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O PROJECTO MEP-BPEDig: UMA BIBLIOTECA DIGITAL PARA A HISTORIOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA Maria Filomena Gonçalves & Ana Paula Banza Universidade de Évora / CIDEHUS-UÉ/FCT [email protected] /[email protected] Resumo: A Historiografia da Língua Portuguesa tem conhecido significativos avanços nos últimos anos, quer no que diz respeito à inventariação dos vários períodos, quer quanto à constituição e disponibilização de corpora on-line. No entanto, o estudo da actividade e do saber metalinguísticos em torno do Português ainda está longe de alcançar o grau de desenvolvimento e de aprofundamento que já se regista em relação a outras línguas românicas, situação que não pode atribuir-se propriamente à “escassez” da tradição portuguesa, mas antes ao facto de boa parte das fontes nem sequer estar recenseada e, por outro lado, a um certo preconceito dos historiadores da língua em relação a textos da tradição gramatical e metalinguística. Num contexto de revalorização dessas fontes, à luz da perspectiva historiográfica, mas também da estritamente linguística, urge inventariar os textos desta tradição, em particular os referentes aos períodos mais recentes e menos bem estudados da história (meta)linguística do Português. Tal inventário passa, antes de mais, pelo resgate dos textos esquecidos em muitas bibliotecas portuguesas, entre elas a Biblioteca Pública de Évora (BPE), a segunda biblioteca do país no que diz respeito a fontes dos períodos clássico e moderno. O projecto MEP-BPEDig, da Universidade de Évora (CIDEHUS/FCT) tem como objectivo recensear as fontes metalinguísticas à guarda da BPE, disponibilizar um catálogo online e apresentar edições digitais dos textos mais relevantes, incluindo a possibilidade de pesquisa automática nos textos. Este trabalho visa apresentar o projecto e ilustrar o seu contributo para a Historiografia da Língua Portuguesa.

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O PROJECTO MEP-BPEDig: UMA BIBLIOTECA DIGITAL PARA A HISTORIOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA

Maria Filomena Gonçalves & Ana Paula Banza Universidade de Évora / CIDEHUS-UÉ/FCT

[email protected] /[email protected]

Resumo: A Historiografia da Língua Portuguesa tem conhecido significativos avanços nos últimos anos, quer no que diz respeito à inventariação dos vários períodos, quer quanto à constituição e disponibilização de corpora on-line. No entanto, o estudo da actividade e do saber metalinguísticos em torno do Português ainda está longe de alcançar o grau de desenvolvimento e de aprofundamento que já se regista em relação a outras línguas românicas, situação que não pode atribuir-se propriamente à “escassez” da tradição portuguesa, mas antes ao facto de boa parte das fontes nem sequer estar recenseada e, por outro lado, a um certo preconceito dos historiadores da língua em relação a textos da tradição gramatical e metalinguística.

Num contexto de revalorização dessas fontes, à luz da perspectiva historiográfica, mas também da estritamente linguística, urge inventariar os textos desta tradição, em particular os referentes aos períodos mais recentes e menos bem estudados da história (meta)linguística do Português. Tal inventário passa, antes de mais, pelo resgate dos textos esquecidos em muitas bibliotecas portuguesas, entre elas a Biblioteca Pública de Évora (BPE), a segunda biblioteca do país no que diz respeito a fontes dos períodos clássico e moderno.

O projecto MEP-BPEDig, da Universidade de Évora (CIDEHUS/FCT) tem como objectivo recensear as fontes metalinguísticas à guarda da BPE, disponibilizar um catálogo online e apresentar edições digitais dos textos mais relevantes, incluindo a possibilidade de pesquisa automática nos textos. Este trabalho visa apresentar o projecto e ilustrar o seu contributo para a Historiografia da Língua Portuguesa.Palavras chave: Historiografia, bibliotecas digitais, língua portuguesa.

1. Os acervos da BPE A Biblioteca Pública de Évora (BPE), uma das mais ricas a nível europeu,

particularmente no que tange a edições quinhentistas e seiscentistas, deve boa parte da sua riqueza ao seu fundador, D. Frei Manuel do Cenáculo Villas Boas (1724-1814), bibliófilo eruditíssimo da “ilustração” portuguesa, cuja acção contribuiu também para a fundação de outras bibliotecas portuguesas, como a Nacional e a da Academia das Ciências. Estima-se que, à data da sua morte, Cenáculo (Anexo 1) tivesse coleccionado cerca de 100.000 livros, ainda hoje integrados nos antigos fundos da BPE. Entre as preciosidades aí existentes (Ruas 2005), contam-se 664 incunábulos (Cid 1988) e 6.445 livros impressos do século XVI (Monte 1968; Anselmo 1997, 2002; Curto 2003), para além de vários núcleos de manuscritos e de 20.000 títulos de publicações periódicas1.

De entre os acervos da BPE (Anexo 2), merecem destaque obras de inestimável valor para a chamada “memória linguística”, algumas das quais foram arroladas no 2º tomo do Catalogo de Manuscriptos da Biblioteca Eborense (Anexo 3), no qual Cunha Rivara, o primeiro bibliotecário civil da BPE, reuniu os papéis relativos à Literatura, nele

1 Pelas relações com a Universidade de Évora, é de realçar o “… espólio herdado da produção universitária dos séculos XVI-XVIII, rica em livros impressos, em obras manuscritas, em lições de todas as matérias […] em apontamentos tomados pelos alunos, em ensaios científicos, em criações literárias, em registos históricos, em planos de obras e em relatórios de despesas” (Espírito Santo 2006: 7).

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compreendendo alguns de conteúdo metalinguístico, sobretudo gramáticas, ortografias, vocabulários, discursos, memórias, etc., em língua portuguesa, em latim ou em outras línguas.

Entre esses materiais, destaca-se o manuscrito autógrafo das Reflexões sobre a Lingua Portuguesa2 (Gonçalves 2003, Banza 2010), de Francisco José Freire (1719-1773), que temos referido, noutras ocasiões, como exemplo do riquíssimo património de fontes textuais da BPE que necessita de intervenção urgente ao nível da conservação, disponibilização, estudo e divulgação. Efectivamente, a obra de Freire, apesar de merecer particular interesse pelas variadíssimas considerações de natureza filológico-linguística (Gonçalves 2003; Banza 2010 que nela se encontram e que fornecem informação importantíssima para o estudo da Língua Portuguesa do séc. XVIII por comparação com a dos séculos XVI, XVII e primeira metade de Setecentos, conheceu apenas uma edição, da autoria de Rivara3., saída a lume em 1842, a qual se encontra hoje, como em geral todas as edições oitocentistas, além de esgotada, desactualizada, porquanto os seus pressupostos não são actualmente aceitáveis à luz dos princípios teóricos e metodológicos da crítica textual.

Esta obra de Freire, é, pois, um bom exemplo de uma obra de inegável interesse (meta)linguístico, cuja edição é inutilizável e cujo manuscrito se encontra na BPE, também ele praticamente inacessível, podendo apenas ser consultado in loco, com todos os condicionantes que isso acarreta.

Mas o exemplo das Reflexões é apenas um entre muitos outros. Vejam-se, a título de exemplo, alguns títulos saídos dos prelos nos séculos XVIII e XIX em Portugal e na antiga Índia portuguesa, sendo de realçar que, na rica memória metalinguística à guarda da BPE, se encontram, além dos que a seguir se apresentam, muitos exemplares representativos da presença do Português em paragens longínquas e do diálogo deste com línguas de distintas famílias.

Impressos sobre o Latim:1723 – P. António Franco, Promptuario de Syntaxe dividido em duas partes… 6ª impressão, Lisboa, Lisboa Occidental, Na Officina de Antonio Poderozo Galrão. Localização na BPE: SN E 25 C2.É a 6ª impressão do Prontuário de Sintaxe do Pe. António Franco, Professor de retórica da Universidade eborense e um dos comentadores da gramática de Manuel Álvares, o que mostra a longevidade da obra alvaresiana na pedagogia dos Jesuítas.1731 – Remiler Silveira de Lemos, Opusculo breve que contem hum methodo facil para converter a Lingua Latina no idioma Portuguez Exposta á Publica Utilidade dos Estudantes que principiaõ a construir, e dos Ordinandos que se representaõ a exame perante os seus Prelados, Lisboa Occidental: Na Officina da Musica.Localização na BPE: SN E 25 C2.Segundo Inocêncio da Silva, Remiler não seria o pseudónimo do Pe. Francisco Gomes de Sequeira, como informou Barbosa Machado, mas o anagrama de Luís Moreira de Meireles (1701-?).O autor deste Opúsculo, que apresenta um curioso método para a prática da tradução, foi Mestre de Artes e Gramática em Lisboa.1746 – Simão Crispim de Toro Cardoso, Arte da Grammatica, composiçam dos seus preceitos, Methodo facillimo para formar com acerto, conforme o melhor uso dos Grãmaticos, em Prósa, e Verso, a Grãmatica Latina, e Portugueza, Lisboa, Na Officina Alvarense.Localização na BPE: SN 26 C4.

2 Datado de 1768.3 A obra conheceria, em 1863, uma segunda edição, que saiu, tal como a primeira, com a chancela da Sociedade Propagadora de Conhecimentos Úteis, nada acrescentando à anterior.

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Trata-se de uma gramática latina e portuguesa de um Professor de Filosofia da Universidade de Évora. O autor era natural de Viana do Alentejo.1773 – António Pereira Xavier, Arte da Grammatica Latina, Lisboa, Na Officina de Manuel Coelho Amado. Localização na BPE: SN E 25 C2.1783 – António Rodrigues Dantas, Arte Latina ou Nova Collecção dos melhores preceitos para se aprender breve, e sólidamente a Grammatica da língua Latina, 3ª ed., Lisboa, Na Typographia Rollandiana. Localização na BPE: SN E 25 C2. Estas duas gramáticas latinas pertencem ao lote das obras didácticas que substituíram os manuais dos Jesuítas.O Pe. Rodrigues Dantas foi Professor de Gramática latina na cidade de Mariana, em Minas Gerais. A existência de mais 4 edições, a última das quais em 1794, atesta a aceitação desta obra.

Impressos sobre o Português:1865 – Pe. José Filipe Pereira, Compendio da Grammatica Elementar da Lingua Portuguesa por Systema Philosophico, para uso dos Alumnos das Escholas de Ensino Primario, Orlim, Na Typ. da Ind. Portugueza.Localização na BPE: SN E 32 C4.É um exercício de aplicação da gramática filosófica ao ensino elementar. Integra-se na produção tardia corrente da gramática geral ou filosófica.1867 – J. F. de Gouveia, Noções Geraes e Elementares de Grammatica Portugueza, Adaptada na Escola Portugueza de Barettos em Cavel, Bombaim, Impressa na Typ. de Viegas & Son.Localização na BPE: SN E 32 C4.A obra integra-se na produção de gramáticas portuguesas em territórios não europeus. 1869 – Roque da Fonseca, Compendio da Orthographia da Lingua Portuguesa, 2ª ed. Correcta e Augmentada com a Orthographia de princípios e varias notas, Margão, Na Typographia do Ultramar.Localização na BPE: SN E32 C4.Esta obra, cuja 1ª edição é de 1860, inscreve-se na produção sobre a ortografia portuguesa, fora de Portugal, no século XIX. Roque da Fonseca era natural de Nargão, onde exerceu como professor primário na província de Salsete.1869 – Aniceto Maria de Sousa, Um Novo Vocabulario em Inglez, Portuguez, e Concanim vulgar em Bardez, Nova Goa, Imprensa Nacional.Localização na BPE: SN E32 C4.Conforme se lê na portada, visava facilitar o estudo da língua inglesa a quem não conhecesse as línguas portuguesa e latina. A obra exemplifica o diálogo do português com línguas extra-europeias (e também europeias). O caso da Índia é particularmente revelador da produção interlinguística em que o português participou.1870 – Francisco Júlio Caldas Aulete, Grammatica Nacional Elementar, adoptada pelo Conselho Geral de Instrucção Publica, Additada com os elementos da língua Concani por J. M. Dias, conforme 3ª ed., Orlim, Na Typographia da India Portugueza.Localização na BPE: SN E32 C4.É uma adaptação da famosa gramática elementar de Aulete ao ensino do português a falantes de Concani.

Entre os manuscritos, refiram-se apenas dois:

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- P. João Baptista de Castro (s.d./1700-1775), Aparato para a Rhetorica, ou Homem Rhetorico.Localização na BPE: COD CXII/1-5 d.Polígrafo setecentista, Baptista de Castro é autor de várias obras inéditas, algumas das quais integram os acervos da BPE.- Vocabulario da Letra A. Localização na BPE: COD CXIII/1-28.É um dos vários vocabulários manuscritos existentes nos Reservados da BPE.

Voltando agora às origens da BPE, se, como acima se disse, a criação da biblioteca e a integração da maior parte do seu espólio datam do início do séc. XIX (1805), no que respeita à inventariação, catalogação, investigação e divulgação do seu valioso espólio arquivístico e bibliográfico, é a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara (1809-1879) que, como também referimos acima, devemos a organização e publicação do Catálogo dos Manuscritos da Biblioteca Pública Eborense, o único disponível até hoje. A Rivara se deve também o início da integração dos impressos (cerca de 5000 volumes oriundos das Livrarias dos conventos extintos) na Biblioteca,

Tal significa que, embora dos quatro volumes que constituem o Catálogo, apenas o primeiro (1850)4 tenha sido inteiramente preparado por Cunha Rivara, sendo os restantes três (1868-1871) organizados pelo bibliófilo Joaquim António de Sousa Teles de Matos, a organização da BPE é essencialmente oitocentista, pelo que o seu vastíssimo e riquíssimo espólio é actualmente de acesso impossível a utilizadores que não possam deslocar-se à BPE e, mesmo aí, difícil, devido às dificuldades de consulta resultantes do referido modelo oitocentista de inventariação e catalogação. Urge, pois, tornar acessíveis aos investigadores estes acervos riquíssimos; e a transformação da BPE numa biblioteca digital é o caminho a seguir.

2. Para uma BPE digital: o projecto MEP-BPEDig2.1. Pressupostos teóricos e metodológicosNaturalmente, tal transformação, que terá de ser faseada em diferentes projectos

levados a cabo por especialistas nas diferentes áreas científicas que o espólio da BPE integra, enfrenta, além dos desafios clássicos, os desafios das novas tecnologias e do trabalho interdisciplinar.

Embora os novos instrumentos da chamada “filologia electrónica” e da edição digital suscitem muitas interrogações sobre a própria concepção da escrita e do texto, é certo que o ambiente electrónico veio revolucionar, quer o campo de possibilidades de manipulação e conversão do texto em vários formatos, quer o acesso a este pelos investigadores, possibilitando “edições dinâmicas” que, além da imagem do original, apresentam uma edição diplomática dos textos, assim como uma série de funcionalidades de pesquisa. Do mesmo modo, os catálogos on-line constituem ferramentas dinâmicas, na medida em que estão em constante actualização e permitem várias formas de pesquisa das fontes recenseadas. Ainda assim, na era digital, disponibilizar, em meio electrónico, fontes dotadas de valor (meta)linguístico é tarefa que continua a não dispensar uma série de operações filológicas mais tradicionais, bem como o recurso a disciplinas como a paleografia, a codicologia ou a bibliografia material.

O Projecto Memória (Meta)linguística do Português na Biblioteca Pública de Évora: Para uma Biblioteca Digital (MEP-BPEDig.) assenta, assim, no desejável equilíbrio, em termos teóricos e metodológicos, entre a antiga tradição filológica e a inovação tecnológica, cujas potencialidades permitirão, pela primeira vez, tornar acessível e manuseável pelos

4 Cousas da América e África.

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investigadores e público em geral, em qualquer parte do mundo, um número significativo de textos da BPE, impressos (mas também manuscritos), até agora desconhecidos ou inacessíveis.

Na linha de outros projectos, nacionais e internacionais, já existentes, mas aplicado aos textos da BPE, o MEP-BPEDig. procurará colocar os mais recentes desenvolvimentos das áreas da Linguística de Corpus e da Linguística Computacional ao serviço de uma moderna Filologia (electrónica) que, assente no rigor da antiga, proporcionará uma nova, mais moderna e mais funcional forma de acesso às importantíssimas fontes para a História da Língua Portuguesa existentes na Biblioteca Pública de Évora, permitindo armazenar e ler os fac-símiles dos originais e suas edições digitais, mas também analisar os textos de forma automática.

No panorama português, este projecto integra-se na linha dos que, na última década, têm surgido no âmbito do recenseamento, tratamento e disponibilização de fontes de várias naturezas e entre os quais merecem destaque, entre outros, projectos como: Fontes da Linguística Portuguesa “Memória – Língua”5 (2001); o Corpus Histórico do Português Tycho Brahe6; o Corpus do Português7; o Corpus Informatizado do Português Medieval8; o Corpus Lexicográfico do Português (CLP)9, ou o Projecto CARDS – Cartas desconhecidas10.

Tais projectos, no entanto, alguns deles já com resultados ao dispor dos investigadores, apesar do inestimável contributo fornecido para o avanço nos estudos linguísticos e historiográficos do Português, não iludem o facto de que boa parte da memória da língua portuguesa continua por estabelecer11, sendo ainda reduzido o número de corpora representativos de várias épocas e de diferentes géneros textuais disponibilizados online. Ora, a BPE, com os seus riquíssimos acervos, nesta como noutras áreas, poderá dar um contributo relevante nesse sentido desde que as suas obras se encontrem devidamente inventariadas, catalogadas e facilmente acessíveis e manuseáveis por todos os investigadores, dentro e fora do belíssimo edifício da BPE. Tal é o objectivo do MEP-BPEDig, que tem dado os seus primeiros passos no último ano e meio.

2.2. Equipa, objectivos e plano de trabalhoA equipa de trabalho, necessariamente interdisciplinar, envolve investigadores

pertencentes a dois centros de investigação da Universidade de Évora – o CIDEHUS (Centro Interdisciplinar de História Culturas e Sociedades da Universidade de Évora) e o CITI (Centro de Investigação em Tecnologias de Informação)12.

5 Disponibiliza 41 textos em pdf. Cf. http://purl.pt/401/1/lingua/lingua.html . 6 Permite a pesquisa livre em 52 textos, com um sistema de anotação linguística (morfológica, para 30 textos, e sintáctica, para 11). Cf. http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/catalogo.html . 7 Na fase actual, conta com 45 milhões de palavras. Cf. 8 Disponível em: http://cipm.fcsh.unl.pt.9 Reúne textos da memória lexicográfica e paralexicográfica do Português. Cf. http://clp.dlc.ua.pt/DICIweb/default.asp?url=Obras.10 O projecto disponibiliza um número considerável de cartas inéditas. Cf. O portal: http://salvisa.net/cards/índex.php.11 No que diz respeito a inventários bibliográficos, é de salientar o contributo da Historiografia Gramatical (1500-1920) – Língua Portuguesa – Autores Portugueses (1994), compilada e organizada por Simão Cardoso.12 O grupo é constituído por Maria Filomena Gonçalves (coordenadora), Ana Paula Banza, Cláudia Teixeira e Armando Martins, investigadores das áreas da Filologia, História da Língua e Línguas e Literaturas Clássicas, e por Luís Arriaga, Paulo Quaresma e Irene Pimentel, investigadores nos domínios da Informática e Linguística Computacional. O projecto conta ainda com a assessoria dos Professores Arnaldo Espírito Santo e Ivo Castro, ambos da Universidade de Lisboa, e Michael J. Ferreira, da Universidade de Washington.

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No que respeita aos objectivos a atingir, prevêem-se a inventariação e catalogação – em catálogo convencional (parcial)13 e digital (geral) – das obras impressas e manuscritas com interesse (meta)linguístico14 e a disponibilização e o tratamento filológico dos textos, nomeadamente através da criação de uma biblioteca digital com várias facilidades de consulta e de pesquisa. Mais do que a simples disponibilização online, sob a forma de um corpus, serão disponibilizadas edições electrónicas que funcionem, em simultâneo, como edições e como corpora, permitindo, por um lado, a comparação da imagem do manuscrito com a sua transcrição diplomática e, por outro, efectuar pesquisas nos textos, com vista ao seu estudo linguístico e filológico.

Naturalmente, este projecto de biblioteca e edição digital da memória metalinguística do Português exige um percurso realizado em várias fases: a primeira, como antes se disse, contempla a inventariação sistemática dos textos em suporte digital e a criação de um portal do projecto; a segunda consiste na organização temática e cronológica das obras inventariadas, quer para o catálogo convencional, quer para o catálogo geral da base de dados; a terceira contempla a publicação do catálogo on-line e criação de um repositório digital que aloje as versões electrónicas dos textos seleccionados, bem como a aplicação de ferramentas de processamento da linguagem natural, criadas ou adaptadas para este projecto, e, ainda, as digitalizações dos originais. Finalmente, a quarta e última fase consiste na edição digital dos textos seleccionados, em função dos critérios estabelecidos, com todas as funcionalidades de consulta previstas (frequências, análise de frases e expressões, etc.) e a publicação do catálogo convencional que, assim, será o primeiro catálogo temático da BPE.

2.3. Estado actual do projectoO início da 1ª fase do projecto teve lugar em 1 de Novembro de 2009, data a partir da

qual se passou a contar com uma bolseira para a tarefa de inventariação das fontes metalinguísticas dispersas pelos vários catálogos da BPE.

As fontes de natureza metalinguística foram pesquisadas, por um lado, nos catálogos da Sala de Cimélios, a saber, Catálogo de Reservados e de Novos Reservados, Catálogo do Século XVI, Catálogo de Incunábulos, Catálogo “Manizola” e Catálogo de Rivara, e, por outro, no Catálogo Antigo da Sala de Leitura, sendo de destacar as dificuldades de consulta destes catálogos, em particular deste último, bem conhecidas de quantos frequentam a BPE, nomeadamente, fichas manuscritas em mau estado, sem registo uniforme da informação.

O registo das fontes foi realizado em ficha catalográfica, criada em Excel para este efeito, com vários campos para inserção de todas as informações sobre a obra: data, autor e respectivos dados biográficos (quando conhecidos), título, características físicas da espécie inventariada, local e oficina de impressão, edição e localização da obra na BPE. A ficha contém ainda um campo para informações, em que foram assinalados dados relativos a particularidades do exemplar existente na BPE, como, por exemplo, as mutilações sofridas pelo exemplar, a não correspondência entre a cota e a localização do exemplar na BPE, as marcas de posse, a existência de outros exemplares na BPE e respectivas cotas, a não localização nas estantes da obra registada no Catálogo, etc, etc.). Importa acrescentar que em todos os casos foi feito o confronto dos dados do catálogo com a obra, o que também permitiu esclarecer dúvidas suscitadas pelos títulos de certas obras. Por outro lado, é de salientar que o objectivo inicial de compilar os títulos relativos à Língua Portuguesa e ao Latim, uma vez que a produção metalinguística foi bilingue até ao século XVIII, foi ampliado de maneira a incluir 13 Por catálogo convencional entende-se um catálogo impresso contendo uma selecção de imagens de obras relevantes do catálogo geral, também disponíveis em linha no portal do projecto, a descrição física e conteudística das obras e, ainda, um estudo introdutório.14 No catálogo electrónico figurarão todas as obras recenseadas. Para lá das obras em língua portuguesa, este catálogo incluirá também obras bilingues (português e outra língua europeia; português e uma língua extra-europeia) e obras em língua latina.

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também títulos em outras línguas (por ex. espanhol, francês, italiano, grego, hebraico, inglês…).

A partir dos catálogos antes referidos, nesta fase do inventário foram já identificadas e registadas 79 obras impressas no Catálogo do Século XVI e outras 79 nos Novos Reservados. No Catálogo antigo da Sala de Leitura foram identificados 313 títulos. No que diz respeito a manuscritos, foram localizados 36, no Catálogo de Rivara, e outros 7, no Catálogo (dactilografado) de Manizola.

3. ConclusãoEmbora a tarefa de recenseamento ainda esteja em curso, os números apontados são

reveladores da importância e da urgência deste Projecto, bem como da necessidade de encará-lo como um projecto aberto e de longo curso, na medida em que os instrumentos criados nesta fase continuarão, no futuro, a servir a ampliação da BPE digital.

Assim, embora o nosso objectivo, nesta fase, seja a disponibilização e tratamento dos textos que possam servir como fontes para o conhecimento da língua portuguesa e da sua historiografia entre os séculos XVI e XIX, tarefa que se estenderá seguramente por vários anos, o projecto que aqui apresentámos, caracterizado pela aliança entre os antigos e os novos problemas da manipulação de textos, deverá ser encarado como o arranque para um projecto mais vasto, extensível a textos de todas as áreas temáticas. Tal projecto é, no fundo, um projecto de modernização da BPE, em que a nova biblioteca digital, sem substituir a biblioteca convencional - a dotar, no futuro, de catálogos modernos e funcionais à semelhança do catálogo temático que agora propomos - assumirá como mais-valia a possibilidade de, com um simples clique, aceder aos mais preciosos documentos, manuscritos e impressos, da Biblioteca Pública de Évora.

4. Referências Bibliográficas Anselmo, Artur. 1997. Estudos de história do livro. Lisboa, Guimarães Editores.Anselmo, Artur. 2002. Livros e mentalidades. Porto, Guimarães Editores.Banza, Ana Paula. 2008. Representação perante o tribunal do santo ofício, de Padre António Vieira, Edição crítica, 2 vols. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda.Banza, Ana Paula. 2010. Reflexão metalinguística no séc. XVIII: o caso das Reflexões sobre a Língua Portuguesa, de Francisco José Freire, em Rolf Kemmler, em Barbara Schäfer-Prieß e Roger Schoentag (eds.), Akten der sektion portugiesische sprachgeschichte und sprachwissenschaftsgeschichte. Vila Real, Calepinus Verlag: 1-14.Cambraia, César Nardelli. 2005. Introdução à crítica textual. São Paulo, Martins Fontes.Cardoso, Simão (compil. e org.). 1994. Historiografia gramatical (1500-1920). Língua portuguesa – Autores portugueses. Porto, Faculdade de Letras do Porto.Castro, Ivo. 2007. Lampadário de palavras, em Ângela Correia e Cristina Sobral (eds.), Edição de texto. II Congresso virtual do departamento de literaturas românicas. Lisboa, Faculdade de Letras. em linha Disponível em: http://www.clul.ul.pt/files/ivo_castro/2007_Lampadrio_de_palavras.pdf.Castro, Ivo e Luís Prista. 2001. Fontes da linguística portuguesa “Memória – Língua”, Biblioteca Nacional de Portugal em linha. Disponível em: http://purl.pt/401/1/lingua/lingua.html.Cerquiglini, Bernard. 2000. Une nouvelle philologie?, em Philology in the internet era/philo-logie à l’ère de l’internet - international colloquium / colloque international. Eötvös Loránd University, Budapest, 7–11 June 2000 em linha. Disponível em: http://magyarirodalom.elte.hu/colloquia/000601/cerq.htm.Cid, Isabel. 1988. Incunábulos da biblioteca pública e arquivo distrital de Évora. Évora, Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora.

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AnexosAnexo 1 – Retrato de Frei Manuel do Cenáculo Villas Boas

Anexo 2 – Sala de leitura da BPE (retrato e o espólio de Cenáculo)

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Anexo 3 – Catálogo de Rivara (folha de rosto)