o trabalho de campo como caminho metodolÓgico: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a...

18
Revista OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 1-127, 2008. ISSN 1982-3878. João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: TESTEMUNHOS E INTERPRETAÇÕES DE UMA MARCHA INDÍGENA POTIGUARA Amanda Christinne Nascimento Marques Programa de Pós Graduação em Geografia da UFPB Maria de Fátima Ferreira Rodrigues Departamento de Geociências da UFPB RESUMO “Potiguara é guerreiro, Potiguara é quem vai ganhar! Guerreia na terra e guerreia no mar, Potiguara é quem vai ganhar!”. Este refrão foi repetido em tom enfático pelos índios Potiguara da aldeia Três Rios, localizada no município de Marcação – PB, ao comemorarem o reconhecimento do seu território tradicional. A razão dessa comemoração foi a divulgação da portaria declaratória nº 2.135/07 do Ministério da Justiça, assinada em Dezembro de 2007. Pintados de vermelho e preto, munidos de cocares e sob as chuvas de Janeiro, os Potiguara, na marcha de comemoração e no ato público, revelaram a complexidade das relações intersocietais que os aproximam ou distanciam de outros povos tradicionais e da sociedade envolvente. Partindo desse contextoeste ensaio tem o objetivo de interpretar a marcha indígena potiguara a partir de seus significados simbólicos e políticos. Do ponto de vista metodológico utilizamos para a compreensão espacial da referida marcha, os registros obtidos no campo constituídos em seu todo por escritos feitos nos cadernos de campo, fontes iconográficas (fotos, desenhos e croquis), vídeos, dentre outros materiais. Para fundamentar a nossa narrativa utilizamos como referência autores como Serpa (2006), Rodrigues (2007) e Lacoste (1977) que trabalham diferentes concepções de trabalho de campo na ciência geográfica; além de Geertz (1989), Oliveira (2006) e Moura (1992) que discutem o trabalho de campo como um exercício etnográfico na Antropologia. Ao analisarmos a marcha consideramos que a mesma revela dimensões da territorialidade étnica dos índios Potiguara. A forma como estes expõem e dialogam com o espaço exterior utilizando os elementos inerentes a sua cultura demarca uma fronteira étnica. Tal fronteira é apresentada como extensão de um universo singular dos indígenas por meio das indumentárias, dos adereços, das pinturas corporais, das palavras de ordem, da musicalidade, dos ritmos e das composições que os acompanham. Por meio dos vários elementos simbólicos, movimentos e dinâmicas territoriais, os Potiguara criam e recriam no imaginário social, características historicamente marcantes do seu povo como grupo etnicamente diferenciado. Dentre essas características reconhecidas socialmente cabe destacar o princípio da união e da solidariedade que marcam o viver em comunidade. Este princípio congrega os indígenas de forma igual internamente ao OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Upload: others

Post on 15-May-2020

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

Revista OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 1-127, 2008. ISSN 1982-3878.

João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br

O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: TESTEMUNHOS E INTERPRETAÇÕES DE UMA MARCHA

INDÍGENA POTIGUARA

Amanda Christinne Nascimento Marques Programa de Pós Graduação em Geografia da UFPB

Maria de Fátima Ferreira Rodrigues Departamento de Geociências da UFPB

RESUMO “Potiguara é guerreiro, Potiguara é quem vai ganhar! Guerreia na terra e guerreia no mar, Potiguara é quem vai ganhar!”. Este refrão foi repetido em tom enfático pelos índios Potiguara da aldeia Três Rios, localizada no município de Marcação – PB, ao comemorarem o reconhecimento do seu território tradicional. A razão dessa comemoração foi a divulgação da portaria declaratória nº 2.135/07 do Ministério da Justiça, assinada em Dezembro de 2007. Pintados de vermelho e preto, munidos de cocares e sob as chuvas de Janeiro, os Potiguara, na marcha de comemoração e no ato público, revelaram a complexidade das relações intersocietais que os aproximam ou distanciam de outros povos tradicionais e da sociedade envolvente. Partindo desse contextoeste ensaio tem o objetivo de interpretar a marcha indígena potiguara a partir de seus significados simbólicos e políticos. Do ponto de vista metodológico utilizamos para a compreensão espacial da referida marcha, os registros obtidos no campo constituídos em seu todo por escritos feitos nos cadernos de campo, fontes iconográficas (fotos, desenhos e croquis), vídeos, dentre outros materiais. Para fundamentar a nossa narrativa utilizamos como referência autores como Serpa (2006), Rodrigues (2007) e Lacoste (1977) que trabalham diferentes concepções de trabalho de campo na ciência geográfica; além de Geertz (1989), Oliveira (2006) e Moura (1992) que discutem o trabalho de campo como um exercício etnográfico na Antropologia. Ao analisarmos a marcha consideramos que a mesma revela dimensões da territorialidade étnica dos índios Potiguara. A forma como estes expõem e dialogam com o espaço exterior utilizando os elementos inerentes a sua cultura demarca uma fronteira étnica. Tal fronteira é apresentada como extensão de um universo singular dos indígenas por meio das indumentárias, dos adereços, das pinturas corporais, das palavras de ordem, da musicalidade, dos ritmos e das composições que os acompanham. Por meio dos vários elementos simbólicos, movimentos e dinâmicas territoriais, os Potiguara criam e recriam no imaginário social, características historicamente marcantes do seu povo como grupo etnicamente diferenciado. Dentre essas características reconhecidas socialmente cabe destacar o princípio da união e da solidariedade que marcam o viver em comunidade. Este princípio congrega os indígenas de forma igual internamente ao

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 2: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

MARQUES, A. C. N.; RODRIGUES, M. F. F. 39

vivenciarem a luta, mas, ao mesmo tempo, os diferencia do ponto de vista da individualidade, dos desejos e das utopias em relação a sociedade envolvente. A marcha é, em seu acontecer, uma representação simbólica direcionada ao outro, ou seja, ao não índio. É a reafirmação de uma identidade que se faz resistente, recriada e diacrítica.

Palavras‐chave: Indígenas, movimentos sociais, trabalho de campo.

Introdução

“Potiguara é guerreiro

Potiguara é quem vai ganhar! Guerreia na terra e guerreia no mar

Potiguara é quem vai ganhar!”

Foi essa a “cantiga de ordem” dos índios Potiguara da aldeia Três Rios, localizada no Município de Marcação‐PB, ao comemorarem no dia 18 de Janeiro de 2008 o reconhecimento do seu território tradicional que teve portaria declaratória assinada em Dezembro de 2007.

Entre as várias acepções do termo marcha, como, por exemplo, passo de uma tropa, modo de caminhar e forma de caminhar dos soldados, utilizamos como sentido da palavra, o deslocamento feito de um lugar para outro. A marcha é um instrumento político e simbólico dos índios Potiguara que dá um sentido de unidade ao movimento. Por ocasião da marcha as diferentes formas de viver e conviver com as tradições cedem lugar a um todo uniforme e homogêneo com vistas à obtenção de uma bandeira de luta que une a todos num só propósito: a conquista da terra.

Pintados de vermelho e preto, enfeitados com cocares e sob as chuvas de Janeiro, a marcha de comemoração transmuta‐se num ato público que revela a complexidade das relações intersocietais do referido grupo étnico.

A marcha foi uma estratégia que os índios Potiguara utilizaram para festejar e rememorar os enfrentamentos sofridos pelo grupo ao longo do processo histórico. Três aldeias utilizaram essa forma de manifestação para comemorar a declaração da terra. Uma aldeia a cada semana perfez um calendário de atividades do movimento indígena da Paraíba. A primeira marcha se deu na aldeia Monte Mor no dia 11 de Janeiro de 2008. A segunda ocorreu na aldeia Três Rios em 18 de Janeiro. Por último, a terceira marcha foi realizada na aldeia Jaraguá no dia 25 do referido mês.

Foram três semanas de atividades intensas, dias marcados pelo suor dos corpos, pelas danças e cânticos que pontuaram os festejos. Recorrentemente as vozes ecoavam fortes com nuances de quem desejava manifestar sentimentos íntimos

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 3: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

40 O trabalho de campo como caminho metodológico: testemunhos e interpretações de uma marcha

indígena potiguara.

vindos da alma. Durante a marcha, de pretensões festivas e de afirmação da luta, as memórias individuais se fizeram coletivas. Os momentos relembrados perfizeram e recriaram momentos históricos diferentes, como flashes que marcaram o grupo.

Partindo desse contexto objetivamos neste ensaio analisar a marcha indígena Potiguara a partir de seus significados simbólicos e políticos. A principal ferramenta utilizada foi o trabalho de campo para compreensão espacial da referida marcha. Utilizamos como referência autores como Serpa (2006), Rodrigues (2007) e Lacoste (1977) que trabalham diferentes concepções de trabalho de campo na ciência geográfica; além de Geertz (1989), Oliveira (2006) e Moura (1992) que discutem o trabalho de campo como um exercício fundamental ao processo de construção do conhecimento na Geografia e na Antropologia. Neste campo de conhecimento buscamos nos ancorar nos procedimentos etnográficos por exemplo os registros nos cadernos de campo, a produção de fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever aqui, fazer o registro etnográfico sem perder de vista que “toda a descrição etnográfica é, sempre, a descrição de quem escreve e não a de quem é descrito [...].”(GEERTZ,1989, p. 63). Além da caminhada outros campos que antecederam ou que foram realizados posteriormente fomentaram esta narrativa que se circunscreve no âmbito de esforços que colocam o Gestar em sua pauta de leitura e de eventos em diálogo com campos de saberes diversos tal como propõe Santos (2004; 2005), Nunes (2004) e Morin (2003), dentre outros pesquisadores.

Mesmo como uma territorialidade flexível e temporalmente curta, a marcha Potiguara revelou, como movimento, dinâmicas a partir das quais é possível observar a realidade de um outro. Segundo Oliveira (2006), esta realidade é observada por meio de três sentidos ou maneiras de compreensão dos fenômenos sociais: o olhar, o ouvir e o escrever. Para Chauí (1995, p.33) “olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”. Nesse contexto entendemos que o trabalho de campo se coloca para o geógrafo como uma ferramenta importante para a compreensão espacial.

A escolha de acompanharmos e buscarmos informações com o intuito de entender a trajetória do referido grupo étnico em diferentes situações, teve o propósito de “interpretar” as dinâmicas territoriais, que, por tomarem como principal demanda a terra e como argumento para o acesso a mesma a identidade étnica, serão denominadas aqui de territorialidades étnicas. As territorialidades étnicas podem ser entendidas como estratégias de reconhecimento social e político, bem como, de construção de alianças que caracterizam as dinâmicas internas e externas desenvolvidas pelos Potiguara em busca da regularização, permanência e reprodução social no território tradicional indígena.

No intuito de decifrar as territorialidades étnicas dos índios Potiguara, o uso da etnografia foi primordial nesse contexto. Partindo do princípio de que o etnógrafo

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 4: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

MARQUES, A. C. N.; RODRIGUES, M. F. F. 41

desenvolve suas argumentações e questionamentos a partir dos trabalhos de campo, Geertz (1989) afirma que a prática etnográfica não se resume apenas em estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, mapear e escrever diários, mas, uma descrição densa. A descrição densa requer uma sensibilidade e um olhar especial do pesquisador, no sentido de observar as diferentes situações enfrentadas pelos sujeitos pesquisados, ao mesmo tempo em que requer interpretações. Ainda para este autor para quem “o homem é dotado de uma cultura composta de teias de significados tecidas por ele próprio, daí que ele assume a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura do significado” (p.15).

Ao exemplificar escritos etnográficos, o referido autor diz que para toda situação existe um significado diferenciado. Neste caso, cabe entender que os estudos sobre cultura são dotados de “uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar” (GEERTZ, 1989, p.20).

Dessa forma, ao tentarmos interpretar o significado simbólico da marcha indígena, não buscamos caminhos prontos nem verdades inquestionáveis. Consideramos que toda pesquisa tem seus limites e permite que o pesquisador consiga adentrar ao universo pesquisado, descobrindo caminhos que lhes possibilitem “uma” compreensão da realidade. Neste sentido, o trabalho de campo é para o geógrafo uma etapa da construção do conhecimento, momento em que consegue unir os elementos teóricos, práticos, fazer recortes espaciais, analisar e conceituar o espaço‐tempo de acordo com os objetivos definidos. Assim, o campo é uma etapa fundamental da pesquisa.

Segundo Serpa (2006), o trabalho de campo em uma pesquisa geográfica deve considerar o espaço como totalidade. Este autor atenta para o perigo existente entre a separação da teoria e da metodologia adotada no trabalho de campo, tendo em vista que alguns trabalhos da geografia ainda apresentam esta compartimentação do conhecimento. Por vêzes são encontrados trabalhos constituídos de reflexões teóricas elaboradas, mas sem a fundamentação prática necessária à demonstração e validação dos conceitos. Outras vezes, ocorre o oposto, são identificados trabalhos com bons resultados advindos dos bancos de dados e técnicas, porém, sem a fundamentação teórica necessária para basilar a compreensão, a reflexão e a análise crítica do campo. Em síntese, o autor diz que a teoria e a prática são duas faces da mesma moeda.

A construção dos caminhos de pesquisa e a postura política e cidadã do pesquisador também são mencionados por autores como Lacoste (1977), Rodrigues (2007) e Moura (1992). Para esses autores, faz‐se importante mencionar as trajetórias da pesquisa, desde o planejamento no campo até a sinalização das dificuldades que envolveram essa trajetória. Neste sentido,

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 5: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

42 O trabalho de campo como caminho metodológico: testemunhos e interpretações de uma marcha

indígena potiguara.

buscamos mostrar as observações e indagações do campo a partir do diálogo que tivemos nesse evento com os índios Potiguara. Buscamos uma interface não só entre as ciências, mas também com os saberes e práticas dos indígenas, na tentativa de fugirmos das armadilhas que, no processo de construção do conhecimento, elevam os pesquisadores à condição de arautos do saber colocando‐os em oposição aos sujeitos pesquisados. Em nossa pesquisa, pesquisador e pesquisado dialogam na construção do conhecimento e na troca de saberes; com isso buscamos superar a “razão indolente”, como aponta Santos (2004) ao propor uma “ecologia de saberes”.

Da escuta à escrita: As territorialidades da marcha potiguara

Os marcos de origem das terras potiguara são extensos. Recuperá‐las em sua totalidade seria praticamente impossível. Não nos referimos as terras na situação de contato, mas sim àquelas que foram doadas pelo Imperador D. Pedro II, cujas balizas são as sesmarias de São Miguel e de Monte Mor. Já do ponto de vista de referenciais político‐administrativos atuais, pode‐se dizer que estas terras estão situadas entre os municípios de Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação, no estado da Paraíba. Esses municípios encontram‐se inseridos na microrregião do litoral norte e, por conseguinte, na mesorregião geográfica da mata paraibana. Do ponto de vista territorial e jurídico‐político, as terras tradicionais dos índios potiguara estão subdivididas em três terras indígenas (TI´s), que são: TI Potiguara, com

21.238 ha (demarcada e homologada1); TI Jacaré de São Domingos, com 5.032 ha (em processo de homologação); e TI Monte Mor, abrangendo 7.100 ha (identificada). A Aldeia Três Rios, está localizada no município de Marcação‐PB e inserida na TI Monte Mor, que compreende mais quatro aldeias, sendo elas: Jaraguá, Nova Brasília, Silva do Belém e Vila de Monte Mor, as quais podem ser visualizadas na ilustração a seguir:

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 6: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

MARQUES, A. C. N.; RODRIGUES, M. F. F. 43

Ilustração 01 – Localização da aldeia Três Rios Fonte: Base Cartográfica: IBGE. Organização: Amanda Marques e Alecsandra Moreira.

A idéia de trabalharmos o significado simbólico da marcha indígena para os potiguara surgiu com a nossa inserção no grupo de pesquisa. Através das atividades realizadas enquanto pesquisadores, tivemos a oportunidade de presenciar vários outros momentos de reivindição, protestos e até outras marchas. No entanto, escolhemos escrever sobre a marcha específica de 18 de Janeiro de 2008, por se tratar de um momento muito especial para o grupo. Aquele evento sintetizou toda uma trajetória de luta, na comemoração do reconhecimento do território indígena de Monte‐Mor, o qual durante anos

representou um campo de forças2 entre indígenas e usineiros.

A inserção de usineiros na disputa jurídica pelas terras potiguara, sobretudo em Monte‐Mor, deu‐se durante as décadas de 1970 e início de 1980, momento histórico em que a primeira fase do Pró‐álcool se intensificou no Estado da Paraíba. Nesse período, foram instaladas várias destilarias no litoral brasileiro motivadas pelo aumento do preço do petróleo em nível mundial e pela queda do preço do açúcar no mercado. Nesse contexto de avanço da cana, os potiguara passaram por mais fases de conflitos. De um lado lutando pela demarcação dos seus territórios tradicionais e, de outro, sendo expulsos de suas terras e incorporados de forma precária e temporária ao trabalho no corte da cana‐de‐açúcar (MARQUES, 2008 p. 12).

Fomos convidados pelo cacique da aldeia Três Rios e algumas lideranças que estavam organizando a marcha de comemoração da conquista do referido território. Desde a saída para o campo já observávamos que o caminho que interliga a cidade de João Pessoa à aldeia apresenta diferenças e similitudes. O início da viagem se deu por áreas urbanizadas, como o município de Bayeux, que

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 7: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

44 O trabalho de campo como caminho metodológico: testemunhos e interpretações de uma marcha

indígena potiguara.

compõe o complexo de cidades que conformam a grande João Pessoa, juntamente como os municípios de Santa Rita, Cabedelo e Conde. Seguindo pela PB‐101, que margeia as várzeas do baixo Paraíba, foi possível observar o descaso da sociedade paraibana com esse manancial. O estágio de assoreamento e poluição em que esse rio se encontra, revela o grau de degradação a que o mesmo está exposto.

De Santa Rita à Marcação, percebemos a predominância da monocultura da cana‐ de‐açúcar. Na pista, foi possível observar a atividade dos caminhões carregados com este produto agrícola que desde o Brasil colonial cria e recria paisagens de opulência e miséria, marca disputas territoriais intensas e mobiliza recursos financeiros extraordinários por meio das bolsas de mercadorias e das commoditties. É visível a incorporação da técnica a esse território como tão bem interpreta Santos (2002) ao referir‐se à mobilidade do capital financeiro e as mudanças ocorridas no território a partir do período técnico científico informacional.

Com pequenas áreas de floresta nativa, a rodovia que leva a Marcação é um interessante percurso para se refletir e observar as causas e conseqüências do uso indiscriminado da monocultura da cana‐de‐açúcar numa região tão propícia a culturas diversificadas, de clima, relevo, vegetação e solos favoráveis, além da riqueza hídrica que abunda por meio dos rios Paraíba, Mamanguape e seus afluentes.

Chegamos a Rio Tinto por volta das 09h30min. Percebemos que aproximadamente 100 indígenas já se faziam presentes no local e dirigiam‐se à aldeia Três Rios. O percurso proposto do fim do perímetro urbano da cidade de Rio Tinto até a aldeia Três Rios perfaz um trajeto de 7 km.

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 8: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

MARQUES, A. C. N.; RODRIGUES, M. F. F. 45

Figura 1: Marcha Potiguara. Janeiro de 2008. Fonte: Amanda Marques

Durante o percurso, observamos o verde da cana‐de‐açúcar nas duas extremidades da rodovia, cultura que, segundo uma liderança Potiguara, “para uns significa vida e para outros, sangue”. A cana como vida é anunciada pelos usineiros que detém, por arrendamento ou saque, grande parte das terras dos Potiguara. Os índios Potiguara da aldeia Três Rios vêem a cana como sangue pois dizem que foi por causa da expansão dessa monocultura em seus territórios que seu povo foi expropriado, morto e intimidado a não se reconhecer como grupo social etnicamente diferenciado. Segundo uma liderança Potiguara, durante muitos anos seu pai e seus familiares trabalharam no corte da cana por não terem alternativa de sobrevivência.

Lembro como se fosse hoje, eu já fui muitas vezes mais meu pai pra trabalhar de graça pra usina. E se meu pai não fosse: Ave Maria! Olhe, muitas vezes ele tava doente e agente quem tinha que ir, eu mesmo já fui muitas vez (Entrevista concedida).

Além da palavra de ordem, menções e questionamentos, como “será que a usina vem intimidar agente agora? Nós vamos agora retomar essa área aqui!”, foram feitas durante a marcha, contemplada com uma chuva de Janeiro que, à medida que “engrossava”, intensificava os passos dos indígenas. O movimento dos pés era executado a partir das combinações harmoniosas do cântico proferido e dos

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 9: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

46 O trabalho de campo como caminho metodológico: testemunhos e interpretações de uma marcha

indígena potiguara.

maracás movimentados para cima e para baixo pelos indígenas. Estes instrumentos à medida que subiam quase silenciosos, desciam ecoando um som grave e intenso.

Na estrada havia muitos buracos que dificultavam a caminhada, como chovia muito, vez por outra caíamos numa possa de lama. Durante as quedas, tínhamos a impressão que aqueles buracos teriam se formado a partir do impacto de meteoritos de diferentes diâmetros na superfície do asfalto. Eram tantos buracos que perdemos a conta das vêzes que o grupo caiu dentro deles. A chuva só amenizou quando chegamos à entrada do município de Marcação, ao final da manhã, ocasião em que percorremos a sede municipal seguindo em direção à aldeia Três Rios.

Na marcha, a distribuição espacial dos participantes revelou as hierarquias e papéis exercidos pelos Potiguara. As lideranças se localizavam na frente, formando o pelotão de direção e portando a placa de identificação de área indígena confeccionada pela FUNAI. Ao mesmo tempo estas lideranças se somavam ao restante dos Potiguara. À retaguarda estavam os demais participantes, estudantes, pesquisadores, religiosos e autoridades que acompanharam a marcha.

Em toda a marcha chamavam atenção as indumentárias, os adereços usados e as pinturas corporais coloridas que marcavam os corpos em movimento, depositários de obras de arte e expressão de uma identidade etnicamente diferenciada. As pinturas expressas a partir do pó de carvão e do Jenipapo conferem aos desenhos respectivamente coloração escura. A tinta é depositada em garrafas de plástico e utilizada na realização da pintura corporal com pincéis de diferentes diâmetros. Os Potiguara se pintam nos dias que antecedem ocasiões especiais como festas, protestos e viagens; a cor do jenipapo aparece de forma incipiente no primeiro dia da pintura, só no segundo dia é que a tinta escurece, permanecendo visível durante muitos dias. Como dizem os Potiguara: “só amanhã é que a tinta pega”.

Agente se pinta porque é um tipo de documento pra gente, porque o índio ele se pinta pra festividade, pra também enfrentar a luta, né? A pintura de cada etnia é uma, tá entendendo? Pra os Xucuru é uma, pra todas as etnia tem um significado, né? Agente se pinta porque é nossa cultura, né? Pra demonstrar a luta pela terra, uma comemoração que nem a declaração da terra, o reconhecimento da terra. A pintura também significa o momento de união, ocasião como o dia do índio. O significado da tinta preta, luto, o vermelho significa sangue e o branco, paz né? Nós não usa o branco porque até hoje nós não temos paz, e no dia que tiver paz mesmo na nossa comunidade, quando as terra for demarcada, agente usa ela. (Depoimento concedido).

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 10: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

MARQUES, A. C. N.; RODRIGUES, M. F. F. 47

Os corpos dos Potiguara ao serem pintados com desenhos geométricos espalhados pelo tórax, costas e braços, revelam uma linguagem que traduz e representa uma diversidade de significados para eles; revelando dor e silêncio, poder e resistência. Durante os momentos da caminhada, algumas dessas representações ficaram em nossa memória como símbolos imagéticos.

Desenhos que foram pintados nos corpos dos Potiguara por ocasião da marcha

De olhares firmes e dirigidos para diante, com passos firmes e manifestando palavras de contentamento, a postura dos indígenas, por alguns momentos, nos indicavam satisfação por terem vencido uma luta e, por outros, revelavam a certeza de que a luta continua e que a reconquista da terra ancestral é, além de demorada, dolorosa.

Figura 2: Marcha Potiguara. Janeiro de 2008. Fonte: Amanda Marques

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 11: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

48 O trabalho de campo como caminho metodológico: testemunhos e interpretações de uma marcha

indígena potiguara.

As manifestações de contentamento revelavam no decorrer da marcha dos Potiguara conquistas que extrapolavam a esfera das relações com os parentes. Naquele momento, estavam em marcha não só indígenas alegres por terem ganhado mais uma luta; ocorria naquela manifestação um fato singular do movimento indígena da Paraíba: a inserção desse grupo e as reivindicações atendidas que revelavam novas relações nas esferas de poder. A disputa, inicialmente tão difícil de ser alcançada, se traduzia em ganhos e apoios por parte dos órgãos que atuam diretamente com esse grupo. Portanto, percebemos que naquele espaço‐tempo‐movimento estava em construção um tempo‐espaço‐novo visível, agora mais do que nunca, nas mudanças ocorridas e na correlação de poder no seio dos próprios Potiguara que saíram revigorados dessa disputa. Externamente, os Potiguara conquistaram um reconhecimento fundamental à sua

causa junto às instâncias de poder3.

Durante momentos de conversas com o grupo, indagamos o porquê da marcha, o que significou aquele momento para os Potiguara. No mesmo instante veio a resposta com palavras que comportam sabedoria e conhecimento de causa: “Agente unido, agente vence aquilo que agente quer!”. Na medida em que o fator de união aparecia como uma característica da territorialidade étnica Potiguara, outros elementos como articulações externas, disputas e conflitos internos eram colocados como parte de uma construção lenta e delicada para o grupo indígena, como se pode observar no depoimento concedido abaixo, que relata com grande valor o momento da marcha.

Olha, pra gente é uma vitória que agente conseguiu, porque o pessoal falava que agente nunca ia alcançar, né? E agente temos que amostrar ao povo que negava nossos direito, como os próprios parente nosso que não acreditava e não acreditava nem neles. Porque agente acreditava no nosso trabalho e como o povo tava do lado da gente, a universidade, os índio, procuradoria. Então é aquele povo que tava dando força pra gente. E enquanto os nosso parente, alguns não queria dar força pra nós, porque eles tendo não queria que agente tivesse. Porque nós somo um povo só. Como Potiguara, somo um povo só. Só que agente lutemo e chegou a vez da gente ir a Brasília, tá entendeno? Junto com o povo, com os parente que dava força pra nós Caboquinho, Capitão e mais outros povo que não vem na lembrança agora. E aí agente foi lutano, lutano, o pessoal foi vendo a nossa luta e aquele povo que não tava querendo que agente assumisse a nossa identidade foi se juntando agente também, mostrando que foi da força da gente e que agente era aquilo que nós tava correndo atrás, tá entendeno? E daí chegou na mão da justiça o reconhecimento que a terra é nossa, então o seguinte é esse, deu aquele documento mostrando que a terra é nossa e que daí agente tem que comemorar pra mostrar pra o povo que agente unido agente vence aquilo que agente quer.

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 12: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

MARQUES, A. C. N.; RODRIGUES, M. F. F. 49

Agente só não vence quando agente é desunido. Quando agente é uma família que é unido, tudo que agente pensar em fazer, em querer e ter, agente alcança. E foi isso que agente fez, agente mostrou pro povo” (Entrevista concedida).

Ao sairmos da sede municipal de Marcação, seguimos em direção à aldeia Três Rios, onde vários moradores da cidade, indígenas de aldeias vizinhas e de Três Rios esperavam ansiosos. Como de costume, após uma reivindicação, em momentos de alegrias, festividades ou conflitos, os Potiguara expressavam sua alegria ou reafirmam sua identidade dançando o toré.

Da letra à musicalidade da expressão corporal aos ritmos e marcação dos passos, o Toré representa um divisor de fronteiras étnicas, seja quando ele é utilizado como brincadeira/comemoração, seja quando utilizado por reivindicação material (terra, recursos) ou ainda, quando recorrem aos símbolos mais significativos de sua identidade etnicamente diferenciada. De caráter eminentemente político e cultural quando na luta pela terra, os indígenas têm no Toré a representação da diferença e o instrumento de comprovação de uma identidade que não se reduz a uma única etnia, mas a um povo que reivindica um bem comum: a terra.

Figura 3: Oca localizada na Aldeia Três Rios. Janeiro de 2008. Fonte: Amanda Marques

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 13: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

50 O trabalho de campo como caminho metodológico: testemunhos e interpretações de uma marcha

indígena potiguara.

Figura 4. Marcha. Janeiro de 2008. Fonte: Amanda Marques

Figura 5. Oração que antecede o Toré. Jan. 2008. Fonte: Amanda Marques

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 14: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

MARQUES, A. C. N.; RODRIGUES, M. F. F. 51

No primeiro momento do Toré, todos se dirigiram para a oca que é utilizada pelos Potiguara de Três Rios para diferentes fins, seja para uma reunião com a comunidade, seja para um festejo. As palavras dos indígenas, durante os momentos que antecediam o Toré, são ricas em significados:

Ao nosso Deus Tupã, nosso Deus Guerreiro. A nossa mãe Guadalupe. A nossa vitória. Aquelas pessoas de coração bom que nos ajudaram.

Essa fala, dentre outras que foram proferidas naquele momento, nos levaram a uma reflexão sobre o significado daquele momento para os indígenas e a compreensão desse ritual para a reafirmação de sua identidade e ancestralidade. Mais que um mero festejo, o conjunto de práticas que reuniu todas as gerações de Potiguara num só “pulsar” reflete a construção de novos tempos. Esses novos tempos que se avizinham e se constroem, embora estejam inseridos numa escala local, dialogam com um campo de forças que se constrói num plano traduzido na busca de reafirmação das diferenças, tal como propugna a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que propõe a convivência e o respeito às diferenças como um princípio fundamental à coexistência social e cultural.

Considerações finais

Ao analisarmos a marcha, consideramos ser a mesma uma dimensão da territorialidade étnica dos índios Potiguara, pois a forma como são colocados os elementos culturais desse grupo no espaço exterior à fronteira étnica, é apresentada como extensão de um universo singular e cultural dos indígenas como, por exemplo, as indumentárias, os adereços, a pintura dos corpos, as palavras de ordem e os cânticos proferidos.

Embora temporalmente curta, a marcha de comemoração pelo reconhecimento da terra indígena da aldeia Três Rios comporta significados que transcendem a dimensão visual de um observador desapercebido. O caminhar de pessoas que se movimentam de uma localidade para outra revela detalhes de uma “lente de menor alcance”. A observação atenta permite a visualização de cenas, detalhes e informações que somente o olhar atento é capaz de desvendar. Segundo Chauí (1988), é o olhar que ultrapassa os outros sentidos transformando‐se em janelas da alma e espelhos do mundo.

O nosso olhar investigativo busca realizar‐se num movimento que pretende contribuir para a “emancipação” do conhecimento. Esta tentativa traduz‐se num esforço que estende‐se desde a própria forma de escrever até a forma de interlocuções realizadas a partir dos diálogos, fotografias e vivências com o grupo. As fontes compiladas no campo foram utilizadas neste texto para proporcionar uma maior visualização da marcha, além de proporcionar leituras diversas. Já os

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 15: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

52 O trabalho de campo como caminho metodológico: testemunhos e interpretações de uma marcha

indígena potiguara.

depoimentos citados revelam a busca da troca de saberes e da construção coletiva do conhecimento. As vozes que emanam desta narrativa são coletivas e não imperialistas; os “saberes” que nós propomos trabalhar fazem eco em vozes diversas e buscam fundamento em Santos (2004; 2005). Esses mesmos fundamentos são praticados quando dimensionamos o conhecimento como um artefato que se constrói no confronto com o saber indígena, que sente e vive o cotidiano da aldeia e se revela numa teia de significados, tal como nos indica Geertz (1989).

Diante dessa forma de territorialidade, os indígenas retomam velhos fundamentos de modo a criar e recriar no imaginário social uma característica historicamente marcante dos grupos etnicamente diferenciados: o principio da união, solidariedade, comunidade e totalidade, ou seja, a proposição de uma luta que contém partes que formam um todo, uma homogeneidade na heterogeneidade. Além disso, a marcha em seu ímpeto é uma representação simbólica direcionada para o outro, ou seja, para o não índio. A reafirmação dessa identidade dos Potiguara se faz resistente, ressignificada e diacrítica.

Notas ________________________

1 Os processos demarcatórios pelos quais passam as TI’s compreendem diretrizes que

regulamentam a posição jurídico‐administrativa dos territórios indígenas, segundo o decreto de nº 1.775 de 08 de janeiro de 1996. Esses procedimentos são subdivididos em fases, sendo elas: identificação e delimitação, declaração, demarcação, homologação, registro e extrusão de não‐ índios.

2 Para Raffestin (1993) o território se constrói a partir de um campo de forças que são as relações de poder espacialmente delimitadas em um substrato referencial.

3 No entanto, é importante considerar que a conquista do território indígena Potiguara se deu de forma lenta, remetendo, inclusive, ao período colonial. Para uma revisão ver Marques e Rodrigues (2007) e, mais especificamente, consultar Liedke (2007), Palitot (2005), Barbosa Junior (2002), Peres (2002), Moonem (1992) e Amorim (1970), autores que pesquisam os Potiguara.

Referências

AMORIM, M. P. Índios Camponeses: os Potiguara de Baía da Traição. (Mestrado em Antropologia Social ). Rio de Janeiro, Museu Nacional/ UFRJ, 1970.

BARBOSA JUNIOR, F. de S. Os Caboclos de Monte – Mor: identidade e resistência Potiguara. (Monografia de Especialização em Direitos Humanos); CCJ/UFPB, 2002.

BRASIL. Portaria Declaratória de posse permanente dos índios Potiguara de Monte Mor. Ministério da Justiça. Diário Oficial da União, 17 de dezembro de 2007.

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 16: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

MARQUES, A. C. N.; RODRIGUES, M. F. F. 53

CHAUÍ, M. Janela da Alma, Espelho do Mundo. In: NOVAES, Adauto. (Org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P.31‐63.

GEERTZ, C. As Interpretações da Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.

GEERTZ, C. Diálogo. São Paulo, v. 22, n. 3, 1989.

HOBSBAWM, E. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, E. & RANGER, T. (Orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

LACOSTE, Y. A Pesquisa e o trabalho de Campo: um problema político para pesquisadores, estudantes e cidadãos. Seleção de textos – AGB. Teoria e Método, n.11, 1977.

LIEDKE, A. R. Territorialidade e Identidade Potiguara: a atuação do ministério público federal em contextos de lutas pelo reconhecimento dos direitos indígenas no vale do rio Mamanguape, Litoral Norte, PB. (Dissertação de Mestrado em Sociologia); CCHLA/UFPB, 2007.

MARQUES, A. C. N. Imagens do Território Potiguara: Conflitos e Resistência na Aldeia Três Rios, Marcação – PB. 2006. 120f. Monografia (Graduação em Geografia). UFPB/DGEOC. João Pessoa.

MARQUES, A. C. N; RODRIGUES, M. F.F. A Territorialidade Étnica dos Potiguara. ANAIS da ANPEGE, Niterói, 2007.

MARQUES, A.C.N. “Os Caboclo Não Quer Briga”: As Territorialidades da Luta Pela Terra dos Potiguara de Monte‐Mor. Artigo apresentado na disciplina Movimentos Sociais e Educação no Campo, PPGG/UFPB (MIMEO), 2008.

MORIN, E. A cabeça bem‐feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

MOONEN, F. & MAIA, L.M. Etnohistória dos Índios Potiguara: ensaios, relatórios e documentos. João Pessoa: PR/PB‐SEC/PB, 1992.

MOURA, M. M. Testemunho de um Trabalho de Campo: matéria‐prima do texto. In‐folio. Boletim Informativo do Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP, n. 06. Set. de 1992.

NUNES, J. A. Um discurso sobre as ciências 16 anos depois. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento Prudente para uma vida decente: “um discurso sobre as ciências” revisitado. São Paulo: Cortez, 2004.

OLIVEIRA, R. C de. O Trabalho do Antropólogo. São Paulo: Ed. UNESP, 2006.

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 17: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever

54 O trabalho de campo como caminho metodológico: testemunhos e interpretações de uma marcha

indígena potiguara.

PALITOT, E. M. Os Potiguara da Baia da Traição e Monte Mor: História, Etnicidade e Cultura. (Dissertação de Mestrado em Sociologia), João Pessoa/ UFPB, 2005.

PERES, S. C. A Identificação da T.I. Potiguara de Monte‐Mor e as Conseqüências (Im) previstas do Decreto 1775/96. Boletim GERI. Brasília, 2002. Disponível em: http://www.unb.br/ics/dan/geri/boletim06‐port.htm . Acessado em: 22 de novembro de 2005.

RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do poder. São Paulo: Ed. Ática, 1993. (Série Temas).

RODRIGUES, M. de F. F. Tem Truká na Aldeia: Narrativa de um Trabalho de Campo na Ilha de Assunção, Cabrobó‐Pe. Revista OKARA: Geografia em Debate. V.1, n.1, 2007 p.101 – 117.

SANLOS, B. de S. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

SANTOS, B. de S. Para uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das Emergências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento Prudente para uma vida decente: “um discurso sobre as ciências” revisitado. São Paulo: Cortez, 2004.

SERPA, Â. O trabalho de Campo em Geografia: Uma Abordagem Teórico‐ Metodológica. In: Boletim Paulista de Geografia. São Paulo, Jul.2006. nº84.

SOUZA, M. L. de. O território sobre o espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, I. E. de; GOMES, P. C. da C.; CORRÊA, R. L. (Org.). Geografia Conceitos e Temas; Rio de Janeiro: Bertrand, 6ª ed. 2003.

Contato com os autores: [email protected] / [email protected]

Recebido em: 13/11/2008 Aprovado em: 17/11/2008

OKARA: Geografia em debate, v.2, n.1, p. 38-54, 2008

Page 18: O TRABALHO DE CAMPO COMO CAMINHO METODOLÓGICO: … · fontes iconográficas e, de modo especial, a observação atenta em campo que permitiu, no trânsito entre o Estar lá, escrever