o que resta da ditadura

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  • 7/30/2019 O que resta da ditadura

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    O que resta da ditadura

    Maria Carolina BissotoPs-graduada em Direito Constitucional pela Pontifcia Universidade Catlica de

    Campinas (PUC-Campinas)[email protected]

    TELES, Edson, SAFATLE, Vladimir, O que resta da ditadura. So Paulo: Boitempo,

    2010. (Coleo Estado de Stio).

    No livro O que resta da ditadura, organizado por Edson Teles e Vladimir

    Safatle, se procura responder quais so os resqucios ditatoriais presentes na sociedade

    brasileira. A obra composta por quinze artigos, que enfocam o tema pelo vis

    histrico, poltico, jurdico e social.

    Edson Teles doutor em Filosofia Poltica pela Universidade de So Paulo,

    professor de tica e Direitos Humanos do curso de Ps-Graduao da Universidade

    Bandeirante de So Paulo (UNIBAN). Vladimir Safatle professor livre-docente do

    Departamento de Filosofia da USP, professor-visitante das Universidades de Paris VII e

    Paris VIII.

    No artigo Militares e Anistia no Brasil: um dueto desarmnico, Paulo Ribeiro

    da Cunha, traa um panorama das quarenta e oito anistias decretadas no Brasil,

    enfatizando seu carter de excluso ideolgica e das classes subalternas dos militares.

    Para ele a marca dos processos de anistias brasileiras a conciliao e a parcialidade.

    O artigo Relaes Civil-Militares: o legado autoritrio da Constituio

    Brasileira de 1988, escrito pelo cientista poltico Jorge Zaverucha, discute que mesmo

    aps a promulgao da Constituio Federal de 1988 que inaugurou uma nova ordem

    democrtica, tida como uma Constituio cidad, muitas leis autoritrias foram

    mantidas em grande parte. Alm disso, alguns artigos constitucionais mantm algumas

    prerrogativas militares nada democrticas, prevendo que os militares possuem o poder

    constitucional de garantir o funcionamento do Executivo, do Legislativo e do Judicirio,

    a lei e a ordem, e, que no caso desta ordem ser violada (cuja definio acaba por ficar a

    cargo dos militares) se possa legalmente no respeitar uma determinada deciso, ou

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    seja, os militares podem suspender o ordenamento sem prestar contas a ningum.

    Assim, o que se v uma democracia com resqucios autoritrios.

    Em O Direito Constitucional passa, o Direito Administrativo Permanece: a

    persistncia da estrutura administrativa de 1967, Gilberto Bercovici demonstra que as

    estruturas administrativas estatais montadas durante a ditadura militar continuam

    existindo, no tendo sido alterada as leis decretadas naquele perodo, embora a

    Constituio tenha sido alterada. Portanto, o aparato estatal no foi adaptado para um

    Estado democrtico, no qual geralmente a base do direito administrativo a

    Constituio.

    No artigoDireito Internacional dos Direitos Humanos e Lei de Anistia: o caso

    brasileiro, a jurista Flvia Piovesan discute o processo de internacionalizao dosdireitos humanos e a relao entre o direito internacional dos direitos humanos e a Lei

    de Anistia (Lei 6683/1979) brasileira. Ela defende o afastamento da interpretao que a

    Lei de Anistia brasileira foi uma lei de mo dupla, beneficiando as vtimas e os

    torturadores. Para ela necessria a implantao dos mecanismos da justia de transio

    j que esta fortaleceria o Estado de Direito, a democracia e o regime dos direitos

    humanos, no causando nenhum risco, ameaa ou instabilidade democrtica. Ela

    finaliza declarando que o Estado de Direito e a democracia exigem o respeito aosdireitos humanos e que a implantao dos mecanismos da justia de transio uma

    obrigao do Estado brasileiro em face das obrigaes assumidas internacionalmente.

    Em O Processo de Acerto de Contas e a Lgica do Arbtrio, Glenda

    Mezarobba discute acerca da implantao dos chamados mecanismos da Justia de

    Transio no Brasil. Segundo ela h quatro obrigaes que um Estado deve cumprir

    aps um perodo de violaes de direitos humanos: investigar, processar e punir os

    violadores de direitos humanos; revelar a verdade para as vtimas, seus familiares e sociedade; afastar os criminosos dos rgos estatais e oferta de reparaes. Dessas

    quatro obrigaes, o Brasil somente estaria cumprindo uma que a oferta de reparaes,

    sendo que os demais deveres ou no foram cumpridos ou foram somente de maneira

    acessria. Para ela, apesar dos mecanismos de reparao estarem sendo implantados,

    eles mantm a memria do esquecimento presente na Lei de Anistia, j que no se

    envolve toda a sociedade e no se trata igualmente todas as vtimas. O que restaria da

    ditadura a arbitrariedade dos seus atos.

    Em Debat: Rev. Dig., ISSNe 1980-3532 , Florianpolis ,n 4 , p. 142-147, 2010.

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    Maria Rita Kehl em Tortura e Sintoma Socialdiscute acerca das conseqncias

    causadas a nosso pas pela falta de punio dos torturadores da ditadura militar. Para

    ela, o fato do Brasil ter perdoado os militares sem ter lhes exigido o reconhecimento dos

    crimes cometidos nem pedido de perdo causou a naturalizao da violncia como um

    sintoma social. Os opositores da ditadura tenham sido torturados ou no, no deixaram

    de elaborar seus traumas, entretanto, os militares se recusam a enfrentar o debate sobre a

    questo da tortura, com o apoio de uma grande parte da populao, que no somente

    aceita a existncia da tortura como acha que esta um mal necessrio.

    Em Escritas da Tortura, Jaime Ginzburg discute como a tortura tratada em

    textos jurdicos e literrios, sendo que nos primeiros a marca a objetividade, a falta de

    conotao sentimental, tornando a tortura algo indescritvel, intolervel em algopossvel de ser analisado, classificado; j nos textos literrios se conseguiria tratar com

    mais fidelidade do impacto da violncia que marca queles que sofreram tortura.

    Beatriz de Moraes Vieira, no artigo As Ciladas do Trauma: consideraes

    sobre histria e poesia nos anos 1970 explica sobre os impactos dos traumas causados

    pelas violncias praticadas no decorrer do regime militar e como os textos literrios e/ou

    histricos abordam o tema.

    No artigo O Preo de uma Reconciliao Extorquida, Jeanne Marie Gagnebinfoca na questo do esquecimento, visando delimitar seu significado. Para ela a

    imposio do esquecimento, como uma forma de ignorar um fato, acaba por impor uma

    nica forma de lembrar e assim esta memria vai lutar para retornar. O passado no

    passa, fica sempre presente. Ao no esclarecer os fatos, no entregar os corpos dos

    desaparecidos polticos, ao contrrio de gerar o esquecimento, se gera a lembrana

    constante. Para se sair deste ciclo, o que se deve fazer o esclarecimento do presente

    para se evitar a repetio de novas formas de excluso e de genocdio.Brasil, a ausncia significante poltica (uma comunicao) de Tales AbSber

    discute sobre a necessidade da punio das torturas e demais atos lesivos aos direitos

    humanos praticados no decorrer do regime militar pois estes fatos deixaram marcas em

    nossa vida contempornea. Para ele o desejo de reparao e justia em relao aos que

    so violentados aos seus direitos surgiu h muito tempo no Brasil, entretanto, ele no se

    torna algo forte, no se espalha por toda a sociedade. O que restou da ditadura em sua

    opinio foi absolutamente tudo, menos a prpria ditadura. Assim, continuamos um pas

    excludente, autoritrio, com uma grave desigualdade social, preservando os direitos de

    Em Debat: Rev. Dig., ISSNe 1980-3532 , Florianpolis ,n 4 , p. 142-147, 2010.

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    uma elite em detrimento dos mais pobres. O Exrcito continua a sonegar informaes e

    quando confrontado com as violaes de direitos humanos praticadas no regime militar

    ou se manifesta pela improcedncia dessa discusso, pois as questes teriam sido

    superadas pela Lei de Anistia ou estas questes so revanchistas e tem de ser derrotadas.

    Portanto, nossa democracia foi construda a base da violao da dignidade humana e

    essa continua a ser aviltada.

    Em 1964, o Ano que no terminou de Paulo Eduardo Arantes se discute sobre a

    ruptura causada no Brasil com o golpe de 1964, dialogando com os outros textos do

    livro. Ao fazer com que a violncia seja uma poltica de Estado, que o desaparecimento

    poltico se torne uma prtica, que a tortura seja instaurada, que os empresrios dem

    dinheiro para a represso, ou seja, ao se negar uma srie de direitos como algo rotineiro,se causou uma ruptura no pas que vinha sendo construdo, e esta ruptura perdura at

    hoje. O que resta da ditadura no seriam somente as contas a pagar, a impunidade como

    uma delas, mas principalmente o governo pelo medo instaurado com o golpe de 1964 e

    que perdura ainda hoje com a questo da segurana e a normalizao da violncia

    poltica.

    Vladimir Safatle em Do Uso da Violncia contra o Estado Ilegal foca a

    questo da permisso de se rebelar contra um Estado que usurpou o poder. O autorafirma que Auschwitz o nome do genocdio industrial que inaugurou no somente o

    desejo de eliminar um povo com mentalidade de um administrador de empresas, mas

    principalmente o desejo de apagar este acontecimento. O que se procurou exterminar

    no foram somente vidas humanas, mas a exigncia de justia. Assim o totalitarismo

    no um aparato poltico que visa eliminar algum setor da sociedade que questione

    sobre a legalidade do poder, ele visa tambm eliminao simblica, eliminar o nome

    desses opositores. A existncia de desaparecidos polticos, no permite que se enterreum corpo, e, ao no se enterrar algum o que se visa apag-lo da memria, suprimir

    sua existncia. Em seguida, o autor afirma que h uma tese que o esquecimento do

    passado seria o preo a ser pago para a garantia da estabilidade democrtica. Aqueles

    que defendem esta tese utilizam dois argumentos: que a tortura e assassinato no era

    uma prtica sistemtica por parte do Estado, ou que houve torturas e assassinatos, mas

    se estaria em guerra contra o comunismo e que o outro lado tambm teria praticado

    crimes. Entretanto, esta tese no pode ser seguida, porque crimes contra a humanidade

    so crimes praticados pelo Estado contra seus cidados e no aes feitas contra um

    Em Debat: Rev. Dig., ISSNe 1980-3532 , Florianpolis ,n 4 , p. 142-147, 2010.

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    Estado ilegal. Aes contra um Estado ilegal so sempre legais, pois todo cidado tem

    direito rebelio, ou seja, a resistncia contra um Estado ilegal um direito. Ao insistir

    em continuar a negar os acontecimentos, o Brasil deixa de construir a democracia.

    Janana de Almeida Teles discute em Os Familiares de Mortos e

    Desaparecidos Polticos e a Luta por Verdade e Justia no Brasil acerca da luta dos

    familiares para que sejam esclarecidos os crimes praticados pelo Brasil durante o

    perodo do regime militar. A luta se deu em vrias frentes: no decorrer da ditadura por

    meio de denncias ao exterior (no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e

    na Comisso Interamericana de Direitos Humanos), das missas de protesto na catedral

    da S, da CPI dos Direitos Humanos, no Judicirio, na luta pela anistia; atualmente, o

    Judicirio e a OEA continuam a ser frentes de lutas, demonstrando que a busca pelaverdade e justia ainda no foi vencida.

    No artigo Entre Justia e Violncia: Estado de Exceo nas Democracias do

    Brasil e da frica do Sul, Edson Teles afirma que as democracias nascidas no sculo

    XX so herdeiras de regimes autoritrios ou totalitrios, e, desta forma, a marca destes

    novos regimes desfazer as injustias do passado. O autor analisa comparativamente a

    transio ocorrida no Brasil, ps-regime militar e na frica do Sul, ps-regime do

    Apartheid, focando em suas semelhanas e diferenas. Ele se questiona comoconvivermos com um passado doloroso num presente democrtico e administrarmos os

    conflitos que no se encerram com a passagem de um governo autoritrio para um

    democrtico. O Brasil, ao contrrio de outros pases no enfrentou a questo totalmente,

    restando em nosso pas algo do Estado de exceo imposto no regime militar, este algo

    violncia que se mantm como marca da impunidade.

    Ricardo Lsias em Dez Fragmentos sobre a Literatura Contempornea no

    Brasil e na Argentina ou de como os Patetas sempre adoram o discurso do Poderdiscute sobre a produo literria no Brasil e na Argentina iniciadas aps o fim dos

    regimes militares nestes pases. O autor afirma que na dcada de 1980 tanto no Brasil

    quanto na Argentina comeou-se a discutir sobre liberdade e o que se fazer com a

    herana dos anos de exceo, mas enquanto os textos argentinos se preocupavam em

    criticar as instituies no caso brasileiro isto no se via (e continua a no se ver). Na

    dcada de 1990 na Argentina se comeou a discutir o trauma causado pelo regime

    militar, j no Brasil o perodo de ditadura militar foi esquecido ou somente tratado em

    poucos textos. Nesta primeira dcada do sculo XXI no se v na literatura brasileira

    Em Debat: Rev. Dig., ISSNe 1980-3532 , Florianpolis ,n 4 , p. 142-147, 2010.

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    discusses sobre o pas, sobre o que resta da ditadura, sobre a punio dos crimes, sobre

    as instituies que continuam intocveis mostrando um pacto com essas, demonstrando

    com isto que o discurso que tenta esquecer as violaes aos direitos humanos praticadas

    pelos militares possui uma fora muito grande.

    Concluindo, por meio de anlises polticas, jurdicas, sociais e literrias o livro

    demonstra que a ditadura e suas marcas esto mais presentes no Brasil do que se

    desejaria e que, mesmo aps vinte e cinco anos do trmino da ditadura militar a

    democracia ainda no est consolidada.

    Em Debat: Rev. Dig., ISSNe 1980-3532 , Florianpolis ,n 4 , p. 142-147, 2010.

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