o século dos cirurgiões - parte ii

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  • 7/31/2019 O Sculo dos Cirurgies - Parte II

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    Texto extrado do livro O sculo dos CirurgiesII Parte

    O Despertar do SculoDESCOBERTA

    O sculo da cirurgia moderna comeou no ano de 1846 na sala de operaes doHospital Geral de Massachusetts, Boston. A 16 de outubro desse ano, surgiu luz do mundoa narcose, a anestesia da dor, mediante inalao de gases qumicos.

    Creio que j no possvel a um homem do nosso tempo compreender a revoluaoestupenda que se iniciou naquele dia. Hoje, eu mesmo tenho freqentemente a impressode que a poca horrenda da cirurgia da minha mocidade nunca haja existido. Ainda poucoantes desse 16 de outubro, eu assistira pavorosa amputao duma lngua cancerosa. Evira, no instante em que o ferro em brasa pousava, chiando, na carne viva do coto de lngua,o operado tombar sem vida, fulminado pelo choque. O seu ltimo grito continuou a ecoarna sala, quando ele j se calara para sempre. Ora, pouco tempo depois, um rapaz jazia,quieto, sem um grito, sem um movimento, sob o bisturi de Warren tornado pela anestesiainsensvel dor que torturara, antes dele, um nmero incalculvel de seres humanos.Graas a uma operao que durou um minuto, transformou-se o mundo em que vivemos.Uma luz jorrou das trevas, naquele dia, um claro to vivo, que a princpio nos deslumbrou.

    Do ponto de vista da cincia atual, a subitaneidade dessa descoberta, queemocionou o mundo, parece quase incrvel. Sabemos hoje, que j no ano de 1800, oqumico ingls Humphry Davy se livrou duma dor de dente, aspirando nitrous oxide,protxido de azoto ou gs hilariante. Davy chegou a publicar uma comunicao na qualescreveu: Prestando-se aparentemente em forte aplicao local para acalmar dores fsicas,o protxido de azoto poderia talvez ser usado com vantagem nas interevenes cirrgicas.

    Ningum tomou em considerao a idia de Davy; nem ele a desenvolveu. Uns vinte

    anos depois, em 1823, o jovem mdico ingls Henry Hill Hickmann, cuja alma demasiadosensvel mal suportava os gritos de dor das operaes cirrgicas, empreendeu a tentativa deanestesiar animais e oper-los sem dor, em estado de inconscincia. Colocou uma cobaiasob uma redoma que encheu de bixido de carbnio. O animal perdeu a conscincia e,sendo-lhe amputadas as orelhas e a cauda no deu a menor mostra de sofrimento. Asexperincias de Hickmann degeneraram em intoxicaes mortais. O bixido de carbniorevelava-se absolutamente inadequado. Mas, da aplicao doutros gases mediava apenasum passo. Hickmann no o deu. Tambm sabemos hoje que, no ano de 1842, o Dr.Crawford W. Long, mdico rural em Jefferson, estado da Gergia, fizera os seus pacientesinalarem ter, para os operar sem dor. Viera-lhe essa idia operando certo rapaz dopovoado, James M. Venable, ao qual extrara vrios tumores na nuca. Em Jefferson, muita

    gente se embriagava com lcool; Venable e alguns amigos seus realizavam banquetes deter, nos quais cheiravam ter at carem brios. Antes de operar, o Dr. Long adminstravaaos clientes fortes doses de lcool, para acalm-los. No caso de Venable, achara maissimples deix-lo tomar o ter de costume. Terminada a operao, certificou-se de que orapaz no sentira nenhuma dor. Long no teve nenhuma idia de que acabava de fazer umadescoberta capaz de abalar o mundo; continuou sossegadamente a clinicar no campo. Ofato repetiu-se dois anos depois, em 1844; em Dervy, estado de Nova Hampshire, o Dr.Smilie fizera aspirar a um eclesistico tuberculoso acometido de terrveis acessos de tosse,

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    que o pio tomado por via oral no aliviava uma combinao de pio e ter; este servia-lhe apenas como solvente facilmente voltil do pio. O padre cara, desacordado, nacadeira. Mais tarde, na primavera do mesmo ano, o Dr. Smilie tiver de rasgar um abscesso.Antes da operao, fizera o paciente aspirar a citada mistura e verificara que a abertura doabscesso no causava dor. Ao contrrio de Long, Smilie continuou as experincias epretendia divulg-las. Os seus amigos mdicos fizeram-lhe ver, porm, que o pio era

    empregado desde sculos em cirurgia e s anestesiava quando administrado em altas dosesque expunham o dente a morrer intoxicado. Felicitaram o colega pelas ruas experinciascoroadas de xito, aconselhando-o, no entanto, a no continuar. Smilie deixou-se persuadire desistiu. Ningum pensara no efeito do ter, no qual Smilie via apenas um solvente dopio.

    Hoje, a descoberta da narcose no ano de 1846 j no parece uma erupo repentina,e sim, o resultado final de quase cinqenta anos de movimentos subterrneos de tentativasinteis em proveito de indivduos, o que explodiu afinal ante a conscincia da humanidade.Mas isto apenas teoria. Na poca em que, ainda estudante e jovem cirurgio, assisti descoberta da anestesia, para mim e para o meu ambiente ela foi uma revelao grandiosa,sbita, deslumbrante, inaudita, sem precedentes. E, se tinha uma pr-histria, esta no

    remontava alm do ms de janeiro de 1845.

    O PRIMEIRO ATO

    No sei em que dia foi; porque, vista do insucesso com que ele se encerrou, ningumpensou em tomar apontamentos exatos sobre essa data. E, quando ela assumiu inportnciaretrospectiva, os acontecimentos desse dia s se podiam reconstituir por partes e comlacunas. Era uma dia da segunda quinzena de janeiro de 1845. Na antiga sala de operaesdo Hospital Geral de Massachusetts, Warren discorria sobre as trepanaes do crnio.Pouco havia a dizer do mtodo milenrio, hoje em desuso, de abrir o crnio a criaturasvivas, com brocas grosseiras, a fim de remover lascas de ossos depois de ferimentos e

    acidentes ou para aliviar dores de cabea intolerveis. As indicaes eram limitadssimas; oprognstico em razo do choque ou febre traumtica sempre fatal, se a trepanaoofendesse a dura-mter. Era, pois, mero acaso encontrar-me eu, naquele dia, entre oescasso pblico da tribuna dos ouvintes. Pelas onze horas, terminando de expor o seu tema,ao contrrio do que costumava fazer, Warren no deixou o seu lugar. Fez sinal a um moo,sentado na ltima fila inferior de bancos da tribuna. At a, ningum reparara nele; mesmonesse instante, eu no conseguia ver-lhe o rosto. Ele voltava-me as costas, oferecendo minha vista apenas a cabeleira ruiva e lustrosa.

    A est esse senhor comeou Warren, com o seu ar de superioridade um tantoorgulhoso e austero que afirma ter descoberto uma coisa que eliminou a dor emoperaes cirrgicas. Ele deseja falar-lhes. Se houver entre os senhores quem tenha

    interesse em ouvi-lo, eu lhe darei a palavra.Esta, a apresentao de Warren. Os que o conheceram podem fazer idia da

    expresso de sarcasmo com que os seus olhos azuis, deslavados, percorriam as filas daassistncia. As suas frases, alis, tinham mais ou menos este sentido: Isso, naturalmente,no passa de absurdo; mas por que deveria eu privar-vos do prazer de rir ao menos umavez? E cada uma das suas palavras era uma sentena, pois cada um de ns conhecia a tesede Warren de que a dor e o bisturi esto eternamente unidos. Em conseqncia, eledespoertou forosamente no auditrio a convico de que o Mestre nos oferecia um leigo

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    visionrio, que desencovara alguma teoria mirabolante e aspirava a cobrir-se de ridculoperante a cincia. O riso escarninho j nos gorgolejava na garganta, antes que o inventorapresentado por Warren pronunciasse a primeira palavra.

    O olhar de Warren desceu das mais altas ltima fila de bancos. Ento, Senhor Wells, queira expor seu mtodo a estes senhores.Nesse instante, eu ouvi pela primeira vez o nome: Wells. E, enquanto ele se

    levantava, muito nervoso, hesitando, relanceando olhares tmidos s nossas filas, pude ver-lhe o rosto. Era uma fisionomia meiga e sonhadora de olhos azuis, muito luminosos.

    Horace Wells, homem dos seus trinta anos, magro, de estatura mediana, adiantou-secom passo incerto na arena; aproximou-se da cadeira operatria, forrada de veludovermelho, trazendo na mo um recipiente de borracha e uma bolsa.

    Warren tomou a palavra e exprimiu-se mais ou menos nesses termos:

    O Senhor Wells apresenta-se como cirurgio-dentista, domiciliado em Hartford.No tem disposio nenhum caso cirrgico comum, pois o paciente que deveria, j h dias,sofrer a amputao duma perna, desistiu de cort-la. Mas, conforme declarou, o SenhorWells faz tratamentos dentrios sem dor. Se houver no auditrio quem precise deles equeira submeter-se a uma experincia, pode apresentar-se.

    Warren tomou lugar na sua poltrona, exatamente como faria num teatro umespectador cptico e soberbo.. Entretanto, eu via o ruivo forasteiro respirar profundamentevrias vezes. Fazia-o, evidentemente, para vencer um grande acanhamento. Conseguiu,afinal, gaguejar as primeiras palavras com a voz abafada.

    No consigo hoje lembrar-me de tudo o que ele disse; e o exame de refernciasulteriores, mais ou menos fortuitas, doutras testemunhas tambm no me fornece pontosde apoio suficientes.

    Wells falava duma coisa que descobrira por mero acaso: o protxido de azoto,conhecido havia muito sob o nome popular de gs hilariante, podia tornar os seres humanostotalmente insensveis dor. Acrescentou que, inalando gs hilariante, com a inteno derir, o paciente ri-se e excita-se; se o fizer com o propsito de relaxar a tenso e dormir,

    adormecer.Atualmente no h nada demais em que um narcotizador acalme e adormea um

    paciente com palavras sugestivas. Naquela ocasio, as explicaes de Wells pareceram-mesumamente estranhas. Haveria quem no conhecesse o gs hilariante? Os empresrios doscircos, que percorriam os estados da Nova Inglaterra, costumavam chamar espectadores aopalco, ofereciam-lhes inalaes desse gs e entretinham o resto do pblico, fazendo-oassistir s piruetas dos que se prestavam a aspir-lo.Havia dezenas de anos que a gente de circo andava pelos caminhos, com os seus vasos degs hilariante; e, duma hora para outram iria esse gs resolver um problema, cuja soluoera j um sonho grandioso, milenrio?

    Se houver entre os senhores quem tenha dor de dente, venha a mim, com toda a

    confiana disse Wells.Aos poucos, a sua voz adquiria firmeza. Os seus olhos passaram em revista o

    auditrio onde ningum se movia e s o enfrentavam caras desconfiadas ou zombeteiras.Algum se levantou enfim. No era nenhum dos nossos. Era um ouvinte forasteiro, de faceinchada e vermelha.

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    Vamos l! Mostre a sua arte disse ele, entrando na arena devagar, comrespirao arquejante, e exibindo um dente cariado. Wells retirou da bolsa alguns ferros dedentista, pousou-os perto da cadeira operatria; acomodou nela o paciente, colocou-lhediante da boca o balo de borracha, abriu a torneirinha de madeira. As mos tremiam-lhevisivelmente.

    Respire, por favor disse o dentista. Respire... respire profundamente.

    Falava, quase implorando; o seu tom suplicante deu largas s risadas reprimidas ata.

    Respirando profundamente, adormecer logo. E, quando acordar, tudo estarfeito...

    Eu observava atentamente o forasteiro sentado na cadeira operatria. De sbito,ocorreu uma coisa que abalou a minha atitude de superioridade irnica: o paciente deitaraa cabea para trs; os seus lbios, ou o que se via deles, tomavam um tom azulado.Balbuciando palavras indistintas, o homem cravou os olhos baos adiante de si. A partirdesse instante, nenhum movimento lhe quebrou a imobilidade.

    Wells retirou imediatamente o balo, apanhou o botico, abriu a boca donarcotizado, ou adormecido, a plicou a tenaz ao dente...

    Pelo espao dalguns segundos, pairou-me no esprito talvez no de outrosespectadores a idia indecisa:

    Ser mesmo?... Ser possvel que isso no seja brincadeira nem charlatanice?Eu sabia, por experincia prpria, que s a aplicao da tenaz e o conseqente abalo

    da gengiva so uma tortura, que, em geral, arranca gritos pungentes. Entretanto oforasteiro no se mexia. Estabelecera-se na sala um silncio solene.

    Logo, porm, quando Wells aplicou o instrumento a segunda vez, um grito horrvelirrompeu as guelas do paciente, seguido doutro e outros.

    E, num relance, l se foram tambm os magros restos da pergunta que eu fazia amim mesmo, sobre se aquilo no seria mera charlatanice.

    Vi ento o dentista retirar a tenaz, com o dente ensangentado, e ergu-la diante

    dos olhos, nos quais transparecia um verdadeiro desvario.Dos bancos mais altos, partiram casquinadas, seguidas de gargalhadas francas, que

    se propagaram de alto a baixo, de fila em fila, at encher todo o anfiteatro. Tambm medeixei contagiar por essa hilaridade. Risadas e dichotes retumbavam no recinto. Em breve,ainda um tanto abafado, ecoou o primeiro brado:

    Pantomima!Seguiu-se-lhe o segundo:

    Embuste!E o terceiro, mais e mais arrasador e sarcstico:

    Intrujice!Eu tambm gritava.

    Wells estava lvido. Continuava a segurar o dente, na mo crispada, enquanto a suavtima premia o leno nos lbios.

    Na tribuna prosseguia a vozearia demolidora.No sei por quanto tempo se prolongaria essa cena, se Warren que por breve

    instante se afastara do crculo da ateno geral no surgisse na arena, de mo erguida. Oseu prestgio que imprimira ao andamento do hospital um cunho de disciplina quasemilitar e uma etiqueta rigorosa era to grande, que bastou um gesto seu para extinguir arisota e a gritaria.

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    O empresrio desse Circo de Gs Hilariante era um cidado chamado GardnerQuincy Colton, natural da Nova Inglaterra, onde nascera a 7 de fevereiro de 1814.Duodcimo filho duma famlia de escassos recursos, aos dezesseis anos era aprendiz dumfabricante de cadeiras de vima. Como vendedor ambulante de cadeiras de junco, chegou aNova York e obteve dum seu irmo estabelecido nessa cidade certa quantia para estudarMedicina com o Dr. Wilard Parker. O dinheiro no lhe bastou para concluir o curso.

    Entretanto, porm, Colton tivera ensejo de se familiarizar com questes de qumica,inclusive com o gs hilariante e os seus efeitos cmicos. Um belo dia, arrogou-se o ttulo deprofessor, o que ento nada tinha de extraordinrio; pediu um emprstimo vultoso dessa vez a um amigo e organizou o Circo Itinerante de Gs-da-Alegria, com o qual seencontrava em Hartford. Conforme anunciava a notcia transcrita acima, a funo realizou-se na noite de 10 de dezembro de 1844, com a casa superlotada. Entre os espectadorescontava-se um dos cidados mais estimados de Hartford, com sua esposa Lizza.

    Horace Wells tinha ento vinte e nove anos; j era, porm, graas a algumasinvenes no capo ainda difcil da prtese dentria, cirurgio-dentista conhecido eprocurado. Um ano mais moo do que o professor itinerante, nascera em Hartford,Vermont; freqentava vrias escolas em Amherst, Massachusetts, Nova Hampshire,

    mostrando em toda parte homem pacato, modesto, um tanto desajeitado, mas ao mesmotempo um esprito irrequieto e inventivo. Aos dezenove anos comeara a estudar emBoston cirurgia odontolgica, j ento bem adiantada nos Estados Unidos, se bem que talcomo no caso dos meus estudos de Medicina se guardasse naquele tempo de adotar asmodernas teorias europias. Tratava-se dum aprendizado manual com dentistasexperientes. Terminado o seu tirocnio, Wells estabeleceu-se em Hartford, Connecticut,casou-se com uma boa moa de famlia burguesa, conquistou relativa abastana e formoudiscpulos, entre eles John Mankey Riggs, seu assitente em dezembro de 1844; e oGuilherme T. G. Morton, o qual gerira por certo tempo com o mestre uma oficina para aexecuo de prtese dentria modernizada e passara depois a exercer a profisso dedentista em Boston.

    Morton no desempenhou nenhum papel em relao direta com os acontecimentosde 10 de dezembro de 1844; influenciou-os, porm, o insucesso do empreendimento deWells e do seu discpulo. Pelo menos assim o indicam todas as consideraes psicolgicas.

    A oficina em sociedade no dera resultado, porque a colocao de dentaduraspostias exigia um tratamento preliminar sumamente doloroso. Enquanto at a o trabalhode prtese se limitara a consertar razes e tocos de dentes, conformando-se com o aspectohorrvel desses remendos, a tcnica moderna requeria a prvia extrao das razes. No seanimando a suportar as dores dessa operao, os pacientes rejeitavam o novo tratamento.

    Este insucesso despertara possivelmente no esprito sempre inquieto e pesquisadorde Wells o antigo ideal de eliminar a dor nas intervenes cirrgicas. No dia 10 dedezembro, quando Colton iniciou, s sete da noite, a representao, o ideal de Wells

    continuava em estado de sonho e, dadas as convices da poca, tinha escassaprobabilidade de se realizar. No esmorecia, porm, no dentista, a esperana de convert-loem realidade. Talvez essa esperana explicasse o fato de ser Wells, nessa noite, o primeiro adescobrir o que a inmeros pesquisadores que o precederam passara despercebido.

    Embora a esposa procurasse dissuadi-lo, Wells subiu ao palco. O orgulho burgus deLizza temia que aquilo prejudicasse a reputao do marido. Mas o pendor inato de Wellspara a cincia e a experincia foi mais forte do que os escrpulos da mulher. Em companhiadoutros cidados de Hartford, o dentista inalou o gs hilariante; e mais tarde, Lizza contou,

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    vexadssima, que Wells se dera em espetculo... Quando, depois de rir, cantar e piruetarcom os concidados brios de gs, o dentista voltou a si e recobrou o senso de orientao,foi sentar-se imediatamente ao lado da esposa. No tinha a mais longnqua idia do que ocheiro adocicado, quase enjoativo do gs que acabava de inalar lhe decidiria a sorte.

    E passou a olhar com os olhos de mero espectador como inmeros homens emulheres tinham feito antes dele o que sucedia no palco. Nisso foi um acaso, mas um

    desses acasos que fazem poca, na Histria observando um morador de Hartford, SamuelCooley, que, depois de aspirar o gs, desmanchava-se em risadas, danando, saracoteando-se, Well viu-o esbarrar, numa dessas piruetas, e bater a tbia na aresta aguada dum banco.Mas de tal modo a bateu que o dentista julgou ouvir um estalo e encolheu-seinstintivamente, como se o caso fosse com ele. Sabia por experincia prpria que aquilo dihorrivelmente. Calculou, pois, que Cooley acordaria da embriaguez, gritaria de dor eapalparia a perna. Nada disso aconteceu. Cooley continuou a cantar, a danar e a rirgostosamente.

    Mas uma coisa acontecia: brotava no crebro de Horace Wells o encadeamento deidias que abrira Medicina e cirurgia uma nova era. Foi, se lcito dizer, o segundofatdico de Horace Wells, o instante que lhe permitiu uma concluso qual tantos outros

    espectadores poderiam ter chegado, assistindo a representaes de gs hilariante domesmo gnero, mas que no lhes ocorrera por lhes faltarem as premissas.

    Wells deixou repentinamente de ser o curioso que presencia uma diverso popular.Concentrou a ateno em Sam Cooley, seguiu-lhe todos os movimentos, no perodosubseqente, quando se lhe dissipou a embriaguez. Surgira no esprito do dentista umadvida: talvez s o primeiro efeito da perturbao dos sentidos neutralizara em Cooley asensao de dor; mas poderia esse efeito prolongar-se tanto?

    Minutos depois da topada, Cooley deixou o palco muito satisfeito; sem dar mostrarde estar sentindo qualquer dor, voltou sua cadeira e ficou por sua vez a apreciar oespetculo.

    Ento, embora a esposa procurasse ret-lo, rogando-lhe que no chamasse mais

    ateno, Wells no se conteve. Sem se preocupar com os espectadores nem com o que sepassava em cena, foi postar-se ao lado de Cooley. Depoimentos colhidos mais tarde referemeste dilogo:

    Sam disse o dentista no se feriu esbarrando no banco?Cooley interrompeu a risada que lhe arrancavam as piruetas no palco e levantou uns

    olhos espantados. Que est dizendo? Que foi que eu fiz? Perguntei se no se machucou, batendo a perna no banco. Que banco? redarguiu Cooley. Aquele, l em cima. Esbarrou nele e bateu a perna. Deve ter ferido a canela... Machuquei a canela? Eu? tornou o homem, divertido. No uma piada de mau

    gosto?Rompendo em nova risada, apalpou a perna, arregaou bem a cala e... estacou,

    assombrado; a canela sangrava-lhe; um talho rasgava-a de travs, de lado a lado umacontuso que nunca ser indolor, enquanto os homens puderem pensar e sentir.

    Alguns espectadores vizinhos voltaram-se, com curiosidade, a escutar Wells eCooley. Relataram mais tarde que Wells estava visivelmente abastrato, murmurava:

    Isso no lhe di realmente, Sam?

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    E dirigiu-se alvoroado a outro cidado de Hartford, Davi Clark. Este notou nos olhosdo dentista um brilho inslito, quase alucinado; ouviu-o pronunciar frases que ele prpriorepetiu mil vezes, mais tarde, com a importncia do homem que o acaso fez testemunhadum fato excepcional:

    Oua o que lhe digo, Clark! exclamou Wells. Acredito continuou com vozdiferente, quase sem inflexes que ser possvel extrair um dente e amputar uma perna,

    sem que o paciente, aspirando esse gs, sinta qualquer dor.A partir desse momento segundo referiu a Sra. Wells Horace Wells no falou.

    Esperou ansiosamente o fim do espetculo para se avistar com Colton, o senhor do gshilariante, que devia conhecer a fundo a preparao e a aplicao do protxido de azoto.Mal a funo terminou, Wells correu procura do empresrio. Pediu ao quase coetneoque fosse, na manh seguinte, ao seu consultrio com uma proviso de gs hilariante.Comunicou-lhe, sem reservas, a sua descoberta; e o entusiasmo que ento o inflamavacontagiou o pseudoprofessor. Emotivo como era, Colton logo vibrou da impacincia desubmeter a um teste o pretenso efeito anestsico do seu gs, usando-o numa extraodentria. Wells e Colton marcaram encontro no outro dia, onze de dezembro de 1844, sdez horas da manh, no gabinete do dentista. Wells acompanhou distraidamente a esposa

    at a sua residncia, esquecendo-se de lhe prodigalizar as atenes to prprias da suandole terna e afetiva. Nessa mesma noite procurou o seu assistente Riggs e informou-o oocorrido.

    Riggs no escondeu a estranheza que lhe causava a revelao do mestre; aindaassim, mostrou-se disposto a acreditar na descoberta. Ficaram os dois debatendo at oamanhecer os problemas que o argumento lhes sugeria.

    Seria preciso segurar ou amarrar o operado brio de gs hilariante para fazer aextrao? Ou podia-se torn-lo insensvel e incapaz de movimento, fazendo-o aspirar umaquantidade considervel de fluido?

    E a pessoa que aspirasse o gs at embriagar-se de morte segundo a expressotextual de Wells tornaria a despertar? Onde ficava o limite, alm do qual talvez

    espreitasse a morte? Era justo submeter um paciente desprevenido a uma experincia toarriscada? Por outro lado, haveria quem se prontificasse a experimentar, se em vez de oiludirem e enganassem, avisassem-no de que se sujeitava a uma tentativa de xito incerto?Que aconteceria se o paciente morresse?

    J amanhecia. H s um meio concluiu Wells. Tenho um dente do siso cariado...Horace Wells, o eterno sonhador, de ordinrio indeciso, sempre disposto a

    contemporizar, tomou de sbito uma deciso que estarreceu o assistente. Colton me far aspirar o gs at eu no sentir dor ou perder a conscincia e voc,

    John, extrair-me- o dente...No outro dia, pontualmente s dez da manh, estavam reunidos no gabinete do

    dentista cinco homens: Wells, Riggs, Colton, o irmo deste, que ajudaria a administrar o gs,e Sam Cooley.

    Wells acomodou-se na cadeira. Reinava na sala um silncio trepidante. Coltonaproximou dos lbios do dentista o balo cheio de gs, levou a mo direita torneirinha demadeira para iniciar a inalao. Riggs conforme referiu mais tarde obedecendo a umimpulso improviso, correu porta e abriu-a de par em par, preparando tudo para uma fuga,no caso de Wells, sob ao da forte dose de gs, ser acometido de delrio.

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    Colton girou a torneira; Wells tossiu um pouco e comeou a respirar profundamente.Riggs postou-se junto do mestre. Estava ali o nico depois do longo debate da noiteanterior que avaliava plenamente o risco a que se expunham, aventurando-se em terrenoinexplorado, to prximo das fronteiras da morte se Wells aspirasse o gs at perder aconscincia.

    Wells ofegava. O seu rosto, de ordinrio, alis, um tanto plido, estava lvido; tomou

    em seguida um tom azulado. Os seus olhos alteraram-se tornaram-se embaciados e fixos.Transido de horror, temendo uma morte sbita, Riggs curvou-se para o mestre.

    Wells moveu a mo direita, como para acenar; a mo recai-lhe, inerte. Ao mesmotempo, as suas plpebras fecharam-se e a cabea pendeu-lhe para trs.

    Riggs hesitou pelo espao dalguns segundos. Ouvia de certo uma voz interior adverti-lo de que no insistissem e tentassem de tudo para chamar a si o homem desacordado queali jazia como morto, antes que fosse muito tarde. Por outro lado, outra voz lhe recordava,sem dvida, que a sorte da descoberta de Wells dependia da sua ao resoluta.

    Riggs apanhou o botico. Acenou a Colton que afastasse o balo de gs dos lbios dodentista; abriu-lhe os maxilares que no opuseram resistncia; aplicou a torqus e sentiu todo pormenor que lhe ficou gravado na memria as pulsaes fortes do seu corao.

    Prendeu o dente na tenaz, abalou-o na gengiva, esperando a toda frao de segundo o gritolancinante, ou o gemido surdo, que ouvira milhares de vezes e que eram parte da rotinaquotidiana de sua atividade profissional. Mas Wells permanecia silencioso; Wells no semovia. Riggs puxou o ferro; quase logo o retirou com o malar ensangentado. Wells no semexeu; no resistira... mas respirava.

    O assistente olhou roda de si: todos calados, incapazes de articular um som; etodos os olhos se cravaram no rosto do paciente. Riggs continuava opresso por uma vagaansiedade. J voltavam, porm, s faces de Horace Wells as cores naturais. Ele respirouprofundamente, moveu os braos, as mos; abriu os olhos, levantou a cabea, viu o denteainda na torqus que pendia na mo de Riggs. E saram-lhe dos lbios trs frases:

    No senti nada... No me doeu mais do que se uma agulha me picasse...

    Finalmente, como os outros no falavam, concluiu: a descoberta mais estupenda do nosso tempo!

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    A datar desse dia, Horace Wells mudou totalmente. Viva em Hartford, cuidandoexclusivamente de sua descoberta. Esquecido da esposa e do lar, no percebendo, sequer,que o natal se aproximava e passara, encerrava-se no laboratrio, a preparar protxido deazoto, a experiment-lo em si mesmo, quente, frio e em vrias outras verses. Aspirava,tambm, outros gases e fluidos apresentados nos espetculos, entre ele o ter sulfrico,usado principalmente nos estados do sul. Este, porm, dadas as grandes dificuldades que

    opunha inalao, pereceu-lhe o menos adequado. E Wells decidiu-se pelo gs hilariante.Certificando-se por experincia prpria de que, apesar da lividz do rosto e dos lbios, ainalao do protxido de azoto no escondia perigos to graves como ele e Riggsacreditavam a princpio, Wells aplicou-o pela primeira vez a um cliente e, no espao depoucas semanas, isto , at janeiro de 1845, utilizou-o quatorze ou quinze vezes. Nosprprios dois casos em que no conseguiu uma narcose total, operou com sucesso. Dentroem pouco, Hartford inteira sabia que o dentista Wells praticava extraes indolores e aafluncia ao seu consultrio aumentava dia a dia. Mas a imaginao e os pensamentos deHorace Wells j ultrapassavam os limites estreitos da cidadezinha cientificamente destitudade importncia. Crescia no descobridor o desejo compreensvel de comunicar a asuadescoberta ao mundo inteiro; a esse mundo onde ecoavam aos milhares os gritos de dor

    dos que necessitava de tratamento dentrio e, em proporo muito maior, dos mrtires dasgrandes intervenes cirrgicas. Para Wells, na Nova Inglaterra, o centro mdico maisimportante era Boston, com a Escola Mdica de Harvard, o Hospital Geral de Massachusettse John Collins Warren, o cirurgio mais famoso dos estados dessa regio. No ambienteapertado de Hartford, Wells imaginava que a sua descoberta abriria caminho no mundo seele conseguisse provar em Boston, em presena de membros da Escola Mdica de Harvard edo Hospital Geral de Massachusetts, que uma operao indolor j no era um sonho e simuma realidade.

    Riggs narrou mais tarde como Wells preparou febrilmente a viagem a Boston. Apessoa que ali conhecia mais intimamente era Morton, o seu ex-discpulo, alguns anos maisnovo do que ele e acerca do qual ouvira dizer que, alm de exercer naquela cidade a

    profisso de dentista, estudava Medicina geral. O intuito de Morton era graduar-se emMedicina a fim de conseguir que a famlia Whitman, residente em Farmington, consentisseno seu casamento com a jovem Elisabeth, a filha da casa. Perfeitamente informado dosvrios modos de vida nos quais Morton tentara a sorte, antes de ir dar ao seu gabinetedentrio, Wells no tinha motivo para duvidar da semelhante versatilidade. Tanto maisacreditou que Morton pudesse manter ligaes com a Escola de Medicina, o Hospital Geralde Massachusetts ou pudesse conhecer o cirurgio Warren.

    A 15 ou 16 de janeiro de 1845, Horace Wells tomou o trem que o levaria a Boston.Trazia no corao ingnuo e confiante a certeza duma descoberta capaz de abalar o mundo.Procurou Morton e contou-lhe tudo.

    Segundo se depreende de depoimentos ulteriores de terceiros, Morton escutou a

    comunicao do mestre sem manifestar por ela um interesse especial. Tambm nomantinha relaes estreitas com o hospital nem com a Escola de Medicina. O seu pretensoestudo era de natureza espordica. Ele sugeriu, no entanto, que fossem juntos ao professorJackson, ao qual tinham recorrido, para uma consulta sobre uma questo tcnica deQumica, no tempo em que trabalhavam em sociedade. Morton no era um profissionalcom quaisquer interesses cientficos; no passava dum prtico jovem com uma pontinha deaudcia aventurosa e muito tino para as realidades da vida; dele deu prova sugerindo aWells essa visita a Jackson. Seria de grande vantagem que essa personagem cujo renome

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    em vrios ramos da cincia se estendia muito alm de Boston se interessasse pela novadescoberta.

    Nascido em 1805 em Plymouth, Massachusetts, discpulo da Escola Mdica deHarvard, da Sourbonne e da cole de Mines, na Frana, bem como de numerosos corifeusda Fsica, da Qumica e da Geologia em Paris e Viena, Jackson estava a bem dizer, no apogeude sua fama cientfica. Ns todos o conhecamos. Ele grangeara notoriedade, graas s suas

    funes de gelogo do Instituto Geolgico do Estado do Maine e de perito em geologia deNova Hampshire. Em 1844, explorava em Boston um laboratrio qumico e lecionavaQumica.

    Jackson, cientista de extraordinrio valor, era, porm, muito soberbo; e suaarrogncia com os leigos chega a ser insultante. Notoriamente orgulhoso, justamentenaquele tempo contestava a Morse, a inveno do telgrafo Morse, em bases mais do queduvidosas, reivindicando-a como sua. Pouco antes, tentara atribuir-se a autoria doutradescoberta importantssima no campo da Medicina. Tratava-se da sondagem gstrica domdico militar americano Beaumont.

    No dia 17 de janeiro de 1845, Wells e Morton apresentaram-se a Jackson; o primeirocom todo o seu corao crente e uma linguagem pouco hbil, mas entusiasta, exps a sua

    descoberta.Jackson escutava, absolutamente impassvel. Afinal, o dentista calou-se. Esperava

    uma palavra de aprovao ou, pelo menos, de interesse. Nem uma nem outra saram doslbios de Jackson, que se torceram, pelo contrrio, num trejeito desdenhoso.

    E a resposta foram poucas frases que nada mais eram do que uma exibio pedanteda cincia do professor sobre o problema da anestesia, a enumerao de quantas vezes ahumanidade tentou converter em realidade o sonho de eliminar a dor, e dos meiosempregados nessas tentativas durante milhares de anos: pio, mandrgora, cnhamo-da-ndia, hipnose mesmeriana. E Jackson proferiu a sentena:

    Tudo foi intil; tudo continuar a ser vo...A sua convico ntima, alis, era:

    Em todo caso, no caber a um mesquinho dentista de Hartford mudar o que querque seja no estado atual da cincia; no, a esse no...

    No custa imaginar o abalo moral sofrido por Wells, vista da irredutibilidade deJackson. Essa decepo contribuiu inegavelmente para cercear a j precria confiana em simesmo que o dentista trouxera a Boston. E ele encaminhou-se para o Hospital deMassachusetts, procura de John Collins Warren, com o germe da desconfiana no corao.

    Nunca cheguei a averiguar como Wells conseguiu estabelecer contato com Warren.Este no falou; nem falaram os seus assistentes. Como em muitos outros casos, a verdade ea clareza histricas naufragaram no conflito subseqente. No sei at que ponto Mortonprestou solidariedade a Wells. O certo que mais tarde numerosas testemunhaspretendiam saber que Morton assistira experincia de Wells no hospital e sustentaram

    que ele se retirara logo aps o insucesso da tentativa.De tudo o que se passou entre o dia 17 de janeiro e a experincia frustrada de Wells

    s possvel tirar concluses a posteriori. Elas baseiam-se na atitude de John Collins Warrenno dia em que este apresentou Horace Wells sob a cpula da sala de operaes. Se ento foicors, mas numa cortesia eivada de sarcasmo incrvel e de tantos preconceitos, fcilcalcular com que cepticismo arrasador ele acolheu Wells anteriormente.

    Seja com for, naquele dia fatdico, John Collins Warren entregou Horace Wells risota cruel dos espectadores; e o seu estilo frio, soberbo, seco, de falar e de proceder,

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    deitou inconscientemente por terra os poucos restos de confiana que ainda amparavamHorace Wells, contribuiu ocultamente para o seu descalabro.

    Mas quem dentre ns o sentiu, o percebeu, quando vertamos o nosso escrniosobre o infeliz e o vamos desaparecer lvido e encolhido?

    O SEGUNDO ATO

    Nunca hei de esquecer o dia 16 de outubro de 1846, porque ele marcou na minhavida um ponto sumamente decisivo, e pela sua parecena fantstica, vexante, com o dia emque, cerca de dois anos antes, vairamos o ruivo sonhador de Hartford, Horace Wells. Olocal era o mesmo; Warren tambm era o mesmo, apesar do rosto mais engelhado, doscabelos mais escorridos. A tribuna do velho anfiteatro era a mesma, com a diferena deestar insolitamente lotada por estudantes, mdicos e forasteiros, hspedes da cidade.Nesse intervalo de dois anos, eu me graduara; mas, em razo de compromissos de ordemparticular, ainda no me decidira a empreender uma viagem de estudo Europa. Meu paitambm no insistia. Eu trabalhava com o Dr. Cotting, em Boston; aparentemente para terensejo de praticar um pouco, na realidade e acima de tudo, para ficar naquela cidade, ouvirconferncias em Cambridge, freqentar o hospital e participar, em Grove Street, da festainaugural da nova Escola Mdica de Harvard muito adiantada para aquela poca marcada para o dia 18 de outubro.

    No dia 15, voltando duma visita ao Professor Hayward, Cotting trouxe uma notcia:concedera-se licena a um dentista para aplicar, numa ablao de tumor a ser praticada nodia seguinte, um medicamento novo que possibilitaria uma operao indolor. A novidadelogo me recordou, naturalmente, a experincia malograda de Horace Wells, qual tiveraocasio de assistir. Perguntei se o dentista no seria o prprio Wells. Cotting respondeunegativamente; no conseguiu, no entanto, lembrar-se do nome do novo narcotizador.

    Dado o meu pendor para os passatempos fteis, no pensei seno no divertimentoque fora para ns, os estudantes, a tentativa gorada de Wells; e, no mesmo instante, comoera natural e compreensvel, resolvi acompanhar Cotting ao hospital a fim de sertestemunha ocular da nova farsa.

    Nessa noite, outra pessoa, Calvino Ellis que gozava de certo prestgio entre oscondiscpulos por ser (com exceo de James Stones) o nico possuidor das estenografias edas relativas tradues exatas de todas as lies falou-me da nova experincia e anunciouque tambm compareceria. Era de crer que no dia 16 de outubro estivessem a par darealizao da nova tentativa todos quantos por ela se interessassem do ponto de vistamdico. Estou certo de que ningum tomava a srio a possibilidade de se alcanara a metaestupenda de eliminar a dor. E o que nos atraa por mais cruel e temerrio at que parea

    hoje era o espetculo iminente duma experincia gorada e das suas conseqnciascmicas.

    Portanto, na manh de 16 de outubro, entrando na sala de operaes Cotting e euencontramos a tribuna superlotada dum pblico fremente de expectativa e pronto a romperem vaias. No longe de ns esperava Isaac Galloupe que mais tarde escreveu algumasmemrias histricas mais importantes sobre esse dia. Vi o Dr. Slade, o Dr. Wellington, o Dr.Gay e muitos outros.

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    Era um dos dias de operaes cirrgicas. Vrios doentes esperavam, ou na atitudehabitual, mortalmente plidos de angstia, ou crispados duma resignao forada.

    Numa cadeira da arena operatria j aguardava um jovem tuberculoso de Bostoncom um tumor que lhe tomava a glndula sub-maxilar e uma parte da lngua. Chamava-seGilberto Abbot e no tinha no rosto a menor sombra de cor. Perto da cadeira vermelha,agrupavam-se os colegas de Warren, Hayward, o Dr. Gould, Townsend e Henrique J.

    Bigelow. Estav apresente o filho de Warren, Mason, bem como o Dr. Parkmann e o Dr.Peirson de Salem. Escrupulosamente exato; como sempre frio, desapaixonado, Warrenpronunciou a sua preleo sobre Abbot e a operao iminente, a extrao dum tumor domaxilar. Depois passou-se mais ou menos o que acontecera dois anos antes houve amesma inflexo sarcstica, a mesma expresso fisionmica soberba e glacial. Faltavamapenas minutos para as dez horas.

    Na prxima operao anunciou Warren experimentaremos o preparado dosenhor Morton, ao qual se atribui a pretenso surpreendente de tornar insensveis dor aspessoas que o aspiram.

    Ouvindo as ltimas palavras de Warren, julguei ter diante dos olhos Horace Wells empessoa. Eu pouco me preocupara, ento, com a sua histria; nem tinha conhecimento das

    suas relaes com Morton. Correndo o olhar em torno, encontrei algumas caras conhecidasque haviam estado ali dois anos antes. Os nossos olhos cruzaram-se, pestanejaramsignificativamente. Antes gozvamos o prximo espetculo, a nova farsa. Curtidos comoestvamos todos, a angstia terrvel estampada nas feies de Abbot no era obstculo aonosso divertimento.

    A princpio, nada aconteceu. Warren virava a cabea empertigada e formal, ora paraum lado, ora para outro, como se procurasse algum; aguava a vista, entre as plpebrasapertadas. Morton no aparecia. Esperamos cerca de quinze minutos.

    Esses quinze minutos foram certamente os mais extraordinrios que passei numauditrio minutos cheios da efervescncia do prazer antecipado, minutos de tenso.Warren passou-os todos, se bem me lembro, de relgio na mo, enviesando de minuto a

    minuto um olhar ao mostrador; na fisionomia impassvel transparecia-lhe, porm, a irritaodo homem mais que meticuloso. Ao termo dalguns minutos soaram os primeiros ditosirnicos. O zunzum crescia de minuto a minuto. Warren continuava imperturbvel. Ozunzum tornou-se murmrio. Warren olhou o relgio. Passou mais tempo; a troaaumentava constantemente.

    De improviso, a voz de Warren se fez ouvir estridente, escarninha: O Doutor Morton no veio; presumo, pois, que esteja ocupado noutra parte.Sofri uma decepo profunda. Dissipava-se a esperana dum espetculo, duma farsa.

    E, sem dvida, os outros sentiram a mesma desiluso. Mas, justamente no instante em queAbbot ia ser transportado para a cadeira operatria, a porta de entrada abriu-se comviolncia inslita. Todos os olhos voltavam-se naquela direo.

    No portal enquadrava-se, ofegando, suado, esfalfado, um moo duns trinta anos,vigoroso, de estatura mediana, rosto fino muito corado nesse momento e traos enrgicospelos cabelos negros. O recm-chegado olhou logo para a cadeira operatria com uns ohosque me pareceram extraordinariamente vivos e de olhar penetrante. Morton trazia na moesquerda um globo de vidro do tamanho duma cabea de criana com duas cnulas. Seguia-se esbaforido um homem visivelmente aflito.

    Warren voltou a cabea e, dos lbios que pareciam mais delgados e secos, saiu-lheesta frase:

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    O seu paciente est sua espera, senhor...Morton adiantou-se na arena. Desculpou-se, justificando o atraso em poucas

    palavras, sem acanhamento: o artfice que lhe fizera o instrumento quisera, ltima hoa,modificar alguma coisa. Da a demora.

    Dirirgiu-se, em seguida, para Abbot, que o aguardava apavorado. Morton procurouinfundir-lhe confiana:

    Aqui est um homem que aspirou a minha soluo e pode atestar que ela causabons efeitos.

    O homem citado virou-se, tmido, hesitando; mas acenou afirmativamente. Ainda tem medo? perguntou Morton a Abbot. No articulou este, com dificuldade.Criara confiana bastante para fazer o que Morton lhe sugeria.

    Ponha esta abertura na boca disse Morton, aproximando o globo de vidro dorosto do paciente e respire... Sim, agora vai tossir; mas isso passa. Respireprofundamente...

    Lembrava-me o ruivo Wells palavra por palavra. A risada pronta a estrugir picava-mea garganta. Eu esperava que Abbot soltasse o primeiro grito e Warren arrasasse em poucas

    palavras o profeta Morton. Respira profundamente repetia este.Divertindo-me de antemo com o que contava ver depois, eu no notava que

    Morton prolongava a inalao mais do que Wells; e torcia contra o dentista, porque labaixo, na arena, ele no mostrava absolutamente a timidez, a modstia de Horace Wells.Abbot emitiu um som surdo esquisito.

    Respire insistiu Morton Respire!Ainda no acabara de falar e j os lbios de Abbot se desprendiam da cnula. O lbio

    inferior espichou-se, amolecido; a cabea do enfermo descaiu de lado, no espaldar dacadeira; os olhos fecharam-se-lhe.

    Ainda nesse momento, eu no tinha a menor idia de que essa demonstrao fosse

    acabar com sucesso, que o impossvel se tornasse possvel, e o inconcebvel se convertesseem realidade. Continuava a observar pronto para a vaia. Vi Morton segurar o globo de vidro,endireitar-se, encarar Warren e retrucar, como uma resposta frase com que este oacolhera chegada:

    O seu paciente est espera, doutor Warren...Warren curvou-se em silncio para Abbot. Impassvel como sempre, arregaou os

    punhos e tomou o bisturi.E logo, com um movimento fulmneo, desferiu o primeiro golpe. Fizera-se na sala

    silncio absoluto; ouvir-se-ia perfeitamente a menor manifestao de sofrimento, umgemido, um suspiro.

    Mas o paciente no se movia, no se defendia. Perturbado, pela primeira vez,

    Warren curvou-se mais sobre o operado, praticou a segunda inciso, a terceira, muitoprofunda. Dos lbios de Abbot no saiu um som. Warren extraiu o tumor. Nada! Nem um ai!Warren cortou as ltimas aderncias, colocou a ligadura, passou a costumada esponja paralimpar o sangue...

    E nada... s silncio... sempre silncio...Warren endireitou-se, empunhando ainda o bisturi; estava mais plido que de

    costume e o trejeito sarcstico desaparecera-lhe dos lbios; faiscavam-lhe os olhos, cheiosda luz do prodgio misterioso, inconcebvel e, at instantes atrs, inacreditvel.

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    Isto pronunciou afinal o grande cirurgio no nenhum embuste...De improviso, nas suas faces engelhadas, ressequidas, cintilou um brilho mido.Warren, o soberbo, o lacnico, o corao empedernido... Warren, o homem avesso a

    toda manifestao de sentimento, chorava.

    Todos ns guardamos na memria determinadas imagens imutveis, indelveis. Umadas imagens inalterveis que se gravou no meu mundo das lembranas foi das lgrimas deWarren, naquele rosto endurecido por decnios de prtica da antiga cirurgia, naquelasfeies que manifestao alguma de sofrimento humano poderia perturbar. Aquelaslgrimas fluiram pelo espao breve dalguns segundos. Warren secou-as com um gestoimpaciente e abafou toda outra mostra de emoo, mandando remover Abbot e acomodaroutro paciente na cadeira operatria.

    O outro paciente sofria de dores na medula espinhal, contra s quais no se conhecianaquela poca nenhum remdio, salvo o ferro em brasa, a queimadura profunda, ao longoda espinha dorsal, que produzia um efeito revulsivo to doloroso quo intil na maioria dasvezes. Como bem de ver, no haveria prova mais convincente da eficincia do processode Morton do que a de eliminar as dores causadas pelo ferro incandescente. E o gs deMorton triunfou mais uma vez, enquanto o ferro aquecido a branco imprimia as suasmarcas nos msculos da nuca e do dorso do enfermo. Este suportou a tortura horrenda emsilncio, sem uma queixa.

    Warren tambm triunfou do instante em que a exuberncia da emoo lheameaava a compostura, o domnio de si mesmo. Viramos, em todo caso, as suas lgrimas.E, at hoje, no achei, para a significao realmente universal dessa manh de 16 deoutubro de 1846, smbolo maior do que as poucas lgrimas, prontamente enxutas, de JohnCollins Warren.

    O aconteciemnto dessa manh se resumira em poucos instantes; no dera a nenhumde ns lazer para refletir, para se afazer, para assimilar o fato estupendo. Tambm notnhamos a menor noo de que o remdio mgico de Morton era o ter sulfrico, isto ,um produto qumico desde longo tempo conhecido como o gs hilariante, utilizado para finsrecreativos; mas tambm aplicado em Medicina contra as afeces pulmonares. Isto s seveio a saber nos dias seguintes. Apesar disso, no escapou a nenhuma testemunha do fato,sucedido ante nossos olhos, que o acaso o fizera assistir a um acontecimento de talmagnitude que se difundiria no mundo todo com a rapidez do relmpago, que subverteriaas teorias e as prticas cirrgicas da terra inteira e as encaminharia noutra senda daevoluo. A dor, o empecilho mais tremendo, que at aquela data limitara inexoravelmentepelo espao de milnios o campo de ao da cirurgia, acabava de ser vencida.

    Abriram-se de par em par as portas duma nova era de extenso incalculvel, com

    possibilidade que ns e as inmeras geraes que nos precederam nem sequer poderamossonhar e cuja significao plena ainda escapava nossa percepo.

    E tudo isso teria como ponto de partida Boston e o hospital onde eu estudara eaprendera! Irradiar-se-ia do hospital que o Velho Mundo o mundo dominante, e, para ns,modelar, da cincia mdica, alem do oceano nem sequer conhecia, provavelmente porqueessa noo no estava altura de sua grandeza.

    J enquanto permanecia atordoado no meu lugar, enquanto Cotting em vo tentavafalar-me, eu tinha a impresso de estar vendo a nossa descoberta a caminha da Europa.

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    Eu via as cidades que tanto admirvamos, as fortalezas da cirurgia: Edinburgo, Londres,Paris, tomadas de assalto e conquistadas. A minha fantasia juvenil mostrava-me asexploses de entusiasmo na Europa. E, de repente, eu me compenetrei duma coisa: soara ahora de empreender a minha tantas vezes adiada viagem ao Antigo Continente e cabia-meparticipar quanto antes da conquista do Velho Mundo pela nossa descoberta, antes que oentusiasmo arrefecesse.

    Trecho digitado por Dr. Frankly Andrade, mdico cirurgio geral evascular; professor da disciplina de Bases da Cirurgia Vascular eHistria da Medicina da Faculdade de Cincias Mdicas de JooPessoa-PB.Contatos:www.angiolaser.com

    [email protected]