o sistema do doutor pixe e do professor penna

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 O SISTEMA DO DOUTOR PIXE E DO PROFESSOR PENNA Edgar Allan Poe Tradução de Bruno Penteado (Universidade de São Paulo) No outono de 18--, durante uma viagem pelas províncias do extremo-sul da França, meu itinerário levou-me a algumas milhas de certa Maison de Santé, ou manicômio privado, de que ouvira muito, em Paris, de amigos médicos. Como nunca havia visitado um lugar como esse, julguei a oportunidade boa demais para ser perdida; propus, assim, ao meu companheiro de viagem (um cavalheiro que casualmente conhecera dias antes) que desviássemos nossa rota, por uma hora ou pouco mais, e déssemos uma espiada no estabelecimento. Ele objetou – alegando pressa, num primeiro momento, e, num segundo, natural horror à visão de um lunático. Implorou-me, contudo, não permitir que qualquer cortesia para com ele interferisse na satisfação de minha curiosidade e disse que prosseguiria seu passeio vagarosamente, para que eu pudesse alcançá-lo ainda naquele dia, ou, o mais tardar, no próximo. Enquanto se despedia de mim, pensei que talvez encontrasse alguma dificuldade de acesso às dependências e mencionei-lhe meus receios. Ele respondeu que, de fato, ao menos que conhecesse pessoalmente o diretor, Monsieur Maillard, ou tivesse alguma credencial por escrito, certa dificuldade poderia se apresentar, uma vez que o regulamento de tais hospícios privados era mais rígido que as leis dos hospitais públicos. Contudo, ele acrescentou que, alguns anos antes, havia conhecido Maillard e poderia me assistir, levando-me à porta e apresentando-me, embora seus sentimentos relativos à ‘loucura’ não lhe permitissem entrar na casa. Agradeci, e, deixando a estrada principal, entramos numa senda de mato alto que, meia hora mais tarde, quase se perdia numa densa floresta, que cobria a base de uma montanha. Por cerca de duas milhas, cavalgamos pelo bosque úmido e sombrio, quando então a Maison de Santé surgiu à vista. Era um fantástico château, muito

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009

O SISTEMA DO DOUTOR PIXE E DO PROFESSOR PENNA

Edgar Allan Poe

Tradução de

Bruno Penteado (Universidade de São Paulo)

No outono de 18--, durante uma viagem pelas províncias do extremo-sul da

França, meu itinerário levou-me a algumas milhas de certa Maison de Santé, ou

manicômio privado, de que ouvira muito, em Paris, de amigos médicos. Como nunca

havia visitado um lugar como esse, julguei a oportunidade boa demais para ser perdida;

propus, assim, ao meu companheiro de viagem (um cavalheiro que casualmente

conhecera dias antes) que desviássemos nossa rota, por uma hora ou pouco mais, e

déssemos uma espiada no estabelecimento. Ele objetou – alegando pressa, num primeiro

momento, e, num segundo, natural horror à visão de um lunático. Implorou-me,

contudo, não permitir que qualquer cortesia para com ele interferisse na satisfação de

minha curiosidade e disse que prosseguiria seu passeio vagarosamente, para que eu

pudesse alcançá-lo ainda naquele dia, ou, o mais tardar, no próximo. Enquanto se

despedia de mim, pensei que talvez encontrasse alguma dificuldade de acesso às

dependências e mencionei-lhe meus receios. Ele respondeu que, de fato, ao menos que

conhecesse pessoalmente o diretor, Monsieur Maillard, ou tivesse alguma credencial por

escrito, certa dificuldade poderia se apresentar, uma vez que o regulamento de tais

hospícios privados era mais rígido que as leis dos hospitais públicos. Contudo, ele

acrescentou que, alguns anos antes, havia conhecido Maillard e poderia me assistir,

levando-me à porta e apresentando-me, embora seus sentimentos relativos à ‘loucura’

não lhe permitissem entrar na casa.

Agradeci, e, deixando a estrada principal, entramos numa senda de mato alto

que, meia hora mais tarde, quase se perdia numa densa floresta, que cobria a base de

uma montanha. Por cerca de duas milhas, cavalgamos pelo bosque úmido e sombrio,

quando então a Maison de Santé surgiu à vista. Era um fantástico château, muito

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 danificado e na verdade pouco habitável, por sua aparência antiga e descuidada. Seu

aspecto encheu-me de absoluto terror e, refreando meu cavalo, quase decidi retornar.

Logo depois, entretanto, envergonhei-me de minha fraqueza e fui em frente.

Ao nos aproximarmos do portão, notei-o entreaberto e vi também o rosto de um

homem espiando por ele. Um instante depois, o homem aproximou-se, dirigiu-se a meu

companheiro pelo nome, apertou-lhe a mão cordialmente e implorou-lhe que apeasse.

Era Monsieur Maillard em pessoa. Era um robusto e bem-apessoado cavalheiro da velha

escola, com maneiras polidas e certo ar de gravidade, dignidade e autoridade que

impressionava.

Meu amigo, após me apresentar, mencionar meu desejo de examinar o

estabelecimento e receber de Monsieur Maillard a garantia de que ele me daria toda a

atenção, tomou seu rumo, e eu não mais o vi.

Quando ele já havia ido embora, o diretor conduziu-me a uma sala pequena e

muito bem arrumada que continha, entre outras indicações de gosto refinado, vários

livros, desenhos, vasos de flor e instrumentos musicais. Um fogo aconchegante ardia na

lareira. A um piano, cantando uma ária de Bellini, sentava-se uma bela jovem, que,

quando de minha entrada, interrompeu o canto e recebeu-me com graciosa cortesia. Sua

voz era baixa, e suas maneiras, lânguidas. Acreditei também obervar indícios de pesar

em seu semblante, excessivamente pálido, embora isso não fosse desagradável ao meu

gosto. Trajava denso luto e suscitou em meu peito um sentimento misto de respeito,

interesse e admiração.

Eu ouvira dizer, em Paris, que a instituição de Monsieur Maillard era

administrada segundo o que é vulgarmente chamado de ‘sistema de apaziguamento’ –

que todas as punições eram evitadas, raramente se recorria ao confinamento e, embora

secretamente observados, os pacientes recebiam considerável liberdade, ainda que

aparente, e a maioria podia perambular pela casa e por toda a área, vestindo-se como

pessoas de cabeça certa.

Tendo em vista essas impressões, fui cauteloso com o que disse na presença

da jovem, pois não estava certo se era sã, e de fato havia certo brilho irrequieto em seus

olhos que, de algum modo, me fez imaginar que não o era. Restringi meus comentários,

desse modo, a tópicos gerais, àqueles que julguei não serem desagradáveis ou

inquietantes nem mesmo a um lunático. Ela respondeu de maneira perfeitamente

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 racional a tudo o que eu disse; mesmo suas próprias observações eram marcadas pelo

mais firme bom senso; porém, longa familiaridade com a metafísica da mania me

ensinara a não dar crédito a tais evidências de sanidade, e assim continuei a empregar,

durante a conversação, a cautela com que a iniciara.

Logo um elegante criado de libré trouxe-nos uma bandeja com frutas, vinho e

outros aperitivos, que provei; a jovem deixou o recinto pouco tempo depois. Assim que

saiu, voltei os olhos inquiridoramente ao meu anfitrião:

— Não, ele respondeu, oh, não! Ela é um membro de minha família – minha

sobrinha, uma mulher muito prendada.

— Peço mil perdões pela suspeita, repliquei, mas com certeza o senhor me

perdoará. A excelente administração de suas tarefas é bem conhecida em Paris, e pensei

ser possível, o senhor sabe –

— Sim, sim, não é necessário dizer mais nada, eu é que devo agradecer pela

louvável prudência que o senhor demonstrou. Raramente encontramos tanta cautela em

rapazes; mais de uma vez, alguns infelizes contretemps ocorreram como consequência

da falta de cuidado por parte de nossos visitantes. Enquanto meu antigo sistema estava

em operação, e aos meus pacientes era permitido o privilégio de perambular à vontade,

geralmente entravam em um perigoso frenesi causado por pessoas imprudentes que

apareciam para inspecionar a casa. Desse modo, fui obrigado a impor um rígido sistema

de exclusão, e mais ninguém em cuja prudência eu não pudesse confiar obteve acesso às

dependências.

— Enquanto seu antigo sistema estava em operação! — disse eu, repetindo suas

palavras. — O senhor quer dizer, portanto, que seu “sistema de apaziguamento”, de que

tanto ouvi falar, não está mais em prática?

— Já faz, ele respondeu, algumas semanas que decidimos abandoná-lo para

sempre.

— Realmente, o senhor me espanta!

— Achamos, senhor, disse ele, suspirando, inteiramente necessário retomar as

práticas antigas. O perigo do sistema de apaziguamento sempre foi apavorante, e suas

vantagens têm sido excessivamente superestimadas. Creio, senhor, que nesta casa foi

justamente posto à prova, se é que o foi em alguma outra. Fizemos tudo o que o gênero

humano poderia sugerir. Sinto não haver podido nos visitar anteriormente, pois teria a

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 chance de julgá-lo por si mesmo. Mas presumo que esteja familiarizado com a prática

de apaziguamento – com seus detalhes.

— Não inteiramente. O que ouvi foi de terceira ou quarta mão.

— Posso descrevê-lo, em termos gerais, como um sistema em que os pacientes

eram ménagés, contentados. Não contradizíamos quaisquer fantasias que entravam na

cabeça do enlouquecido; pelo contrário: não apenas as tolerávamos como as

estimulávamos. Muitas de nossas curas definitivas foram efetuadas desse modo. Não há

outro argumento que opere tanto na frágil razão do louco como a reductio ad

absurdum1. Tivemos homens, por exemplo, que se imaginavam frangos. A cura

consistia em tomar a ideia como um fato, acusar o paciente de estupidez por não a

perceber competentemente como um fato, e assim negar-lhe, por uma semana, qualquer

outro tipo de dieta que não fosse propriamente típica a um frango. Desse modo, um

pouco de milho e cascalho faziam maravilhas!

— Mas tudo se resumia a essa espécie de aquiescência?

— De modo algum. Púnhamos bastante fé em divertimentos bem simples, como

música, dança, exercícios de ginástica em geral, baralho, certas classes de livros, e

assim por diante. Simulávamos tratar em cada indivíduo algum tipo comum de

desarranjo físico; a palavra ‘demência’ nunca era empregada. Um ponto importante era

fazer cada lunático vigiar as ações de todos os outros. Confiar no entendimento ou juízo

de um louco é ganhá-lo de corpo e alma. Desse modo, pudemos prescindir de um

dispendioso corpo de guardas.

— E não havia punição de qualquer espécie?

— Nenhuma.

— E o senhor nunca confinava seus pacientes?

— Muito raramente. Uma vez ou outra, no caso de a doença de um indivíduo

culminar em crise, ou inesperadamente se transformar em fúria, nós o conduzíamos a

uma cela secreta, para que sua perturbação não afetasse o resto, e lá o mantínhamos até

que pudéssemos liberá-lo aos seus – pois nada temos com o maníaco feroz. Ele

geralmente é transferido aos hospitais públicos.

— E agora o senhor mudou tudo isso. Pensa que foi para o melhor?

— Decididamente. O sistema tinha suas desvantagens e até mesmo seus perigos.

Felizmente, agora ele está desacreditado em todas as Maisons de Santé da França.

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 — Estou muito surpreso, eu disse, com o que me fala, pois estava certo de que,

no presente momento, não existisse outro método de tratamento para a loucura em

qualquer parte do país.

— Ainda é muito jovem, meu caro, replicou meu anfitrião, mas virá o tempo em

que aprenderá a julgar por si só o que acontece no mundo sem confiar na tagarelice dos

outros. Não acredite em nada do que ouvir, e apenas em metade do que vir. Agora,

sobre nossas Maisons de Santé, está claro que algum ignorante o iludiu. Após o jantar,

no entanto, quando estiver suficientemente recuperado da fadiga de sua viagem, terei

prazer em lhe mostrar a casa e lhe apresentar um sistema que, na minha opinião e na de

todos que já testemunharam seu funcionamento, é incomparavelmente o mais eficaz já

elaborado.

— É seu próprio sistema? — inquiri, — um de sua própria invenção?

— Tenho orgulho, ele replicou, de admitir que sim, pelo menos em certa

medida.

Segui conversando com Monsieur Maillard por uma hora ou duas, período em

que ele me mostrou os jardins e estufas do local.

— Não posso deixá-lo ver meus pacientes no presente momento, ele disse. A

uma mente sensível, há sempre uma espécie de choque em tais exibições, e não quero

estragar seu apetite para o jantar. Comeremos. Posso lhe servir vitela à la Menehoult,

com couve-flor em molho velouté; depois disso, um cálice de Clos-Vougeot. Então,

sim, seus nervos estarão suficientemente preparados.

Às seis, anunciou-se o jantar, e meu anfitrião conduziu-me a uma grande salle à

manger, onde um numeroso grupo estava reunido – vinte e cinco ou trinta, no total.

Eram, aparentemente, pessoas de distinção – certamente de alta estirpe –, apesar de suas

vestimentas, pensei, serem extravagantemente pomposas, fazendo uso excessivo do

ostentoso requinte da vielle cour. Notei que pelo menos dois terços desses hóspedes

eram mulheres, e algumas delas de modo algum se vestiam de acordo com o que um

parisiense consideraria de bom gosto no momento. Muitas mulheres, por exemplo, cuja

idade não poderia ser menor que setenta, estavam enfeitadas com uma profusão de jóias,

tais como aneis, pulseiras e colares, e tinham o busto e os braços vergonhosamente à

mostra. Observei, também, que muito poucos desses vestidos eram bem-feitos – ou, ao

menos, que muito poucos serviam em suas portadoras. Olhando ao redor, avistei a

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 interessante moça a quem Monsieur Meillard me apresentara no pequeno saguão; mas

qual não foi minha supresa ao vê-la vestindo uma saia-balão com merinaque, sapatos de

salto alto e uma imunda touca de renda de Bruxelas, tão grande para ela que lhe deixava

o rosto com uma ridícula expressão diminuta. Quando a vira pela primeira vez, ela

estava convenientemente vestida de luto denso. Havia, em suma, um ar de estranheza na

roupagem de todo o grupo que, num primeiro momento, me fez retornar à minha idéia

inicial do ‘sistema de apaziguamento’ e imaginar que Monsieur Maillard houvera

desejado enganar-me até após o jantar, para que eu não experimentasse sensações

desconfortáveis durante a refeição ao saber que comia junto a lunáticos. Mas me

recordei de haver sido informado, em Paris, de que os provincianos do sul eram

peculiarmente excêntricos, com grande número de conceitos antiquados; bastou

conversar com alguns membros do grupo para minhas apreensões serem completa e

imediatamente desfeitas.

O salão de jantar, apesar de suficientemente confortável e de boas dimensões,

era de pouca elegância. Por exemplo, o chão não tinha carpete, ainda que, na França,

carpetes sejam geralmente dispensáveis. Quantos às janelas, tampouco tinham

cortinado; suas folhas, fechadas, eram seguramente fixadas com barras de ferro,

dispostas diagonalmente, do mesmo modo que as grades de uma butique. O recinto,

observei, formava por si só uma ala do château; desse modo, as janelas se localizavam

em três lados do paralelograma, estando a porta no outro. Havia não menos que dez

janelas no total.

A mesa estava soberbamente posta, carregada de baixelas e ainda mais carregada

de iguarias. A profusão era completamente bárbara: havia carne suficiente para saciar

todos os Anaquins. Nunca, em toda a minha vida, havia visto tão extravagante, tão

imoderado dispêndio das boas coisas da vida. Os arranjos, contudo, pareciam de muito

pouco gosto, e meus olhos, acostumados a luzes discretas, eram lamentavelmente

perturbados pela imensa claridade de uma abundância de velas de cera, em candelabros

de prata, postas sobre a mesa e por todo o recinto, em qualquer canto onde fora possível

achar espaço. Havia diversos hábeis criados em serviço, e, a uma ampla mesa, na mais

distante extremidade do recinto, assentavam-se sete ou oito pessoas com rabecas,

pífaros, trombones e um tambor. Esses companheiros muito me incomodavam, de

tempo em tempo, no decorrer do jantar, com uma infinita variedade de ruídos, que eles

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 tomavam por música, e que, aparentemente, proporcionavam muito entretenimento a

todos os presentes, exceto a mim.

De modo geral, não podia deixar de pensar que tudo o que via tinha algo de

bizarre – contudo, o mundo é feito de todos os tipos de pessoas, com vários modos de

pensar e diferentes tipos de hábitos convencionais. Além disso, eu havia viajado o

suficiente para já ser competente em nil admirari2; assim, tranqüilamente tomei meu

assento, ao lado direito de meu anfitrião, e, estando com excelente apetite, fiz juz à boa

comida posta em minha frente.

A conversa, enquanto isso, era genérica e espirituosa. As mulheres, como de

costume, falavam muito. Logo descobri que quase todo o grupo era bem educado, e meu

anfitrião era uma fonte de anedotas bem-humoradas. Ele parecia bem disposto a falar de

seu cargo como diretor de uma Maison de Santé; e, realmente, o tópico ‘loucura’ era,

para minha grande surpresa, o favorito entre todos os presentes. Muitas histórias

divertidas, referentes a caprichos de pacientes, foram contadas.

— Uma vez tivemos um companheiro, disse um pequeno e redondo senhor

sentado ao meu lado, um companheiro que se imaginava um bule de chá! Por falar

nisso, não é realmente excepcional a frequência com que essa ideia específica tem

surgido no cérebro do lunático? Não deve haver um asilo de loucos na França onde não

se possa encontrar um bule de chá humano. Nosso cavalheiro era um bule de chá de

metal bretanha 3 e cuidava lustrar-se toda manhã com camurça e branco-de-espanha.

— Também, disse um homem alto, à frente, tivemos aqui, não faz muito tempo,

uma pessoa que botara na cabeça que era um asno, o que, alegoricamente falando, era

verdade. Era um paciente problemático, e tivemos muita dificuldade em mantê-lo nos

limites. Por um longo tempo, ele não comia nada a não ser cardo; mas logo o curamos

dessa ideia, quando insistimos que não comesse outra coisa. Além disso, ele

constantemente se punha a dar coices – assim! – assim! –

— Sr. De Kock! Peço que se comporte! — interrompeu uma velha senhora, que

estava sentada ao seu lado. — E, por favor, mantenha seus pés perto de si! O senhor

arruinou meu brocado! Diga-me: é necessário ilustrar seu comentário de maneira

prática? Nosso amigo com certeza o compreende sem que haja necessidade de tudo isso.

Por certo, o senhor também é um asno, do mesmo modo que nosso pobre infeliz se

imaginava. Sua encenação é bastante natural, acredite em mim.

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 — Mille pardons, Mam’selle! — replicou Monsieur De Kock, aquele que fora

interpelado, — mil perdões! Não tive a intenção de ofendê-la. Mam’selle Laplace,

Monsieur De Kock dará a si mesmo a honra de beber vinho com a senhora.

Então Monsieur De Kock inclinou-se, beijou sua própria mão com muita

cerimônia e pôs-se a beber vinho com Mam’selle Laplace.

— Permita-me, mon ami, dirigiu-se a mim Monsieur Maillard, permita-me

servir-lhe um pedaço desta vitela à la St. Menehoult. O senhor vai achá-la

particularmente admirável.

Nesse instante, três garçons robustos acabavam de atingir sucesso em pôr com

segurança sobre a mesa um prato enorme, ou, melhor ainda, um trincho, contendo o que

supus ser o ‘monstrum, horrendum, informe, ingens, cui lumen ademptum.’4 Um exame

mais minucioso, contudo, assegurou-me de que era apenas um pequeno bezerro assado,

servido inteiro, apoiado em seus joelhos, com uma maçã na boca, do mesmo modo que

fazem os ingleses para preparar uma lebre.

— Agradeço, mas, repliquei, para dizer a verdade, não sou particularmente

atraído por vitela à la St. – como é mesmo? – por não achar que, de uma maneira geral,

ela me caia bem. Vou, no entanto, trocar de prato e provar o coelho.

Havia alguns pratos de acompanhamento sobre a mesa, contendo o que parecia

ser o tão comum coelho francês – um delicioso morceau, que recomendo.

— Pierre, exclamou o anfitrião, troque o prato deste senhor e dê-lhe uma fatia

deste coelho au chat5.

— Este o quê? — disse.

— Coelho au chat.

— Bem, agradeço – pensando melhor, não o quero mais. Eu mesmo me servirei

de um pouco de presunto.

Não se pode adivinhar o que se come, pensei comigo mesmo, à mesa desse povo

de província. Não comerei nada de seu coelho au chat – e, do mesmo modo, tampouco

seu gato au coelho. 6

— Também, disse uma figura de aparência cadavérica, que estava numa ponta

da mesa, retomando a conversa no ponto em que havia sido interrompida, também, entre

outras esquisitices, tivemos, certa vez, um paciente que obstinadamente dizia ser um

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 queijo de Córdoba, e saía por aí, com uma faca na mão, convidando seus colegas a

provarem uma pequena fatia de sua coxa.

— Ele era um perfeito lunático, sem dúvida alguma, alguém interveio, mas não a

ponto de ser comparado a certo indivíduo que todos, com exceção de nosso cavalheiro

estrangeiro, conhecemos. Refiro-me ao homem que acreditava ser uma garrafa de

champanhe e que sempre se desrolhava com um estouro e uma efervecência, da seguinte

maneira.

E aqui o narrador, muito rudemente, em minha opinião, introduziu seu polegar

direito na parte interna da bocheca esquerda, rapidamente retirou-o, produzindo um som

similar ao de uma garrafa sendo desrolhada, e, logo depois, através de um ágil

movimento da língua contra os dentes, criou agudo e efervescente silvo, que perdurou

por vários minutos, numa imitação da espumosa borbulhagem do champanhe. Tal

comportamento, como claramente notei, não agradou muito a Monsieur Maillard; mas

ele nada disse, e a conversa foi reiniciada por um homem pequeno e delgado que usava

grande peruca:

— Houve também um idiota, disse ele, que acreditava ser um sapo, com que,

diga-se de passagem, muito se parecia, de fato. Como eu queria que o tivesse visto,

senhor — e aqui o narrador se dirigiu a mim, — a naturalidade com que encenava lhe

teria animado o espírito. Senhor, se não era mesmo aquele homem um sapo, posso

apenas observar que é uma pena! Era assim seu coaxar: o... o... o... ok! o... o... o... ok!

Era a mais bela nota do mundo, um si bemol; e quando, desta maneira, punha seus

cotovelos sobre a mesa, depois de tomar um ou dos cálices de vinho, e abria bem a

boca, desta maneira, e rolava os olhos, desta maneira, e piscava-os com excessiva

rapidez, desta maneira, bem, meu senhor, atrevo-me a afirmar que certamente ficaria

pasmo de admiração com o gênio de tal homem.

— Não tenho dúvida alguma, disse eu.

— Também, disse outra pessoa, também houve Petit Gaillard, que acreditava ser

uma pitada de rapé, e sentia-se muito aflito por não conseguir se segurar entre seu

indicador e seu polegar.

— E houve também Jules Desoulières, que tinha um gênio realmente singular e

que acabou louco com a ideia de que era uma abóbora. Ele perseguia o cozinheiro para

que dele fossem feitas tortas – algo que o cozinheiro, indignadamente, se recusava a

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 fazer. Quanto a mim, de maneira alguma estou certo de que uma torta de abóbora à la

Desoulières não teria sido um prato magnífico.

— O senhor me surpreende! — disse eu; olhei inquisidoramente para Monsieur

Maillard.

— Ha! ha! ha! — riu-se ele, — he! he! he! hi! hi! hi! ho! ho! ho! hu! hu! hu!

Excelente, de fato! Não deve se espantar, mon ami; nosso amigo é espirituoso – drôle7 –

não deve interpretá-lo ao pé da letra.

— Também, disse outra pessoa do grupo, também houve Bouffon Le Grand,

outra figura extraordinária, à sua maneira. Ele enlouqueceu de amor e acabou por

imaginar que possuía duas cabeças. Uma delas, dizia ele, era a cabeça de Cícero; a

outra, ele a imaginava ser composta: a de Demóstenes da testa até a boca e a de Lord

Brougham da boca ao queixo. Não é impossível que estivesse equivocado, mas ele o

convenceria de que estava correto, pois era um homem de grande eloquência. Tinha ele

paixão absoluta por oratória e não conseguia deixar de ostentá-la. Por exemplo,

costumava ele subir, desta maneira, sobre a mesa de jantar e – e –

Nesse momento, um amigo do narrador, sentado ao seu lado, pôs-lhe a mão no

ombro e murmurou-lhe ao ouvido algumas palavras; ele, então, repentinamente parou

de falar e afundou-se em sua cadeira.

— Também, disse o amigo que havia murmurado, houve Boullard, o pião.

Chamo-o pião pois, na verdade, foi dominado pela cômica mania, ainda que não

completamente irracional, de que havia se transformado em um pião. O senhor teria se

arrebentado de rir ao vê-lo girar. Ele sempre girava, horas a fio, ao redor de si, sobre o

calcanhar, da seguinte maneira – assim –

Nesse momento, o amigo que há pouco ele interrompera com sua murmuração

ao ouvido fez-lhe exatamente a mesma intervenção.

— Mas, nesse caso, berrou uma velha senhora, na máxima altura de sua voz, seu

Monsieur Boullard era um louco, e um louco bem tolo, na melhor das hipóteses; pois

quem, permita-me perguntar, alguma vez ouviu falar de um pião humano? Isso é

absurdo. Madame Joyeuse era muito mais sensata, como bem se sabe. Ela, sim, tinha

uma mania, mas impulsionada por bom senso, e Madame agradava a todos que tinham a

honra de conhecê-la. Ela concluiu, após sólida ponderação, que, por algum acidente,

havia se transformado num galo; mas, mesmo em sua condição de galo, comportava-se

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 com decoro. Ela batia as asas com prodigiosa eficácia, assim – assim – assim – e,

quanto a seu cacarejo, era ele delicioso! Có-có-ró-có-có! Có-có-ró-có-có! Có-có-ró-có-

cóó-có-có-ró-có-có-cóóóóóó!

— Madame Joyeuse, queira se comportar! — interrompeu-a nosso anfitrião,

furiosamente. — Aja como uma dama, ou retire-se da mesa imediatamente; faça sua

escolha.

A senhora (e muito me surpreendi ao ouvi-la ser chamada de Madame Joyeuse,

justamente após a descrição de certa Madame Joyeuse que ela mesma acabara de fazer)

corou até as sobrancelhas e pareceu bastante envergonhada de tal reprimenda. Ela

baixou a cabeça e nada respondeu. Mas outra mulher, mais nova, retomou o tema. Era a

bela garota que eu conhecera na pequena sala ao chegar.

— Oh, Madame Joyeuse era uma louca! — ela exclamou. — Mas havia, afinal,

muito bom senso na opinião de Eugénie Salsafette. Ela, que era uma jovem muito bela e

extremamente modesta, julgava que os hábitos comuns de vestuário eram indecentes e

sempre desejava vestir-se ficando por fora de suas roupas, ao invés de por dentro. Trata-

se, afinal, de algo muito fácil de fazer. Basta fazer assim – e depois assim – assim –

assim e depois assim – assim – assim – e depois –

— Mon dieu! Mam’selle Salsafette! — foi o que gritou, ao mesmo tempo, uma

dúzia de vozes. — O que está fazendo? Controle-se! Basta! Já compreendemos

claramente como é que se faz! Pare! Pare! — e várias pessoas já estavam saltando de

suas cadeiras para evitar que Mam’selle Salsafette se pusesse como a Vênus de Medici,

quando a questão foi subitamente resolvida com eficácia devido a uma série de altos

brados, ou gritos, vindos de alguma parte do corpo central do château.

Meus nervos, de fato, foram muito afetados por esses gritos; mas, quanto ao

resto dos convivas, como senti pena deles! Nunca havia visto um grupo de pessoas sãs

tão assustado em toda a minha vida. Ficaram todos pálidos como cadáveres e,

encolhendo-se em suas cadeiras, sentaram-se, balbuciando e tremendo de medo; ficaram

à escuta, esperando uma repetição do som. Foi ouvido novamente, mais intenso e

aparentemente mais próximo; depois, uma terceira vez, muito intenso, e depois uma

quarta vez, de vigor evidentemente reduzido. Com a aparente cessação do som, o ânimo

do grupo foi imediatamente restituído, e, como antes, tudo voltou a ser estusiasmo e

anedotas. Aventurei-me, ante as circunstâncias, a inquirir sobre a causa da inquietação.

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 — Uma simples bagatelle, disse Monsieur Maillard. — Estamos acostumados a

essas coisas e damos pouca importância a elas. Os lunáticos, vez ou outra, põem-se a

berrar em coro; um estimula o outro, como ocorre com um bando de cães durante a

noite. Ocasionalmente, no entanto, sucede que os gritos em concerto são seguidos por

um esforço simultâneo de fuga; nessas ocasiões, de fato ficamos receosos de algum

perigo.

— E há quantos sob sua responsabilidade?

— No momento, não há mais que dez, ao todo.

— Principalmente mulheres, suponho.

— Oh, não! Todos eles são homens, e posso assegurar-lhe que são todos bem

robustos.

— Não diga! Sempre supus que a maioria dos lunáticos pertencesse ao sexo

frágil.

— Geralmente é assim, mas nem sempre. Algum tempo atrás, havia aqui cerca

de vinte e sete pacientes e, dentre eles, não menos que dezoito eram mulheres;

recentemente, contudo, as coisas mudaram bastante, como pode ver.

— Sim, mudaram bastante, como pode ver, interrompeu o senhor que havia

arruinado as canelas de Mam’selle Laplace.

— Sim, mudaram bastante, como pode ver! — retumbou, em coro, todo o grupo.

— Segurem suas línguas8, cada um dos senhores! — disse, enfurecido, meu

anfitrião, ao que todo o grupo se manteve em profundo silêncio por quase um minuto.

Quanto a uma das senhoras, ela obedeceu a Monsieur Maillard ao pé da letra; esticou

para fora a língua, que era excessivamente alongada, e pôs-se a segurá-la

resignadamente, com ambas as mãos, até o fim da reunião.

— E essa dama, disse eu a Monsieur Maillard, inclinando-me e dirigindo-me a

ele num sussurro, essa boa senhora que há pouco nos falou e nos ofertou seu cacarejo –

ela, presumo, é inofensiva, bem inofensiva, hum?

— Inofensiva! — exclamou, com sincera surpresa, — ora, ora, o que quer dizer?

— Apenas levemente amalucada? — disse eu, tocando minha cabeça. —

Presumo que ela não seja particularmente – não perigosamente afetada, hum?

— Mon Dieu! O que imagina o senhor? Essa senhora, amiga antiga e pessoal,

Madame Joyeuse, é tão sã quanto eu. Certamente tem suas excentricidades – mas, como

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 sabe, todas as mulheres idosas – todas as mulheres muito idosas são excêntricas, em

maior ou menor grau.

— Certamente, disse eu, certamente. Então todas as outras damas e cavalheiros –

— São meus amigos e guardas do recinto, interrompeu Monsieur Maillard,

retesando-se com hauter, meus excelentes amigos e assistentes.

— O quê? Todos eles? — perguntei. — Todas as mulheres?

— Por certo, ele disse, nada poderíamos fazer sem as mulheres. São as melhores

enfermeiras de lunáticos do mundo! Elas têm uma maneira própria, o senhor sabe; seus

olhos brilhantes têm um efeito maravilhoso, algo como o fascínio da cobra, o senhor

sabe.

— Certamente, disse eu, certamente! Comportam-se de maneira bastante

singular, hum? São um pouco esquisitas, hum? O senhor não acha?

— Singular! Esquisitas! Ora, realmente pensa assim? De fato, não somos muito

pudicos aqui no Sul; fazemos exatamente o que nos agrada, gozamos a vida, esse tipo

de coisa, como sabe –

— Certamente, disse eu, certamente.

— Ademais, talvez este Clos-Vougeot suba à cabeça, o senhor sabe; um pouco

forte, o senhor compreende, hum?

— Certamente, disse eu, certamente. A propósito, por acaso ouvi o senhor falar

que o sistema que adotou no lugar do celebrado sistema de apaziguamento é de rigorosa

severidade?

— De modo algum. O confinamento é rigoroso, mas, por outro lado, o

tratamento, o tratamento médico, quero dizer, é bem mais agradável aos pacientes.

— E o novo sistema é uma invenção sua?

— Não completamente. Algumas partes são creditadas ao Professor Pixe, de que

necessariamente já ouviu falar; e, do mesmo modo, há algumas modificações em meu

projeto que atribuo com alegria ao célebre Penna, que, se não me engano, o senhor teve

a honra de conhecer intimamente.

— Envengonho-me de confessar, repliquei, que nunca ouvi falar desses

cavalheiros.

— Oh, céus! — exclamou meu anfitrião, arrastando abruptamente sua cadeira

para trás e erguendo as mãos. — Não posso estar ouvindo corretamente! Não pode ter

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 sido sua intenção dizer, hum, que nunca ouviu falar do erudito Doutor Pixe ou do

célebre Professor Penna!’

— Sou forçado a admitir minha ignorância, repliquei; a verdade, acima de tudo,

não deve ser violada. Contudo, sinto-me profundamente humilhado por não conhecer o

trabalho de tais homens sem dúvida extraordinários. Procurarei seus escritos o mais

rápido que puder e vou lê-los com muita atenção. Monsieur Maillard, o senhor

realmente, tenho de confessar, o senhor realmente deixou-me com vergonha de mim

mesmo!

De fato, eu assim estava.

— Não diga mais nada, meu bom e jovem amigo, disse ele cordialmente,

apertando minha mão. Acompanhe-me num cálice de Sauterne.

Bebemos. Os outros seguiram nosso exemplo, servindo-se generosamente. Eles

proseavam, zombavam, riam, cometiam milhares de absurdos; os violinos guinchavam,

o tambor ribombava, os trombones berravam como muitos touros de latão de Faláris – e

a cena toda gradativamente se tornava pior, conforme o vinho a todos sobrepujava,

convertendo-se, depois de um tempo, numa espécie de pandemônio in petto. Enquanto

isso, Monsieur Maillard e eu, com algumas garrafas de Sauterne e Vougeot entre nós,

continuávamos nossa conversa na máxima altura de nossas vozes. Uma palavra dita

num tom habitual não teria mais chance de ser ouvida que a de um peixe nas

profundezas das Cataratas do Niágara.

— O senhor, disse eu, gritando-lhe ao ouvido, mencionou, antes do jantar, algo

sobre o perigo implicado no antigo sistema de apaziguamento. Do que se tratava?

— Sim, replicou, de fato havia, ocasionalmente, muito perigo. Não há previsão

para os caprichos de um louco, e, em minha opinião, como também na do Doutor Pixe e

do Professor Penna, nunca é seguro deixá-los livres, sem seres vigiados. Um lunático

pode ser “apaziguado”, como se diz, por algum tempo, mas, no fim, é muito provável

que se torne turbulento. Sua astúcia, além disso, é grande e notória. Se tem algo em

mente, disfarça seu intento com maravilhosa prudência, e a habilidade com que

dissimula sanidade apresenta, ao metafísico, um dos mais singulares problemas no

estudo da mente. Quando um louco aparenta ser completamente são, já está mais do que

na hora de metê-lo numa camisa de força.

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 — Mas o perigo, meu caro senhor, do que estava falando, de acordo com sua

própria experiência durante seu comando desta casa – alguma vez já teve motivo prático

para achar arriscada a liberdade, no caso do lunático?

— Aqui? De acordo com minha própria experiência? Bem, devo dizer que sim.

Por exemplo, há não muito tempo, uma singular circunstância ocorreu nesta mesma

casa. O “sistema de apaziguamento”, como sabe, estava em operação, e os pacientes

ficavam em liberdade. Eles se comportavam notavelmente bem – tão bem que ninguém

que fosse são poderia se dar conta de que um plano diabólico se desenvolvia a partir

desse fato particular, o de que os sujeitos se comportavam notavelmente bem. E, com

efeito, numa bela manhã, os guardas tiveram seus pés e mãos amarrados e foram

jogados nas celas, como se eles fossem os lunáticos, pelos próprios lunáticos, que

haviam usurpado o ofício de guarda.

— Não diga! Nunca ouvi nada tão absurdo em toda a minha vida!

— É fato. Tudo ocorreu por causa de um sujeito idiota, um lunático, que, de

algum modo, meteu na cabeça que havia inventado um sistema de administração melhor

que todos os outros até então – de administração lunática, quero dizer. Ele desejou

verificar sua invenção, suponho – e, assim, persuadiu o resto dos pacientes a se

associarem a ele numa conspiração pela destituição dos poderes reinantes.

— E ele teve sucesso?

— Sem dúvida. Os guardas e os guardados logo trocaram de posto. Mas não

exatamente assim, já que os loucos, anteriormente, sempre ficavam soltos, mas os

guardas foram imediatamente trancados em celas e tratados, lamento dizer, com muito

desdém.

— Mas presumo que uma contra-revolução foi logo levada a cabo. Semelhante

condição não poderia se manter por muito tempo. Os camponeses das redondezas, ou

visitantes vindo conhecer o estabelecimento, teriam dado o alarme.

— Aí é que se engana. O cabeça dos rebeldes era esperto demais para isso. Ele

não admitia visitantes – com a exceção, um dia, de um jovem senhor de aparência

estúpida que ele não tinha razão de temer. Permitiu-lhe ver o local, apenas para variar,

para divertir-se um pouco com ele. Depois de ludibriá-lo o suficiente, deixou-o partir e

retomar seus negócios.

— E quanto tempo durou o reinado dos loucos?

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 — Ah, por muito tempo, de fato; por certo um mês – não sei precisar exatamente

quanto mais tempo. Nesse período, os lunáticos tiveram uma divertida temporada, isso

se pode assegurar. Livraram-se de suas roupas esfarrapadas e aproveitaram-se do

guarda-roupa e das jóias da família. As adegas do château estavam bem estocadas de

vinho; esses loucos do diabo sabem beber, e muito bem. Viveram bem, posso assegurar-

lhe.

— E o tratamento? Qual foi a espécie singular de tratamento que o líder dos

rebeldes colocou em prática?

— Bem, quanto a isso, um louco não é necessariamente tolo, como já pude

observar. É minha honesta opinião que seu tratamento era muito melhor que o

tratamento que substituiu. Tratava-se, de fato, de um sistema de primeira: simples,

asseado, sem apresentar problemas – na verdade, era delicioso, era –

E então as observações de meu anfitrião foram interrompidas por uma série de

gritos, similares àqueles que nos haviam desconcertado previamente. Desta vez,

contudo, pareciam proceder de pessoas que rapidamente se aproximavam.

— Oh, céus! — exclamei, — os lunáticos certamente escaparam.

— Temo que sim, replicou Monsieur Maillard, agora excessivamente pálido.

Mal terminara sua sentença quando altos brados e imprecações foram ouvidos atrás das

janelas, e, imediamente depois, tornou-se evidente que, do lado de fora, algumas

pessoas esforçavam-se para adentrar no recinto. A porta era golpeada com o que parecia

ser uma marreta, e as janelas eram sacudidas e puxadas com prodigiosa violência.

Seguiu-se uma cena de terrível confusão. Monsieur Maillard, para minha

excessiva surpresa, jogou-se sob o aparador. Eu esperava mais resolução por parte dele.

Os membros da orquestra, que, durante os últimos quinze minutos, pareciam

embriagados demais para cumprir sua tarefa, puseram-se, todos de uma vez, em pé e,

com seus instrumentos, arrastando-se para cima de sua mesa, atacaram, em comum

acordo, o Yankee Doodle, que interpretaram, se não exatamente afinados, ao menos com

uma energia sobre-humana, durante todo o tumulto.

Enquanto isso, sobre a mesa de jantar principal, entre garrafas e cálices, saltou o

cavalheiro que se contivera, com muita dificuldade, de sobre ela saltar anteriormente.

Tão logo aterrisou, começou um discurso, que, sem dúvida, teria sido de alta categoria –

se ao menos pudesse haver sido ouvido. No mesmo instante, o homem com as

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 predileções ao pião pôs-se a girar pelo recinto, com imensa energia e com os braços

esticados em ângulo reto ao corpo, de modo a realmente ter ares de um pião, derrubando

todos que porventura estivessem em seu caminho. Então, ao escutar um incrível estouro,

seguido de uma efervescência de champanhe, acabei por descobrir que procedia da

pessoa que interpretara, durante o jantar, a garrafa de tão delicada bebida. O homem-

sapo, por sua vez, coaxava como se a salvação de sua alma dependesse de cada som que

emitia. E, em meio a tudo isso, elevava-se, sobre todos os ruídos, um zurro contínuo de

asno. Quanto a minha cara amiga, Madame Joyeuse, eu não poderia sentir mais pena

dela, pois parecia terrivelmente perplexa. Tudo o que fazia, no entanto, era, num canto

do recinto, ao lado da lareira, gritar incessantemente, na máxima potência de sua voz,

seu ‘Cocoricocóóóóóóóóó!’

E então iniciou-se o clímax – a catástrofe do drama. Como resistência alguma,

além de gritos, alaridos e cacarejos, era oferecida à invasão do grupo de fora, as dez

janelas foram rápida e quase simultaneamente forçadas. Mas nunca esquecerei as

emoções de assombro e horror com que observei saltar pela janela, sobre todos nós

pêle-mêle9, lutando, esmagando, arranhando e bradando, um exército que julguei ser de

Chimpanzés, Orangotangos, ou grandes babuínos negros do Cabo da Boa Esperança.

Fui terrivelmente golpeado – depois disso, rolei para baixo do sofá e fiquei

imóvel. Depois de lá ficar por cerca de quinze minutos, no entanto, tempo em que

prestei ouvidos ao que estava ocorrendo no recinto, cheguei a um dénouement10

satisfatório de tal tragédia. Parecia que Monsieur Maillard, ao falar-me do lunático que

incitara seus colegas à rebelião, tinha meramente relatado suas própria façanhas. De

fato, dois ou três anos antes, tal cavalheiro tinha sido o diretor do estabelecimento;

contudo, acabou por ficar louco, tornando-se, então, um paciente. Esse fato era inédito

ao conhecido que viajava comigo, que me havia apresentado a ele. Os guardas, em

número de dez, tendo sido subitamente dominados, foram, primeiramente, besuntados

com piche e, depois, cuidadosamente cobertos de penas, e assim foram encarcerados nas

celas subterrâneas. Estiveram aprisionados por mais de um mês, período em que

Monsieur Maillard generosamente lhes oferecia não apenas o piche e as penas (que

constituíam seu ‘sistema’), mas também um pouco de pão e uma abundância de água. A

última, através de uma bomba, lhes era jorrada diariamente. Por fim, um deles,

escapando por uma cloaca, libertou todos os outros.

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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009 O “sistema de apaziguamento”, com importantes modificações, foi readotado no

château. Contudo, não posso deixar de concordar com Monsieur Maillard: seu próprio

sistema de “tratamento” era, realmente, de primeira. Como ele mesmo observou com

exatidão, era “simples, asseado, sem apresentar problemas – nem mesmo o menor

deles.”

Tenho apenas a acrescentar que, ainda que tenha procurado os trabalhos do

Doutor Pixe e do Professor Penna por toda a Europa, não tive, até o presente dia,

sucesso algum em meu empenho de obter ao menos um exemplar.11

1 Argumentação que consiste em provar algo através da explicitação do absurdo de sua negação. (N. do T.) 2 « Não se espantar com nada » (N. do T.) 3 Liga metálica formada por estanho, cobre e antimônio. (N. do T.) 4 “Monstro horrendo, disforme, gigantesco, privado de luz”. Citação da Eneida (Livro III), de Virgílio, referente a Polifemo, o ciclope cegado por Ulisses. (N. do T.) 5 Ao gato (N. do T.) 6 Cat au rabbit, no original. (N. do T.) 7 Cômico, engraçado, divertido. (N. do T.) 8 A escolha do verbo ‘segurar’, em detrimento de ‘conter’, foi feita de modo a possibilitar a cômica situação que segue (a senhora que se pôs a segurar sua língua). 9 De modo desordenado e confuso. (N. do T.) 10 Desfecho de um enredo. (N. do T.) 11 Doctor Tarr e Professor Fether, no original. A opção por ‘Pixe’, em vez de ‘Alcatrão’ (a mais justa tradução de ‘tar’), foi feita para dar maior sonoridade para o título e maior facilidade de mudança ortográfica (de ‘piche’ para ‘pixe’), mantendo, assim, o jogo criado por Poe (‘Tarr’ e ‘Fether’, no lugar de ‘tar’ e ‘feather’, respectivamente ‘alcatrão’ e ‘pena’ ou ‘pluma’.) (N. do T.)