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Transgressões iconográficas: a temática místico-religiosa na obra de Inah Costa Rebecca Corrêa e Silva 1 Joana Maria Pedro 2 RESUMO A trajetória artística de Inah D’Ávila Costa (1915-1998) se confunde com o próprio desenvolvimento da pintura na cidade de Pelotas-RS. Este trabalho busca apresentar como se deu a exploração da temática místico-religiosa em sua obra. Pretendemos comparar as tradicionais Madonas executadas no início da década de 1950, período em que foi aluna da primeira turma da Escola de Belas Artes de Pelotas (1949-1953) com a simbologia africana desenvolvida em consequência de sua incursão no campo modernista já no final daquela mesma década. Buscamos observar como a artista representou temática e estilisticamente o místico/religioso por meio da pintura. Para isso, enfocamos sua relação com o seguimento de normas rígidas para com a arte ocidental cristã e a produção de uma linguagem mais liberta dos padrões acadêmicos, quando inspirada nos rituais das culturas de matriz africana. Inah Costa é uma artista reconhecidamente importante para a renovação do sistema das artes plásticas em Pelotas, mas ainda não recebeu um estudo que contemple o seu legado enquanto primeira mulher pintora profissional que a cidade conheceu. Palavras-chave: Pintura Religiosidade Gênero 1. Introdução O presente texto apresenta um recorte da pesquisa de doutorado na linha de estudos de gênero, que tem como objeto a vida e a obra da artista pelotense Inah Costa D’Ávila (1915 3 -1998). Como um desdobramento da questão de tese, neste momento pontual, acrescentamos-lhe um tema exterior, destacando a iconografia 1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas - Universidade Federal de Florianópolis (UFSC); bolsista da CAPES. [email protected] 2 Professora do Departamento de História, do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC. [email protected]; [email protected] 3 Este dado ainda está sendo verificado uma vez que existem duas certidões de nascimento no registro em nome de Inah Costa, que os familiares podem ter feito este registro tardiamente ou talvez ela mesma tenha feito novamente um registro para corrigir data de nascimento.

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Transgressões iconográficas: a temática místico-religiosa na obra de Inah

Costa

Rebecca Corrêa e Silva1

Joana Maria Pedro2

RESUMO

A trajetória artística de Inah D’Ávila Costa (1915-1998) se confunde com o próprio

desenvolvimento da pintura na cidade de Pelotas-RS. Este trabalho busca

apresentar como se deu a exploração da temática místico-religiosa em sua obra.

Pretendemos comparar as tradicionais Madonas executadas no início da década de

1950, período em que foi aluna da primeira turma da Escola de Belas Artes de

Pelotas (1949-1953) com a simbologia africana desenvolvida em consequência de

sua incursão no campo modernista já no final daquela mesma década. Buscamos

observar como a artista representou temática e estilisticamente o místico/religioso

por meio da pintura. Para isso, enfocamos sua relação com o seguimento de normas

rígidas para com a arte ocidental cristã e a produção de uma linguagem mais liberta

dos padrões acadêmicos, quando inspirada nos rituais das culturas de matriz

africana. Inah Costa é uma artista reconhecidamente importante para a renovação

do sistema das artes plásticas em Pelotas, mas ainda não recebeu um estudo que

contemple o seu legado enquanto primeira mulher pintora profissional que a cidade

conheceu.

Palavras-chave: Pintura – Religiosidade – Gênero

1. Introdução

O presente texto apresenta um recorte da pesquisa de doutorado na linha de

estudos de gênero, que tem como objeto a vida e a obra da artista pelotense Inah

Costa D’Ávila (19153-1998). Como um desdobramento da questão de tese, neste

momento pontual, acrescentamos-lhe um tema exterior, destacando a iconografia 1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas - Universidade Federal de Florianópolis (UFSC); bolsista da CAPES. [email protected] 2 Professora do Departamento de História, do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC. [email protected]; [email protected] 3Este dado ainda está sendo verificado uma vez que existem duas certidões de nascimento no registro em nome de Inah Costa, que os familiares podem ter feito este registro tardiamente ou talvez ela mesma tenha feito novamente um registro para corrigir data de nascimento.

místico-religiosa ao enfocar a análise comparativa de dois períodos de sua trajetória

artística.

Assim, este estudo pretende observar o repertório imagético da

representação da figura “feminina” na temática místico-religiosa, bastante difundida

pela pintura acadêmica, que mais tarde foi retomada e revista pelas vanguardas da

arte europeia do século XX. Para disso, analisaremos duas obras da produção de

Inah Costa: “Virgem sobre as Nuvens” (1952) e “Máscaras” (1988), distintas em

temporalidade, tema e estilo. A primeira situa-se na década de 1950, bem ao gosto

da pintura neoclássica4 e tradicional, ensinada nas academias de arte; enquanto que

a segunda foi realizada a partir de uma linguagem moderna5.

O termo transgressão, em seu sentido de liberdade de escolha individual na

subversão de normas e convenções sociais, nos ajuda a pensar a trajetória da

artista. Inah transgrediu as expectativas sociais para os papéis das mulheres

naquele tempo; transgrediu o lugar das mulheres no campo da arte, atrevendo-se a

ser sujeita de si em busca de sua força criadora; e transgrediu finalmente sua

própria constância técnica e temática ao produzir a série “Máscaras” no auge de sua

carreira enquanto pintora abstrata.

Aliada a perspectiva de gênero, o caráter transgressivo aqui adquire um duplo

sentido: 1) da liberdade pessoal em opor-se aos padrões comportamentais a

respeito dos papéis femininos - de esposa, mãe e dona-de-casa – com os quais Inah

rompeu quando se torna uma artista profissional; 2) e de liberdade e autonomia

criativa, atributos estes que afirmaram a individualidade de Inah frente às exigências

da arte tradicional ou moderna, ou na afiliação a este ou aquele grupo.

4 O chamado estilo Neoclássico ou Acadêmico nas artes plásticas diz respeito ao segundo movimento de retorno ao Clássico (estética greco-romana) depois do Renascimento. A chamada escola neoclássica teve início na França do século XVII e teve como principal divulgador o pintor Jacques-Louis David. Caracteriza-se pelo virtuosismo técnico epela predileção à racionalidade da linha ao invés da emotividade da cor (diferente do Barroco, seu posterior). Esta estética privilegia a representação mimética e ao mesmo tempo idealista da realidade, com destaque para os “grandes” temas, retomando com força os retratos e inaugurando o gênero da pintura histórica. 5 A linguagem moderna das artes visuais surgiu no final do século XIX e ganhou força a partir das vanguardas artísticas do início do século XX na Europa. Esta série de movimentos de ruptura com os padrões tradicionais como o Impresssionismo, o Fauvismo, o Expressionismo, o Cubismo, o Futurismo, dentre outros ismos buscavam discutir as questões intrínsecas à pintura, despreocupando-se dos temas para produzir inovações técnicas e formais.

O elemento transgressivo na obra de Inah causou impacto e a recepção do

público foi muito polarizada, ficando, dividida entre diferentes visões de mundo e

consequentemente, de opinião sobre sua produção. Esta última pode ser vista em

parte através das críticas noticiadas na imprensa local sobre as duas analisadas

neste estudo.

A expressão temática místico-religiosa foi utilizada visando integrar a

pluralidade de manifestações religiosas cristãs ou pagãs. Sabemos que a Nsra. é

representada consoante uma tradição iconográfica católica, mas a origem místico-

religiosa por trás da máscara executada permanece nebulosa. Aliás, não sabemos

ao menos se Inah utilizou-se de algum modelo ou se extraiu as formas de sua

imaginação.

Para embasarmos as análises individuais e comparativas das obras arte

figurativas acima mencionadas, partimos em certa medida, do método de Ervin

Panofsky6 (1979) da leitura de imagens, atentando aqui para as particularidades dos

estilos pictóricos. No âmbito específico das fontes empíricas, utilizaremos

especialmente as críticas de arte publicadas no jornal pelotense Diário Popular (DP),

em circulação diária desde 1938.

2. Primeiros passos na arte acadêmica – a tradição numa linguagem

própria

Na década de 1930, já formada pelo Conservatório de Música de Pelotas,

Inah Costa decide trocar o piano pelo pincel e pouco a pouco adentra o universo

das artes plásticas. Na década de 1930 frequentou o curso de desenho e pintura

ministrado por Adail Bento Costa na mesma instituição em que a tornou pianista

(DINIZ, 1996, p.39), além deste também teve aulas com o consagrado pintor

pelotense Leopoldo Gotuzzo.

6 Com o propósito de apresentar uma análise menos fragmentada, buscamos desde o início apontar os motivos artísticos já ancorados aos seus significados. Assim, optamos por realizar a leitura das imagens aglutinando os dois primeiros níveis de análise (Tema primário ou natural e Tema secundário ou convencional) em um, e mantendo o terceiro nível de análise do Significado intrínseco ou de conteúdo, ao invés de seguirmos rigorosamente as três camadas de desvelamento da obra de arte proposta por Ervin Panofsky (1979).

Em 1949 ingressou na primeira turma da EBA – Escolas de Belas-Artes, onde

ao lado de outras colegas atuou ativamente na concretização de um ensino oficial

para as artes na cidade de Pelotas (FRANCO, 2008). Foi esta instituição, que nos

anos 1970 viria a federalizar-se (MAGALHÃES, 2012), e onde Inah notabilizou-se

enquanto laureada aluna7.

De acordo com os padrões do ensino da arte acadêmica, seu aprendizado na

EBA foi voltado para o conhecimento das convenções tradicionais ocidentais sobre o

desenho e a pintura, como: equilíbrio, estrutura, perspectiva e a importância dada à

figura humana.

O italiano Aldo Locatelli, exímio desenhista e colorista havia sido convidado

para ser professor na EBA durante a fase na qual Inah foi aluna, influenciando

enormemente não só sua formação acadêmica, mas elevando a outro patamar o

ensino da arte na cidade. Quando Inah revela o que absorveu de cada mestre,

destaca que com Locatelli aprendeu sobre “a transparência da cor.” (SILVA;

LORETO, 1996, p.90).

Prova eminente do aprendizado das cores de Inah durante o período da EBA

é o seu retrato de “Interior da Catedral”. Dentro da estética neoclássica, a obra

pretende apresentar uma parte do conjunto de pinturas aquela altura recém

executadas por Locatelli, obtendo este resultado:

7 ABOTT, Nelson. A fase acadêmica de Inah Costa. Diário Popular. Pelotas, 18 jul.1982a, s/p.

Figura 1 - “Interior da Catedral” (1949-1952)

Fonte - Acervo pessoal de Deborah Costa

Vimos que a temática religiosa com iconografia católica desde os primeiros

anos de Escola de Belas Artes de Pelotas fizeram parte do repertório visual de

Inah. De outro lado, a representação da figura feminina, recorrente na rotina de

estudos acadêmicos através de retratos e nus, também esteve muito presente

em todos os anos de EBA. Portanto, aliar os conhecimentos dos dois motivos:

religioso e feminino era algo a ser esperado. Assim, em 1952, como resultado do

aprendizado dos primeiros anos da Escola de Belas-Artes, Inah pinta “Virgem

sobre as nuvens”.

Figura 2- “Virgem sobre as nuvens” (1952)

Fonte - Acervo pessoal de Rosa Abott

Conforme os modelos de descrição pré-iconográfica e iconográfica

(PANOFSKY, 1979), vemos a imagem de uma figura feminina em posição vertical,

centralizada sobre um fundo constituído por manchas que formam zonas

concêntricas de cor.Trata-se de uma mulher de semblante sereno, olhos expressivos

e cabelos volumosos que caem sobre os ombros.

A pele morena combina com o conjunto harmonioso dos cabelos e olhos

escuros. O rosto voltado para cima acompanha a direção do olhar da figura, que tem

as mãos unidas posicionadas entre a face e o peito. O manto azul faz referência ao

azul celestial, ele reflete seus tons na túnica branca, que por sua vez tem traços

prateados como reflexo da lua.

Existe uma predominância do monocromático, onde dois grupos de cores e

tons parecem dividir a tela. Tonalidades amarelas preenchem o segundo plano

anteposto a o outro grupo de tons, com ampla variação de azuis e de brancos

coloridos. O fundo é composto por arcos de nuvens que demarcam suavemente as

formas. As tonalidades amarelas e alaranjadas esfumaçadas iluminam a figura

feminina desde cima, coo uma aura dourada. A paisagem enevoada do encontro

entre o céu e as pedras sugere junto ao conjunto uma atmosfera transcendental.

Segundo o crítico de arte pelotense Nelson Abott8, as pinceladas que formam

o céu são visíveis quando vistas de perto. Existe já aí a marca do gestual, do fazer,

próprio das correntes modernistas, que Abott declara terem nascido “da valentia de

expressivas pinceladas.”9

Ele irá reforçar este argumento mais tarde no texto do catálogo da exposição

individual de Inah na Galeria de Arte Sibisa: “Inah Costa – uma pioneira da arte

moderna pelotense”10 ao dizer que em sua trajetória a artista “pintou muitas

madonas que se alçam elegantes sobre nuvens leves, feitas de pinceladas soltas e

enérgicas. (grifo nosso)”. O contraste dos dois planos acontece no encontro entre os

diferentes conjuntos de cores versus a riqueza de detalhes na técnica dos

panejamentos nas dobras dos tecidos. Os jogos de luz e sombra – especialidade do

mestre Locatelli (SILVA; LORETO, 1995, p.90) - conferidos à figura em

contraposição à fluidez do espaço ao seu redor permeiam toda a composição.

8Natural da cidade de Pedro Osório(RS) Nelson Abott de Freitas foi professor de língua portuguesa e dentre as inúmeras atividades desenvolvidas no meio artístico-cultural pelotense, exerceu a crítica de arte do jornal Diário Popular entre 1978 e 1990 (SILVA, 2004, p.17). 9 ABOTT, Nelson. Um quadro Espelha uma época. Diário Popular. Pelotas, 01 ago,1982b. s/p. 10 ABOTT, Nelson Uma Pioneira da Arte Moderna Pelotense, texto do convite da exposição Sibisa expõe, 1986.

Neste caso, uma figura feminina no meio de um céu, com os pés sobre

pedras, e ao mesmo tempo pisando uma lua, juntamente com o olhar para cima e as

mão unidas em sinal de prece. A lua simboliza o feminino, o oposto do sol associado

ao masculino. O ato de pisar na lua mostra o atributo de proteção conferido à Maria.

Tomados em conjunto, estes índices remetem à representação da Nsra. da

Conceição11. Na história da arte, esta Nsra. surge geralmente entre as nuvens,

rodeada de anjos, com as mãos unidas em posição prece e pisando numa meia lua.

Temos bons exemplos deste tema do Barroco espanhol, através de Murillo (1617-

1682); e brasileiro, através de Manuel Athaíde (1762-1830).

Como bem aponta Abott, a santa pintada por Inah não traz os conhecidos

anjos. O crítico também revela que a modelo retratada era colega de Inah na EBA12.

Dentro disso, acompanhado das feições humanas da santa, as vestes pesadas, os

pés marcados pisando a lua, a ausência deliberada dos anjos ressalta ainda mais o

caráter terreno da figura em relação ao fundo celestial. Será que a artista quis

aproximar a Virgem do mundo terreno ou pretendeu sugerir que existe divindade

também nas mulheres de carne e osso?

Ainda dentro do esquema de Panofsky (1979), passemos ao terceiro nível de

análise, o qual diz respeito à interpretação iconológica. Esta visa esboçar o clima ou

atitude mental do período em que determinada obra foi produzida. Segundo

Panofsky (1979) trata-se de compreender alguns princípios que marcam cada

sociedade em um determinado momento, tendo em conta o “período, classe social,

crença religiosa (....) qualificados por uma personalidade e condensados numa

obra.”(PANOFSKY 1979, p.52)

No presente caso, a pintura da Virgem realizada por Inah – uma mulher

branca da elite urbana pelotense, de família tradicional e católica – assume um

11 Do culto mariano, muitas das qualidades atribuídas à Maria se estenderam para os padrões comportamentais das mulheres, como a castidade e a pureza. A Nsra. aqui representada, também chamada de “Imaculada Conceição é, segundo o dogma católico, a concepção da Virgem Maria sem mancha (em latim, macula ) do pecado original. (...) Também professa que a Virgem Maria viveu uma vida completamente livre de pecado.” Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Imaculada_Concei%C3%A7%C3%A3o (Acesso em 10/09/2016) 12 ABOTT, Nelson. Uma Pioneira da Arte Moderna Pelotense, texto do convite da exposição Sibisa expõe, 1986. s/p.

significado que é compartilhado por toda sociedade artística e cultural da época.

Como bem expressou Abott na matéria publicada, sob o título de “A fase acadêmica

de Inah Costa”13, que a obra de grandes dimensões encontra-se entre os seus

pertences, sendo motivo de encanto entre artistas e apreciadores.

Sob o título “Um quadro espelha uma época” (1982)14, o crítico escreve num

tom semelhante celebrando os trinta anos da pintura. Desta vez traz adjetivos

enaltecedores da “valentia das pinceladas expressivas da artista”, que “evoca a

grandeza da arte renascentista” através de “uma composição original”. De certo, a

relação com a pintura renascentista esteja de acordo mais com a emoção contida e

discreta no rosto e gesto da figura, do que nos jogos de luz e sombra e no efeito de

movimento produzido nos tecidos que cobrem a Virgem.

Nesta mesma nota, ele destaca que Inah pintou a figura a partir de um

modelo-vivo posado por sua colega na EBA. De fato, a modelo parece ter sido

transportada para o universo pictórico tal qual era na realidade. Em comparação

com outras obras de períodos anteriores, a representação da Virgem feita por Inah

apresenta mais uma mulher terrena que celestial. O primeiro aspecto que a

diferencia das demais é a ausência dos anjos, um motivo típico da iconografia da

Nsra. da Conceição, como bem observou o crítico.

Uma virgem de pele morena, como os famosos anjinhos do barroco mineiro.

Uma humanização da Nsra.,onde se vê mais a modelo do que a santa. Inah

conseguiu utilizar elementos tradicionais clássicos, mas colocando ali um toque

pessoal, superando a tradição mesmo que dentro de limites bem definidos da arte

acadêmica.

2.1 A ousadia das formas – para além das convenções

Entre a feitura da Nsra. e da máscara africana existe o lapso temporal de

trinta e seis anos de uma trajetória construída conscientemente e pouco a pouco.

Como a maioria das/os artistas, Inah teve inicialmente uma base de estudos

13 ABOTT, Nelson. A fase acadêmica de Inah Costa . Diário Popular, Pelotas, 18 jul,1982a, s/p 14 ABOTT, Nelson. Um quadro Espelha uma época. Diário Popular. Pelotas, 01 ago,1982b. s/p

acadêmicos para depois explorar novas linguagens pictóricas até atingir certo grau

de autenticidade a partir da soma daquelas diversas experiências. E no seu caso, o

caminho de sua transição seguia praticamente direto de uma ponta a outra: de uma

estética tradicional do academicismo Inah atirou-se para o seu oposto, o

abstracionismo. Ainda assim, a pintora parece jamais ter excluído completamente a

referência à figura, mesmo nas suas obras mais abstratas.

O desejo de aperfeiçoar os conhecimentos fez com que Inah pouco depois de

formada na EBA de Pelotas partisse para cursos de aperfeiçoamento no Rio de

Janeiro, demorando-se por lá mais tempo do que nas breves idas anuais.

Durante dois anos estudou figura humana na Escola Nacional de Belas Artes,

ao mesmo tempo em que frequentava os cursos no Museu de Arte Moderna (MAM),

ministrados por artistas do primeiro núcleo da arte abstrata no Brasil15.

Em entrevista recente16 à crítica de arte e sobrinha de Inah, Angélica de

Moraes leu alguns trechos de um caderno de anotações de Inah, onde a tia

escreveu que no segundo ano do curso da ENBA, o professor Bandeira de Melo

certo dia disse que ela precisa fazer uma escolha para decidir o seu caminho na

pintura. Ela então optou pela arte abstrata, passando mais dois anos imersa nos

cursos oferecidos pelo MAM, e no contato direto com as/os artistas do movimento

abstracionista. Além de frequentar diversos salões e galerias de arte em coletivas no

15 Durante os dois anos de estudos na ENBA-RJ (1955-1957)Inah teve como professores: Gérson Pompeu Pinheiro, Quirino Campofiorito, Francisco Pacheco da Rocha, Henrique Campos Cavalleiro, Marques Júnior e Lídio Bandeira de Mello. Já nos quatro anos de cursos no MAM (1955-1959) teve como professoras/es: Ivan Serpa, Samson Flexor, Fayga Ostrower, Eugênio Maldonado, Ligia Clarck, destes a artista destacou o aprendizado da estrutura da composição com Edson Motta e da criação abstracionista com Zélia Salgado (SILVA;LORETO, 1996,p.90-91). O artista carioca Ivan Serpa (1923 - 1973) é considerado pelos críticos um mestre da estrutura e do desenho. Fundou o Grupo Frente, primeiro núcleo de arte neo concreta do Brasil. Foi professor do ateliê livre de pintura adultos do MAM-RJ por cerca de vinte anos. Tinha por característica, assim como Inah, de explorar a criatividade das/os alunas/os.Fonte:http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo3/frente/serpa/index.html (Acesso em 14/09/2016).

16DE MORAES, Angélica. Entrevista sobre Inah Costa. Entrevista concedida a Rebecca Corrêa e Silva. São Paulo, 03 de ago. 2016.

Rio de Janeiro, em São Paulo participou da 2ª (1953) e da 3º Bienal Internacional

(1955); e também foi à Bienal da Bahia (1955)17.

Em 1959, Inah retornou para Pelotas e fundou a primeira escolinha de Arte

infantil da cidade. A seguir, no início dos anos sessenta retornou novamente ao RJ,

desta vez para frequentar o curso intensivo de Arte na Educação – Escolinha de Arte

do Brasil com o Prof. Augusto Rodrigues. Em 1973 criou o curso “Fundamental de

Desenho, Pintura e Estruturação para Adultos”, interrompido por motivos de saúde

(Pasta Inah Costa/ MALG). A renovação plástica trazida para cidade entre 1960-70

permite que se fale em um “consenso em afirmar-se que a primeira inovadora foi

Inah D’Ávila Costa” (SILVA; LORETO, 1996, p.89).

Em meados dos anos setenta, com o sistema das artes em Pelotas mais

consolidado, a artista seguiu participando ativamente do universo artístico da cidade

integrando o júri de salões, assessorando alunas/os e promovendo a arte e as/os

artistas da cidade. Sua atuação na década de oitenta se distingue pela quantidade

de viagens pelo Brasil e exterior em função de cursos e exposições.18

No auge de sua carreira, Inah mantinha a curiosidade e o espírito inquieto que

caracterizou sua trajetória. Sempre em movimento, em busca de sua própria

verdade. Voltando ao texto de Abott sobre a mostra de 1986, agora para demonstrar

como foi este período da trajetória de Inah, o crítico dizia que “vindo de longos anos

de trabalho e pesquisa, a sua arte de hoje está ainda mais juvenil e segura em seu

despojamento de linguagem, que se depura na caminhada natural de quem faz da

arte a sua grande paixão.”19

A partir de 1988 a artista passa a explorar as formas circulares nas

composições. Assim, já no auge de sua carreira aceita o desafio de criar uma série

de máscaras africanas em homenagem ao Centenário de Abolição da Escravatura,

que foi o “resultado de longa procura e pesquisa em história acerca do tema”20. O

17 Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo. Arquivos da Pasta Inah Costa/MALG. 18 Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo. Arquivos da Pasta Inah Costa/MALG. 19 Nelson Abott de Freitas. “Uma Pioneira da Arte Moderna Pelotense”, texto do convite da exposição Sibisa expõe,1986. 20 ABOTT, Nelson. Inah volta à figura. Diário Popular. Pelotas, s/d, s/p.

conjunto de máscaras esteve em exposição entre 04 e 22 de novembro no Structura

Centro de Arte21, conforme amplamente noticiado no Diário Popular.

Dentre as obras desta série, das quais não temos a informação da quantidade

exata, escolhemos analisar a única a qual tivemos acesso, que se encontra no

acervo de uma de suas sobrinhas.

Figura 3-Da série “Máscaras” (1988)

Fonte - Acervo pessoal de Ada Averbec

Seguindo a descrição pré-iconográfica e iconográfica (PANOFSKY, 1979),

podemos dizer que a obra representa um busto de uma figura humana andrógina

estilizada. É uma composição monocromática, com escala de tons marrons. Toda a

estruturação é simétrica, e as formas são definidas por contornos mais escuros ou

mais claros. Os elementos geométricos orgânicos, ovalados se fundem,

principalmente na metade superior do quadro.

Como se trata de uma composição plana, os volumes são dados pela

justaposição e sobreposição de planos, numa clara influência do Cubismo, um dos

21 Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo. Arquivos da Pasta Inah Costa/MALG . Inah Costa tem mostra na Structura Centro de Arte. de 04 de out.1988.

movimentos mais influentes da arte moderna. Os cubistas do início do século XX

retomaram a temática africana, no entanto, com finalidades diversas. A vertente do

cubismo sintético discutia as questões formais do quadro, ligadas às preocupações

dos elementos pictóricos, tais como: formas, cores, planos e estruturas, observando

como se dava a genuína simplificação das formas entre as tribos africanas. Contra a

perspectiva renascentista, os planos se deslocam por meio conferindo movimento à

composição. As cores seguem as harmonias análogas, acinzentadas e em degradé.

Da interpretação iconológica, destacamos a opinião de Marina Laranjeiras,

intitulada “Structura Centro de Arte”22, na qual declara que Inah assimilou as

características principais do espírito africano, “elaborando-as a sua maneira,

realizando um trabalho tenso, denso e originalíssimo.” A ideia de produzir esta série

foi diferente de tudo o que ela havia feito até então e distante de qualquer outra

produção dela depois disso. Pode-se dizer que As máscaras desestabilizam o

espectador que deseja ver uma constância na obra de Inah Costa.

Apesar de o quadro ter sido elaborado dentro de uma série de telas, é um

trabalho diferente do estilo pessoal da artista em sua fase mais madura, no final dos

anos oitenta. A obra é vista como um desvio da linha conduzida pela artista ao longo

dos anos. Uma prova desta mudança repentina surge no título: “Inah Costa volta à

figura”23 da crítica de Abott à exposição.

As máscaras africanas da chamada arte primitiva24 não eram consideradas arte

em seu contexto de produção. Foram os artistas europeus que atribuíram um valor

estético e artístico posterior, diverso do sentido original ritualístico. Assim, tanto os

cubistas, quanto Inah estavam mais interessados na composição formal do que no

significado místico das máscaras.

22 Conforme o texto “Structura Centro de Arte”, de Marina Laranjeiras publicado na seção de arte de Nelson Abott no Diário Popular,Pelotas,09 de out.1988. 23 ABOTT, Nelson. Inah volta à figura. Diário Popular. Pelotas, 30 de out. 1988. 24 Arte primitiva é o nome que se convencionou para tratar da arte produzida pelos povos pré-históricos ou por grupos tribais, que assim são chamados em virtude da temporalidade histórica. Segundo E.H Gombrich (2011), estes artífices ou artesãos primitivos estilizavam as formas não por consciência estilística, mas porque poucos elementos plásticos eram suficientes para que um objeto assumisse para além de sua materialidade o significado pretendido.

2.1. Um breve paralelo entre as duas obras

Inah traz o sagrado por meio da discussão simbólica e iconológica. Diferente

da pintura com iconografia da Nsra., mais presente no imaginário de Inah, a

máscara parece à primeira vista ter sido executada com maior atenção à forma do

que ao tema. Podemos assim dizer que os aspectos iconológicos da santa e a

iconografia da máscara são as tendências que mais pesam em cada obra.

Além disso, existe todo um trabalho cromático na imagem da santa, baseado

em seus estudos com Locatelli; diferente da máscara constituída inteiramente dentro

de padrões geométricos e de linhas que se cruzam. Ainda com tantas diferenças

prevalece em ambas uma preocupação com a estrutura racional da composição,

seja por uma perspectiva tradicional e figurativista, seja por um olhar contemporâneo

da linguagem abstracionista.

O primeiro é uma composição clássica e faz referência direta ao maior ícone

feminino do cristianismo, apresentado conforme uma tradição iconográfica europeia

e representação da Nsra. da Conceição, ainda que contenha alguns elementos

originais trazidos por Inah. Enquanto que o segundo, anti-clássico por natureza,

aproxima-se de uma apropriação estética das máscaras africanas ao estilo cubista,

mais em busca de questões formais intrínsecas ao fazer artístico do que pelo

fascínio ao exótico.

No caminho percorrido entre a santa e a máscara, Inah estudou arte

acadêmica, avançou nos estudos da arte moderna e desenvolveu sua linguagem

própria. Nos anos oitenta já havia produzido muito, e passou por diferentes fases.

Na década seguinte recebeu homenagens pela carreira da artista professora e

agitadora cultural pelotense. Em 1990 aconteceu em Pelotas sua maior retrospectiva

“Quarenta Anos de Pintura (1949-1989)”. Ainda naquele ano recebeu o brasão de

Pelotas e no ano seguinte foi homenageada com “Destaque em Pintura”, concedido

pelo Clube Comercial. Em outubro de 1998, vem a falecer em sua casa em

decorrência de problemas cardíacos que enfrentava há décadas.

3. Considerações finais

À primeira vista, em ambas as pinturas a temática parece direcionar a técnica.

Uma vez que dentro dos padrões estéticos e estilísticos tradicionais faz mais sentido

uma figura religiosa ser representada naturalisticamente; do mesmo modo que se

convinha reforçar a geometrização da máscara africana através de processos de

simplificação. Mas esta operação não se deu por acaso na obra de Inah.

O espaço de cerca de trinta anos entre uma obra e outra permitiu que a

artista, já consagrada, tivesse a liberdade de criar independente de se vincular a um

estilo ou a outro. A produção da “Virgem sobre as Nuvens” se deu durante suas

primeiras classes de pintura em 1952, já demonstrando o toque da artista, ainda que

a criatividade fosse mais contida e limitada às convenções da arte figurativa

acadêmica.

No entanto, em “A máscara”, Inah já era reconhecidamente abstracionista, havia

atravessado diversos estilos, já possuía o seu repertório definido, e resolve, mais

uma vez, transcender. A decisão de fazer uma série de máscaras africanas, ainda

que no contexto de comemoração do centenário surpreendeu artistas e intelectuais.

A transgressão se dá ainda no processo de transição das linguagens,

compreendendo o espaço de trinta anos de sua trajetória. Para muitos, parecia um

retrocesso, outras/as viam com estranheza a opção por um estilo já considerado

“ultrapassado”. Acontece que Inah, como em toda sua vida, pintou para transgredir,

para mostrar que a pintura “de verdade” é livre, assim como a alma da artista.

4. Referências bibliográficas

DINIZ, Carmen Regina Bauer. Nos Descaminhos do Imaginário : a tradição

acadêmica nas artes plásticas de Pelotas. Dissertação de Mestrado. IA/ UFRGS.

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DE MORAES, Angélica. Entrevista sobre Inah Costa. Entrevista concedida a

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GOMBRICH, E.H. A História da Arte.16ª Ed. Capítulo 1 - Estranhos Começos –

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MAGALHÃES, Clarice. A Escola de Belas Artes de Pelotas. (1949-1973) -

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