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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Rita Alves Miranda O Teatro experimental de Brecht MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2013

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Page 1: O Teatro experimental de Brecht - PUC-SP · Capítulo 2 - Brecht e o Realismo Socialista ... Brecht, ao menos no Brasil, não é um pressuposto para quem estuda teatro, e a surpresa

PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rita Alves Miranda

O Teatro experimental de Brecht

MESTRADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2013

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PONTIFICA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rita Alves Miranda

O Teatro experimental de Brecht

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora como exigência parcial para

obtenção do título de Mestre em Filosofia

pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, sob a orientação do Profa. Dra. Sônia

Campaner Miguel Ferrari

SÃO PAULO

2013

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Banca Examinadora

___________________

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À minha família e a Bertolt Brecht.

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Agradecimentos

Quero agradecer em primeiro lugar à minha família, meus pais Raul e Fátima

e ao meu irmão Ricardo, pelo apoio, dedicação e todo amor que sempre me deram.

Ao CNPq, por permitir que eu me dedicasse de corpo e alma a este trabalho.

À professora Sônia Campaner o meu profundo agradecimento pela ajuda,

parceria e mais que isso, por ter acreditado no potencial de minhas escolhas e me

encorajado a ir em frente, sobretudo quando eu tive medo.

Aos meus queridos e leais amigos que estão sempre aí comigo, dividindo as

alegrias e as angústias.

Agradeço especialmente ao Diogo Dias e à Júlia Yoshino pelas revisões e

pela amizade.

Ao Lucas por todo o carinho e companheirismo.

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Resumo

Este trabalho tem por objetivo abordar a passagem de Bertolt Brecht pela

história do teatro e a influência de sua proposta na fase contemporânea da arte.

Inicialmente, analisamos a crítica de Brecht dirigida a algumas concepções

tradicionais de teatro e o caminho percorrido pelo autor para pensar a crise do

drama que se instalara tempos antes. Nesse percurso foram consideradas algumas

referências e possíveis objeções de Brecht a Aristóteles e ao modelo aristotélico de

teatro. Nesse debate polêmico, analisamos as referências ao filósofo grego, a fim de

esclarecer se o que Brecht pretendia era rejeitar mesmo Aristóteles, ou mais uma

apropriação daquele modelo formal. Sabe-se que o modelo aristotélico de teatro foi

retirado da obra Poética de Aristóteles e que sofreu apropriações segundo as

épocas, sendo uma delas a leitura burguesa. Essa leitura é rebatida por Brecht que

revê a realidade do drama burguês e percebe que era preciso que ele fosse revisto

imediatamente, pois o teatro já não atingia mais as pessoas, mas sua disposição

dependia de uma relação de passividade por parte dos espectadores.

Frente a dessa crise do drama, alguns artistas, tentaram reformulá-lo sem,

no entanto, obter sucesso. Brecht, quando deu início a seu trabalho, já tinha

conhecimento dessas tentativas e diante desses fracassos, o objetivo era fazer o

teatro inaugurar um novo lugar dentro da sociedade. Em busca do melhor lugar, ele

tem em mente um lugar de produção de consciências, opondo-se radicalmente à

logica burguesa-capitalista que buscava a alienação dos indivíduos. Assim,

localizado já fora do debate de acerto de contas com o passado, Brecht concentra-

se em seu presente e enfrenta György Lukács que se opõe a Brecht ao pensar a

arte de uma forma diferente, atribuindo a este a imagem de Formalista. Nos

ocupámos de defender Brecht também dessas acusações.

Esta dissertação, diferente do aspecto comum de textos sobre Bertolt

Brecht não se propõe a analisar minuciosamente as técnicas desenvolvidas pelo

dramaturgo na formulação do Teatro Épico, ou a falar dos aspectos formais de sua

obra, senão que se apoia numa abordagem filosófica, que passa rapidamente por

alguns momentos do pensamento do autor até chegar à fase considerada como fase

de uma concepção madura de teatro, que é também a última fase de sua carreira,

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quando ele reviu muitas de suas posições anteriores. Esta fase é aquela em que ele

escreve peças como A Alma Boa de Setsuan (1939-1942) e Vida de Galileu (1938-

1939). Neste momento do trabalho nosso foco foi essa dada concepção madura da

obra do autor e as características de seu pensamento nessa época, pensamento

que tomamos como próprio brechtiano. Concentramos nossa atenção neste

momento da obra, a fim de mostrar a compatibilidade desse pensamento e uma

concepção de teatro contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Bertolt Brecht. Teatro épico. Dialética. Teoria crítica. Teatro

moderno. Social. Político. Drama não-aristotélico. Educação.

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Abstract

This master’s thesis aims to approach the passage of Bertolt Brecht through

the theater history and the influence of his proposal for the contemporary art. Initially,

we analyzed Brecht’s criticism towards some traditional conceptions of theater and

the path taken by the author to think the crisis of drama that had settled times before.

Along the way were considered some references and possible objections from Brecht

to Aristotle and the Aristotelian model of theater. In this controversial debate, we

analyzed the references to the Greek philosopher, to clarify weather Brecht really

wanted to reject Aristotle, or he proposed an appropriation of that formal model. It is

known that the Aristotelian model of theater was removed from the Poetics of

Aristotle and suffered different appropriations in different epochs, one of them being

the bourgeois reading. This view is refuted by Brecht, when he analyzes the reality of

bourgeois drama and realizes that it was necessary that it be revised immediately,

because the theater is no longer affecting the people, in the sense that their

willingness depended on a relationship of passivity on the part of viewers.

Facing this crisis of drama, some artists tried to reformulate it without however

succeeding. Brecht, when began his work, had knowledge of these attempts and

facing their failures, the goal was to make theater inaugurate a new place in society.

In search of the best place he has in mind a place of production of consciousness,

radically opposed to the bourgeois-capitalist logic that sought the alienation of

individuals. So, now located outside the debate of reckoning with the past, Brecht

focuses on your present and faces the ideas of György Lukács which oppose Brecht

by thinking art in a different manner and attributing to him the image of Formalist. We

also deal whit defending Brecht from these charges.

This dissertation, different from common aspect of texts on Bertolt Brecht is

not intended to scrutinize the techniques developed by the playwright in the

formulation of the Epic Theater, or talking about the formal aspects of his work, but it

is based on a philosophical approach, passing briefly through a few moments of the

author’s thought until it reaches the stage considered as a mature conception of

theater, which is also the last phase of his career, when he revised many of his

previous positions. This phase is one in which he writes pieces like The Good Soul of

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Setsuan (1939-1942) and Life of Galileo (1938-1939). Being so, our focus was this

mature conception of the author’s work and the characteristics of his thinking at that

time, thinking that we take as very Brechtian itself. We focus at this moment of his

work, to show the compatibility of his thought and a contemporary conception of

theater.

Key-words: Bertolt Brecht. Epic Theater. Dialect. Critical Theory. Modern

Theater. Social. Politics. Non-Aristotelian drama. Education.

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Sumário

Agradecimentos....................................................................................... 5

Resumo..................................................................................................... 6

Abstract..................................................................................................... 8

Introdução................................................................................................. 11

Capítulo 1- Brecht e o modelo tradicional de Teatro............................ 24

1.1 Brecht e a descoberta da nova função da Arte................... 24

1.2 A crítica de Brecht à tradição.............................................. 38

1.3 Brecht e Aristóteles............................................................. 65

1.3.1 O jogo emocional e perigoso da empatia ........................ 70

Capítulo 2 - Brecht e o Realismo Socialista........................................... 78

2.1 O confronto entre Lukács e Brecht..................................... 95

Capítulo 3 – O Brecht Maduro................................................................. 104

3.1 Brecht e Galileu.................................................................. 118

Conclusão ................................................................................................ 128

Referências Bibliográficas...................................................................... 143

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Introdução

É verdade, eu vivo em tempos negros. Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas Indica insensibilidade. Aquele que ri apenas não recebeu ainda A terrível notícia. Que tempos são esses, em que Falar das árvores é quase um crime Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades? Aquele que atravessa a rua tranquilo Não está mais ao alcance de seus amigos Necessitados? Sim, ainda ganho meu sustento Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço Me dá direito a comer a fartar. Por acaso fui poupado. (Se minha sorte acaba, estou perdido.) As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque tem! Mas como posso comer e beber, se Tiro o que como ao que tem fome E meu copo d’água falta ao que tem sede? E no entanto eu como e bebo. Eu bem gostaria de ser sábio. Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria: Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve Levar sem medo E passar sem violência Pagar o mal com o bem Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los Isto é sábio. Nada disso sei fazer: É verdade, eu vivo em tempos negros. [BRECHT, 2000, p.212]

Depois de certo tempo maturando alguns temas, discutindo assuntos

que diziam respeito à formação dos indivíduos, passei a acreditar mais e mais

que, se atentos às nossas vidas, há determinados momentos em que somos

capazes de perceber a valia de certas afecções, sejam elas por pessoas,

autores, ideias, escolas. E, foi assim, que há oito anos1 durante uma aula de

teatro, me vi afetada pela presença de Bertolt Brecht, uma das figuras mais

importantes da história do teatro moderno, que, a partir dali, passou também a

ter um papel decisivo em minha vida.

1 O primeiro texto lido de Brecht é o mesmo poema deste início da Introdução.

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Na época, cursava ao mesmo tempo a graduação em Filosofia e o curso

profissionalizante de teatro e posso dizer que, desde o primeiro contato com

Brecht, meu interesse extrapolou os limites do palco, fazendo-me descobrir

uma afinidade que eu entendi mais tarde que tinha a ver com o legado deixado

por aquele autor. O empenho de Brecht e a sua causa (Grund) geraram em

mim uma aproximação que dura até hoje. Se pudesse, citaria seus textos

aonde fosse, pelas ruas, para que assim como eu as pessoas também se

sentissem afetadas por eles. Por experiência, descobri que embora bastante

conhecido, Brecht, ao menos no Brasil, não é um pressuposto para quem

estuda teatro, e a surpresa e o entusiasmo daqueles que o leem e

compreendem a intenção do autor são quase certos. Penso que, apesar da

acessibilidade a seus textos hoje, ainda há um isolamento parcial de sua obra.

Alguns aspectos desta foram bastante difundidos e até apresentam uma

saturação. Porém, ainda há o que dizer.

Passada a fase da descoberta, atenta ao que aquela afinidade

despertara em mim, era impossível voltar ao que eu era antes, de maneira que

percebi que um retrocesso seria negar a mim mesma. Passei então a refletir

sobre aquilo que nasceu dessa afecção, vendo o que ela poderia acarretar de

determinante em minha formação enquanto indivíduo. Ainda em início de um

despertar formal, eu aspirava produzir algo mais do que percepções, e isso me

fez querer dar continuidade à relação com Brecht e o seu projeto, dedicando

esta dissertação de mestrado a esse encontro: à sua causa e a seu empenho,

que me inspiraram e me inspiram.

Meu desejo era escrever alguma coisa que conseguisse minimamente

traduzir o quão importante e decisivo tinha sido para mim o encontro com

Brecht e como esse sentimento estava longe de ser algo só meu, mas de

muitas outras pessoas que também haviam descoberto o autor. Com isso,

apesar de ter em mente as limitações de meu contato, que ainda era restrito

quando iniciei a pesquisa, acreditei que, assim como já tinha ocorrido com

outras pessoas, Brecht poderia me trazer a inspiração necessária para falar e

defender a ideia da qual compartilho desde o início de meu contato com o

teatro – quando ainda era uma criança –, que é a certeza de que essa arte só

tem sentido quando unida à ideia de coletivo.

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Infelizmente, logo que comecei a pesquisar Brecht, observei que por

diversos fatores o dramaturgo e sua obra tinham caído em descrédito, a ponto

de uma corrente de críticos e artistas chegar a considerá-lo ultrapassado.

Quando pensei que por um lado não seria fácil enfrentar essa corrente, ao

mesmo tempo não conseguia me convencer de que a obra de Brecht merecia

ser abandonada, pois olhando para o mundo de sua época e para o mundo de

hoje (de meu presente), o seu valor não parecia supérfluo. Para mim, diante da

realidade constatada, acredito que o seu teatro encontra-se ainda numa fase

inicial de recepção, podendo ser considerado “um elemento permanente e

ativo, cujo efeito discriminante é hoje ainda menos dispensável do que há vinte

ou trinta anos” [PASTA, 2010, p.16].

Logo, espero ter conseguido ser fiel à verdadeira causa de Brecht (que

acabei por adotar como minha também) e clara aos leitores, fazendo jus à

tarefa que eu mesma impus à minha formação individual, que é a de visar,

sempre em alguma medida, o coletivo. Pois, ao se falar de Brecht, tudo tem

que ser entendido e pensado na dimensão do todo, para além do sujeito, já que

a constituição de uma pessoa por mais isolada que seja é dependente desse

todo, tornando impossível aceitá-la como uma figura aleatória entre as demais.

Para Brecht, a vida de cada pessoa é determinada pelo mundo, o que torna o

papel de cada um também determinante dentro do todo.

Tendo em mente o ideário de coletivo, precisei saber antes de querer me

aventurar por essa afinidade os perigos que eu poderia enfrentar no caminho

escolhido, já que se tratava de pensar num trabalho acadêmico e ainda em

consideração à larga literatura existente sobre o autor. Diante da complicada

tarefa de enfrentar certa “intimidação” vinda da tradição crítica, foi a proposta

destinada à formação de um novo espectador (de um novo público de teatro)

que me fez seguir em defesa desse fim e querer mostrar a sua extensão à

contemporaneidade.

Para cumprir com a tarefa, mergulhei na história do autor e nas fases

que compuseram seu amplo trajeto no teatro, até que finalmente se chegasse

ao entendimento de como deveria se portar o novo teatro, que a meu ver –

assim como para outros intérpretes e admiradores de Brecht – contempla

também a sua fase mais madura e a mais consequente, que levou a obra de

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Brecht a outro patamar de compreensão, não podendo mais ser confundida

com aquele estágio inicial de sua carreira.

A grandiosidade dessa fase de Brecht – e a sua dificuldade também –

reside no fato dele ter levado a sua concepção de teatro a um nível pouco

limitado e doutrinário, ao contrário de como muitos o descrevem. Brecht seguiu

uma direção avessa à de muitos autores, que com o tempo se tornaram mais

rígidos. Partindo desse ponto, tratei essa possibilidade, que atravessa outra

apreensão da proposta brechtiana e a transforma também numa proposta de

influência para a formação dos indivíduos. Principalmente se aplicada a uma

sociedade que ainda hoje – como observou Theodor Adorno já há mais de

meio século e apesar do posicionamento em muitos sentidos divergente do de

Brecht – preserva a racionalização instrumental como valor maior. Uma lógica

que reclama uma transformação urgente:

A educação não é necessariamente um fator de emancipação. Numa época em que a educação, ciência e tecnologia se apresentam – agora ‘globalmente’, conforme a moda em voga – como passaportes para um mundo ‘moderno’ conforme os ideais de humanização, estas considerações de Theodor W. Adorno podem soar como um melancólico desânimo. Na verdade significam exatamente o contrário: a necessidade da crítica permanente. Após Auschwitz, é preciso elaborar o passado e criticar o presente prejudicado, evitando que este perdure e, assim, que aquele se repita. O filósofo alerta os educadores em relação ao deslumbramento geral, e em particular o relativo à educação, que ameaça o conteúdo ético do processo formativo em função de sua determinação social. Isto é, adverte contra os efeitos negativos de um processo educacional pautado meramente numa estratégia de ‘esclarecimento’ da consciência, sem levar na devida conta a forma social em que a educação se concretiza como apropriação dos conhecimentos técnicos. Parafraseando Adorno no último parágrafo da Minima Moralia, quanto mais a educação procura se fechar ao seu condicionamento social, tanto mais ela se converte em mera presa da situação social existente. É a situação do ‘sonho de uma humanidade que torna o mundo humano, sonho que o próprio mundo sufoca com obstinação na humanidade’! O desenvolvimento da sociedade a partir da Ilustração, em que cabe importante papel à educação e formação cultural, conduziu inexoravelmente à barbárie. Ou, para dizer o mesmo pelo reverso: o próprio processo que põe a barbárie aos homens ao mesmo tempo constitui a base de sua sobrevivência. Eis aqui o nó a ser desatado. A função de sua teoria crítica seria justamente analisar a formação social em que isto se dá, revelando as raízes desse movimento – que não são acidentais – e descobrindo as condições para interferir em seu rumo. O essencial é pensar a sociedade e a educação em seu devir. Só assim seria possível fixar alternativas históricas tendo como base a emancipação de todos no sentido de se tornarem sujeitos refletidos na história, aptos a interromper a barbárie e realizar o conteúdo positivo, emancipatório do movimento de ilustração da razão. Esta, porém, seria uma tarefa

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que diz respeito a características do objeto, da formação social em seu movimento, que são travadas pelo seu encantamento, pelo seu feitiço. Por isto a educação necessária para produzir a situação vigente parece imponente para transformá-la. [MAAR, apud ADORNO, p.12, 1995]

Brecht também apostou na importância de uma crítica permanente e a

citação anterior convoca o pensamento a avaliar: Quantos dos erros que

ficaram num passado histórico não muito distante, nós repetimos hoje? Com

que frequência olhamos para esse passado e revemos nossas formas de agir?

Quantos dos absurdos ali presenciados foram repetidos pouco tempo depois?

Que homens pensam hoje em suas vidas e voltam também esse pensamento

para a humanidade? A técnica, a tecnologia e o consumo desenfreado, que

implicações têm na vida dos indivíduos? O que é transformador hoje e que

dispositivos podem nos auxiliar a encarar a constante depreciação em que foi

colocada a nossa existência?

Se o teatro de Brecht (com sua extensão) não deu as respostas

necessárias, acredito que ainda é tempo do teatro contemporâneo formular

questionamentos como esses, que resultem numa outra forma de ver as

coisas, inclusive que se apoiem na concepção do autor de instalar de vez a

presença da ação do pensar também nos momentos de diversão das pessoas.

A transformação proposta pelo dramaturgo alemão não parece ter sido

ultrapassada, mas, ao invés, adiada. A conclusão a que pretendi chegar foi

que, diante dos problemas de hoje, não só os de ordem social, mas os que

assolam o campo da arte, deve-se ainda insistir na releitura de Brecht pela

descoberta daquilo que ainda está em aberto.

De um modo geral, são comuns as leituras de Brecht e sua obra que

aterrissam numa concepção de teatro restrita – distinta daquela que este texto

defendeu, e que vê na proposta deixada pelo autor uma possibilidade de

aproximar a arte da vida, vinculada também a um “conhecer-se a si mesmo” e

ao mundo, que para acontecer, demanda antes, uma relação mais consciente

com o próprio pensamento. Trazendo também a filosofia para uma situação

semelhante à da arte, notou-se que a sua presença afastada da vida das

pessoas poderia, segundo Brecht, ser retomada se fosse adquirido novamente

o gosto pela reflexão. Sendo assim, Brecht acabou conferindo a seu teatro a

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tarefa de buscar situações que permitissem pensar sobre o mundo e, assim,

pudesse ser descoberto um novo e possível contato entre filosofia, arte e vida.

Entretanto, ao iniciar o trabalho com o teatro, ainda não estava muito

claro para Brecht que caminho seguir – durante muito tempo de sua vida ele

esteve um pouco distante dos movimentos artísticos, já que primeiro

frequentou a escola de medicina e serviu como enfermeiro durante a Primeira

Grande Guerra Mundial. Assim, quando começou a escrever peças – Baal foi a

primeira, em 1918 –, além de todo o peso de uma tradição teatral, Brecht

também precisou se ambientar aos questionamentos que eram levantados

pelos intelectuais e artistas da época, sobre qual deveria ser o papel ocupado

pela arte dentro daquela sociedade, e os caminhos do teatro. Na Alemanha,

por exemplo, já havia experimentos que se utilizavam de dramaturgias não-

aristotélicas e que depois Brecht desenvolveu a seu modo.

Já ao se aproximar desse meio, Brecht percebeu que, em virtude

daquele presente incerto, era indispensável ao teatro arranjar um modo de

enfrentar a realidade, dialogar com ela. O mundo e a arte estavam em crise e a

revolta diante daquela situação fazia o teatro, também nessa situação, clamar

por intervenções radicais. Essa urgência foi o que impulsionou o jovem Brecht,

movendo-o pela esperança de estabelecer um novo teatro que pudesse ajudar

a ver que aquela era uma situação que podia e devia ser superada. Isso fez

com que ele lutasse por um teatro mais humano.

E assim decorreram 38 anos de experiência teatral – período entre os

anos de 1918 e 1956 –, sendo que até o último ano de sua vida (1956), Brecht

participou ativamente como homem de teatro. Quatro dias antes de morrer ele

ainda esteve presente num ensaio, o que demonstra a importância da vida do

teatro para ele, bem como a seriedade de seu compromisso. Contudo, é

importante destacar que dentro desse longo período de trabalho intenso, entre

formulação de teoria e montagens, os últimos 15 anos de vida de Brecht foram

marcados por uma espécie de reviravolta em seu pensamento, o que

consequentemente acabou influenciando todo o restante de sua obra e

experiências posteriores.

Essa fase é também classificada como a fase “madura” de Brecht, e o

período que a precedeu figuraria outra fase, a primeira do autor, que equivale

ao caminho percorrido pelo artista até chegar a uma compreensão que o

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satisfez. Só depois de uma longa investigação, é que se pode dizer que Brecht

encontrou uma visão que fazia jus ao seu objetivo inicial. Visão esta que ele

considerou como verdadeira possibilidade para ser aplicada dali em diante,

sempre com a finalidade de modificar a estrutura do teatro vigente – o teatro

burguês – e, encontrar um novo teatro que fosse duplamente inovador: que

divertia os espectadores (porque essa sempre foi a sua finalidade), ao mesmo

tempo que os fazia pensar. Um teatro útil para a sociedade, mas não do modo

como esta estava acostumada a pensar a “utilidade”.

Para caracterizar melhor essas “duas grandes fases” de Brecht – que

dividem a obra em dois momentos – Raymond Williams analisa e indica, os

acontecimentos daquela época que tiveram impacto sobre a cisão que ocorreu

na visão de Brecht, separando-a em duas vivências que, mesmo conectadas

por um objetivo, resultaram na divisão da obra em dois sentimentos distintos,

que por sua vez levaram Brecht a uma atitude também distinta. De pronto, “a

identificação de um sistema político como uma causa principal de sofrimento” e

depois, “a descoberta da esperança na luta contra ele”.

Com isso, a fim de facilitar o percurso do presente texto, foi escolhida

para ser defendida aquela fase que Williams define como a segunda fase de

Brecht, e com a qual José A. Pasta concorda. Sobre os momentos que passou

até chegar ao momento maduro da obra, alguns autores chegam a avaliá-los

também como fases, porém, aqui, optou-se por identificar tais momentos como

passagens que fazem a transição entre uma fase e outra.

Na primeira fase estava presente um Brecht endurecido, revoltado com a

ordem do capitalismo, que de pronto sentiu uma forte identificação com as

vanguardas artísticas (o Expressionismo), e que adiante passou por influências

como as do Teatro Político (de palanque) e Teatro Didático (ou de

aprendizagem), como o de Piscator, que o fez se juntar, de alguma forma, a

todos os debates dos quais participou na década de 20, porque tinha interesse

em primeiro lugar pela experiência que esses contatos poderiam trazer para a

sua prática com o teatro.

Dessa forma, antes de continuar, tomou-se como indispensável para

uma compreensão mais precisa de Brecht, olhar para ele antes de tudo como

um experimentador, para além da imagem de dramaturgo e teórico. Só assim,

fará sentido toda a crítica à história que vai desenvolver, assim como a

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construção do pensamento que trouxe resultados até então ainda não

presenciados na história do teatro, como é o caso da concepção de teatro da

segunda fase. Para o teórico Peter Szondi, a obra de Brecht configura uma das

tentativas de salvamento do teatro, que perto das que já existiam talvez seja

aquela que se tornou mais consequente para o teatro posterior.

Esta dissertação, portanto, tratou de alguns momentos do percurso de

Brecht que foram chaves para compreender o seu “produto” final.

Consequentemente, a partir de uma distinção mais clara dessas duas fases do

trabalho do autor, foi possível perceber também o porquê dele se comportar de

determinada forma, em se tratando de questões específicas – a exemplo do

confronto com a tradição. Na análise de Pasta, uma das relações estabelecidas

por Brecht que certamente muda na fase madura foi a relação com a tradição

clássica. Essa mudança foi decisiva tanto no desenvolvimento da teoria

brechtiana, como também na escritura das peças, em que a tradição, portanto,

contornou todo o trabalho de Brecht que investiu num movimento que

contrariava os efeitos do Esclarecimento alemão (Auflklärung). O exemplo de

Williams para o “primeiro Brecht” é dado através da peça A ópera dos três

vinténs. Esta traduz um pensamento que na época ainda estava bastante

confuso, rodeado pelo desacordo entre teoria e prática e que só foi contornado

na fase madura de Brecht 2.

Durante seu trajeto, Brecht concentrou-se em retomar características

próprias do gênero épico original de teatro – denominando-o mais tarde,

inclusive, de Teatro Épico – ao mesmo tempo em que inovou na combinação

dessas características e construiu uma nova visão de teatro, distinta da

original. Longe de desenvolver um complexo estético, como parecia se

encaminhar no começo o seu projeto, o amadurecimento constituiu uma fase

bastante radical em seu pensamento. Brecht ultrapassou a concepção da

dialética marxista e deu a ela a sua própria marca. Essa posição, confundida

ainda por muitos com a posição do começo, parecia disposta a pensar o teatro

2 Hoje “A ópera dos três vinténs” é ainda muito encenada pelos atores do herdado Berliner

Ensemble - teatro fundado por Brecht e sua mulher Helene Weigel em 1949. Na conclusão pretende-se falar sobre a espécie dessas encenações e como elas não correspondem a uma leitura contemporânea “sadia” da obra de Brecht.

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como uma espécie de instituição moral3, como procurou discutir este trabalho.

Por outro lado, entretanto, o texto também não se apoiou numa visão

construída ao acaso, tendo o estudo, que se iniciou pela leitura de textos do

próprio Brecht, coincidido com a visão desses autores, adeptos do “legado” 4

brechtiano.

Porém, há alguns erros cometidos na interpretação da obra de Brecht

que acabaram conduzindo a proposta dele a um empobrecimento.

Normalmente confunde-se bastante o papel social de seu teatro, e as críticas

estão justamente apoiadas nas criações de Brecht da primeira fase, como

exemplificado acima. Com o intuito de compreender essa obra como um todo,

ou buscando para ela algo que a definisse, Brecht é normalmente

compreendido: ou unicamente pelo ponto de vista do marxismo, ou como um

autor que escreveu só para seu tempo, que defendeu uma posição autoritária

para o teatro e para a função deste sobre o público (Publikum), como se ele

tivesse algum controle dos efeitos de seu teatro sobre cada indivíduo. Mas em

verdade, de decisivo Brecht só deixou o legado e este só deve ser

compreendido5 como aquele que pretende manter viva a ideia de que o

exercício do pensar deve estar presente em todas as instâncias da vida, e é na

elucidação dessa confusão que se concentrou a dissertação.

A visão escolhida para ser tratada e defendida aqui coincidiu e aliou-se,

em diferentes aspectos, a Peter Szondi, Gerd Bornheim, Raymond Williams,

Walter Benjamin, Roland Barthes e José A. Pasta. Pois, para esses autores, o

projeto de Brecht teve outra dimensão, que difere das críticas tradicionais e que

também se mostrou mais pertinente a uma reflexão filosófica que visa um

processo de questionamento atualizado. Do lado oposto, quando Brecht é

3 Brecht escreveu um texto, “Será por ventura o Teatro épico uma ‘instituição moral’?”, em que

se defendeu dessa acusação. O texto se encontra no livro Estudos sobre teatro. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2005. 4 Esse termo aparece com frequência em Trabalho de Brecht de José Antonio Pasta, e é

importante mencioná-lo aqui porque é dele que a tese também quer tratar, salvo algumas distinções que serão mencionadas mais adiante. 5 “A maior parte destas afirmações, senão a sua totalidade, foi escrita sob a forma de

anotações às minhas peças, no intuito de que estas viessem a ser representadas corretamente. Tal circunstância empresta-lhes um tom técnico, algo seco, como se um escultor indicasse como e onde se deveria dispor a sua escultura, e em que espécie de pedestal; tal indicação seria, também, uma indicação a frio. As pessoas a que ele se dirigisse esperariam, talvez, alguma coisa sobre o espírito dentro do qual fora concebida a escultura; mas é à custa do seu esforço pessoal que terão de extrair da indicação qualquer dado a respeito.” [BRECHT, 2005, p.251-252]

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reduzido à união de algumas técnicas e às peças que deixou, Brecht torna-se

simplista e até de fácil superação. Em resposta às interpretações que o

colocaram nesse patamar, trazidas aqui as de HansThies Lehmann e Jacques

Rancière, esse percurso se ocupou da tentativa de desfazer alguns equívocos

na compreensão de sua obra e, assim, mostrar a amplitude real desse

trabalho. Ou seja, pensar Brecht, se possível, além do ambiente partidário e de

uma doutrina.

Brecht quis desenvolver um estilo de teatro que tivesse como resultado a

formação de uma nova atitude por parte dos espectadores. Em suma, queria

formar outro tipo de público de teatro. A presente tese propôs-se a defender a

ideia de que, dentro das preocupações de Brecht, aquela que se refere ao

público é a mais importante e à qual ele pareceu dedicar todo o seu trabalho6.

Desde as críticas ao teatro burguês, a busca por novas técnicas, o

desenvolvimento de outra visão para a diversão, até ao desapego à visão

fechada do marxismo ortodoxo, para Brecht colocou-se a questão:

será totalmente impossível fazer da reprodução de acontecimentos da vida real o propósito da arte, e portanto fazer da atitude crítica dos espectadores para com eles alguma coisa útil para a arte? Tão logo se começa a refletir sobre isso torna-se claro que uma transformação tão grande só podia ser executada mudando-se a natureza do trânsito entre plateia e palco. [BRECHT, 2002, p.98]

Assim, o trabalho é atravessado pelo seguinte roteiro de perguntas

(sendo cada uma delas respectiva a cada capítulo):

Por que Brecht foi de encontro à tradição e quis criticá-la?

Por que Brecht desconstruiu a ideia de realismo tradicional?

Por que Brecht se aproximou dos elementos do gênero épico de teatro e

os desenvolveu? Por que a peça A Vida de Galileu pode ser considerada como

o maior exemplo do legado de Brecht?

Por que Brecht ainda pode ser considerado atual?

6 “O que trouxe Brecht de volta à realidade, e por pouco não matou sua poesia, foi a

compaixão. Quando reinava a fome, revoltou-se ao lado de todos os famintos: ‘Dizem-me: Come e bebe!/ Alegra-te, já o tens!/Mas como posso eu comer e beber, quando/ Tiro ao faminto o que como, e/ O meu copo de água falta ao que morre de sede?’ A compaixão foi sem dúvida a mais tenaz e a mais fundamental das paixões de Brecht, e por isso mesmo a que ele mais procurou, e menos conseguiu esconder; adivinhamo-la em quase todas as peças que escreveu.” [ARENDT, 1991, p.274]

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O primeiro capítulo (o mais amplo) tratou do debate de Brecht com a

tradição teatral anterior à sua época. O seu ponto de partida foi a rejeição que

fez à presença permanente do modelo clássico de representação – originário

de Aristóteles –, que por sofrer sempre novas apropriações e renovações foi

levado a um esgotamento total da forma dramática, culminando também numa

crise profunda do teatro.

Para realizar uma análise histórica do teatro, Brecht leu e estudou

autores de períodos que vão dos gregos até o século XIX, sempre atento às

mudanças relevantes de uma época para a outra. Nesse sentido, a fim de

descobrir a causa de suas referências, é possível também fazer uma

aproximação desses autores e dos acontecimentos mais relevantes dos

respectivos períodos, para se descobrir finalmente que Brecht realizou uma

espécie de classificação entre aqueles que tentaram seguir outra direção no

teatro, que não era moldada a partir dos clássicos, e os que em contrapartida

optaram sempre por reformar as ideias de Aristóteles, presentes na Póetica7.

O movimento do teatro ao longo da história, que foi acompanhado de

longe por Brecht em sua época, não pode ser compreendido se não se levar

em conta uma série de aspectos que foram determinantes a esse movimento.

Isso justifica o início desta abordagem pela análise da crítica brechtiana em

torno de uma tradição que considerou ultrapassada e que, segundo ele, tinha

sido responsável por levar a arte à crise – que, embora sendo resultado de

uma construção, só foi detectada no final do século XIX. Só nessa época é que

se iniciou um movimento não apenas de nível teórico, mas também

experimental, dentro do qual alguns artistas e intelectuais começaram a se

perguntar pelos motivos que originaram a tal crise. Concluíram daí que

precisavam repensar os modelos tradicionais que haviam sido assimilados pela

cultura burguesa.

No que observa das dificuldades circunscritas em sua época, Brecht

acreditava que a única saída para o teatro era começar com o rompimento,

mesmo que tardio, com o modo de representação pela primeira vez proposto

na Grécia antiga, reconhecido como modelo único. Era preciso destituir a forma

7 Originada de anotações das aulas de Aristóteles, esta obra tratou da poesia e da arte. Tendo

forte influência sobre a cultura ocidental, foi dela que se retirou o modelo de teatro tradicional, através de definições presentes ali, como as dos gêneros da tragédia e da comédia.

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dramática – desenvolvida a partir desse modelo – do posto de gênero

soberano, porque as suas bases não mais se adequavam aos eventos da

realidade. Aristóteles e sua teoria tinham sido transformados em modelo de

veneração para o Ocidente desde o Renascimento, e como o filósofo grego foi

o primeiro pensador a fundamentar uma teoria sobre a poesia, ninguém havia

até então confrontado essas bases.

Era preciso romper com elas também porque, ao mesmo tempo em que

não dialogavam com a realidade, também já não faziam sentido enquanto

réplicas dos predicados gregos. Não satisfizeram Brecht as tentativas

constantes na história do teatro que tentaram acomodar esses predicados às

novas temáticas. A seu ver, o teatro pedia uma mudança de base, muito mais

profunda, que se expandiria para além do âmbito formal, intelectual e moral.

Antecipando aqui pontos da explanação vislumbrada para o primeiro

capítulo, será importante retirar a ênfase da crítica de Brecht de uma ligação

direta com Aristóteles. É verdade que o primeiro modelo referente à forma

dramática foi proposto pelo Estagirita, porém, Brecht não se preocupou em

romper diretamente com ele, pelo menos em parte. Porque uma vez tomando-

se o pressuposto de que esse modo (como tinha sido proposto originalmente

na Grécia) já não existia, a crítica que se refere ao modo aristotélico só poderia

arriscar-se a criticar aquilo que estava mais próximo de sua realidade histórica,

ou seja, as atualizações que se diziam herdeiras do padrão grego. Como

coloca Pasta, Brecht não deve ser encarado “numa espécie de anti-Aristóteles

exacerbado e raivoso, que tivesse eleito um tanto gratuitamente o estagirita

como cavalo de batalha ou trampolim ocasional para suas próprias

‘elucubrações teóricas’”. [PASTA, 2010, p.219]

Passado o trabalhoso capítulo, escolhido para ilustrar os motivos que

fizeram nascer o projeto empreendido por Brecht, o foco foram as discussões

mais recentes, das quais ele próprio participou. O segundo capítulo se

concentrou em analisar como Brecht situou o seu trabalho e a que atitude isso

o levou. Além disso, discutiu o modo como seu projeto foi recebido pela crítica

de seu tempo e que influência determinante isso teve para seu trabalho. No

centro está a recepção de Lukács e o confronto com Brecht.

Numa orientação que propõe tornar mais claras as aspirações que

inspiraram o desenvolvimento desse novo tipo de teatro, pensado e

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experimentado por Brecht, o terceiro capítulo teve o intuito de defender a

segunda fase de Brecht, considerada aqui como a que justifica o seu legado

que foi projetado para ser levado adiante. O que interessou nesse capítulo foi

mostrar como esse modo de pensar a participação do teatro na sociedade se

tornou inédito e como a articulação resultante da combinação entre teoria e

prática que Brecht fez conseguiu romper com a forma tradicional de um modo

muito específico. Para orientar melhor a proposta deste capítulo, a partir de

Williams, a peça A vida de Galileu foi usada a exemplo do Brecht defendido da

segunda fase.

Num quarto momento a análise foi direcionada para as interpretações

mais recentes de Brecht e as apropriações de sua obra. No teatro atual é

possível perceber a grande influência de uma visão do Teatro Épico, porém,

normalmente a discussão recai num resumo das técnicas, perdendo o seu

caráter mais fundamental, que tem a ver com a causa (Grund). Com atenção à

realidade, a preocupação de Brecht continua latente hoje. Ela é – ou deveria

ser – a mesma, porque não se dissipou, mas, ao contrário, apenas se perdeu

em algum lugar, junto à reflexão sobre a arte e sobre o teatro. Assim como foi

feito com as leituras dos autores anteriores, muitos intérpretes compactuaram

para que também ele fosse aprisionado junto à corrente do que é institucional.

Hoje, infelizmente, embora ele seja reconhecido como clássico da literatura

alemã e seus textos sejam ditos com grande eloquência nos grandes teatros,

muitos poucos são usados para o mesmo fim para o qual foram escritos. Por

enquanto, restam as suas palavras e a evidência de que a proposta que ele fez

muitas vezes continua presa ao papel até hoje:

“E é precisamente porque a natureza da sociedade humana – em contraposição com a Natureza em geral – que tem permanecido, até hoje, obscura, que nos encontramos, como nos asseguram os cientistas, perplexos perante a possibilidade de um aniquilamento total de nosso planeta, que ainda mal conseguimos tornar habitável. (...) Nada mais será preciso acrescentar a estas breves notas (uma contribuição amigável para sua controvérsia), senão o meu parecer sobre o problema em causa: creio que o mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido como um mundo suscetível de modificação.” [BRECHT, 2005, p.21]

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Capítulo 1. Brecht e o modelo tradicional de Teatro

1.1 Brecht e a descoberta da nova função da Arte

Que acontecimentos da História foram determinantes para construir a

perspectiva de Bertolt Brecht acerca da profunda crise do drama, e, assim, que

o estimularam para propor a formulação de um novo modelo de representação

para o teatro? A aproximação de alguns processos históricos é chave

necessária para compreender mais profundamente como, para cada período

na história, sempre houve um lugar determinado para a arte dentro da

sociedade; ou seja, como ela de alguma forma sempre desempenhou uma

função social. Foi nessa ideia, pelo menos, que Brecht se apoiou para construir

seu pensamento, o qual o levou a discutir a nova função para a arte proposta

pelo seu tempo. Desde o início, parecia haver somente uma saída, diante das

expectativas frustradas geradas pela construção do mundo moderno: o teatro

precisava voltar urgentemente ao lugar que unia diversão e reflexão sobre os

fatos da vida.

Entretanto, naquele tempo o clima era de desacordo. Nos palcos eram

mostradas exibições falsas sobre a vida, que coincidiram quando ambas as

tradições, aristocrática e burguesa, resolveram ignorar de forma abrupta os

questionamentos da sociedade, conferindo-lhes um olhar superficial através de

representações pomposas. O culto a esse tipo de exibição serviu para

evidenciar a origem da crise da arte e também para a análise de Brecht:

É extremamente importante descobrir um estilo de representação que seja simultaneamente artístico e natural. Em virtude da confusão babilônicas de estilos que reina nos palcos europeus, tal busca oferece sérias dificuldades. Existem, no fundo, dois estilos de representação nos palcos contemporâneos, estilos estes que nos aparecem, todavia, relativamente fundidos. O estilo ‘elevado’, elaborado para obra poética de fôlego e que é também possível aplicar às peças de juventude de Ibsen, ainda se encontra à nossa disposição, se bem que num estado algo conturbado. Mais do que substituído, ele foi completado pela segunda forma de representação existente, a naturalista; estas duas formas de representação têm coexistido, tal como o barco (a vela) e o barco a vapor. O estilo ‘elevado’ era, anteriormente, reservado exclusivamente para peças não-realistas, e as peças realistas tinham que se arranjar como quer

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que fosse, ‘sem estilo’. Teatro estilizado significava o mesmo que teatro elevado. No primeiro período (o mais vigoroso) do naturalismo, copiava-se a Natureza tão fielmente que qualquer elemento estilístico seria considerado artificial. Quando o naturalismo enfraqueceu, travou compromisso múltiplos; hoje em dia, vemos também nas peças realistas uma mistura característica de desleixo e declamação. Desta mistura não se pode esperar nada. A forma elevada de representação apenas sobrevive, ainda neste coquetel, com a falta de naturalidade, a artificialidade, o esquematismo e a afetação em que tombou antes de ceder lugar ao naturalismo. E do naturalismo do período áureo apenas sobrevive o caráter aleatório e informe, a falta de imaginação, que o caracterizam mesmo no seu melhor período. É, assim, necessário procurar novos caminhos. [BRECHT, 2005, p. 115]

Porém, o clima de desilusão era anterior aos questionamentos que

surgiram na época de Brecht, que também discutiam a relação entre a

mudança da função da arte e os frutos gerados pelo modo de organização

capitalista. As coisas tinham seguido um rumo distante daquele esperado como

resultado da Revolução Francesa e do Iluminismo na França, e do

Esclarecimento (Aufklärung) na Alemanha. Com isso, quando Brecht e seus

contemporâneos começaram a buscar soluções para a crise da arte e a pensar

nos problemas da sociedade de uma forma geral é porque percebiam a

importância em não repetir escolhas como aquelas. Naquele momento, estava

em pauta o destino das novas gerações e, apesar do otimismo de Karl Marx ao

defender a hipótese do capitalismo evoluir para uma grande sociedade

igualitária, no começo do século XX todos eram intimidados pelo sistema

explorador, em seu auge, de forma ainda bem pouco consciente. Assim, era

preciso tomar cuidado com o que viria a seguir.

Por conseguinte, quando Brecht partiu para a análise da tradição - tema

dos próximos itens deste capítulo -, já tinha clara a dimensão da problemática

que o desenvolvimento do sistema capitalista trouxera à arte. Salvo devidas

generalizações, Marx já havia percebido que também a arte passara a ser vista

como produto e, assim, a ter um vínculo direto com o público nesse sentido:

como objeto de consumo e como ponto de fuga para os acontecimentos reais

que desanimavam a sociedade. Se antes o teatro, seus temas e formas de

representação estavam relacionados a uma pompa real, que idealizava a sua

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origem com os gregos, a burguesia certamente submeteu o teatro a uma nova

função social, caracterizada por um estilo chamado Naturalismo1.

Mas, antes de Marx, Hegel já havia anunciado a morte da poesia

romântica. Mesmo assim, e desrespeitando a ruptura exigida pelas mudanças,

principalmente no novo modo de pensar – o científico –, o teatro continuou a

existir sob a mesma forma ultrapassada, ainda derivada de apropriações da

obra de Aristóteles2. Ao mesmo tempo em que ainda se insistia numa estética

com aquelas normas duradouras, pois para os tradicionalistas História e arte

eram dois movimentos separados, a realidade constatada era outro, que

demandava que alguma atitude fosse tomada.

Como uma tentativa burguesa de salvar o drama, surge o naturalismo,

que acabou por agir no sentido contrário, servindo para evidenciar a

decadência de um teatro que exaltava o subjetivismo. A política, a ética e a arte

sofriam também as consequências. A arte mudou a sua função social, mas não

mudou a abordagem. Embora o teatro já não falasse para reis e aristocratas, e

o foco fosse a classe burguesa, a forma dramática que tentaram a todo o custo

manter em pé sofreu uma reformulação: ao invés de ser definitivamente

superada, ela foi adaptada aos temas dos novos “senhores”.

Posteriormente, concluiu-se que, em se tratando de inovações artísticas,

não se fez com o drama mais do que pôr em cena os novos assuntos na

mesma configuração dos velhos, ou seja, sob as formas antigas de

representação. Com o naturalismo ocorre uma troca de personagens e uma

1 “Doutrina que proscreve qualquer idealização do real, e que até se esforça, por reação, por

valorizar sobretudo os aspectos da vida geralmente afastados por serem baixos ou grosseiros e que, no homem, provêm da natureza ... e que ele possui em comum com os animais. (...) O ideal não é aqui senão um real já existente, e mais completo do que o pretenso real que lhe opõem: passar do real ao ideal é passar de uma representação mutilada a uma representação completa daquilo que já existe atualmente e objetivamente; é simplesmente corrigir um erro, no sentido que esta palavra tem na ciência objetiva. Se esta concepção é a de Durkheim, não vejo nenhuma razão para não chama-lo naturalista. Eu chamaria naturalismo a toda doutrina para a qual a realidade, composta, aliás, de não importa que elementos, está completamente feita, e que, por conseguinte, não pode reconhecer um valor próprio irredutível ao conceito de ideal: para o naturalismo tudo é, à nascença, tudo aquilo que pode ser; só que, para concordar com a experiência, é preciso admitir que o conhecimento não se identifica com o ser de seus objetos, por outras palavras à conhecimentos falsos precedendo o conhecimento verdadeiro e que todas as diferenças se reduzem àquela que existe entre o conhecimento idêntico ao ser e o conhecimento não idêntico ao ser. Isto equivale a dizer que o naturalismo sempre levou a admitir pelo menos uma exceção ao seu princípio: o conhecer não é à nascença tudo o que pode ser, é um devir, mas um devir que tem o seu acabamento, a sua perfeição, na identificação com a realidade existente. (M. Bernès)” [LALANDE, 1999, P.719,720] 2 A questão referente à apropriação da obra de Aristóteles será discutida no item 1.3 deste

capítulo.

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banalização dos temas. Ao inaugurar essa nova fase, o teatro passou a ter

também, uma nova função social, que colocou o homem comum, trabalhador,

pai de família no centro das tramas. Mas a mudança não atingiu os níveis que

poderia ter atingido e limitou-se antes aos assuntos do cotidiano burguês,

assim, conformando o teatro a um estilo monótono e supérfluo como aquele

praticado para entreter os aristocratas. A nova abordagem não originou outra

espécie de diálogo no campo da arte, que oferecesse questionamentos à

sociedade, mas solidificou a aceitação, por parte dos indivíduos, das coisas

como consequências de um curso natural, que ainda parecia o único caminho

possível.

Como nunca, o teatro assumia posto de aliado aos novos interesses

sociais. Por estes se basearem numa ordem que se fortalecia através do

crescimento econômico, cujo princípio era justamente a desigualdade entre

classes, era interessante que o teatro não falasse de desordem, ou de forças

contrárias que questionassem os efeitos desse crescimento. Ao invés, que ele

emocionasse as pessoas, as quais, diante de representações, eram levadas a

acreditar na existência de uma realidade sem conflitos – o que, por sua vez,

era promessa de uma conduta bem regida; ou seja, transmitir a ideia de que o

caminho que a sociedade seguia era o certo. Dessa forma, num primeiro

momento, a isenção de uma participação da arte que refletisse os verdadeiros

problemas existentes na vida daqueles homens não pareceu problemática; pelo

contrário, ela garantia adesão dos indivíduos a uma espécie de conformismo.

Eles, (os novos e membros-chefes da sociedade) produziam e

colecionavam coisas. Aqueles que tinham dinheiro para administrar como

queriam as suas casas podiam mandar em seus filhos e, assim, sentiam-se

mais livres por possuírem, dentro da sociedade, um valor: o de patriarcas.

Achavam-se soberanos daquela condição e não lhe destinavam muita reflexão,

não se preocupavam, por exemplo, com as massas desfavorecidas por esse

novo sistema. Elas permaneciam esquecidas. Sob o véu de um

desenvolvimento que parecia natural, estavam encobertos os cargos de

explorados e exploradores, o que, em realidade, era como tudo funcionava. A

sociedade racional foi construída mediante essas relações, que apesar de

parecerem novas continuavam baseadas na desigualdade política, econômica

e social, e isso explica por que hoje a história pós- Revolução Francesa é vista

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sob uma nova ótica. Depois dela, os indivíduos não se tornaram mais livres,

nem a sociedade passou a ser igualitária, não havia alimento para todos, e a

ideia de uma mudança estrutural caía em descrédito.

Ora bem, é bastante geral a análise anterior e talvez seja até insuficiente

para explicar em quais valores a burguesia e o sistema capitalista se apoiaram

para se tornarem os centros da sociedade moderna e passarem a influenciar

também a arte. Ainda assim, serve para compreender como, dentro desse

sistema, a única saída para o teatro foi desenvolver uma visão que estivesse

de acordo com essa estrutura – ou que pelo menos não oferecesse nenhuma

espécie de confronto. Ou seja, uma visão derivada de uma consequência

histórico-social e que ao mesmo tempo tornava possível a seguinte verificação:

quando Brecht observa que, em todo o período histórico, o teatro

desempenhava a sua função, seu empreendimento só poderia ser, também, o

de mudar a concepção naturalista que nele surge após a constatação no

século XIX de que existia uma crise do drama e de que a arte em sua nova era

estava ligada à ideia de entretenimento – um modo de diversão alienador, e

que para os indivíduos passou a servir como refúgio do mundo, quando

queriam esquecer um dia duro de trabalho.

Passado o período de excitação da busca por uma hegemonia da razão,

a era científica despertou nos homens algumas preocupações que até então

não existiam. Enquanto o indivíduo se afastava da resolução dos problemas

que diziam respeito ao coletivo, os conflitos do mundo particular tornaram-se

primordiais, e aqueles assuntos restritos, menos gerais e mais limitados,

tomaram a frente no teatro. O resultado é percebido mais tarde, quando o tédio

atinge a cena. O naturalismo caracterizou-se desta forma: os temas teatrais

passaram para o núcleo das relações pessoais, abordando-as de maneira

pouco sólida. Porém, qualquer novidade vinda desse estilo também não

poderia durar muito, uma vez que falar desses assuntos, da forma como se

pretendia, dificultava a sua realização imagética, a encenação de ações

próprias daqueles temas, pois estavam demasiadamente voltados para um

mundo “interior” das personagens. Falar do sujeito tornou-se cada vez mais

difícil: solidão, isolamento, subjetividade e aniquilamento são conceitos que

aparecem no texto de Peter Szondi, Teoria do drama burguês, para

caracterizar o estado do drama quando finalmente se percebeu que ele se

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encontrava em crise e que era preciso superá-la e recuperar a importância do

teatro dentro da cultura.

A partir da segunda metade do século XIX, arriscaram-se algumas

tentativas para livrar o estilo dramático da problemática situação em que se

encontrava. A primeira delas foi precisamente o novo estilo por essência

burguês naturalista, que mostrou-se importante para evidenciar os problemas

que a arte enfrentava e a função social que desde então ela passara a

desempenhar (como explicitado até agora). Além disso, tornou também mais

evidente a crise do drama, acabando de vez com a possibilidade de

permanência do teatro moderno, baseado somente no modelo tradicional. E

por esse motivo, Peter Szondi descreve o naturalismo como fadado ao

fracasso desde seu nascimento. Ele explica que esse estilo, por ter sido uma

tentativa de fuga de um processo histórico que amedrontava a burguesia,

providenciar a decadência cultural do sistema capitalista, só poderia constituir-

se enquanto um drama artificial, já que carecia de motivações externas que,

para existir, não se resumissem tão e somente a ações dramáticas. Anatol

Rosenfeld também apontou para o mesmo problema:

No fundo, o drama rigoroso não se ajusta à tendência básica do naturalismo de pôr no palco a realidade tal qual ela se nos dá empiricamente. Esse empenho não permite a estilização e a seleção severas da tragédia clássica. A vida como tal não tem unidade, os eventos normais não se deixam captar numa ação que tem começo, meio e fim. Na medida em que desejam apresentar no palco apenas um recorte da vida, os autores naturalistas são quase forçados a ‘desdramatizar’ as suas peças para tornar visível o fluir cinzento da existência cotidiana. [ROSENFELD, p.90, 2011]

Em outras palavras, ao tentar fugir dos reais motivos que levaram o

drama à crise e que surgiram a partir de um desacordo entre os novos

conteúdos e a permanência de uma forma dramática tradicional – ou seja,

quando a burguesia optou por não encará-los e partiu para um movimento

contrário – no mesmo sentido desviou-se da possibilidade de salvação e

encontrou a superficialidade. Quando Szondi aponta para o problema que o

naturalismo enfrentou, que parece ser semelhante ao que Brecht também

encontrará mais tarde no realismo socialista, tem em vista mais uma vez a

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ideia de reforma do drama tradicional que Brecht tentará superar. Nas palavras

de José Antonio Pasta Jr., presentes na apresentação do livro de Szondi:

o ‘naturalismo’ se revelará uma escolha finalmente conservadora, mesmo regressiva, por abrigar-se, na representação compassiva do proletariado, como última instância de ‘naturalidade’, contra a fratura que cindia igualmente todos os indivíduos e o conjunto da sociedade. [PASTA, in SZONDI, 2001, p.16]

Se a escolha de heróis pobres a partir da perspectiva do burguês trouxe

ao naturalismo um olhar distanciado, isso aconteceu sem que tivesse sido

previsto; não foi algo pensado para fazer as classes refletirem, ou para elas

não se identificarem com os acontecimentos do palco. A decorrência disso é

que aquele movimento não fez ninguém mais consciente da realidade do

sistema e da condição indigna dos homens, ao invés, surgiu quase sem querer,

resultando na criação de um estereótipo para a classe baixa. E, mesmo não

encontrando uma aproximação real com o povo, esse drama também já não

pertencia à burguesia como antes, e, como bem identificou Brecht, tampouco o

teatro poderia pertencer mais uma vez apenas ao gênero dramático. Mesmo

que de forma superficial, um narrador distante já tinha sido chamado3. Nessa

aparição parcial do gênero épico, algo se rompeu dentro da cena naturalista e

ali inaugurou uma nova função social:

A história do teatro moderno começa com o naturalismo. Foi aí que se deram os primeiros movimentos definidos em direção a uma nova função social. A tentativa de dominar a realidade começa com dramaturgos passivos e heróis passivos. O estabelecimento da causalidade social tem início com descrições de situações. Em todas, as ações humanas são puras reações. Causalidade é premeditação. Típica é a peça de explosão. Nuvens se concentram em cima da cabeça de certas pessoas, de famílias, de grupos, aí rebenta a tempestade. O meio social tem o caráter de um fetiche, é destino. A gente representa o último ato de qualquer coisa. O novo drama começa com o não-dramático. [BRECHT, 2002, p.150]

A alienação dos indivíduos permitia um desinteresse pelos problemas da

realidade, onde o homem, ao invés de se aproximar, afastou-se cada vez mais

3 “o pano de fundo dos homens que agem e a atmosfera em que se movem passam a ser visíveis somente ao poeta que está diante deles ou os frequenta como estranho: ao narrador épico. Essa relativização do drama em função do narrador, que ele pressupõe enquanto drama naturalista, espelha-se em sua parte interna como relativização das personagens em função do meio, o qual lhes parece alienado.” [SZONDI, 2001, p.103]

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de si e dos outros. Permanecia em aberto a sensação de que era necessário

fazer algo que aproximasse os homens de sua situação real. Para tanto, eles

precisavam se interessar antes por compreendê-la:

As falsas reproduções da vida real que eram efetuadas nos palcos, incluindo as do chamado naturalismo, levaram-no a solicitar reproduções cientificamente exatas, e o insípido espírito de ‘iguaria’, de deleite sensaborão através dos olhos e da alma, levaram-no a exigir a excelente lógica da tabuada. Este teatro rejeitou, com desdém, o culto do belo, culto então alimentado ao lado de uma aversão ao saber e de um desprezo pelo útil; e o que induziu a essa renúncia foi, sobretudo, a circunstância de não estar produzindo nada de belo naquela época. Aspirava-se a um teatro próprio de uma época cientifica e, como era muito difícil para os planejadores desse teatro requisitar ou furtar do arsenal dos conceitos estéticos vigentes sequer apenas o bastante para manter os estetas da imprensa à distância, preferiram simplesmente ameaçar afirmando o seguinte propósito: ‘extrair do instrumento de prazer um objeto didático e reformar determinadas instituições transformando-as de locais de diversão em órgãos de divulgação, ou seja, emigrar do reino do aprazível. A estética, legado de uma classe depravada que se tornara parasitária, encontrava-se num estado tão deplorável que um teatro que preferisse apodar-se de theater logo adquiria, por si, tanto prestígio como liberdade de ação. [BRECHT, 2005, p.126]

Nessa época, no auge do descompasso entre teatro e vida, alguns

grupos de artistas ao verem a situação se escancarar e temendo maiores

efeitos, passam a se expressar dentro do caos. Em busca de um

desnudamento da realidade e ao mesmo tempo da negação de uma condição

estabelecida, surge mais uma das tentativas de salvamento da arte, as

Vanguardas artísticas no começo do século XX. A distância que crescia entre

os homens, a vida e a arte resulta em questionamentos como: Qual é a função

da arte na sociedade? Qual deve ser o papel dos artistas quando a realidade

se apresenta como caótica? A respeito da atitude desses artistas, Walter

Benjamin em Experiência e Pobreza compreende-a como um ato de barbárie

que foi positiva na medida em que denunciava o fim da experiência:

Essa atitude é a oposta da que é determinada pelo hábito, num salão burguês. Nele, o ‘interior’ obriga o habitante a adquirir o máximo possível de hábitos, que se ajustam melhor a esse interior que a ele próprio. Isso pode ser compreendido por qualquer pessoa que se lembra ainda da indignação grotesca que acometia o ocupante desses espaços de pelúcia quando algum objeto da sua casa se quebrava. Mesmo seu modo de encolerizar-se – e essa emoção, que

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começa a extinguir-se, era manipulada com grande virtuosismo – era antes de mais nada a reação de um homem cujos ‘vestígios sobre a terra’ estavam sendo abolidos. Tudo isso foi eliminado por Scheerbart com seu vidro e pelo Bauhaus com seu aço: eles criaram espaços em que é difícil deixar rastros. ‘Pelo que foi dito’, explicou Scheerbart há vinte anos, ‘podemos falar de uma cultura de vidro’. O novo ambiente de vidro mudará completamente os homens. Deve-se apenas esperar que a nova cultura de vidro não encontre muitos adversários” [BENJAMIN, 1994, 118]

Aqueles artistas, diante de um quadro de muita instabilidade, incerteza e

medo, antes e durante a Primeira Grande Guerra, quiseram anunciar o que

lhes atormentava enquanto seres que viam a humanidade caminhar no sentido

da desumanização. Num mundo que só crescia, era urgente entender por que

tudo estava acontecendo daquela forma e por que os artistas tinham ainda de

se submeter às formas tradicionais, quando estas não mais serviam para

expressar o que viam. Como dariam vida artística à percepção de que o mundo

caminhava numa direção com a qual eles não concordavam? Será que aquilo

era o que restava à humanidade e ao homem? O aniquilamento da vida?

Cansados de aderirem a uma relação doente com a arte, cansados de se

submeterem àquelas condições para corresponder às expectativas do capital,

rebelaram-se pelas vias da expressão artística:

Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, as vanguardas não se contentam mais em afirmar a vinda da arte moderna. Elas manifestam sua angústia do futuro, mistura de fascinação e revolta numa época em que os lustres da Belle Époque se apagam um por um sob o sopro das revoluções sociais e políticas. Até mesmo a adesão aos novos mitos da industrialização e da técnica adquire um tom de rebelião. ‘Manifesto’ é doravante a palavra da moda, perfeitamente apropriada para expressar a virulência das reivindicações. [JIMENEZ, 1999, p.287]

Dentre esses movimentos, em particular o Expressionismo foi o

movimento do qual Brecht mais intimamente se aproximou. Durante muito

tempo, ele foi símbolo para seu lado inconformado com a realidade da arte e

do mundo − embora mais tarde ele tenha percebido uma cisão entre aquele

modo de fazer arte e o seu. Por ter surgido primeiro na Alemanha e ter sido

considerado um dos movimentos mais importantes para a arte alemã da época,

o Expressionismo alcançou também um papel de destaque em relação às artes

cênicas. A vanguarda expressionista compreendia a arte como um retorno às

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instâncias profundas do sujeito, em que as formas de expressão existentes não

eram suficientes para falar das verdadeiras aflições daquele tempo.

Em suma, esse movimento foi caracterizado: “o vazio formal do eu

precipita e converte-se no princípio expressionista, na ‘deformação subjetiva’

do objetivo” [Szondi, 2001, p.125]. Iniciado de dentro do eu, essa vanguarda

tentou expressar o que ali havia que não se calava. Szondi insiste ainda que o

que possibilitou ao Expressionismo toda a arrebatada explosão de criatividade,

em primeiro lugar, foi a posição isolada que aqueles artistas tomaram frente ao

mundo.

Assim, pensando que essa observação antecipa a relação pretendida por

esta dissertação, de aproximar Brecht do Expressionismo, é indispensável

destacar que na ação desse movimento Brecht descobriu algo que adiante seria

muito útil na construção do Teatro Épico: a técnica de estranhamento. Ao causar

estranhamento no indivíduo por meio de criações artísticas fundamentalmente

abstratas, ao invés de este permanecer em seu ambiente de conforto − alienado

dentro de uma ideia pronta, como era o caso da arte tradicional − conseguiu-se

que ele saísse de uma forma ainda incerta de que direção seguir. Tendo retirado

o espectador do estado de inércia, Brecht percebeu a grandeza que a

provocação de um susto, ou aparecimento de algo estranho em meio à

normalidade, poderia ter para a função da arte, que a partir dali tinha a intenção

de fazer com que os espectadores saíssem do teatro diferentes de quando

tivessem entrado, mesmo que o resultado disso fosse incerto4.

Elementos da vida que tinham sido esquecidos voltaram a ser

abordados por esses artistas que denunciaram o esquecimento, quando

resolveram “esvaziar” seus corpos e mentes de todas as emoções e

sentimentos que dentro do sistema apenas assimilavam5. O resultado, ainda

4Adiante será tratado mais profundamente o distanciamento no sentido de Brecht, porém é

visível a influência dos expressionistas dentro do olhar do autor em questão. 5 [BENJAMIN, 1994, p. 119]: “Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos

pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’. A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém, os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram de novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha

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que não tenha gerado plena consciência do que acontecia, gerou um olhar

mais “acordado”, que, por sua vez, possibilitou ver de forma mais distanciada

alguns fatos que antes eram simplesmente assimilados sem qualquer

julgamento. Um olhar atento, que poderia se destinar a recomeçar e a tentar

salvar a arte não mais através do olhar viciado da burguesia:

O homem é visto pelo expressionismo, conscientemente, como abstractum. E, com a renúncia altiva às relações intersubjetivas, que devem velar a ‘imagem do humano’, sucede a recusa da forma dramática, que para o dramaturgo moderno se nega a si mesma porque aquelas relações se tornaram frágeis. [SZONDI, 2001, p.126-127]

Sim, as relações tornaram-se frágeis, mas revertendo-se a situação, elas

poderiam tornar-se fortes, e o homem poderia encontrar a transformação,

fazendo nascer algo novo com relação à vida e à arte. Foi nisso que acreditou

Brecht, e com esse intento que começou um trabalho responsável por pensar

em que nível se daria uma mudança de função da arte efetiva. Como visto, a

cultura ocidental seguia ligada a uma estrutura empenhada em produzir no

palco fantasias em relação à vida, ditando preceitos morais sobre certo e

errado, para o bem de uma “ordem” social. Se não se empenhasse em mudar

drasticamente essa configuração que limitava os alcances do pensar, seria

muito difícil que alguma mudança se concretizasse e consequentemente

tornasse possível o acesso da arte às vias do pensamento e às capacidades

que julgava propiciadoras de uma transformação da sociedade.

Antes de chegar a Brecht, depois de falar do expressionismo como uma

das tentativas de salvamento do drama, Szondi passa a sua análise por Erwin

Piscator, considerado pressuposto de referência para Brecht e o teatro político.

Isso porque Piscator, afinal, desenvolveu o teatro político − ainda que para

Brecht ele adquira um novo sentido. Ambos foram herdeiros do naturalismo,

aponta Szondi, quando o teatro passou a abordar as temáticas sociais e delas,

então, se originou. Dessa forma, assim como o expressionismo, o movimento

de Piscator também abriu portas para o teatro pensado por Brecht. Seu

principal mérito reside na seguinte observação:

aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e os juros dos juros.”

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(...) Piscator corrige a falsificação que o ‘drama social’ comete necessariamente com a oposição entre o estado alienado e reificado no plano temático e a imediatez intersubjetiva no campo do postulado formal. Ao processo histórico de reificação e de ‘socialização’, que a transposição dramática para o intersubjetivo inverte e suprime, Piscator assegura a forma adequada invertendo novamente a encenação. [SZONDI, 2001, p.129]

Um processo de abertura às experiências que pensavam a mudança de

função da arte6 já tinha sido iniciado quando Brecht começou a trabalhar com o

teatro. Sua concepção atribui ao teatro a função de emancipar o sujeito, o que

o motivou a ir além da explosão do expressionismo e do modo político em

Piscator e seguir potencializado por todos os movimentos que aconteciam no

campo da arte e que confirmavam a possibilidade de uma grande mudança.

Como essa ideia será desenvolvida mais adiante, o que vale comentar neste

momento é que Brecht afastou-se de Piscator pois acabou compreendendo

que o teatro ia além da política, e a dimensão social adquiria novas proporções.

Pouco preocupado com o desenvolvimento propriamente artístico do teatro

político, Piscator acabou transformando o palco em lugar de propaganda

política, e isso faz Brecht admirá-lo, mas pretender outra coisa. Contra a apatia

e a passividade dos indivíduos frente aos acontecimentos de nível social,

Brecht parte da seguinte elaboração:

A problematização das relações intersubjetivas coloca em questão o próprio drama, visto que sua forma as afirma justamente como não problemáticas. Daí a tentativa de Brecht de opor ao drama ‘aristotélico’ – teórica e praticamente – um drama épico e ‘não-aristotélico’. [SZONDI, 2001, p.134]

6 “Qual rumo a seguir? A fusão das duas formas de representação – a romântico-classicista e a naturalista-, num coquetel romântico- naturalista, foi uma síntese de fraquezas. Dois rivais titubeantes que se agarravam um ao outro para não tombarem redondamente no chão. A fusão produziu-se, quase inconscientemente, por concessões mútuas, por desistências tácitas de princípios, por corrupção, em suma. Todavia, tal síntese, consciente e vigorosamente realizada, seria a solução. A oposição entre arte e Natureza pode ser transformada numa oposição fecunda, se, em vez de eliminá-la da obra de arte, lhe dermos coesão. Tínhamos, assim, por um lado, uma arte que criava para si própria sua Natureza, seu mundo, um mundo que era precisamente o da arte, que pouco tinha a ver e pouco queria ter a ver com o mundo real; e tínhamos, por outro lado, uma arte que se esgotava copiando o mundo, apenas, e que desse modo consumia quase completamente a sua fantasia. O que nós ora precisamos de fato é de uma arte que domine a Natureza, necessitamos de uma realidade moldada pela arte e de uma arte natural.” [BRECHT, 2005, p.116]

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Esse novo drama que será chamado de não-aristotélico, antes de

qualquer coisa, exigia uma grande participação do espectador, e isso, aliado a

toda a estrutura épica, resulta numa mudança completa da relação entre o

teatro e a diversão:

O processo sobre o palco já não esgota completamente a encenação, ao contrário do que se dava no drama, em cujo seio a encenação ocupava papel secundário (o que é historicamente apreensível com o desaparecimento do prólogo no Renascimento). O processo é objeto de narrativa do teatro, que se relaciona com ele como o narrador épico faz com o seu objeto: só da contraposição de ambos resulta a totalidade do espetáculo. Da mesma maneira, o espectador não é deixado de fora do espetáculo, tampouco é sugestivamente envolvido (‘iludido’) nele de modo que deixe de ser espectador, mas é contraposto ao processo como espectador, e o processo lhe é apresentado como objeto de sua consideração. Visto que a ação da obra não se constitui em domínio exclusivo, ela já não pode mais metamorfosear o tempo da representação em uma sequência absoluta de presentes. O presente da representação é como que mais largo que o da ação; por isso, o olhar fica atento não apenas ao desfecho, mas também no andamento e ao que passou. No lugar da direção dramática com objetivos definidos entra a liberdade épica de demorar-se e repensar. Visto que o homem agente não é mais que objeto do teatro, é possível ir além dele e perguntar por motivos de sua ação. De acordo com Hegel, o drama mostra somente o que no ato do herói se objetiva a partir de sua subjetividade e o que subjetiva a partir da objetividade. Ao contrário, no teatro épico, em correspondência com sua intenção sociológica e cientifica, há uma reflexão sobre a ‘infra-estrutura’ social dos atos em sua alienação objetiva. [SZONDI, 2001, p.136]

Assim, já não há na proposta de teatro de Brecht a diversão ao modo

burguês, como entretenimento. O palco emociona, mas não ilude. A diversão

adquire um novo sentido, que cobra atividade do público. Brecht acreditava

que, ao se cobrar essa atividade, as pessoas solicitadas perceberiam a

importância da presença delas para a constituição da sociedade, ou seja, como

produtoras e colaboradoras de um meio comum.

Isso também servirá como uma ligação entre a arte e a educação, que

funciona para repensar o ensino quando se fala da participação do sujeito em

sua própria formação. Ele não é formado por seus mestres, mas por ele

mesmo, e quanto maior o alcance dos questionamentos, pressupõe-se um

interesse maior também. Movidas por ele, as pessoas se aproximariam da

possibilidade de redescobrir a diversão, que deixa de ser mera distração

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superficial que nada acrescenta aos indivíduos. Desse novo modo, eles podem

por eles mesmos adquirir conhecimento e a isso atribuírem um prazer imenso:

É voz corrente que existe uma diferença marcante entre aprender e divertir-se. É possível que aprender seja útil, mas só divertir-se é agradável. É preciso defender o teatro épico contra qualquer possível suspeita de se tratar de um teatro profundamente desagradável, tristonho e fatigante. [BRECHT, 2005, p. 67]

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1.2 A crítica de Brecht à tradição

O que permanece obscura é a fonte do fracasso. Será que as formas de arte têm seu ciclo de vida prescrito? Talvez não exista principio de conservação na energia poética. É evidente que o empreendimento grego e elizabetano parecem repousar sobre as costas de todo o drama posterior com um peso fatigante do precedente. Ou será que o coração da crise se encontra no interior da sociedade? Será que os poetas dramáticos do século XIX fracassaram em produzir boas peças porque não tinham teatros necessários nem o requisito do público à disposição? GEORGE STEINER

O drama que se desenvolveu antes da Revolução Francesa, apesar de

permeado por uma série de aspectos burgueses, como analisou Szondi, ainda

não se tratava daquele que será o drama burguês em crise, visto na parte anterior,

que atinge seu auge com o Naturalismo. A obra de Szondi, Teoria do drama

burguês, assim como a crítica de Brecht, percorre todo o conjunto de autores que

deram início ao processo de descoberta da nova posição do teatro e que foram

responsáveis também pelo modo como o drama burguês se desenvolveu.

O teatro do século XVIII e começo do XIX, como se verá, era ainda

bastante distinto em sua prática do teatro burguês do final do século XIX. É isso

o que Brecht percebe, e esta segunda parte do capítulo destina-se justamente a

essa análise que ele dirigiu a alguns autores tradicionais do teatro, na tentativa

de tornar mais claro o que era preciso combater nessa tradição. Para guiar este

texto, buscou-se alguns de seus trechos reunidos em Estudos sobre teatro e

Diário de Trabalho – vol. 1. A intenção é compreender como começou e se

desenvolveu a crítica do dramaturgo alemão, uma crítica que se estabelece

principalmente no período pós- Revolução Francesa (1789-1789).

Sabe-se que antes de alcançar esse novo momento na história do

Ocidente, mais próximo da realidade moderna e da nova postura adquirida pelo

teatro, Brecht direcionou sua atenção para a pesquisa dos fatores históricos

específicos desse período. Estes determinaram adiante o seu modo de pensar

e a radicalidade a que se reportaria o teatro, que ele pensou como forma de

efetuar uma transformação completa das bases que compunham a

representação teatral aristotélica, a qual se refere durante o seu trabalho.

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Nas interpretações mais recentes, observou-se que já antes havia

dúvidas quanto ao alcance das mudanças sociais que a revolução poderia

promover. Hoje, já com o olhar do presente, há uma vasta reflexão sobre os

limites que atingiu. Avalia-se até que ponto ela teria evoluído em relação ao

que realmente defendeu, uma vez que acabou priorizando os interesses de

uma determinada classe. De qualquer forma, foi às vésperas da Revolução

Francesa que se deu o primeiro grande confronto entre o velho e o novo. Este

mudou para sempre as relações entre os homens, inclusive no campo da arte,

fazendo surgir no teatro uma reflexão que começa a questionar o

aprisionamento às formas tradicionais de representação, fazendo com que as

novas frentes teóricas se ocupassem dos possíveis futuros do drama.

Um retorno a esse passado, anterior e posterior à revolução,

desempenhou um papel importante no trabalho de Brecht. Ele quis diferenciar

os movimentos que desejaram superar a condição tradicional de representação

daqueles que simplesmente se adaptaram, recorrendo a antigos modelos –

sendo que o segundo caso mostrou-se a Brecht como fonte de problemas para

o drama. Sua investida talvez fique mais clara se se retomar a ideia do alcance

de revoluções como a francesa. Brecht se empenhou em arquitetar, próximo

aos de seu tempo, uma mudança no teatro, mais transformadora do que a

anterior havia sido. É, portanto, natural que quisesse voltar a certos eventos e

autores dessa época, a fim de que, ao verificar os desvios, pudesse pensar

algo para além de uma adaptação econômico-social. Nesse retorno, o que

Brecht percebeu é que muitos daqueles considerados tradicionais haviam se

afastado do que poderia ter se tornado uma verdadeira transformação, ao

decidir priorizar o apego à antiga forma de representação:

a tragédia deixou de ser realidade formal da representação, substituída pelo drama, mas persistiu como especulação estética e como consciência crítica do real. Na outra ponta, décadas depois, o drama se torna impossível como forma de totalização subjetiva. Sua superação produtiva só será alcançada por aqueles dramaturgos capazes de inventar modos narrativos de encenar ações individuais como parte de processos mais amplos, capazes de mostrar novamente relações supra-individuais, o que exigiu uma superação entre sujeito da representação e objeto representado.

1 [CARVALHO,

apud SZONDI, 2004 p.11]

1 Nessa citação, presente na apresentação ao livro de Szondi, Sérgio Carvalho reitera e

antecipa a reflexão que se quer desenvolver sobre a presença dos elementos estéticos trágicos

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Como a mudança atingiu os assuntos presentes no drama, que por sua

vez renasce a partir desse período? Como e por que isso aconteceu, e para

que tipificação se dirigiu o drama é o que se pretende investigar aqui, seguindo

alguns dos exemplos dados por Brecht. No que diz respeito à vitória da ciência

nas almas humanas, cujo fundamento era um pensamento primordialmente

racional, quais são os novos ideais estéticos que surgem daí em diante? Em

que medida a transformação moral do homem no século XVII interferiu no rumo

do teatro? Anterior à Revolução, o teatro do final do século XVII é pioneiro do

nascimento de um conflito de ideais, que nunca foi solucionado. Ao invés,

permaneceu e ganhou novas proporções na segunda metade do século XVIII,

quando se desenvolveu o pensamento iluminista francês, que teve influência

direta dentro da arte, estendendo-se também para as teorias sobre teatro.

Nesse período, de um lado existiam as representações da tragédia grega, a

qual constantemente sofria apropriações pelos adeptos do neoclássico, que a

interpretavam como convinha aos interesses da época. Por outro lado, porém,

já era possível vislumbrar que o futuro do drama (ainda incerto) se distanciava

dos interesses trágicos clássicos conservados até então. O indivíduo

gradualmente passava a ocupar posto no centro do conhecimento e, por

consequência, também das temáticas do drama − o que não seria permitido se

se tratasse de um ambiente trágico.

Antes disso, entretanto, figuras emblemáticas do teatro como William

Shakespeare, por exemplo, trouxeram novos tons à história do teatro.

Shakespeare foi responsável por retratar a tragédia de uma forma ainda não

vista, e é por esse motivo que até hoje é considerado uma exceção na história

do teatro. A importância deste dramaturgo para as épocas futuras, como observa

Raymond Williams em Tragédia Moderna, reside no fato de ele ter dado à ideia

de trágico uma nova leitura. Brecht reflete sobre o dramaturgo inglês e aponta

para a especulação segundo a qual suas peças não foram escritas apenas por

ele, mas por um coletivo, o que lhe interessa enquanto reflexão:

mesmo após a mudança do drama, culminando em sua crise, e a tentativa de superação desses elementos por parte de autores como Brecht.

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o que me leva a pensar que um pequeno coletivo produziu as peças de Shakespeare não é que eu acredite que uma pessoa sozinha não poderia ter escrito essas peças porque uma pessoa sozinha não poderia ter tanto talento poético, ser versada em tantos assuntos e ter uma tão vasta educação geral. Só acho que tecnicamente as peças são montadas de um modo que me induz a acreditar que eu reconheço nelas os métodos de trabalho de um coletivo. (...) O uso de peças antigas, a necessidade de formar um repertório, a redação de papeis para determinados atores, o caráter das peças que mais parecem cópias com anotações para o ponto, os papeis apressadamente alinhavados, o amor ingênuo ao teatro, o engenhoso artesanato, o fato de os elementos líricos e os filosóficos serem totalmente teatrais e destituídos de qualquer existência independente, tudo isso indica que o autor pode ter sido um ator ou diretor de cena. [BRECHT, 2002, p.144]

De qualquer forma, Shakespeare se destaca entre os demais autores na

história do teatro e é tratado como exceção pelo fato de, ao privilegiar os temas

próprios da Era Elisabetana em suas peças – que se dirigiram à vida humana e

à condição do indivíduo –, ele não se limitou às regras clássicas da forma

trágica. Chegou inclusive a ignorar muitas delas e quando o fez, e porque o fez,

abriu um novo leque de possibilidades para as obras futuras, uma vez que

através dessa “desobediência às regras” concedeu certa liberdade aos artistas.

Hoje, mesmo não havendo escritos teóricos desse autor que pudessem atestar

sua intenção de inaugurar um estilo próprio, reconhece-se que sua obra, além

de trazer para o teatro uma nova qualidade, foi a primeira a realmente se

estabelecer como um modelo que fizesse frente à tragédia clássica francesa.

Ao não seguir à risca as exigências da tragédia clássica, preferindo

adequar-se às condições exigidas pela época, Shakespeare

despretensiosamente2 fez ver para além do confronto entre o novo e o velho –

o que será bastante usado pelos iluministas – como o teatro sempre

desempenhara uma função social e como ela sempre fora histórica, tendo em

cada período o seu sentido particular. Nota-se que essa função não podia mais

restringir-se à aristocracia, mas precisava falar do povo, pois, como comenta

Anatol Rosenfeld, ao agir diretamente sobre as pessoas, o teatro não tinha a

função de apenas divertir, mas de falar qualquer coisa sobre cada época,

2 “A maior parte dos dramas modernos tem sido escrita para demolir uma teoria antiga ou provar

uma nova. Nenhuma outra forma literária tem sido tão sobrecarregada por conflitos de definição e objetivo. Os teatros ateniense e elisabetano foram inocentes do debate teórico. As Poéticas são concebidas depois do fato, e Shakespeare não deixou manual de estilo. No século XVII, essa inocência e a consequente liberdade da vida imaginativa estavam perdidas para sempre. Daí em diante, os dramaturgos tornaram-se críticos teóricos.” [STEINER, 2006, p. 23]

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cedendo espaço para as construções morais de seu tempo. Por isso, saber de

outras direções dadas à tragédia e perceber que Shakespeare inaugurara uma

corrente de novas ideias tornou-se posteriormente importante para a discussão

sobre a forma tradicional. Raymond Williams atentou para essa diferença e

mostrou a proximidade disso com aquilo que servirá como assunto para a

posteridade, e que interessa a todos que buscam uma compreensão mais

plena da história e de como se desenvolveu o teatro:

No corrente contraste verbal entre tradicional e moderno, há sempre uma pressão para comprimir e unificar as variadas reflexões do passado em uma única tradição, ‘a’ tradição. No caso da tragédia, há pressões adicionais de um tipo específico: a suposição da existência de uma tradição comum greco- cristã, que deu origem à civilização ocidental. A tragédia é, à primeira vista, um dos mais simples e poderosos exemplos dessa continuidade cultural. Ela une, culturalmente, gregos e elisabetanos. Congrega helenos e cristãos em uma atividade comum. É fácil ver quão conveniente e indispensável é essa ideia de tragédia. A maioria dos estudos sobre o assunto foi de forma inconsciente determinada justamente por essa suposição e por um desejo de difundir e propagar essa interpretação. Em certas épocas da nossa própria história, a revitalização da tragédia foi uma estratégia estabelecida pela consciência da necessidade de uma tradição. Em nosso século, especialmente, em que houve uma impressão muito difundida de que aquela civilização estaria sendo ameaçada, o uso da ideia de tragédia para definir toda uma importante tradição em vias de ser destruída por um presente ingovernável tornou-se bastante evidente. E no entanto o que está em jogo não é meramente uma questão que vá contra essa suposição: a de que não haja uma tal continuidade. O que está implicado, aqui, é mais a compreensão de que uma tradição não é o passado, mas uma interpretação do passado: uma seleção e avaliação daqueles que nos antecederam, mais do que um registro neutro. E, se assim é, o presente, em qualquer época, é um fator na seleção e na avaliação. Não é o contraste, mas a relação entre o moderno e tradicional aquilo que interessa ao historiador da cultura. [WILLIAMS, 2002, p.34]

Assim, quando se pensa a retomada da tragédia clássica na história do

teatro e se descobre que ela sempre teve uma função, é possível perceber o

quanto aquele processo histórico de conflitos e de aspectos contraditórios foi

decisivo para o teatro. Tais conflitos não podem ser ignorados porque permitem

compreender melhor o que ocorreu com o Iluminismo, que segundo Peter

Szondi, por se configurar como um movimento heterogêneo, teve como

resultado um drama burguês que já nasceu confuso e que mesmo em meio a tal

confusão pretendia contrapor-se a essa tragédia constantemente revitalizada.

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Szondi atenta para o fato de que antes do século XVIII, quando as teorias

realmente começaram a se debruçar sobre a elaboração de um modelo, havia

dramas que já falavam de heróis e de temas burgueses. Nesse meio, ele cita

obras do tempo de Shakespeare. Com isso, pretende demonstrar que, do

mesmo modo que sempre houve a retomada dos moldes da tragédia clássica,

também em certo momento uma luta passou a existir. Esta, ainda que

inconsciente, não era fruto da simples aparição da nova classe, uma vez que

não se resumiu ao movimento revolucionário surgido na França, mas que talvez

fosse mais bem compreendida se pensada como um transbordamento do novo

frente à forma clássica, naturalmente ultrapassada pelo movimento do tempo.

Em Teoria do drama burguês, Szondi conclui que quando o drama

burguês nasceu não obstante sua intenção enquanto drama sério (genre

sérieux), que buscava aproximar-se mais da nova realidade, ele acabou por

retomar as antigas formas, gerando mais uma vez uma incoerência histórica.

Ao mesmo tempo, dada incoerência não fora prevista pelos primeiros autores

do século XVIII, os quais no momento em que desenvolveram suas teorias não

eram ainda capazes de compreendê-las e fazer com que atingissem a cena.

Havia uma compreensão a nível filosófico que não podia ainda ser

transmitida pela dramaturgia, uma vez que o modelo e as regras formais não

haviam sido repensados, fazendo com que na prática tudo fosse diferente. O

problema entre forma e conteúdo parecia ainda não ter sido percebido, e se tinha,

não havia um debate entre a filosofia e a arte. Nessa época os autores não se

questionavam sobre a inadequação formal, porque a arte ainda era considerada

uma atividade menor, incapacitada de dizer as coisas de forma clara.

Entre os ditos maquinadores da revolução na França no século XVIII

esteve Voltaire, que embora reconhecido como um dos mais importantes

iluministas foi também considerado uma das figuras mais conservadoras dentro

do movimento; seja ao apostar no poder da poesia ao invés da prosa, ao

conservar as três unidades3, ou por negar Shakespeare e colocá-lo no liame

dos autores que ignoraram a antiga ordem regida por “propriedade, ordem e

verossimilhança”. Sobre isso, Carlson comenta:

3 As três unidades de ação – ação, lugar e tempo –, presentes na teoria de Aristóteles como

partes que formam o todo de uma peça, já tinham sido ignoradas por Shakespeare.

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44

Um interesse algo maior no espetáculo visual (especialmente o exótico), embora não a ponto de desafiar a unidade de lugar; uma liberdade algo maior na expressão, embora para não erodir a forma poética francesa tradicional; uma liberdade algo maior no assunto, permitindo que figuras da história francesa se juntem aos gregos e romanos como temas possíveis; e uma nova ênfase no emocional, especialmente o sentimental – isso, essencialmente, exaure as suas inovações. [CARLSON, 1997, p. 142]

Acontece que, assim como Voltaire, muitos iluministas ocuparam-se em

recriar uma ética que não confrontasse os novos interesses dos homens

comuns, que antes de tudo ansiavam por liberdade. Isso por si só já impunha à

ideia de revolução certos limites, e o teatro continuaria, principalmente a partir

desse momento, atrelado a uma nova moral – posto que a mais antiga,

vinculada à Igreja, tornara-se. Ali, ela se empenhava em atender os interesses

da (nova) classe 4, que queria ascender em todos os campos da sociedade e

ditar seus desejos para a arte.

O drama moderno por essência burguês nasce nesse contexto, com a

busca pela significação de uma nova forma de vida e de pensar, sob a qual

ainda não se tinha muito domínio. Ele é a mistura de gêneros e ideias que já

existiam, sob o olhar de um novo espírito que necessitava se manifestar. Um

dos destaques desse novo trato dado ao teatro é Denis Diderot, considerado

um dos idealizadores da revolução: teórico e dramaturgo 5 francês, com ideais

burguesas, reconhecido por Volpe como o maior crítico “racionalista-ilustrado”6.

Diderot começou a estudar e a introduzir no teatro questões universais através

do núcleo vivido pelos personagens do drama, e isso não deixou de ser notado

por Brecht, que lhe dirige uma atenção especial. A partir daquele momento,

quando quer falar do mundo, o teatro se volta primeiro para o ambiente

particular, um aspecto que estava presente em Diderot.

Por essa razão é que se atribui frequentemente a esse autor francês o

desenvolvimento do drama burguês “em sua intenção mais profunda”7 e uma

4 “uma nova classe, rica, ativa, inteligente e irrequieta: a burguesia, senhora do comércio e da

indústria, iluminada pelos intelectuais que faziam parte dela – e por isso consciente de sua grande força e dos seus direitos.” [SAVIOTTI, p. 83] 5 Ainda sobre esse iluminista é importante lembrar que, embora convicto de que queria

colaborar para mudar o rumo da arte teatral, com suas investidas em criar espetáculos, pouco conseguiu obter de efeito em sua época, no que diz respeito a ter sido um bom dramaturgo. 6 Brecht leu Diderot e chegou a usar um de seus personagens. Uma das referências a esse

pensador francês está presente no primeiro volume de seu Diário de Trabalho. 7 VOLPE, 1972, p.62.

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decorrente preocupação com a verdade da época − ainda que de uma maneira

teórica. Essa prioridade fez com que se procurasse para ser representado no

palco algo fora do classicismo, algo novo. Diderot pretendia trazer para o palco

de modo mais fiel o cotidiano, pois percebeu que naquele momento os temas

do espaço diário comoveriam muito mais do que os remetidos aos deuses da

Grécia Antiga. Havia por parte dos iluministas uma preocupação com a

educação, que via uma possibilidade na representação de fatos do cotidiano,

na presença destes no teatro. Nesse sentido, Diderot foi especial porque dentre

os demais do mesmo movimento, mesmo que somente no plano teórico,

conseguiu antecipar a reflexão que trouxe o teatro para o cotidiano. Alguns dos

dramas humanos continuam sendo os mesmos, como amor, morte, traição,

mentira, dor; porém, é o trato dado a estes que muda, sendo diferente daquele

dado aos antigos nas tragédias gregas:

Mas eis, ao mesmo tempo, a natureza, a cujo culto se dedicaram Diderot e Rousseau, responsável talvez pelo fato de as duas heroínas do drama burguês mencionadas por Diderot, a mãe e a esposa, não pertencerem à condição burguesa e à cidade, mas à natureza [SZONDI, 2004, p.110]

A preocupação com aspectos como a “experiência cotidiana”8 e a

“simplicidade da ação” 9 (por exemplo, o núcleo familiar) fez com que Diderot

como autor buscasse lidar de forma coerente com os mesmos, uma vez

preocupado com a realidade da época. Agiu como articulador da mudança social

que estava em processo, na qual ainda se confundiam muitos valores antigos

com os novos valores burgueses. Tornou-se, assim, um dos preconizadores das

direções tomadas pelo teatro moderno, por se preocupar com o conteúdo que

queria tratar, sem se importar em ignorar muitas das regras mais tradicionais do

teatro, merecendo mais tarde a atenção especial de Brecht:

Diderot apoia as unidades, pelo menos na medida em que elas favorecem a verossimilhança, e permite mudanças de cena ou lapsos de tempo apenas quando ocorrem entre atos, prática que o realismo moderno seguiu fielmente. Em vez do diálogo tradicional, rítmico, rimado e altamente consciente, Diderot preconiza (e usa em sua

8 SZONDI, 2004, p.111

9 IDEM

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própria peça) frases truncadas e irregulares copiadas da fala cotidiana. [CARLSON, 1997, p. 148]

Diderot, entretanto, aparece também vinculado a ideias de cunho moral,

como o bem, a virtude, ou o vício, assim como os demais pensadores

iluministas. Ainda assim, deve-se distingui-lo dos demais do mesmo

movimento, que na época, aliás, fizeram dele um alvo de críticas por querer se

aproximar do que acreditava e pelo seu desejo de estar longe de um apego à

dramatização da vida pautada exclusivamente pelas exigências trágicas. Além

disso, o autor francês é visto como aquele que antecipou o distanciamento

posteriormente desenvolvido por Brecht, ao optar por não privilegiar os ideais

emocionais no drama10, em consideração aos efeitos benéficos que isso

poderia trazer à plateia. Sobre a aproximação que Brecht faz a Diderot, cabe a

reflexão sobre o que o teria levado a escolher esse autor. O que se constata é

que dentre tantos autores contemporâneos a esse iluminista, Brecht identificou

ali uma figura ousada, quando de sua tentativa de oferecer ao teatro daquele

momento um novo tipo de abordagem, que permitisse abarcar a realidade e

pensar sobre ela, ainda que de forma parcial, devido às limitações impostas

pela época:

A Revolução Francesa e as guerras napoleônicas mergulharam os homens comuns na corrente da história. Submeteram-nos às pressões da experiência e do sentimento as quais, em tempos anteriores, foram prerrogativas perigosas de príncipes, homens de Estado e soldados profissionais. (...) Uma parte crescente da vida privada tornara-se agora exposta aos clamores da história. E essa parte aumentava com a expansão dos meios de comunicação. Ignorante da catástrofe vizinha, o espectador elisabetano e neoclássico assistia ao Hamlet ou à Fedra, com uma certa paz de espírito, ou ao menos desarmado contra a poesia e o choque da peça. O novo homem ‘histórico’, pelo contrário, chegava ao teatro com um jornal em seu bolso. Aí poderia haver fatos mais desesperados e sentimentos mais provocativos do que aqueles que o dramaturgo teria e se preocuparia em mostrar. O público não tinha dentro de si a qualidade do silêncio mas uma emoção em excesso e tumulto. [STEINER, 2006, p.66]

Seria possível fazer arte com peças relevantes – no sentido prático e

teórico – para os homens do presente e futuro, sem que se tivesse de carregar

10

CARLSON, 1997, p.151.

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o fardo de cumprir todo o detalhamento formal exigido pelos exemplos do

passado? Diderot acreditou nisso – como fez Brecht posteriormente –

aproximando-se de uma atitude semelhante à do realismo que viria mais tarde.

É certo que o dramaturgo francês não revolucionou a ponto de buscar uma

forma que servisse de contraponto total aos antigos arquétipos, mas ele

conseguiu perceber quando as regras destes não cabiam no que pretendia,

uma vez que muitas bloqueavam essa aproximação do teatro com a realidade.

E dado que naquela época as mudanças se concentravam no desejo burguês

de ascender socialmente, a arte começou a ser pensada para influenciar

também o homem nesse sentido. Para Brecht, Diderot é até certo ponto

diferente dos autores da mesma época, o que o leva a se interessar pela leitura

do autor francês. Em uma das observações de seu diário, comenta estar

“mergulhado” nessa leitura:

Leitura de Jacques, o fatalista, de Diderot: chama a atenção não emitirmos sinais de uma sensualidade refinada na Alemanha. O amor ali (veja-se Fausto) é algo celestial ou algo diabólico, um dilema de que escapamos porque o transformamos num hábito. Os únicos nomes nesse campo são Goethe e Mozart, e este último sabiamente ambientou seus dramas de amor em solo estrangeiro. Na lírica não há nada entre o etéreo, histérico e incorpóreo e as canções obscenas das garçonetes de bar. Keller tem certos méritos, Heinrich Mann descreve só excessos. Parece que na Idade Média esta é outra área de cultura que só o clero parece ter cultivado. A aristocracia alemã era incapaz de hedonismo, também a burguesia era puritana em seus ideais, e vulgar na realidade. Os estudantes alemães ‘faziam aquilo’ após consumir cerveja em quantidades tais que teriam deixado qualquer outro incapaz de qualquer coisa a não ser vomitar enquanto copulava. Seria higiênico para os alemães ter sua primeira comédia de amor (sua mandrágora) na forma de um drama Lutero-e-Kätter... [BRECHT, 2002, p.174]

Agora, em relação ao tradicionalismo criticado por Brecht, através da

leitura de autores como Diderot e da comparação dos movimentos culturais

que aconteceram na França e Alemanha (seu país), ele conseguiu visualizar as

diferenças determinantes entre esses dois processos. Na Alemanha, porque o

processo foi diferente de uma revolução na prática, como acontecera na

França, a arte acabou ficando mais presa às antigas regras, e as mudanças

atingiram muito mais o plano do pensamento alemão do que a estrutura da

sociedade. Ali, tudo caminhou socialmente de outra maneira, e não obstante a

influência da Revolução Francesa e a unificação de seu território, a Alemanha

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não conseguiu se desprender de uma atitude ligada aos pressupostos dos

modelos clássicos; permanecia muito presa a uma estrutura econômico-social

mantida pelos feudos, na qual atuava uma aristocracia ainda bastante

presente. Na França, embora tivesse se demorado até chegar à revolução, o

processo havia sido mais radical:

O desenvolvimento econômico na Alemanha ficara atrás do da França e da Inglaterra. A classe média alemã, fraca e dispersada em numerosos territórios com interesses divergentes, dificilmente poderia projetar uma revolução. Os poucos empreendimentos industriais existentes eram como que ilhas dentro de um sistema feudal que se eternizava. O indivíduo, na sua existência social, ou era escravizado ou escravizava seus semelhantes. Não obstante, poderia ao menos perceber, enquanto ser pensante, o contraste entre a realidade miserável que existia por toda a parte e as potencialidades humanas que a nova época liberara; e, como pessoal moral, poderia preservar a dignidade e a autonomia humanas, pelo menos na sua vida privada. Assim, enquanto a Revolução Francesa começava por assegurar a realização da liberdade, ao idealismo alemão cabia apenas se ocupar com a ideia de liberdade. Os esforços concretos para o estabelecimento de um tipo de sociedade racional haviam sido transpostos, na Alemanha, para o plano filosófico e transpareciam nos esforços para o conceito de razão. [MARCUSE, 1978, P.18]

11

O homem da burguesia alemã parecia, em realidade, não ter plena

consciência de que o processo ocorrido na França era possível também ali,

naquele país. Como aparece na citação de Marcuse, havia um processo

industrial que aos poucos era agregado ao espaço dos feudos. Porém, e talvez

devido a essa inserção, não se desenvolveu uma maturidade da nova classe

que a fizesse investir na possibilidade de abolir de vez o regime aristocrático,

por meio de um movimento revolucionário. Os indivíduos acostumavam-se às

condições que dispunham socialmente, ao mesmo tempo que começavam a

elaborar um pensamento influenciado pelos valores propagados na revolução

dos franceses. Inaugurava-se uma nova fase na Alemanha, só que ela se

dirigia ao plano das ideias.

Que efeitos surtiram essas circunstâncias nos aspectos do drama?

Como pensar o teatro na Alemanha e o aparecimento do drama burguês ali,

sem a característica agressiva do movimento revolucionário da França em

11

Na obra Razão e Revolução, Hebert Marcuse analisa a influência do processo revolucionário francês na Alemanha e, ao mesmo tempo, apresenta os porquês dessa mesma influência não ter alcançado o plano prático (social) como alcançou o teórico e as consequências que isso teve para a cultura e pensamento alemães.

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relação à ordem de um regime velho? Que aspecto o estado ameno dessa

classe média alemã dará ao novo drama? Assim como na França, o movimento

neoclássico alemão era forte12, mas paralelo a isso, já tinha surgido também ali

a ideia de um novo drama. No plano inicial dessa formação e como percursor

do que viria a ser mais tarde o teatro burguês alemão, destacou-se G. Lessing,

que, de acordo com a interpretação de Szondi, não conseguiu relacionar o

surgimento do drama burguês a um evento social, como a ascensão dessa

classe13.

Em Diderot e para os demais iluministas, essa conexão entre a mudança

do drama como consequência da mudança da sociedade já era mais clara em

muitos sentidos. Ao passo que para os alemães, e entre eles Lessing, as

modificações do drama foram compreendidas de maneira diferente, como

oriundas de um ciclo histórico natural de aparecimento da classe burguesa no

ambiente feudal, o que excluía a importância de uma revolução sócio-política.

Como observa Szondi, Lessing considerou mesmo sem ter tanta certeza que

esse aparecimento estava relacionado à “supressão da cláusula dos

estados”14, que “foi um ato imediato de emancipação e da expansão burguesa

como também a abolição de outros privilégios.” 15, mas não como algo que

interferiria totalmente na organização da sociedade, que continuava a reunir

burgueses e aristocratas num mesmo ambiente. O movimento alemão

correspondente ao Iluminismo francês, conhecido como Esclarecimento

(Aufklärung), nasceu e se desenvolveu sobretudo como um movimento teórico.

Ele tinha muito pouco de prático, pois na prática teatral, por exemplo, ainda era

12

“A finalidade da tragédia não é a resignação, mas o restabelecimento da justiça no mundo da peça e a harmonia na alma do espectador. Qualquer meio que conduza a esse fim é permissível, segundo Hardsdoerfer, mesmo a mistura do cômico com o sério e a total rejeição das unidades” [CARLSON, 1997, p.160]. Citação a exemplo de uma das apropriações dos clássicos, surgida no século XVIII da Alemanha. 13

“Embora seja ocioso repreender Lessing pelo descuido de deslocar as posições do poder politico e econômico – como se houvesse ‘o’ inglês e ‘o’ francês, como se o sujeito normativo da comédia diderotiana fosse sociologicamente visto como idêntico ao da molieresca −, deve-se notar que Lessing não coloca o advento do novo gênero em relação com a ascensão da burguesia. Se essa relação está talvez constituída para nós, o fato de ela não entrar em absoluto no campo de visão dos principais teóricos da Alemanha (enquanto em Lillo e Diderot o drama burguês é legitimado realmente com argumentos especificamente burgueses, embora não com a pretensão da burguesia ao que era reservado até então às testas coroadas e a príncipes) é, no entanto, constitutivo para uma explicação do drama burguês no século XVIII nos termos da sociologia da literatura.” [SZONDI, 2004, p.148] 14

SZONDI, 2004, p.147 15

IDEM.

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o clássico que dominava. Para Szondi, o caminho possível para relacionar as

diferentes posições dessas culturas e de seus autores está em Benjamin:

O herói, o santo, a vítima, eis – para empregar um conceito de Walter Benjamin – três caracteres sociais, cuja diversidade corresponde às diferenças políticas e sociais na posição da burguesia inglesa, francesa e alemã do século XVIII. A tarefa da sociologia da literatura é menos reencontrar essas diferenças na realidade representada das peças do que tornar claras as mediações – por exemplo, na técnica do drama ou na estética do efeito – pelas quais as obras e suas teorias foram condicionadas historicamente – e isso significa também socialmente. [SZONDI, 2004, P.174]

Brecht teria dito que o caminho seguido pela burguesia alemã, distinto

do trajeto francês, influenciou o drama alemão em todas as instâncias. Uma

vez isento daquela que foi considerada a herança mais importante da

revolução para o mundo − a influência política enquanto luta de classes − o

drama burguês da Alemanha foi designado para outro papel. Szondi explica

através da leitura de Lessing que entre os conflitos tratados pelo novo drama

dentro daquele contexto, a luta passou a ser travada entre burgueses e outros

burgueses, ao invés de ter o peso de uma luta social da classe nova com a

velha aristocracia. Isto, por sua vez, teve implicações diretas na forma

dramática, principalmente quando surgem atitudes como a de Lessing, ao

reaviver e reelaborar o sentido de compaixão (apropriado de Aristóteles) e

tomá-lo como parte fundamental para a ação nas peças:

Os nomes de príncipes e heróis podem dar a uma peça pompa e majestade, mas em nada contribuem à comoção. O infortúnio daqueles cujas circunstâncias se aproximam ao máximo das nossas penetra naturalmente mais fundo em nossas almas; e se temos compaixão por reis, então a temos por eles na qualidade de homens e não como reis. Se sua condição faz suas desgraças algumas vezes mais importantes, não por isso as faz mais interessantes. Embora povos inteiros possam se ver implicados nelas, nossa simpatia exige um objeto singular, e um Estado é um conceito demasiado abstrato para nossos sentimentos. [LESSING, apud SZONDI, 2001, p.158]

Mas por que Lessing quis retornar a antiga compaixão? Em primeiro

lugar, sobre isso é preciso pensar que para ele a Antiguidade despertava uma

vida nova. Essa concepção podia ser útil para uma história da humanidade, na

qual ele acreditava, pois não se falaria mais apenas da compaixão por reis uma

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vez que a realidade da cidade era muito mais ampla. Ao invés, poderia se

retomar, por exemplo, o sentimento de compaixão para Aristóteles, que

também era mais amplo por ter a ver com o Estado. Ao pensar na retomada de

alguns valores antigos, Lessing estava fazendo uma apropriação de forma a,

não copiá-los, mas buscar neles forças produtivas para novas ideias. E talvez

tenha sido essa a atitude com a qual Brecht simpatizou, pois é assim que ele

procederá também, usando dos clássicos para servir aos novos e potencializar

a ideia de “novo”.

Nota-se que, apesar de não ter visto a mudança do drama como

consequência da nova configuração social, segue em Lessing uma visão que

conferiu ao teatro um aspecto mais humano. Mais uma vez como em Diderot –

se é possível uma aproximação entre os dois autores –, foram tratados os

aspectos comuns aos homens que não necessariamente tinham relação com o

papel desempenhado por eles dentro do coletivo, mas que se direcionavam

para os ambientes intersubjetivos. Isto, por sua vez, permitiu que novamente se

ignorasse algumas das regras rígidas do antigo modelo dramático, que não

cabiam para tratar desses ambientes.

Ainda que Lessing não compreendesse claramente a dimensão de todos

aqueles eventos que ocorriam na época dentro da sociedade, para a arte já era

possível pressentir que alguma coisa mudara quanto à forma e conteúdo do

drama. Então, quando Brecht vai atrás de evidências no trabalho de autores

como Lessing, que certamente investiram em inovações para a ação

dramática, o faz porque quer pensar nessas tentativas, nas quais, mesmo a

consciência ainda não conseguindo abarcar todo sentido da mudança, já

representava para a época uma exceção.

Por fazer um acordo entre o novo e o velho, a exemplo do que havia

realizado Shakespeare, e pelas demais concessões, Lessing é visto na

Alemanha como o teórico do drama alemão da época que mais se aproximou

dos iluministas franceses no que diz respeito a buscar um compromisso com a

verdade. Ele notou algo que para nós pode parecer óbvio, mas que para a

época ainda não era: o dramaturgo deve escrever para seu tempo e mesmo

que se fizessem apropriações de Shakespeare, por eles terem escrito em

culturas diferentes, tinham respectivamente outra forma de se relacionar com a

vida, que não cabia mais ao novo mundo reproduzir.

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Lessing é um dos primeiros a reconhecer não ser mais possível

empreender uma volta rigorosa aos gregos, porém, considerou inevitável uma

aproximação a Aristóteles, mesmo que feita de forma distinta dos franceses.

Ele viu na tradição o privilégio adquirido pelos antigos conceitos que

pessoalmente julgou úteis para fundamentar sua própria teoria do drama. Na

visão de Steiner, é este o grande triunfo de Lessing: aceitar a descendência

dos gregos, ao mesmo tempo em que rejeita uma reprodução da arte alemã

como a do neoclassicismo francês, que até então predominava.

Logo, o drama em sua nova fase, apesar das inovações, continuou a

buscar nas formas antigas suporte para se firmar. Não é, portanto, isso que

interessa a Brecht nesses autores, mas as temáticas introduzidas a partir daí, e

a importância da função social destas. E mesmo que essas formas estivessem

presentes, já perdiam ali certa credibilidade para o que na época se tornou

mais importante, como falar dos indivíduos em suas vidas privadas.

Ao suprimir a dialética entre vivências públicas e privadas, ao considerar as vontades individuais como supostamente universais, a teoria do drama burguês oitocentista almejou criar nas obras uma unidade sentimental que se comunicasse com o público. Preservada na intimidade dos sujeitos honestos, a autoconsciência se oferece como ponto fixo pelo qual se transmite o sentimento de melancolia diante dos desacertos da vida. [SZONDI, 2004, p.15]

Como já dissemos anteriormente, as referências de Brecht precisam de

uma atenção especial. Ele mesmo chegou a admitir que em seus textos

teóricos muitas informações foram incluídas, sem que a elas desse grandes

explicações, principalmente em seus diários, como quando se referiu a Diderot,

ou a Lessing. No caso de Lessing, buscou-se em outros autores referências a

seu trabalho na esperança de, através delas, compreender por que quando se

referiu a Schiller, Brecht afirmou que “o teatro de Lessing era ainda bem

diferente nesse aspecto.” [BRECHT, 2002, p.190].

Quando o grande impulso pela novidade e a descoberta dos novos ares

da razão passaram, percebeu-se um limite na “unidade sentimental” que era

explorada nos novos temas e que facilmente se esgotava. A perda dessa

unidade começa a ser sentida e, curiosamente, não só no teatro − onde tudo

era mais aparente por se tratar de uma representação que, querendo ou não,

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não apenas compartilhava a visão desses homens, mas também e

principalmente na vida dos homens. Sendo o sentimento a nova forma da arte,

esta se vê atrelada a uma idealização que ganha mais representatividade em

autores como, por exemplo, Wolfgang Goethe e Friedrich Schiller:

O sentimento de vida dos românticos alemães e, em seguida, do romantismo universal estava determinado pela experiência dolorosa de fragmentação: como intelectuais requintados sentiam-se ‘alienados’ (o termo surgiu entre eles) da natureza e como que despedaçados entres os polos do intelecto e do instinto, do subjetivismo individual e da integração no coletivo, da civilização e da inocência primitiva. Justamente por serem intelectuais requintados aspiravam à simplicidade elementar (daí o exotismo e o indianismo), e justamente por se sentirem intimamente dissociados, ansiavam por épocas que se lhes afiguravam sintéticas e integrais (daí o medievalismo). O indivíduo romântico sente-se aniquilado pelas limitações que a sociedade lhe impõe. (...) ‘A poesia romântica é uma poesia universal e progressiva. Sua destinação não é apenas a de reunir de novo todos os gêneros separados da poesia e de pôr a poesia em contato com a filosofia e a retórica. (...) Só ela é infinita, como também livre, reconhecendo como princípio que a arbitrariedade do poeta não admite nenhuma lei que se lhe imponha. ’(Friedrich Schlegel, 116.° Fragmento, publicado no periódico ‘Athenaum’, 1798-1800) [ROSENFELD, 2011, p.67-69]

A realidade social passava a ser tratada com certa indiferença pelos

dramaturgos e teóricos. Tornava-se pano de fundo, porque no drama

“romantizado” o que passou a predominar foram os desejos postulados pelo

Idealismo Alemão de tratar a vida a partir do olhar do sujeito. Nesse

acomodamento, com medo de que a unidade perdida ficasse cada vez mais

evidente, os autores parecem se preocupar com a liberdade da razão e a

emancipação do sujeito, desviando-se para um mundo recluso e fechado, onde

eles pudessem atender às exigências do novo modo de pensar. Nesse sentido,

o “aburguesamento”, por exemplo, não é considerado por Goethe como cheio

de virtudes, mas permeado por tendências as quais ele acreditava reduzir as

possibilidades do drama16. O autor romântico considerava os temas trágicos,

por exemplo, muito mais dignos de representação por conta de seu alcance

universal.

16

A classe aristocrata perdia cada vez mais o seu posto, e no lugar dela, os burgueses, que não tinham um apego aos modelos clássicos, começam a ser negados por esses autores, como, por exemplo, Goethe e Schiller, que apostavam no idealismo e primavam por uma identidade nacional alemã mais apegada aos valores tradicionais.

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Dessa forma, Goethe, por exemplo, adota uma concepção de drama

mais fechada, e, ao retomar certos valores do passado, espera conferir àquela

atualidade um sentido mais nobre, mais tradicional. Ou seja, desejava construir

um drama detentor de um poder de enraizamento que modificasse o aspecto

confuso e sombrio adquirido pelo novo homem em sua relação com o mundo e

com a arte. E por sua vez, a tradição a que recorreram os autores alemães

dessa época favoreceu Shakespeare e primou pelos efeitos do trágico.

Vejamos na seguinte citação o que diz Brecht acerca dessa dada “‘renovação’

formalista”, que sempre seria em certo nível artificial:

a grandeza das obras clássicas reside na sua grandeza humana, e não numa grandeza de fachada.(...) Em lugar do pathos autêntico dos grandes humanistas burgueses, surgiu o falso patético dos Hohenzollern, em lugar do ideal surgiu uma idealização (...) O maravilhoso humor de Goethe no Fausto zero não se harmonizava com o pendor solene e olímpico atribuído aos clássicos, como se o humor e uma autêntica dignidade fossem antagônicos! (...) a deturpação chegou a tal extremo – utilizando de novo o Fausto zero como exemplo – que acontecimentos tão relevantes do poema, como o pacto do grande humanista com o Diabo, que é tão importante para a tragédia de Gretchen – sem o pacto ela decorreria de maneira diferente ou não decorreria, sequer –, eram simplesmente omitidos, pois se tinha, provavelmente a ideia de que numa obra clássica o herói podia apenas se comportar heroicamente. Evidentemente, só é possível realizar o Fausto, ou mesmo o Fausto zero, à luz do Fausto transformado e purificado do final da segunda parte, que vence o diabo e que transforma o seu viver infecundo, a sua fruição da vida pelas artes do Diabo, em produtividade; que será desta esplêndida metamorfose se saltarmos as suas fases iniciais? Se nos deixarmos intimidar por uma concepção falsa, superficial, decadente e tacanha de classicismo, não lograremos jamais uma representação viva e humana das grandes obras. O autêntico respeito que estas obras podem e devem exigir requer que desmascaremos o respeito hipócrita, servil e falso. [BRECHT, 2005, p.123,124]

Essa afirmação retoma um processo hereditário que se dá através dessa

renovação dos clássicos e que existiu antes de Goethe, com Goethe e que

continua a existir após Goethe. Cabe então a questão: uma tradição que se

alimenta sempre de outra e que, assim, passa a servir como barreira para aquilo

que surge de novo não estaria na contramão das novas obras de arte e seus

avanços? Mesmo que de certa forma ainda limitados para discutir os recentes

problemas da humanidade, pois ainda faltava elaborá-los, os teatros de Diderot e

de Lessing tiveram uma função importante, no sentido de instaurar a presença

de uma mudança no teatro, a qual já tinha começado. Logo, a retomada pelos

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autores alemães depois do período da revolução, no século XIX, compreenderá

um ponto fundamental na crítica de Brecht, na medida em que, como se verifica

adiante, essa tradição será responsável por firmar e conservar valores do

passado, que permanecerão como guia para a arte do futuro, tornando-a

carregada de conceitos, cada vez mais difícil de ser superada.

Quando então Brecht se refere ao teatro de Schiller e o compara com

Lessing, como exposto anteriormente, critica negativamente o primeiro, a fim

de estabelecer uma ligação das diferenças entre esses autores com a

mudança ocorrida no teatro alemão a partir desse período. Uma mudança que,

em realidade, equivale a uma volta ao passado: a vitória do romantismo com

seu idealismo sobre os aspectos da teoria de Lessing, que, bastante

influenciado pela erupção dos sentimentos de mudança vindos da revolução,

pensava num teatro mais concreto. Para Brecht, os românticos transportam o

drama para um espaço afastado dessa realidade quando idealizam as

temáticas. Com isso, promoveram uma perda das possíveis mudanças para o

destino do drama, um movimento que Brecht situará como problemático para o

futuro das representações:

Estou lendo Schillers Flucht aus Stuttgart (A fuga de Schiller de Stuttgart), de Streicher. Noto diferenças na maneira de trabalhar que resultam das diferenças entre as teorias aristotélicas e as não-aristotélicas do drama. Schiller arquiteta as cenas dramáticas, também os monólogos, dá grande importância às ‘passagens brilhantes’ e introduz seus efeitos com cuidado. Tudo visa a despertar o entusiasmo, a arrebatar, a encantar, tanto moral quanto esteticamente. Personagens magnânimos, tensas complicações, explosões retóricas, demonstrações de paixões avassaladoras, estimulação de controvérsias de tirar o fôlego – todos esses efeitos se tornam irresistíveis. A misère tem fim instantâneo e a Alemanha tem seu poeta nacional. O fenômeno do teatro novamente se manifestando, com seu efeito-d, diante da nova classe burguesa e da nação, atravessa uma fase em que a apresentação da realidade é totalmente subordinada à teatralidade (o teatro de Lessing era ainda bem diferente nesse aspecto). O interesse vital do gênero humano por sua própria humanidade que pode encontrar expressão no teatro, e forma a base para todas as emoções, pode se ver neste ponto, que é principalmente um interesse pelo teatro, isto é, exclusivamente pela apresentação no palco. Não é, digamos sem rodeios, o que é representado, i.e., o que acontece entre os (e no interior dos) homens, que interessa ao dramaturgo, mas precisamente as emoções que podem ser suscitadas por essa representação. Schiller precisa sempre de muito tempo para encontrar ‘assuntos’ e enredos que possam ‘suportar o peso’ de suas emoções. Não que as condições não lhe interessem, não que ele não proteste apaixonadamente e ofereça sugestões; só que é sobretudo o teatro e

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a oportunidade de usar assuntos e emoções para o teatro que o faz escrever. Isto dá origem a uma arte que está em contato com a realidade e contém realidade, mas que sacrifica totalmente a realidade à arte. [BRECHT, 2002, p.190]

Schiller idealiza, e com isso leva à cena a beleza das palavras. Brecht

não desmerece sua intenção de pensar um modo de libertar o homem, porém,

ao se preocupar demasiadamente com a perfeição formal, pecou quanto ao

conteúdo. A partir daí não é Lessing que passa a ocupar o lugar de autor que

inspiraria os próximos, mas a glorificada tradição alemã pertencerá a Goethe e

a Schiller. Brecht está preocupado em definir o novo teatro como

essencialmente não- aristotélico e percebe essa glorificação como um tributo à

forma bela dos textos desses autores, que, por transportarem o teatro para o

campo idealístico, tornaram cada vez maior a distância da realidade e

ajudaram também a construir a crise dramática, que só seria percebida mais

tarde. Não à toa, ainda em Estudos sobre teatro de Brecht é possível encontrar

um texto dirigido especificamente a Schiller, intitulado “Será por ventura o

Teatro épico uma ‘instituição moral’?” 17.

No entendimento de Brecht, Schiller está entre os autores da história do

teatro que, ao cederem às adequações formais, trouxeram para a cena frases e

passagens de efeito estético, transformando o teatro num centro das suas

exposições moralistas18. Logo, as novas apropriações dos aspectos clássicos

que nascem no século XIX desviam-se do movimento histórico – ao buscarem

conforto e não o acharem na realidade – e desligam-se dos acontecimentos

reais que podiam ser problematizados no palco. Nesse sentido, o teatro

burguês era diferente quando surgiu: “quase todo o século XIX – excetuando-

se o breve interlúdio romântico – é denominado pelo que se convencionou

chamar de ‘peça bem feita’, adaptação superficial aos padrões rigorosos da

tragédia clássica.” [ROSENFELD, 2011, p.77]

A obrigação moral que Schiller deu ao teatro, ele a justificou com o fato

da Revolução Francesa não ter cumprido uma de suas promessas mais

essenciais: a de trazer liberdade. Liberdade, Igualdade e Fraternidade eram os

ideais da revolução, no entanto, eles não passaram da abstração. O mundo

17

Resposta ao texto de Schiller “O palco visto como uma instituição moral” de 1784. 18

Por outro lado, coloca F. Nietzsche na direção contrária, lembrando dele como um dos primeiros (e únicos) a revelar indignação perante os elementos morais da obra de Schiller.

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posterior não viveu essa harmonia, e, embora bastante prometida pelos

iluministas e seus herdeiros, a ideia de liberdade não havia ainda se firmado

nas consciências. Assim, os indivíduos não podiam e não conseguiam se sentir

seguros com todas as mudanças, porque o pensamento ainda não as

compreendia. Com o passar do tempo, essa sensação só veio a crescer, e a

saída encontrada por Schiller foi de que os homens podiam ser guiados nesse

sentido através da arte. Ele viu no teatro um caminho para abrigar na mente do

sujeito, finalmente, a ideia de liberdade.

Contudo, a investida nas escolhas morais, defendidas de início como

possíveis aliadas a um jogo “descompromissado” da imaginação, resultou

numa imposição moral. Esta, a posteriori, tornou-se problemática, pois para

atingir a responsabilidade moral da arte, Schiller precisou submeter o

compromisso com a realidade, transportando-a para o campo da idealização.

Tudo isso acompanhado do interesse do artista, que, por deixar imperar sua

vontade, consequentemente pôs em risco a liberdade dos outros indivíduos

que se sentiam ludibriados por suas frases bem compostas.

Mais uma vez, a hora da verdadeira transformação na maneira de lidar

com assuntos pertinentes e não reconfortantes da condição humana, ou social,

daquele momento − ou seja, dos problemas referentes a ela − foi afastada

propositalmente para dar lugar a um embelezamento, a uma bolha ilusória de

“certezas” exigidas por esse novo homem. Afinal, se é aceito que a ciência não

trouxe definitivamente essas “certezas”, não caberia à arte camuflar essa

constatação proporcionando uma posição reconfortante em relação à vida? A

arte assume então o papel da esperança:

Desde a Revolução Francesa, quando, como uma torrente, o imenso fluxo dos pobres inundou pela primeira vez as ruas da Europa, houve muitos revolucionários que, como Brecht, agiram por compaixão e esconderam, por vergonha, a compaixão sob a capa das teorias científicas e da retórica insensível. Foram, porém, muito poucos os que entenderam o insulto suplementar que representava para a vida humilhada dos pobres o facto de os seus sofrimentos permanecerem na sombra e não ficarem registados na memória da humanidade. [ARENDT,1991,p.277]

O herói agora tem sobre as costas o grande fardo de carregar uma

moral, de defendê-la com sua imagem. Suas ações são determinadas por uma

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mensagem universal que vê no acaso um obstáculo à ideia de completude a

que quer retornar. O fim do século XVIII prepara uma tradição que

posteriormente será dirigida por cânones. É neste ponto − o qual Brecht, como

crítico de seu país e de todo tradicionalismo, acreditou ter influenciado na

transformação da Alemanha em um país fascista − que a análise do caminho

percorrido pelo homem passa a ser, segundo ele, decisiva também para o

futuro do teatro e da arte. Mais uma vez os gregos foram para o mundo − e

também Shakespeare; autores de grande influência como Schiller e Goethe,

que também firmaram seus moldes na corrente histórica, influenciando todo o

teatro posterior, principalmente o teatro alemão. E, pelos acontecimentos

dados a partir do século XIX, a influência desse idealismo mostrou as suas

desvantagens:

A estética do Romantismo não se podia considerar ainda afirmação certa e completa dum novo conceito acerca da arte. Todavia era uma renegação enérgica dos velhos formalismos, e dentro dela estava ‘em gérmen’ a verdade que os teóricos do Belo, pouco mais tarde, afirmarão. [SAVIOTTI, p.112]

É claro que não se pode negar que houve algo de muito criativo nessa

exasperação do espírito idealista que, tomado de surpresa pelas novidades do

novo mundo, quis pô-las à prova, quis experimentar e acreditou que

conseguiria. No entanto, os efeitos que daí derivaram não eram os mais

esperados, principalmente quando se percebeu que nem tudo que era teoria de

teatro funcionava na prática. Efeitos de querer cobrir o que a nova estética não

teve capacidade técnica para abarcar foram que novamente a promessa de

inovação retomou o foco da cena e mais uma vez a teoria prevaleceu em

discordância com a prática.

A partir dessa promessa constrói-se uma tradição que debate a vigência

das antigas regras do teatro. Nesse meio, muitos autores que faziam

apropriações dessas obras (uns mais, outros menos) foram reconhecidos por

suas novas interpretações dos clássicos, e prevaleceu a interpretação e a

rigorosidade da Poética de Aristóteles ao invés de se procurar elaborar novos

métodos (que careciam ainda de experimentações). O que decorreu desse

apego muito tem a ver com o Idealismo. A produção intelectual ultrapassava as

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inovações como as da montagem das peças, ou da produção de dramaturgias

atualizadas, o que também provocou uma luta de egos por parte dos artistas.

Aquilo que se nomeou subjetivismo, ou concepções particulares dos autores,

dominou o nível do teatro, gerando uma crise por não se saber de que maneira

os conteúdos do drama deveriam ser abordados. Depois de Schiller, vários

nomes vieram acrescentar-se ao novo núcleo da tradição alemã − em sua

maior parte nutrida por esse idealismo. Os destaques na Alemanha foram

Hölderlin, Hegel, Wagner, Nietzsche:

A faxina linguística em que me meti com os Epigramas finlandeses dirige naturalmente meus pensamentos para a evolução da poesia. Que decadência! Aquela esplêndida unidade, tão cheia de contradições, desmoronou logo depois de Goethe; Heine seguiu a linha totalmente profana, Hölderlin, a linha totalmente pontifical. Destas, a primeira viu a crescente dissipação da linguagem, porque a naturalidade só pode ser alcançada por meio de pequenas infrações das regras formais. Além do mais, isso é sempre um negócio bastante irresponsável, e o efeito que um poeta obtém por ser epigramático o absolve de toda e qualquer obrigação de se empenhar na busca de efeitos poéticos, sua expressão se torna mais ou menos esquemática, desaparece toda a tensão entre as palavras, e a escolha de palavras passa a ser descuidada: à luz de padrões poéticos, bem entendido, pois a poesia lírica tem seu próprio substituto para o chiste. O poeta só representa a si mesmo. [BRECHT, 2002, p.111]

19

Nessa citação, mais uma vez aparece aquilo que Brecht criticará em

Schiller, que, segundo ele, desencadeou uma série de autores com as mesmas

pretensões: de reservarem a si mesmos os efeitos e os alcances possíveis da

poesia. Como contraponto dessa tradição de autores, Brecht vê em Hegel uma

exceção, embora ele mesmo não leve adiante a teoria estética do filósofo. Ao

mesmo tempo, se por influência de Karl Marx ou não, o certo é que ainda

assim, reservou a essa teoria uma notável admiração20:

19

Nas notas de seu diário, do qual foi retirada a citação, vemos uma série de autores a que ele se dirige indiretamente. Realistas ou idealistas, isto nos mostra que mesmo não concordando com muitas vertentes, Brecht ainda assim se utiliza de tudo aquilo que poderá ser proveitoso para seu teatro. No caso, a citação se encaixa aqui quando falamos do idealismo, afim de mostrar o que pensa Brecht disso. Acerca do realismo, será propriamente tratado no próximo capítulo, de que é tema central. 20

Talvez mais interessante que a admiração por Hegel é admiração que Brecht parece ter por Friedrich Nietzsche, que, embora não se pretenda desenvolver tal relação nesta dissertação, ajuda a refletir sobre o modo como lida com a moral. Salvo o que mais tarde proveio de uma equivocada apropriação da obra de Nietzsche, no exemplo do confronto com Schiller, Brecht destaca Nietzsche como o primeiro a fazer uma crítica dura e coerente aos aspectos morais desse tipo de teatro.

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A reprodução que Hegel faz da teoria aristotélica da arte na introdução à sua estética é de uma beleza extraordinária. O enunciado chave me parece ser este: ‘Assim estabelece-se como objetivo final de seres humanos que vivem juntos, e do Estado, que todas as potencialidades humanas e todas as energias individuais devem desenvolver-se por todos os lados e em todas as direções a fim de alcançar expressão. Mas essa visão formal logo suscita a questão da unidade em que essas várias formações estarão contidas, e da meta única que lhes servirá de conceito básico e objetivo final. Assim como o conceito de Estado, o conceito de artes também suscita por um lado a necessidade de um alvo que seja comum às partes individuais, e por outro lado a necessidade de um alvo substancial preponderante. [BRECHT, 2002, p.27]

Mas dentro do aspecto da tradição, desenvolve-se já na Alemanha de

Goethe, Schiller, Kant e Hegel aquilo que se denominou aspecto negativo da

admiração destinada aos antigos. Tal admiração passa a gerir a formação do

homem racionalizado como aquele que quer a todo custo formar sua figura à

“imagem e semelhança” dos gregos “evoluídos”. Estando presente na

educação e nos valores avançados da sociedade científica, esse modo de

formação atinge diretamente o olhar, o gosto dos homens e os leva a acreditar

num ideal de perfeição, que só poderia trazer consequências graves quando

transportado para um ambiente artístico.

Além de aprisionados, os artistas passam a buscar uma arte cada vez

mais separados da intenção, de um sentimento artístico real – pensando que

ainda agora se falou da arte enquanto fenômeno – antes de qualquer coisa

baseada na forma. Ao mesmo tempo, que forma deveria ser essa que guiaria

os olhares racionalizados da sociedade? Novamente, seria o ideal grego, e

nesse sentido, não houve mais reflexão a não ser procurar meios, subterfúgios

para convencer as mentes humanas de que aquilo sim era arte. Assim, é em

Nietzsche citado por Brecht que aparece uma visão que antecipa a sua crítica:

Em suma, para Nietzsche nossa educação é um logro, não somente no plano individual, mas no plano da cultura histórica. O irreparável é este déficit de vida em benefício do adestramento secular, tendo em vista a produção do homem domesticado, ‘animal gregário, ser dócil,

Agora sob outro aspecto, que é o fascínio de Nietzsche e Hegel pelos gregos, assim como entrará também Wagner (que como sabemos, teve seus ideais mais tarde totalmente incorporados pelo Nacional Socialismo), é interessante trazer aqui o dado de que Brecht também partilhava do mesmo arrebatamento. Ele também possuía um fascínio pelos gregos.

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doentio, medíocre, o europeu de hoje’. O homem, este ‘aborto sublime’ está assim pronto a reunir-se à multidão indiferenciada dos indivíduos submetidos à moral, à religião, às mistificações ideológicas, submetidos a estas tutelas que são o Estado, a Igreja, ou então a estes poderes espirituais que são a Ciência e a Moral. [JIMENEZ, 1999, p.245]

Pensando no desenvolvimento de uma mentalidade e nas

consequências desta no que diz respeito à vida do homem e como acabará por

se relacionar com a arte, é questionável a premissa que atribui somente a Hitler

a origem dos elementos de um pensamento como o nazista. Os ideais que

promoveram o tal nacionalismo exacerbado já estavam presentes na

constituição da cultura alemã muito antes da ascensão do partido ao poder.

Outro fato é que os alemães conheceram, antes de tudo se tornar absurdo e

irreversível, a sua fase de ouro e de maior desenvolvimento de uma

nacionalidade, de um espírito alemão, o que os fez acreditar, ou pelo menos

querer acreditar, que eles eram a grande cultura do mundo e por sua vez uma

cultura apoiada numa descendência Greco- Romana. Brecht volta-se

totalmente contra esta pretensão do movimento nacionalista alemão:

A tradição não se apaixonou por este aspecto ‘engajado’ da filosofia da arte dos antigos. Ela, o mais das vezes, ignorou esta implicação da arte na vida concreta dos indivíduos. Preferiu promover e legar à posteridade os aspectos mais lisonjeiros do mito grego: a ‘calam grandeza e a nobre simplicidade’ da arte assim como a grande elevação espiritual das filosofias platônica e aristotélica, levemente afetadas por séculos de interpretações se não duvidosas, pelo menos interesseiras. [JIMENEZ, 1999, p.229]

Ou ainda como observou Nietzsche já em sua época:

No drama wagneriano, sopra o espírito trágico dos gregos anterior à sua própria decadência. Pelo menos, ele o espera. Esperança logo desenganada já nas primeiras representações da Tetralogia no Festspielhaus de Bayreuth. Os espectadores não são gregos ressuscitados que aplaudem as grandes missas wagnerianas, mas sim bons alemães que ainda não souberam ‘superar’ sua vitória sobre a França: ‘O momento em que começava a rir secretamente de Richard Wagner foi aquele em que ele preparava para desempenhar seu último papel diante daqueles bons alemães, apresentando-se como um fazedor de milagres, como um salvador, como um profeta e mesmo como um filósofo.’ Nada naquele teatralismo preparado para seduzir as multidões entusiastas poderia aparentar-se à saúde das festas dionisíacas. [JIMENEZ, 1999, p.250]

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Finalmente, chega o momento de tentar encontrar uma solução para as

perguntas que levaram à escrita deste capítulo e ao enveredamento pela história

do teatro. De início pensou-se o seguinte: por que Brecht critica o modo

aristotélico de representação? Com que intuito ele retoma determinados períodos

históricos para fundamentar a sua crítica à permanência desse modelo?

Percorreu-se um extenso período da história até aqui e foi necessária

uma recorrência para além das referências de Brecht, a fim de compreendê-lo.

Assim, voltou-se à sua crítica, ponderando se esta podia ser entendida como

uma negação de alguns autores e teorias; ou ainda se houve, dentre as

sinalizações feitas por ele e durante sua volta histórica, momentos em que se

concentrou nas exceções que o ajudariam a justificar, com maior critério, a

crença de que houve mudanças, propostas por essas exceções, que ao

reverem as estruturas do teatro fizeram contraponto ao modelo tradicional,

mesmo que por breves períodos e com um alcance prático limitado:

Sobre a concisão do estilo clássico: quando omito muita coisa numa página conservo a palavra noite, digamos na frase ‘quando a noite chegou’, sua plena significação na mente do leitor. A inflação é a morte de toda a economia. Para as palavras é melhor que dispensem seu séquito e se enfrentem umas às outras por sua própria conta e com a máxima dignidade. E é totalmente falso dizer que os clássicos esquecem os sentidos dos leitores; pelo contrário, contam com eles. Nossos sensualistas são como a medula espinhal: para experimentar qualquer sensação nas solas dos pés têm que andar emproados como os Napoleões. [BRECHT, 2002, p.104]

Diante de tudo o que se pode entender por ponto de afinidade de Brecht

com esses autores, verifica-se que além dele não ter dirigido a sua crítica

especificamente ao teatro dos gregos, não negou a importâncias das obras

clássicas e tampouco se concentrou num critério de julgamento, considerando-

as boas ou ruins. O olhar de Brecht está sempre atento a essas simplificações,

opondo-se a análises desse tipo. É claro que ele tem uma afinidade maior por

certos autores da história, mas em sua análise, está mais preocupado em

destacar quais os eventos que permitiram ao drama instalar-se na crise, para

que ele mesmo não os repetisse. Brecht defende inclusive a representação dos

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clássicos − quando julgado necessário −, mas pelo olhar distanciado do

presente, sob os efeitos formais do novo teatro21:

Encontramos no domínio da representação teatral uma tradição que, impensadamente, se atribui a um patrimônio cultural hereditário, se bem que essa tradição apenas sirva para prejudicar a obra, que constitui o autêntico patrimônio hereditário. Ao fim, portanto, o que efetivamente tem foros de tradição é o progressivo dano que se tem infligido às obras de arte. Cada vez mais, a bem dizer por desleixo, tomba maior quantidade de pó sobre as grandes obras da pintura antiga, e, quando se fazem reproduções delas, reproduzem-se também, mais ou menos diligentemente, as manchas de pó. Perde-se, assim, sobretudo, a frescura original da obra clássica, o caráter que possuía outrora, surpreendente, novo e criador, e que era uma das suas características essenciais. A forma de representação tradicional coaduna-se ao comodismo dos encenadores, dos atores e do público, simultaneamente. Substitui-se a profunda emotividade das grandes obras por um mero temperamento dramático, e o processo de cultura a que se submete o público é, em contraste com o espírito combativo dos clássicos, tíbio, acomodatício e com fraco poder de intervenção. Com o tempo, tal circunstância origina, naturalmente, uma terrível monotonia, para a qual os clássicos em nada contribuem. (...) É preciso ter tudo isso em mente, quando nos dispomos a representar uma obra clássica. Temos de encarar a obra de uma forma nova, não devemos nos apegar à perspectiva decadente, fruto do hábito, através da qual esta nos foi apresentada nos teatros de uma burguesia decadente. Não devemos aspirar a ‘inovações’ de caráter forma, alheia à obra. (...) A grandeza das obras clássicas reside na sua grandeza humana, e não numa grandeza de fachada. [BRECHT, 2005, p. 121-123]

O trecho acima, por exemplo, compõe o texto, “A obra clássica

intimidada”, escrito em 1954 e é importante para que se possa perceber que

não só o autor não negou os clássicos como se preocupou em destacar a

importância destes. A discórdia de Brecht é com a tradição. Esta, que se

ocupou da reprodução de obras que de alguma forma contrariava o passado,

impedia a origem de uma nova arte porque não permitia transformações, mas

se posicionava pretensiosamente contrária a essas mudanças, conservando

sempre os aspectos próprios dos antigos modelos.

Brecht, que começou o seu trabalho quando o drama já estava imerso

numa crise profunda, quis defender o novo modo de teatro, que praticamente

se impõe, confirmando a sua importância ao empreender a sua análise

21

Essa questão será mais bem compreendida quando se tratar do que ele pretende com o realismo (segundo capítulo), porém, para adiantar, em se tratando da volta aos clássicos, pode-se dizer que Brecht entende que a compreensão do passado poderia ser feita pelos indivíduos, se num retorno a fatos desse passado, eles pudessem tirar dali as suas próprias conclusões.

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histórica. O que ele deduz dessa análise é que, quando a tradição barrou o

avanço de novas ideias, aquilo podia ser considerado uma “falha” que impedia

o despertar de novas experiências no drama. Para que ele pudesse reviver,

Brecht precisou encontrar um modo de representação que o transportasse para

longe da tradição, da pompa formalista. Era preciso afastar o teatro novamente

das “falhas” derivadas de um apego fantasioso ao velho mundo. Assim, como

elas diziam respeito a essa constante reprodução dos clássicos e apropriação

do modo aristotélico de representação, era preciso criar um novo modo, que

ele conclui como sendo um modo não-aristotélico, porque se oporia a todas

aquelas regras ditadas pela tradição, portanto, por essência aristotélica.

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1.3 Brecht e Aristóteles

Abranger a dramaturgia ocidental sob o conceito de dramaturgia aristotélica é viável na medida em que se tratar de apresentações imitativas (nachahmende Darstellungen), segundo as quais não somente os artistas imitam a representação de certos homens, mas também como uma apresentação em que a imitação dos artistas e, com ela, a imitação dos homens representados e imitados ocorra por meio de um ato de empatia. No decorrer dos séculos, diverso povos produziram dramaturgias que se distinguem facilmente umas das outras. As mais importantes seriam a grega, a dramaturgia dos mistérios, a dramaturgia dos jesuítas, a espanhola, a elisabetana, a francesa clássica e alemã do século XVIII. A forma de transitar entre o palco e a plateia, contudo, sempre foi a empatia aristotélica. [BRECHT, 1998, p.169-70]

1

Aristóteles confere à imitação e à catarse poética uma função de educação crítica. É evidente que suas considerações ‘estéticas’ dependem de uma teoria da verdade e do absoluto, mas seria totalmente insuficiente expor o conceito platônico de belo ou a teoria aristotélica de mimese unicamente do ponto de vista filosófico ou metafísico. Isto seria fazer pouco caso da influência considerável que estes princípios, estéticos e artísticos, nascidos na Grécia antiga, exerceram sobre o conceito de arte no Ocidente, do pensamento medieval até as revoluções industrial, cientifica e técnica da segunda metade do século XIX. [JIMENEZ, 1999, p.193]

Apesar da crítica de Brecht à tradição estar endereçada especificamente

a um teatro que, como se viu, se desenvolve depois da Revolução Francesa −

o teatro burguês −, não se pode esquecer que na base desse desenvolvimento

sempre esteve presente, como ponto de apropriações das mais diversas, a

obra de Aristóteles, conforme se mostrou no primeiro item deste capítulo.

Afinal, foi graças ao filósofo grego que o teatro teve a sua primeira teoria.

Desse modo, torna-se incontestável, através da leitura de alguns escritos de

Brecht sobre esta, a existência de uma oposição a alguns conceitos que se

estabeleceram ali e que desde então se propagaram com base naquela obra.

Há, no entanto, certos limites nessa oposição, e a proposta desta parte é

pensar quais então, seriam eles, pois percebeu-se, com o estudo de Brecht e

pelas leituras de seu trabalho, que esse ainda é um problema em aberto

quando se fala em Teatro Épico. Mais ainda porque, segundo a própria

denominação dada por Brecht, ele desenvolveu um teatro “não-aristotélico”.

1 Este trecho foi selecionado e traduzido por Luciano Gatti. Retirado de Werke. Große

kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe. Band 22-1, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1988.

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Este processo, contudo, não aconteceu do nada. Brecht, apesar de

saber das diferenças entre a dramaturgia aristotélica original e a dramaturgia

aristotélica construída com o tempo, nota que da mais antiga à recente, sempre

existiram alguns pontos e que diziam respeito a um sistema de regras formais.

Quando quer buscar em Aristóteles algumas causas para o desenvolvimento

do drama ter se tornado tão problemático, o fez porque, assim como com a

tradição, queria descobrir modos de romper finalmente com essa estrutura há

tanto sustentada dentro do teatro. Quais partes daquilo que compreendeu de

Aristóteles apresentam-se como ações problemáticas para um drama, do modo

como quis construir, e quais ele mesmo utiliza a favor de sua nova construção?

Essa é uma questão polêmica, pois, como se viu nos itens anteriores do

capítulo, Brecht não se reportou diretamente ao teatro que existia na Grécia,

mas rejeitou a vigência de um único modelo na história, criado a partir dessa

mesma teoria sobre a poesia, a teoria aristotélica.

Quanto ao retrocesso que realiza, de início Brecht enfrenta um problema

quanto ao limite de sua própria crítica. Há algum tempo já se sabia que era

impossível pensar na concretização de tragédias como as dos gregos, num

mundo posterior a eles. Ainda assim, continuavam as inúmeras tentativas de

retomar, de forma rigorosa ou “livre”, o antigo modelo. Por esse simples (mas

às vezes muito pouco notado) motivo, a crítica de Brecht deve ser separada

das interpretações que, segundo José A. Pasta, alcunham Aristóteles o

principal alvo de oposição de Brecht. É importante separar os limites dessa

crítica, para tornar mais ampla a discussão da proposta brechtiana:

Pode-se fazer hoje um espetáculo com o Édipo Rei? Se se pretende remontar a autenticidade imediata da experiência ática, o impasse radical revelar-se-á incontornável. Mesmo numa peça com um enredo ‘fácil’, como o Édipo Rei, essa crua história apenas encobre para o espectador hodierno o próprio sentido da tragédia: ela se transforma numa historieta pequeno-burguesa, que se repete em todos os apartamentos das grandes e das pequenas cidades – o elemento trágico desaparece. Morre a deus, morrem as Eríneas e todas as forças manipuladoras do destino. Desse outro ‘personagem’ maior, que é a peste, desnudaram-se todos os segredos: a ignorância já não mata. E mesmo a realeza do rei tornou-se elemento decorativo. Mas a tragédia antiga é essencialmente política: se Édipo não é rei, nem pode ser trágico. Está claro: a montagem atual de uma tragédia grega não faz um espetáculo, não vai além de uma tentativa que voa às cegas, um experimento talvez interessante. [BORNHEIM, 1992, p.226]

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Desde a difusão da obra de Aristóteles, que se deu mais fortemente na

Renascença, muitas disputas surgiram quanto às interpretações do grego. Sua

famosa obra, Poética, ficou conhecida como a primeira teoria a oficializar as

definições das formas da tragédia e da comédia, que já eram antes praticadas

nos palcos. Mais tarde, todos aqueles que lidaram com teatro se depararam

com esses pressupostos e disso criou-se uma dependência que pôde ser

verificada nuns períodos mais, noutros menos ao longo da história do teatro.

Quando, então, Brecht se voltou para essa teoria, buscou destacar “pontos-

chave” desta (já apropriada), os quais julgou terem passado a desempenhar

um efeito problemático sobre o público, ao receberem determinada atenção.

Consagrou-se no teatro uma tradição que não conseguia mais escrever

tragédias como as da Grécia. Ao invés,, por querer continuar atrelada a esse

sistema de regras clássicas – porque este gerava conforto e certeza –, tentou

todos os modos de criar através da reprodução destas a ilusão de um mundo

ainda comandado pelo mito, mesmo que esse mundo na prática já não fosse

manejado dessa forma. Com o olhar sobre a história, Brecht julga um tipo de

apropriação como essa grosseira e superficial, porque sempre se baseou numa

forma determinada − ainda que ela não fizesse mais sentido − apenas para

servir aos interesses das classes dominantes das sociedades do Ocidente.

Raymond Williams coloca as seguintes perguntas sobre essa dependência:

O que parece estar em jogo mais exatamente é um tipo específico de morte e de sofrimento e uma específica interpretação dessas duas questões. Alguns dos acontecimentos e reações são trágicos, outros não. Por mera influência daquilo que foi sancionado e por causa de nossa avidez natural em aprender, é possível dizer e repetir essa frase, sem que uma contestação real seja feita. E estar, a um só tempo, dentro e fora de um tal sistema implica uma redução ao desespero. Porque ainda há duas perguntas que precisam ser consideradas. É realmente correto afirmar que aquilo a que chamamos tradição carrega um significado tão claro e unívoco? E, seja qual for a nossa resposta a isso, quais são as relações reais que deveríamos ver e seguir entre a tradição da tragédia e o tipo de experiência a que estamos sujeitos em nossa própria época, e à qual nós, de modo simplista e talvez erroneamente, chamamos trágica? [WILLIAMS, 2002, p.31]

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Pleno século XX. a arte e o teatro passavam por diversas

transformações, e, entre as inúmeras tentativas de adaptação ao novo mundo,

essa perspectiva de mudança sempre se dava no limite da reforma, ou seja, no

limite das releituras que retornavam às características elementares de origem

nos gregos. É então nesse momento, quando Brecht decide “desbancar” os

ideais clássicos tradicionais e propor uma nova forma de fazer teatro, não-

aristotélica, não à toa, que essa questão se torna uma espécie de karma em

seu caminho, e que o irá acompanhar através das críticas posteriores de sua

teoria, vivas até hoje.

Em resumo, o que então ele pretende quando critica o drama aristotélico

é alcançar a ruptura desse teatro. Ao mesmo tempo, afirmou também que o

modo de dramaturgia aristotélica poderia continuar existindo, ou seja, que ele

não queria acabar com toda essa espécie de representação, mas acreditava

que havia outro caminho possível, totalmente o inverso de muitos

“conceitos/práticas” conservados pelo tempo. Porque esteve muito mais

preocupado em dar ao teatro uma nova leitura, pensando sempre adiante, não

se deteve em questões que exigiam um rigor teórico, muitas vezes apenas

tratando de enumerá-las. Essa análise também foi feita por Bornheim, − que

enfatizou a importância da prática para Brecht − que fez com que ele visse

para além dos autores alemães e do teatro que se desenvolveu no país,

também e com foco em determinadas questões, a figura de Aristóteles:

é essa prática que acaba funcionando em sua cabeça – prática que exibe o Aristóteles presente nos palcos alemães a partir da interpretação de Lessing e de suas subsequentes metamorfoses: era a prática aristotélica alemã que Brecht via em cena. O fato, entretanto, não autoriza que, em nome de Lessing e daquela prática, se esqueça o velho Aristóteles dos tempos áticos. [BORNHEIM, 1992, p.213]

O que fez propriamente com que Brecht se envolvesse com a leitura de

Aristóteles para romper com o modelo dramático, ao invés de simplesmente se

deter na luta contra o teatro burguês? É que através de sua análise, Brecht

considerou que alguns efeitos dos mais fundamentais para caracterizar um

teatro fantasioso e alienante surgiram com Aristóteles – a mimeses, a empatia,

a catarse – embora o desenvolvimento problemático tenha sido posterior.

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Justo, portanto, que ele quisesse, mesmo que indiretamente, ao menos rever

essas disposições iniciais, conhecendo os conceitos em sua base. Em outras

palavras, pode-se dizer que Brecht “cortou o mal pela raiz”. Ele acreditou que

indo às origens – assim como fizeram autores como Lessing, que quiseram

retomar as verdadeiras regras aristotélicas – seria possível finalmente rebater

aquela estrutura.

Bornheim destaca ainda que, embora o centro da crítica de Brecht fosse

os palcos alemães, há uma crítica a Aristóteles que, por ser mais indireta, soa

para muitos intérpretes (inclusive para ele) como uma análise superficial, em

que ele contesta aquilo que, por razões históricas, é incontestável. Como se

Brecht cometesse uma espécie de anacronismo. Disso, a pergunta que fica é:

até que ponto Brecht se opõe aos conceitos presentes na Poética?

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1.3.1 O jogo emocional e perigoso da empatia

A tragédia grega da forma como foi descrita por Aristóteles tinha por

objetivo levar o espectador a um determinado estado emocional. Brecht

entende esse jogo como algo que sempre foi perigoso para a relação entre

palco e plateia. O conceito de empatia (Einfühlung), que dentro da tragédia era

o caminho encontrado que permitia levar o público ao resultado catártico –

esperado num fim trágico – desenvolveu-se de tal forma que, principalmente a

posteriori com as apropriações, o teatro, seja na representação de uma história

ou de um acontecimento, passou a se situar totalmente dentro dessa relação

que Brecht acreditou se sustentar na ilusão. Com base nisso é que resolve

nomear o seu trabalho como a criação de um teatro “não-aristotélico”:

Mas num breve ensaio, escrito provavelmente por volta de 1935, e que pretende ser uma ‘Crítica da Poética de Aristóteles’, Brecht prende-se à catarse, definida por ele como ‘a purificação do espectador do terror e da piedade através da imitação de ações que suscitam terror e piedade’ (III, 2), e o seu resultado estaria na empatia que desperta no espectador. Está precisamente nesse processo provocador da empatia o traço decisivo que determina a dramaturgia aristotélica, segundo Brecht, ‘sendo indiferente à utilização ou não das regras introduzidas por Aristóteles’ (III,2). A questão toda termina restringindo-se, assim, à concentração dos efeitos da ação ao nível das emoções – e é exatamente isso que deve ser rejeitado por uma dramaturgia não-aristotélica.[BORNHEIM, 1992, p.215]

A catarse (Katharsis) – a finalidade trágica – foi mencionada por Brecht

como um obstáculo à tentativa de criar um teatro que construísse uma nova

relação com o público. Para compreender melhor isso é necessário, no

entanto, fazer algumas separações. Exclusivamente para os gregos, essa

finalidade trágica tinha o sentido restrito e deveria purificar as emoções

suscitadas durante a representação, as quais segundo Aristóteles deveriam ser

respeitadas, sendo sempre a compaixão e o temor. Havia um processo,

conhecido hoje como ritualístico, para levar o público a sentir essas tais

emoções; entre elas estava em primeiro lugar a mimeses2, que aliada a outros

2 Essa mimese artística, grosso modo, é uma imitação elaborada com fim de atingir seus alvos,

que, neste caso, são os temas da tragédia ou da comédia. Seja imitando situações nobres e

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artifícios utilizados na tragédia (como a música) tinha a intenção de criar um

vínculo emocional com o público, o que recebeu o nome de empatia.

Brecht também procura separar o sentido do efeito da empatia

despertada nos espectadores, através da ação mimética no teatro aristotélico

praticado pelos gregos – em que havia uma ingenuidade quanto à ação sobre

os espectadores – daquele que ela adquiriu mais tarde, passando a uma ação

manipulada para exercer poder sobre as mentes dos indivíduos. Esse,

entretanto, é um desenvolvimento do alto capitalismo, que deu origem a

versões cada vez mais exageradas dessa manipulação, tornando-se o grande

exemplo que se tem: o poder conquistado pela mídia nos dias atuais.

A empatia de um modo mais geral é a identificação do sujeito com as

personagens e com as situações representadas, o elo mais poderoso entre o

palco e plateia, provocado pela ação mimética. Esse elo, porém, teve sempre

muito pouco de racional, e é nesse ponto que Brecht investe mais ferozmente

contra a prática de um teatro aristotélico. As emoções provocadas por essa

identificação na tragédia tradicional deveriam resultar na catarse. Sobre ela, diz

Brecht:

Nós designamos uma dramaturgia como aristotélica quando esta empatia é provocada por ela, sendo inteiramente indiferente se com ou sem o emprego das regras mencionadas por Aristóteles. O ato psíquico singular da empatia é realizado de maneira muito variada no decorrer dos séculos. [BRECHT, 1988, p.171-2]

3

Mas em que sentido essa empatia (identificação) pode ser tão grave que

se tornou alvo do combate de Brecht da teoria aristotélica? Em primeiro lugar,

Brecht percebe que ela não é algo específico do teatro burguês, mas que

sempre existiu: “A forma de transitar entre o palco e a plateia, contudo, sempre

foi a empatia aristotélica” [BRECHT, 1998, p.169-70]4. Salvo as controvérsias

acerca do sentido próprio que a empatia tinha para Aristóteles − porque

dignas de respeito, ou apresentando cenas ridículas sobre os homens. De qualquer forma, quando se trata de arte, ela nasce com a intenção de produzir ilusão. Caso contrário, não seriam tratadas por tanto tempo como as melhores representações, aquelas que mais fielmente imitaram o objeto abordado. Não se atribuiria àquelas que “enganam” melhor o mais alto valor. 3 Trecho traduzido por Luciano Gatti em Werke. Große kommentierte Berliner und Frankfurter

Ausgabe. Band 22-1, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1988. 4 IDEM.

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sempre se dependeu da interpretação da obra do filósofo, por terceiros −, o

que importa para o trabalho e as investigações de Brecht é que ela toma o

centro de sua crítica. Pois, ao se basear num elo emocional entre o espectador

e o que acontece no palco, sempre se manteve fora do teatro o julgamento

crítico dos acontecimentos retratados.

A identificação consiste em um “colocar-se no lugar das personagens”

por parte dos espectadores, que ao se deterem nesse exercício passam a

sentir o que estão vendo antes de pensar sobre, e isto, adiante, principalmente

com a chegada à estrutura capitalista burguesa, acabou se transformando

numa fonte poderosa de alienação e controle sobre os indivíduos. Além disso,

Platão já havia atentado para o perigo que essa imitação (a mímesis) poderia

ter sobre os homens, servindo como uma arma para tais manipulações5.

Conduzidas de uma forma em que se privilegiam os sentimentos, as

pessoas são incapazes de tomar distância dos acontecimentos retratados na

representação, como nota Brecht. Há um vazio que se instala no pensamento,

pelo fato dele não ter sido convocado, e é claro que isso se deve

primeiramente a Aristóteles (apesar de ser preciso insistir sempre nas

derivações), pois para o filósofo a catarse era o fim esperado da tragédia.

Porém, essa é mais uma interpretação. Ainda que muitas tenham julgado que

Aristóteles enfatizou o efeito da catarse, ele, no entanto, tratou dela apenas

indiretamente em Poética, ao passo que na República ela já tinha aparecido

5 Para Platão, esse conceito não existe em detrimento de uma relação inofensiva e benéfica,

mas realiza-se como uma cópia que, e enquanto tal, tem por objetivo enganar os indivíduos. Para alertá-los e com o intuito de que a ela se faça frente, Platão distingue dois tipos de mímesis. De um lado, a mimese natural, inerente a todos os homens, e de outro, agora seguindo a concepção de Aristóteles, aquela que. por parte de seres com vocação para improvisar e dar a ênfase desejada combinando com “harmonia e ritmo”, faz nascer a poesia. Platão acredita que a mimese é perigosa em primeiro lugar para os indivíduos que, sem conhecimento, não são “esclarecidos” quanto à própria natureza. Dessa forma, tomados por uma aproximação sentimental, deixam-se levar por aquilo que lhes é representado nessa mimese artística, que, como ele acredita, ilude e por isso é capaz de atingir a inteligência desses homens. Ao que consta, esse sentido se subverte em Aristóteles e depois é possível vê-lo ser apropriado, propagado como princípio fundamental do teatro e depois refutado por Brecht. Uma vez aceita como natural ao homem e usada em prol da educação também na arte, a produção mimética pode ser vista sendo empregada com a finalidade que havia sido negada por Platão. Ela (a mimeses) assume assim, um sentido negativo também para o homem dito consciente. E quando Platão diz que a inteligência desses cidadãos é atingida por esse efeito, vê-se nisso uma aproximação da insistência de Brecht e daqueles que como ele, combateram a alienação, de que um comportamento assim da arte em relação ao seu público só pode levá-lo a se tornar não ativo, participando da sociedade, mas um escravo de sua ignorância, que ao contrário de combatida é nutrida pela mimeses.

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mais claramente definida e relacionada à música. Sobre essa “confusão”,

Bornheim considera-a uma falta de Brecht e atenta:

Não que o problema da força das emoções não exista em Aristóteles, e que ele não tenha sido crítico em relação a tal força. Num texto do estagirita, que Brecht certamente não chegou a conhecer – se o tivesse conhecido certamente ter-se-ia servido dele com fartura, pois parece adaptar-se como uma luva às críticas brechtianas e até mesmo à própria situação da dramaturgia burguesa – e que se encontra na parte final do tratado intitulado Política, Aristóteles se refere justamente à violência das emoções. O trecho é o mais importante dos escritos de Aristóteles sobre catarse, e começa prometendo uma análise do tema a ser desenvolvida no ‘tratado sobre poesia’; presume-se que essa promessa, ou bem não foi cumprida, ou então, se foi, o texto perdeu-se. [BORNHEIM, 1992, p. 219-220]

Ou seja, hoje ainda existem dúvidas tanto em relação ao posicionamento

de Brecht sobre a leitura de Aristóteles estar correta, quanto ao fato de em

Aristóteles as coisas serem mesmo da forma como ficaram conhecidas, como é o

caso da catarse. De qualquer forma, uma anunciação foi feita pelo grego, e Brecht

deixa claro que não busca naquela origem a mesma empatia desenvolvida pelo

alto capitalismo, mas que seu objetivo é atingir a estrutura, atingir a base com

profundidade, a fim de não repetir o mesmo movimento superficial das muitas

reformas feitas dentro do teatro. Portanto, para ele, a imposição de um efeito

como a catarse coloca em jogo todo o rumo da representação, que já se

encontrava aprisionada a uma postura que esperava causar no espectador,

apesar de não ter o sentido negativo como o do teatro burguês.

Tanto atores quanto espectadores são afastados da realidade para a

construção de histórias ilusórias. Há um reconhecimento de uma realidade,

porém, ela é manipulada para concentrar-se no jogo emocional, onde o lado

crítico é claramente deixado de lado:

A conclusão está longe de permitir, contudo, que se avance sem mais que a tese de Brecht esteja errada, pois realmente existe hoje uma farta dramaturgia na qual a hegemonia das emoções implica até mesmo um certo comprazer-se na ignorância. [BORNHEIM, 1992, p.219]

Brecht não poderia, portanto, ser a favor de uma dramaturgia que tem por

objetivo estabelecer esse tipo de ligação entre palco e plateia. O problema das

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interpretações feitas por ele, ao que se conclui, é que, por não conseguir

desvincular o seu olhar atento das mazelas provocadas pelo teatro burguês,

quando propõe um olhar sobre os antigos, a fim de assim fazer as distinções

necessárias entre a apropriação e o original, cai na armadilha de sua rejeição se

tornar em certa medida falsa. Como diz Bornheim, a rejeição atinge a dimensão

do superficial e não consegue alcançar a profundidade crítica desejada.

De qualquer forma, não é possível fazer uma cisão entre um Brecht

descontente com a burguesia, seu teatro e seus valores, e aquele que busca

nas origens do teatro razões para que aquilo que teve início ali se

desenvolvesse da forma como se desenvolveu. Pode-se pensar num Brecht

que agirá em relação à prática teatral de maneiras distintas, mas o seu

posicionamento contrário ao modo tradicional de teatro é e sempre será um

posicionamento radical, pensando sempre no momento de sua realidade:

Não se trata de encontrar em Aristóteles, como modo de recepção da obra de arte pelo espectador, a empatia que ocorre hoje como empatia com o indivíduo do alto capitalismo. Temos, contudo, nos gregos, aquilo que sempre entendemos por catarse, em cuja base podemos supor alguma forma de empatia, e da qual decorrem entre nós circunstâncias muito distantes. A postura do espectador concebida como inteiramente livre, crítica, e a partir de soluções puramente terrenas para as dificuldades não é a base para catarse. [BRECHT, 171-2]

Se, no entanto, para esclarecer a que tipo de dramaturgia Brecht se

contrapõe seja necessário vasculhar na história a sua origem e percussores,

pode-se então dizer que ela é a dramaturgia aristotélica, porque primeiro foi

formulada por Aristóteles. Por outro lado, não se poderia pensar − assim como

se fez com o marxismo, ou com o próprio Brecht − que tal dramaturgia tratava-

se de um modelo fiel ao original. Na verdade, consistia em uma generalização

cuja natureza se deve, assim, não ao seu formulador, mas às apropriações

sempre posteriores.

Segundo Bornheim, a empatia que Brecht pretendeu combater só existiu

daquela forma particular no teatro burguês, porque só ali a presença do sujeito

tinha um peso tão grande. Um erro frequente com relação aos gregos, por

exemplo, é esquecer o sentido de coletivo que tinha o teatro na Grécia, muito

diferente dos tons subjetivistas adquiridos mais tarde. No teatro burguês, a

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subjetividade pôs-se a favor do fator social, e isso destoa totalmente de

Aristóteles, que dava outra dimensão a esses fatores tão decisivos para as

representações modernas.

Logo, quando Brecht diz que a forma de transitar entre palco e plateia

sempre foi a empatia, além de se pautar na história do teatro e assim como

quase sempre fez quando se referiu a Aristóteles, está pensando no rearranjo

que quer promover dentro do teatro, na ruptura É desse modo que se pode

afirmar que a sua crítica é e não é remetida ao Estagirita. Como se verá no

próximo capítulo, a ideia de Brecht de empreender um projeto crítico para o

público de teatro se desenvolverá cada vez mais, até ele chegar à sua fase

mais madura e se concentrar num redirecionamento das emoções.

As emoções serão convocadas para dar empolgação ao espírito crítico.

Brecht não é tão cético quanto a crer que elas deviam servir como um impulso

criador e não como diminuidoras da potência de ação dos indivíduos. Por isso

tornou-se tão desafiador e importante para ele despertar o público para certo

estado emocional, sem recair no jogo cego da empatia. Nas representações

tradicionais, os acontecimentos misturam-se com as emoções de tal forma que

fica difícil discernir as causas. O que em Aristóteles é um jogo entre verdade e

aparência, o que num primeiro momento pode parecer paradoxal, mas que

conseguia unir emoção e conhecimento, para Brecht passa de outra forma,

para o mesmo resultado; e o que no teatro burguês era pura emoção é

renovado com outros ares.

Ainda sobre esse confronto direto vale ainda uma última reflexão: Brecht

fez questão de se comportar como uma figura polêmica, principalmente depois

das críticas que recebeu de seus contemporâneos. Como coloca José A.

Pasta, cansado de se esconder, ou simplesmente porque julgava injustas

muitas das colocações a seu respeito, pode-se pensar que Brecht quis entrar

na provocação dos intelectuais. Assim, como reação às acusações feitas a ele,

que até hoje dão o que falar, uma das perguntas colocadas é se a postura em

relação a Aristóteles não teria se desenvolvido dessa maneira de propósito. Ou

seja, se ele quis mesmo agir de modo contraditório, justamente para causar

desconforto aos seus contemporâneos. Será que Brecht não estava já

defendendo aquilo que colocou mais tarde: produzam com os clássicos algo

novo? Todos sempre tão preocupados em ler e estudar corretamente os

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gregos, ser-lhes fiéis, e Brecht de repente lê Aristóteles e essa leitura é vista

como superficial?

Será que isso não fazia parte de seu jogo enquanto o homem de seu

tempo que foi, muito mais preocupado com o presente e o futuro do que em

olhar para os clássicos de um modo tradicional? Talvez essa seja só mais uma

suposição que permanecerá em aberto, mas é interessante pensar que, como

dito anteriormente, Brecht nunca quis de fato confrontar os gregos a ponto de

dizer que estavam errados, mas ele certamente olhou para a disposição do

teatro burguês e pensou nisso.

Ao ler Aristóteles, talvez ele quisesse mesmo mostrar a origem de todo o

erro, a falta de liberdade em se seguir à risca modelos que não faziam mais

sentido para os homens. Talvez ele quisesse dizer: “Vocês com os seus

moralismos, com toda essa técnica, esse intelectualismo na leitura dos

clássicos, dizem-se tão esclarecidos, dominadores dos saberes e escrevem

peças que não promovem reflexão alguma; são vocês, então, os principais

desvirtuados das intenções dos antigos”.

Além disso, a fase de Brecht em que ele critica Aristóteles é quando ele

ainda tentava definir um teatro que não recaísse no problema de se tornar um

teatro vago. Ele quer desenvolver regras como faz o pensamento científico,

mas colocando-as também sujeitas a revisões e a exceções. Essa atuação

pretensamente científica nasceu de uma insatisfação com a realidade, que o

impulsionou, em primeiro lugar, a submeter essa realidade a um olhar de

negação, rebatê-la com um sistema tão estruturado (ou até mais) que o antigo,

e, mais tarde enfim, como se verá no terceiro capítulo desta tese, chegar à

seguinte conclusão: para tal sistema se manter adiante, diferente de como se

mantinha o aristotélico, seria necessário que ele se tornasse um sistema

“manejável (praticável) para o espectador”. Era assim como Brecht queria que

o mundo fosse visto através do olhar do novo teatro.

Muitas conjecturas que avaliam a postura de Brecht são possíveis, mas

em verdade, se ele só tivesse visto pontos admiráveis na obra de Aristóteles,

provavelmente não existiria hoje um teatro “não-aristotélico”, não teria ele

rompido da forma que rompeu com a tradição e, mais, não se daria luz a um

modo de representar em tantos aspectos inverso a Aristóteles. Será que Brecht

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estava mesmo querendo ser fiel ao que ele mesmo defendeu? Que um clássico

deveria estar sempre em construção?

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Capítulo 2. Brecht e o Realismo Socialista

Se queremos ter uma literatura verdadeiramente popular, viva, combativa, totalmente imbuída da realidade e abrangendo totalmente essa realidade, temos de ser capazes de acompanhar a rápida evolução da realidade. As grandes massas trabalhadoras estão já em marcha. A atividade e a brutalidade dos seus inimigos é prova disso. BERTOLT BRECHT

O foco deste capítulo é apresentar o debate histórico marcado pelo

confronto entre Bertolt Brecht e George Lukács. Um debate que tratou a crise

na arte, que, apesar de anunciada a partir do século XIX, só foi percebida um

pouco antes da explosão da primeira guerra mundial e pensada mais tarde, já

passada a guerra. O capítulo anterior serviu para inserir Brecht nesse contexto,

em que, uma vez entendido que a evolução do modelo capitalista de produção

reservou para a arte uma função observada como doentia, ou equivocada, pois

equivalia a uma transformação da arte em algo, a serviço de um ideário,

percebe-se a necessidade de se pensar a superação dessa função através da

criação de outra. Nesse momento, nasce de modo mais significativo a

discussão que pensou essa mudança, além de pensar a cisão entre forma e

conteúdo, algo teoricamente impossível na concepção de uma obra de arte.

É também no mesmo período que artistas e intelectuais começam a

apostar em determinados caminhos que fizessem novamente a função da arte

mudar, para que ela pudesse então lidar com a questão social (urgente

naquele momento) de uma forma consciente. Para recuperar o prestígio, a arte

precisava lidar com isso naquele momento, ao invés de se refugiar. E no final

da década de 20 e início da de 30, Brecht dá início ao seu período

experimental em busca de novos caminhos. Que técnicas deveriam ser usadas

a partir dali pelos artistas, para promover o reencontro entre a forma e o seu

respectivo (porque há um) conteúdo? Brecht encontrará não um modo, mas

alguns meios novos para lidar com a criação. Mas por ter dado ênfase ao

aspecto experimental dessa nova relação, não será bem compreendido. É

justamente sobre essa recepção e a não compreensão de sua proposta real

que este capítulo tratará.

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Além dos autores escolhidos para situar a discussão, vários intelectuais

(como Adorno, Benjamin e outros autores da escola de Frankfurt, por exemplo)

pensaram o papel que a arte deveria desempenhar dali em diante na

sociedade, depois do choque provocado pelas vanguardas artísticas do

começo do século XX. Passada essa onda de eventos, veio se acrescentar à

atmosfera pesada imposta pela guerra um questionamento sobre os rumos da

técnica e da sociedade, e sobre o que tudo aquilo representava em termos de

mudanças para as futuras criações.

Pode-se dizer previamente que, embora Brecht e Lukács tenham

seguido direções opostas, ao mesmo tempo dividiram o anseio comum em

relação à arte, um anseio próprio da época: vê-la ocupando uma posição

melhor que aquela que passara a ocupar com a burguesia. Brecht, de um lado,

depositou uma forte esperança num recomeço, pressupondo a derrubada das

clássicas regras dramáticas e apostando em experimentações. No entanto, de

outro lado estava Lukács, que ao mesmo tempo em que defendia o ideário

socialista, queria recuperar a arte clássica contra a concepção burguesa. Ele

queria ver a arte retomar a crença dos homens, na totalidade que tinha sido

derrotada pelo processo de organização capitalista, um processo em si

desintegrado. Para isso, Lukács se oporá a Brecht e a todos aqueles que

tentaram trazer para aquele ambiente mais evidências da instabilidade do

mundo e da realidade; aqueles que quiseram aprender a conviver com essa

condição do homem de não mais se sentir completo.

O que interessa a este capítulo, além de situar esses dois autores dentro

de seu conhecido debate sobre o expressionismo1, é compreender realmente

em que pontos suas visões se tornaram tão distintas. Nessa época (ainda

prévia à fase madura), ele já se distanciava de um projeto partidário, marxista

no sentido ortodoxo, porque embora ele reconhecesse a importância da

militância, que poderia ajudar a concretizar a mudança radical do ponto de vista

social, ela sozinha não atingia o cerne do problema da arte, da forma como

1 A base que guiará a discussão são alguns textos em que os autores expuseram suas

posições sobre o expressionismo e a importância da vanguarda naquele momento, publicados

no volume Um capítulo da história da modernidade estética: Debate sobre o expressionismo.

Machado, Carlos Eduardo Jordão - São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

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Brecht acreditava que ele deveria ser abordado. Mesmo assim, seu

posicionamento acabou parecendo para muitos descaso, insuficiência

intelectual, e ele foi comparado a mais um pequeno artista burguês ainda que

sua postura tenha ido além.

Como dito acima, ambos os lados, tanto o de Brecht como o de Lukács,

estavam preocupados com o rumo da arte. Talvez porque o debate tenha se

dado entre intelectuais e artistas, ele ficou mais complicado, mas um ponto

comum a todos tem de ser destacado: o descontentamento com a arte

decorativa burguesa. A discussão entre os dois agravou-se quando começaram

as acusações por parte de Lukács. Em 1934, em “Debate sobre o Formalismo”

ele acusou escritores de vanguarda de serem formalistas, e dali seguiu-se um

debate extenso sobre o andamento da arte moderna, contra a qual Lukács se

posicionava.

Brecht desde o início considerou que para se distanciar da função da

arte burguesa, a nova arte precisava encontrar outras formas de se manifestar

que não retrocedesse buscando os antigos modelos, mas que, levada pelo

impulso deixado pelas vanguardas, pudesse evoluir para outro formato. Já que

a arte burguesa havia assimilado o modo tradicional de representação baseado

nos conceitos aristotélicos, era preciso ir além, arriscar não só novos

conteúdos, mas encontrar para estes formas que condissessem com o que

eles tratavam. Quando quer a formulação de um teatro afastado da forma

envelhecida e busca no passado as causas para a situação da arte de seu

tempo, Brecht desempenha um papel importante, que lhe dará força para

rebater concepções como a de Lukács. Qual a origem dos elementos de

barbárie dentro de uma cultura?2 Era preciso descobri-los para impedir que

eles continuassem se propagando:

A herança cultural era objeto polêmico desde a época de Lenin: a cultura clássica dos museus (burguesa) e a ‘cultura proletária’. Como se verá, no debate sobre o expressionismo, o enfrentamento teórico em relação à cultura do passado e em relação à nova arte (as vanguardas históricas). A complexidade do contexto histórico apresentava problemas teóricos e práticos qualitativamente novos. [MACHADO, 1998, p. 117]

2 “Não se pode chegar a uma nova cultura na medida em que não se atingem as raízes da

barbárie que destrói esta cultura; na medida em que são mantidas de pé as relações de propriedade existentes.” [BRECHT, apud MACHADO, 1998, p.111]

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Vale lembrar então que aquele debate, que já tinha começado um pouco

antes, inaugurou uma fase no pensamento estético e a arte nunca mais seria

vista como antes. Mas, como lembra Peter Szondi, isso já não era novidade para

Brecht, que depois de tomar conhecimento desses movimentos que evidenciaram

essa situação de crise, de cisão entre os dispositivos de forma e conteúdo,

decidiu começar o seu projeto. Manteve desde o início um compromisso com a

renovação formal no teatro (em consideração ao que a abordagem dos

conteúdos exigia) e diante disso, recusava-se a aceitar que o conteúdo era mais

importante que a forma, assim como não conseguia ver possibilidade em

concretizar mais uma vez uma adaptação do velho modelo formal, porque isso

culminaria sempre no desacordo entre uma forma gasta e novos temas.

Pode-se citar, por exemplo, a visão romântica, que tomou o conteúdo

como distante da forma, ao recriar dentro de um núcleo fechado em si mesmo

a totalidade da vida. Ali, o conteúdo era justamente o da busca de sentido, mas

esse movimento acabou provando que não havia mais totalidade. Como lembra

Francisco Posada, o conflito nasceu daí, quando surgiu uma unidade normativa

na forma, que ao mesmo tempo apresentou a desarmonia como tema. Com o

drama moderno, começou a ser discutida a “‘antinomia interna’ que, em cada

obra em particular, estabelece-se entre o ‘enunciado da forma’ e o ‘enunciado

do conteúdo’. Ambos, assim, criticam-se um no outro os limites próprios e,

dessa forma, reciprocamente se historicizam.” [SZONDI, 2001, p.13]

Brecht por sua proposta foi então acusado de ser um formalista por parte

dos opositores de seu tempo, que interpretaram as intenções de seu trabalho

como dirigidas exclusivamente à busca de formas, decidindo afastá-lo da

posição de um artista realmente preocupado com o destino do teatro. A verdade,

no entanto, é que ele não se adaptou às visões mais dogmáticas justamente

porque sua preocupação principal não era nem conteúdo, nem forma e sim uma

nova compreensão do que os dois enunciados deveriam proporcionar um ao

outro. Ele não agiu como um realista porque não se propôs a retratar um

universo fechado, como o realismo tradicional. Brecht queria começar pelo

começo e a isso ele dedicou o tempo que na terra lhe foi dado, e levando em

conta essa sua preocupação ele poderia ser visto como propõe Jameson:

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Brecht poderia ser um rude filistino como é o próprio Lukács quando se refere às correntes mais herméticas do modernismo; mas rejeitou a condenação que este faz das técnicas então experimentais em nome de um supostamente decadente ‘formalismo’, propondo discutir o assunto em termos da ‘realidade’ mais do que do ‘realismo’ [JAMESON, 2013, p.61]

Dentre as causas para defender uma nova relação do teatro com a

realidade, aparecia a preocupação fundamental de Brecht – presente também

quando se voltou para a tradição –, que era antes de qualquer coisa, o público

(Publikum) de teatro e a atitude que intencionou despertar para alcançar a

mudança (Veränderung) de função da arte3. Alguns críticos de Brecht ainda o

pensam sob as acusações que começaram naquela época, ainda o veem como

um formalista preocupado em criar um sistema de regras formais para o teatro,

como o acusou Lukács.

Sob o mesmo nível de acusações, Lukács também rejeitou o

expressionismo defendendo a ideia de que se tratava de mais um produto de

artistas pequeno-burgueses4 que se ocuparam em criar uma arte puramente

ilusória e nada eficaz, do mesmo modo que fora o naturalismo. O

expressionismo era, portanto, a continuação de uma arte vaga, inconsistente.

Acontece que por volta de 1928, Lukács viu em suas concepções estéticas a

possibilidade de vinculá-las às pretensões do partido comunista e, por mais

que não se possa dizer que os ideais estéticos passaram a estar moldados aos

interesses políticos, a combinação entre ambos fortaleceu a visão romântica de

Lukács sobre a arte. Aproximando-se de Stálin, Lukács passou a defender o

partido comunista russo:

Mas todas elas não ultrapassam, tanto conceitualmente como emocionalmente, sua imediaticidade, não buscam a essência, isto é, a conexão real das suas vivências com a vida real da sociedade, as

3Definimos no item 1.3 do primeiro capítulo desta dissertação.

4 “Lukács formula várias censuras ao expressionismo literário. Considera que, de certo modo,

culmina a linha de decadência que vai do naturalismo ao simbolismo, passando pelo impressionismo. Todas estas correntes deformam a adequada captação artística da realidade, entendendo por esta última uma totalidade de manifestações, de vínculos contrapostos e dinâmicos. Esta deformação ultrapassa a essência dessa mesma realidade, isto é, o reflexo dos momentos decisivos, dos traços típicos. (...) O expressionismo comporta uma ruptura e queda em relação a seus predecessores imediatos. O expressionismo é a representação do isolado, do destroçado; em uma palavra, do caos.” [POSADA, 1970, p.6-7]

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causas ocultas que provocam objetivamente estas vivências, aquelas mediações que ligam estas vivências à realidade objetiva da sociedade. Pelo contrário, é exatamente a partir desta imediaticidade – de forma mais ou menos consciente – que elas criam espontaneamente, o seu estilo artístico. [LUKÁCS, apud MACHADO, 1998, p. 205]

Lukács trabalha noutro sentido, distinto do de Brecht. Sempre defendeu

uma estética particular para a arte, tradicional, que deveria ter como objetivo

transmitir a noção de totalidade que ele acreditava já ter existido na história do

teatro, mas que, por desvios, se perdera. Para ele, artistas que se

preocupavam em buscar novas formas desempenhavam um papel contrário ao

da busca do sentido perdido. Num tempo como aquele, cheio de desilusões

entre os homens, era preciso, segundo Lukács, transmitir segurança através do

significado de uma nova ordem social por meio de formas, que não precisavam

ser encontradas uma vez que já existiam.

Em contrapartida à investida partidária de Lukács, Brecht propõe um

questionamento com outro direcionamento. Na vida, de que se pode ter

realmente certeza além da morte? Brecht desconfiava dessas realidades

construídas para fazer o espectador escolher um lado determinado. Porém,

para compreender isso, é primeiramente necessário saber que tratou a

realidade com o pensamento de que, se havia alguma certeza quanto a ela, é

que é mutável e constituída por essas transformações de evolução rápida.

Portanto, desde o início, também não poderia propor fincar seus pés em

nenhuma concepção de teatro (como a do realismo) que buscasse ou

permanecer como tradição, ou corresponder a um período em específico. Era

preciso, antes, chamar a consciência dos espectadores utilizando – e por que

não? – todos os aparatos disponíveis.

Brecht aproxima-se de um modo de reflexão que, como disse Jameson,

está interessado na realidade, mas esse interesse não pode ser confundido

com realismo. Como um anti-idealista que mantinha em primeiro lugar um

compromisso com o público, Brecht não queria aprisionar seus espectadores a

uma visão fechada da realidade, mas ambientá-los na mutabilidade dos fatos,

aproximando-os dessa instabilidade, para que sentissem a vertigem. E então,

que se acostumassem a experimentar, a buscar saídas para lidar com esse

dado da realidade:

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Brecht não nos dá a descrição da realidade com sua solução: entrega-nos um problema com aqueles fatores decisivos que o determinam, para que estejamos em condições de chegar por nós mesmos à solução. O sentimento implícito da obra se prolonga no espectador; a peça ultrapassa o marco da representação ou da leitura, mas não, como alguns sustentam, para ser completada pelo público e sim para que o público encontre algo que está aí, ainda quando requer, para tornar-se patente, a existência de sua produtividade crítica. Quando coloca e defende a necessidade de distanciamento entre a obra e o público, é apenas lógico que Brecht ponha em dúvida todas as diversas variantes de adesão, aproximação ou entusiasmo acrítico inerente ao realismo tradicional e que encobre sob o nome de ‘identificação’. [POSADA, 1970, p. 224-225]

Naquele tempo, a classe a que Brecht queria se aliar era, sem dúvida, o

proletariado. Pelo interesse na luta de classes, ele começou a pensar, com

vistas no que tinha ocorrido no passado, que para a superação da tal crise

séria do drama era preciso muito mais do que regras. O teatro do presente

deveria construir um diálogo com o público, coisa que nunca existiu no

desenvolvimento problemático do teatro naturalista burguês. A apropriação dos

preceitos formais tradicionais não havia gerado uma reflexão sobre a realidade

que subvertesse a condição do proletário e que fizesse ele se sentir, não

apenas incluso, mas parte constituinte daquela sociedade.

Desde já, quer se defender aqui a posição de Brecht como a de um

artista que, em termos de consequências para a arte, conseguiu ser mais

revolucionário que aqueles os quais, como Lukács, se reconheciam nessa

posição. Ele quis atingir os indivíduos de um modo que ainda não tinham sido

atingidos. Queria produzir aquela mudança que Schiller já havia percebido que

a Revolução Francesa fora incapaz de alcançar, ao não internalizar nos

indivíduos o sentimento de liberdade, mas concretizando-a artificialmente de

outros modos, fazendo-os acreditar que eram livres.

A verdade, no entanto, é que para eles esse sentimento de liberdade

não se concretizou, e Brecht buscou aprender com o passado que em

determinados aspectos ele precisava ser superado. Nesse sentido, ele

precisava transgredir a ideia do socialismo como uma imposição dos mais

intelectualizados sobre as massas e tentar produzir nelas o acordo com a

realidade. A sua medida seria, então, a da pluralidade, de subjetivação do

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palco, da questão ao invés da solução. Era essa a forma em que ele podia

compreender o teatro enquanto promovedor de transformações.

Foi no teatro épico que Brecht encontrou a possibilidade de construir esse

diálogo com o coletivo, uma vez que acreditava que o gênero dramático não era

capaz. Na Alemanha, entretanto, tempos antes de Brecht entrar para o teatro,

muitos grupos já faziam experiências com o gênero épico como forma de

combater a arte burguesa. As vanguardas artísticas tinham deixado suas marcas

e depois que passaram, sob a influência delas, artistas e teóricos procuravam

um estilo de arte mais útil, que se preocupasse com a colocação dos problemas

que percorriam a situação daquela época, de um mundo pós-guerra5:

Pois em Brecht é menos uma questão de situar um dado indivíduo numa classe social preexistente, com seus valores ideológicos e aparência específica, do que de transcender o duplo padrão de eventos individuais e coletivos. É como se recontar eventos individuais como históricos não fosse meramente uma técnica satírica, mas também um novo modo de conhecimento. [JAMESON, 2013, p.89]

Nesse contato, porém, mesmo influenciado por muitas das ideias dos

novos artistas – muitas das quais ele se apropriará para desenvolver sua

própria corrente –, Brecht tentou, mas não se viu inserido em nenhum molde

fechado de arte. Começou a trabalhar por meio de uma veia artística baseada

em experimentos e com uma visão também não tão carregada de conceitos.

Foi só ao experimentar uma série de técnicas novas que Brecht verificou que

muitas delas não funcionavam para chegar ao que desejava e, portanto, era

preciso experimentar mais até alcançar aquilo que pretendia.

Por acreditar nessa característica de experimento que tinha a arte é que

Brecht nesse ponto fez a defesa do movimento expressionista – pela qual

também foi acusado pelos intelectuais de seu tempo. Ocorreu que, numa atitude

diferenciada da posição arbitrária adotada por eles, aproximou-se do

expressionismo e o defendeu enquanto movimento libertador, cuja intenção

consistia em livrar os homens de uma lógica doentia, repetitiva e pouco criadora.

Embora as vanguardas tivessem despertado os indivíduos muito mais pelas vias

da expressão, não é correto negar – ainda que muitos como Lukács tenham

5Aqui nos referimos à Primeira Grande Guerra Mundial.

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tentado fazê-lo – a importância delas enquanto movimentos que afirmaram antes

de tudo a vida, ao expressarem o descontentamento com a realidade.

O que se quer reiterar é que, como modelo, por compartilhar uma visão

também idealista da arte, o expressionismo não serviu a Brecht. Ele lhe coube

na medida em que rompeu com a arte tradicional, mesmo que o período tenha

sido breve. Ali, conseguiu mostrar que há sempre novas possibilidades de

expressão, que ainda há espaço, e muito, para a criação. Brecht se valeu dessa

atitude efêmera e ao mesmo tempo contestadora, que, enquanto tal, não devia

ser ignorada, nem vista apenas por um prisma negativo. Acerca dos limites de

sua aproximação com o expressionismo e seus efeitos, em 1938 escreveu:

A recordação do expressionismo é para muitos a recordação de tendências libertadoras. Eu próprio também estava naquela altura contra o ‘exprimir-se’ por profissão (veja as minhas notas para os atores no Versuche (Ensaios)). Assumi uma atitude cética perante esses acidentes penosos e inquietantes em que alguém ‘sai fora de si’. Para onde é que ele sai, então? Pouco tempo depois veio a se perceber que eles se tinham libertado da gramática, mas não do capitalismo. (...) Mas creio que as libertações devem também ser sempre levadas a sério. Muitos encaram ainda hoje com desagrado a condenação indiscriminada do expressionismo, porque temem que assim se reprimam atos de libertação só pelo fato de o serem, uma libertação de prescrições limitativas, de velhas regras que se tornaram algemas, e porque temem que assim se tente uma fixação a processos de descrição que se adequariam a proprietários, depois mesmo de estes terem sido eliminados. Para me servir de um exemplo da política: quando se quer combater o golpismo tem de se ensinar a Revolução (e não a evolução). [BRECHT, apud MACHADO, 1998, p.246]

Nessa citação, deixou claro não ser um adepto do expressionismo, como

muitos o classificaram na primeira fase de produção de suas peças6 pelos

efeitos estéticos que ele retirara do movimento. Nisso tudo, é possível perceber

os tons mais próximos da realidade que a sua crítica adotou, uma vez que não

preocupado com a permanência formal do movimento artístico. Contudo, o que

interessa é destacar que, tanto a arte de vanguarda como a sua, tinham em

6 As primeiras peças de Brecht são consideradas de cunho expressionista. São elas: Baal

(1918), Tambores na Noite(1922) e Selva das cidades(1922) as principais. No entanto, Rosenfeld ao falar da terceira peça, atenta para o seguinte: “A peça antecipa toda uma linha de teatro de vanguarda, linha que Brecht logo abandonaria. Cedo notou que a abstração expressionista tende a projetar o problema focalizado para além do campo de determinada fase histórica, dando-lhe uma eternidade metafísica que condena o homem, em definitivo, a uma existência absurda.” [ROSENFELD, 2011, p.71]

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comum a proposta de realizar um confronto com os modelos tradicionais.

Ambas atestaram o caráter incerto da sociedade. Apesar das vanguardas

terem influenciado a arte posterior muito mais acerca dos aspectos formais

desenvolvidos por elas, ainda assim o projeto de teatro pensado por Brecht

incluiu um projeto de confrontação baseado naquelas mudanças.

No entanto, leitura de que a arte de Brecht proporcionou esse confronto

real é de Walter Benjamin, que inclusive acrescentou que muitos dos pontos

mais importantes da obra de Brecht foram encontrados justamente enquanto

ele tentava confrontar o modelo originário, pois uma vez que aquele modelo

tinha se mantido como referência por tanto tempo, um confronto real, uma

rejeição promoveria no mínimo o encontro com seu contrário.

Para que não passasse o momento de pensar as inovações, como foi

talvez o que acontecera com as vanguardas, reagindo como um inovador,

Brecht apressou-se a pensar o teatro épico e, assim, “ensinar a revolução” para

os que viessem depois dele. Lembrando mais uma vez que a sua atitude não

aceitava o estigma que toma a realidade por uma sucessão de eventos

naturais, o teatro só tem sentido se conseguir mostrar aos homens que tanto

eles como o mundo são mutáveis (veränderlich), e a atitude conservada por

tanto tempo levou os espectadores a aceitarem que tudo era derivado dessa

causa natural e os impedia de olhar para o que viam e pensar que talvez aquilo

pudesse ser visto de outro modo. Brecht, parafraseando Benjamin, quis

“confrontar” de vez essa concepção, e nas palavras de Rosenfeld:

O homem não é exposto como ser fixo, como ‘natureza humana’ definitiva, mas como ser em processo capaz de transformar-se e transformar o mundo. Um dos aspectos mais combatidos por Brecht é a concepção fatalista da tragédia. O homem não é regido por forças insondáveis que para sempre lhe determinam a situação metafísica. Depende, ao contrário, da situação histórica que, por sua vez, pode ser transformada. O fito principal do teatro épico é a ‘desmistificação’, a revelação de que as desgraças do homem não são eternas e sim históricas, podendo por isso ser superadas. [ROSENFELD, 2011, p.150]

Tempos antes, no contato com estudos que buscavam uma nova

abordagem que se baseasse na troca entre palco e plateia e que unisse essas

forças ao invés de separá-las, Brecht encontrou o Teatro Didático. Mais tarde,

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por causa da questão moral exigida por essa forma, do modo como lhe foi

apresentada, acabou por ampliar a ideia das peças didáticas e levá-las a outra

esfera de sua teoria. Ao didático, Brecht também atribuiu uma nova dimensão:

Sabe-se que um dos objetivos do teatro brechtiano é a incorporação crítica do espectador ao espetáculo. Ele não é alguém que assiste passivamente aos eventos apresentados sobre um palco situado à distância, mas é integrado ao espetáculo como um convidado a tomar posição sobre perante as cenas que presencia. As peças de aprendizagem, escritas para os atuantes e não para um público eventual, seriam apenas o caso mais explícito de um processo que altera a função que o teatro costumava conferir ao espectador. Sendo assim, é razoável então supor que Brecht levasse em conta o grau de consciência de seu público ao elaborar as peças e conduzir os ensaios. Pela mesma razão, também seria possível dizer que a encenação posterior de suas peças tem que lidar com a dificuldade de atualizar a sua função pedagógica para um público muito distinto daquele originalmente visado por Brecht. [GATTI, 2012, p.11]

Através do contato com essa técnica, porém, Brecht conseguiu

aprimorar a nova concepção entre público e montagem, aquela que

despertaria os indivíduos para um novo estilo de diversão. Conseguiu com

isso ampliar o sentido da mudança de função do novo teatro. E, se o teatro

didático enquanto modelo formal também não satisfez o autor, ao menos

conferiu uma extensão maior à sua obra, ao mesmo tempo em que serviu

para firmar o combate à arte burguesa.

Desse teatro e das experimentações feitas a partir do modelo didático,

Brecht compreendeu que o homem ao qual não se oferecem respostas,

quando aberto à escuta, preserva certo desconforto, e este incômodo, por sua

vez, se instala na consciência. A busca pelo entendimento, ou pela solução

da pergunta formulada, moveu-o numa ação crítica, e ele se comportou como

um analista de fatos. Um novo campo de possíveis respostas, ou mais

perguntas, se abriu. O indivíduo agora não se sentiria mais aprisionado ao

ambiente familiar. Esse trajeto Brecht pareceu ter compreendido como algo

possível e próprio a uma função didática do teatro. Elaborado de uma forma

menos presa à didática compreendida tradicionalmente, Brecht esperava que

esse processo de busca por parte do espectador fosse despertado

naturalmente durante a peça, de forma que as pessoas o concluíssem na

vida, através de suas ações e reflexões:

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Sobre a questão do realismo: o ponto de vista habitual é o de que quanto mais facilmente pode a realidade ser reconhecida numa obra de arte, mais realista é ela. Contra isto eu gostaria de propor a equação segundo a qual quanto mais reconhecivelmente é dominada a realidade na obra de arte, mais realista ela é. O reconhecimento direto da realidade é muitas vezes impedido por uma apresentação que mostra como dominá-la. O açúcar descrito por um químico perde sua reconhecibilidade. Este é obviamente um exemplo extremo, apenas demonstra os (distantes) limites. De qualquer modo deve-se olhar para ver se o artista é um realista, i.e., procede realisticamente em seu escrito, expõe todos os véus e embustes que obscurecem a realidade e intervém nas ações reais de seu público. Além disso, você não deve apegar-se à forma e simplesmente comparar a forma e uma obra com a de outra e extrair desta uma forma realista; fazer isso é puro formalismo, mesmo que a forma em questão provenha de uma obra realista.” [BRECHT, 2002, p.102]

Aos opositores, Brecht e suas tentativas mostraram-se, no entanto, não

como propiciadoras de uma nova e possível teoria, mas como enrijecimento

técnico. Talvez porque Brecht, numa época em que a “profissão intelectual”

estava em alta, tenha recusado a comportar-se como um, o curioso nas

acusações é que elas, no entanto, partiram daqueles que se diziam também

defensores de uma mudança tanto social, quanto artística. Ou seja, dos que

diziam estar dispostos a discutir uma nova abordagem para arte que servisse

para se opor à burguesa, a fim de se consolidar como arte moderna.

Ao mesmo tempo, foi talvez durante esse processo que Brecht descobriu

o significado profundo da responsabilidade de se criar um teatro novo. Ele

poderia sim se utilizar de técnicas existentes e até se apropriar de formas para

construir uma nova. Ele o fez. Mas, por outro lado, depois de conhecer o

expressionismo, o teatro didático e até o realismo socialista, Brecht reconheceu

que para realmente confrontar, subverter, transformar, era preciso ir mais

longe, buscando um modo de fazer teatro que não se guiasse por dogmas, ou

por preceitos morais edificantes.

O teatro épico, como Brecht o desenvolveu em sua fase madura, será o

foco do terceiro capítulo desta tese. Porém, por ora, para trazer à tona ainda

mais as consequências desse trabalho enquanto rompimento, o texto de

Benjamin é fundamental. Para Benjamin, a técnica da interrupção faz do

teatro épico um teatro verdadeiramente revolucionário, porque surpreende ao

deslocar aquilo que parecia normal acontecer em determinada ação e

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conferir-lhe o aspecto de incomum. Brecht causa espanto quando desarticula

a ordem esperada:

A interrupção da ação, que levou Brecht a caracterizar seu teatro como épico, combate sistematicamente qualquer ilusão por parte do público. Essa ilusão é inutilizável para um teatro que se propõe a tratar os elementos da realidade no sentido de um ordenamento experimental. Porém as condições surgem no fim dessa experiência, e não no começo. De uma ou de outra forma, tais condições são sempre as nossas. Elas não são trazidas para perto do espectador, mas afastadas dele. Ele as reconhece como condições reais, não como arrogância, como no teatro naturalista, mas com assombro. O teatro épico, portanto, não reproduz as condições, ele as descobre. A descoberta das condições se efetua por meio da interrupção das sequências. Mas a interrupção não se destina a provocar uma excitação, e sim a exercer uma função organizadora. Ela imobiliza os acontecimentos e com isso obriga o espetador a tomar uma posição quanto à ação, e o ator, a tomar uma posição quanto à ação, e o ator, a tomar uma posição quanto ao seu papel. Mostrarei, com um exemplo, como em sua seleção e tratamento dos gestos Brecht limita-se a transpor os métodos da montagem, decisivos para o rádio e para o cinema, transformando um artifício frequentemente condicionado pela moda em um processo puramente humano. Imaginemos uma cena de família: a mulher está segurando um objeto de bronze, para jogá-lo em sua filha; o pai está abrindo a janela, para pedir socorro. Nesse momento, entra um estranho, a sequência é interrompida; o que aparece em seu lugar é a situação com que se depara o olhar do estranho: fisionomias transtornadas, janela aberta, mobiliário destruído. Mas existe um olhar diante do qual mesmo as cenas mais habituais da vida contemporânea têm esse aspecto. É o olhar do dramaturgo épico. [BENJAMIN, 1994, p.133-134]

A interrupção da ação, portanto, é provocada dentro da encenação,

quando Brecht intenciona chamar a atenção para determinado acontecimento,

que em representações ditas ‘tradicionais’ era esperado um desenvolvimento

natural. Porém, como no caso do teatro brechtiano o intuito é justamente

“desnaturalizar” esse processo, muito bem conhecido pelas representações

naturalistas, ele se utiliza da interrupção da ação de um fato decisivo dentro da

história, para mudar o seu sentido, mudar toda a configuração, como explicou

Benjamin na citação anterior. Assim, a interrupção é o que se poderia chamar

de técnica utilizada por Brecht para ajudar a concretizar mais a fundo tudo

aquilo que envolve distanciar o espectador.

E por não acreditar na separação entre forma e conteúdo, no teatro de

Brecht tudo acontece simultaneamente. Isso se comprova ainda mais porque,

diferente da maioria dos teóricos da arte, ele também foi dramaturgo e diretor.

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Logo, como diretor, lidava diretamente com a montagem das peças, estava

sempre em contato com a prática. Já era de se esperar que se irritasse com o

fato de, enquanto artista, ter de se justificar em relação àquilo que os críticos

não compreendiam, muitas vezes porque não eram produtores como ele. Só

quando experimentou diversas técnicas é que Brecht percebeu que construir

um modelo formal fechado não resolveria o problema da arte, e se necessário

ele estava disposto a acrescentar, a tirar e a modificar o que fosse até alcançar

os efeitos desejados7.

Nesse caminho, também cheio de incertezas, mas com objetivos reais,

não só a oposição entre presente e passado acontecia, mas também, entre

movimentos da mesma época e até de bases ideológicas iguais, como é o caso

do marxismo. Brecht não quis submeter suas ideias aos interesses de nenhum

partido político, entretanto, isso não quer dizer que não tivesse uma visão

política. Além disso, uma vez que o teatro só existia porque era antes de tudo

um evento público, para Brecht ele seria sempre um evento político. Mas até

mesmo nesse ponto, o que entrou em questão para ele, a partir de

determinado momento, foi descobrir em que consistia esse “político” e como

ele poderia ser manejado para que não se caísse mais uma vez numa espécie

semelhante ao teatro burguês, ou seja, alienante.

Antes de prosseguir à apresentação do que se constitui para Brecht a

ação do político sobre os espectadores de teatro, é necessária uma exposição

sobre suas relações particulares com o marxismo, ao mesmo tempo

distanciando-se das intenções do partido comunista 8 . Ao se aproximar do

marxismo ortodoxo como do partido comunista Russo e das visões de muitos

intelectuais que estabeleciam a ação revolucionária pelas correntes da

instrução e do convencimento, Brecht logo se afastou, passando a desenvolver

7 Vale lembrar que as portas do lugar onde ensaiava seus atores estavam sempre abertas para

o público entrar e participar da construção do que seria encenado. Essa participação era fundamental para Brecht. Isso explica por que o exílio durante a guerra tornou-se tão sufocante para ele: porque não podia desenvolver o seu teatro que só tinha razão de ser em contato com o seu público. O espectador desempenhava uma função tão fundamental para Brecht que quando teve que se exilar para fugir da perseguição nazista, o efeito desse exílio sobre ele foi devastador, porque a montagem de suas peças não tinha sentido para esse público. É o que aponta a professora Iná Camargo Costa da USP em seu depoimento que aparece em Brecht e o cinema, uma coleção de filmes das obras de Brecht para o cinema e um documentário sobre a vida do autor, reunidos e lançados pela Versátil Home Video. 8 Este capítulo não fará referiência à fase em que Brecht decidiu morar na RDA (República

Democrática Alemã), nem à hipótese levantada por alguns de ele ter abdicado de seus ideais para obter benefícios do partido.

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suas ideias paralelamente às ações partidárias, e acabou vendo um perigo

nessas ações, quando percebeu que elas seguiam um rumo semelhante ao do

realismo burguês:

Tanto o realismo burguês como o realismo socialista convencional pretendem impor-nos uma visão de mundo e não um modelo de compreensão; desejam, ademais, que esta visão se converta em nosso próprio espaço (graças à identificação). A perspectiva de Brecht é diferente, posto que, segundo ele, os problemas devem ser formulados ao público a partir de sua realidade, sem expulsá-lo dali, a fim de que adote uma atitude crítica perante a questão colocada. [POSADA, p.230]

Não obstante, Marx teve sim um papel fundamental para Brecht, como

analisa José A. Pasta. Diferente do marxismo escolar (como o marxismo

ortodoxo), quando Brecht realmente se aproximou de Marx deixando de lado as

leituras comuns, foi que ele descobriu por si a validade daquela aproximação, a

que Pasta chamou de ‘afinidade eletiva’. Para ele, foi esse contato que

provocou o primeiro “refluxo” de Brecht em relação à sua própria obra, e a

partir dali ele começou a examinar seus trabalhos anteriores, distanciando-se

de sua própria produção para depois dar um novo rumo a ela. É esse espírito

político que nasce em Brecht depois de um entrosamento mais verdadeiro com

Marx, que faz com que o dramaturgo comece a buscar um relacionamento de

outra ordem, com a influência política de seus espetáculos sobre os

espectadores. Foi então que ele passou a formular perguntas ao invés de

tentar convencer o público de aceitar o que ele entendia por certo:

Brecht irá vivificar pela perspectiva própria e empenhada o seu estudo do marxismo, ao mesmo tempo que irá ampliar a sua ação da teoria marxista e extrair muitas de suas consequências, à semelhança de Benjamin, em um domínio que não é preferencialmente analisado pelo próprio Marx. A percepção brechtiana do marxismo será, por isso, uma contribuição, inventiva e heterodoxa:perfeitamente diversa de um estudo do marxismo que se fizesse exclusivamente a partir da observação da alheia inserção econômica, a experiência brechtiana do marxismo se fará a partir de sua própria inserção, de artista e intelectual, organização da produção, e será assumida no corpo mesmo de seu trabalho” [PASTA, 2010, p.284]

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Para Pasta, Brecht se reconheceu e, ao mesmo tempo, se estranhou no

marxismo. Assim como a visão de política, o sentido especial que Marx teve

para Brecht não pôde ser sentido ainda nas produções da época do debate

com Lukács, mas certamente para ele já se manifestou uma tensão entre

aquilo que ele ainda não conseguiu definir bem: sua ideia de marxismo e o

marxismo do realismo socialista. Só na sua fase madura é que Brecht se

apropriou de uma noção que jamais o faria tratar a realidade de forma niilista

como o marxismo dessa época.

A problemática que se insere na discussão do que quis desenvolver e do

que desenvolveu Brecht nas suas experimentações dialoga com o fato de sua

visão não comportar um pensamento fechado em si mesmo, ou arquitetar um

sistema com regras rígidas para serem seguidas à risca. Existiram alguns

autores que encontraram formas próprias e inovadoras, mas que só serviram

enquanto aplicadas a eles mesmos, não podendo sequer ser reproduzidas.

Kafka e Beckett são exemplos que foram reconhecidos e elogiados por T.

Adorno por terem conseguido encontrar uma forma que estivesse em

verdadeiro diálogo com os conteúdos e onde, nesses casos, a separação das

partes se tornava ainda mais impossível. No entanto, na história da literatura,

esses autores foram exceções, como Shakespeare em relação à tragédia, por

exemplo.

Brecht não condiz com esse tipo de autor – que como Kafka ou Beckett

conseguiu encontrar um modelo único, mas que também só funcionava se

aplicado ao universo daqueles artistas – o que torna mais difícil compreender

se de fato ele conseguiria lançar o teatro de experimentação ao futuro e assim

chegar finalmente ao objetivo final, de construção de uma nova espécie de

espectador. Sobre esse espírito contestador, pode-se dizer de Brecht que, em

estilo anárquico, ele acreditava que o caminho traçado para encontrar

respostas lhe garantiria muito mais possibilidades para criar e obter os efeitos

desejados sobre a consciência do público, do que as próprias respostas9.

Ora, para se compreender realmente o pensamento brechtiano, é

necessário incluir o pensamento dialético no trato com a realidade. Tratando-a

9 “A realidade pode ser ‘refletida’ de diversos modos. O realismo de uma obra não se define em

referência a outra obra; o realismo não é um conjunto de recomendações formais, mas uma confrontação de escolas. Uma obra é realista quando ‘revela’ uma realidade. Não se pode pré-determinar os meios de que se vale o artista para consegui-lo.” [POSADA, 1997, p.20]

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como um complexo de contradições que dificilmente encontram solução na

simples dissipação dos acontecimentos, ou na escolha de um dos lados, é

possível verificar seus efeitos, por exemplo, quando transportados para o

ambiente do teatro. Neste, a separação deixa de ser importante, e é aceita a

coexistência deles. Há sempre conflitos e a harmonia não consiste em aceitar o

mundo como homogêneo, mas o seu contrário.

O trato dado por Brecht à dialética também se diferencia dentre os demais

que tentaram abordá-la. Ele percebeu que há uma grande barreira entre a

idealização e as verdades impostas aos autores. O realismo socialista, que

prometera confiar à dialética de Marx seu ponto de apoio para analisar os fatos

do mundo real, também caiu em falso: “está na hora de se começar a deduzir a

dialética da realidade, em vez de deduzi-la da história das ideias, e usar

exclusivamente exemplos selecionados da realidade.” [BRECHT, 2002, p.61]

A força que Brecht via presente na arte estava relacionada à função

social que ele acreditava que ela poderia conquistar. Uma força produtiva que,

segundo ele, excitaria a transformação da realidade, do sistema, a partir de um

novo modo de construir o pensamento crítico. Isso seria possível, entretanto,

com a participação de um coletivo, ou seja, fazendo dos espectadores

produtores. Para Brecht, era fundamental criar condições para que essas

consciências se desenvolvessem de forma plena, crítica. Nesse sentido, a

interpretação de Roland Barthes da atitude de Brecht é conveniente aqui

porque o transporta para longe das acusações que o trataram como formalista.

Segundo o autor francês, Brecht foi o maior defensor de um teatro

verdadeiro. Um teatro que não procurava dar definição às coisas, mas

compreendê-las e aceitar que para todo o dado de realidade haverá inserida,

pelo menos, uma contradição. Como diz Barthes: “não existe uma ‘essência’ da

arte eterna, mas que cada sociedade deve inventar a arte que melhor a ajudará

no parto de sua libertação.” [BARTHES, 2011 p.130] Para tanto, era preciso que

os olhos, ouvidos, enfim, os corações estivessem dispostos a receber esse novo.

Havia naquele momento uma postura de apatia por parte dos indivíduos

para com a vida (e consequentemente também com a arte), que estava

acabando com as relações e com a essência coletiva da humanidade. No

entanto, as pessoas preferiam se isentar dessa responsabilidade, não reagiam

aos acontecimentos, mesmo sendo eles na maioria das vezes, inaceitáveis.

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Barthes é certeiro quando defende o teatro de Brecht, que, além de

verdadeiramente revolucionário para ele, era um teatro da solidariedade e não

do contágio. O autor que divide aquilo que vê com a plateia não querendo

convencê-la, mas espera que esta possa formular seus juízos próprios, sem

pretensões de promover verdades, ele não espera o contágio, não exerce essa

função. O contágio carrega um tom de segundas intenções, porque espera que

o público se submeta a seus ditos. Isso nosso autor não quer:

Ora, surge um homem cuja obra e pensamento contestam radicalmente essa arte nesse ponto ancestral que acreditávamos, pelas melhores razões do mundo, ser ‘natural’; que nos diz, desprezando toda tradição, que o público só deve engajar-se pela metade no espetáculo, de modo a ‘conhecer’ o que lhe é mostrado, ao invés de se submeter a ele; que o ator deve dar à luz essa consciência denunciando seu papel, não o encarnando; que o espectador não deve nunca identificar-se completamente com o herói, de sorte que ele permanece sempre livre para julgar as causas, depois os remédios de seu sofrimento; que a ação não deve ser imitada, mas contada; que o teatro deve cessar de ser mágico para se tornar crítico, o que será ainda para ele o melhor modo de ser caloroso. [BARTHES, 2011, p.130]

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2.1 O confronto entre Lukács e Brecht

Na arte existe o ato de fracasso e o parcialmente conseguido. Os nossos metafísicos têm que compreender isto. As obras podem tão facilmente fracassar porque dificilmente dão certo! Uns calam-se porque lhes falta o sentimento, outros porque o sentimento lhes tolhe a fala. Este não se liberta do fardo que pesa sobre ele, mas apenas da sensação de falta de liberdade, aquele dá cabo da sua ferramenta, porque a usaram tempo demais para o explorar. O mundo não é obrigado a ser sentimental. Mas, a partir das derrotas, que não podemos deixar de constatar, não se pode tirar a conclusão de que não deve haver mais lutas. [BRECHT, in CARVALHO, 1998, p.246]

No texto acima, quando Brecht se refere aos “metafísicos”, o faz no

sentido de expor aquilo que considerou mais problemático em sua época para

uma evolução da arte revolucionária: os intelectualismos que se mostravam

perspicazes ao barrarem a liberdade de criação dos artistas. Algo que também

será denunciado por autores que concordavam com Brecht, como é o caso de

seu amigo, o pensador Walter Benjamin. Brecht, preocupado com a velocidade

e as consequências do desenvolvimento do capitalismo, crê que não há mais

tempo para o teatro conceder espaço a guerras ideológicas e que aqueles que

diziam querer uma transformação deveriam aliar-se aos que estavam prontos a

fazê-lo, ao invés de brigarem por aquilo que “teoricamente” se tratava de um

interesse em comum. Pois, construindo juntos, certamente os ganhos seriam

muito maiores e a humanidade teria a sua lição dada10.

No entanto, foi em meio a um desacordo intelectual dessa natureza que

se desenvolveu o debate travado com Lukács. Brecht foi acusado por Lukács

de não fazer realismo, porque era desse modo que os intelectuais do realismo

socialista procediam; classificavam as obras entre realistas e não realistas.

Sobre essa atitude, mais uma vez se nota, para além das divergências

estéticas entre os dois, como as visões políticas de cada um se tornaram fator

10Brecht não chegou a publicar, além dos textos de Debates sobre o expressionismo, aquilo que ele pensava sobre Lukács, pois temia que isso enfraquecesse a luta contra o fascismo: “Principalmente, Brecht não desejava provocar um conflito aberto numa ocasião em que a vitória do fascismo impunha uma atitude discreta para não aumentar as divergências no campo antifascistas. Esse procedimento diplomático contribui para que as teses de Lukács se impusessem, e a consequência disso foi a vitória do ‘realismo socialista’, com os pobres resultados que se conhecem e que, mais tarde, iriam provocar o desagrado do próprio Lukács.” [ROSENFELD, 2011, p.69-70]

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decisivo. Enquanto Lukács foi guiado pela ideia humanista de arte e a visão

política do marxismo ortodoxo, que desprezava qualquer tipo de “rebeldia”,

Brecht de outro lado, já aderira ao teatro experimental.

Empenhado em também defender os interesses do partido, Lukács

aproximou-se cada vez mais de uma visão idealista de realismo e assim, com a

esperança de retomar a sensação de totalidade, negou qualquer arte que

provocasse desagrado, por não dar aos homens a coerência de que eles

precisavam. Lukács acreditava que através da assimilação dos conceitos certos,

eles poderiam se sentir seguros novamente, retomando uma segurança na

realidade, que tinha se perdido. Para tanto, o caminho que ele encontrou como

mais apropriado foi o de trazer de volta as formas do humanismo e aplicar-lhes

os novos conteúdos, que construiriam a nova imagem do homem social.

Lukács pensava que, ao rejeitar as tendências e retomar um modelo que

ele considerava completo em si mesmo, a arte poderia voltar a transmitir o que

havia de perdurável na vida, e dessa forma eram manejadas as

representações. Embora essa fosse parte de uma concepção estética com a

qual Lukács já se identificava antes de sua filiação ao partido, ele tornou-se

ainda mais rigoroso ao defender a não existência de um meio-termo, ou de

dúvidas, porque isso enfraqueceria o movimento. Era preciso, sim, transmitir a

ideia de que na obra de arte, tudo se completa através de um princípio em que

as partes funcionam como interdependentes.

Para Lukács, a nova ordem social quando prometeu tornar os homens

ideologicamente livres, donos de si e de suas vidas, trouxe com ela a perda da

objetividade e uma sensação de desapego, de insegurança sobre o futuro11.

Qual ideologia ampararia aqueles espíritos? A preocupação com a produção e

o desenvolvimento econômico desenfreado, sem que houvesse um

esclarecimento de como tudo acontecia e para onde mundo ia, resultou no

aprofundamento do individualismo, em que os homens se sentiam cada vez

11 “Os princípios universais de liberdade transformaram-se num estorvo para os homens que, beneficiando-se eles mesmo de uma mudança como essa, veem à sua frente uma procura que se amplia infinitamente, de outras classes e povos, e que ameaça submergir e destruir a sua própria identidade recém-adquirida. Alguns poucos homens se atêm aos seus princípios, comprometendo-se com uma revolução social geral. Mas a maioria faz concessões, usa de subterfúgios ou procura adiar e a mais destrutiva forma desse colapso – porque a simples reação é facilmente reconhecida – é a característica substituição de revolução por evolução como um modelo social.” [WILLIAMS, 2002, p. 98]

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mais sozinhos. Esse individualismo, como consequência, acabou

desestabilizando qualquer posicionamento de forças contestadoras12:

(...) a função da arte burguesa foi a de agrupar o público em volta da ideologia moderna, ou, como se diz, da consciência social de classe da burguesia. Inscrita como se achava e se acha a arte, dentro de uma economia mercantil, seu valor de consumo, de ‘uso, dependia de uma relação prévia, que estava já plena dos padrões culturais do caso: individualismo, ética da liberdade pessoal, secularização de Deus e deificação do homem, etc. quando existia uma grande coesão social e as estruturas capitalistas não se achavam na flagrante contradição em que se acham, os artistas possuíam, em sua tarefa de produção, um raio de movimento muito maior. Agora, somente lhes restam duas opções: a rebeldia ou a adesão sem reservas. [POSADA, 1970, p. 223]

De outro lado e ao mesmo tempo, Brecht questionou a ortodoxia

pretendida por Lukács. Um encontro “fictício” com a totalidade seria mesmo

capaz de acabar com o estado caótico do mundo? Autores como Lukács

acreditaram que, uma vez construída aquela conexão objetiva que não existia

em tempos de crise13, era possível restabelecer o elo de confiança com os

espectadores, e isso fortalecia a luta social. O encontro da unidade perdida

seria capaz de representar que o estado problemático, que teve origem com o

avanço do capitalismo, estava superado.

Contudo, Brecht criticou esse tipo de visão (como a de Lukács e dos

marxistas ortodoxos) porque para ele nenhuma organização estética ou política

seria capaz de devolver à humanidade uma harmonia que sempre foi ilusória e

que ali estava mais do que evidente. Não é possível voltar a um estado anterior

ou a um período histórico em que tudo parecia fazer mais sentido. A tentativa

de retomar formas antigas e adaptá-las aos novos conteúdos resultaria,

12 Essas ideias foram retiradas de História e Consciência de classes, em que Lukács defende a importância de um marxismo ortodoxo. 13

“Nosso mundo tornou-se infinitamente grande e, em cada recanto, mais rico em dádivas e perigos que o grego, mas, essa riqueza suprime o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade. Pois totalidade, como prius formador de todo fenômeno individual, significa que algo fechado pode ser perfeito; perfeito porque nele tudo ocorre, nada é excluído e nada remete a algo exterior mais elevado; perfeito porque nele tudo amadurece a própria perfeição e, alcançando-se, submete-se ao vínculo. Totalidade do ser só é possível quando tudo já homogêneo, antes de ser envolvido pelas formas; quando as formas não são uma coerção, mas somente a conscientização, a vinda à tona de tudo quanto dormitava como vaga aspiração no interior daquilo a que se devia dar forma; quando a saber é virtude e a virtude, felicidade; quando a beleza põe em evidencia o sentido do mundo.” [LUKÁCS, 2000, p.31]

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portanto, sempre numa atitude formal. O problema aí é que tanto Lukács como

Brecht estavam em luta contra o formalismo, mas em polos opostos:

(...) a literatura proletária se esforça por aprender formalmente a partir de obras do passado. Isso é natural. Reconhece-se que não se pode pura e simplesmente passar por cima de fases anteriores. O novo deve ultrapassar o velho, mas deve ao mesmo tempo tê-lo dentro de si, ‘superá-lo’. Tem de se reconhecer que há agora uma nova aprendizagem, uma aprendizagem crítica, uma aprendizagem transformadora e revolucionária. Há coisas novas, mas que nascem de luta com as velhas, não sem estas, nem a partir do nada. Muitos esquecem a aprendizagem ou tratam-na desdenhosamente, como questão formal, enquanto outros consideram o momento crítico como questão formal, como qualquer coisa de óbvio. [BRECHT, apud MACHADO,p.253]

O medo de Lukács era de que, caso o mundo continuasse sem a ideia

de totalidade, o homem se perdesse cada vez mais em ideias vagas, sem

objetivo, como soava para ele a busca por inovações formais. Para ele a busca

tinha que ser por ideais, que, no caso, seriam trazidos pela figura do homem

total que se esperava alcançar através do realismo crítico. A ideia de que a

totalidade se perdera, isso podia ser percebido mais friamente no romance – a

forma do drama que para ele substituíra a tragédia grega 14 –, mas em

momentos como aquele, de crise, era melhor que não se apostasse no que

ainda era incerto, como por exemplo os experimentos de Brecht, que se

apoiavam numa teoria nova sobre teatro.

Ou seja, em conformidade a essa avaliação, Lukács estava preso a

conceitos que atrelavam a sua figura à de um conteudista. O apego ao

conteúdo e a despreocupação em buscar novas formas culminaram, porém, na

retomada daquelas já existentes. Uma regressão que, como se sabe, foi

rejeitada por Brecht principalmente porque se propunha um teatro que salvaria

a arte do estado em que ela tinha se instalado, e não havia nada de

revolucionário em copiar antigos modelos. Sobretudo a busca por um sistema

de regras que se pretendia completo em si mesmo era uma falha que já tinha

sido experimentada anteriormente.

No entanto, Lukács e os conteudistas opuseram-se contra todas e

quaisquer tentativas de expressar a ausência dessa totalidade, pois confiavam

14

Teoria que defende na obra Teoria do Romance.

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que era possível a sua construção. Mas, para autores como Brecht, defender a

presença da totalidade era criar uma ilusão, conferindo à arte um aspecto

otimista diante da dura realidade. No fundo, tratava-se da apropriação de uma

arte passada, ou seja, mais uma vez nesse sentido, não deveria ser tratada

como realista, mas como uma arte totalitária:

Os aluviões do realismo crítico dentro do novo universo estendem-se de modo natural; a transição do realismo crítico para o realismo socialista deve realizar-se suavemente, quase imperceptivelmente. Na medida em que o realismo crítico vá transformando sua atitude de repúdio ao capitalismo numa atitude positiva de índole socialista, a conversão será mais fácil e cumulativa, e ele trabalhará como um receptáculo dos mais ricos tesouros artísticos da literatura universal. [POSADA, 1997, p. 124]

Nisso tudo, é possível enquadrar a atitude de Lukács e seus aliados

como responsável por levantar mais uma vez na história a bandeira

indiretamente mencionada no primeiro capítulo, que, por querer manter um

vínculo com valores antigos, barrou novas ideias, mesmo que essa não fosse

inicialmente a intenção. Os desvios típicos de cada época, por exemplo, foram

deixados de lado, e para artistas como Brecht eles eram dados fundamentais,

assim como ele entendia por fundamental a compreensão desses desvios –

como é o exemplo do expressionismo – porque eles muitas vezes causaram

um movimento rumo à mudança, tratando como possível a superação do

ilusionismo criado pelo modelo, que por muito tempo só se manteve por essa

característica de fazer os homens acreditarem numa ordem harmônica e única.

Entende-se agora porque uma reflexão destinada aos espectadores

também não foi bem acolhida pela ideologia do realismo socialista. Ali existia o

interesse de convencer e não de levar os indivíduos a pensar. Os mais

intelectualizados, como é a posição em que Lukács e os demais do partido se

colocaram, pretendiam convencer os espectadores de que aqueles ideais eram

a saída e que para atingir a revolução e uma nova ordem, era necessário que o

público se submetesse e aceitasse o que propunham como verdade, sem

propor questões que atrasariam o processo.

No item anterior deste capítulo, mostrou-se como a crença de Brecht

estava baseada na construção conjunta entre palco e plateia. A partir daí,

compreende-se por que quando entra em contato com aquilo que pretendia o

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partido comunista, Brecht encontra motivos para acreditar que só poderia surgir

dali um sistema tão alienante quanto aquele que tinha se tornado o burguês. E

mais tarde isso se evidenciou quando o realismo socialista optou por retratar no

palco a realidade como consistente, sendo que o que mais havia nela eram

dúvidas e incertezas. Aquele tipo de realismo, assim como o burguês, queria

levar o espectador a aceitar que os ensinamentos ali transmitidos no palanque

seriam suficientes para torná-lo apto a construir suas visões críticas próprias.

Ao que constatou Brecht, essa forma não trazia nada de diferente daquilo

proposto até então e, portanto, ele não poderia deixar de atribuir o fracasso

daquele realismo a atitudes como essa, que fez o movimento que o teatro

burguês tinha seguido.

Brecht investiu num teatro que, antes de tudo, servisse à classe

“desinformada” porque acreditou na possibilidade de ajudar a produzir

consciências. E quando se refere à “produção” de consciências não a uma

“formação”, quer-se trazer a dimensão dada por Brecht e observada por Walter

Benjamin, de um teatro em que os espectadores são produtores ao assumirem

uma atitude crítica. Ao contrário do que exige o sistema capitalista – uma ação

produtiva dentro do sistema, num trabalho que, por outro lado, afasta o

indivíduo de uma atitude crítica perante a vida –, no teatro brechtiano, os

indivíduos se divertem com essa posição, no domínio que eles em conjunto

com o palco adquirem sobre os fatos da realidade, e não mais como o teatro

burguês, em que eles eram levados a esquecê-los. Esse teatro visa trazer à

consciência dos espectadores um esclarecimento de que, embora eles possam

se sentir à parte no processo de produção da era científica, sem eles ela não

existiria, e que assim como tudo na vida, o homem deve, sim, querer se

responsabilizar por aquilo que produz, pois só assim ele poderá ter domínio de

si mesmo e depois da realidade:

O teatro pode, assim, levar seus espectadores a fruir a moral específica da sua época, a moral que emana da produtividade. Tornando a crítica, ou seja, o grande método da produtividade, um prazer, nenhum dever se deparará ao teatro no campo da moral; deparar-se-ão, sim, múltiplas possibilidades. A sociedade pode mesmo extrair prazer de tudo o que apresente um caráter associal, desde que o apresentem como algo vital e revestido de grandeza; assim nos revela, com frequência, forças intelectuais e inúmeras capacidades de especial valia, empregadas porém, evidentemente,

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com propósitos destruidores. Ora bem, a sociedade pode mesmo gozar livremente, em toda a sua magnificência, dessa torrente que irrompe catastroficamente, desde o momento que lhe seja possível dominá-la, passando nesse caso a corrente a ser sua. [BRECHT, 2005, p.137]

Brecht e Benjamin concordavam que a “inteligência de esquerda” da

Alemanha naquela época carecia de repensar suas abordagens. Benjamin

tratou disso num texto intitulado “Melancolia de Esquerda”, quando pensou os

poemas de Erich Kästner como exemplos de um ‘ativismo’ pretendido por essa

pequena burguesia de esquerda que se posiciona como classe revolucionária,

mas que, na verdade, reveste suas ações de hipocrisia, de não-ação por se

prender ao sentimento melancólico perante à realidade social e econômica e

tão somente a ele: “o ódio que ela proclama contra a pequena burguesia, tem

um aspecto próprio de pequeno burguês por sua intimidade excessiva.”

[BENJAMIN, 1986, p.138]

Esse é, por exemplo, o caso de Lukács, que se inflamou desse ódio, e

mesmo sabendo do esgotamento de uma ordem que pertenceu ao passado,

insistiu em seu resgate nos confins, pondo em risco a possibilidade de uma

efetiva revolução política dentro da arte, o que Benjamin discute na citação:

Os poemas de Kästner pertencem às pessoas de alta renda, esses fantoches tristes e canhestros, cujo caminho passa pelo meio dos cadáveres. Com a solidez de sua blindagem, a lentidão de seus movimentos, a cegueira de suas ações, esses indivíduos, como um café na city, depois do fechamento da bolsa. Não admira que a sua função seja a de reconciliar esse tipo consigo mesmo, produzindo a identidade entre a vida profissional e a vida privada que as pessoas chamam de humanidade, mas que é de fato bestial, porque, nas condições atuais, a verdadeira humanidade só pode consistir na tensão entre os dois polos. Nessa polaridade se localizam a reflexão e a ação. Produzi-la é a tarefa que qualquer lírica política, e a sua realização mais rigorosa se encontra, hoje, na poesia de Brecht. Em Kästner, ela cede lugar à arrogância e ao fatalismo. É o fatalismo dos que estão mais longe do processo produtivo, e cuja furtiva atitude de cortejar a conjuntura é comparável à atitude do homem que se dedica inteiramente a investigar os misteriosos caprichos da sua digestão. É certo que os movimentos viscerais nesses versos têm mais de gasoso do que de sólido. A melancolia e a obstrução intestinal sempre estiveram associadas. Mas, desde que no corpo social os sucos gástricos deixaram de funcionar, um ar sufocante nos persegue. Os poemas de Kästner em nada contribuem para purificar o ambiente. [BENJAMIN, 1994, p.77]

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Havia ideias revolucionárias que não vingavam porque, por mais que

aqueles autores se dirigissem ao proletariado e solidarizassem com as classes

desfavorecidas – não só economicamente, mas também a nível intelectual –

mais uma vez, como fizera a burguesia ao desenvolver o naturalismo, não

havia um diálogo real entre as duas partes. O que houve foi um acomodamento

dentro do primeiro aspecto que normalmente estimula uma revolução; a

confrontação da realidade e a negação da mesma.

A construção entre palco e plateia tinha a intenção de reverter essa

atitude – entendida por Brecht e Benjamin como reacionária – para outra

verdadeiramente revolucionária, onde todos participam. Por esses motivos é

que Brecht e Benjamin não se consideravam marxistas ortodoxos, ao contrário

de Lukács, para quem a arte não tinha autonomia dentro da sociedade. Para os

marxistas ortodoxos havia uma ideia pronta do que se queria falar, ela

funcionava como uma forma didática, que, por sua vez reduzida ao efeito

conservador, concedia aos indivíduos uma visão pronta do mundo. Sob essas

determinações a arte nunca seria realista. Como vimos, o realismo para Brecht

não significava olhar para os fatos e aceitá-los, mas é arte enquanto criadora

de novidades, ou seja, enquanto produtora das próprias impressões, não se

resumindo ao senso-comum. O que se pode trazer de inovador para o

ambiente do teatro não vem construído, mas mobiliza o espectador a ser ativo,

a construir também:

A diferença entre forma e técnica é, pois, decisiva. Técnica é uma forma desligada de seu conteúdo, convertida em instrumento, destinada a viver sucessivas confrontações com uma temática até que, uma vez alcançada a correspondência desejada pelo artista, recobre seu caráter de forma. O interesse de Brecht pela técnica não deriva de uma vontade de dissolver a forma do conteúdo; é, porém, o desejo sempre renovado de encontrar novas formas para novos conteúdos. Mas a crítica normativa assumiu, perante esta questão da técnica, uma posição que pouco ajuda os escritores. Ela é subestimada em favor de generalizações preconcebidas, fala-se de perpetuar o realismo crítico sem examinar os aspectos formais e técnicos próprios dos diversos realistas que viveram dentro de diferentes classes sociais e em tempos diferentes. [POSADA, 1970, p. 221]

Nem o teatro burguês, nem o teatro comunista, mostraram ao indivíduo

que ele tinha poder para agir sobre a realidade. Não tinham a intenção de fazer

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o espectador compreender, não o incitaram a analisar a história e a criticá-la,

porque havia interesses políticos e econômicos por detrás. O teatro burguês,

inserido num sistema econômico regido pela exploração, construiu a sua base

a partir da reificação e alienação dos indivíduos. O teatro comunista, que

deveria ser o contraponto desse teatro, limitou-se à luta de classes, à igualdade

econômica e esqueceu-se de investir numa igualdade intelectual:

Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as ideias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto. [BRECHT, 2005, p.142]

Nesse capítulo procurou-se expor como a despreocupada busca formal

de Brecht o tornou ao olhar de Lukács15, um formalista. O que se encontrou foi

que não somente ele não poderia ser considerado um formalista, como

também aqueles que o acusaram acabaram seguindo esse viés. Descobriu-se

também que Brecht não elaborou um modelo fechado, e isto será desenvolvido

no próximo capítulo, no qual se mostrará como ele, mais certo daquilo que não

queria, empreendeu objetivamente o seu projeto para a formação de um novo

público de teatro, sem se limitar aos excessos promovidos por um modelo

fechado fadado a tornar-se ultrapassado, ao não respeitar a característica da

realidade como transformável:

‘Toda a nova meta exige novos métodos.’ O novo teatro é ‘novo’ porque houve uma ‘troca de sua função social’. O teatro épico procura contribuir para a transformação da sociedade, valendo-se dos meios aptos para suscitar no espectador uma atitude favorável a essa transformação. Em outras palavras o teatro deve dar-nos imagens válidas da vida coletiva, que nos ensinem as condições nas quais vivemos, permita-nos compreendê-las ou refletir sobre elas para podermos atuar. [POSADA, 1970, p.54]

15

Nesse capítulo, quis-se incluir à pesquisa a polêmica entre Lukács e Brecht, a fim de se compreender como Brecht entendeu o realismo. No entanto, deve-se acrescentar aqui que, assim como Brecht, também Lukács passou por fases, e numa última com relação a Brecht, conseguiu reconhecer seu valor artístico. É possível observar pelas peças referidas por Lukács, como “A alma boa de Setsuan” e “Vida de Galileu”, que elas se referem à última fase do autor, justamente a que interessa para o próximo capítulo, quando ele finalmente conseguiu resolver artisticamente aquilo que a teoria como a de Lukács não entendia, quando os dois debateram na década de 30 as questões que apresentamos aqui.

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Capítulo 3. O Brecht maduro

Outrora pensei: em tempos distantes Quando tiverem ruído as casas onde moro E apodrecido os navios em que viajei Meu nome ainda será lembrado Juntamente com outros. Porque louvei as coisas úteis, o que no meu tempo era tido como vulgar Porque combati as religiões Porque lutei contra a opressão ou Por um outro motivo. Porque fui a favor dos homens e tudo Coloquei em suas mãos, honrando-os assim Porque escrevi versos e enriqueci a língua Porque ensinei o comportamento prático ou Por qualquer outro motivo. Por isso achei que meu nome ainda seria Lembrado, em uma pedra Estaria meu nome, retirado dos livros Seria impresso nos novos livros. Mas hoje Concordo em que seja esquecido. Por que Perguntariam pelo padeiro, havendo pão suficiente? Por que Seria louvada a neve que já derreteu Havendo outras neves para cair? Deveria haver um passado, havendo Um futuro? Por que Deveria meu nome ser lembrado?

1

Um filho da era científica. Admirador das grandes conquistas da raça

humana, de repente, se viu surpreendido pela quantidade de atrocidades

provocadas por essa mesma raça e decidiu que era preciso direcionar o olhar,

que só podia estar equivocado. Tendo tudo às mãos, não deveria mais ser

aceitável a esse homem, fora de sua figura de bárbaro e de total selvagem,

continuar comportando-se como tal, principalmente diante da oportunidade de

se posicionar cada vez mais como um ser racional, cada vez mais afastado de

sua condição primitiva enquanto ser-bicho. Bertolt Brecht parece sempre ter

acreditado na evolução da humanidade nesse sentido e, como se tentou

1 Poema de Bertolt Brecht, “Por que deveria meu nome ser lembrado?”. Poemas (1913-1956).

Seleção e tradução de Paulo César de Souza – São Paulo: Ed. 34, 2000.

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explanar nos dois capítulos anteriores, acreditou também que houve desvios,

tomadas de decisão precipitadas que fizeram o homem, orgulhoso de seus

feitos, reduzir as grandes possibilidades a ações pequenas, tantas delas

carentes de sabedoria, que se esperava como ação do esclarecimento do novo

homem.

Por esses motivos é que Brecht se voltou nos primeiros anos de sua

carreira para a descoberta dessas conflitantes decisões. Atividade à qual ele se

dedicou durante algum tempo para mostrar que, talvez, o grande erro para elas

terem acontecido tivesse sido sempre a falta de calma, a exasperação idealista

que fez com que as escolhas imediatas se transformassem em valores fixos,

cujo desapego parecia impossível. Na primeira fase de seu trabalho, ele

mesmo interpretou um papel semelhante e escolheu precipitadamente certos

caminhos. Mas como tinha a insatisfação a seu favor, pôde escolher também

rever as decisões que fez no começo e, assim, sua obra conquistou um lugar

inesperado. É sobre esse lugar que este capítulo quer tratar.

No início da carreira, Brecht aceitou alguns conceitos já estabelecidos,

assumindo de pronto um compromisso sério com a denúncia e a crítica, para

ver se sentia em seu íntimo o que significava realmente a criação de um teatro

político – a aproximação do teatro como o de Piscator, por exemplo, é uma

delas. Porém, ele descobriu através da junção entre experimentos teóricos e

práticos que para que o teatro que ele queria se tornasse palpável, não poderia

se bastar a construir verdades, ou a distribuir conceitos já formulados, mas

teria que insistir numa espécie de atuação que promovesse a emancipação dos

indivíduos.

Portanto, através dos acontecimentos da história que analisou, Brecht

justificou tudo aquilo que deveria ser negado e também o que os homens

deveriam retomar (a exemplo das construções áureas do passado), se

quisessem fortificar a construção de um bem comum, que sempre exigiu tanto

trabalho: a convivência entre os semelhantes, a dimensão de um coletivo para

além das relações de submissão e soberania. Se Brecht, primeiro, esteve

preso à ideia de defesa dos fracos e oprimidos, e buscou denunciar as

injustiças que rondavam o mundo capitalista, com uma observação

amadurecida do termo social, ele passou a acreditar que o caminho para

combater essas injustiças deveria ser outro. Descobriu, então, que deveria

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seguir potencializando os questionamentos que poderiam significar, por fim, o

abandono das antigas crenças e dogmas.

Um princípio inabalável guiou Brecht em sua empreitada e permaneceu

ileso em sua busca: aquele que compreende que toda a construção é ao

mesmo tempo desconstrução e que em todo o aparecimento há muito de

desaparecimento. Tanto na teoria quanto na prática, Brecht agiu conduzido por

isso e são os resultados desse trabalho que este capítulo pretende abordar,

porque a segunda fase do autor (que na introdução deste texto se prometeu

defender) é finalmente a concretização de um abdicar ininterrupto, sofrido por

qualquer artista e pensador que ama a causa motivadora de suas produções.

E assim como o amor tem muito de liberdade (ao contrário do que o

tempo glorificou), o envolvimento de Brecht com seu trabalho e a produção

teatral também teve muito de querer libertar e de, a todo o custo, se exercitar

para que nem a vaidade, nem os apelos de suas carências tomassem conta de

tudo o que seu espírito poderia produzir de grandioso – que era fazer do teatro

um lugar de transformação tanto dos artistas quanto dos espectadores:

Em contraste, o teatro épico conserva do fato de ser teatro uma consciência incessante, viva e produtiva. Essa consciência permite-lhe ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e é no fim desse processo, e não no começo, que aparecem as ‘condições’. Elas não são trazidas para perto do espectador, mas afastadas dele. Ele as reconhece como condições reais, não com arrogância, como no teatro naturalista, mas com assombro. Com este assombro, o teatro épico presta homenagem de forma dura e pura, a uma prática socrática. É no indivíduo que se assombra que o interesse desperta; só nele se encontra o interesse em sua forma originária. Nada é mais característico do pensamento de Brecht que a tentativa do teatro épico de transformar, de modo imediato, esse interesse originário num interesse especialista. O teatro épico se dirige a indivíduos interessados, que ‘não pensam sem motivo’. Mas essa é uma atitude que eles partilham com as massas. No esforço de interessar essas massas pelo teatro, como especialistas, e não através da ‘cultura’, o materialismo histórico de Brecht se afirma inequivocamente. ‘Desse modo, teríamos muito breve um teatro cheio de especialistas, da mesma forma que um estádio esportivo está cheio de especialistas.’ Em consequência, o teatro épico não reproduz condições, mas as descobre. A descoberta das situações se processa pela interrupção dos acontecimentos. O exemplo mais primitivo: uma cena de família. A mulher está amassando um travesseiro, pra jogá-lo na filha; o pai está abrindo a janela, para chamar a polícia. Nesse momento, aparece na porta um estranho. Tableau, como se costumava dizer, no princípio do século. Ou seja: o estranho se depara com certas condições – travesseiro amarfanhado, janela aberta, móveis destruídos. Mas existe um olhar diante do qual mesmo as cenas mais habituais da vida de família apresentam um aspecto semelhante.

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Quanto maiores as devastações sofridas por nossa sociedade (e quanto mais somos afetados por elas, juntamente com nossa capacidade de explicá-las), maior deve ser a distância mantida pelo estranho. [BENJAMIN, 1994, p.81-82]

Distanciamento, interrupção. Montagem, estranhamento, teatro não-

aristotélico, teatro épico, teatro didático. Todos esses conceitos compõem em

parte o teatro que Brecht defendeu e juntos formam uma modalidade

inovadora, cuja regra irrevogável é que cada processo deverá ser sempre

único, uma experiência. Embora tenham sido aplicados de maneira endurecida

no começo, com o tempo a intimidade criada na combinação dessas técnicas e

revisão dessas aplicações conduziu a uma visão totalmente diversa da função

tradicional de teatro. E é esse o núcleo desta dissertação: essa tal visão, que

Brecht construiu através de suas experiências e a que ele finalmente chega –

no período entre a década de 30 e 40. Aquele trajeto traçado pelo jovem Brecht

até a sua fase mais madura permitiu que ele se aproximasse cada vez mais da

responsabilidade com o fator social, até que se visse de tal forma

comprometido que a sua maior preocupação – a relação entre palco e plateia –

se tornou tão essencial a ponto de não mais se ver um artista criando uma obra

de arte, mas lançando a sua obra como um projeto de futuro.

Anteriormente mostrou-se como a necessidade de uma mudança na

função social da arte sempre determinou a frente da ação de Brecht. Pode-se

dizer inclusive que, se alguma vez quis desenvolver algum método (já que é

tão frequente relacionarem a sua figura à de um metódico), certamente ele

valeu mais propriamente para a forma como lidou com seus objetivos e pelo

fato de saber exatamente aonde queria e poderia chegar. Não saiu por aí,

produzindo como um apaixonado cego por sua criação, e mesmo que não

tivesse ideia de como chegar ao que pretendia, também não se deu por

satisfeito até que conseguisse mostrar o que era aquilo que sonhara para o

teatro. Brecht partiu de uma especificidade em sua obra para depois ampliá-la:

“dinamicidade irredutível que o transforma num trabalho radicalmente e por

definição em progresso, trabalho que não sabe ‘acabar-se’ senão como

autoultrapassamento contínuo, em interna, digamos, revolução permanente.”

[PASTA, 2010, p.255]. Há segundo, José A. Pasta, uma continuidade entre o

Brecht de 1926 e o de 1954. Mas, particularmente, no que diz respeito aos

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clássicos, há uma espécie de oposição, porque o segundo Brecht se propôs a

retomá-los enquanto que o primeiro defendeu o afastamento dessas obras e

priorizou os novos e desconhecidos autores.

Passada a fase de negação, Pasta analisa o movimento realizado por

Brecht e passa a vê-lo como um clássico em construção, que ele relaciona com

uma espécie de “legado brechtiano” – o que inclui tanto a denúncia ao abuso

dirigido às obras pela tradição, como também o seu projeto de se tornar ele

mesmo um clássico. A ideia, portanto, de pretender que sua obra se firme

como clássica – de uma maneira bastante particular, que ele teria desenvolvido

com o legado – estende-se para outros campos de seu pensamento, inclusive

à despretensão mencionada no capítulo anterior de se portar como um

intelectual:

Sua atitude em relação ao aproveitamento dos clássicos e à postura clássica variou notavelmente ao longo de sua vida, como iremos observar noutra parte, mas, no que se refere às limitações e malefícios de tal condição, sua atitude foi inalteravelmente a mesma, e de clara consciência, como o atestam escritos tão distantes entre si, separados por uma guerra mundial, pela experiência do nazismo, dos anos de exílio e pelo retomo à Alemanha dividida. Nisso é que tal atitude nos interessa, pois também em relação a esta consciência é que ganha sentido, em sua especificidade, o projeto clássico de Brecht, tal como acreditamos que ele se define. Se realmente há, em Brecht, uma opção de corte clássico, dialeticamente a ela, ao se definir, deve incluir nos seus cálculos o risco de neutralização. [...] Haveria, assim, colaboração e embate simultâneos entre a obra de Brecht e a sua divulgação, de modo que a elevada taxa de redundância na sua crítica brechtiana nos atrapalha e nos ajuda, mas não desfaz, para este trabalho, o nó do seu tema; ela nos reconduz a ele, como se está vendo, e tratar-se de continuar a trabalhá-lo – pois o estatuto dessa redundância depende do estatuto da classicidade em Brecht e, nesta passagem, pouco pudemos levantar mais que a variação de algumas hipóteses. Sua verificação, como vimos pouco anteriormente, depende, por seu turno, de que se apanhe o projeto clássico no movimento de sua constituição e contradição internas. De resto trata-se, também neste caso, de seguir a indicação do próprio Brecht que, ainda a respeito dos clássicos e da barragem de redundância que os afeta , diz: ‘[...] precisamos iluminar seu conteúdo ideológico original, extrair sua importância nacional e portanto internacional; precisamos estudar a situação histórica da época em que a obra foi escrita, a natureza particular do autor e a perspectiva que adotou.’ [...] Em todo caso, ele acrescenta, algo consolatoriamente, para nós, que ‘esse estudo apresenta algumas dificuldades das quais já se falou e ainda se falará muito’, mas adverte, em seguida, para outro ‘obstáculo’, que chamou de ‘intimidação pelos clássicos’, ou seja, o risco de ficarmos medusados pela ampliação desmedida de sua grandeza.” [PASTA, 2010, p.130-132]

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Uma vez que a intimidação diante dos clássicos era provocada pela

tradição, quando Brecht quis fazer jus a essas heranças precisou primeiro

negar essa ação por parte dos tradicionalistas. E mesmo que depois tenha sido

visto como negador dessas grandes obras, demonstrou com as análises

dirigidas a Aristóteles, a Diderot, Lessing e Goethe como estava equivocada

essa posição que o considerava um radical nesse sentido, como se quisesse

por acaso apagar, ou menosprezar as produções históricas2. A radicalidade

atribuída a Brecht, tinha a ver com a forma de lidar com elas. Sua crítica quis

de maneira irônica e consequente repelir aquelas apropriações que geraram

frutos desfavoráveis para o avanço das criações artísticas. Não à toa, quando

Brecht se ocupou da tradição alemã, que inclui autores como Schiller, seu

descontentamento muito próximo àquele que o afastou de Lukács tinha a ver

com a construção de uma visão idealista por parte desses autores, que, por

concederem privilégios demais à moral, esqueceram inevitavelmente do que

para ele era muito mais importante: o aspecto social das obras. E foi esse

aspecto que esteve sempre no centro para Brecht, até quando se aproximou de

obras do passado.

Na apropriação da qual se serviu, Brecht retomou heróis, autores e

técnicas. Defendeu esse uso, e a sua defesa estava pautada na causa que o

guiou desde o início, que o impedia também de ficar deslumbrado e fazer mais

uma vez das apropriações, meras cópias. Na contramão de uma ação

tradicional, ao mesmo tempo em que fazia usufruto daquelas histórias,

conseguiu reafirmar também a crítica à tradição, à manutenção da ideia de

continuidade dos acontecimentos e projetar aquilo que queria que fizessem de

2 “Neste sentido, estes escritores reatam com uma longa tradição, ao entrar na ‘discussão

sobre tais caracteres [que] não se interrompe desde Aristóteles’ – discussão em cujo extenso curso sua intervenção passa a constituir um estágio para sempre fundamental. É contra este pano de fundo de uma longa tradição que ganha dimensão clássica até mesmo o que seu gesto tem de ruptura, tanto no uso goethiano de seu Faustrecht, quando na incitação de Schiller ao declarar que ‘o assunto moderno impõe, cada vez mais, uma aproximação dos gêneros’. O caráter clássico desta ruptura, paradoxo aparente, denuncia-se sobretudo no movimento nada precipitado ou impensado da fusão dos gêneros; ao contrário, se ‘impõe que se aproximem’ épico e dramático, evita-se cuidadosamente a criação da forma ‘monstruosa’, do hibridismo disforme ou quimérico: isto se faz com prudência e análise, abandonando-se o rigor da forma herdada – e que representa uma conquista – apenas naquilo em que sua superação orgânica e ponderada se revela indispensável sob o crivo da reflexão e da análise. Daí ressaltar Lukács que ‘a enorme importância de seus escritos teóricos que analisam a essência deste período [...] reside em que eles explicam de uma parte a necessidade histórica e objetiva do caráter problemático de seus próprios esforços e, de outra parte, deduzem precisamente desta base contraditória as leis formais específicas da arte moderna, a saber, de um classicismo contemporâneo.” [PASTA, 2010, p. 211]

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sua obra. Através da experimentação, conseguiu finalmente derrubar a

conhecida e respeitada “grandeza artificial das obras clássicas”3, cedendo um

verdadeiro respeito àquelas histórias que, de tanto repetidas (sempre do

mesmo modo), estavam perdendo o valor e já não conseguiam dizer mais nada

sobre o velho mundo, tampouco sobre o novo. Brecht, ao agir dessa forma,

deixou uma contribuição valiosa para o passado, presente e futuro. E a noção

de obra, como algo sempre em construção, ele atribuiu à própria obra,

defendendo ainda que conhecimento histórico deveria servir às novas épocas

para fazê-las avançarem e não para reduzi-las:

Há alguns aspectos pelos quais, sob condições determinadas, o estabelecimento de um projeto clássico pode ganhar um radical poder de contestação, muito fácil de não ser percebido – quando não tem pior sorte e, diante de outras formas de ruptura, às vezes menos importantes, porém mais gritantes ou embandeiradas, é confundido com o vulgar conservadorismo, senão com a própria reação. [PASTA, 2010, p. 255]

Por isso, a classificação do “projeto clássico de Brecht” feita por Pasta

especifica o sentido da obra do dramaturgo como uma propriedade inacabada,

que é como Brecht concluiu que ela deveria ser entendida. Com o tempo, ele

pareceu ter encontrado a fonte de sobrevivência de seu teatro. E diferente do

que se esperava no começo, como o projeto de um sistema tão completo como

3 “Mas o elemento radicalmente novo na postura de Brecht, mais do que o dado básico do novo

reconhecimento de validade da retomada dos clássicos, está no conjunto das condições em que ela é proposta. Elas agora obedecem a traçado seguro, cuja nitidez denuncia a existência do ponto de vista firme e perfeitamente focado. Entre elas reencontramos as críticas à velha tradição de encenação dos clássicos e à sua ‘renovação formalista’. A junção dessas críticas à proposta fundamental de historicização dos clássicos, neste texto, entretanto, longe de surgir apenas por disseminação ou por mera justaposição, realiza-se já como articulação antiética de seus três termos, cada um deles, além disso, perfeitamente delineado e esclarecido. Apenas a historicização, que se opõe a ambas, pode ao mesmo tempo superar a ‘tradição de deterioração das obras clássicas’ e desmistificar a ‘resposta formalista’ que a renovação anacronizante pretende lhe contrapor. A historicização, por sua vez, surge como ruptura daquela ‘grandeza’ artificial das obras clássicas, anteriormente mencionada, ruptura que só se obtém mediante sua cuidadosa re-contextualização (das obras clássicas), capaz de neutralizar a transmissão, ‘a vácuo’ da herança que é constitutiva da classicidade burguesa. Principalmente, aí, se consolida a politização da perspectiva artística: estamos diante de um pensamento que já inclui uma consideração integrada da função da herança. O Brecht que produz este texto, em 1954, é aquele que já executou o gesto calculado e estratégico da recuperação de Lenz e já definiu a função propedêutica dos clássicos nacionais; é o Brecht da reorganização da herança, enfim, ao mesmo tempo que o fundador de uma nova tradição. O próprio convite à retomada dos clássicos que aí se faz já tem, ele mesmo, um valor de intervenção: é o gesto de um homem que definiu com integralidade uma práxis política da cultura e, sem oscilação, é capaz de propô-la executá-la exemplarmente.” [PASTA, 2010, p.247-248]

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o de Aristóteles, a concepção de Brecht assumiu de vez que, se dentro da

história o teatro sempre teve e teria uma função social – e que ela é

determinada conforme a época –, então as experimentações sempre deveriam

seguir novos rumos, o que sugeria que consequentemente haveria um “não

apego”. Semelhante ao que de certa forma conclui Luciano Gatti sobre o

sentido que a peça de aprendizagem (ou didática) adquiriu para Brecht, que,

como já se viu anteriormente, também se tornou muito mais largo que o sentido

normativo comumente relacionado à pedagogia, e está muito relacionado ao

projeto dele:

O atributo da permanência condiz pouco com a intenção de Brecht. Seria mais razoável ver nessas peças indicações para experimentações e exercícios de grupos interessados em retomar algumas das questões propostas, sem, contudo, pretender recuperar os contornos de uma encenação original canônica. Ao referir-se à Medida, o próprio Brecht salientou que a peça constituía-se apenas de uma estrutura básica, sendo que caberia à encenação incluir novas cenas esboçadas a partir da experiência concreta dos ensaios. Brecht, ao encenar suas peças também as modificava com base nas necessidades da época de encenação. A fidelidade a um original é estranha a seu projeto, o que situa tal teatro diante de uma dupla crítica à noção de peça de repertório: deveríamos aceitar a efemeridade de uma conjunção histórica e teatral irrepetível, com a consequente renúncia à possibilidade de tornar a encenar tais peças; ou então caberia enfrentar o risco da infidelidade e do desrespeito ao texto e às técnicas do mestre, mas também o risco da experimentação e da liberdade, com o intuito de ‘testar’ a conjunção de componentes de uma experiência teatral passada com outros do presente mais recente. Questões como essas deveriam estar no horizonte da atualização estratégica brechtiana de refuncionalização da prática teatral. [GATTI, 2012, p.11]

Essa fase de maturidade compreende, portanto, o alcance de Brecht a

uma visão complexa sobre o comportamento do novo teatro com relação ao

público e à concretização da possibilidade dessa experiência, que visava

alcançar a mudança de função da arte através da formação de uma nova

espécie de espectador. Embora tenha finalmente descoberto uma possível

maneira de chegar a esse encontro, Brecht percebeu que só teria sentido

defendê-la se tivesse uma continuidade depois de sua morte, pois não seria da

noite para o dia que o teatro, viciado numa estrutura tradicional, conseguiria

transformar os indivíduos e a sociedade. Isso Brecht presenciou em suas

experiências.

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Novamente recorrendo à tese defendida por Pasta, é de extrema

importância para a compreensão das intenções brechtianas notar como a

disposição em fazer de si um patrimônio coletivo transformou Brecht num

artista ainda mais admirável. O desapego da imagem de artista e pensador

como produtor de conhecimentos – ou daquele que espera alcançar uma

legitimidade tal que lhe desse certo poder dentro do teatro sempre intacto – fez

com que estivesse permanentemente na busca de aprimorar-se e de ser

surpreendido por novas descobertas:

Não é outra coisa senão ao trabalho de dar a essa dimensão exemplar coletiva, que Brecht chamou organização para a glória, ou para o escândalo, trata-se de organizá-los em exemplaridade. Esta moralidade não era professoral ou dogmática, mas da ordem de uma moral interrogativa, por isso mesmo uma moralidade ou um impulso, um desejo e uma necessidade ética em movimento. Dos elementos que a configuram, já temos a dimensão coletiva associada a sua preocupação de exemplaridade, elementos cujo sentido, mais adiante, devemos explorar melhor. [PASTA, 2010, p.64-65]

“Para uma concepção coletiva de poesia”, Brecht tornou-se também um

ser coletivo. Além de ter seu espírito tomado por esse sentimento, aquilo que

praticou em todos os campos de sua vida denotou essa preocupação. Isso

explica por que sua vida era o teatro, por que para Brecht fazer teatro era viver

e não fazê-lo era o mesmo que estar morto. Essa dimensão que priorizava o

coletivo fez dele um nômade dentro da história. Um homem contra a

propriedade intelectual, artística, contra a ideia de obra como propriedade.

Assim também para a política e para outros campos da vida como as relações

entre as pessoas. Propriedade é algo que caracteriza bem a burguesia e

Brecht opôs-se à consagração da tradição e dos monumentos.

No entanto, se a intenção do projeto de Brecht era deixar algo para uso

das próximas épocas, ele precisava criar não apenas o que negasse a tradição,

mas algo que servisse para substituí-la, para fazer o contraponto. Apesar de ter

começado com uma postura que defendia o que Raymond Williams chamou de

“falsa moralidade”, conseguiu driblar esse momento e não chegou a rejeitar a si

mesmo, ou a negar o que fez antes dessa superação, como a escrita das

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peças Baal, ou A ópera dos três vinténs em sua juventude4. Encarou a fase de

adepto do Expressionismo, ou do Teatro Didático, aproveitando-se das

experiências para potencializar um Brecht que sempre existiu, mas que como

destaca Williams carecia de algo que com certeza não tinha a ver com seus

valores, ou com qual direção seguir. O que lhe faltava era aquilo que sempre

marcou qualquer artista: conseguir que suas aspirações teóricas alcançassem,

enfim, a prática. Isso sempre se estabeleceu como um árduo desafio para

Brecht, principalmente por saber exatamente aquilo que não queria que seu

teatro se tornasse. Assim, para tudo o que via, o olhar tinha que ser o da

descoberta, do teste:

‘Em teoria’ é a expressão correta. Brecht havia de fato descoberto a sua teoria, na ideia de uma visão, mas a prática não estava lá, na peça, propriamente dita. Ele considerou que seu ‘estilo épico’ obrigaria a ‘pensar acima’, ao passo que o ‘estilo narrativo’ do ‘drama aristotélico’ (esses termis bai têm nenhum sentido histórico ou crítico – são termos do manifesto do próprio desenvolvimento criativo de Brecht) obrigava a ‘pensar de dentro’. Ele se utilizou de efeitos de distanciamento para levar o espectador à atitude de ‘alguém que, à vontade, fuma e observa’. Mas Brecht estava ele mesmo ainda confuso – ele mesmo não alcançara um distanciamento – e havia mais relaxamento do que ação real de assistir a um distanciamento – e havia mais relaxamento do que ação real de assistir ao espetáculo ou de pensar. A peça, na verdade, adequava-se com facilidade àquilo que ‘o espectador deseja ver’: crime e frieza não como estruturais na sociedade, mas vividos em um bairro romântico e teatralizado. Está claro que muitos especuladores, aceitos na sua geração como escritores e artistas, tiveram atividades nesse bairro: tornando o vício e o crime teatrais cheios de cor e distanciados, de uma maneira simplificada, de modo que uma falsa sociedade pudesse evitar a necessidade de olhar para si mesma. Brecht, suponho, nunca foi um deles, mas ainda assim estabeleceu-se, por algum tempo, em um bairro vizinho, no qual o sofrimento era também encoberto. Ele se decidiu por um padrão de sentimento convencional dissidente, no qual tem, ainda, companhia: o artista agridoce que, confrontado com uma sociedade imoral, pode exibir a imoralidade como uma espécie de verdade. As pessoas compram e vendem umas às outras, em A ópera dos três vinténs, e também em telas de cinema e páginas de livros sem conta, de modo frio – e apenas ocasionalmente, com sentimentos de fachada – mas sempre com brilho, com espirituosidade, com o grande número musical. E lógico, essa é a vida; pois quem, enquanto dura o número, teria a energia de dizer ‘isso não é a vida’? Quando finalmente encontra as palavras, ele é de

4 “Durante a leitura dos atos 3, 4 e 5 de Tambores na noite senti tamanha insatisfação que

pensei na possibilidade de eliminar a peça. Só a convicção de que a leitura pertence à história e que esta não pode ser falsificada, bem como a impressão de que minhas convicções e capacidades atuais teriam menos valor se as minhas anteriores não fossem conhecidas – supondo que tenha havido melhora nelas – me impediram de fazer uma pequena fogueira com a peça. Por outro lado, a supressão não é suficiente, o que está errado deve ser corrigido.” [BRECHT in Pasta, 2010, p.250]

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todo modo ingênuo, e um moralista. Mas a verdadeira moral é que podemos todos fingir ser mais cheios de vida e radiantes do que somos, distribuindo a imundície fria e calculada pelas prostitutas de bom coração e contratando velhacos que são, ao menos, honestos, que conhecem o jogo da hipocrisia e que podem ir além da seriedade dos velhos preceitos. [WILLIAMS, 2002, p.252-253]

No extenso caminho percorrido, se houve alguma conclusão a que ele

chegou, certamente foi a de perceber que até mesmo os resultados e as

conquistas deveriam ser constantemente reconsiderados para evitar a recaída

numa permanência formal, que, com o passar do tempo, em se tratando de

arte, estaria irremediavelmente fadada à improdutividade, ao fracasso. Para o

que propôs durante a fase madura, a peça que melhor se encaixa numa visão

não-dogmática de teatro é, segundo Williams, Vida de Galileu5. Com ela, o

dramaturgo conseguiu finalmente atingir aquilo que já aparecia na teoria, mas

não enquanto ação, como exposto na citação acima.

Entretanto, muito embora o teatro de Brecht tenha passado por diversos

questionamentos ligados ao desencontro entre teoria e prática, hoje, com o

olhar do presente, é possível ver que nesse impasse (que durou décadas),

havia algo bastante natural. Poucos notam, mas Brecht não poderia ter traçado

um percurso mais coerente senão aquele que traçou, cheio de dúvidas e

reconsiderações. Inclusive, se analisado o movimento de sua obra como

evolutivo, fica seguramente insatisfatório seguir as leituras que sancionam

precisamente as fases desse trabalho, até o momento em que ele chegou a

encontrar uma prática capaz de abordar os assuntos como imaginava, porque,

afinal, tudo pelo que passou fez parte de um mesmo processo. O que Brecht

encontrou de definitivo para o teatro e para a arte em geral foi a necessidade

do artista de não se dar por satisfeito, necessidade que o faz permanecer

sempre com a busca.

Ainda que o teatro brechtiano se pretendesse livre, não deixaria de ser

específico porque, afinal, queria atingir uma determinada função social –

significando que a experimentação sempre manteria um vínculo com a teoria e

vice-versa. Ora, retomando a ideia defendida no capítulo anterior, Brecht ao

invés de se concentrar na hipótese de criar um novo Realismo preferiu

5 Vida de Galileu foi escrita entre 1938-1939, traduzida por Roberto Schwarz, col. Teatro

Completo, em 12 volumes. Vol. 6. Bertolt Brecht. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

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classificar a si mesmo como um experimentador. Logo, a peça de Brecht que

revisitou a história de Galileu Galilei quis dar a essa história um novo

direcionamento, pautado naquele que, talvez, se constitua como o maior

impasse do homem moderno: a dúvida entre defender aquilo em que acredita,

ou fazer o que precisa fazer para sobreviver:

Mais uma vez a questão não é: ”deveríamos admirar ou desprezar Galileu?”. Não é essa a pergunta que Brecht nos propõe. O que ele indaga é o que acontece com a consciência quando aprisionada num impasse entre moralidade individual e social. A submissão de Galileu pode ser explicada e justificada, no âmbito individual, como um meio de ganhar tempo para poder dar continuidade ao seu trabalho. Mas o ponto que escapa à compreensão, aqui, é qual é a finalidade do trabalho. Se a finalidade da ciência é permitir que todos os homens possam aprender e compreender o seu mundo, a traição de Galileu é fundamental. Separar o trabalho de sua finalidade humana é, e Brecht vê isso, trair os outros e desse modo trair a vida. Não se trata, ao final, do que pensamos de Galileu como um homem, mas dos que pensamos dessa conclusão. A peça traz esse tema à consciência não como um problema, mas como uma ação viva. Afirma-se, às vezes, que o marxismo de Brecht foi obstáculo, ou, quando muito, um dado irrelevante para o seu drama. E, no entanto, é precisamente nesse modo de olhar o mundo que reside a ação dramática. Estamos acostumados ao martírio e ao indivíduo em conflito com a sua sociedade. Mas não estamos acostumados a esse modo radicalmente diferente de ver uma experiência que é, em geral, mais facilmente mediada por essas convenções mais antigas [WILLIAMS, 2002, p.259-260]

De súbito, a obra de Brecht ultrapassou ele próprio. Ela mesma lhe

mostrou que caminho seguir, para que não se perdesse como se perderam as

obras daqueles artistas que, ao deixarem a vaidade e o medo comandarem,

não conseguiram ver além do que já existia. A pretensão de ser lembrado tinha

pouco a ver com ele mesmo. Rodeado por colaboradores, amigos e pelo

público, ele nunca trabalhou sozinho. Em realidade, ele nunca conseguiu, nem

se propôs a se separar do coletivo, porque sua primeira e última instância

sempre foi o outro. Ter a consciência de que nem todos têm de fato noção de

sua situação real, das condições precárias dos indivíduos, é uma coisa que

Brecht não quis enfrentar sozinho. Ele quis propiciar a esses indivíduos um

meio em que eles junto aos demais conseguissem, mais do que entender

racionalmente, sentir o que significava esse senso de coletivo, embutido na

escolha individual de cada um, como a de Galileu:

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O reconhecimento é um fato da história, a conhecida acerbidade da luta revolucionária. Mas, enquanto essa é vista como um processo, pode ser atravessada, resolvida, modificada. Ao passo que, se é vista, mesmo que por um breve momento, como uma posição estática – uma abstrata condição do homem ou da revolução – transforma-se numa nova alienação: uma exposição interrompida antes do envolvimento, uma tragédia posta em suspensão e generalizada diante do choque da catástrofe. Em nossos dias, numa complexidade conhecida, é a inflexível acerbidade de um regime revolucionário que passou a impedir a própria revolução. Essa acerbidade, no entanto, ao defrontar-se com os homens transformados em pedra, encontra os herdeiros da luta que, em função de si própria, vivem de um modo novo e com novos sentimentos e que, incluindo a revolução na sua vida diária, respondem à morte e ao sofrimento com uma voz humana. [WILLIAMS, 2002, p. 263-264]

As tentativas de Brecht com os experimentos permitiram que ele

percebesse, cada vez mais, como se tornara imprescindível fazer dos

espectadores produtores de suas próprias consciências, muito diferente de se

limitar a produzir uma consciência que eles simplesmente aceitassem. Afinal,

se Brecht queria construir uma obra com dimensões clássicas e de uma forma

incomum, precisava fazer com que suas peças possibilitassem, a cada

montagem, verdadeiras novas experiências. O ponto de partida para essa

transformação: o enfrentamento da problemática relação entre o que acontecia

no palco e o que era recebido pela plateia, que se baseava no que foi

apresentado no primeiro capítulo sob a forma das emoções, a empatia. Brecht

desfez a lógica da influência psicológica das peças burguesas, e esse é um

pressuposto que acompanhou o seu teatro até o fim.

Depois disso, passou a percorrer (até chegar a Galileu) um caminho que

buscou a invenção de novos meios que conseguissem fazer do teatro um lugar

de reflexão, de produção de novas ideias e possibilidades para as situações da

vida em sociedade. Nesse percurso, Brecht descobriu que precisaria muito do

público para conseguir chegar lá. Como não queria um espectador que, como

foi dito, se resignasse a aceitar tudo aquilo que lhe fosse apresentado, sem

questionar, investiu mais e mais na formulação de perguntas e não deu as

respostas. A partir daí, ele esperou que a iniciativa em responder, depois de

avaliar tudo o que aconteceu, fosse uma atitude desejada pelo próprio

espectador, que como um indivíduo que possui consciência deve exercitá-la

sempre, inclusive no momento de se divertir. E “se divertir” para Brecht inclui o

exercício de refletir, o que não precisa ser de uma forma pesada como a das

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suas primeiras obras (quase forçosa), mas de uma forma mais profunda e ao

mesmo tempo mais leve também, como configura o exemplo de Vida de

Galileu.

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3.1 Brecht e Galileu

Tendo agora em mente a fase madura de Brecht, quais características

da peça Vida de Galileu fazem dela um bom exemplo (talvez o melhor) da

investida do dramaturgo em querer despertar uma nova atitude dos

espectadores no que diz respeito àquilo que faltava em seus textos? Aliás, em

que aspectos é possível perceber a própria figura de Brecht na de Galileu,

como duas figuras socráticas? De que forma essa ligação pode ser

evidenciada dentro do contexto da peça? Vida de Galileu é considerada um

grande exemplo de Teatro Épico, de teatro não-aristotélico, de teatro

brechtiano. Que elementos estão presentes nessa peça que a tornam

especial?

Em primeiro lugar, é possível de pronto destacar trechos dentro da peça

que fazem da afirmação de Williams, de que nela “a consciência é ação”, uma

afirmação bastante plausível. Não à toa são pertinentes também as

semelhanças encontradas entre a visão de Brecht e de Galileu, que levam a

pensar inclusive na personagem de Galileu como uma alegoria da própria

experiência do autor. Centrando, portanto, essa abordagem na análise desse

texto é de fato possível perceber todos os aspectos mais gerais do pensamento

brechtiano dessa época (ou seja, da fase madura), como é, por exemplo, a

retomada da figura “clássica” de Galileu, que traz à tona assuntos que

permaneciam vivos. A investida em desligar todos os tipos de conhecimento –

como a ciência (no caso de Galileu) e arte (no caso de Brecht) – da imagem

plena e segura de Aristóteles remete a uma estrutura da sociedade que, ainda

muito dependente desses saberes para manter uma ordem, deve ser

transformada.

Desde a escolha do tema à criação das personagens, bem como o

desenvolvimento dos diálogos, Brecht pareceu ter se concentrado no objetivo

de estabelecer como constante uma ligação com o público através da reflexão.

Inevitavelmente, diante de uma série de questionamentos que são colocados

como ação na peça, o espectador (se atento) era levado a considerar as

situações e avaliá-las. Durante toda a peça, Galileu é testado em defesa do

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“novo sistema copernicano”, mas até onde pode ir? Até onde o homem pode ir

com as suas crenças num mundo em que os conhecimentos não param de

avançar? A mesma pergunta Brecht dirige ao pensamento religioso, que

sempre se sobrepôs a todo o conhecimento que fosse de encontro aos

interesses da Igreja. Até quando o homem deve ignorar o que vê em respeito

àquilo cuja existência não tem provas? A seguinte passagem da peça abre as

portas de um novo mundo. Nela aparece também o esforço de Brecht

querendo deixar a mensagem dos novos tempos, chamando a atenção dos

espectadores sem parecer um idealista utópico:

Muros e cascas, tudo parado! Há dois mil anos a humanidade acredita que o Sol e as estrelas do céu giram em torno dela. O papa, os cardeais, os príncipes, os sábios, capitães, comerciantes, peixeiras e crianças de escola, todos achando que estão imóveis nessa bola de cristal. Mas agora nós vamos sair, Andrea, para uma grande viagem. Porque o tempo antigo acabou, e começou um tempo novo. Já faz cem anos que a humanidade está esperando alguma coisa. (...) E surgiu um grande gosto pela pesquisa da causa de todas as coisas: saber por que cai a pedra, se a soltamos, e como ela sobe, se a jogamos para cima. Não há dia em que não se descubra alguma coisa. Até os velhos e os surdos puxam conversa para saber das últimas novidades. Já se descobriu muita coisa, mas há mais coisas ainda que poderão ser descobertas. De modo que também novas gerações têm o que fazer. (...) o tempo antigo passou, e agora é um tempo novo. Logo a humanidade terá uma ideia clara de sua casa, do corpo celeste que ela habita. O que está nos livros antigos não lhe basta mais. Pois onde a fé teve mil anos de assento, sentou-se agora a dúvida. Todo mundo diz: é, está nos livros – mas nós queremos ver com os olhos. [BRECHT, 1991, p.57]

O trecho anterior aparece logo no começo da peça e é ele que guiará

Galileu ao longo da trama. Ao mesmo tempo, ele também é Brecht defendendo

a tese central de sua visão: que a humanidade precisa querer olhar para as

coisas e aceitar que elas mudam, ao invés de sempre optar por elas

permanecerem paradas. É nesse sentido que Brecht convocou os

espectadores a se tornarem, também eles, descobridores de novos

continentes. E assim dá início à jornada de Galileu, que é a personificação do

distanciamento, o grande símbolo do Teatro Épico e do teatro não-aristotélico

da forma como Brecht finalmente concretizava. Sobre essa questão é preciso

fazer algumas considerações.

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A peça traz em seu todo o distanciamento prometido6, estudado e que

Brecht ampliou e adotou como sentido para o teatro. A diversão que propôs e o

jogo estão também comprometidos com essa relação de distância que ele

construiu em textos como Vida de Galileu. Nas suas primeiras obras, essa

distância não penetrava totalmente a concepção de um teatro não-aristotélico,

e por isso se diz que as peças do início tinham um peso muito forte, ou que

eram pouco divertidas. Até então, Brecht usava o distanciamento como técnica

de montagem e ainda não tinha muito clara a dimensão que essa técnica

poderia vir a ter em seu teatro, assim como a sua visão da política, que no

início ainda tinha um sentido bastante reduzido e que mais tarde também foi

ampliada por ele. Porém, a dimensão dada pelo dramaturgo a essa que era

uma técnica adaptada do teatro chinês transformou-se em uma estrutura muito

mais profunda, que permitiu tanto a derrubada de uma estrutura aristotélica,

como também a entrada das outras técnicas que foram desenvolvidas por ele.

Logo, o distanciamento como princípio do teatro épico faz o teatro como

um todo adquirir novas possibilidades. Isto por que não são mais as ações das

personagens que narram os acontecimentos, não é um narrador apenas que

faz esse trabalho, mas todos se transformam através dos gestus7 e do texto,

em narradores: atores, dramaturgo e plateia. O sentido de coletivo se estende

para além da montagem. Os atores admitem que estão ali para contar uma

6 “O mais discutido dos conceitos brechtianos – o de distanciamento – é o que pede maior

revisão. Muita gente que trabalha com o "efeito de distanciamento" se esquece de sua ligação íntima com a tradição cômica. Considerado apenas como técnica, é coisa muito antiga, presente em qualquer triangulação de comediante popular. Aparece, por exemplo, quando uma mulher de camisola observa todo o esforço do seu marido ao entrar de madrugada em casa sem fazer barulho, na volta culpada da farra. E essa suspensão inusitada de um objeto do olhar pode ser feita por muitos elementos do espetáculo, além dos atores: iluminação, música, legenda. [...] O distanciamento brechtiano não é, contudo, apenas uma técnica cômica, tal como é hoje utilizado pela publicidade. Assim como grande parte do riso pede uma visão moral (os tipos cômicos têm graça porque reprovamos suas obsessões, que eles juram ser inexistentes), o efeito de distanciamento é uma técnica de prazer em bases morais. Retira-nos de nossa posição individual e nos lança na moral de um grupo, de uma classe social. Em Brecht a mecanicidade e os automatismos criticados ainda são os da sociedade burguesa tradicional, hoje quase extinta. O problema atual do distanciamento não é de ordem técnica, mas moral." Este é um trecho de uma publicação do diretor, dramaturgo e crítico teatral Sérgio de Carvalho, para o jornal Folha de São Paulo, no dia 08 de Fevereiro de 1998, no Caderno Mais!. 7 Trata-se de um conceito também bastante aprofundando por Brecht. Ao contrário dos gestos

que são realizados pelos atores em uma típica peça dramática burguesa, os gestus que o teatro épico expõe não traduzem nada. Nem estado de espírito, nem sentimentos das personagens. Porque eles não têm essa função normativa de, em auxílio completarem a ação. Pelo contrário, os gestus para Brecht devem causar estranhamento e muitas vezes transmitir um sentido que contraria as palavras.

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história e que gostariam que todos (a plateia) participassem. Tudo no teatro

brechtiano realiza a função de distanciar o indivíduo para outro lugar em que

ele pode ver as coisas acontecendo, independentes umas das outras, e pode

alcançar o entendimento daquilo que na dramaturgia tradicional só lhe era

permitido sentir através de dramas articulados de forma a iludi-lo. O espectador

distanciado passa a se portar como um observador, sentindo as emoções que

são muito mais promessa e esperança, do que aqueles sentimentos

despertados pela experiência do sofrimento de um herói.

Galileu é levado de propósito por Brecht a não agir como se esperava de

um herói. Ele não é um herói e tampouco no sentido burguês. Ele sabe que

suas escolhas têm um preço e que aquela vontade idealista de seguir com a

sua vontade sem medir as consequências não contribuiria para o progresso da

ciência que ele esperava obter – a ação de um herói idealista provavelmente

seria escolher a fogueira. No entanto, Galileu sabe que nenhum homem que

acredita na transformação deveria isolar-se e querer estar sozinho nisso. Se

ele morresse não poderia escrever o que, escondido, entregou a Andrea.

Brecht comprovou através dessa ação que, mesmo obedecendo a um sistema

e seguindo as ordens deste para sobreviver, é possível buscar uma saída

como fez Galileu. E não importam tanto as formas de fazê-lo, desde que a

motivação do indivíduo vise o coletivo. A confirmação da intenção do autor

aparece na frase dita por Galileu em resposta à de Andrea – seu discípulo, que

se decepciona quando seu mestre renuncia à verdade perante a pressão da

Inquisição. Galileu, que era como um herói para Andreas, depois de renunciar,

diz: “Infeliz a terra que precisa de heróis” [BRECHT, 1991, p. 154] Ele mesmo,

portanto, não se via como um herói.

A aposta maior de Brecht no homem racional foi ele ter descrito Galileu

como um homem que, muito diferente dos heróis, sente fome, tem vontades

que são humanas. Como poderiam os homens acreditar na transformação que

deve partir deles, se continuassem se pautando em heróis com poderes sobre-

humanos, ou pessoas conformadas com seu destino? Brecht, ao mostrar o

descontentamento de Galileu em, por exemplo, ter que ensinar coisas que para

ele já estavam ultrapassadas, para poder ter o que comer, ao invés de poder

se dedicar aos próprios estudos, que também significavam um

comprometimento com a sociedade (como Brecht via as descobertas

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científicas), não descreve como um homem tem que se portar. Ao descrever

Galileu como um homem com vontades que não são egoístas, mas que

simplesmente tinham outro objetivo, retira a ideia da impossibilidade de outros

homens se portarem dessa forma por serem escravos desse ser humano, ou

por não serem heróis. Ou seja, Brecht provocou uma distância dentro da peça,

mas antes há uma aproximação, que faz com que as coisas, casos como o de

Galileu, passem da improbabilidade para a possibilidade.

Logo em seguida à renúncia de Galileu, Brecht incluiu na peça uma

frase que retirou da obra Discurso (Discorsi), do próprio Galileu Galilei, ao que

parece bastante plausível para afirmar a ação de Galileu como uma saída

bastante possível para o comportamento de um homem. Afinal, como conclui

Andrea mais tarde, “O medo da morte é humano. Fraquezas humanas não têm

nada a ver com ciência.” [BRECHT, 1991, p.164]:

“Não será claro que um cavalo pode quebrar as patas, se cair numa altura de três braças ou quatro, enquanto que a um cão, como também a um gato, mesmo caindo de uma altura de oito ou dez braças, ou a um grilo que caísse do alto de uma torre, ou uma formiga que viesse da Lua, não aconteceria nada? Assim como animais menores são relativamente mais resistentes e mais fortes que os maiores, também as plantas menores resistem melhor: um nogueira de duzentas braças não poderia sustentar em proporção a massa de galhos que a nogueira pequena sustenta, e a natureza não pode deixar que um cavalo fique do tamanho de vinte cavalos, ou que um gigante cresça dez vezes, a não ser que altere a proporção de todos os seus membros, especialmente dos ossos, que precisam ser fortalecidos em medida muito maior que a proporcional. – A suposição comum, de que máquinas grandes e pequenas têm resistência igual, é claramente enganosa.’ [GALILEU in Brecht, 1991, p. 254]

Se a vontade de Galileu era que a Igreja aceitasse as suas provas e o

bom-senso a fizesse rever os conceitos herdados de Aristóteles, ele se sentiu

mal com a renúncia, mas não se portou como um arrependido, ou como

alguém que mudou de ideia. Nesse ponto há mais uma virada de Brecht, muito

semelhante àquela que ele mesmo deu em sua vida, considerando os altos e

baixos de sua obra. Ao mostrar que Galileu, mesmo depois de renunciar,

continuou pesquisando e escrevendo os resultados de sua pesquisa, Brecht

quis lidar com a situação de Galileu de uma forma que causasse a interrupção

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daquilo que era esperado, por exemplo, se se tratasse de uma dramaturgia

aristotélica. Como no seguinte diálogo com Andrea:

Galileu: Eu terminei os Discorsi. Andrea: Os Diálogos sobre duas ciências novas: a mecânica e a queda dos corpos? Aqui? Galileu: Eles me dão tinta e papel. Os meus superiores não são tontos. Eles sabem que vícios arraigados não se arrancam de um dia para o outro. Eles me protegem das consequências desagradáveis, me tomando as folhas, uma por uma. Andrea: Meu Deus! Galileu: Você disse alguma coisa? Andrea: O senhor, lavrando água! Eles lhe dão papel e tinta para que o senhor se acalme! Como é que o senhor pôde escrever, com essa finalidade diante dos olhos? Galileu: Eu sou escravo dos meus hábitos. Andrea: Os Discorsi nas mãos dos padres! E Amsterdã e Londres e Praga dariam tudo por eles! Galileu: Eu imagino as lamentações de Fabrizio, sacudindo a cabeça, mas em segurança, em Amsterdã. Andrea: Dois ramos novos do conhecimento, a mesma coisa que perdidos! Galileu: Certamente será animador, para ele e mais alguns outros, saber que pus em jogo os últimos míseros restos de meu conforto para fazer uma cópia, atrás de minhas costas, por assim dizer, usando os restos de luz das noites claras de seis meses. Andrea: O senhor tem uma cópia? Galileu: A minha vaidade me impediu até agora, de destruí-la. Andrea: Onde ela está? Galileu: ‘Se o teu olho te irrita, arranca o olho fora.’ Quem quer que tenha escrito essa frase, sabia mais sobre o conforto do que eu. Suponho que seja o pináculo de estupidez entregar essa cópia. Mas como eu não consegui deixar o trabalho científico, tanto faz, vocês fiquem com ela. A cópia está no globo. Se você estiver pensando em levá-la para a Holanda, a responsabilidade é toda sua. Nesse caso, você teria comprado de alguém que tem acesso ao original, no Santo Ofício. Andrea vai até o globo. Tira a cópia de dentro dele. Andrea: Os Discorsi! Folheia o manuscrito. Andrea lê: ‘O meu propósito é expor uma ciência novíssima que trata de um assunto muito antigo, o movimento. Através de experimentos descobri algumas de suas propriedades que são dignas de ser conhecidas.’ Galileu: Precisava empregar o meu tempo nalguma coisa! Andrea: Isto vai fundar uma nova física. Galileu: Ponha debaixo do casaco. Andrea: E nós achávamos que o senhor tinha desertado. A minha voz era a que gritava mais alto contra o senhor! Galileu: É assim que devia ser. Eu lhe ensinei a ciência, e eu abjurei a verdade. Andrea: Isto muda tudo. Tudo. Galileu: É? Andrea: O senhor escondeu a verdade, diante do inimigo. Também no campo da ética o senhor estava séculos adiante de nós. Galileu: Explique isso, Andrea. Andrea: Como o homem da rua, nós dizíamos: ele vai morrer, mas não renega jamais. O senhor voltou: eu reneguei, mas vou viver. Nós dizíamos: as mãos dele estão sujas. O senhor diz: melhor sujas dos que vazias.

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Galileu: Melhor sujas do que vazias. A frase é realista. Podia ser minha. Ciência nova, ética nova. [BRECHT, 1991, p. 161,162]

E ele poderia ter dito à Igreja que não abriria mão de sua verdade e

assim, acabaria queimado como Giordano Bruno tempos antes. Mas Galileu,

tendo noção de seu fim, não abjura contente, mas também não crê que a

melhor saída seja a fogueira, e quando mais tarde é levado por Andrea a falar

disso, não mostra arrependimentos também. A saída mais simples talvez fosse

mesmo morrer, mas pelo quê? Quantos homens morreram como mártires. E o

mundo ficou melhor? Querer receber mérito de herói também não é uma forma

egoísta? Essa questão nunca fora levantada porque os homens sempre se

apoiaram na ideia de heróis para construir uma história em muitos momentos

fictícia, idealizada. Hoje se sabe de muitos exemplos em que as coisas

mudaram tão facilmente de lado, porque a escolha era uma ficção. Por que não

transformar também o que seria o fim em começo de novas possibilidades,

como fez Brecht?

Os pontos em comum com a visão madura de Brecht são inúmeros e

podem ainda ser encontrados em toda a peça. Ela é um presente de Brecht à

razão humana. Ele a instigou e creu no seu poder, e é isso que a peça defende

em primeiro plano. Aquilo que o jovem Brecht queria transmitir sobre a

transformação do mundo pelos homens e o tom sério desse compromisso

aparece em Vida de Galileu, assim como aparece também a discussão que ele

expandiu ao longo da obra, sobre a forma de aprendizagem dos indivíduos

estar totalmente atrelada às vivências destes, e como a premissa da mera

apreensão dos valores estava errada diante do que uma nova didática

propunha.

Como apontado anteriormente, Brecht não se satisfez com o resultado

de suas primeiras obras como A ópera dos três vinténs, e isto porque a sua

crítica tinha assumido um tom pesado, de negação, que ao mesmo tempo não

lhe permitiu produzir um florescimento do teatro por estar demasiadamente

preso à negatividade. Com isso, ainda que a história de Galileu tenha sido

escrita quando o mundo apontava poucos sinais de melhora (1938-1939),

Brecht conseguiu escrever uma peça que perpassa as angústias acerca das

coisas que ainda impediam os homens de ir em frente, mas que consegue

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deixar em aberto, pondo em questão valores dos mais antigos, que tais coisas

ainda se encontram espalhadas no presente do autor.

Quanto ao alcance de uma análise sobre a concepção de Brecht, há

ainda uma observação necessária e, em certa medida, surpreendente a se

fazer. Nos tempos de exílio em que Brecht só pôde ler, estudar e elaborar a

teoria, longe da prática, ele chegou ao impasse que certamente não existia da

mesma forma para aqueles que eram somente teóricos, que é o problema da

importância de uma experiência prática para o teatro que queria fundar. Esse

ponto não só configurou um problema para Brecht, mas apresenta-se agora,

neste texto. A ele também se impôs uma dificuldade, que tem a ver com os

limites com que a Filosofia lida quando quer falar da experiência. No caso da

obra de Brecht, tudo se complica ainda mais porque ele estava construindo

essa experiência, ela não era dada, apesar de ser precedida por uma teoria.

Seria possível analisar a concepção do teatro brechtiano pensando como

inserir as técnicas utilizadas dentro de uma peça como Vida de Galileu?

Certamente como especulação, ou até como é comum dizerem da teoria de

Brecht, como idealização. Assim como existe uma vasta literatura sobre o

significado das técnicas que constituem esse teatro, existem relatos de

experiências com elas que refletem a validade da proposta de Brecht8.

Agora, pensando no papel do trabalho da Estética sobre uma obra como

a de Brecht, só através de uma prática da análise de seus textos é que se

descobre o quão difícil é o trabalho sem a experiência. E por esse motivo, este

8 Brecht pretendeu construir um teatro que fosse uma imagem praticável do mundo. Um

modelo de compreensão das relações humanas em sociedade. Interessava-se por muitas formas de ação, especialmente as negativas: como as pessoas se enganam, se exploram, se mutilam, se odeiam. A certa altura da vida, comparou sua dramaturgia a um planetário, por meio do qual o público poderia compreender, com a tranquilidade de quem está parado, observando o movimento das personagens. Para minimizar a aversão à sua abordagem científica, despertada especialmente nos cultores da arte absoluta, ele escolheu essa imagem de serenidade celestial. No entanto, o céu estrelado do planetário está ali para ensinar que os movimentos dos astros obedecem a leis. Complexas, variáveis, mas compreensíveis. Para quem diz que no caso das pessoas em sociedade é diferente, Brecht responderia: "Do ponto de vista de uma bola, no meio de um jogo qualquer, as leis do movimento também são praticamente inconcebíveis". Por isso ele gostava de relatos históricos e sentimentais de desastres, de grandes atos confusos, ocorridos não por má influência do destino, mas por falhas evitáveis de gente desastrada ou mal intencionada. Os acontecimentos humanos têm antecedentes históricos, contexto de classe, circunstâncias de tempo e espaço. Desenvolvem-se segundo trajetórias descontínuas e inconstantes, que podem ser acompanhadas. O céu de Galileu não é menos ou mais poético do que qualquer outro. “A arte não se opõe ao mistério, mas pode combater a mistificação.” A frase tem autoria de Sérgio de Carvalho, um dos fundadores da Cia do Latão, um dos grupos mais reconhecidos no Brasil por suas experiências com o teatro proposto por Brecht.

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texto, por seguir a direção de destrinchar a visão a que chegou Brecht na fase

quase final de seu trabalho com o teatro, optou ao mesmo tempo por se isentar

de criar o que seria uma proposta prática da peça analisada, respeitando assim

a vontade do próprio autor. Mas como é importante ainda sugerir exemplos que

reflitam o que seria um produto fiel à concepção brechtiana, que se pretendeu

contínua, fica a critério da conclusão deste trabalho resolver esse desgosto

com dados atuais, sobre o que poderia vir a ser considerada uma continuidade

de Brecht, assim como aqueles trabalhos os quais Brecht certamente

demonstraria insatisfação. Antes, contudo, vale colocar como registro parte de

um poema escrito por ele entre os anos de 1926 e 1933, que não chega a

traduzir exatamente aquela liberdade de apropriação das obras como da fase

madura.

Quanto tempo Duram as obras? Tanto quanto Ainda não estão completas. Pois enquanto exigem trabalho Não entram em decadência. Convidando ao trabalho Retribuindo a participação Sua existência dura tanto quanto Convidam e retribuem. As úteis Requerem gente As artísticas Têm lugar para a arte As sábias Requerem sabedoria As duradouras Estão sempre para unir/ As planejadas com grandeza São incompletas. (...) Quem dará duração às obras? Os que viverão no tempo delas. Quem escolher como construtores? Os ainda não- nascidos. Não deves perguntar: como serão eles? Mas sim Determinar. (...) O desejo de fazer obras de longa duração Nem sempre dever ser saudado. Quem se dirige aos não-nascidos Muitas vezes nada faz pelo nascimento. Não luta e no entanto quer vitória. Não vê inimigo A não ser o esquecimento. Porque deveria todo vento durar eternamente?

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Uma boa sentença pode ser lembrada Enquanto teronar a ocasião Em que foi boa. Certas experiências, transmitidas em forma perfeita Enriquecem a humanidade Mas a riqueza pode se tornar demasiada Não só as experiências Também as lembranças envelhecem. Por isso o desejo de emprestar duração às obras Nem sempre deve ser saudado. [BRECHT, 2001, p.85-88]

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Conclusão

Agora é tempo de voltar o olhar para o presente e descobrir nesse

presente a reclamada presença de Bertolt Brecht. Diz-se que depois de sua

passagem pelo teatro, nunca mais a concepção de montagem e representação

foram as mesmas. Nunca mais se voltou ao mesmo lugar dos grandes dramas

que conseguiam retirar o homem do mundo e transportá-lo para um universo

mediado e suplantado pelas ilusões. Brecht e a vasta pesquisa que

empreendeu em prol de um teatro foram responsáveis por instalar um caos na

função da dramaturgia, que estava, a partir de então, irremediavelmente

voltada a pensar e falar sobre os problemas dos homens. E, mesmo que não

tenha sido ele a começar o movimento de contestação dos velhos modelos,

certamente há muito a se agradecer a seu esforço.

Na travessia que percorreu as fases do autor, as surpresas foram

constantes, e qualquer método usado para compreendê-las teve logo de ser

abandonado – esta talvez tenha sido a maior descoberta feita até agora dentro

do trabalho de Brecht, de que um método só existe como inspiração e que isso

basta. Esse método não é como se acreditou durante algum tempo, ele não

existe como um lugar seguro e confortável, disponível àqueles que pretendem

percorrer e dar continuidade ao movimento começado pelo dramaturgo alemão.

É no desconforto, na insatisfação e na angústia que nunca cessam, que se

move a contemporaneidade, dentro desse novo espaço de relação com o

teatro, que foi inaugurado por Brecht.

Neste momento, talvez seja de grande importância falar da influência

que a filosofia chinesa1 teve na teoria de Brecht. A partir dos estudos que fez

sobre essa filosofia, pôde desenvolver de forma mais clara e também

metafórica o comportamento esperado para uma doutrina como a sua. Aquelas

ideias que nasciam de um desejo de impor uma ordem ao pensamento, Brecht

se afastou delas e seguiu por um sentido avesso ao das dominações. Fugiu da

lógica que estava viciada em sistemas que não respeitavam a liberdade dos

1 Referência retirada da coleção espanhola Narrativa Completa, vol.3. Esta edição é composta pelas

Historias del Señor Keuner e Me-ti Libro de los Cambios, sendo o segundo um estudo feito por Brecht a partir de obras chinesas em que ele aborda algumas noções importantíssimas para compreender o pensamento que ele desenvolve com relação ao teatro, a ligação com a Filosofia e com a vida.

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indivíduos e que queria que eles comprassem uma ideia pronta, inclusive,

daquilo que eles deveriam entender por liberdade. Consequentemente, Brecht

estava rejeitando também a promessa desses sistemas de que pudesse existir

para as coisas qualquer esperança de eternidade.

Durante muito tempo os homens tinham se concentrado em pensar de

uma forma equívoca. Um tipo de pensar que não os fazia produzir coisas boas

para uma vida em sociedade. Porém, só muito tempo depois de tudo já

funcionar dessa forma é que a atenção se voltou para os problemas gerados

por essa disposição, permitindo que se descobrisse que o homem tinha sido

educado para comportar-se de um modo que o levava a um pensamento

neurótico sobre a vida; que ele tinha sido projetado pela técnica. Dessa forma,

quando as reflexões na época de Brecht se voltaram para evidência de que o

mundo tinha caminhado na direção contrária à afirmação da vida, o artista

apareceu com a sua vontade de fazer tudo mudar de posição. Então, a sua

compreensão do mundo teve, necessariamente, que se expandir, indo além de

diferenciar os justos dos injustos. A expansão encaminhou-se para a

descoberta dos dispositivos que fazem de uma pessoa egoísta e de outra

render-se à submissão.

Então o dramaturgo decidiu investir no combate às morais que se

estabeleciam como verdades e que determinavam o funcionamento da

sociedade. Passou, então, a agir em defesa da revisão constante desses

princípios morais, porque eles impunham que as situações fossem vistas de

forma muito limitada. Por esses motivos, o teatro de Brecht tem uma ligação

muito mais forte com o fazer desaparecer as coisas. Diz-se que o social

ocupou o papel central de sua obra e isso é verdade. Mas para mostrar como a

preocupação fundamental de Brecht era o espectador é preciso pensar em sua

concepção de montagem como um laboratório. Nesse laboratório, não é

possível encontrar fórmulas com efeito semelhante para todos os indivíduos. É

preciso descobrir que a pluralidade só é respeitada quando se produzem

princípios ativos que não bloqueiam a reflexão de alguma forma, como

respostas que fazem as pessoas irem para suas casas satisfeitas:

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Muitos veem o teatro como casa De produção de sonhos. Vocês atores são vistos Como vendedores de drogas. Em seus locais escurecidos As pessoas se transformam em reis e realizam Atos heroicos sem perigo. Tomado de entusiasmo Consigo mesmo ou de compaixão por si mesmo Fica-se sentado, em feliz distração esquecendo As dificuldades do dia a dia – um fugitivo. Todo tipo de fábula preparam com mãos hábeis, de modo a Mexer com nossas emoções. Para isso utilizam Acontecimentos do mundo real. Sem dúvida, alguém Que aí chegasse de repente, o barulho do tráfico ainda nos ouvidos E ainda sóbrio, mal reconheceria sobre essas tábuas O mundo que acabou de deixar. E também Saindo por fim desses seus locais, Novamente o homem pequeno, não mais o rei Não mais reconheceria o mundo e se acharia Deslocado na vida real. Muitos é verdade Veem essa atividade como inocente. Na mesquinhez E uniformidade de nossas vidas, dizem, sonhos São bem- vindos. Como suportar Sem sonhos? Mas assim, atores, seu teatro torna-se Uma casa onde se aprende a suportar A vida mesquinha e uniforme, e a renunciar Aos grandes atos e mesmo à compaixão Por si mesmo. Mas vocês Mostram um falso mundo, descuidadamente juntado Tal como os sonhos o mostram, transformado por desejos Ou desfigurado por medos, tristes Enganadores. [BRECHT, 2000, p.240]

Com isso, a pergunta assume o foco nos palcos tipicamente brechtianos.

Insatisfeitos, os espectadores são “obrigados” a levar as perguntas para casa

para fazerem o que bem entenderem com elas, e apesar de Brecht ter a

certeza de que esses questionamentos poderiam levar os indivíduos a reavaliar

tudo aquilo que se põe diante deles e, consequentemente, levá-los a agir de

uma forma mais produtiva e benéfica à sociedade, ele sabia também que não

era possível prever os resultados de tudo aquilo. Ao avançar com a história das

perguntas, suas experimentações passaram a se concentrar no objetivo da

emancipação intelectual dos espectadores. A reinvenção da dialética foi uma

chave importante para Brecht abarcar o papel desses questionamentos.

Havia um desgaste em ser coerente. As dramaturgias durante muito

tempo investiram nisso. O papel importante de Brecht, que seguiu numa

direção oposta dessa busca por coerência, buscou abordar de forma profunda

o que significava realmente a coexistência dos contrários. A dialética

desenvolvida por Brecht não tinha a ver, portanto, com a lógica transmitida pela

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dialética marxista, porque ela combatia qualquer tipo de formulação de

respostas dada pelos artistas ao público. Com base nas experimentações e no

que viu dos projetos socialistas e dos teatros de palanque, Brecht desenvolveu

uma dialética que não deu as respostas de como deveriam se comportar os

indivíduos. Ele antes perguntou: Será que existe um modo de comportamento?

Ou vários?

Acontece que hoje a questão não é mais tanto a de tentar defender se

Brecht foi ou não um bom diretor, ou se seus textos de fato conseguiram

exprimir aquilo que ele queria. O que interessa ao nosso tempo vai muito mais

na direção de o usarmos como inspiração do que como método. Com base

nisso, foi tomada aqui a liberdade de expor aquela que deveria ser considerada

uma apropriação relevante do teatro brechtiano para os contemporâneos e

aquelas que, por outro lado, devem ser revistas, criticadas, porque não só não

estão de acordo com aquilo que terminou por defender o autor, mas também

desmerecem a força de suas reflexões. Em resumo, deve-se pensar na

questão de Brecht hoje como aquela que, como uma moeda, possui dois lados:

o lado das apropriações que deram certo e o lado das que não deram.

No entanto, pensar nessa dualidade talvez não fosse o mais adequado,

mas fazendo jus à presente defesa, nesse sentido é preciso assumir certa

radicalidade se se pretende defender a presença de Brecht no teatro

contemporâneo. Circula hoje por aí um Brecht já difamado, que estaria

ultrapassado para aqueles que resumiram a sua obra à luta de classes e ao

sentido político, com a presença de um pensamento de esquerda, comunista.

Fato é que a visão de Brecht tinha uma afinidade grande com as ideias

comunistas, já que a base de sua constatação sempre foi o capitalismo: seu

modo de organização e todos os problemas das relações promovidos por ele.

O problema não está em compreendê-lo dessa forma, mas reside no fato de as

ideias de esquerda nas últimas décadas terem sido soterradas pelos

movimentos de direita, o que fez com que Brecht também perdesse seu

espaço. No entanto, a perda desse espaço também diz respeito a como a

crítica entendeu mal o sentido político de sua obra. Afirma-se isso porque não à

toa a discussão com Lukács foi trazida aqui. Fundamentalmente, ambos

(Brecht e Lukács) tinham as mesmas preocupações em relação ao social.

Porém, como descrito, a forma como Lukács achava que devia ser abordada a

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questão social dentro da arte distanciou-os. E justamente porque Brecht se

opôs de forma radical àquela ideia defendida pelo partido socialista, que não

fazia os indivíduos pensarem, mas lhes dava gratuitamente não só os meios,

mas também as respostas daquilo em que eles deveriam acreditar.

Porque muitos colocaram Brecht ao lado desse tipo de ideal, corre hoje

uma concepção de seu teatro que reduz, e muito, o campo de ação de sua

proposta. Afinal, o Brecht da segunda fase deixou bastante clara a mensagem

de que era preciso continuar o seu projeto, que ele não o daria como acabado

e que o teatro épico estava apenas começando a plantar suas raízes. O que

nos mostrou Brecht foi justamente que se o encarássemos como ele encarou

os clássicos, talvez, conseguíssemos ir muito além do que ele foi. Talvez

conseguíssemos ver a grande mudança que pensava para a relação entre os

espectadores e o teatro, caso o teatro fosse capaz de mudar a sua função.

Uma relação não mais alicerçada pelas emoções, mas que fosse sustentada

por algo a mais, como por acaso a reflexão.

Como Galileu, Brecht também apostou muito no bom-senso dos

indivíduos. Não que houvesse alguma coisa que ele pudesse ter feito nesse

sentido, mas o que se concretizou foi que muitos entenderam que ele

estipulara metas e um sistema bastante ortodoxo de abordagem de suas

técnicas, assim como o uso rigoroso de seus textos. Lendo seus escritos,

acredito hoje que Brecht apenas quis dar direções. Ele apenas quis colocar a

dúvida num lugar onde não se esperava que aparecesse. Porém, como é

comum querer retirar uma espécie de percepção conclusiva acerca do autor,

algumas conclusões sobre Brecht foram, em muitas maneiras, precipitadas.

Talvez até esta também seja, mas acredito que valha a pena tentar, assim

como há um grande número de experimentos com essa obra que deram

exatamente a validade que lhe cabia.

Posto isto, quis trazer aqui duas figuras contemporâneas que costumam

ser bastante duras com Brecht, no que diz respeito ao significado de um teatro

com um sentido político como o dele. Os críticos Hans Thies Lehmann e

Jacques Rancière, apesar de defenderem concepções distintas de teatro,

posicionam-se claramente contrários a um teatro que contenha a presença do

sentido político como é no caso de Brecht. E aqui acrescento que a minha

intenção seguiu no sentido de defender Brecht em relação a essa definição que

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se retirou de sua obra. Meu objetivo não foi, porém, desconsiderar as

concepções defendidas pelos autores com relação ao papel da arte, ou dos

conceitos que cada um possui do artístico. O me interessou foi revelar que

visões como as que eles têm de Brecht podem promover um empobrecimento

às possibilidades de vermos um teatro brechtiano sendo aplicado hoje.

Como já disse antes e reitero, se o sentido político da obra de Brecht

levado em conta (como parece) é o sentido mais comum aos seus críticos, de

fato esse sentido seria bastante limitado. Porém, como também vim

defendendo até agora, há uma grande diferença entre o Brecht da fase jovem e

o Brecht da fase madura, e de um para o outro, o sentido de político muda.

Novamente, para o primeiro Brecht, que ainda estava muito próximo das lutas

sociais e o social também era limitado, há ainda muito forte a presença de

temas e personagens voltados para defender uma mensagem de

conscientização das causas.

Como para Brecht, entretanto, tudo passou a ser menos decisivo e ele

passou a querer que os espectadores pensassem por eles mesmos – embora a

tentação em querer falar das injustiças fosse grande –, ele mudou, e foi quando

descobriu o verdadeiro espectador produtor. Aquela visão autoritária de Brecht,

portanto, passou para o plano do que se assemelha mais com a ideia de

“mestre ignorante” defendida por Rancière em seu livro2.

Mas Rancière e Lehmann3 pensam a luta do teatro e da arte hoje como

uma luta que não pode mais ser mediada pelo político da forma como foi. Esta

já teria sido vencida. Agora, a luta é travada antes de tudo pelos sentidos.

Dessa forma, Brecht teria sido ambicioso demais ao pensar na atitude que

queria ver despertada nos espectadores. Por sua vez, também essa é a crítica

que se tornou mais recorrente quando se reflete acerca da presença de um

teatro brechtiano nos palcos hoje. De fato, descobriu-se através de uma prática

“inspirada” na teoria de Brecht que as pessoas que iam àquele tipo de teatro

2 No livro O mestre ignorante (2010), Jacques Rancière desenvolve um pensamento acerca da

emancipação intelectual, pondo em cheque as formas tradicionais de ensino e aprendizagem. Noutra obra de sua autoria, O Espectador Emancipado (2010), Rancière fala dessa mesma emancipação, mas do ponto de vista dos espectadores e é aí, então, que aborda o teatro de Brecht, questionando os efeitos pretendidos por este sobre o público. 3 O texto de referência de Hans Thies Lehmann é o livro Escritura Política no Texto Teatral

(2009).

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não saíam de lá promovendo a revolução graças ao que tinham visto. Mas isto

se deveu também ao modo como tal apropriação foi feita.

Em consideração ao que descobri da obra de Brecht até agora, sou

levada ainda a discordar de uma tradição crítica que, a exemplo de Rancière e

Lehmann, fez uma leitura de Brecht visando o sentido que o político tinha para

ele. Para esses autores parece que Brecht tratou o espectador como se fosse

passivo, enquanto que, como vimos, Brecht tratou o espectador como um igual.

A atitude de Brecht não podia ser diferente, pois o que ele estava

combatendo em primeira instância era claramente o fim “maligno” em que tinha

sido direcionado o teatro dentro da sociedade capitalista, que queria ser

consumido pelo público. Logo, devo concluir que todas as tentativas teóricas e

práticas que incluem Brecht dentro de uma lógica que é determinista e

moralizadora incorrem num erro grave e tem a ver com o modo como o próprio

Brecht ficou reconhecido dentro do teatro, como se ele sempre tivera as

mesmas ideias e não passado por uma revisão de si mesmo.

Hoje, quando vemos Brecht ser encenado do mesmo modo que se

encenam os dramas burgueses, ou seja, adaptado a um sistema de regras

formais, vemos uma leitura que o transporta para longe de seu objetivo do final

de sua carreira, que era o de tornar-se um clássico em construção. Não vemos

essas leituras colocando Brecht e a sua teoria à prova de novas experiências.

O que aconteceu é que a sua obra também sofreu uma institucionalização,

transformada numa espécie de obra grandiosa da esquerda comunista que

ficou no passado.

Gostaria de trazer como exemplo dessa institucionalização um grupo de

teatro do qual talvez se esperasse que fosse seguir os passos de Brecht, a

companhia do teatro Berliner Ensemble, à qual me referi na introdução e que é

a mesma que ocupa o teatro fundado por Brecht em Berlim. Essa companhia é

hoje uma grande atração turística na Alemanha e, com um teatro grandioso

como o de uma ópera, impressiona com toda a quantidade de recursos

técnicos disponíveis para as encenações dos textos de Brecht e de outros

autores.

Quando quis conhecer o Berliner Ensemble, pensava que finalmente

poderia assistir a uma peça em que eu veria Brecht sendo aplicado,

experimentado, alterado. Mas devo confessar que me desanimei quando assisti

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à encenação da Ópera dos Três Vinténs, recentemente trazida a São Paulo

numa parceria entre a companhia e o artista Bob Wilson. Não havia nada de

brechtiano além do texto, que como é costume da companhia foi encenado na

íntegra. Com efeitos especiais notáveis, que incluíram uma luz magnífica,

maquiagens e figurinos estonteantes, além da técnica dos atores, que é

indiscutível, não havia nada de experimento naquela encenação, e a prova

cabal disso foi que os textos de Brecht e a trilha sonora não sofreram

adaptações, tampouco foram atualizados, convocados a discutir questões da

atualidade.

Normalmente, são preservadas nesse tipo de montagem – que não é

promovido apenas pelo Berliner Ensemble, mas comum de se ver quando um

texto de Brecht é montado – também as técnicas desenvolvidas por Brecht e

pela dramaturgia não-aristotélica, como é o caso dos gestus e do efeito de

distanciamento. Mas infelizmente, somente isso. Ainda retirada toda a graça e

valor da teoria e da obra de Brecht, essa leitura ficou também registrada como

uma leitura possível e oficial, já que o grupo é referência no mundo todo.

Brecht ficou conhecido por muitos como autor incorporado à tradição, sem

valor de atualização, maçante por seus textos engajados, que teriam feito

sentido em sua época, mas que não eram promissores para mudar a atitude

dos espectadores de nossa época em relação à vida. O Brecht propagado por

esse tipo de assimilação certamente é o mesmo Brecht que queria que os

espectadores aceitassem a mensagem que ele queria passar. Ou seja, um

Brecht que, de fato, deveria ser afastado das representações contemporâneas.

Entretanto, como essa é uma leitura que ignora aquele Brecht que

escreveu peças como Vida de Galileu, ou que estava mais próximo da filosofia

chinesa, devo também dizer que ela não condiz com aquilo que se deve

esperar da presença de Brecht no teatro hoje. Por outro lado, a exemplo do

que poderia se considerar uma presença ainda bastante produtiva, interessante

para nossos dias, trago a esta conclusão a montagem feita pelo Grupo Galpão

do Folias a partir dessa obra de Brecht sobre a história de Galileu Galilei.

Assisti duas vezes à peça Folias Galileu, concebida pelo grupo Galpão

do Folias, cuja sede está localizada no centro de São Paulo. O espaço não é

monumental e inclusive o grupo passa por dificuldades financeiras, mas até

hoje as peças a que assisti no espaço foram experiências muito distintas umas

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das outras, e isso mostra o empenho da direção do grupo, sempre atenta ao

que significa a pesquisa no teatro, bem como a preocupação em proporcionar

aos espectadores cada vez novas vivências. Ao mesmo tempo, se pudesse

caracterizar uma linguagem própria do grupo, diria que para eles não pode

faltar a aproximação do contemporâneo, assim como também é característico

do grupo uma aposta numa não-representação, em que os atores emprestam

seus corpos e disposição para contar a história, cada um assumindo o lugar de

uma personagem, mas nenhum deles assume um comportamento, ou trejeitos

diferentes daqueles que o definem na vida real. No programa da peça, o

pequeno texto ilustra a proposta dessa leitura:

Do FOLIAS no seu GALPÃO DO FOLIAS ressurge historicamente GALILEU GALILEI. Do seu jeito... da sua forma. Claro que sempre se conta qualquer história a partir do seu próprio olhar! É óbvio! É óbvio? Pode parecer óbvio, mas basta olhar para a pessoa que está ao seu lado e verificar que o que ela enxerga é e sempre será algo diverso do seu. É impossível ver a mesma coisa! É impossível ver a mesma coisa? O mesmo olhar só é possível quando criado a partir de uma relação. Surge um novo olhar. No nosso caso surge uma nova cena. Da própria cena... De quem vê de quem é observado... De quem se vê sendo observado observando a cena... De quem se vê sendo observado por alguém que se vê observando a cena ... ad infinitum ...ad universum...ad Galileum... As condições ideais para algo novo, transformador e revolucionário, só surgem quando todos os conceitos já conhecidos e os que estão por vir se misturam. Condições ideais? Algo novo? Surgimento? Todos os conceitos? Já conhecidos? Estão por vir? Duvidemos ou estanquemos. Misturar talvez seja o caminho. Ou inventarmos um novo verbo... CALEIDOSCOPISCAR

4

Portanto, o olhar brechtiano que existe no grupo não é um olhar que está

a serviço de certo tipo de linguagem que pretende seguir fielmente os passos do

Teatro Épico. A identificação com a visão de Brecht que vem sendo usada pelo

grupo há anos é algo que pode ser notado, mas que mais do que uma

apropriação das técnicas e dos textos, está ligada à captação da essência do

legado de Brecht. Chega a ser difícil até, definir exatamente o que nas

montagens do grupo é e não é inspirado nesse legado, pois tudo ali está imbuído

de seu pensamento, e este condiz muito com aquele que defendi até agora,

como aquele que deveríamos insistir e apoiar em nossa época. A compreensão

de um teatro livre e ao mesmo tempo político é o que está em jogo.

4 Texto retirado do programa da peça Folia Galileu encenada pelo grupo Galpão do Folias.

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Quando o grupo deu início à proposta de montar uma peça baseada na

Vida de Galileu de Bertolt Brecht, já sabiam desde o começo que não

contariam aquela história de um modo convencional. Vale destacar que,

quando se trata dos textos de Brecht, há sempre a dificuldade com relação aos

direitos autorais que estão ainda sob a posse da família do autor. Mas para

uma abordagem como a do Folias isso não constituiu um problema, uma vez

que eles queriam contar uma história e para isso era preciso que eles se

apropriassem dela de uma forma que aquele se tornasse de fato algo como o

nome da peça, Galileu Folias.

Ainda mais próximo de Brecht, o processo todo já começou bastante

empenhado em se tornar um projeto coletivo, e digo isso porque dessa vez,

além do grupo de atores, foram selecionadas também algumas pessoas

externas que tivessem algum vínculo com teatro, para acompanhar o processo,

que estivessem interessadas em aprender sobre o processo de montagem do

grupo, em conjunto com essa proposta de contar a história do Galileu Galilei de

Brecht, trazendo-a para o ambiente de nossa época.

Entre os estudantes, uma amiga passou a fazer parte do grupo e

durante a concepção do espetáculo era inesperado que eles participassem

como atores, mas isso acabou acontecendo para alguns que, além de

acompanharem a concepção do espetáculo, ajudaram a construí-la. Primeiro

construíram um exercício que foi apresentado alguns meses antes da peça

estrear e, depois, também como atores na peça, como guias de pequenos

grupos de espectadores.

Mas que grupos de espectadores? Sim, essa é uma das peculiaridades

dessa experiência, o que me faz chegar ao momento de relatar alguns pontos

baseados naquilo que pude observar e refletir e que espero que sejam

satisfatórios para demonstrar, como o grupo Galpão do Folias desenhou com

essa montagem, de modo inovador, a presença de Brecht em nosso tempo, e

além disso, a importância de salientar que ela não aconteceu a 50 anos atrás,

quando a figura de Brecht era mais pulsante no teatro brasileiro, mas está

acontecendo agora:

1. Logo no começo da peça, a plateia é dividida em pequenos grupos e

cada um é conduzido por um guia de uma cena a outra. Os espectadores são

levados de um espaço a outro para construir a ideia de que eles entraram

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numa busca junto com Galileu e que não é a peça (os atores e cenários) que

se move até ao público, mas o público que circula de uma cena a outra, até

que todos os grupos tenham assistido a todas as cenas, para assim serem

levados novamente ao palco principal, no centro do teatro.

2. Todos os ambientes do espaço do teatro foram usados e

transformados em palcos de cenas, desde o banheiro até a parte de fora do

teatro, na rua, onde fica a bilheteria. Esses espaços serviram à criação. Por

exemplo, a bilheteria serve de confessionário. Isso demonstra a assimilação

pelo grupo da ideia de Brecht de que nós reinventamos as coisas e os

espaços, e aquilo que para uma situação teria determinada função pode muito

bem vir a ter outra de acordo com a nova situação proposta. Há uma cena que

se passa do lado externo do teatro, onde a rua também é chamada a atuar. Do

outro lado da rua há um bar, para onde a atriz que representa a personagem

Virginia (filha de Galileu) se dirige, levando os funcionários do bar a

participarem como se fossem atores da cena, dando um grito para ela e

oferecendo-lhe uma bebida.

3. Os espectadores assistem ao mesmo número de cenas, mas nunca

na mesma ordem, o que depende do guia. Eu mesma, nas duas vezes que

assisti à peça, pude ter duas experiências totalmente diferentes, apesar de ter

assistido às mesmas cenas.

4. Nem todas as personagens da peça original foram usadas nesse

processo. O grupo criou novas personagens a partir do texto (como é o caso da

mãe de Ludovico) e a maioria não representa apenas a personagem, mas

resume algumas entidades que estavam presentes no texto de Brecht. Por

exemplo, dois atores representaram o Andrea criança e o Andrea adulto. A

Dona Satri define o povo, a simplicidade. A mãe de Ludovico, que no livro não

existe como personagem (é apenas mencionada), representa uma espécie de

poder da riqueza, atualizada para os dias de hoje, mas algo muito interessante

da peça é que Galileu não aparece. Ele é tema das falas das personagens, ele

e sua descoberta configuram a discussão central da peça.

5. Há um jogo instalado entre presente e passado. Se em uma cena

somos colocados num momento em que Galileu já abjurou, nos é levantada a

pergunta do que ele deveria fazer. Além disso, como não somos transportados

para um mundo distante do de hoje, a peça passa a mensagem de que Galileu

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é um homem que poderia muito bem estar vivo hoje, e um clima de “as coisas

estão acontecendo agora” é constante durante toda a peça.

6. A compreensão do efeito de distanciamento também não é igual

àquela que estamos acostumados a ver, nos palcos onde encenam Brecht. A

particularidade está em os atores agirem o tempo todo como as personagens;

não como se estivessem representando coisa alguma, mas são eles mesmos

emprestando-se para aquela história. Do mesmo modo, a disposição dos

ambientes reverte o sentido de plateia, como se os espectadores estivessem

dentro da história – o que de fato estão. Sem eles a peça não existe porque os

atores não contracenam uns com os outros, mas cada cena é feita por um ator

só, que contracena com o público. Por exemplo, há uma cena em que somos

levados a uma conversa com a personagem a mãe de Ludovico e nela a atriz

nos oferece chá e biscoitos, ao mesmo tempo em que fala conosco.

7. A peça começa com a personagem de Andrea mais velho que vai à

casa de Galileu, como na peça de Brecht, mas diferente do texto original, a

filha de Galileu, Virginia, diz a Andrea que ele vai ter que esperar. E assim é. O

ator que faz Andrea fica sentado no “palco” à espera de Galileu, enquanto os

espectadores seguem na “busca” pelo conhecimento, andando de uma cena à

outra. No final, todos voltam ao palco, e Andrea descobre que Galileu, depois

de abjurar, continuou escrevendo.

Tudo o que descrevi e tantos outros aspectos que poderiam ser tidos

por dados por uma experiência relevante (que por si só poderia também

resultar numa dissertação) foram impressões que retirei desta montagem que

me deixou bastante satisfeita, uma vez que pude ver a aplicação das ideias de

Brecht sem a dureza com que costumam ser aplicadas. Em todas as cenas a

que assisti (umas mais, outras menos) me senti provocada a pensar por

diversos pontos de vista a situação de Galileu, que nada mais é do que a

situação de um homem comum. E ao mesmo tempo, ainda não sei bem se

devido à junção de todos os elementos que compõem a montagem, percebi

que qualquer pessoa que fosse assistir seria capaz de entender de que se trata

a peça, qual é exatamente a história, o que fez Galileu, por que o fez e as

consequências de suas escolhas. Isso só mostra como não é o uso rigoroso de

cada uma das palavras de Brecht que poderá potencializar uma transformação,

porque ela existe em cada um de nós.

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Assim, Folias Galileu pode ser considerado um exemplo fidedigno do

modo como penso a partir dessa pesquisa, que Brecht queria ser lembrado

depois de sua morte, além de conseguir mostrar como ele ainda pode e deve

ser usado. Ali, assim como teria feito Brecht, eles se arriscaram e realmente

experimentaram. Sem medo, caminharam junto com o autor e foram a fundo

em suas mudanças. Ao invés de se prenderem ao Brecht da primeira fase,

avançaram e foram de encontro à fase madura. A atualização de sua obra era

algo que Brecht convocou, algo que ele fez em vida. As técnicas também não

poderiam mais servir sempre da mesma forma, e por esse fato deram “errado”

e continuam dando todas aquelas montagens que tratam a sua obra como um

clássico da literatura alemã. Fizeram de Brecht um produto chato, previsível,

que se enquadra (curiosamente) naquele lugar do teatro de entretenimento

onde só é bonito esteticamente, mas que não promove novas experiências.

Que não questiona nem mesmo a obra enquanto algo possível ou não.

Portanto, hoje, quando pensamos que Brecht encontrou um modo de ser

que é político, devemos pensar sempre nele num sentido indireto. E se

buscarmos nele o mesmo sentido encontrado e criticado por Rancière e

Lehmann, certamente nos decepcionaremos, pois o Brecht que causa impacto

é aquele que nos pergunta sobre aquilo que pensamos, aquele que traz à tona

a importância de se retornar a uma filosofia prática e presente também no

teatro, que nos ajude a pensar em nossas práticas e que não permaneça

apenas problematizando, de fora, afastada dos problemas mais comuns e

simples do dia-a-dia do mundo. Um Brecht como esse é aquele que nos manda

embora para casa com a pergunta: E você, o que pensa?

Por fim, para concluir este trabalho, quis de trazer aqui uma entrevista já

não tão recente (2003), mas que foi concedida por um dos fundadores de outra

companhia bastante experiente na pesquisa com Brecht na cena

contemporânea brasileira, a Companhia do Latão:

Brasil de Fato: Como é fazer teatro político hoje em dia? Sérgio de Carvalho: Melhor do que há dez anos, porque a arte brasileira volta a pensar em politização. Mas preocupação social não significa tratamento crítico. Nem toda imagem da desigualdade gera um movimento de mudança, em quem vê ou em quem faz. A Companhia do Latão conseguiu superar o "sentimento socializante" graças ao marxismo. Sem um diálogo com o materialismo dialético e

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sua tradição crítica seria impossível representar as contradições do capitalismo brasileiro. BF: Como o público reage a uma proposta política no teatro? Carvalho: Em uma sociedade dividida em classes, não se pode querer um teatro que unifique os sentimentos da platéia. Isso seria criar uma unidade falsa. Como nossa matéria artística é a contradição, não fazemos o teatro realista da vida como ela é. Importa mais mostrar a vida como ela não devia ser. Mas é sempre uma alegria encontrar platéias que tendem a uma posição antiburguesa. Há poucos dias um grupo de 40 operárias da indústria química foi ver O mercado do gozo. No debate ficou claro que elas tiveram uma compreensão sofisticada da forma da peça porque entendem, na prática, que a exploração do trabalho não é ficção. (...) BF: De que forma outros grupos teatrais que atuam no campo social trabalham esse tema? Carvalho: Hoje em dia até o teatro comercial posa de crítico do sistema. Espectadores pagam 70 reais o ingresso para lamentar a corrupção dos poderosos, em chave de comédia de costumes. Isso ameniza a culpa de uma elite que acredita ser autocrítica. A notícia boa é que existem vários grupos novos tentando uma reflexão social mais ampla. Mesmo que a maioria ainda esteja na fase da compaixão pelos pobres, ou da condenação superficial da violência, existe uma vontade de ativar os conflitos e torná-los mais claros. BF: O teatro pode provocar ação efetiva, ou apenas reflexão? Carvalho: É óbvio que o teatro não tem o alcance quantitativo da indústria cultural. No entanto, a qualidade da relação teatral é muito intensa. Enquanto a televisão faz da realidade uma ficção, no teatro, a relação viva entre os atores sempre ameaça a credibilidade das imagens mistificadoras. A possibilidade de provocar reflexões é grande. E, como escreveu Marx, a teoria também pode se converter em a ação material. Em vários momentos históricos de intensa agitação política, o teatro teve participação fundamental. Um lacaio da revista Veja, templo da mediocridade nacional, praguejou antes das eleições contra a vitória do PT, com medo que ela enchesse as ruas de teatro. Se isso vier um dia a acontecer, terá que ser como conflito, não como festa: é essa a vocação do teatro – a contradição. Só por isso tem algo a produzir contra o "suave terror totalitário" da indústria cultural. É uma tarefa coletivizante, de construir um sentido comum: para quem está no palco, o teatro impõe o trabalho de equipe. Para quem vê, impõe a experiência do convívio público. Seu potencial de desalienação só se realiza coletivamente.

5

E será mesmo que a ideia de Brecht para a construção de um coletivo é

tão utópica? Qual o momento que o mundo está enfrentando hoje? As pessoas

estão se juntando por causas, fala-se muito em uma sociedade que “acordou”

para suas condições. É o caso do Brasil, em que as pessoas resolveram sair

às ruas ao mesmo tempo em que se vê o despreparo delas, que traduz uma

imaturidade política que é produto de uma espécie de educação e sistema

articulados entre si para levar os indivíduos a não pensar.

5 Esta entrevista foi retirada do site da Companhia do Latão. Trata-se de uma entrevista dada por Sérgio

de Carvalho ao jornal Brasil de Fato em 2003. A entrevista na íntegra pode ser encontrada pelo link: http://www.companhiadolatao.com.br/html/fortuna/entrevistas.htm#p2.

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Parece que chegamos a um esgotamento das formas de isolamento e

de um individualismo, e talvez essa seja a hora oportuna para falar dessa

construção coletiva. Há muitas pessoas cansadas, e ainda que elas sempre

tenham existido, agora, conforme o desconforto aumenta, aumentam também

as formas de expressá-lo. Até o desconforto do poder do Estado tem sido

confrontado e vemos os governos tomando medidas desesperadas para poder

esconder das pessoas aquilo para que elas até então estavam “adormecidas” .

A revolta contra as mídias opressoras tem sido um ponto agravante, e a

insatisfação cresceu muito depois que se verificou na prática, indo às ruas para

reivindicar por direitos básicos dentro da democracia, algo muito diferente do

que lhes era mostrado pela televisão e pelos meios de comunicação. Os

grandes representantes da informação no Brasil foram desmascarados e

embora ainda falte muita adesão, alguma coisa na ilusão foi quebrada. Talvez,

mais do que nunca seja o momento oportuno para surgirem novas inspirações

como aquela que se pode retirar da obra de Brecht. Pois, afinal, por onde

andará, agora, o nosso esclarecimento?

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