o que resta da ditadura
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O que resta da ditadura
Maria Carolina BissotoPs-graduada em Direito Constitucional pela Pontifcia Universidade Catlica de
Campinas (PUC-Campinas)[email protected]
TELES, Edson, SAFATLE, Vladimir, O que resta da ditadura. So Paulo: Boitempo,
2010. (Coleo Estado de Stio).
No livro O que resta da ditadura, organizado por Edson Teles e Vladimir
Safatle, se procura responder quais so os resqucios ditatoriais presentes na sociedade
brasileira. A obra composta por quinze artigos, que enfocam o tema pelo vis
histrico, poltico, jurdico e social.
Edson Teles doutor em Filosofia Poltica pela Universidade de So Paulo,
professor de tica e Direitos Humanos do curso de Ps-Graduao da Universidade
Bandeirante de So Paulo (UNIBAN). Vladimir Safatle professor livre-docente do
Departamento de Filosofia da USP, professor-visitante das Universidades de Paris VII e
Paris VIII.
No artigo Militares e Anistia no Brasil: um dueto desarmnico, Paulo Ribeiro
da Cunha, traa um panorama das quarenta e oito anistias decretadas no Brasil,
enfatizando seu carter de excluso ideolgica e das classes subalternas dos militares.
Para ele a marca dos processos de anistias brasileiras a conciliao e a parcialidade.
O artigo Relaes Civil-Militares: o legado autoritrio da Constituio
Brasileira de 1988, escrito pelo cientista poltico Jorge Zaverucha, discute que mesmo
aps a promulgao da Constituio Federal de 1988 que inaugurou uma nova ordem
democrtica, tida como uma Constituio cidad, muitas leis autoritrias foram
mantidas em grande parte. Alm disso, alguns artigos constitucionais mantm algumas
prerrogativas militares nada democrticas, prevendo que os militares possuem o poder
constitucional de garantir o funcionamento do Executivo, do Legislativo e do Judicirio,
a lei e a ordem, e, que no caso desta ordem ser violada (cuja definio acaba por ficar a
cargo dos militares) se possa legalmente no respeitar uma determinada deciso, ou
mailto:[email protected]:[email protected] -
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seja, os militares podem suspender o ordenamento sem prestar contas a ningum.
Assim, o que se v uma democracia com resqucios autoritrios.
Em O Direito Constitucional passa, o Direito Administrativo Permanece: a
persistncia da estrutura administrativa de 1967, Gilberto Bercovici demonstra que as
estruturas administrativas estatais montadas durante a ditadura militar continuam
existindo, no tendo sido alterada as leis decretadas naquele perodo, embora a
Constituio tenha sido alterada. Portanto, o aparato estatal no foi adaptado para um
Estado democrtico, no qual geralmente a base do direito administrativo a
Constituio.
No artigoDireito Internacional dos Direitos Humanos e Lei de Anistia: o caso
brasileiro, a jurista Flvia Piovesan discute o processo de internacionalizao dosdireitos humanos e a relao entre o direito internacional dos direitos humanos e a Lei
de Anistia (Lei 6683/1979) brasileira. Ela defende o afastamento da interpretao que a
Lei de Anistia brasileira foi uma lei de mo dupla, beneficiando as vtimas e os
torturadores. Para ela necessria a implantao dos mecanismos da justia de transio
j que esta fortaleceria o Estado de Direito, a democracia e o regime dos direitos
humanos, no causando nenhum risco, ameaa ou instabilidade democrtica. Ela
finaliza declarando que o Estado de Direito e a democracia exigem o respeito aosdireitos humanos e que a implantao dos mecanismos da justia de transio uma
obrigao do Estado brasileiro em face das obrigaes assumidas internacionalmente.
Em O Processo de Acerto de Contas e a Lgica do Arbtrio, Glenda
Mezarobba discute acerca da implantao dos chamados mecanismos da Justia de
Transio no Brasil. Segundo ela h quatro obrigaes que um Estado deve cumprir
aps um perodo de violaes de direitos humanos: investigar, processar e punir os
violadores de direitos humanos; revelar a verdade para as vtimas, seus familiares e sociedade; afastar os criminosos dos rgos estatais e oferta de reparaes. Dessas
quatro obrigaes, o Brasil somente estaria cumprindo uma que a oferta de reparaes,
sendo que os demais deveres ou no foram cumpridos ou foram somente de maneira
acessria. Para ela, apesar dos mecanismos de reparao estarem sendo implantados,
eles mantm a memria do esquecimento presente na Lei de Anistia, j que no se
envolve toda a sociedade e no se trata igualmente todas as vtimas. O que restaria da
ditadura a arbitrariedade dos seus atos.
Em Debat: Rev. Dig., ISSNe 1980-3532 , Florianpolis ,n 4 , p. 142-147, 2010.
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Maria Rita Kehl em Tortura e Sintoma Socialdiscute acerca das conseqncias
causadas a nosso pas pela falta de punio dos torturadores da ditadura militar. Para
ela, o fato do Brasil ter perdoado os militares sem ter lhes exigido o reconhecimento dos
crimes cometidos nem pedido de perdo causou a naturalizao da violncia como um
sintoma social. Os opositores da ditadura tenham sido torturados ou no, no deixaram
de elaborar seus traumas, entretanto, os militares se recusam a enfrentar o debate sobre a
questo da tortura, com o apoio de uma grande parte da populao, que no somente
aceita a existncia da tortura como acha que esta um mal necessrio.
Em Escritas da Tortura, Jaime Ginzburg discute como a tortura tratada em
textos jurdicos e literrios, sendo que nos primeiros a marca a objetividade, a falta de
conotao sentimental, tornando a tortura algo indescritvel, intolervel em algopossvel de ser analisado, classificado; j nos textos literrios se conseguiria tratar com
mais fidelidade do impacto da violncia que marca queles que sofreram tortura.
Beatriz de Moraes Vieira, no artigo As Ciladas do Trauma: consideraes
sobre histria e poesia nos anos 1970 explica sobre os impactos dos traumas causados
pelas violncias praticadas no decorrer do regime militar e como os textos literrios e/ou
histricos abordam o tema.
No artigo O Preo de uma Reconciliao Extorquida, Jeanne Marie Gagnebinfoca na questo do esquecimento, visando delimitar seu significado. Para ela a
imposio do esquecimento, como uma forma de ignorar um fato, acaba por impor uma
nica forma de lembrar e assim esta memria vai lutar para retornar. O passado no
passa, fica sempre presente. Ao no esclarecer os fatos, no entregar os corpos dos
desaparecidos polticos, ao contrrio de gerar o esquecimento, se gera a lembrana
constante. Para se sair deste ciclo, o que se deve fazer o esclarecimento do presente
para se evitar a repetio de novas formas de excluso e de genocdio.Brasil, a ausncia significante poltica (uma comunicao) de Tales AbSber
discute sobre a necessidade da punio das torturas e demais atos lesivos aos direitos
humanos praticados no decorrer do regime militar pois estes fatos deixaram marcas em
nossa vida contempornea. Para ele o desejo de reparao e justia em relao aos que
so violentados aos seus direitos surgiu h muito tempo no Brasil, entretanto, ele no se
torna algo forte, no se espalha por toda a sociedade. O que restou da ditadura em sua
opinio foi absolutamente tudo, menos a prpria ditadura. Assim, continuamos um pas
excludente, autoritrio, com uma grave desigualdade social, preservando os direitos de
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uma elite em detrimento dos mais pobres. O Exrcito continua a sonegar informaes e
quando confrontado com as violaes de direitos humanos praticadas no regime militar
ou se manifesta pela improcedncia dessa discusso, pois as questes teriam sido
superadas pela Lei de Anistia ou estas questes so revanchistas e tem de ser derrotadas.
Portanto, nossa democracia foi construda a base da violao da dignidade humana e
essa continua a ser aviltada.
Em 1964, o Ano que no terminou de Paulo Eduardo Arantes se discute sobre a
ruptura causada no Brasil com o golpe de 1964, dialogando com os outros textos do
livro. Ao fazer com que a violncia seja uma poltica de Estado, que o desaparecimento
poltico se torne uma prtica, que a tortura seja instaurada, que os empresrios dem
dinheiro para a represso, ou seja, ao se negar uma srie de direitos como algo rotineiro,se causou uma ruptura no pas que vinha sendo construdo, e esta ruptura perdura at
hoje. O que resta da ditadura no seriam somente as contas a pagar, a impunidade como
uma delas, mas principalmente o governo pelo medo instaurado com o golpe de 1964 e
que perdura ainda hoje com a questo da segurana e a normalizao da violncia
poltica.
Vladimir Safatle em Do Uso da Violncia contra o Estado Ilegal foca a
questo da permisso de se rebelar contra um Estado que usurpou o poder. O autorafirma que Auschwitz o nome do genocdio industrial que inaugurou no somente o
desejo de eliminar um povo com mentalidade de um administrador de empresas, mas
principalmente o desejo de apagar este acontecimento. O que se procurou exterminar
no foram somente vidas humanas, mas a exigncia de justia. Assim o totalitarismo
no um aparato poltico que visa eliminar algum setor da sociedade que questione
sobre a legalidade do poder, ele visa tambm eliminao simblica, eliminar o nome
desses opositores. A existncia de desaparecidos polticos, no permite que se enterreum corpo, e, ao no se enterrar algum o que se visa apag-lo da memria, suprimir
sua existncia. Em seguida, o autor afirma que h uma tese que o esquecimento do
passado seria o preo a ser pago para a garantia da estabilidade democrtica. Aqueles
que defendem esta tese utilizam dois argumentos: que a tortura e assassinato no era
uma prtica sistemtica por parte do Estado, ou que houve torturas e assassinatos, mas
se estaria em guerra contra o comunismo e que o outro lado tambm teria praticado
crimes. Entretanto, esta tese no pode ser seguida, porque crimes contra a humanidade
so crimes praticados pelo Estado contra seus cidados e no aes feitas contra um
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Estado ilegal. Aes contra um Estado ilegal so sempre legais, pois todo cidado tem
direito rebelio, ou seja, a resistncia contra um Estado ilegal um direito. Ao insistir
em continuar a negar os acontecimentos, o Brasil deixa de construir a democracia.
Janana de Almeida Teles discute em Os Familiares de Mortos e
Desaparecidos Polticos e a Luta por Verdade e Justia no Brasil acerca da luta dos
familiares para que sejam esclarecidos os crimes praticados pelo Brasil durante o
perodo do regime militar. A luta se deu em vrias frentes: no decorrer da ditadura por
meio de denncias ao exterior (no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e
na Comisso Interamericana de Direitos Humanos), das missas de protesto na catedral
da S, da CPI dos Direitos Humanos, no Judicirio, na luta pela anistia; atualmente, o
Judicirio e a OEA continuam a ser frentes de lutas, demonstrando que a busca pelaverdade e justia ainda no foi vencida.
No artigo Entre Justia e Violncia: Estado de Exceo nas Democracias do
Brasil e da frica do Sul, Edson Teles afirma que as democracias nascidas no sculo
XX so herdeiras de regimes autoritrios ou totalitrios, e, desta forma, a marca destes
novos regimes desfazer as injustias do passado. O autor analisa comparativamente a
transio ocorrida no Brasil, ps-regime militar e na frica do Sul, ps-regime do
Apartheid, focando em suas semelhanas e diferenas. Ele se questiona comoconvivermos com um passado doloroso num presente democrtico e administrarmos os
conflitos que no se encerram com a passagem de um governo autoritrio para um
democrtico. O Brasil, ao contrrio de outros pases no enfrentou a questo totalmente,
restando em nosso pas algo do Estado de exceo imposto no regime militar, este algo
violncia que se mantm como marca da impunidade.
Ricardo Lsias em Dez Fragmentos sobre a Literatura Contempornea no
Brasil e na Argentina ou de como os Patetas sempre adoram o discurso do Poderdiscute sobre a produo literria no Brasil e na Argentina iniciadas aps o fim dos
regimes militares nestes pases. O autor afirma que na dcada de 1980 tanto no Brasil
quanto na Argentina comeou-se a discutir sobre liberdade e o que se fazer com a
herana dos anos de exceo, mas enquanto os textos argentinos se preocupavam em
criticar as instituies no caso brasileiro isto no se via (e continua a no se ver). Na
dcada de 1990 na Argentina se comeou a discutir o trauma causado pelo regime
militar, j no Brasil o perodo de ditadura militar foi esquecido ou somente tratado em
poucos textos. Nesta primeira dcada do sculo XXI no se v na literatura brasileira
Em Debat: Rev. Dig., ISSNe 1980-3532 , Florianpolis ,n 4 , p. 142-147, 2010.
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discusses sobre o pas, sobre o que resta da ditadura, sobre a punio dos crimes, sobre
as instituies que continuam intocveis mostrando um pacto com essas, demonstrando
com isto que o discurso que tenta esquecer as violaes aos direitos humanos praticadas
pelos militares possui uma fora muito grande.
Concluindo, por meio de anlises polticas, jurdicas, sociais e literrias o livro
demonstra que a ditadura e suas marcas esto mais presentes no Brasil do que se
desejaria e que, mesmo aps vinte e cinco anos do trmino da ditadura militar a
democracia ainda no est consolidada.
Em Debat: Rev. Dig., ISSNe 1980-3532 , Florianpolis ,n 4 , p. 142-147, 2010.
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