoro mas, sim, de uma privao. A fonte da desgraa humana a ignorncia.

    Essa teoria do Trauma da Emergncia da Razo pode inclusive conciliar as vrias correntes de psicologia ou criar um terreno comum de disputa para elas. Afinal, cada nova linha corresponde a um novo resultado: a proposta de Freud, do complexo de dipo, no um elo comum; a de Jung, dos arqutipos do inconsciente coletivo, tambm no; e a de Adler, da vontade de poder, tambm no. Mas o processo aqui descrito se funda em algo que independe de qualquer tipo de estrutura social para ser verdadeiro: como um elo perdido que, levado em conta, d o ponto de convergncia de todas essas teorias. Alis, uma das conseqncias da

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    Astrocaracterologia a proposio de um ponto de conciliao, de um elo comum em meio a todas essas discrdias. O elo comum e o princpio mais alto que abarca todas as teorias traumatolgicas da psique est, segundo creio, no trauma da emergncia da razo. Se fssemos conversar a respeito de uma psicoterapia ou psicopedagogia, acredito na possibilidade do desenvolvimento humano a partir do momento em que se arque com a prpria razo, com a prpria contradio, isto , transferindo o sofrimento de aspecto vivencial para o aspecto intelectual. A inteligncia agenta tudo, a parte mais forte do homem. O homem agenta viver em dvida a vida inteira.

    A razo e o ingresso no social

    A razo universal, e da a inadequao que existe sempre entre o nosso organismo psico-fsico - que um, individual, singular, que tem suas prprias necessidades - e o funcionamento da razo. Ns nunca estamos perfeitamente adequados razo. A razo s trata da generalidade; ela nunca adequada para compreender nenhum caso singular. E muito menos o nosso. A razo a cruz que o homem carrega. Em geral, a urgncia daquele problema pessoal que foi colocado impede o indivduo de olhar a coisa mais de cima. Se ele conseguir deixar este problema de lado e prosseguir no processo de educao que este exige, ir se transformar num membro da comunidade, num cidado; seno, o seu destino ser outro.

    Pode-se, inclusive, medir se o indivduo neurtico ou no por esse ponto: o quanto que ele empacou ou no em determinada problemtica pessoal que deveria ser encarada apenas como um mistrio humano a ser investigado - ou, pelo menos, como um estmulo para tal. Freud estava na pista certa com relao a sua teoria sobre a neurose: ele dizia que esta era a inadequao entre o nosso organismo psico-fsico e as exigncias da cultura e da razo. Ele tambm estava certo quando dizia que a cultura e a razo j haviam ganhado a briga de antemo. No adiantava, pois, querer livrar-se destas: o caminho do homem de fato tornar-se racional, entrar na sociedade, na histria - no tem outro jeito.

    Sabemos que Freud buscou chegar ao mal antropolgico fundamental, julgando t-lo encontrado no complexo de dipo, considerado um problema universal. Mas Malinowski demonstrou que em certas tribos tal complexo no existia, referindo-o como relativo a determinado contexto cultural e sociolgico, derrubando assim a universalidade desta proposio. Adler, seguindo Nietzsche, disse que a vontade de poder universal; no entanto, possvel ver culturas onde no se cultiva a vontade de poder. Sendo assim, o complexo de dipo e o dito complexo de inferioridade no so antropolgicos; so sociolgicos: dependem do contexto desta ou daquela sociedade. Mas o mesmo no se pode dizer do pensar e do falar, isto , do advento da linguagem e da razo: so fenmenos universais, dos quais a espcie humana no tem como escapar. Em toda a sociedade humana ocorre que cada sujeito, um dia, vai ter o confronto com a razo, e este confronto vai ser trazido por meio da cultura e no da natureza. Portanto, se existe um trauma inerente ou possvel a esta situao do ingresso da razo, este trauma universal. A faculdade da razo, se os evolucionistas tem alguma razo, ainda no plenamente dominada pelo homem. Se houve alguma humanizao a partir de uma base animal, normal que

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    carreguemos estas faculdades superiores como uma cruz, j que se torna pesada demais para ns. curioso que o Dr. Freud, que era um evolucionista convicto, no tenha pensado nisto - mas ele estava na pista certa quando disse que a civilizao era a origem das neuroses. A civilizao forma o corpo de leis, costumes, ou seja, todo o mundo da razo. Isto pesa sobre o homem. Na realidade, o homem pode ter acesso a uma esfera que muito superior a ele; esfera, esta, a do conhecimento, que acaba vislumbrando de um modo incompleto e fragmentado. Este tema do incompleto , inclusive, um dos temas mais fundamentais da literatura universal, e obceca a imaginao humana. Vejam o nmero de histrias de mapas de tesouros incompletos, de objetos fragmentados em que se precisa encontrar a outra parte, ou casos de indivduos que desconhecem uma parte de sua prpria origem. Alis, dipo erra no por qualquer atitude doentia, mas por conhecimento incompleto. Aristteles, quando define a tragdia, diz que a histria se compe basicamente de:

    1) pattico = cenas que so emoes exageradas; 2) peripcia = quando os acontecimentos tomam um rumo imprevisto; 3) reconhecimento = quando se descobre algo que elucida o sentido dos eventos. um rumo

    imprevisto;

    Por isso, vejam a importncia que tem a informao faltante: incrvel que toda a psicologia moderna no tenha dado a mnima ateno a isto. Podemos dizer, assim, que o processo de aquisio da razo o processo de socializao do indivduo. E isto porque a razo uma faculdade essencialmente humana. Socializar e torn-lo racional , mais ou menos, a mesma coisa.

    A contradio do animal racional

    A fonte da desgraa humana a ignorncia. Ela no o nico mal, mas na prtica, a raiz de todos os males porque, se no houvesse esta ignorncia, todos os outros problemas que surgem como conflitos na esfera afetiva poderiam ser resolvidos. Mas, para o indivduo os resolver, tem que usar o esquema racional que possui; mas, se o seu esquema racional est lesado (porque se desenvolve precariamente sobre uma pergunta central que j tem, em si mesma, uma contradio intrnseca), qualquer soluo vivencial que der a qualquer coisa ser equivocada, porque ela - a pergunta - a priori no foi resolvida ao menos na inteligncia.

    Parece-me bvio que no existe nenhum conflito mais grave do que este; todos os outros conflitos so, por assim dizer, conflitos de fora, isto , de coisas que esto em movimento. Entretanto, este no um conflito de fora: um conflito esttico. Ele no se desenvolve. Ele simplesmente se repete. como se dissesse que os outros conflitos so apenas conjecturais, isto , fatos que acontecem e que o tempo se incumbe de dissolver. Mas este conflito no est na esfera dos fatos: est na prpria estrutura do pensamento racional com que se tenta enfrentar os fatos. exatamente a diferena que se d entre o homem que est no escuro e o cego: quando se fizer dia, o primeiro vai enxergar enquanto o segundo vai continuar no enxergando nada porque

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    o defeito no a escurido ambiente - ele quem est internamente escuro, este o seu ponto cego.

    H, assim, um certo defeito congnito na espcie humana; defeito este que se constitui na elaborao de um esquema racional cuja finalidade o entendimento ou a razo mesma que d, por sua vez, a tudo, seu verdadeiro sentido. Esse defeito - no posicionamento do indivduo frente a qualquer situao de vida ou at mesmo numa anlise biogrfica - far com que um equvoco sempre se repita ou aparea travestido sob vrias formas at que, enfim, se decida resolv-lo primeiro - o que s ocorre quando se tem um desejo sincero de autoconhecimento. Mas a maior parte das pessoas est disposta a aceitar explicaes do tipo freudiana, reicheana e etc, que vo sempre imputar a responsabilidade do ocorrido ou aos outros ou a si mesmo. Mas - neste caso aqui - a responsabilidade no dos outros e nem de si mesmo: uma fatalidade. Fatalidade da prpria constituio humana. E isto a que ningum quer ver.

    Tudo que tem autor contingente: aconteceu, mas poderia no ter acontecido. O que contingente nos alivia de certa maneira. Aquilo que tem sempre um culpado sempre alguma contingncia, um acidente: mas e aquilo que no tem culpado? Quando a culpa no do papai, do passado, do capitalismo e tampouco sua? A quem ou a que imputarmos nosso sofrimento? Na hora em que ns aceitarmos esse sofrimento como constitutivo do ser humano entenderemos que temos que carregar essa cruz dignamente como todo mundo. Mas, e se no aceitarmos? E se aquilo que necessrio for tratado como contingente a ponto de tentarmos uma soluo fora? Ser uma tragdia dupla: afinal, no para ter soluo no nvel vivencial em que originalmente se deu.

    Notem que cada figura geomtrica aquilo que e, por tal, est presa a um conjunto de leis que a definem, ou seja, a um conjunto de propriedades de onde decorre necessariamente sua definio. Sendo assim, por mais que se faa a soma dos ngulos internos de um tringulo, sempre se obter o resultado de 180 graus. E isto no por acaso: porque simplesmente assim - est na natureza daquele ser. Do mesmo modo, este conflito do homem com a sua prpria razo est na sua prpria natureza: ele no pode deixar de t-lo. E isto porque o homem - se de fato um animal racional - definido por uma espcie de contradio; contradio esta que no lhe cabe resolver a no ser como desenlace final de uma vida - afinal, essa contradio no pode ser resolvida no comeo pois, caso se resolva no comeo, abole-se o ser humano.

    Isto quer dizer que a resoluo dessa contradio se constitui na prpria vida do indivduo: se no houvesse contradio, no haveria vida. Se voc quer desligar, isto , separar os dois fios, ento voc no quer viver: voc est recusando a vida. O preo da vida este sofrimento. O preo da vida do animal racional arcar com a contradio da animalidade & racionalidade, sem poder abdicar de nenhuma delas. Da animalidade evidente que no se abdica porque isto seria a mesma coisa que morrer; afinal, responder s necessidades biolgicas uma exigncia para se manter a prpria vida. Por outro lado, percebe-se que em tudo o que o homem fez em termos de racionalidade h o toque animal, e isto porque o homem no racionalidade pura; o homem nunca totalmente racionalidade pura porque, se assim o fosse, simplesmente no haveria sobre o que pensar. o que dizia Aristteles: o homem uma fuso inseparvel; uma mistura

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    inseparvel da racionalidade e da animalidade. E a separao disto ou uma impossibilidade em si mesma ou a morte. Este conflito, que o que define o ser humano, o que d a ele o estatuto de humano.

    O homem: o filsofo vivente

    O Trauma da Emergncia da Razo um drama em que o indivduo se v confrontado com a necessidade de arcar com a sua condio de animal racional, deixando de tentar dar uma soluo apenas na esfera animal, vivencial ou dos sentimentos. O homem comum - diga-se de passagem - pragmtico e requer muito pouco o uso da razo. Mas se a vida do sujeito se esgota num nvel pragmtico, as perguntas que solicitarem a inteligncia racional ficaro de lado. No aumentaro sua inteligncia teortica e acabaro se revelando como problemas no nvel vivencial. O homem tem muito mais inteligncia do que a utilizada para resolver seus assuntos pragmticos. E estes excedentes que continuam funcionando o oprimem com perguntas irrespondveis. Sendo assim, o que seria a principal arma do homem torna-se seu principal inimigo.

    Na realidade, o sujeito est tentando resolver por um mtodo experimental um problema puramente terico, isto , est tentando resolver na vida um problema que no est na vida. Fitche - um grande filsofo - dizia a seguinte frase: Filosofar no viver. Viver no filosofar. Sendo assim, se voc est tentando resolver na vida um problema filosfico, voc est confundindo a teoria com a prtica. Alis, o que acontece que a teoria tem a sua exigncia: ela chama o homem. O homem no pode viver totalmente no mundo prtico. Ele tem um aspecto teortico que inerente condio humana - e que renegado. E renegado porque ele tem o desejo desgraado de ser feliz. Ele acha que, ao se jogar direto na vida prtica, vai encontrar a felicidade; quando, na realidade, deveria fazer o contrrio: deveria recuar, meditar - teria que no viver. Lemos no Evangelho: Quanto mais voc quer a vida, mais voc a perde; e aquele que desiste dela, a ganha. Ser que isto no quer dizer que filosofar no-viver? Sim. Por isso que com filosofia finalmente se ingressa na vida com a perspectiva inerente do homem; perspectiva esta que o coloca numa condio integral e o tira de sua condio anterior fragmentada. Todo mundo tem que ser filsofo, fazer com que se forme a prpria inteligncia. Mas deve-se filosofar nica e exclusivamente sobre aquilo que interessa, jamais evitando esse tema criteriosamente pelo fato dele incomodar. Se nunca se coloca um nico problema real, fica-se com toda a parafernlia do equipamento filosfico sem saber onde us-la. Voc se torna, digamos, um racional puro, e filosofa tal como os outros vem geralmente filosofando nas academias; voc se torna, assim, um filsofo do terceiro andar para cima - e do segundo para baixo um jumento.

    No tem sada: pra onde quer que voc se vire, o homem um animal racional. Ele o prprio filsofo vivente. A razo quem introduz o indivduo, por assim dizer, no gnero ao qual ele pertence. Da que os problemas suscitados pela razo mesma s podem ser resolvidos dentro do seu mbito particular. Esta , ento, a definio do ser humano: ir alm do seu limite biolgico. O valor de um homem se mede por aquilo a que ele dedica a prpria vida. Dedicar dar; afinal, a vida no lhe pertence. Se voc se dedicar e deixar sua vida ser gasta por alguma coisa, a sua vida -

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    e voc - no vo se consumir em si mesmos, feito cera que no produz luz alguma. E para qu devemos fazer isto: produzir luz? que isto prprio do ser humano: ir alm do biolgico. Alm do necessrio sua subsistncia. Afinal, o homem que tem foras a mais. inconcebvel que um animal com um sistema nervoso to complexo e primoroso tenha como destino somente comer e procriar. Isso seria um desperdcio formidvel.

    A razo a faculdade possuda igualmente por todos os seres humanos, ou seja, o que vlido para minha razo vlido para a sua. Entretanto, isto j no o que acontece na esfera da vida animal: a minha vida no a sua pois, se voc morre, eu continuo vivo; se di o seu dente, no di o meu. Ou seja, aquilo que eu sinto voc no sente necessariamente. O sentimento s existe na hora em que eu o sinto e na hora em que algum concretamente o sente. Mas ... e uma verdade racional? Ela verdade quando se pensa e quando no se pensa a respeito: afinal, no tempo em que ningum conhecia ainda o teorema de Pitgoras - no tempo do homem de Neanderthal - a soma dos quadrados dos catetos j no dava o quadrado da hipotenusa? E depois que desaparecer o ltimo homem sobre a terra, no continuar dando? Isto quer dizer que entre a esfera da experincia vivencial e a esfera da razo existe um abismo, e que quem transpe esse abismo o homem. O homem a conexo entre esses abismos; a nica conexo entre a animalidade e a racionalidade ou entre o singular e o universal.

    Conscincia e verdade

    Na realidade, o homem que est conscientemente dividido que sofre e no o que tem conscincia cindida, isto , conscincia que luta contra si mesma. Alis, este homem, que puxa o conflito para fora da conscincia e que conscientemente no sofre, e cuja conduta incoerente, um homem ineficiente. E isto - resta dizer - a quase totalidade da humanidade. Ou seja: a capacidade de sofrer conscientemente de uma dvida muita pouca gente agenta. Ter conscincia se esforar para ter uma certeza em bloco e puxar para dentro dela todas as divises e contradies que porventura existam. Ter conscincia da prpria ciso saber, pois, que se est dividido; mas se o indivduo no tem conscincia da prpria ciso, digamos, uma conscincia culpada, das duas, uma: ou ele santo ou chutou a diviso para debaixo do tapete. Sendo assim, sofrer na inteligncia prprio do homem inteligente e consciente, isto , do homem que deseja a coerncia e o bem e, no obstante, compreende as divises, as contradies da vida, os paradoxos de si mesmo; afinal, ele sabe que no um tratado de lgica ou uma edio do evangelho. Por isso que pensar essas coisas, sofrer intelectualmente com elas, tentando resolv-las, equivale a carregar a prpria cruz e a enfrentar a realidade. Na verdade, a sade da inteligncia o sofrimento da prpria inteligncia: a inteligncia saudvel sofre. Mas isto s possvel para o homem que deseja fundamentalmente a verdade.

    Por isso, tem que se saber todas as contradies pessoais, uma por uma, e fazer desta conscincia que se obtm delas uma parte da sua viso do mundo. Na realidade, se o sujeito for sincero, ele no dar esta diviso e esta ciso como provisria - esta diviso faz parte da natureza humana. O homem vai ter esta contradio at o ltimo dia porque um animal racional. Ele pura

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    contradio. Ele um ponto de naturezas adversas amarradas entre si. Estar consciente disso , pois, carregar a condio humana.

    O homem no pode melhorar a no ser na conscincia, e a conscincia dele melhora medida que ele capaz de arcar com a contradio. Se der para melhorar tambm a conduta, melhor para os outros. Sem dvida, isto um progresso - mas acontece que isto no o ponto decisivo. O ponto decisivo no est na conduta boa ou m: est na conscincia que se obtm. Se o indivduo parou de fazer o mal e est fazendo o bem em prejuzo da sua conscincia, ele apenas um idiota piedoso. Ele est redondamente enganado sobre si mesmo. Ele tem uma falsa conscincia e fundamentalmente um mentiroso. Na doutrina catlica, o mal existe e voc no se livra dele em nenhum minuto: ela fundamentalmente pessimista. Ela diz que o mal est na raiz da existncia humana, no pecado original, e que no se pode apag-lo. Contudo, isto no quer dizer que esta contradio entre bem & mal no possa ser superada: pode, mas no de modo que um se d em detrimento do outro. A contradio, assim, poderia sempre ser reabsorvida numa outra perspectiva, a saber, racional, e no vivencial. Esse aspecto da razo o responsvel pelo enquadramento de toda a conduta numa direo onde o mal & o bem no esto anulados no plano vivencial mas, sim, encaixados em planos onde a contradio se torna motivo para gerar reflexes e compreenses e no to somente fonte de dor e desconforto. medida que se vai passando do cdigo epicurista do prazer e da dor para o cdigo da verdade, a prpria preocupao com o mal e o bem que se fez diminui formidavelmente; afinal, j no interessa tanto saber se o ser humano bom ou mal: j se sabe que ele mal mesmo. Por isso que existe um mrito na admisso da verdade: o amor verdade uma virtude fundamental. Se, alm de ter amor verdade, d pra se ter uma conduta um pouco melhor, isto somente melhor para os outros conviverem conosco.

    A conscincia existe e se fortalece na medida que existe a busca da verdade. Se no existe a busca da verdade e existe apenas a busca da vida, que importa o que acham a respeito do bem e do mal? Eles se tornam apenas um discurso ideolgico para justificar a prpria conduta. Sendo assim, todo o bem e mal que se faz se tornam ambos disfarce, mentira - por isso, se voc abdicou da verdade, voc abdicou do bem. A verdade coextensiva ao bem - ela o bem mesmo. Mais ainda: a indiferena pela verdade dita, no cristianismo, como o pecado contra o esprito santo: todos os pecados podem ser perdoados, mas o pecado contra o esprito no perdoado nem neste mundo, nem no outro. Sendo assim, cometa todos os pecados - mas no cometa este. Abdicar da verdade jamais se pode. Outra coisa: a religio, sem a tenso religiosa, s serve para corromper o sujeito pois a f usada como alvio. A tenso est exatamente entre a f e a dvida; onde no existe dvida, a f um analgsico da conscincia e, como as pessoas buscam a f para no terem dvida, ela acaba se tornando um analgsico na quase totalidade dos casos. Tudo isto a marca de que o homem um animal racional, um ser feito para investigar a verdade. Ele capaz disso e, se no atende a tal exigncia, fica deficiente. Hoje em dia, a racionalidade - inclusive a cientfica - tem sido mais um instrumento da animalidade, com finalidades apenas pragmticas, do que aquela compreenso que restitui o sentido da vida. Por isso, fazer qualquer coisa deixa de ser uma finalidade em si mesma pois se transforma apenas numa atividade instrumental que se esgota no atendimento das necessidades animais.

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    A razo mesma , pois, uma finalidade do homem. E a espcie humana particularmente infeliz porque no vive segundo sua finalidade. O homem o animal que pode - e portanto deve - conhecer a verdade. Todo ser humano tem indagaes que s podem ser resolvidas com certo conhecimento - mas nem todos vo dedicar seu tempo procura desse conhecimento pois, na realidade, esto procurando uma soluo prtica para alvio do desconforto que sentem. Ento, dividimos as pessoas em dois grupos:

    1) as que querem a verdade; 2) as que querem alvio.

    Estes ltimos no o encontraro pois, a nvel puramente pragmtico, o problema no tem soluo.

    Tudo isto, enfim, deve resumir o que se entende por pecado original: o que a rvore do bem e do mal, isto , a rvore proibida? justamente desfrutar do gostoso e do desagradvel. Mas e o que a rvore do conhecimento? a busca da verdade. A primeira a rvore das necessidades meramente animais, enquanto a segunda a das necessidades humanas - dessa, o homem pode comer os frutos; da outra, no.

    Sendo assim, ter conscincia j ter m conscincia; afinal, ter conscincia da prpria impotncia e, por tal, conscincia culpada. Esse o destino do homem. Afinal, o homem sabe de coisas que se prolongam para trs e para dentro de sua existncia, e que vo infinitamente alm do raio de sua ao fsica - e por isso mesmo que ele homem. Se o raio de sua ao pudesse se estender tanto quanto o seu conhecimento, ele seria uma potestade, um deus; mas, se ele quisesse nivelar a sua conscincia apenas esfera do seu poder, ele se tornaria um animal. Para o animal, no existe contradio entre o saber e o poder: tudo o que ele sabe expressa um poder real que ele tem. E onde ele no tem poder, de nada sabe. Ento, se o sujeito no aceita o conhecimento, o saber, mesmo ficando impotente, ele no aceita a condio humana mesma; e j que ele no pode ser deus, resolve ser um bichinho.

    Aceitar o saber sem poder a base de toda tica humana. A base do conhecimento da verdade essa: voc agentar a culpa e saber que a sua no to maior que a dos outros no - est todo mundo culpado. Sendo assim, ter que aceitar que a sua inteligncia infinitamente mais potente do que a sua capacidade de ao. Vai ter que aceitar o saber sem poder. Alis, a base do conhecimento psicolgico se ter conscincia do prprio limite de ao. E isto um dos maiores testes que o ser humano passa e, em geral, no agenta.

    Todo o ser humano tem de carregar a prpria cruz, que essa limitao no espao temporal, essa condio carnal de uma inteligncia, por assim dizer, imortal. Essa inclusive a definio do homem: o animal racional; enquanto racional a razo universal, abarca tudo; enquanto animal est cravado num corpo que frgil, que di, e que com o passar do tempo vai se estragando. Esta que a verdade. Alis, a rejeio da condio carnal a definio do diablico, isto , a rejeio pra cima, onde se quer ter poder universal para se livrar da conscincia da fragilidade

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    fsica. De outro modo, pode ir tambm para baixo, virar um bichinho e destruir a prpria conscincia.