o registro do patrimônio imaterial e a anuência das comunidades

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O registro do patrimônio imaterial e a anuência das comunidades: o caso do Mercado Central de Belo Horizonte Corina Maria Rodrigues Moreira 1 Resumo: A política nacional de patrimônio imaterial pode ser considerada relativamente nova no Brasil (2000), ainda que fundada em uma série de ações que remontam às décadas anteriores. Ao se firmar como política pública, no entanto, o patrimônio imaterial coloca novas questões, algumas das quais esta apresentação procura apontar tomando por referência reflexões surgidas no decorrer de uma ação realizada desde o início de 2008 pela Superintendência do IPHAN em Minas Gerais: o debate com alguns setores sociais a respeito do caráter patrimonial do Mercado Central da cidade de Belo Horizonte. Dentre estas questões destacamos, em princípio, as que giram em torno da afirmação da “fraqueza” do Registro como instrumento legal de preservação – ele é insuficiente ou está ancorado em outras perspectivas de patrimônio e memória? Outra questão com que nos deparamos nesse processo diz respeito à premissa de diálogo com a comunidade que orienta as políticas do patrimônio imaterial não a questionando, torna-se no entanto necessário problematizar essa noção de comunidade, tendo em vista a diversidade de grupos (alguns bastante difusos, inclusive) que constituem, legitimamente, uma possível “comunidade Mercado Central”. Palavras-chave: patrimônio imaterial; registro; anuência da comunidade As políticas de patrimônio imaterial podem ser consideradas relativamente novas no Brasil, ainda que fundadas em perspectivas que remontam ao próprio estabelecimento deste campo no país, na década de 1930. Reconhecida pela Constituição de 1988 que afirma que o patrimônio cultural brasileiro constitui-se por bens de natureza material e imaterial que referenciam a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira a dimensão intangível do patrimônio já estava presente no anteprojeto que Mário de Andrade elaborou, naquela época, com vistas à organização do campo da preservação do patrimônio cultural no país. Incorporando a suas reflexões a necessidade de proteção a manifestações da cultura popular, do folclore e da cultura indígena, este anteprojeto antecipava, em décadas, algumas das principais referências que passariam a nortear as concepções e ações afeitas ao campo do patrimônio a partir, principalmente, da década de 1970. Essa dimensão, no entanto, foi excluída do Decreto-Lei 25/1937 para o qual havia sido encomendado o anteprojeto de Mário de Andrade que criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/SPHAN 2 e instituiu o tombamento como principal instrumento legal voltado à preservação do patrimônio histórico e artístico do país. No transcurso de décadas, as ações de preservação do patrimônio tiveram privilegiados, no Brasil, seus aspectos materiais, realizando-se de forma centralizada e pautada principalmente nas decisões 1 Bacharel em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), atualmente técnica em Ciências Sociais da Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Minas Gerais. 2 Hoje chamado de Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/IPHAN.

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O artigo aborda algumas questões relativas aos processos de patrimonialização de Mercados, estudando o caso do Mercado Central de Belo Horizonte.

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  • O registro do patrimnio imaterial e a anuncia das comunidades: o caso do Mercado

    Central de Belo Horizonte

    Corina Maria Rodrigues Moreira1

    Resumo: A poltica nacional de patrimnio imaterial pode ser considerada relativamente nova no Brasil (2000),

    ainda que fundada em uma srie de aes que remontam s dcadas anteriores. Ao se firmar como poltica

    pblica, no entanto, o patrimnio imaterial coloca novas questes, algumas das quais esta apresentao procura

    apontar tomando por referncia reflexes surgidas no decorrer de uma ao realizada desde o incio de 2008 pela

    Superintendncia do IPHAN em Minas Gerais: o debate com alguns setores sociais a respeito do carter

    patrimonial do Mercado Central da cidade de Belo Horizonte. Dentre estas questes destacamos, em princpio, as que giram em torno da afirmao da fraqueza do Registro como instrumento legal de preservao ele insuficiente ou est ancorado em outras perspectivas de patrimnio e memria? Outra questo com que nos

    deparamos nesse processo diz respeito premissa de dilogo com a comunidade que orienta as polticas do

    patrimnio imaterial no a questionando, torna-se no entanto necessrio problematizar essa noo de comunidade, tendo em vista a diversidade de grupos (alguns bastante difusos, inclusive) que constituem,

    legitimamente, uma possvel comunidade Mercado Central.

    Palavras-chave: patrimnio imaterial; registro; anuncia da comunidade

    As polticas de patrimnio imaterial podem ser consideradas relativamente novas no

    Brasil, ainda que fundadas em perspectivas que remontam ao prprio estabelecimento deste

    campo no pas, na dcada de 1930. Reconhecida pela Constituio de 1988 que afirma que

    o patrimnio cultural brasileiro constitui-se por bens de natureza material e imaterial que

    referenciam a identidade, a ao e a memria dos diferentes grupos formadores da sociedade

    brasileira a dimenso intangvel do patrimnio j estava presente no anteprojeto que Mrio

    de Andrade elaborou, naquela poca, com vistas organizao do campo da preservao do

    patrimnio cultural no pas. Incorporando a suas reflexes a necessidade de proteo a

    manifestaes da cultura popular, do folclore e da cultura indgena, este anteprojeto

    antecipava, em dcadas, algumas das principais referncias que passariam a nortear as

    concepes e aes afeitas ao campo do patrimnio a partir, principalmente, da dcada de

    1970.

    Essa dimenso, no entanto, foi excluda do Decreto-Lei 25/1937 para o qual havia

    sido encomendado o anteprojeto de Mrio de Andrade que criou o Servio do Patrimnio

    Histrico e Artstico Nacional/SPHAN2 e instituiu o tombamento como principal instrumento

    legal voltado preservao do patrimnio histrico e artstico do pas. No transcurso de

    dcadas, as aes de preservao do patrimnio tiveram privilegiados, no Brasil, seus

    aspectos materiais, realizando-se de forma centralizada e pautada principalmente nas decises

    1 Bacharel em Histria pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Mestre em Cincias Sociais pela

    Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC Minas), atualmente tcnica em Cincias Sociais da

    Superintendncia do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional em Minas Gerais. 2 Hoje chamado de Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional/IPHAN.

  • 2

    de especialistas e tcnicos, que definiam o que ser protegido e como se daria essa proteo

    (FONSECA, 2003, 2005; GONALVES, 1996; MINICONI, 2004; RUBINO, 1996, 2008).

    Por outro lado, entre as dcadas de 1940 e 1960, os debates a respeito da cultura popular e dos

    modos de vida tradicionais centraram-se na perspectiva do folclore, desvinculando-se da

    noo de patrimnio que orientava as propostas de Mrio de Andrade.

    Reapropriada pelas discusses sobre patrimnio, a temtica dos bens de natureza

    imaterial foi reacesa em meados dos anos 1970, no contexto das reflexes apontadas pela

    adoo de uma viso antropolgica da cultura e dos debates internacionais travados a esse

    respeito a partir de ento.3 Concomitante a isso se inicia um processo de descentralizao das

    polticas de patrimnio cultural no pas, com a criao dos rgos estaduais de preservao,

    assistindo-se, nos anos 1980, criao e expanso destes servios tambm em mbito

    municipal e apropriao desse debate por setores sociais cada vez mais amplos.

    nesse contexto que podemos inserir a Poltica Nacional do Patrimnio Imaterial,

    instituda em 20004 visando valorizar e dar visibilidade diversidade cultural brasileira e

    reconhecer como patrimnio prticas sociais e expresses culturais inseridas, historicamente,

    na vida cotidiana, como esclarece Weffort: (...) prticas culturais que so constantemente

    reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo para o grupo um vnculo do presente com o

    seu passado (WEFFORT, 2000). Ao se firmar como poltica pblica, no entanto, o chamado

    patrimnio imaterial indica novas questes, dentre as quais destacaremos as que giram em

    torno do carter do Registro como instrumento legal de salvaguarda dos bens de natureza

    imaterial e aquelas que dizem respeito premissa de anuncia da comunidade que orienta esta

    poltica em nvel federal. Para tanto tomaremos por referncia algumas reflexes surgidas no

    decorrer de uma ao realizada pela Superintendncia do IPHAN em Minas Gerais: o debate

    com alguns setores sociais a respeito do carter patrimonial do Mercado Central de Belo

    Horizonte.

    3 Conveno sobre a salvaguarda do patrimnio mundial, cultural e natural, Paris, 16 de novembro de 1972;

    Recomendao sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular, Paris, 15 de novembro de 1989; Carta de

    Mar Del Plata sobre o patrimnio intangvel, Mar Del Plata, junho de 1997; Carta de Fortaleza Patrimnio Imaterial: estratgias e formas de proteo, Fortaleza, novembro de 1997; Conveno para a salvaguarda do

    patrimnio cultural imaterial, Paris, 17 de outubro de 2003; Conveno sobre a Proteo e Promoo da

    Diversidade das Expresses Culturais, Paris, 20 de outubro de 2005. 4 Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e cria o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial.

  • 3

    O Mercado de Belo Horizonte

    O Mercado Municipal de Belo Horizonte foi criado em 1900 em um campo aberto e

    com barracas simples, onde hoje fica o terminal rodovirio da cidade. Em 1929 ele foi

    transferido para o lugar que ainda hoje ocupa no quadriltero compreendido pela Avenida

    Augusto de Lima, Rua Goitacazes, Rua Curitiba e Rua Santa Catarina, nos arredores da Praa

    Raul Soares.

    Funcionando como principal centro abastecedor da cidade, em princpio o Mercado

    abrigava uma centena de comerciantes, que expunham em tabuleiros suas mercadorias,

    diariamente compradas dos tropeiros que abasteciam a cidade e dos produtores que viviam

    nas fazendas e colnias agrcolas que a cercavam. Legumes, verduras, utenslios domsticos,

    carnes, frutas, laticnios e animais compartilhavam o mesmo espao com bares, lanchonetes,

    armazns, lojas de ferragem e farmcias o que no muito diferente de hoje, se formos

    pensar em termos de variedade, como veremos mais adiante , num espao para o qual

    convergia parte significativa do comrcio da cidade.

    Configurando-se, portanto, como lugar de grande trnsito de pessoas, de produtos,

    de ideias , o Mercado era ponto obrigatrio para qualquer consumidor, principalmente nas

    dcadas de 1930 e 1940. A partir dos anos 1950, no entanto, com o crescimento da cidade,

    comeam a surgir os primeiros investimentos privados no sistema de abastecimento da

    capital, inaugurando-se a fase supermercados em Belo Horizonte e alterando-se o status do

    Mercado Municipal.

    Em princpios dos anos 1960 esta alterao no lugar ocupado pelo Mercado no

    contexto de abastecimento da capital sofre mais um revs, aliado crise financeira que

    assolava os cofres pblicos municipais: em 1963, o ento prefeito Jorge Carone opta pela

    venda do Mercado Municipal, sem a garantia de que as atividades mercadeiras ali

    permanecessem. Aps grande mobilizao das associaes de classe ligadas ao comrcio e

    dos prprios mercadistas, os ocupantes originais, reunidos em cooperativa, arremataram o

    Mercado Municipal em 1964, com o compromisso de remodelar o espao em cinco anos,

    construindo ali um galpo coberto para abrigar as barracas.

    Desde ento, o Mercado agora com o nome de Mercado Central passou por vrias

    reformas em sua estrutura fsica e alteraes em suas ocupaes, ampliando suas instalaes e

    diversificando seus produtos, adaptando-se s transformaes vivenciadas pela

    metropolizao da capital mineira a partir dos anos 1970 e ao novo contexto de consumo que

    marcou o fim do sculo XX e incio do XXI. Atualmente contando com 400 lojas em seu

  • 4

    andar trreo e com estacionamento, capela e sede da administrao no piso superior, o

    Mercado constantemente identificado como um lugar referencial na cidade, tanto pelos

    produtos que vende quanto pela sociabilidade que propicia.

    Com seus corredores labirnticos, considerados tambm marca de sua especificidade e

    digamos, seu charme, o Mercado configura-se como uma das principais atraes da cidade,

    lugar do encontro e da diversidade de cores, sons, cheiros, pessoas e passagem obrigatria

    daqueles que a visitam.5 Conforme nos afirma Andrade:

    [O Mercado] reconhecido como um lugar identitrio e singular da cidade, seja

    pelos produtos que vende, seja pelo tipo de interao que proporciona. A

    comparao que sempre vem tona nas suas descries sua diferena em relao

    aos shopping centers. Primeiro, devido singularidade de seus produtos, muitos

    deles tpicos da cultura do interior do Estado e que s so encontrados l. Segundo,

    pela diversidade social e cultural de seus frequentadores, mas tambm pela forma de frequent-lo, comumente descrita como descontrada. (...) J internamente seus

    corredores conformam um labirinto onde fcil se perder, o que passou a ser uma

    das marcas da sua identidade, juntamente com os produtos que comercializa. Junta-

    se a isso a forte presena dos bares que servem bebidas e petiscos tpicos como

    fgado de boi acebolado e jil. Nos finais de semana seus frequentadores lotam os

    corredores em frente a esses bares. A ausncia de mesas propicia a interao entre

    os fregueses que, em p, em frente ao balco, conversam com quem est ao lado.

    (ANDRADE, 2008)

    Espao de grande fora simblica, geralmente caracterizado como vinculado

    tradio e nostalgia de um tempo passado e de lugares distantes como as cidades do

    interior de Minas, que o alimentam com seus produtos e guardam a referncia de uma

    sociabilidade pautada pela proximidade o Mercado hoje est marcado, tambm, pela

    renovao. Ao lado dos tradicionais produtos e servios a oferecidos queijos, produtos

    artesanais, frutas, fumo, ervas, animais, legumes, carnes, utilidades domsticas, doces, bares,

    farmcias e restaurantes podemos encontrar produtos energticos, caixas eletrnicos de

    bancos, lojas de sandlias de borracha, de brinquedos eletrnicos, de cosmticos, casas

    lotricas, sales de beleza... enfim, uma srie de novos usos que alimentam sua diversidade e

    possibilitam sua adequao a novos pblicos e s novas necessidades postas pelas

    transformaes econmicas vivenciadas pela cidade.

    No entanto, nem toda renovao considerada bem-vinda: em dezembro de 2007, com

    o fechamento da mais tradicional e antiga mercearia ali instalada o armazm Aymor, ali

    presente desde os anos 1940 e a possvel abertura de uma loja de grande rede de

    eletrodomsticos da cidade em seu lugar, surgiram diversas manifestaes contrrias na

    5 Em 1999, a Empresa de Turismo de Belo Horizonte patrocinou pesquisa realizada entre 2.952 moradores e

    visitantes de Belo Horizonte, na qual 83,2% apontaram o Mercado como o local mais conhecido da cidade.

  • 5

    capital mineira, especialmente na mdia.6 O poder pblico tambm se mobilizou, e o

    Ministrio Pblico Estadual apresentou demanda de que a Prefeitura de Belo Horizonte s

    fornecesse alvar de funcionamento referida loja de eletrodomsticos mediante

    posicionamento dos rgos municipais de preservao do patrimnio cultural e elaborao de

    critrios para ordenao deste espao no contexto urbano, levando em considerao os

    impactos que a presena de uma loja desse porte e com propaganda bastante agressiva na

    mdia poderia gerar na manuteno das caractersticas tradicionais do Mercado Central.

    Nesse contexto, representantes da Superintendncia do IPHAN em Minas Gerais

    reuniram-se tanto com agentes pblicos municipais da rea de preservao do patrimnio

    cultural da cidade quanto com dirigentes da Associao responsvel pela gesto do Mercado

    Central,7 com o intuito de abrir canais de dilogo com os diversos atores sociais envolvidos na

    conformao do Mercado e apresentar a proposta de realizao de inventrio cultural deste

    espao, como ser analisado a seguir.

    Mercado Central: memrias e perspectivas8

    Uma das categorias que organiza o campo do patrimnio imaterial a de lugares.9

    Esta categoria diz respeito aos espaos onde se concentram e reproduzem prticas culturais

    coletivas cotidianas ou excepcionais, vernculas ou oficiais que propiciam a elaborao de

    sentidos diversos para aqueles que os tm como referncia. Apropriados de formas variadas,

    esses espaos praas, mercados, santurios e feiras, por exemplo relacionam-se a prticas

    e atividades diversas ligadas ao mundo do trabalho, das trocas, do lazer, da religio, da

    expresso poltica, da sociabilidade, constituindo-se como locais de centralidade para a vida

    de determinados grupos sociais, em dado territrio.

    Marcado pela diversidade de frequentadores, de produtos, de relaes, de

    apropriaes, de representaes o Mercado Central de Belo Horizonte , como vimos, um

    lugar ao qual associada uma determinada identidade que diz respeito a Belo Horizonte e a

    6 Como, por exemplo, em matrias do Jornal Estado de Minas (11/12/2007, 15/12/2007 e 01/01/2008) e do Jornal Hoje em Dia (31/12/2007). 7 interessante destacar, aqui, que alguns meses antes de se tornar pblica a questo relativa abertura da

    referida loja de eletrodomsticos no Mercado, a Superintendncia do IPHAN em Minas Gerais teve aprovado

    projeto de inventariamento deste espao junto ao Departamento de Patrimnio Imaterial da instituio, no

    contexto dos trabalhos que vm sendo desenvolvidos por vrias outras Superintendncias em relao aos

    mercados de seus estados. 8 Nome dado ao Seminrio realizado pela Superintendncia do IPHAN em Minas Gerais no Mercado Central,

    em 17/04/2009. 9 As outras categorias so Celebraes, Formas de Expresso e Ofcios e Modos de Fazer.

  • 6

    Minas Gerais, sendo reconhecido por vrias pessoas e grupos sociais (no s da cidade ou do

    estado) como referncia de um determinado pertencimento. No entanto, apesar de ser um

    espao de uso pblico (ANDRADE, 2008), propriedade privada da Associao de seus

    lojistas, que apresentam certa resistncia frente aproximao das polticas pblicas de

    patrimnio cultural de seu negcio.

    No negando o valor cultural do Mercado, quando a Associao dos lojistas diz no

    aceitar a ao do poder pblico no que tange salvaguarda daquele espao indica a

    preocupao no de todo equivocada quanto ao seu congelamento, interrupo de sua

    dinmica de funcionamento e existncia garantida at o momento, segundo eles, pelos seus

    proprietrios, que a Associao diz representar. Esta lgica, ainda que comumente

    relacionada ao tombamento, no caso aqui indicado diz respeito prpria possibilidade de

    Registro desse espao, sendo a regulao dos seus usos uma das grandes preocupaes

    expressas pela Associao, que considera que essa regulao poderia impor limites a

    mudanas e adaptaes porventura necessrias manuteno da vitalidade do Mercado.

    No entanto, por outro lado h a percepo corrente de que o Registro um instrumento

    de pouca fora quanto a impor limites de qualquer natureza aos bens registrados, toda e

    qualquer ao do poder pblico devendo estar respaldada por um plano de salvaguarda

    construdo conjuntamente com os detentores do bem reconhecido. Afeito a bens que se

    configuram sobretudo como processos, dinmicos, e quilo que se costuma chamar cultura

    viva (INVENTRIO, 2000), o registro pressupe a possibilidade da transformao, e at do

    desaparecimento do bem no estabelecendo, por si mesmo, limites para os bens nominados

    como patrimnio cultural. Por que registrar um bem, ento? E por que tanto receio dos

    proprietrios do Mercado quanto ao reconhecimento desse espao como um lugar? Ainda

    que no caso do Mercado Central a ao do IPHAN no tenha se voltado para o seu Registro10

    mas to somente para a tentativa de realizao de seu Inventrio Cultural,11 essa proposta de

    inventariamento mobilizou as resistncias da Associao de lojistas, que consideraram o

    Inventrio como um passo necessariamente vinculado ao Registro do bem, colocando-se

    firmemente contra sua realizao.

    Mas h que se levar em conta, no entanto, o carter pblico e coletivo do direito da

    populao preservao daqueles bens que considera referenciais para sua memria e

    10 A discusso sobre o Registro e/ou Tombamento do Mercado foi travada, sobretudo, entre a Associao do

    Mercado e a Diretoria de Patrimnio Cultural da Fundao Municipal de Cultura de Belo Horizonte. 11 A noo de inventrio cultural consolidou-se, no IPHAN, atravs do desenvolvimento de uma metodologia

    prpria voltada produo de conhecimentos sobre as referncias culturais presentes em determinados

    territrios, o Inventrio Nacional de Referncias Culturais INRC.

  • 7

    identidade considerando-se inclusive, no caso do Mercado, que apesar de propriedade

    privada este um espao de uso pblico e a obrigao do poder pblico frente a este direito,

    tomando-se por referncia as reflexes de Marilena Chau a respeito do direito cultura:

    Trata-se, pois, de uma poltica cultural definida pela idia de cidadania cultural, em

    que a cultura no se reduz ao suprfluo, ao entretenimento, aos padres do

    mercado, oficialidade doutrinria (...), mas se realiza como direito de todos os

    cidados (...) porque, no exerccio do direito cultura, os cidados, como sujeitos

    sociais e polticos, se diferenciam, entram em conflito, comunicam e trocam suas

    experincias, recusam formas de cultura, criam outras e movem todo o processo cultural. (CHAU, 2006: 138)

    Estabelece-se nesse contexto um impasse que, no entanto, indica tambm algumas das

    transformaes que vm marcando a poltica de patrimnio cultural nas ltimas dcadas,

    levando em considerao que tradicionalmente, no Brasil, os processos de patrimonializao

    afirmavam-se sobre decises centralizadas e advindas de tcnicos e especialistas (RUBINO,

    2008), nos quais a escuta, o dilogo e a negociao estavam pouco presentes. Assim,

    referenciada por toda a histria dos rgos preservacionistas no Brasil e pela conjuntura de,

    digamos, comoo ocasionada pela entrada da referida loja de eletrodomsticos no Mercado,

    essa negativa abriu espao para a reflexo a respeito de uma das prerrogativas da poltica de

    patrimnio imaterial: a de que a comunidade deve no s participar ativamente da salvaguarda

    de um bem, mas anuir s aes do poder pblico nesse sentido, firmando-se como sua

    legtima detentora e responsvel pela sua existncia.

    Essa prerrogativa pressupe a explicitao dos critrios e dos processos por meio dos

    quais se constituem e se legitimam os marcos, lugares e cenrios da memria social

    (ARANTES NETO, 2000: 9) e a efetivao de dinmicas que privilegiem a parceria e o

    dilogo entre o poder pblico e os detentores do bem cultural foco de suas atenes. No

    entanto, como ficam os outros atores e grupos sociais que, tambm eles, conformam esse

    espao, nele convivendo cotidianamente e imprimindo-lhe o carter de bem cultural que o

    vem caracterizando nos ltimos anos? Eles no so, tambm, parte dessa comunidade que o

    sustenta, partcipes de sua constituio como referncia cultural? A recusa de um desses

    atores sociais no caso aqui a Associao dos lojistas no exclui todos esses outros atores

    do processo de constituio desse bem cultural, negando a eles o direito a terem

    salvaguardado um lugar caro sua identidade? Como o poder pblico deve se posicionar,

    ento, nessa situao?

    No pretendemos, com estas questes, negar o carter referencial da

    participao/anuncia da comunidade detentora nos processos de patrimonializao de bens

  • 8

    culturais no caso aqui, especificamente, de bens de natureza imaterial mas indicar os

    conflitos, as ranhuras, os novos trnsitos, demandas e situaes que surgem no contexto de

    redefinio dos lugares do poder pblico e da chamada comunidade (FORTUNA, 2008) na

    salvaguarda do patrimnio cultural. Porque alm das questes levantadas acima, recolocam-

    se tambm velhas questes, ainda mal resolvidas no mbito das polticas de patrimnio

    cultural no pas: quem define, quais critrios devem orientar a nominao (BOURDIEU,

    1974, 1998) de um determinado bem como patrimnio, enfim, patrimnio para quem?

    (MINICONI, 2004)

    Lembrando que este um processo em movimento, o caminho traado at o momento

    pela Superintendncia do IPHAN em Minas Gerais o de se colocar como mais um dos

    atores que possui, no entanto, um papel especfico de instrumento para a garantia de direitos

    coletivos no que tange memria, em territrio nacional envolvidos na dinmica de

    identificao e reconhecimento do Mercado Central de Belo Horizonte como um lugar que

    diz respeito a uma comunidade diversamente constituda, que tomam esse espao como

    referncia para a produo de sentidos de temporalidade, pertencimento e sociabilidade. Em

    um dilogo articulado de forma direta com a Associao do Mercado e com a poltica

    municipal de patrimnio cultural, mas tambm com outros integrantes dessa comunidade

    frequentadores, lojistas, poder judicirio, universidade, mdia, outros Mercados brasileiros e

    tomando por referncia a prerrogativa da participao de cada vez mais setores sociais nos

    debates que rondam os processos de patrimonializao, a proposta inicial de inventariamento

    do Mercado foi reelaborada, desdobrando-se em aes que visam ampliao e publicizao

    deste debate.12

    Consideramos bastante significativo, nesse sentido, tanto o movimento gerado no seio

    da prpria Associao do Mercado em direo salvaguarda desse espao, com a elaborao

    de um regimento interno que prev alguns parmetros para suas ocupaes e usos,13 quanto o

    estabelecimento de um canal constante de dilogo com a Associao, que sinaliza a abertura

    para a ampliao deste debate com os mercadeiros e comea a demonstrar interesse na

    realizao do inventariamento do Mercado ao de significativa relevncia para a

    salvaguarda de bens culturais referenciais para a memria e identidade dos grupos sociais

    12 As aes desenvolvidas pela Superintendncia do IPHAN em Minas Gerais junto ao Mercado Central foram,

    at o momento, a realizao do Seminrio Mercado Central: memrias e perspectivas e o registro audiovisual de depoimentos de diversos atores sociais sobre este espao. O Seminrio e os depoimentos servem de base para

    produo (em andamento) de um livreto, acompanhado de um vdeo-documentrio, sobre o Mercado Central. 13 Destacando-se, aqui, que percebemos como grande motivao para tal movimento a atuao do Conselho

    Deliberativo do Patrimnio Cultural do Municpio de Belo Horizonte (CDPCMBH), que formou uma comisso

    de conselheiros e membros da associao do Mercado para acordar alguns parmetros de atuao nesse processo.

  • 9

    (INVENTRIO, 2000). So dados sinais, portanto, no sentido de reconhecimento de que,

    assim como o poder pblico, a Associao no nica e exclusivamente a instncia que tem o

    poder de definir os rumos de um espao que diz respeito a um espectro bem mais amplo de

    sujeitos sociais e interesses do que os relativos ao negcio mercado ou s aes muitas

    vezes elitistas e excludentes das polticas de patrimnio no pas (FONSECA, 2003, 2005;

    GONALVES, 1996; MINICONI, 2004; RUBINO, 1996), o que nos indica a necessidade de

    desnaturalizao dos conceitos de patrimnio cultural e de percepo de seu carter

    construdo e inventado (GONALVES, 2005; ARANTES NETO, 2000) construo esta

    que no pode prescindir de sua dimenso coletiva e pblica.

    REFERNCIAS

    ANDRADE, Luciana Teixeira de. Espaos pblicos, semipblicos e patrimnios imateriais

    das cidades contemporneas. Belo Horizonte, 2008, mimeo. Trabalho escrito para o Simpsio

    Latino-americano Cidade e Cultura: reflexes e projetualidade hoje SILLAC_2008, Santa F, Argentina, outubro de 2008.

    ARANTES NETO, Antnio Augusto. Paisagens paulistanas: transformaes do espao

    pblico. Campinas: Ed. Unicamp; So Paulo: Imprensa Oficial, 2000.

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