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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Serviço Social Programa de Pós-Graduação em Serviço Social Dissertação de Mestrado O PROCESSO DE ASSISTENCIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS E O SERVIÇO SOCIAL Michelle Rodrigues de Moraes Rio de Janeiro 2009

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Escola de Serviço Social Programa de Pós-Graduação em Serviço Social

DDiisssseerrttaaççããoo ddee MMeessttrraaddoo

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UUnniivveerrssiiddaaddee FFeeddeerraall ddoo RRiioo ddee JJaanneeiirroo CCeennttrroo ddee FFiilloossooffiiaa ee CCiiêênncciiaass HHuummaannaass

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MMiicchheellllee RRooddrriigguueess ddee MMoorraaeess

OO PPRROOCCEESSSSOO DDEE AASSSSIISSTTEENNCCIIAALLIIZZAAÇÇÃÃOO DDAASS PPOOLLÍÍTTIICCAASS SSOOCCIIAAIISS EE OO SSEERRVVIIÇÇOO SSOOCCIIAALL

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Serviço Social.

Orientadora: Dra. Alejandra Pastorini

Rio de Janeiro Agosto de 2009

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O PROCESSO DE ASSISTENCIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS E O SERVIÇO SOCIAL

Michelle Rodrigues de Moraes

Orientadora: Dra. Alejandra Pastorini Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Serviço Social.

Aprovada por:

______________________________________ Presidente, Prof. Dra. Alejandra Pastorini

____________________________________________ Prof. Dra. Elaine Behring

____________________________________________ Prof. Dra. Cleusa Santos

Rio de Janeiro Agosto de 2009

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Moraes, Michelle Rodrigues. O Processo de Assistencialização das Políticas Sociais e do Serviço Social. / Michelle Rodrigues de Moraes, - Rio de Janeiro: UFRJ/ESS, 2009.

x, 200. Orientadora: Alejandra Pastorini Dissertação (mestrado) – UFRJ/ESS/ Programa de Pós-Graduação

em Serviço Social, 2009. Referências Bibliográficas: f. 195-200.

1. “Questão Social”, Políticas Sociais e Assistência Social 2. A Assistencialização das Políticas Sociais e o Serviço Social. I. Pastorini, Alejandra. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Programa de Pós Graduação em Serviço Social. III. Título.

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RESUMO O PROCESSO DE ASSISTENCIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS E O

SERVIÇO SOCIAL Esta dissertação discorre sobre o processo de assistencialização das políticas sociais e o Serviço Social. Busca analisar o destaque que a política de Assistência Social adquire dentre as políticas de Seguridade Social e os rebatimentos deste fenômeno no exercício profissional dos assistentes sociais. Num primeiro momento, nos debruçamos na configuração das expressões da “questão social” e sua administração pelo Estado através de políticas sociais, buscando desvendar a configuração dos espaços ocupacionais para os assistentes sociais. Delimitamos como se estruturaram as políticas sociais no capitalismo, a constituição do Welfare State nos países centrais e as particularidades do modelo de Seguridade Social brasileiro. Destacamos o processo de crise capitalista e das respostas engendradas pelo capital por meio da financeirização, da reestruturação produtiva e da contra-reforma do Estado no bojo do ideário neoliberal. Num segundo momento, tratamos a trajetória histórica da constituição formal-legal da Seguridade Social brasileira no contexto da promulgação da Constituição Federal de 1988 e seu desmonte já na entrada década de 1990. Caracterizamos a estruturação das políticas de combate à pobreza através de modelos de gestão como o Programa Comunidade Solidária e o Programa Fome Zero, balizados centralmente pelos programas de transferência de renda mínima e das parcerias público-privadas como elementos definidores da contra-reforma da Seguridade Social no Brasil. A constituição da política de Assistência Social, nos marcos da PNAS (2004) e do SUAS (2005), está perpassada por critérios focalistas e seletivos e se destaca dentre as políticas sociais como política central no atendimento aos segmentos dos trabalhadores mais pauperizados, com vínculos precários de trabalho ou desempregados. Apontamos para as diferentes concepções acerca do processo de assistencialização dentre autores centrais no debate desta política social, assim como as concepções acerca do objeto de intervenção do Serviço Social. Em destaque figura a reorientação das políticas sociais como processo que restringe a atuação do assistente social nos diversos espaços ocupacionais devido a precarização e desmonte das políticas e da rede de serviços, a definição do atendimento aos mais pobres e critérios de seletividade cada vez mais restritos, não só na Assistência Social. Diante disto concluímos com algumas considerações acerca do reordenamento das políticas sociais e os impactos para o Serviço Social e destacamos a defesa da Seguridade Social como mecanismo tático neste estágio do capitalismo extremamente regressivo para a afirmação e consolidação de direito. A assistencialização das políticas sociais e seus rebatimentos no Serviço Social constituem um processo que desafia aos assistentes sociais na sua formulação teórica, intervenção política e prática profissional.

PALAVRAS-CHAVE: Assistencialização; Assistência Social; Políticas Sociais; Serviço Social.

Rio de Janeiro,

Agosto de 2009.

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ABSTRACT

THE PROCESS OF ASSISTENCIALIZAÇÃO* OF SOCIAL POLICIES AND THE

SOCIAL WORK

The herein dissertation discusses the process of socialização of social policies and the Social work itself. One tries to analyze the highlights assumed by the Social Assistance policy among the Social Security ones as well as the reflections of this phenomenon into the professional steps taken by social workers in their daily tasks. In the first place, one gets down on the features and expressions of the "social affair" and its management on the part of the State by means of its social policies, thus, aiming at the enlightenment of the occupational space configurations for social workers. We have delimited how the social policies are structured in capitalism, the Welfare State constituition in central countries besides the particularities adopted by the Brazilian Social Security. One brings out the capitalist crisis process and the responses given by the capital trend to turn everything into financial affairs, productive restructuring and the State counterreforms (a set back) within the embodiment of the neoliberal ideology. In the second place, one tracks down its historical trajectory belonging to the formal-legal constituition of the Brazilian Social Security in the context of the 1988 Constituition enactment connected to its dismantling at the threshold of the very 1990's. One has characterized the structuring of policies towards fighting poverty by menas of program models such as Programa Comunidade Solidária and Fome Zero (Solidarity in the Community Program and the Zero Hunger Program) – which adopt as their paradigms the programs meant to transferring minimal income and the public-private partnershipas defining elements of the Social Security counterreform in Brazil. The constituition of the Social Assistance policy – given by the patterns of the PNAS , 2004, and the SUAS – is underlain by focal and selective criteria in the attendance of the pauper segments of workers subsumed to scarce labor links or even jobless individuals. One has pointed the different conceptions about the process of assistencialização among cental authors who discuss such matters of social policies and, furthermore, the underlying concepts on the very object aimed by the intervention of Social Work itself. On high spot, comes out the reorientation of social policies which curbs the steps of social workers in their professional fields due the hindering and limiting caused by the enactment of public policies which led towards the precariousness and disassembly of service nets, the choose up of poor ones to be reached entangled with the selective criteria which have become narrower in fields not only concerning the social work. While beholding such a frame, we have come to some conclusions referred such policies for reordering the Social Work within these neoliberal patterns inflicting impacts and reflections into the category of professionals. Besides that, we have also highlighted the defense of Social Service as a tactical mechanism on a capitalism stage with extremely regressive features to in right settlement and consolidation. The assistencialização of social policies - and its reflections into the Social Work - constitutes one process challenging social workers in order to devise theoretical grounds towards their political and practical intervention. *Assistencialização: a set of public policies which led towards the precariousness and disassembly of service nets: the choose up of poor ones to be reached entangled with the selective criteria which have become narrower in fields not only concerning the social work. This has urged low income workers to hire private security policies.

KEY WORDS: Assistencialização; Social Assistance; Social Policies; Social Work.

Rio de Janeiro

August, 2009

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AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS

Agradeço à minha mãe Graça e irmãos, Erick e Cristiane, pelo apoio durante esta

jornada. Agradeço a todos os colegas, professores e alunos com os quais trabalhei na

UERJ (Projeto de Extensão “Políticas Públicas de Saúde), UFF (Projeto de Extensão

“Serviço Social Crítico e o MST”), UFRJ (Projeto de Pesquisa “Trabalho Escravo

Contemporâneo”), Prefeitura de Nova Iguaçu (SEMDES e SEMPCOM), a equipe do

CRAS XV de Maio (Prefeitura do Rio de Janeiro), em especial às parceiras e amigas

Ana Carolina Oliveira e Tatiana Bittencourt e aos colegas do IFRJ, em especial

Fernanda Paixão, Suíze Martinez e Pedro Paulo Merat, valeu a força e incentivo nesta

reta final! Aos camaradas do PCB e da UJC, através dos camaradas e amigos Maria

Fernanda e Heitor César, a minha saudação. Aos companheiros do CRESS-RJ da

gestão “Ética, Autonomia e Luta”, através da conselheira Conceição Robaina o meu

agradecimento e, por meio da assessora de comunicação, minha amiga Cecília Contente,

manifesto meu carinho por todos os funcionários. Aos amigos que fiz durante a

graduação na ESS-UFRJ, Rosângela Oliveira, Sandro Marques, Valéria Silva, Ellen

Zacharias, Wagner Ferreira e Amanda Caldas e a todos os colegas da pós-graduação,

através de Charles Toniolo, Gleyce Lima e Christiane Guimarães. A todos os amigos

que seguiram comigo, obrigada pela atenção, carinho e paciência, os amigos da Penha e

Vila Cruzeiro e em especial aos meus “interlocutores” e camaradas Marcos Botelho e

Jefferson Ruiz, pela generosidade nos debates e pela amizade. Para minha orientadora

Alejandra Pastorini meu agradecimento especial, sobretudo pela confiança e paciência,

e às queridas professoras e companheiras que compuseram minha banca Elaine Behring

e Cleusa Santos.

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SSUUMMÁÁRRIIOO

Introdução ...................................................................................................................... 09

Capítulo 1

“Questão Social”, Políticas Sociais e Assistência Social

1.1 Contexto Histórico da “Questão Social”, Políticas Sociais e Assistência Social .... 20

1.2 Seguridade Social e Assistência Social no Brasil .................................................... 45

1.3 A Política de Assistência Social na Atualidade ....................................................... 61

1.4 Os Programas e projetos de Assistência Social ....................................................... 77

Capítulo 2

A Assistencialização das Políticas Sociais e o Serviço Social

2.1 Caracterização do processo de assistencialização das políticas sociais ................... 96

2.2 Trabalho e Assistência Social ................................................................................ 129

2.3 Rebatimentos do Processo de Assistencialização das Políticas Sociais no Serviço

Social ........................................................................................................................... 143

Considerações Finais ................................................................................................... 180

Referências Bibliográficas ........................................................................................... 195

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IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO

Nosso trabalho é resultado da conclusão dos estudos desenvolvidos no curso de

Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social na UFRJ. As reflexões

aqui apresentadas se inscrevem no âmbito de um processo que tem sido nossa

preocupação ao longo destes anos: o reordenamento das políticas sociais e os impactos

no Serviço Social. Trata-se de um campo de atuação fundamental para a profissão e as

questões que tomam corpo neste estudo expressam a preocupação com as diferentes

dimensões da profissão. Seja no debate teórico, nos processos político-organizativos

profissionais ou na esfera da prática interventiva evidencia-se, nos tempos atuais, uma

forte tendência (neo) conservadora, contraposta ao projeto profissional afirmado da

década de 1990 em diante – denominado projeto ético-político do Serviço Social – que

declara a sua vinculação a uma direção social crítica, que hoje é hegemônica na

profissão.

Nossa inserção profissional foi a primeira fonte das inquietações que inspiraram

o objeto aqui apresentado. A nossa atuação profissional na área da política de

Assistência Social na Prefeitura de Nova Iguaçu e do Rio de Janeiro se organizou em

experiências que suscitaram questionamentos em torno do papel do assistente social na

sua intervenção em face da configuração desta política a partir da implementação do

Sistema Único de Assistência Social (SUAS)1. O alargamento do campo de atuação

para o assistente social com a expansão da Assistência Social foi notável, observado nos

vários concursos públicos e contratações realizados após a criação do Sistema Único da

Assistência Social (SUAS). O trabalho nestas duas prefeituras nos trouxe parâmetros

para iniciarmos este estudo. Os eixos das políticas de Assistência destas prefeituras (a

primeira, gerida pelo governo do Partido dos Trabalhadores - PT, a segunda pelo

Democratas - DEM, antigo PFL), revelam significativas semelhanças.

1 Trabalhamos no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e no Conselho Municipal de Assistência Social (como secretária executiva) em Nova Iguaçu (2006/2007) e como técnica do CRAS na Prefeitura do Rio de Janeiro (2007/2009). Cabe ressaltar que foram dois concursos públicos realizados após a aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e do SUAS, para composição das equipes que atuariam nos equipamentos desta política, mas não só. Os técnicos aprovados (inclusive de outras profissões) nas duas prefeituras, mesmo sendo direcionados para as secretarias de Assistência Social (no caso de Nova Iguaçu Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Social – SEMDES). Os profissionais foram lotados também em outras secretarias, em Nova Iguaçu, parte dos concursados foi lotada nos Conselhos Tutelares (também atuamos neste espaço durante o período em que permanecemos com este vínculo). No caso do Rio de Janeiro os assistentes sociais foram lotados fundamentalmente na SMAS, mas todos os profissionais de Serviço Social foram vinculados a esta secretaria, mesmo os que tinham vínculo anterior, através de concurso específico, com áreas como Saúde e Habitação com a criação do Sistema Municipal de Assistência Social (SIMAS) em 2004 (Cf. Rodrigues, 2007; 2009).

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O PT, que representa a gestão federal desde 2002, tem em seus quadros os

principais formuladores da política destacada, é responsável pelas alterações na gestão

desta política social e pela implementação nacionalmente da PNAS e do SUAS, em

parceria com as prefeituras. No caso de Nova Iguaçu a pactuação entre os entes

federativos era facilitada pela filiação partidária (e sua coligação2) e compunha um

quadro em que os programas e projetos no âmbito da Assistência Social eram utilizados

como “carro-chefe” do governo municipal, assim como no âmbito federal3.

Nossas primeiras inquietações, portanto, situavam-se na falta de diferenciação

entre dois governos com “parâmetros” e referências díspares, o primeiro considerado de

centro-esquerda (social-democrata) e o segundo de direita (liberal). Por sua vez, a

referência central no Programa Bolsa Família (PBF) pautava as duas gestões relativas à

política de assistência social destes governos. O que nos parece curioso é que mesmo

numa gestão municipal de coligação oposta ao PT estes mesmos programas financiados

pelo governo federal também se constituíam como medidas centrais no âmbito da

Assistência Social4.

O contexto no qual se desenvolve a política de Assistência Social na atualidade

se referencia num cenário regressivo para a consolidação e alargamento de direitos. O

modelo de Seguridade Social constituído na Carta Magna vem sendo desmontado no

processo de contra-reforma do Estado, que implica na precarização e focalização das

políticas sociais, processo que ocorre junto com a precarização das relações e vínculos

trabalhistas, da financeirização e reestruturação produtiva, implementados no bojo do

ideário neoliberal.

A ampliação dos programas e projetos no âmbito da política de Assistência

Social segue a lógica das orientações dos organismos internacionais, que determinam a

constituição de políticas que tem como alvo o combate à pobreza, que se traduz em

2 A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Social (SEMDES) era coordenada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) liderada pelo secretário Ricardo Capelli. Na atual gestão é coordenada pelo PT, liderada pelo secretário Luís Eduardo Soares. 3 Atualmente, no Rio de Janeiro, a gestão municipal encontra-se sob a responsabilidade do PMDB (com uma equipe experiente, que já coordenou a política de Assistência Social no governo estadual do Rio de Janeiro, liderada pelo secretário Fernando William) e não se verificam alterações na lógica de implementação da política de Assistência, seja na forma de organização ou da execução. Um agravante de grande visibilidade é a política promovida pela secretaria de “Ordem Urbana” e seu projeto “choque de ordem”, que dentre suas atividades promove, junto com a SMAS o recolhimento da “população de rua” numa perspectiva que criminaliza este segmento da população sem acesso às garantias de direitos e que reprime os trabalhadores precarizados, especialmente os ambulantes. 4 Haviam projetos promovidos pela SMAS, no Rio de Janeiro, em parcerias com ONGs, mas os programas centrais eram o Programa Bolsa Família (PBF) e o Cadastro Único ou os vinculados a ele (ProJovem Urbano e Adolescente – antigo Agente Jovem – e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI).

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ações, programas e projetos para a administração e gestão da pobreza5. Nossa hipótese

se circunscreve na perspectiva de que os rebatimentos da atual reorientação da

Assistência Social incidem sobre a prática profissional, para além da atuação no campo

específico desta política social. As características determinantes da Assistência Social e

do exercício profissional no âmbito das ações assistenciais e emergenciais se recolocam

na prática profissional, inclusive nas demais políticas sociais.

Neste sentido, esta dissertação busca caracterizar o processo de

assistencialização das políticas sociais e seus rebatimentos no Serviço Social. Sem

esgotar todas as suas mediações, mas ilustrando o desenho das políticas de Seguridade

Social na contemporaneidade e em especial da Assistência Social, procurando elaborar

as formas como a prática profissional também se redimensiona na atual conjuntura.

Tomamos como referência os autores e textos que no interior da categoria orientam o

debate sobre as políticas sociais, a assistência social e o Serviço Social.

Trataremos, no primeiro capítulo, a contextualização do debate sobre a

assistencialização das políticas sociais, para isto, observamos a trajetória da constituição

da Seguridade Social e da política de Assistência Social no Brasil e as particularidades

desta última política pública, destacando como vem se desenhando, desde a década de

1990, a constituição da lógica do combate à pobreza – tendo como eixo central os

programas de transferência de renda e, em particular, os contornos que adquire desde a

implementação da PNAS e do SUAS.

O debate sobre a assistencialização das políticas sociais no contexto da

seguridade social se fundamenta nos elementos da formação da sociedade brasileira,

presentes em sua constituição econômica, social e política, que a nosso ver

(re)atualizam aspectos presentes historicamente em seu processo de desenvolvimento,

fortalecendo as indistinções entre os limites do público e do privado, da cultura do favor

(Cf. Pastorini, 1997).

5 Consideramos a administração da pobreza como a “forma” capitalista contemporânea de trato das refrações da “questão social” numa perspectiva que as naturaliza como expressão e resultado natural de qualquer ordem social e que na atualidade devem ser mediadas por ações em conjunto com a “sociedade civil” para garantias dos mínimos de sobrevivência. Figura como combate à pobreza, mas conforma uma cultura que na verdade objetiva socializar as conseqüências da crise buscando o consenso e consentimento dos trabalhadores, como destaca Mota: “essa cultura é formadora da hegemonia do grande capital e também protagonista do consentimento ativo das classes subalternas, na medida em que seja capaz de elaborar uma visão socializadora da crise, conseguindo estruturar campos de lutas, formar frentes consensuais de intervenção e construir espaços de alianças” (Mota, 2005, p.108). Trataremos esta concepção ao longo da discussão do processo de assistencialização das políticas sociais, em particular no item 1.4: Os Programas e Projetos de Assistência Social.

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Uma das medidas engendradas pelo Estado como respostas às manifestações das

contradições capitalistas é a constituição de políticas sociais, que figuram como

resultado da luta de classes, como expressão de conquistas da classe trabalhadora para o

atendimento às suas necessidades de reprodução social. A constituição da política de

Assistência Social, política sobre a qual nos debruçamos particularmente, possui

características diferenciadas. Na maior parte das vezes aparece como concessão ou

benesse para segmentos da classe trabalhadora que compõem seus “usuários”,

especialmente por serem, predominantemente, trabalhadores precarizados, sem vínculos

trabalhistas ou desempregados. Esta inserção “instável” no “mundo do trabalho”, por

sua vez, afeta seu nível de consciência e sua capacidade de organização. O caráter das

ações desenvolvidas por esta política é outro elemento que reforça uma lógica

eminentemente emergencial e imediatista, pois seus programas e projetos direcionados

ao atendimento das necessidades de sobrevivência são confundidos com as atividades

realizadas pela filantropia e pela caridade institucionalizada.

A “questão social”, expressão da contradição entre capital e trabalho, é

determinada pelo processo de lutas e se traduz em conquistas dos trabalhadores em

torno do atendimento de suas necessidades à medida que sua pressão “obriga” ao capital

ao atendimento de parte das demandas como forma de obter a manutenção da sua

dominação. Especialmente quando a reprodução dos trabalhadores não está garantida

por sua atividade laborativa, em casos de doença, invalidez, velhice e maternidade,

dentre outros eventos que interrompem sua capacidade de trabalho, são constituídas –

em diferentes níveis, de acordo com as conjunturas que se desenvolvem – garantias de

reprodução fora da atividade estritamente de trabalho. Com o vínculo previdenciário as

interrupções do exercício das funções produtivas não cessam o recebimento dos

proventos uma vez que os trabalhadores recebem benefícios previdenciários enquanto

for necessário (de acordo com avaliação pelo Instituto Nacional de Seguro Social –

INSS). Já para os segmentos precarizados ou desempregados não contribuintes e não

incluídos na previdência social não há garantias sociais a não ser o acesso ao conjunto

de programas assistenciais.

O trabalho no capitalismo tem uma modalidade predominante e específica, trata-

se do trabalho assalariado, trabalho entendido como meio de vida, que limita o

desenvolvimento das capacidades humanas, pela sua parcialidade, fragmentação e

submissão a um modelo de sociedade no qual os meios de produção são apropriados

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privadamente, assim como as riquezas socialmente produzidas, fundamentado na

exploração da força de trabalho e apropriação da mais-valia.

Em alguns momentos da história do capitalismo, como no pós-guerra, houve

uma aposta na ampliação da intervenção do Estado através da consolidação do Welfare

State na Europa, que teve como mediação a expansão do capitalismo e as políticas de

pleno emprego, como base da constituição dos sistemas de Seguridade Social. O

ascenso organizativo da classe trabalhadora foi fundamental para o estabelecimento dos

direitos constitutivos destes sistemas e a oposição entre socialismo e capitalismo

contribuiu centralmente para o desenvolvimento de ações que consideravam a

possibilidade de um “capitalismo humanizado”. Este período viabilizou o

estabelecimento de um “pacto” entre as classes.

As crises cíclicas do capitalismo conformaram na década de 1970 um cenário

oposto ao que possibilitou a constituição do Welfare e pôs o capital em oposição frontal

às conquistas consolidadas ao longo dos chamados “trinta anos gloriosos”. As principais

medidas de resposta à crise se fundamentam na reestruturação produtiva e flexibilização

das relações trabalhistas; na implementação do ideário (neo) liberal e na financeirização

da economia. O Estado, tomado como grande “vilão”, responsabilizado por gastos que

não seriam utilizados para impulsionar a economia de mercado, seria avistado como

principal responsável pela crise e utilizado como peça chave na recomposição e

retomada das taxas de lucro do capital, que no período de crise decresceram. Assim

sendo, a “reforma” do Estado aparece como medida necessária e fundamental para o

crescimento econômico, principalmente através da redução dos “gastos sociais”.

O desmonte da proteção social6 nos países centrais é uma das propostas para

redução destes gastos e, para os países periféricos que compõem a América Latina e

viviam processos de ditadura neste mesmo período, a implementação destas medidas

6 A noção de “proteção social” se refere ao conjunto de medidas estruturadas pelos sistemas de Seguridade Social, numa perspectiva de garantias de reprodução social da classe trabalhadora, mediadas pela relação entre capital e trabalho, fundamentalmente estruturadas pela inserção no mercado de trabalho e estruturadas pelo Estado via políticas sociais. Estes sistemas possuem características diferenciadas de acordo com as conjunturas em que se constituem. Dependem fundamentalmente de como se estabelecem as relações entre as classes trabalhadora e capitalista, do nível de organização e luta dos trabalhadores na disputa por garantias de direitos. Na atualidade, esta concepção está perpassada por concepções distintas. No bojo do ideário (neo)liberal de “desenvolvimento sustentado” se baseia em ações com vistas ao provimento de mínimos de sobrevivência para os segmentos mais pauperizados dos trabalhadores – como as maiores “vítimas” da crise – e desmonte das garantias de direitos oriundos dos vínculos formais via desregulamentação das relações de trabalho, particularmente, e que, conjugadas ao desemprego estrutural, configuram um cenário no qual a ampliação dos segmentos sem acesso a direitos torna-se notável. Por outro lado aparecem também como constituição de redes de auto-ajuda e ajuda-mútua no bojo das relações da “sociedade civil” (para uma perspectiva crítica Cf. Montaño, 2007 e Iamamoto, 2008).

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tem impactos ainda mais nocivos, visto que não foram constituídos neles os modelos de

Bem-Estar que estavam em “xeque” no denominado “primeiro-mundo”.

O período de ditadura militar no Brasil foi permeado por lutas e organização dos

movimentos sociais, no qual o Estado autoritário se afirmou por meio de medidas de

repressão e coerção política. Mas com desenvolvimento econômico e constituição de

políticas de corte social durante o período do “milagre econômico”, coordenam-se

medidas de coerção e consenso. A abertura democrática se deu num contexto de

esgotamento deste período, de ascensão dos movimentos sociais, mas já numa

conjuntura de crise internacional e endividamento externo exponenciados.

No Brasil, o germe do processo da constituição de um Estado de Bem-Estar

Social, no período de abertura democrática, com o ascenso organizativo dos

trabalhadores que pautava a constituição de direitos, esbarra no processo de reorientação

social, política e econômica conformada no cenário mundial como resposta à crise

capitalista. O modelo neoliberal implica no reordenamento do Estado e das políticas

sociais e a relação com as orientações dos organismos multilaterais incidindo sobre o

modelo de gestão da força de trabalho, privatização, precarização e desemprego.

O processo no qual se desenha a Constituição Federal de 1988, de ascenso dos

movimentos sociais e de conquistas de direitos no seu marco formal-legal, sofre já na

entrada da década de 1990, um processo de desmonte em face da contra-reforma do

Estado. No início da década de 1990 ainda são constituídas as legislações que

regulamentam as políticas sociais, como nas áreas da Saúde (lei 8.080/90 e 8.142/90) e

da Assistência Social (lei 8.742/93), mas as reformas já começam a ser operadas nesta

década. Temos como exemplo a reforma da Previdência, a privatização de setores

rentáveis da Saúde7 (a participação privada está prevista no texto constitucional) e com

a manutenção da parceria com o setor privado e filantrópico na execução da Assistência,

característica histórica desta política.

A Seguridade Social no Brasil se estabelece neste cenário, as políticas de Saúde,

Previdência e Assistência Social retrocedem aos seus parâmetros estabelecidos na

Constituição e nas leis que regulamentam suas políticas. A implementação de

orientações dos organismos internacionais para as políticas sociais determina reformas

7 A universalização da Saúde implicou na expansão do atendimento antes restrito aos trabalhadores – e seus familiares – com vínculos formais de trabalho, mas não teve o alargamento necessário para absorver o fluxo, uma medida que contribuiu para o crescimento da rede privada e constituição de poderosos grupos.

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que implicam na redução de direitos conquistados, na precarização e desmonte da

proteção social. Estas orientações sustentam a constituição de políticas focalizadas no

combate à pobreza como eixo central por meio de programas e projetos pontuais e

fragmentados, que atuam na forma de administração da pobreza. Predomina a

manutenção do corte assistencial nas políticas sociais e, especialmente, na assistência.

Os programas Comunidade Solidária (governo FHC) e Fome Zero (governo Lula)

consolidam estas orientações ao longo dos anos 1990 e 2000 e são exemplos que

pautam internacionalmente experiências de “sucesso” no marco destas formulações.

No segundo capítulo trataremos mais especificamente sobre o debate a cerca do

processo de assistencialização das políticas sociais e o Serviço Social, com sua

diferenciação a partir da leitura de autores do âmbito do Serviço Social, pontuando a

relação da Seguridade Social – e em particular da Assistência Social – com o trabalho e

a perspectiva de direito ao trabalho. A relação entre trabalho e Seguridade Social esteve

presente como eixo central da constituição dos modelos de Seguridade Social.

A exponenciação do pauperismo e das expressões da “questão social” neste

período de crise, o fim do “socialismo real” e o refluxo dos movimentos organizados

dos trabalhadores compõem também este cenário de regressão nos direitos

conquistados. Num momento em que o capital busca construir consensos em torno das

medidas de manutenção de sua ordem e para administração dos índices de pobreza e

indigência são elementos centrais a naturalização da pobreza e da miséria e sua

categorização como “exclusão”. Estas manifestações da contradição entre capital e

trabalho são escamoteadas no discurso que retoma e exalta o individualismo e o

estabelecimento de estratégias de auto-ajuda e ajuda-mútua solidarista na constituição

de redes de solidariedade.

Entendemos que esta caracterização nos permite levantar algumas considerações

sobre a atual configuração das políticas sociais e dos rebatimentos do processo de

assistencialização das políticas sociais no Serviço Social pela mediação que esta

profissão realiza no acesso aos equipamentos e serviços públicos.

Para isso, retomamos a conjuntura em que surgem as políticas de combate à

pobreza no Brasil e suas características diante da perspectiva das políticas sociais no

neoliberalismo. Consideramos que o processo de assistencialização está articulado ao

contingenciamento das políticas sociais e mediado pelo caráter assistencial e

emergencial dos programas e projetos do âmbito da política de Assistência Social.

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Contextualizamos a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e o Sistema Único

da Assistência Social (SUAS), seus avanços e elementos centrais que caracterizam esta

política e sua implementação nos últimos cinco anos.

A Seguridade Social e Assistência Social no Brasil têm uma trajetória histórica

estabelecida no escopo de políticas de proteção social. A previdência depende da

contribuição prévia e a assistência e a saúde não dependem de contribuição. A

Constituição Federal de 1988 indicava a ruptura da dicotomia saúde-previdência para o

trabalhador e assistência para os “necessitados” e alçou outros avanços com as leis

orgânicas que regulamentam estas políticas.

O Sistema de Seguridade Social se referencia neste processo e a Carta Magna

contém aspectos da concepção de um modelo de bem-estar social, fruto da organização

e luta dos trabalhadores. No entanto, o período de democratização, pontuado acima, se

reflete em diferenciais para a composição das políticas que constituem o sistema de

proteção social, em destaque tratamos a Política de Assistência Social, em especial os

modelos de gestão da pobreza que são fomentados na década de 1990, como o

Programa Comunidade Solidária e, atualmente, o Programa Fome Zero.

Os programas de transferência de renda passam a ser política central de gestão e

administração da pobreza, tendo como foco a intervenção nos índices de pobreza

absoluta e indigência. A Política de Assistência Social na atualidade, com a PNAS, a

NOB e o SUAS, trazem em si contradições entre a afirmação de direitos e a reposição

das expressões da “questão social” nesta perspectiva.

A assistencialização das Políticas Sociais e do Serviço Social tem como medida

a orientação central da focalização no combate à pobreza. Ocorre, a nosso ver, um

superdimensionamento da Assistência Social, expressa na constituição da PNAS e do

SUAS já nos anos 2000, uma política que figura como uma das prioridades de governo

num cenário em que a precarização e focalização das políticas sociais é um processo

contínuo, afinado à uma política econômica restrita, que transfere ao capital renda e

riqueza produzidos socialmente em larga escala e valores mínimos, através dos

programas de transferência de renda, para uma massa da população pauperizada.

Esta centralidade da assistência social e seu destaque dentre as políticas de

Seguridade Social ocorrem junto com o desmonte da legislação trabalhista, com a

contra-reforma previdenciária, com a ampliação das parcerias com o setor privado, não

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somente nesta política8. Questionamos-nos se a constituição dos direitos expressos na

PNAS e no SUAS são de fato conquistas dos trabalhadores. Em certa medida ainda são

resultado das lutas da década de 1980 que se desenrolou ao longo das últimas décadas,

mas expressam, contraditoriamente, o modelo proposto na década de 1990 para as

políticas sociais e conformam um conjunto de medidas de administração da pobreza que

buscam a coesão e o consenso em torno do atendimento à população mais pauperizada.

Entendemos que este processo expressa avanços, retrocesso e manutenção de

características históricas da política de assistência – que são observadas também em

outras políticas sociais. Buscamos, em autores de referência no Serviço Social,

elementos para caracterizar o processo de assistencialização das políticas sociais, quais

sejam: Sposati, Yasbek, Pereira, Boschetti, Behring, Stein, Rodrigues, Iamamoto, Netto,

Pastorini e Galízia dentre outros pensadores que mesmo não discutindo diretamente o

campo da Assistência e da Seguridade Social, contribuem para a caracterização deste

quadro.

Entendemos que os rebatimentos para o que consideramos assistencialização do

Serviço Social têm sua referência no processo mais amplo que atinge as políticas

sociais. Ele passa pelo destaque da política de Assistência Social dentre as políticas de

Seguridade Social na atualidade como um dos elementos centrais que marcam o

processo. Trata-se, a nosso ver, de uma tendência que pode ser verificada primeiramente

na demanda por uma atuação restrita nos diversos espaços ocupacionais, especialmente

no trato dos pobres e das situações de pobreza, por meio da mediação de critérios sócio-

econômicos na definição do acesso e permanência em políticas sociais.

Em segundo lugar se relaciona a precarização das políticas; restrição da rede de

serviços públicos e uma rede privada e filantrópica focalizada e pontual; enfoque do

8 Na educação, por exemplo, temos dois projetos em implementação no nível superior temos o projeto de Reestruturação e Expansão do Ensino Superior (REUNI) para as universidades públicas e o Programa Universidade Para Todos (PROUNI) para as universidades privadas. O primeiro altera a gestão, as contratações e financiamento das universidades, mais uma contra-reforma implementada no atual governo. O PROUNI abre vagas com bolsas integrais e parciais nas universidades privadas em troca de subvenções do governo, que garante acesso ao ensino superior privado ao invés de transferir o investimento que poderia ser feito, caso fossem recolhidos os impostos que abre mão, na universidade pública para ampliação do acesso a este serviço. Nas palavras do presidente Lula: "’O ProUni foi resultado de uma inquietação, precisávamos encontrar uma saída para os estudantes que não pudessem entrar na universidade pública e achar um jeito de terem bolsa de estudo nas universidades privadas", explicou, destacando a criatividade do ministro Tarso Genro e do secretário executivo do MEC, Fernando Haddad, para realizar o programa. ‘Tivemos um gostoso prazer de anunciar 112 mil novas vagas nas universidades brasileiras para atender ao público de classe média, a periferia, os negros e os índios’. Destacou o esforço do MEC no ensino médio e profissionalizante e os avanços no debate da reforma universitária” (fonte: MEC, portal.mec.gov.br) em declaração dada pela ocasião do lançamento do ProJovem, que trataremos adiante na caracterização dos programas e projetos da assistência social).

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atendimento aos mais pobres e critérios de seletividade. Quatro teses destacadas por

Iamamoto (2008)9 servirão para ilustrar como estas diferentes tendências estiveram – e

estão – presentes no interior da profissão, para caracterização das demandas postas à

categoria e das respostas por elas engendradas.

Nas considerações finais retomamos o debate sobre a constituição da política de

Assistência Social, pontuando alguns aspectos da intervenção profissional nesta política,

seus desafios de ordem prática, particularmente, na mediação com suas dimensões

operativa e política. Retomamos a argumentação da necessária constituição de um

sistema de proteção social com base numa Seguridade Social ampliada, vista como

mecanismo tático para a constituição de direitos e garantias de reprodução social e que

se estruturam na relação entre as classes. Por fim, situamos o debate da direção social

hegemônica da profissão e sua vinculação com um projeto societário solidário ao

segmento dos trabalhadores.

9 As teses abordadas são: da assistência social; da proteção social; da função pedagógica do assistente social; e do sincretismo e da prática indiferenciada.

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CCaappííttuulloo 11

““QQuueessttããoo SSoocciiaall””,, PPoollííttiiccaass SSoocciiaaiiss ee AAssssiissttêênncciiaa SSoocciiaall

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1.1 Contexto Histórico da “Questão Social”, Políticas Sociais e Assistência Social

O debate sobre o processo de assistencialização das políticas sociais compreende

a análise da forma que são constituídas as respostas às expressões da “questão social”,

particularmente a intervenção estatal por meio das políticas sociais. Neste escopo

também são desenhadas requisições para o Serviço Social e rebatimentos deste processo

na intervenção profissional.

Consideramos que a política de Assistência Social adquire centralidade dentre as

políticas sociais na atualidade, pois seus contornos – dos seus programas e projetos –

passam a predominar em meio as políticas de Seguridade Social e apontam para

afirmação de uma perspectiva assistencial10 e emergencial no trato das manifestações da

“questão social” que esteve presente na constituição destas políticas historicamente11.

Esta discussão referencia-se na constituição das políticas sociais no capitalismo

como respostas à contradição entre capital e trabalho no conjunto das relações sociais

que a constituem a ordem do capital. O Estado capitalista expressa as necessidades de

manutenção global do capitalismo, não é independente do capital, mas não concretiza

necessariamente somente seus interesses, ou seja, o interesse das classes dominantes.

“Nem o Estado é independente do capital, nem representa direta e exclusivamente os

interesses da classe dominante: ele expressa as necessidades globais da manutenção da

reprodução do metabolismo social regido pelo capital” (Mészaros apud Lessa, 2006, p.

145).

O Estado expressa a contradição capital-trabalho na qual o interesse da

burguesia predomina sobre o dos trabalhadores nesta ordem societária, mas tende a

garantir predominantemente os interesses da classe dominante, a capitalista. Nesta

relação entre capitalistas e trabalhadores circunscreve-se a contradição desta sociedade

regida pelo capital: a apropriação privada dos meios de produção e a exploração do

trabalho pela classe dominante.

As demandas dos trabalhadores, ora incorporadas à ordem do capital,

fundamentalmente como conquistas resultantes da organização e luta desta classe, são

10 O mecanismo assistencial remete a respostas de caráter político “compensatório de carências”. Toma forma a identificação do grau de carência demandado através de mecanismos seletivos para determinar o acesso aos serviços e programas sociais (Sposati, 1986, p. 30). 11 Sposati já destacava, em 1986, que o assistencial era uma das características da ação do Estado nas políticas de corte social, dimensão esta que imprimia o caráter emergencial no atendimento às necessidades sociais (Cf. Sposati, 1986, p. 22).

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estabelecidas principalmente através de garantias à reprodução de sua força de trabalho,

especialmente por meio de políticas sociais, a partir do período monopolista (Cf. Netto,

2001), como principal medida estatal no trato da “questão social”12.

As reformas políticas operadas no capitalismo expressam formas de

operacionalização do modo de produção capitalista. Fazem parte da ordem do capital e

de configuração de medidas que permitam seu funcionamento com critérios mínimos de

coesão e consenso. “As reformas políticas podem, no máximo, ser a gênese de novas

formas de regência do capital, aboli-la jamais” (Lessa, 2006, p. 147).

As reformas reivindicadas pelos trabalhadores para alterar o processo de

pauperização provocado pelo capitalismo questionavam o modo de acumulação vigente

e abriam disputa entre a classe trabalhadora e a burguesia. Estas lutas colocavam e

podem colocar em “xeque” a própria ordem burguesa, pois os avanços no campo dos

direitos do trabalho estabelecem limites ao movimento do capital e à exploração do

trabalho (limitação da jornada, política salarial etc.). Segundo Mota,

A questão reside no fato de o capital ser compelido a incorporar algumas exigências dos trabalhadores, mesmo que elas sejam conflitantes com os seus interesses imediatos; mas, ao fazê-lo, procura integrar tais exigências à sua ordem, transformando o atendimento delas em respostas políticas que, contraditoriamente, também atendem às suas necessidades (2005, p.123).

O Estado busca legitimação política através do jogo democrático e passa a ser

permeável às demandas das classes subalternas. Esta é uma das mediações que

constituem as políticas sociais como medidas de compensação das manifestações da

“questão social”. Dessa forma,

É somente nestas condições que as seqüelas da “questão social” tornam-se – mais exatamente: podem tornar-se – objeto de uma intervenção contínua e sistemática por parte do Estado. É só a partir da concretização das possibilidades econômico-sociais e políticas segregadas na ordem monopólica (concretização variável do jogo das forças políticas’) que a ‘questão social’ se põe como alvo de políticas sociais (Netto, 2001, p.29).

A expressão “questão social” se afirma como denominação da burguesia para

dar outro significado às expressões da “pauperização da classe trabalhadora (que)

crescia em contraposição à crescente produção de riqueza no processo de

industrialização europeu no fim do século XVIII numa dimensão diferenciada de sua

12 Articulam-se estas respostas junto com medidas de coerção e violência, que vêm reprimir ações opostas aos interesses dominantes e que nos diferentes períodos históricos se agudizam de acordo com o nível de ascenso das organizações dos trabalhadores e do nível em que estas demandas são postas, que podem apontar para reformas ou até para pôr em xeque a ordem societária vigente.

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dinâmica como a que havia com a manifestação da pobreza até então” (Netto, 2001, p.

153).

A burguesia, no bojo das lutas travadas entre capital e trabalho no século XIX,

passa a mistificar a pauperização numa perspectiva fragmentária das demandas da

classe trabalhadora, tratando a “questão social” como “problemas sociais” e como uma

questão do âmbito social, dicotomizando as esferas econômica, política, social e cultural

(Netto, 2001, p. 152- 153)13.

As manifestações mais imediatas da “questão social” como a fome, doenças, o

desemprego e a desigualdade são vistas como “desdobramento da sociedade moderna

(...) de características inelimináveis de toda e qualquer ordem social” (Netto, 2001, p.

155). Caberia então o desagravo destas condições através de ações políticas no âmbito

das suas expressões, preservando o cerne da desigualdade determinante das condições

geradoras: a propriedade privada dos meios de produção e o conseqüente acúmulo e

concentração de riquezas (Netto, 2001, p. 155).

A “questão social”, a partir da perspectiva crítica, é entendida como conjunto de

problemáticas e processos próprios e intrínsecos ao modo de produção capitalista,

resultante da contradição entre capital e trabalho. O capital de um lado, necessita

garantir a propriedade privada dos meios de produção e a exploração da força de

trabalho, e os trabalhadores, por outro, precisam lutar para romper com este processo

constituindo um conflito entre estas classes que configura a então denominada “questão

social”.

Sem esta ruptura, a garantia de condições de vida, distribuição de renda e

riqueza em condições de igualdade é inviável. A acumulação e a concentração de

riqueza são alicerces da sociedade capitalista, que se funda na exploração do trabalho a

partir da apropriação privada dos meios de produção.

A emancipação humana – bandeira da classe trabalhadora que só toma vulto

quando esta classe está organizada e em luta – é intrínseca à superação do capital, 13 A “expressão questão social surge por volta da terceira década do século XIX para designar as condições de vida dos miseráveis às quais foram submetidos os trabalhadores no início do capitalismo”. Todavia, a partir da segunda metade do século XIX, a expressão desliza para o pensamento conservador (...). No âmbito do pensamento conservador “a ‘questão social’, numa operação simultânea à sua naturalização, é convertida em objeto de ação moralizadora. E, em ambos os casos, o enfretamento das suas manifestações deve ser função de um programa de reformas que preserve, antes de tudo e mais, a propriedade privada dos meios de produção. Mais precisamente: o cuidado com as manifestações da ‘questão social’ é expressamente desvinculado de qualquer medida tendente a problematizar a ordem econômico-social estabelecida; trata-se de combater as manifestações da ‘questão social sem tocar nos fundamentos da sociedade burguesa. Tem-se aqui, obviamente, um reformismo para conservar” (Netto, 2001, p. 155).

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portanto, “questão social” e capitalismo coexistirão até que esta ordem seja superada.

Enquanto perdurar este modo de produção o trato das desigualdades sociais, da

pauperização, da concentração renda e de riqueza serão tratadas como questões do

âmbito “social”, como objeto de intervenção descolado das outras esferas da vida e da

dinâmica societária, pois “imaginar a ‘solução’ da ‘questão social’ mantendo-se e

reproduzindo-se o modo de produção capitalista é o mesmo que imaginar que o modo

de produção capitalista pode se manter e se reproduzir sem acumulação do capital”

(Netto e Braz, 2008, p. 139).

Agravadas ou com novas manifestações observamos que o trato da desigualdade

social que já se desenhava no início do século XIX – como problemas sociais, naturais a

qualquer ordem – permanecem nos marcos do capitalismo, com alterações que

acompanham a dinâmica desta ordem societária.

Foram constituídas historicamente respostas conservadoras/reacionárias às

demandas e reivindicações postas pelo conjunto de trabalhadores organizados que, pelo

grau de avanço que apontavam, implicavam no questionamento da ordem burguesa.

Ainda que respondendo a demandas do campo do trabalho se imprimiu uma lógica de

incorporação destas medidas para atender também às necessidades do capital. Foram

desenhadas respostas que pactuassem a relação capital-trabalho, no sentido da absorção

de demandas, numa perspectiva de concessão e favor, naturalizando as desigualdades.

O trato da “questão social” pelos setores hegemônicos é geralmente orientado pela teoria da integração social; dessa forma, acabam-se naturalizando as desigualdades sociais, e as políticas sociais perdem seu caráter de conquista passando a ser concebidas como concessões do Estado e do capital, reproduzindo a “ideologia do favor”, caracterizada por formas paternalistas e clientelísticas de relação que se combinam com um tipo de atendimento, por parte do Estado, orientado pela benevolência e a filantropia (Pastorini, 2004, p. 93).

Esta perspectiva de “integração social” trata as manifestações da “questão

social” como disfunções particulares na ordem capitalista e não como produto das

relações sociais engendradas por ela e nela própria.

A constatação de um sistema de nexos causais, quando se impõe aos intervenientes, alcança no máximo o estatuto de um quadro de referência centrado na noção de integração social: selecionam-se variáveis cuja instrumentação é priorizada segundo os efeitos multiplicadores que podem ter na perspectiva de promover a redução de disfuncionalidades – tudo se passa como se estas fossem inevitáveis ou como se se originassem de um “desvio” da lógica social. Assim a “questão social” é atacada nas suas refrações, nas suas

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seqüelas apreendidas como problemáticas cuja natureza totalizante, se assumida conseqüentemente, impediria a intervenção (Netto, 2001, p. 362).

A forma como o Estado capitalista veio responder às manifestações da “questão

social” foi com a adoção de medidas de proteção que garantissem a reprodução social

dos trabalhadores assalariados para o mercado de trabalho, os principais demandatários

de melhores condições de vida e de trabalho, mantendo ainda uma dimensão assistencial

no trato da pobreza e das suas manifestações mais imediatas.

No período monopolista do capitalismo se consolidou a intervenção do Estado

através de políticas sociais. Estas políticas setorizadas e cada qual com sua

especificidade são direcionadas ao atendimento de demandas de forma parcial e

fragmentada, tal como se constituem. As manifestações da “questão social” são

compreendidas e enfrentadas como problemas específicos e particulares através de

ações compensatórias.

Enquanto intervenção do Estado burguês no capitalismo monopolista, a política social deve constituir-se necessariamente em políticas sociais: as seqüelas da “questão social” são recortadas como problemáticas particulares (o desemprego, a fome, a carência habitacional, o acidente de trabalho, a falta de escolas, a incapacidade física etc.) e assim enfrentadas (Netto, 2001, p. 32).

A contradição central que funda o capitalismo é a produção de riquezas

contraposta com a produção de miséria na mesma escala. A incorporação do caráter

público pelo Estado no enfrentamento da “questão social” não significa seu

reconhecimento e enfrentamento na perspectiva de sua superação. O modo de responder

a estas manifestações foi alterado na sua forma adjetiva, inclusive pela pressão dos

trabalhadores que demandavam reformas no capitalismo, no reconhecimento da

necessidade de intervenção do Estado, mas não na sua forma substantiva.

o giro que a organização monopólica da sociedade burguesa conferiu ao enfrentamento das refrações da “questão social” deriva da contínua, sistemática e estratégica intervenção estatal sobre elas. Esta inflexão implicou de fato no redimensionamento do Estado burguês que (...) joga agora uma função coesiva central: dito em poucas palavras, ampliou-se e tornou-se mais complexa a estrutura e o significado da ação estatal, incorporando-se os desdobramentos do caráter público daquelas refrações: as seqüelas da ordem burguesa passaram a ser tomadas como áreas e campos que legitimamente reclamavam, e mereciam, a intervenção da instância política que, formal e explicitamente, mostrava-se como expressão e manifestação da coletividade (Netto, 2001, p. 34).

Ainda assim, em nenhum período histórico nos marcos do capitalismo a pobreza

deixou de ser uma “contra-parte” da produção da riqueza. Aparece como resultado da

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apropriação privada e da concentração de riqueza, como medida intrínseca ao modo de

produção capitalista.

O desenvolvimento plurisecular do “capitalismo real” (isto é, do capitalismo tal como ele se realiza efetivamente, e não como o representam seus ideólogos) é a demonstração cabal e irretorquível de que a produção capitalista é simultaneamente produção polarizadora de riqueza e de pobreza (absoluta e/ ou relativa). Ainda se está por inventar ou descobrir uma sociedade capitalista – em qualquer quadrante e em qualquer período histórico – sem o fenômeno social da pobreza como contra-parte necessária da riqueza socialmente produzida (Netto, 2007, p. 143).

A tradição marxista na leitura do modo de produção capitalista entende que para

o “desenvolvimento capitalista é, necessária e irredutivelmente, produção

exponenciada de riqueza e produção reiterada de pobreza. (...) que encontra a sua

fundamentação teórica nos desdobramentos da lei geral da acumulação capitalista”

(Netto, 2007, p. 142). Nesse sentido, o mesmo autor afirma que

Nas sociedades em que vivemos – vale dizer, formações econômico-sociais fundadas na dominância do modo de produção capitalista –, pobreza e desigualdade estão intimamente vinculadas: é constituinte insuprimível da dinâmica econômica do modo de produção capitalista a exploração, de que decorrem a desigualdade e a pobreza. No entanto, os padrões de desigualdade e de pobreza não são meras determinações econômicas: relacionam-se, através de mediações extremamente complexas, a determinações de natureza político-cultural; prova-o o fato inconteste dos diferentes padrões de desigualdade e de pobreza vigentes nas várias formações econômico-sociais capitalistas (Idem., p. 142).

Destacamos que “a pobreza, na ordem do capital e ao contrário do que ocorria

nas formações sociais precedentes, não decorre de uma penúria generalizada, mas,

paradoxal e contraditoriamente de uma contínua produção de riquezas” (Idem. p. 143).

A pauperização da classe trabalhadora é resultante da exploração do trabalho e

da apropriação/acumulação privada da riqueza socialmente produzida que tem seu

fundamento na política econômica mediada pelo Estado e se reveste de mediações daí

derivadas. A secundarização deste fundamento é o que ocasiona/resulta na naturalização

da desigualdade e da pobreza, como se fossem elementos presentes e permanentes a

qualquer ordem social. Ainda fundamentados em Netto,

É desnecessário salientar que a caracterização da pobreza – e, do mesmo modo, a da desigualdade – não se esgota ou reduz a seus aspectos sócioeconômicos; ao contrário, trata-se, nos dois casos, de problemáticas pluridimensionais. Na análise de ambas, há que sempre se ter presente tal pluridimensionalidade; todavia, a condição elementar para explicá-las e compreende-las consiste precisamente em partir do seu fundamento socioeconômico. Quando este fundamento é secundarizado (ou, no limite, ignorado, como na maioria das

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abordagens hoje em voga nas Ciências Sociais), o resultado é a naturalização ou a culturalização de ambas (2007, p. 142).

Os processos de crescimento econômico e as crises capitalistas determinam

sobremaneira o desenvolvimento da relação capital-trabalho e, na mesma medida, as

políticas estatais de cunho social14. Para que o ciclo de crescimento tenha rebatimentos

concretos na redução da pobreza deve ser acompanhado por políticas de caráter

redistributivo, sem este requisito tendencialmente pode acarretar ainda mais

desigualdade e pobreza (Idem. p. 144).

A proteção social destinada ao trabalhador, como conjunto de medidas

reservadas a sua reprodução social no atendimento às necessidades básicas, é

estruturada pelo Estado capitalista por meio de políticas sociais. Os modelos de

proteção estruturados no interior do sistema capitalista e implementados pelo Estado

constituem respostas à crescente desigualdade com o objetivo de reduzir a pobreza ou

amenizar as expressões da “questão social”.

Estes projetos remetem a um período histórico em que se organizaram modelos

de “bem-estar social” no assim denominado Estado de Bem-Estar Social ou Welfare

State “o experimento histórico nele plasmado [foi] um capítulo da dinâmica capitalista

em que o crescimento econômico esteve conectado à diminuição da pobreza absoluta e

à redução de desigualdades” (Netto, 2007, p. 144).

Nos “anos gloriosos do capitalismo”, como afirma Netto, um determinado

modelo de produção que exponenciava a produtividade foi articulado com a intervenção

do Estado via políticas sociais.

Uma simbiose entre taylorismo/fordismo e macroorientação econômica keynesiana (vale dizer: com uma ativa intervenção do Estado) garantiu, na Europa Nórdica e Ocidental (excluída a Península Ibérica), uma significativa redução da pobreza absoluta e uma diminuição das desigualdades (2007, p. 145).

A proposta keynesiana de intervenção do Estado na economia se contrapunha

em seus princípios ao liberalismo econômico. A primeira defendia a interferência do

Estado na economia no sentido de desenvolver políticas de bem-estar social para os

trabalhadores e assim também estimular o aquecimento da economia (com parte dos

14 O crescimento econômico não é a única condição para enfrentar o pauperismo resultante da contradição capital-trabalho, mesmo os organismos internacionais relativizam a apologia do crescimento econômico no combate às desigualdades nas suas orientações para o direcionamento das políticas sociais para o combate à pobreza na década de 1990 (Netto, 2007, p. 143).

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recursos dos trabalhadores sendo destinada ao consumo, já que ao Estado caberia a

administração de políticas que atenderiam a determinadas necessidades de reprodução

destes trabalhadores) e geração de empregos (pleno emprego). “A política keynesiana

de levar a demanda global a partir da ação do Estado, em vez de evitar a crise, vai

apenas amortecê-la por meio de alguns mecanismos, que seriam impensáveis pela

burguesia liberal stricto sensu” (Behring, 2002, p. 166).

O liberalismo tinha como ideário a defesa da liberdade do mercado e a ação da

“mão invisível” que o regularia, com presença mínima do Estado. Esta opção de não-

regulação da economia ficou em segundo plano no período pós-guerra vigorando

predominantemente nos países os modelos de bem-estar (Welfare State).

Não houve “um” modelo de Welfare State, esta experiência teve realidades

diferenciadas, cronológica e territorialmente, mas que se conjugaram com um período

de larga expansão do capitalismo, forte organização operária e a oposição capitalismo-

socialismo (Netto, 2007, p. 145).

Mas é preciso salientar que as experiências de Welfare não expressaram uma possível “evolução normal” (ou “natural”) do desenvolvimento capitalista. Ao contrário: elas constituíram uma excepcionalidade (cronológica, espacial e sociopolítica) na processualidade multissecular do capitalismo. Não foram mais que episódios, descartados após uma curta existência de três décadas (Netto, 2007, p. 145).

Fora estabelecido um “pacto social” após o fim da Segunda Guerra Mundial,

com a conjugação de crescimento econômico e expansão da lucratividade do capital

com redistribuição social que deu lugar à constituição dos Estados de Bem-Estar Social

– as experiência de Welfare State, nos países centrais15.

A constituição dos Welfare State se deu nos “anos dourados do capitalismo”

num período de expansão econômica “durante a qual crescimento econômico e taxas de

lucro mantiveram-se ascendentes entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a segunda

metade dos anos setenta” (Netto e Braz, 2007, p. 213). Ao cabo destes anos, enquanto o

avanço da organização dos trabalhadores resulta em conquistas e ampliação de direitos e

o capital obtém aumento das suas taxas de lucro, este “pacto” foi possível e necessário.

15 No pós-guerra, quando se punha a necessidade de reconstrução dos países, que concretamente aumentam a produtividade do capital na medida em que impulsionam o setor produtivo (para tal reconstrução), torna-se possível estabelecer este “pacto” entre o capital e o trabalho, no sentido em que se garantem condições de vida no âmbito da oferta de políticas sociais públicas, ao mesmo tempo em que se desonera o capital da manutenção da força de trabalho se permite a liberação de recursos destes trabalhadores para participação no mercado via consumo.

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O avanço das lutas e conquistas obtidas no sentido da garantia e alargamento de

direitos, ocorrida em período posterior à Segunda Guerra Mundial se coordenava com

outro aspecto central: a oposição socialista (Netto, 2007, p. 145). A União Soviética

havia conquistado prestígio na luta contra o nazifascismo e acumulado capital político

na Resistência.

A derrota dos países do eixo na Segunda Guerra, a constituição do campo socialista na Europa oriental, o triunfo da revolução chinesa e o processo de descolonização da Ásia e da África produzirão um novo campo de enfrentamentos – com a oposição dos campos socialista e capitalista – e uma nova relação de forças, com o equilíbrio entre as duas grandes forças. A constituição do campo do “terceiro mundo” contribuía, assim mesmo, para uma perspectiva futura favorável à luta antiimperialista e anticapitalista (Sader, 2007, p. 21).

Foram engendradas respostas pelo “campo” capitalista constituindo

contrapartidas no capitalismo para as demandas dos seus trabalhadores que estão

contextualizadas pela polarização com o modelo proposto pelo “campo” do socialismo

real e se ilustravam numa perspectiva de capitalismo humanizado.

A ideologia burguesa tratava de anunciar “um capitalismo sem contradições,

apenas conflitivo – mas no quadro de conflitos que seriam resolvidos à base do

consenso, capaz de ser construído mediante os mecanismos da democracia

representativa” (Netto e Braz, 2007, p.212). Durante este período a relação

capital/trabalho se coloca em outro patamar, no sentido que o capital retoma o

crescimento de suas taxas de lucro e “pactua-se” com os trabalhadores o atendimento de

parte das suas necessidades como garantias de melhores condições de vida (produção e

reprodução da força de trabalho).

A constituição do Estado de Bem-Estar Social nos países capitalistas centrais

garante que, de um lado, os trabalhadores obtenham melhorias na qualidade de vida

através do acesso a um conjunto de bens e serviços públicos e/ou privados, e que, do

outro, o capital avance em sua exploração16. “É também no período do Estado de Bem-

Estar que, graças aos meios de comunicação de massa recém estruturados, criou-se uma

verdadeira histeria “anticomunista”. E não apenas no Terceiro Mundo. Nos países

centrais predominou uma orientação política conservadora” (Lessa, 2007, p. 284).

16 Para Lessa (1998) o Welfare State deslocou as contradições entre capital e trabalho por um período curto de tempo, logo posto em xeque pela crise estrutural do capital e a dissolução das sociedades pós-revolucionárias (Lessa, 1998, p. 142). As políticas desenvolvidas no período “visavam não uma sociedade mais justa, mas sim a incorporação dos trabalhadores a um mercado consumidor cuja expansão fazia parte da lógica mais global da reprodução destrutiva do sistema do capital” (Idem)

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Mas a crise que sucedeu este período se estendeu para além da década de 1970 e

marca um cenário de profundas mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais.

a profundidade da crise que, na transição da década de sessenta à de setenta, pôs fim aos “anos dourados” levou o capital monopolista a um conjunto articulado de respostas que transformou largamente a cena mundial: mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais ocorreram e estão ocorrendo num ritmo veloz (Netto e Braz, 2007, p. 211).

No final da década de 1960 e início da década de 1970 já se delineava o

processo de crise capitalista. O cenário apontava para a necessidade do capital retomar

o crescimento econômico e as taxas de lucro. “As crises episódicas dão lugar a crises

sistemáticas, que demandam respostas ao capital e ao trabalho, no sentido da garantia de

sua reprodução. A onda longa expansiva é substituída por uma onda longa recessiva: a

partir daí e até os dias atuais, inverte-se o diagrama da dinâmica capitalista: agora, as

crises voltam a ser dominantes, tornando-se episódicas as retomadas” (Netto e Braz,

2007, p.214).

O período de crise que se instala após estes anos toma forma com a redução do

crescimento econômico e com queda nas taxas de lucro do capital no qual “nenhum país

capitalista central conseguiu manter as taxas do período anterior” (Netto e Braz, 2007,

p. 213)17.

Objetivamente, ao movimento do capital repugna qualquer tipo de controle ou regulação externa ao jogo do mercado – e os vários modelos de Welfare consistiam em regulações políticas impostas ao capital. A ofensiva iniciada teve uma finalidade central – fazer do mercado o único regulador societário. Por isso mesmo, a retórica do grande capital (vocalizada na ideologia neoliberal) acerca da necessidade de redução das funções estatais é falsa e mistificadora porque oculta o seu objetivo real: O Estado mínimo que defende equivale a um Estado máximo para o capital (Netto, 2007, p. 146).

As respostas do capital se articulam sobre um tripé: “a reestruturação produtiva,

a financeirização e a ideologia neoliberal” (Netto e Braz, 2007, p. 214). A hegemonia

do capital nas respostas traçadas para combater a crise e recuperar as taxas de lucro se

apoiavam também na dissolução do campo socialista soviético. Relacionava-se o fim do

projeto socialista com “crise fiscal do Estado” valendo-se disso para desqualificar a sua

administração.

Aceitou-se o diagnóstico neoliberal sobre a crise fiscal do Estado, com as necessárias consequências, que terminam priorizando o ajuste fiscal e as

17 Dois elementos são determinantes: a desvinculação do dólar ao ouro pelos Estados Unidos e crise do petróleo no início da década de 1970. Esta crise já se desenhava no cenário onde elementos da crise já estavam postos (Netto e Braz, 2007, p. 159 e p. 213).

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medidas de estabilização monetária. Se abandona a centralidade da reforma tributária com forte conteúdo redistributivo, para financiar as políticas públicas. Porque a prioridade de metas monetárias implica o abandono de políticas monetárias como alavanca de desenvolvimento e de redistribuição de renda. Os déficits públicos apontam então, como alternativa, os investimentos internacionais, com os condicionamentos respectivos, além de um caminho do qual não se pode sair (Sader, 2007, p. 23).

O período histórico anterior aberto pela Segunda Guerra Mundial contrapunha

dois projetos de sociedade distintos, de equilíbrio de forças entre o socialismo e o

capitalismo, foi impactado com a dissolução do campo socialista. Iniciava-se um

período de polarização unilateral, com presença intensa dos Estados Unidos numa “nova

ofensiva política, ideológica e militar” (Sader, 2007, p. 21). Desta forma,

É necessário considerar, antes de tudo, que os avanços antiimperialistas e anticapitalistas das décadas anteriores se apoiavam – e, ao mesmo tempo, se reforçavam – nessa polarização, em um período que reverteu a situação defensiva em que se encontravam as forças de esquerda (Idem).

A crise da década de 1970 afeta também o bloco socialista. Os detonadores da

crise, como a crise do petróleo, o endividamento interno e os juros da dívida, e a

estagnação do desenvolvimento econômico, no fim dos anos 1970 até 1985, além da

solidariedade internacional (aporte de recursos a Cuba, financiamento da guerra do

Vietnã, Afeganistão) e a Guerra Fria, geraram internamente também insatisfação

popular e clima desfavorável para a manutenção do regime (Cf. Frederico, 1994).

A crise global da sociedade contemporânea, que marca peculiarmente as três últimas décadas [do século XX], revela-se – plena embora não exclusivamente – na crise do Estado de bem-estar e na crise do chamado socialismo real, as duas conformações societárias que, cada uma a seu modo, procuram soluções para os antagonismos (e suas consequências) próprios à ordem do capital (Netto, 2007(b), p. 66).

Nesse período, a internacionalização do capital ocorre com a mundialização do

capital financeiro e a divisão internacional dos mercados e do trabalho, com a

hegemonia dos países centrais e com significativo protagonismo dos Estados Unidos.

Behring (2002), ao caracterizar a fase tardia do capitalismo, destaca o processo

no qual a expansão do capitalismo monopolista criou condições de expansão quase

ilimitada para o capital. No entanto, no capitalismo tardio, além dos elementos de fases

anteriores “tem-se a justaposição industrial global de setores dinâmicos e

subdesenvolvidos num mesmo ramo” (2002, p. 116) que agrega maiores possibilidades

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de extensão do processo de exploração de mais-valia e composição de “superlucros”18.

Nesse sentido a autora referenciada afirma que

A combinação diferenciada do conjunto de variáveis que envolvem a obtenção de superlucros está relacionada à existência das ondas longas de aceleração sucessivas na história do capitalismo. O descompasso entre produção e realização da mais-valia promove os ciclos longos de estagnação e expansão do capital. Dentro de um ciclo sucedem alguns momentos: após uma fase de expansão e crescimento, dá-se a superacumulação – uma linha divisória na qual a taxa de lucros começa a decair pela dificuldade de realização da mais-valia; segue, então, a crise e a depressão (Behring, 2002, p. 116).

Esta hegemonia protagonizada pelos Estados Unidos inaugura o que alguns

autores denominam “novo imperialismo”, trata-se da fase que o capitalismo, e sua

classe dominante, se utiliza de estratégias combinadas de coerção e consenso.

Netto considera que

A desconstrução do Welfare adquire o seu verdadeiro significado quando inserida no processo mais amplo da ofensiva do capital: não se tratou, como pretenderam alguns socialdemocratas tardios, de uma simples resposta a uma pretensa “crise de financiamento”, implicando o esgotamento “cultural” de um determinado “contrato social” (Rosanvallon 1981) – ela assinala a liquidação do capitalismo “democrático”, que durou trinta anos, revelando a incompatibilidade de uma conexão durável entre dinâmica capitalista, supressão de pobreza absoluta e redução de desigualdades (2007, p. 147).

Por sua vez, Mota (1995) afirma que se engendra um processo de construção de

identidade que equaliza os prejuízos ocasionados pela crise para as diferentes classes,

competindo a todos assumirem o ônus da crise para que seja articulada a saída (cf.

Mota, 1995, p. 113).

Esta crise – impactando as taxas de crescimento, expansão e lucro do capital –

gera uma ofensiva do capital que se circunscreve também no âmbito da ideologia, na

construção de consensos. As necessidades do capital são socializadas para os

trabalhadores, assim como os ônus da crise. Para Mota

O primeiro passo [para reverter a conjuntura negativa] é o ataque ao movimento sindical, um dos suportes do sistema de regulação social encarnado nos vários tipos de Welfare State – com o capital atribuindo às conquistas do movimento sindical a responsabilidade pelos gastos públicos com as garantias socais e a queda das taxas de lucro às suas demandas salariais (Idem., p.113).

18 Estas alterações ocorrem na medida em que as alterações do modo de produção capitalista com a “terceira revolução tecnológica”, a incorporação de novas tecnologias e aumento da composição orgânica do capital reduz-se a extração de mais-valia, derivada da exploração do trabalho (trabalho vivo) – produzida na medida em que se remunera parcialmente o trabalhador pela sua atividade e se apropria do valor produzido por este trabalho não pago – e com o desemprego estrutural gerado neste período também reduz-se a capacidade de realização da mais-valia produzida (Cf. Behring, 2002).

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Junto a este “ataque” se conjuga a alteração do padrão produtivo, do modelo

rígido para o regime de acumulação flexível, caracterizado pela flexibilidade dos

processos de trabalho, mercados de trabalho, surgimento de novos setores e inovações

no campo comercial, tecnológico e organizacional (Netto e Braz, 2007, p. 215).

Para Behring

Nessa nova forma produtiva, forja-se uma articulação entre descentralização produtiva e avanço tecnológico. Há também uma combinação entre trabalho extremamente qualificado e desqualificação. Contrapondo-se à verticalização fordista, a produção flexível é horizontalizada/descentralizada. Trata-se de terceirizar e subcontratar uma rede de pequenas/médias empresas, muitas vezes com perfil semi-artesanal e familiar (2002, p. 178)

Ainda que os impactos da crise tenham rebatimentos diferenciados nas

economias centrais e periféricas, no Brasil, a “cultura da crise” e o discurso das soluções

capitalistas também foram disseminadas.

a gestação da cultura política da crise tem suas raízes na necessidade de o capital não somente realizar a reestruturação técnica da sua base produtiva, mas de faze-la com o consentimento das classes trabalhadoras; isso significa investir na neutralização dos processos de resistência e em estratégias persuasivas, promotoras de adesões ao seu projeto, valendo-se, para tanto das precárias condições de vida e de trabalho da população brasileira (Mota, 1995, p.111).

A apologia da necessidade de recuo nos direitos conquistados historicamente

pela classe dominante foi uma medida fundamental, pois se tratava de um momento

crucial no estabelecimento de ações que dessem conta das transformações que ocorriam

no mundo.

Nesse contexto de mudanças e estratégias do capital, as políticas sociais passam

por profundas alterações. Podemos dizer que as políticas sociais assumem novos

formatos na medida em que as reformas então propostas para sua operação apontam

para uma lógica diferenciada daquele modelo que orientou a construção do Welfare

State.

As reformas operadas no final do século XX e seus desdobramentos ao longo da

primeira década do século XXI apontam para a consolidação de um modelo de proteção

social aos trabalhadores voltada fundamentalmente para a amenização e administração

da pobreza, com um discurso de combate à ela, como forma de enfrentamento às

expressões da “questão social”19.

19 O reordenamento da forma de enfrentamento da “questão social” toma contornos diferenciados de acordo com o

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Essas estratégias, que aparecem como “soluções mágicas”, são formuladas tendo

como meta declarada o combate à pobreza. Na prática alteram os sistemas de proteção

social no Brasil e na América Latina, buscando instaurar um modelo único e “moderno”

para as respostas à “questão social”. Conforme destacam Pastorini e Galízia:

Especificamente, a hegemonia das recomendações neoliberais externas foi conseguida e se conserva a partir de diversas estratégias internas e externas de diferente natureza, porém ambas importantes. Do ponto de vista teórico-político o pensamento neoliberal e as ações concretas a respeito da reforma social são apresentados como modelo único, síntese de valores e supostos básicos da sociedade moderna com predomínio de análises econômicas e soluções tecnocráticas, portanto neutras. Toda reforma sugerida pode ser descrita como naturalização de processos “modernizadores”, noção que indica que o desenvolvimento histórico da sociedade é produto de tendências espontâneas e irreversíveis, portanto o projeto se transforma num único, ideal e desejável (2006, p.85).

O ideário neoliberal20 propunha um modelo de reforma que reorienta a

intervenção estatal, seja na economia, seja no social. Estas reformas têm início na

América do Sul por alterações estruturais nos sistemas de Seguridade Social. No Brasil

a primeira contra-reforma operada foi no sistema previdenciário21.

Assim, os sistemas de seguridade social de toda a América do Sul parecem ter vivido os mesmos processos e proteção, pois se oferecem iguais soluções mágicas para todo e qualquer problema. Entendemos que a apresentação de estratégias únicas e saídas específicas às tradicionais inibem e/ou anulam política e ideologicamente qualquer outra opção possível e contribuem para a homogeneidade dos processos reformadores (Idem., p.85).

As classes dominantes defenderam historicamente a redução da intervenção do

Estado na economia, deixando livre o fluxo do mercado na regulação das relações

sociais. No capitalismo contemporâneo a intervenção do Estado é cada vez mais regular,

inclusive requisitada pelo capital, especialmente em momentos de crise, seja para

garantia crescente de lucros, seja para contribuir com o processo de “passivização” dos

grau de organização e luta dos trabalhadores. A conjuntura de crise estrutural do capitalismo junto com o refluxo destas forças – partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais – põe um cenário de retração destas políticas, focalização das mesmas diante da pauperização extrema dos trabalhadores, de formas agudizadas de pobreza principalmente nos países economia periférica. No Brasil desde a entrada da década de 1990 as orientações dos organismos internacionais passam a ser seguidas à risca no ordenamento das políticas sociais. 20 Segundo Netto e Braz: “O que se pode denominar ideologia neoliberal compreende uma concepção de homem (considerado atomisticamente como possessivo, competitivo e calculista), uma concepção de sociedade (tomada como um agregado fortuito, meio de o indivíduo realizar seus propósitos privados) fundada na idéia da natural e necessária desigualdade entre os homens e uma noção rasteira da liberdade (vista como função da liberdade de mercado)” (2007, p. 226). 21 A utilização do termo contra-reforma implica no entendimento que este processo retira direitos, reduz investimentos e retroage em relação a direitos conquistados e é amplamente utilizado pelo Serviço Social e outros formuladores. Entende-se que reforma visa “melhorar”, ampliar, em contraposição ao modelo de “reformas” operadas na década de 1990 em diante. A Emenda Constitucional nº 20 foi promulgada em 15 de dezembro de 1998, mas tramitou como PEC nº33 desde 1995.

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conflitos. É delegada ao Estado a função de garantir as condições gerais de produção e

reprodução do capital por meio da ampliação da sua intervenção nas garantias de lucro e

concentração de renda e riqueza, assim como a manutenção das medidas de exploração

do trabalho, em contraparte, exige a redução da sua intervenção para garantias de direito

dos trabalhadores por meio da regulação do trabalho e no investimento em políticas

sociais22.

A retomada de uma teoria liberal “atualizada” supunha como “essência do

arsenal do neoliberalismo: uma argumentação teórica que restaura o mercado como

instância mediadora societal elementar e insuperável e uma proposição política que

repõe o Estado mínimo como única alternativa e forma para a democracia” (Netto,

2007 (b), p. 77).

O processo de globalização da economia significou um grande processo de

desregulamentação das economias nacionais para dar abertura aos investimentos e

circulação de capital. Netto e Braz (2007) destacam que não se trata apenas de um

processo de desregulamentação das relações de trabalho, mas de uma

“desregulamentação universal” que se fundamentam na garantia de “plena liberdade em

escala mundial, para que os fluxos de mercadorias e capitais não sejam limitados por

quaisquer dispositivos” (Idem, p. 228)23.

Durante a ditadura militar brasileira e em muitos dos países latino-americanos

ocorreu um processo de endividamento externo e interno, pois foram feitos empréstimos

em larga escala e tiveram rebatimentos na entrada dos anos 1990 e seguintes.

Fundamentava-se já neste período, conjugada a crise internacional, o ajuste fiscal e o

redirecionamento das políticas sociais que tensiona a conjuntura em que vão se

estabelecer estas políticas na sua implementação em tempos de neoliberalismo.

Durante a ditadura, na década de 70, os governos militares brasileiros formavam vultosos empréstimos junto aos bancos estrangeiros, a juros flutuantes. (...) Assim, ao final da década de 70, os credores quintuplicaram essas taxas, o que seria ilegal pelo Direito Internacional. Nos anos 90, o País foi submetido a mais um ciclo de endividamento externo e interno, para financiar a enxurrada de importações do Plano Real, quando o câmbio permaneceu fixo durante vários

22 O Estado, especialmente em países periféricos, está submetido ao pagamento de dívidas externas impagáveis, repõe continuamente a condição de subalternidade de suas economias às economias centrais, que impõem a composição do superávit-primário que contingência especialmente as políticas sociais, como veremos em seguida. 23 Isto não significa que os países centrais desregulamentem seus mercados e fluxos de força de trabalho, pelo contrário, passam a impor fronteiras cada vez mais limitadas e suas economias enquanto garantem a ruptura de barreiras que impeçam o fluxo de capitais dos países centrais nas economias dos países periféricos (Netto e Braz, 2007, p. 229).

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anos. As altas taxas de juros internas, estabelecidas para atrair o capital externo determinaram também o aumento da dívida interna (Ávila, 2005, p. 24).

O aumento da dívida externa condicionou as medidas que foram adotadas no

período de abertura democrática e a forma como se consolidaram as políticas sociais e

econômicas no Brasil. A entrada da década de 1980 punha no cenário a reivindicação

dos trabalhadores, por meio de partidos, sindicatos e movimentos sociais pela

consolidação de garantias de direitos, mas já se desenhava um cenário de crise e a forma

como se atuaria diante dela.

A conjuntura propícia para a consolidação de direitos já estava tensionada pela

crise mundial. “A relação dos países centrais com os países periféricos se constituiu

historicamente como uma relação de exploração. Mesmo nos ‘anos gloriosos’ esta

relação manteve-se inclusive para financiar os seus ‘Welfares’” (Netto, 2007, p. 148).

Esta exploração intensifica-se ainda mais nos anos de recessão, com ampliação

do endividamento e da subordinação das economias periféricas às economias centrais.

No período subseqüente ao esgotamento da onda longa expansiva, os tradicionais e intensivamente utilizados mecanismos de sucção de recursos empregados pelos países centrais foram qualitativamente ampliados com a entrada em cena dos instrumentos de eternização do endividamento externo de boa parte dos principais países da periferia; no último terço do século XX, as imposições derivadas da dívida externa transformaram os países periféricos em grandes exportadores de capital para os países centrais (Netto, 2007, p. 148).

O ajuste fiscal e a política de superávit primário empreendida desde o final da

década de 1990 no Brasil24 produziram o contingenciamento dos gastos sociais numa

política econômica fundamentada no pagamento dos juros da dívida como prioridade25.

A manutenção do ajuste implica, inclusive, na retração do setor produtivo e da geração

de empregos diretos e indiretos vinculada, visto que a política de superávit primário

implica, inclusive, na redução de investimentos para o “aquecimento” da economia e

impulsionar a geração de empregos.

24 O superávit primário é o cálculo das receitas subtraídas as despesas, não incluídos aí os recursos destinados para o pagamento os juros da dívida pública interna e externa. O superávit primário foi uma exigência do FMI para a realização de empréstimo em 1998, com objetivo de pagamento da dívida externa. Nos anos seguintes as metas foram não somente cumpridas como superadas (Ávila, 2005, p. 9). 25 A definição dos gastos públicos é elencada em prioridades classificadas em gastos com a dívida pública, gasto prioritário dos governos; despesas obrigatórias (com percentuais definidos por lei) e investimentos de responsabilidade estatal (infra-estrutura: energia elétrica, transporte ferroviário, rodovias, portos, construção de equipamentos como hospitais e escolas etc.). As condições do endividamento tiveram momentos centrais: o período da ditadura no final da década de 1970 e a entrada dos anos 1990 para estabilização do Plano Real (em 1994). (Ávila, 2005, p. 23).

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Uma das maneiras de aumentar o superávit é “elevar a produção, a renda e,

consequentemente, as receitas geradas para o governo” (Ávila, 2005, p.12) o que

demandaria que o governo aumentasse, num primeiro momento, os investimentos,

reduzindo o superávit primário. Trata-se de uma política de médio prazo, pois somente

num segundo momento aumentaria a arrecadação, no entanto, é uma política oposta às

recomendações dos organismos internacionais (Ávila, 2005, p. 12 – 13).

A direção que os seguidos governos têm adotado e que não sofreu alterações de

fundo, mantendo o corte de gastos e aumento de tributos26. Estes cortes representam,

muitas vezes, o equivalente ao orçamento anual da área de assistência social e

educação27.

A maior parte do superávit permanece contingenciada nos cofres públicos, como

reserva de confiança para os credores. Não são utilizados para pagamento de juros nem

como investimentos em políticas públicas. Entre 1999 e 2004 este percentual chegou a

60% do superávit primário (Ávila, 2005, p. 16).

Nesse contexto podemos perceber que já se desenhava uma nova orientação para

as políticas sociais. Com o Consenso de Washington28 o reordenamento do Estado e das

políticas sociais se estruturava guiado pelas orientações dos organismos multilaterais e

sua preocupação referenciada no alívio da pobreza.

a continuidade da aplicação dos planos de ajuste viu-se acompanhada por sugestões de “correções de rota” adjetivas. As mesmas instituições internacionais que patrocinaram as políticas de ajuste começaram a revelar “preocupações” com o agravamento do quadro social, manifestamente no tocante à pobreza (Netto, 2007, p. 151).

O contra-senso gerado pelo ajuste fiscal e suas consequências foram

demonstrados nas orientações para construção de políticas de compensação a estas

sequelas.

Ao ajustarem-se às diretrizes traçadas pelas instituições financeiras no Consenso de Washington, os países periféricos reformam os sistemas de

26 “Desde 1999, quando começou a política de superávit, os gastos sociais foram reduzidos, se medidos em porcentagem da arrecadação federal” (Ávila, 2005, p. 14). De 1995 a 2004 a carga tributária aumentou de 29% para 36% do PIB (Idem, p. 17). 27 Em 2005 houve um corte de 15,9 bilhões no orçamento (idem, p. 15), em 2007 o superávit primário foi o maior da série histórica (iniciada em 1991 pelo Banco Central), na ordem de 101,6 bilhões – equivalente a 3,98% do Produto Interno Bruto (PIB) superando a meta de R$ 95,9 bilhões (3,75% do PIB) estabelecida para 2006. Em 2008 o contingenciamento de recursos foi da ordem de R$ 19,4 bilhões (Orçamento Geral da União) equivalente a 3,8% do PIB (fonte: Agência Brasil). 28 O Consenso de Washington veio designar as medidas orientadas por organismos como Banco Mundial e FMI que viria definir o combate à pobreza e as políticas sociais na América Latina delimitado em 1989 e posto em prática na década de 1990.

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proteção social pela privatização, a descentralização, a focalização e construção de programas (fundos) sociais de emergência. As privatizações nas áreas da saúde, previdência e assistência justificam as medidas focalistas das políticas e o seu caráter filantrópico, reatualizando as formas mais arcaicas de naturalização das expressões da questão social (Santos, 2006, p. 23).

Passam a vigorar fundamentos de eficiência e eficácia para a avaliação dos

impactos das políticas e serviços estatais no combate à pobreza. A transferência de

responsabilidades estatais para o setor privado passa pela concepção do Estado

ineficiente e ineficaz em contraposição ao privado, o mercado. Segundo este mesmo

autor,

A privatização, desregulamentação e a liberalização, resultantes dos ajustes estruturais propugnados desde o Consenso de Washington, são responsáveis pela transferência das funções do Estado para o setor privado. Criaram-se novas regras econômicas, supondo um Estado que garanta a rentabilidade econômica das grandes empresas: desregulamenta-se e privatiza-se para garantir a consolidação da hegemonia burguesa. A economia globalizada concentra o poder político das organizações internacionais (bilaterais, plurilaterais ou multilaterais) (Santos, 2006, p. 22).

A redução da intervenção do Estado significa redução de direitos que gerariam

“ônus” ao capital com gastos para a manutenção da reprodução social da força de

trabalho por ele utilizada. A garantia de direitos sociais com base nas contra-partidas do

capital (taxas, impostos e tributos) e do trabalho passa a estar cada vez mais restrita.

Na entrada da década de 1990 no Brasil o ideário neoliberal passa a ser um dos

instrumentos privilegiados para encaminhar este projeto político-econômico do grande

capital, como afirmam Behring e Boschetti (2008) no que denominam de processo de

contra-reforma do Estado. “Os anos 1990 até os dias de hoje têm sido de contra-reforma

do Estado e de obstaculização e/ou redirecionamento das conquistas de 1988, num

contexto em que foram derruídas até mesmo aquelas condições políticas por meio de

expansão do desemprego e da violência” (2008, p.147).

Esta “contra-reforma” pretendia garantir “novos pactos e parâmetros para o

atendimento das necessidades sociais – sem romper com a lógica da acumulação e da

racionalidade do lucro” (Mota, 2008, p. 31) e tem por objetivos29

29 Neste período tem início a desconstrução do que já havia sido constituído em torno da assistência social no Brasil, com o fechamento da Legião Brasileira de Assistência (LBA) – já tensionada pelos escândalos orquestrados no governo Collor (Sposati, 2005, p. 21) e segue em processo de refilantropização desta política com a criação no governo FHC, da “Comunidade Solidária”, consolidando perspectivas históricas presentes na assistência social e aprofundando os aspectos conservadores da mesma na relação entre Estado, entidades prestadores de serviços e da “sociedade civil organizada” como veremos adiante.

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transformar o cidadão sujeito de direitos num cidadão-consumidor; o trabalhador num empreendedor; o desempregado num cliente da assistência social; a classe trabalhadora em sócia dos grandes negócios e as comunidades em células do “desenvolvimento local”, delas surgindo uma “sociedade solidária e cooperativa” (Mota, 2008, p. 31-32).

Com estas mudanças, orquestradas para retomada do crescimento da

lucratividade do capital, o estabelecimento de orientações macroeconômicas para o

reordenamento das políticas econômica e social colidiam com a perspectiva apontada

pela legislação social e impôs retrocessos já no início de sua implementação.

As medidas de ajuste articuladas como resposta à crise generalizada implicaram

num conjunto de mecanismos para retomada do crescimento do capital e sua

legitimação. Nesse sentido, Mota afirma que

A crise econômica requereu, assim, medidas de ajustes necessárias ao processo de reestruturação da economia, mas que intensificaram as tensões sociais. Ao longo das [décadas de 1980 e 90], apesar das diversas iniciativas implementadas e que apontam para momentos de tênue recuperação da economia, a crise vem sendo enfrentada valendo-se de uma cruzada contra os mecanismos anticíclicos de base keynesiana, tendo como contrapartida um programa de corte neoliberal, marcado pela negação da regulação econômica estatal, pelo abandono das políticas de pleno emprego e pela redução dos mecanismos de seguridade social, em prol, é claro, da regulação operada pelo mercado (2005, p.56).

A ideologia neoliberal objetiva centralmente a ampliação do movimento do

capital monopolista rompendo com as restrições sociopolíticas que pudessem reprimi-

lo, começando pela proposta de redução da intervenção do Estado na economia: “o

Estado passou a ser ‘demonizado’ e apresentado como um trambolho anacrônico que

deveria ser reformado” (Netto e Braz, 2007: 227).

Estas reformas não apontavam para a recomposição de direitos, mas ao

enxugamento do Estado na sua função social, e foi denominado “contra-reforma”30 do

Estado, pois tinha como determinantes a redução de prerrogativas e garantias previstas

pelas políticas sociais, não a diminuição efetiva de sua intervenção, pois “o objetivo real

do capital monopolista não é a ‘diminuição’ do Estado, mas a diminuição das funções

estatais coesivas, precisamente aquelas que respondem à satisfação de direitos sociais”

(Netto e Braz, 2007: 227). Tratava-se de manter a intervenção do Estado para a garantia

do aumento dos lucros e uma das contrapartidas era a diminuição dos “gastos sociais”

30 Behring (2008) utiliza o termo de contra-reforma para contrapor o que vinha sendo chamado de reforma no governo FHC, que ao invés de ampliar e melhorar as políticas no sentido da garantia de direitos, enxugava e retirava direitos, anulando-os e configurando um cenário regressivo para a consolidação de direitos e novas conquistas.

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que estariam deixando o Estado “inchado” e sem condições de desenvolver a economia,

responsabilizando-o pelas crises.

Teve início um amplo processo de privatização dos setores e serviços

estratégicos, passando segmentos destes setores e serviços para a exploração e

administração do capital privado, subsumindo a economia nacional aos grupos

monopolistas (Netto e Braz, 2007, p. 228). Dessa forma

trata-se do processo de privatização, mediante o qual o Estado entregou ao grande capital, para exploração privada e lucrativa, complexos industriais inteiros (siderurgia, indústria naval e automotiva, petroquímica) e serviços de primeira importância (distribuição de energia, transportes, telecomunicações, saneamento básico, bancos e seguros) (Netto e Braz, 2007, p. 228).

Este processo de privatização generalizado que ocorreu na década de 1990

deixou a economia nacional ainda mais dependente e vulnerável em relação às

economias centrais. A hegemonia do capital financeiro no neoliberalismo é um

elemento central, conforme afirma Sader

O neoliberalismo promoveu a hegemonia do capital financeiro, em sua forma especulativa, praticamente em todas as sociedades latino-americanas. Desenvolveu-se um processo de financeirização de nossos países, que se estendeu praticamente por todos os poros de nossas sociedades, incluindo o Estado, multiplicaram-se o desemprego e as distintas formas de precarização das relações trabalhistas – todas formas de superexploração do trabalho (2007, p. 18).

Alterações significativas são consolidadas: desemprego estrutural, maior

concentração de renda, restrição de direitos sociais. As bases do bem-estar social são

derruídas, aumentando a concentração de renda e a desigualdade entre as classes.

O capital financeiro não cria as bases sociais de apoio suficientes para a sua legitimação no poder. Não gera empregos; ao contrário, elimina empregos. Não distribui renda, ao contrário, intensifica a concentração de renda. Não amplia direitos sociais; ao contrário, os debilita. A financeirização faz vítimas os pequenos e médios empresários. As bases materiais do seu processo de reprodução permitem, no máximo, arrastar setores do grande capital voltado para a exploração e para a alta esfera do consumo (Ibidem.).

A base da financeirização é a estabilidade monetária, à custa de vultosos

empréstimos resultantes no endividamento, conjugado a uma política de juros

exorbitantes (Sader, 2007, p. 19). Essa diretriz se consolida com a desregulação dos

mercados e submissão das economias nacionais com fins de manter e aprofundar a

dependência das economias periféricas às centrais, obtendo êxito nos seus objetivos. O

mesmo autor afirma que

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Em seu ciclo de implementação, o modelo teve êxitos econômicos imediatos, depois da iniciativa com seus planos de contra-reformas, valendo-se de desregulação econômica, para transferir a inflação para o imenso déficit público que, ao levar os Estados latino-americanos à quebra, por sua vez reforça sua dependência dos organismos financeiros internacionais (Idem., p. 19).

A construção ideológica da perspectiva de um Estado mínimo para o

enfrentamento da “questão social”, no que tange as demandas dos trabalhadores

atendidas pelas políticas sociais, se estrutura no bojo das orientações dos organismos

multilaterais que servem aos interesses defendidos pelos países centrais.

As recomendações do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco

Mundial31 (BIRD) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), possuem

uma linha comum em suas orientações, que é a desvinculação das políticas sociais, no

sentido da ruptura da integralidade das ações apontada pela Seguridade Social

constituída legalmente, da interlocução entre as políticas sociais e direcionando para a

focalização de cada uma delas (Mota, 1995).

Esta desvinculação está implicada na manutenção de políticas focalizadas nos

mais pobres, ou grupos considerados “vulneráveis”, num processo de desoneração do

capital de sua parcela de contribuição sobre o financiamento destas políticas (Mota,

2005, p. 202-203), na medida em que retrocede na diversificação das fontes de

financiamento, retirando as necessárias contribuições patronais e ampliando a

contribuição dos trabalhadores.

As políticas sociais passam por um processo de mudança e desmonte. Os

serviços que não são rentáveis para o capital têm sua oferta pública, ainda que

precarizada e cada vez mais restrita à população mais pauperizada. Neste período de

crise esta perspectiva se consolida. A respostas à pauperização dos trabalhadores e às

manifestações da pobreza e da “exclusão” foram pautadas na década de 1990 por estes

organismos e até hoje, nenhuma das soluções, planos e projetos orquestrados por eles

atingiu os resultados por eles expressados.

Nas palavras de Behring e Boschetti (2007): “a tendência geral tem sido a de

restrição e redução de direitos sob o argumento da crise fiscal do Estado, transformando 31 A sigla BIRD vem de "Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento", que, em conjunto com a Associação Internacional para o Desenvolvimento (AID) formam o que é tradicionalmente conhecido como “Banco Mundial”. O “Grupo Banco Mundial” é formado por BIRD, AID e outras três agências: a Corporação Financeira Internacional (IFC - que trabalha com o setor privado), a Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (AMGI - que faz seguros para investimentos nos países em desenvolvimento), e o Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI - que julga disputas sobre investimentos). As cinco agências trabalham em conjunto para o objetivo final da redução da pobreza. (fonte: Banco Mundial em www.bancomundial.org.br).

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as políticas sociais (...) em ações pontuais e compensatórias direcionadas para os efeitos

mais perversos da crise” (Idem, p. 156).

Na Constituição Federal de 1988 foram instituídas as bases para a conformação

de um Estado de Bem-Estar Social. No entanto, já no início da década de 1990, o Brasil

– como os demais países de economia periférica – subordina-se à ideologia e às práticas

dos princípios do neoliberalismo (Mota, 2008).

No período anterior, de ditadura militar32, o trato da “questão social” pelo Estado

se dava pelo binômio “repressão-assistência”, com uma política assistencial emergencial

ampliada como medida de atenuação das tensões sociais produzidas pelo regime

autoritário (Cf. Netto, 2001 (b); Bravo, 1996). Como afirma Bravo: Em face da questão social o período de 1964 a 1974, o Estado utilizou para sua intervenção o binômio repressão-assistência, sendo a política assistencial ampliada, burocratizada e modernizada pela máquina estatal, com a finalidade de aumentar o poder de regulação sobre a sociedade, suavizar as tensões sociais e conseguir legitimidade para o regime, como também servir de mecanismo de acumulação de capital (1996, p. 29).

O processo de abertura democrática teve como elementos a crise econômica, o

endividamento crescente, índices inflacionários altíssimos (em torno de 200%), arrocho

salarial, alto índice de desemprego e o retorno da organização operária ao cenário de

lutas sociais, o que abalou o regime ditatorial (Bravo, 1996 p. 48-49). “A abertura não

almejava entregar o poder à oposição democrática, mas realizar alguns itens de sua

plataforma, a fim de conquistar maioria eleitoral para a ala civil do regime, sem que os

interesses dominantes fossem afetados” (Idem., p. 48).

Este processo esbarrou na refuncionalização do Estado para a garantia dos lucros

do capital e, para atender a estes interesses, cabe ao Estado também instituir estratégias

de consenso entre as classes antagônicas. Não era mais possível responder às

manifestações da “questão social” apenas com ações filantrópicas e repressão.

A Carta Magna expressa o resultado do tensionamento: ao mesmo tempo em que

estão presentes elementos de garantia de direito alguns elementos indicam condições

32 A ditadura militar se configurou como um período de restrição de direitos políticos e em contraposição, de forma contraditória, ocorreu o crescimento econômico com o “milagre brasileiro” às custas do endividamento que trouxe rebatimentos que se estendem até os dias atuais, e o alargamento de alguns direitos sociais. O processo de anistia em 1979 começou o período de abertura democrática e em 1983 temos o movimento por eleições diretas, que só ocorrerão concretamente nas eleições majoritárias em 1989.

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para o processo de privatização de setores que constituem as políticas de direito, como a

Saúde e Previdência 33.

As políticas que constituem o tripé da Seguridade Social – Saúde, Previdência e

Assistência Social – tornam-se campos privilegiados para o investimento privado,

distorcendo seu caráter público e de direito com uma perspectiva universalizante.

Ocorre em paralelo a desvinculação econômica e política – oposta à relação

orçamentária prevista na Constituição Federal de 1988.

A entrada da década de 1990, diante da conjuntura de crise mundial, trazia uma

contradição para a constituição de políticas sociais e de um modelo de bem-estar social.

O país vivia um processo de abertura e transição democrática que tinha como horizonte

a ampliação das políticas sociais. São estruturadas respostas à crise em diferentes níveis:

econômico, através do processo de reestruturação produtiva; político e social, através da

coerção e repressão do movimento organizado dos trabalhadores e retrocesso no âmbito

da garantia de direitos; e ideológico, através da constituição de consensos que garantam

a manutenção destas estratégias.

Apenas alguns serviços de saúde e de educação, por exemplo, com um

parâmetro cada vez mais rebaixado, continuam sendo oferecidos como resposta às

expressões da “questão social”, cada vez mais precários, esparsos e residuais, na medida

em que o acesso é dificultado e a permanência não é garantida. Com políticas de caráter

cada vez mais pontual e de qualidade rebaixada as garantias de atendimento às

necessidades são parametrados por índices quantitativos e não qualitativos.

São reforçados sistemas duais e fragmentados, nos quais se atende aos

segmentos da população com bases diferenciadas. Para aqueles que podem pagar

existem os bens e serviços “disponíveis” no mercado e para os que não podem pagar por

33 O texto constitucional já previa a “existência de sistemas complementares tanto no caso da saúde como da previdência” (Mota, 2008, p.139). A precarização dos equipamentos e serviços destes setores se dá na medida em que passa a ser acessado apenas pela população mais pauperizada. Podemos observar os serviços de ponta na área de saúde, por exemplo, pelo seu alto custo continuam sendo oferecidos fundamentalmente pelo Estado, muitas vezes em associação com o serviço privado. Serviços públicos com dupla “porta de entrada” na área saúde existem em Hospitais Universitários, como o Hospital Clementino Fraga Filho (HUCFF), da UFRJ. Já estão instalados planos de saúde desde o início do ano 2000, que possuem alas próprias, mas que utilizam equipamentos e recursos humanos públicos, pagos pelos planos privados, mas que são os mesmos que prestam o serviço público para o qual foram contratados. Na carência de recursos, num cenário de estagnação e redução dos investimentos, cirurgias e procedimentos são suspensos com esta justificativa, enquanto são priorizados os procedimentos privados. Mas em serviços de alta complexidade, que são realizados pelo setor público para os usuários com plano de saúde, não há relação inversa de remuneração por estes serviços. Os serviços mais básicos de saúde e previdência continuam sendo oferecidos, como resposta do capital às expressões da “questão social” cada vez mais precários, esparsos e residuais, na medida em que o acesso é dificultado e a permanência não é garantida.

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eles existe a possibilidade de requisição ao Estado. Estes serviços, bens e benefícios são

oferecidos de forma direta e/ou em parceria com a sociedade civil como medidas

pontuais/emergenciais, conforme destaca Montaño:

o novo trato da “questão social” deve ser, na moldura neoliberal, dual. Por um lado tem de atender com serviços de qualidade à população com capacidade de adquirir serviços no mercado, segundo suas possibilidades econômicas, numa atividade claramente lucrativa. Por outro, deve intervir, por meio do Estado ou de entidades filantrópicas, nas demandas pontuais da população carente, com precários serviços momentâneos. Altera-se a dimensão de seguridade social como direito do cidadão, a universalidade da prestação do serviço, de qualidade homogênea para toda a população, o caráter não-contratualista das políticas sociais e assistenciais (Montaño, 2007, p. 196).

Na configuração do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) foram

desenhados modelos a partir de dois padrões em formas autênticas ou mistas. A

seguridade social brasileira é mista (ou híbrida), uma vez que apresenta características

do modelo bismarckiano e beveridgiano de proteção social. No Brasil a previdência

social num sistema de seguro contributivo, a saúde e a assistência social não-

contributivos (Boschetti, 2003, p. 63).

O modelo bismarckiano (engendrado nos anos 80 do século XIX) é marcado

pela lógica do seguro, de caráter contributivo e proporcional a estas contribuições

anteriores a concessão do benefício (Boschetti, 2003, p. 61-63). Foram criados o seguro-

doença (obrigatório para os trabalhadores da indústria) com custeio compartilhado entre

trabalhador e empregador; o seguro acidente de trabalho financiado pelo empregador e o

seguro por invalidez e velhice mantido por trabalhadores, empregadores e pelo Estado

(Araújo, 2005, p. 4).

O modelo beveridgiano (datado da década de 40 do século XX), caracterizado

como modelo assistencial, condicionava-se ao “teste de meios” para garantia de

mínimos sociais aos necessitados (Boschetti, 2003, p. 61-63). Este sistema previa

mecanismos de “segurança social” para situações de indigência ou incapacidade

laborativa para os que comprovassem estas condições, temporária ou permanentes

(Idem).

Já na contemporaneidade ocorre uma passagem de uma visão não-contratualista

e incondicional de proteção social para visão contratualista, com base no mercado de

bens e serviços em setores fundamentais para a garantia de condições de vida à

população.

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A oferta de serviços pelo Estado passa a ter cada vez mais e centralmente, a

presença do setor privado, seja na concessão de setores para exploração de serviços, seja

na parceria para prestação destes serviços. Em alguns casos ocorre transferência de

responsabilidades administrativa, de gestão e execução de serviços à população e de

forma cada vez mais pontual e fragmentada. Como explica Montaño,

transfere-se para a órbita da “sociedade civil” a iniciativa de assisti-la [setores pauperizados da população] mediante práticas voluntária, filantrópicas e caritativas, de ajuda mútua ou auto-ajuda. É nesse espaço que surgirá o que é chamado de “terceiro setor”, atendendo a população “excluída” ou parcialmente “integrada”, um quase “não-cidadão”. Isto cai como “uma luva” na mão do projeto neoliberal (2007, p. 197).

A constituição da Seguridade Social brasileira se situa nos marcos destas

alterações, balizadas pela conjuntura mundial e nos fundamentos da política social no

capitalismo. Veremos como são assinaladas as tensões para a implementação deste

sistema, no que concerne às garantias de direitos.

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1.2 Seguridade Social e Assistência Social no Brasil

O contexto histórico da constituição da Seguridade Social brasileira apontou –

em seu marco formal-legal inscrito na Constituição Federal de 1988 e nas leis que

regulamentam as políticas que compõem – para o avanço no trato das expressões da

“questão social”. No entanto a entrada dos anos 1990 demarcou um divisor de águas

entre a sua formulação e seu desmantelamento, durante o período de sua

implementação.

Este processo implica no reordenamento da proteção social e faz parte do

movimento maior denominado, de forma ampla, de processo de assistencialização da

seguridade social brasileira34. A análise desse processo nos obriga a pensar no conjunto

de transformações nas ações na área de assistência social e sua relação com as demais

políticas, assim como as alterações na legislação e suas implicações no ordenamento e

execução desta política social.

Consideramos que o processo de assistencialização não se restringe à política de

assistência social, pelo contrário, a nosso ver, o destaque que esta política adquire em

relação às demais políticas sociais acontece concomitantemente à redução da presença

direta do Estado em outras áreas como: previdência e saúde, políticas sociais que, junto

com assistência social, compõe o tripé da Seguridade Social. Este conjunto de mudanças

relaciona-se, de diferentes formas, com as demais políticas públicas, tais como a

educação, transporte, moradia, saneamento básico, dentre outras, aquelas políticas

sociais que compõem as ações de proteção social do Estado.

Aqui recuperamos a trajetória histórica da construção da Seguridade Social

brasileira e os aspectos que afirmaram seu redirecionamento. Para isto retomamos as

determinações que pautam a Constituição Federal de 1988, no bojo do processo de

redemocratização e os elementos que se conjugaram a esta conjuntura: o neoliberalismo

e a reestruturação produtiva. Ainda neste capítulo trataremos das políticas que tomam

forma como modelos de gestão da pobreza nos governos do período democrático.

Na configuração das políticas de seguridade social na Constituição Federal de

1988 estavam presentes os princípios de universalidade da cobertura dos serviços,

financiamento com diversificadas fontes, benefícios regulados por valores reajustáveis e 34 Em 1995 o termo “assistencialização” é utilizado pela primeira vez na tese de doutoramento da professora Ana Elisabete Mota, que tem seus resultados publicados no livro “Cultura da Crise e Seguridade Social”, Ed. Cortez, 2005.

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irredutíveis, que apontavam para a democratização e universalização do acesso e

participação da população na construção, decisão e acompanhamento deste processo.

A Carta Magna de 1988 concebe a constituição de dois regimes: um público

básico, com teto pré-estabelecido e programas de assistência a grupos denominados

como vulneráveis, combinado com políticas na forma de seguro privado (Mota, 2005, p.

204).

O estabelecimento das políticas sociais desenhava a forma pela qual o Estado

deveria responder a “questão social”. Foram estabelecidos naquele momento parâmetros

para as políticas de Seguridade Social e outras políticas públicas que definem a garantia

de condições de vida. Segundo Behring e Boschetti

O texto constitucional refletiu a disputa de hegemonia, contemplando avanços em alguns aspectos, a exemplo dos direitos sociais, com destaque para a seguridade social, os direitos humanos e políticos (...). Mas manteve fortes traços conservadores, como a ausência de enfrentamento da militarização do poder no Brasil (2008, p.141–142).

Na Constituição de 1988 se rompe com a dicotomia saúde-previdência para o

trabalhador e assistência para os “necessitados”. Estes avanços constam do seu texto e

das leis que regulamentam as políticas de Seguridade Social. Antes desta legislação a

Saúde e a Previdência como política pública era destinada aos trabalhadores com

vínculo formal de emprego e aos seus dependentes, cabia a assistência restrita ao campo

da filantropia e benemerência o subsídio aos “necessitados”.

A previdência regia-se pela cobertura aos trabalhadores com vínculos formais,

mas diferenciava-se dependendo dos setores aos quais o trabalhador estava ligado35.

Aos trabalhadores “informais”, aos desempregados, eram destinadas ações voluntárias e

filantrópicas através do socorro, atendimentos pontuais e emergenciais.

A Constituição Federal, buscando romper com esta lógica discriminatória e

excludente, incorpora elementos de garantias de direitos que seriam, junto com política

de desenvolvimento econômico e pleno emprego, constitutivos de um projeto de

35 A expressão previdência social surge pela primeira vez na Constituição de 1946, quando são criados IAP´s para os trabalhadores urbanos e o IPASE para os funcionários públicos. Também ocorreu a unificação das IAP´s e centralização da organização previdenciária no INPS unificando os institutos IPASE, FUNRURAL, SASSE. A Constituição de 1967 traz como novidade a criação do PIS/ PASEP. Em 1972 ocorre a inclusão dos empregados domésticos; em 1976 é criada a Consolidação das Leis da Previdência Social que era uma norma que tinha força de decreto e não de lei e em 1977 a Lei 6.439/77 cria o SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social. Somente com a Constituição de 1988 se cria o Sistema de Seguridade Social contemplando Saúde, Previdência e Assistência Social, que é a referência, ainda que no bojo das contra-reformas já empreendidas desde a década de 1990.

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Seguridade Social que estabeleceria um sistema de proteção social afinado à

constituição de um Estado de Bem-Estar Social.

Na Carta Magna são definidos como direitos sociais “a educação, a saúde, o

trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade

e à infância, a assistência aos desamparados” (Art. 6° da Constituição Federal de 1988)

(BRASIL, 1988).

A Previdência Social é organizada na forma “de regime geral, de caráter

contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio

financeiro e atuarial” (art. 201) (Ibidem.).

A Saúde é definida como “direito de todos e dever do Estado, garantido

mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de

outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,

proteção e recuperação” (art. 196) (Ibidem.). Já o Artigo 197 da Constituição de 1988

define que

São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado (BRASIL, 1988).

A Constituição Federal ainda define que a “assistência à saúde é livre à iniciativa

privada" (art. 199) prevendo desde o estabelecimento da Seguridade Social a exploração

privada deste serviço com restrições ao capital estrangeiro, mas que, mesmo assim, não

são impeditivas da sua participação, desde que vinculadas aos termos da lei.

A Assistência Social é definida como um direito de “quem dela necessitar,

independentemente de contribuição à seguridade social” e tem por objetivos, tal como

previsto no Art. 203:

a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (BRASIL, 1988).

Presentes como princípios estavam definidas a descentralização político-

administrativa, que implicaria no compartilhamento de responsabilidade, custos,

investimentos e planejamento; e a participação da população por meio de suas entidades

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representativas na formulação das políticas e no controle das ações (art. 195), que

seriam, mediadas pelos conselhos de políticas e de direitos e pelas conferências de

caráter deliberativo36.

A Constituição trouxe avanços legais, resultado do processo de disputa

engendrado durante a “abertura democrática”. No entanto, já estava em curso a

necessidade – articulada ao processo global – de colocar o país na “rota” do

neoliberalismo, o que já implicou num intenso embate no que diz respeito ao avanço

legal e a constituição real das perspectivas ali apontadas. O principal eixo de desmonte é

a Seguridade Social, e se dá em dois níveis: restringe a responsabilidade do Estado na

garantia de direitos e transfere as fatias rentáveis dela para a exploração e rentabilidade

do capital.

O ataque do grande capital às dimensões democráticas da intervenção do Estado começou tendo por alvo a regulamentação das relações de trabalho (...) e avançou no sentido de reduzir, mutilar e privatizar os sistemas de seguridade social (Netto e Braz, 2007, p. 228).

Torna-se peça fundamental a transferência de setores rentáveis para a exploração

do capital. A flexibilização das relações de trabalho foi uma das medidas de

desregulamentação da Seguridade Social brasileira. Este processo está implicado pelo

desmonte de medidas de controle e regulação do capital, que tem cada vez mais

liberdade para explorar o trabalhador, complexificando o processo que sustenta a

capacidade de intervenção da classe trabalhadora para efetivar garantias no campo dos

seus interesses.

O marco formal-legal desenhado na Constituição Federal não é concretizado na

totalidade de suas mediações. As políticas sociais na década de 1990 já são ajustadas á

lógica de “combate à pobreza” como medida central no enfrentamento da “questão

social” e caracteriza-se pela partilha da responsabilidade entre Estado e sociedade na

busca de “soluções” para o “problema” da pobreza contribuindo para a conformação de

uma perspectiva conservadora. Tal como afirma Mota, desta forma

[hipoteca-se] à sociedade e às políticas de combate à pobreza a solução para o enfrentamento do pauperismo. Por isso mesmo, também as novas conceituações de questão social e das políticas de seguridade social passam a ser chaves para

36 A composição dos conselhos varia entre as políticas sociais. No caso da saúde a participação define representações paritárias entre os segmentos de gestores, profissionais e usuários dos serviços (Cf. lei 8.142/90). Na assistência social a composição preconiza o princípio da paridade entre governo e a chamada “sociedade civil”, esta última dividida entre os segmentos que representam trabalhadores e usuários, que não necessariamente é ocupada por usuários, mas predominantemente por entidades prestadoras de serviços (Cf. lei 8.752/93).

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esgarçar qualquer tentativa de vinculação entre pobreza e acumulação de riqueza (2008, p.143).

As transformações acontecidas na redefinição e implementação das políticas

sociais na passagem dos anos 1980 para os anos 1990 impõem uma contradição entre o

marco legal alcançado com a Constituição Federal de 1988 e nas legislações que

regulamentam as políticas sociais do início da década de 1990. A difusão do ideário

neoliberal é um processo marcado, dentre outros aspectos, pela redução de gastos

sociais e da privatização de muitos dos serviços públicos.

Revigora-se a “mística” da humanização do capital quando se escamoteia a

“questão social”. O deslocamento do eixo da intervenção das políticas sociais passa a

ser a inserção dos “excluídos” e o trato dos riscos e vulnerabilidades sociais,

naturalizando as desigualdades sociais na busca da equidade através da proteção social a

estes (cf. Rodrigues, 2007, p. 120-121).

O processo desencadeado, que consolidou os direitos como fruto das lutas dos

trabalhadores, entra em contradição com o movimento de sua restrição e focalização

numa perspectiva oposta à constituição de políticas de bem-estar. Estas conquistas

históricas recuam nos marcos do neoliberalismo e do refluxo da movimentação e

organização desta classe que até então impulsionava estes ganhos. Segundo Netto

As forças políticas que, entre o segundo pós-guerra e a década de sessenta, sustentaram a vigência do arranjo próprio do Welfare State não dão mostras visíveis de manter sequer as regulações até então operantes; mais: seu comportamento atesta que precisamente elas (geralmente conotadas com o espectro social-democrata), que erigiram seus exercícios de poder e de governo implementando políticas de cariz keynesiano, são agora as que, sob os pretextos os mais diversos, efetivam orientações caras à ofensiva neoliberal (2007(b), p. 82).

Ocorre a restrição do acesso aos benefícios e serviços relativos às políticas de

saúde e previdência, e a implementação de programas e projetos de combate à pobreza

no campo da assistência social como elementos constitutivos da Seguridade Social

brasileira na atualidade. A ampliação da presença da assistência social se estabelece

como “medida que se transforma no principal mecanismo de proteção social no Brasil”

(Mota, 2008, p.134).37

37 Considera-se “proteção social” o conjunto de medidas adotadas pelo Estado na administração das demandas que configuram a “questão social”, ou seja, trata-se de estratégias para garantia da manutenção da reprodução social da população para a reprodução do capital e de mediação dos conflitos gerados pela contradição entre capital e trabalho, mesmo que não seja constituída neste sentido, na medida em que não reconhece esta contradição, e ainda que trate das seqüelas da mesma.

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Trata-se de operar um recorte cada vez mais restrito do que cabe ao atendimento

das necessidades sociais: aos mais pobres dentre os pobres, para resguardar patamares

mínimos ou “aceitáveis” de pobreza por meio da administração de índices gerais que

fazem sua medida38. A mensuração da pobreza e a forma como deve ser combatida,

orientada pelos organismos internacionais, não é unívoca. Os critérios que medem a

pobreza e estabelecem seu “combate” de fato tem determinações de cunho neoliberal:

restrito e focalizado.

a mensuração da pobreza é problemática e, por isso mesmo, a adoção de indicadores de aplicação universal é sempre contestável. No entanto, mesmo mensurações bastante generosas, como as configuradas na noção de ‘pobreza relativa’ – isto é: consideram-se pobres aqueles cuja renda é inferior à metade da renda média – apontam para estimativas surpreendentes para quem pensa a pobreza como algo pertinente apenas ao que no passado recente se designou por ‘Terceiro Mundo’: com aquele critério, no fim dos anos 80 do século XX existiam 15% (ou seja: 50 milhões) de pobres entre a população da União Européia; e fontes oficiais da mesma União Européia indicavam que, em 1994, 11,8% das famílias viviam em situação de pobreza (Netto, 2007, p. 141-142).

A administração da pobreza é uma das características do capitalismo, uma das

medidas para mediar o conflito entre capital e trabalho como forma de manutenção da

acumulação capitalista mantendo “níveis” de coesão social, necessários e que

encontram resultados com a edição de medidas de proteção social. Ainda que sejam

minimalistas e focalizadas atendem a determinadas necessidades de segmentos dos

trabalhadores. Junto a estas ações são promovidos pelos meios oficiais de comunicação

e propaganda governamental a conformação no campo cultural e ideológico de uma

lógica conservadora, que naturaliza as expressões da “questão social” e o trato da

pobreza.

São residuais as políticas estruturadoras na habitação, saneamento, fornecimento

de luz e água, dentre outras, para os segmentos pauperizados da população. A

concretização destes direitos na contemporaneidade esbarra na consolidação da

administração da pobreza como política específica. As medidas de proteção social

constituídas na atualidade, através, principalmente, da política de assistência social, têm,

em sua formulação, a perspectiva de reparação e de “dar mais a quem tem menos”. No

entanto, esta perspectiva, na prática, não se consolida, pois se fundamenta no marco de

políticas sociais minimalistas, que não visam a reparação das desigualdades e a

38 O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), por exemplo, é orientado pela medida da riqueza produzida, educação e expectativa média de vida e estabelece um padrão que mede mundialmente o padrão de vida da população. Em 2006 o Brasil estava em 70º lugar segundo o relatório do PNUD 2007/2008.

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redistribuição das riquezas socialmente produzidas, ao contrário, são políticas mínimas

para os mais pobres dentre os pobres.

Aos que “tem menos” são destinadas ações pontuais associadas à concepção que

delimita que o foco das políticas sociais deve se direcionar aos segmentos inscritos em

índices rebaixados de verificação de pobreza e indigência, o que distorce o papel das

políticas sociais, fortalecendo uma perspectiva emergencial no trato das manifestações

da “questão social”.

Uma dimensão redistributiva, baseada na perspectiva reparatória de “dar mais a

quem tem menos”, é contraposta pela naturalização da pobreza e da desigualdade. As

políticas estatais são estruturadas para administras as expressões mais agudas da

pobreza e da miséria com políticas e programas específicos, seletivos e com base no

rebaixamento das necessidades humanas, tal como destaca Stein:

a seletividade apoiada na equidade, visando identificar necessidades particulares para melhor atendê-las, foi substituída por uma seletividade injusta, centrada na defesa dos gastos sociais, que exige das políticas sociais, a criação de estratégias de rebaixamento das necessidades humanas à sua expressão emergencial, visando assim, diminuir as despesas do Estado (2008, p. 215).

A focalização das ações do Estado nos mais pobres não se direciona pelas

garantias de acesso às demais políticas sociais ou de alteração do quadro de

desigualdade social, mas está estruturada por de níveis de renda rebaixados na

constituição do público-alvo dos serviços sociais e objetiva a alteração de índices que

caracterizam a medida da pobreza e indigência. Dessa forma, não são estabelecidas as

condições necessárias para a manutenção da vida e reprodução social em condições de

igualdade com aqueles que estão estabelecidos no mercado formal de trabalho, numa

perspectiva amparada pela Seguridade Social em articulação com os direitos sociais

previstos na Constituição Federal.

As desigualdades sociais são mantidas, as políticas sociais não funcionam para

alterar suas expressões. As ações estatais de caráter assistencial mantêm

necessariamente este público circunscrito num “círculo” de atenção do Estado, sem

possibilidades de ruptura com estas condições. Ainda que a lógica do Estado esteja

perpassada em suas ações pelo estímulo à criação de redes de solidariedade, ao

empreendedorismo e a ruptura com as condições da pobreza, seus programas e projetos

localizam o rompimento deste “ciclo” na responsabilidade individual e das famílias, o

que reproduz e repõe continuamente as expressões da “questão social”, na medida em

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que a capacitação dos indivíduos e das famílias para alcançar a autonomia esperada

supõe condições estruturais não oferecidas pelas políticas sociais e econômicas.

As propostas para a organização e implementação das políticas sociais nos

países de economia periférica estão perpassadas por um desmonte generalizado da

Seguridade Social e pelo redirecionamento das perspectivas orientadas pela afirmação e

consolidação de direitos.

No contexto de reestruturação a política de assistência é refuncionalizada,

assumindo o papel de política estruturante da seguridade social, processo acompanhado

da focalização e precarização das políticas sociais. A centralidade que a Assistência

Social passa a ter em detrimento às políticas de Seguridade Social está vinculada ao

reordenamento da proteção social brasileira.

A crise do Welfare State nos países desenvolvidos foi a contra-parte da crise

econômica. Já no Brasil, figura como característica do Estado brasileiro na configuração

emergencial do trato das manifestações da “questão social”, as políticas de “corte

social” (Cf. Sposati et ali, 1986). O que foi característica das políticas sociais brasileiras

até o marco da Constituição Federal de 1988, o trato emergencial e focalizado das

expressões da “questão social”, é retomado de forma “moderna” nos marcos do

neoliberalismo.

A focalização das ações de assistência social na “pobreza” não é uma novidade,

mas os contornos que ela adquire, já nos idos anos 1990, estão na contramão dos

avanços constitucionais, assumindo perspectivas que agudizam este processo e apontam

para novas determinações também nas demais políticas sociais39.

Tal como afirma Mota (2008, p.151), a hipertrofia da assistência não se

caracteriza por sua diferenciação dentre as políticas de Seguridade Social, mas pela

centralidade que adquire, na atual conjuntura, no conjunto das políticas sociais.

A estruturação da Assistência Social destinada aos mais pobres e vulneráveis

neste processo de crise econômica tem por objetivo a definição de compensações a este

segmento da população, definido por critérios rebaixados de renda. Esta política social,

39 As legislações que regulamentam as políticas de seguridade social datam do início dos anos 1990 (Lei Orgânica da Saúde – 1990 e Lei Orgânica da Assistência Social – 1993) e que, apesar de conterem perspectivas diferentes e em disputa, ainda apontavam para avanços na perspectiva da garantia de direitos e que, ainda hoje, constituem arcabouço para reivindicação dos mesmos.

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assim como as demais políticas sociais, articulam ações com vistas à integração e

equilíbrio social, tal como caracteriza Pastorini:

as políticas sociais apresentam-se como aquelas ações que procuram restabelecer o equilíbrio social via distribuição de renda. Ou seja, partindo da idéia de que existem oportunidades díspares, desigualdades econômicas etc., entram em cena as políticas sociais com o objetivo de compensar aqueles que foram “prejudicados” na distribuição (Pastorini, 1997, p. 82).

A compensação dos “prejuízos”, apontada pela autora supracitada, passa pelas

características que sinalizamos anteriormente, não numa perspectiva redistributiva, mas

de integração através de níveis restritos de distribuição de renda. A priorização da

atuação do Estado no combate à pobreza é orientada e operada no sentido de categorizar

os “problemas sociais” e aqueles que são considerados mais “vulneráveis”, conforme

afirma Netto: a “categorização” dos problemas sociais e dos seus vulnerabilizados, não só com a decorrente priorização das ações (com sua aparência quase sempre fundada como opção técnica), mas sobretudo com a atomização das demandas e a competição entre as categorias demandantes. As implicações são de monta: o atendimento das demandas também opera na direção de travar representações menos mistificadas do processo social (Netto, 2001, p. 32-33).

Aos comprovadamente pobres são destinados programas e projetos organizados

pelo Estado, em parceria com a “sociedade civil”, através da subsidiariedade no

financiamento destas ações, que passam a alimentar a orientação histórica da

Assistência Social: o clientelismo e a cultura do favor, conforme assinalam Pastorini e

Galízia: para as populações mais pauperizadas, os comprovadamente pobres, historicamente excluídos da proteção social brasileira, coloca-se em funcionamento um conjunto pouco diversificado de programas assistenciais, compensatórios, condicionados e focalizados. Estas ações e programas que se apóiam na idéia da parceria entre o Estado e a sociedade civil contribuem para que o primeiro delegue parte de suas responsabilidades para a segunda e o mercado, facilitando ao mesmo tempo, ao setor privado, o acesso aos recursos públicos, utilizando a subsidiariedade (financeira e jurídica) como principal mecanismo. Através da subsidiariedade, o Estado (por via das subvenções, parcerias, convênios e outros tipos de contratos) passa a alimentar a prática e programas sociais baseados na cultura do favor e do clientelismo (2006, p. 90).

A composição de ações na política de assistência, referenciadas no combate à

fome e à miséria é inserido como prioridade na agenda governamental, orientado pelo

Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) que formalizava, em 1993, esta

perspectiva (Peliano, 1995, p. 2). Nos governos Fernando Henrique Cardoso (1994 -

2002) a política econômica e as políticas sociais tiveram seu direcionamento mais

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fortemente marcado pela contra-reforma do Estado e já com um processo de

assistencialização das políticas sociais.

Uma das estratégias destas gestões, no âmbito das políticas sociais, foi a criação

do Programa Comunidade Solidária (PCS) que tinha como pilares as ações de combate

a “situações agudas ou extremas de pobreza” destinado a “parcela da população que não

dispõe de meios para prover suas necessidades básicas e, em especial, o combate à fome

e à pobreza” (Silva, 1998, p. 107).

Apesar de se tratar de um “programa”, conduzia-se como estratégia que, no

discurso oficial, tinha como objetivo formal a reversão das situações estruturais que

geram a pobreza (Idem., p. 108). Na sua formulação, o PCS propunha-se a inovar a

condução de políticas de combate à pobreza, considerando que “combater a pobreza e a

desigualdade não é tarefa de uma pasta específica” (Ibidem) propondo a unificação de

programas que tivessem o mesmo público-alvo numa só estratégia: o PCS unificava

programas e ações que antes estavam localizados em vários ministérios, supondo assim

uma alterando na gestão de ações com este mesmo objetivo.

O Comunidade Solidária propõe-se também a introduzir na esfera pública novas formas de gerenciamento de programas sociais, evitando o clientelismo, a centralização, a superposição e fragmentação das ações e a pulverização dos recursos, eliminando a ineficiência, a descontinuidade e o desperdício. A título de exemplo, no final dos anos 80, o governo federal operava quatro programas de alimentação e nutrição, em quatro diferentes ministérios, e todos voltados praticamente para a mesma clientela (Peliano, 1995, p. 3).

Esse programa foi criado com a primeira Medida Provisória aprovada por FHC e

consolida, no conjunto das suas idéias, a perspectiva de “abertura à participação e

parceria com a sociedade na procura de soluções mais adequadas para a melhoria das

condições de vida das populações mais pobres” (Peliano, 1995, p. 3). Os princípios que

orientavam o PCS eram a parceria, a solidariedade, a descentralização e a integração e

convergência de ações (Idem, p. 4).

Esta solidariedade figura como pactuação entre classes opostas, com vistas à

harmonização dos conflitos e manutenção da coesão social. Diferentemente de um

processo de organização dos trabalhadores, onde a perspectiva de solidariedade tem

caráter classista, entre os membros que compõem uma mesma classe e que

compartilham interesses e se caracterizam pelo estabelecimento de pautas de defesa

coletiva de direitos para sua conquista, consolidação e avanço.

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A parceria e a descentralização das ações compreendem o processo de

terceirização e transferência de responsabilidades estatais como princípio no trato das

expressões da “questão social”. Desta forma, com a criação do PCS, institui-se o

chamado “novo paradigma” das políticas sociais e consolida-se o “compromisso de

todos” com o combate à pobreza e à miséria, sob gerência do Estado. Esta lógica

também compreende o processo de integração, como redução de disfunções à ordem

societária, descolando as expressões da “questão social” das suas determinações e a

convergência de ações no sentido de estreitar as políticas à concepção de combate à

pobreza inscritas nos programas e projetos residuais e específicos.

As ações que já eram desenvolvidas em âmbito local e regional por

“organizações da sociedade civil” foram institucionalizadas, tornaram-se ações

“estatais” em parceria com os setores filantrópico e privado, financiadas com recursos

públicos. Nesta lógica, eram compreendidas também como ação do Estado numa

perspectiva de integração e convergência das ações (Cf. Peliano, 1995).

Neste programa se consolida a concepção da solidariedade baseadas na auto-

ajuda e na ajuda-mútua, perspectiva que passa a orientar as ações do Estado no combate

à pobreza, como destaca Montaño (2007):

as ações desenvolvidas por organizações da sociedade civil, que assumem as funções de resposta às demandas sociais (antes de responsabilidade fundamentalmente do Estado), a partir dos valores de solidariedade local, auto-ajuda e ajuda mútua (substituindo os valores de solidariedade social e universalidade e direito dos serviços) (Montaño, 2007, p. 184).

Nos anos de 1990, muitos movimentos e organizações da sociedade civil, que

nas décadas anteriores compunham movimentos de resistência e foram sujeitos das

alterações democráticas seguintes, passaram a ser os parceiros do Estado na execução

de programas de cunho “social”. São credenciadas associações de moradores e

organizações não-governamentais para a prestação de serviços40.

40 Em Nova Iguaçu as principais entidades de organização de moradores e trabalhadores estavam vinculadas como entidades prestadoras de serviço no campo da política de Assistência Social. Os mesmos representantes do segmento de usuários no conselho municipal desta política prestavam serviço para a secretaria correspondente e dependiam dos recursos destinados ao financiamento de ações para manter seu funcionamento. Os debates neste conselho, na maioria das vezes, circunscreviam-se na efetivação de parcerias e financiamento de projetos e, para a consecução dos mesmos, por vezes, se utilizava como moeda de troca a aprovação de pautas propostas pelos governos, muitas vezes não apreciadas ou analisadas precariamente pelo segmento “sociedade civil”. O mesmo podia ser observado no Conselho Estadual de Assistência (CEAS) Social do estado do Rio de Janeiro, durante o período 2006-2007, no qual acompanhamos as reuniões mensais para repasse de informações aos CMAS acima referido. A crise na gestão dos recursos e no estabelecimento das medidas que competiam a este ente federativo constituía uma pauta permanente. O atraso no repasse de recursos era debatido predominantemente na relação entre contratante e contratado e não no sentido do controle da destinação, administração e aplicação do recursos destinados à esta política social.

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Sete objetivos norteavam o PCS, quais sejam:

reduzir a mortalidade na infância; melhorar as condições de alimentação dos escolares, trabalhadores e famílias carentes; melhorar as condições de moradia e saneamento básico; melhorar as condições de vida no meio rural; gerar emprego e renda e promover a qualificação profissional; apoiar o desenvolvimento da educação infantil e do ensino fundamental; e defender os direitos e promover socialmente crianças e adolescentes (Peliano, 1995, p. 6).

Ainda que a auto-definição do PCS não atribua a si o caráter emergencial e

afirme que o programa combate “às causas da perpetuação da pobreza”, embaraça a

concepção de ação emergencial à “ação imediata” somente, o que não seria o objetivo

do mesmo. No entanto, aqui definimos como emergencial o paliativo, o imediato, no

sentido do trato do aparente, da conseqüência superficial sem mediação com seus

fundamentos.

A pobreza é concebida como resultado natural de qualquer ordem social, não

como expressão da “questão social”. Logo, se a análise parte de um pressuposto

equivocado, a nosso ver, a lógica que comporá as ações destinadas ao trato destas

manifestações será mediada por medidas que venham interferir no que considera

“disfunções naturais” desta ordem, através do fomento a iniciativas parciais, para que a

integração a ordem seja fundamentada pela promoção de potencialidades individuais,

como solução para o “problema da pobreza” numa perspectiva estreita, vinculada ao

ideário neoliberal.

A fome, considerada um dos aspectos centrais que expressa a condição de

extrema pobreza e indigência, é um fenômeno concreto e resultado imediato da carência

material. Resolve-se a fome com alimento, seja através de uma refeição, com gêneros

alimentícios ou com dinheiro para adquiri-los. Estas iniciativas podem resolver a fome

em curto prazo, – e até médio e longo prazo quando se tornam políticas permanentes –

mas não alteram sequer o quadro da pobreza e nem mesmo residualmente tocam nas

condições de desigualdade geradas pela concentração de renda e riqueza.

As ações do PCS, programa que é denominado como “condomínio de múltiplos

objetivos no qual coabitam programas emergenciais e programas de combate às causas

da perpetuação da pobreza” (Peliano, 1995, p. 6) e supõem tocar nas causas da pobreza,

na verdade, escamoteiam e escondem sua razão de ser. Tratam-se de ações que supõem

o enfrentamento das condições de pobreza e como respostas à “questão social”, mas

interferem apenas nas suas consequências mais visíveis e críticas.

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Crítica do PCS, Sposati (1998) destaca que o modelo empreendido no governo

FHC se baseia numa perspectiva filantrópica assistencial, caracterizada pela apologia

das soluções dadas pelas políticas emergenciais às necessidades da população mais

pobre e com base num modelo populista e personalista na assistência pública. Dessa

forma Sposati afirma que

O movimento Filantrópico Assistencial altera muito pouco a tradicional prática institucional, estatal e privada. Sua principal marca é não aprofundar uma política de garantias de direitos. É muito mais marketing do que intenção séria. Não define padrões de serviço, nem aplica corretamente os princípios constitucionais relativos à Previdência. O governo FHC, aliás, não inova nada, é apenas mais um que não cumpre a Constituição. O modelo Filantrópico Assistencial encontra fortes aliados no jogo político brasileiro. Mesmo os partidos mais progressistas não têm uma proposta clara de confronto com o assistencialismo. O Comunidade Solidária por exemplo, é uma demonstração explícita deste modelo populista, personalista, centrado na figura de Ruth Cardoso” (1998, p. 24 - 25).

O programa segue uma orientação neoliberal, visto as evidências desenvolvidas

no seu interior para a terceirização dos programas e serviços, a criação das

Organizações da Sociedade Civil de Caráter Público – OSCIPS (Silva, 1998, p. 115). O

Comunidade Solidária é a primeira estratégia sistemática que, em meados dos anos

1990, passa a consolidar a orientação dos organismos multilaterais para as políticas

sociais no Brasil41. O PCS constitui-se, na verdade, a versão brasileira de um conjunto de programas de combate à pobreza implementados na América Latina no contexto da crise econômica e do desenvolvimento das políticas de ajuste estrutural adotadas, no continente, desde a década de 80 e, tardiamente, em desenvolvimento no Brasil na década de 90 (Silva, 1997, p. 121-122).

As alterações no âmbito da gestão e gerenciamento das políticas tem significado

maior do que o termo “parceria” pode expressar. “O que na realidade está em jogo não é

o âmbito das organizações, mas a modalidade, fundamentos e responsabilidades

inerentes à intervenção e respostas para a ‘questão social’” (Montaño, 2007, p. 185). O

mesmo autor afirma que

No padrão neoliberal de resposta às demandas sociais a modalidade de intervenção é setorialista, mas também localizada, e seu fundamento é a focalização e desconcentração das respostas (cf. Laurell, 1995), sustentadas na auto-ajuda e na ajuda mútua (“solidariedade local”), sendo assim de responsabilidade dos próprios portadores de necessidades, de seus pares e de suas localidades a resposta às suas demandas (Ibidem.).

41 O Programa foi implementado durante o governo FHC e era conduzido pela Primeira Dama, Ruth Cardoso (antropóloga).

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A entrada do “terceiro setor42” “encobre um fenômeno que deve ser entendido

como inserido num projeto de reestruturação social e produto dele, pautado nos

princípios neoliberais e/ ou funcional a ele” (Montaño, 2007, p. 186). Não se trata de

mera reprodução do processo que já constituía a política de Assistência Social, mas da

exponenciação da transferência de responsabilidades. Antes as ações assistenciais

circunscreviam-se no setor privado e filantrópico, basicamente como ações paralelas às

desenvolvidas pelo Estado, que atendia predominantemente os segmentos vinculados ao

mercado formal de trabalho. Aos “não-vinculados” restava recorrer aos serviços

prestados nestes setores, ministrados como caridade e benesse.

A instalação destes programas numa lógica em que a transferência de

responsabilidade na execução é predominante (ou hegemônica) na execução das

políticas de combate à pobreza, torna-se fundamento estrutural na década de 1990 em

diante. Esta característica não é menor, compõe o eixo de desmonte do referencial dos

direitos como resultado da conquista da organização dos trabalhadores contribuindo

para a naturalização da “questão social” e seus fundamentos.

A avaliação dos organismos internacionais, que delimitam estes fundamentos

para a estruturação das políticas sociais na década de 1990, é que os oito anos de

governo FHC marcaram avanços na gestão econômica e política e referenda o modelo

de “bem-estar” gestado neste período e aqueles que o sucederam,

Segundo o Grupo Banco Mundial, os avanços das reformas nos oito anos da gestão FHC criaram uma base sólida para o novo governo, “que demonstrou notável compromisso com uma firme gestão macroeconômica e com o progresso social.(...) A nova administração federal se comprometeu com a austeridade fiscal, com o estabelecimento de metas de inflação e com o cumprimento dos contratos da dívida” (2003:17). Também se menciona o compromisso com a melhoria do bem-estar da população, evidenciado, segundo este documento, por diversas iniciativas sociais, como Fome Zero, Primeiro Emprego e Bolsa Família (Pastorini e Galízia, 2006, p. 92).

Estas orientações continuam a marcar a organização e gestão das políticas

sociais e, em particular, as de combate à pobreza nos anos seguintes ao governo FHC,

com alterações no âmbito da gestão, organização e implementação, no entanto

preservando as características centrais destacadas acima.

42 Aqui terceiro setor é entendido tal como afirma Montaño (2007): “o que é chamado ‘terceiro setor’, numa perspectiva crítica e de totalidade, refere-se a um fenômeno real, ao mesmo tempo inserido e produto da reestruturação do capital, pautado nos (ou funcional aos) princípios neoliberais: um novo padrão (nova modalidade, fundamento e responsabilidades) para a função social de resposta à ‘questão social’, seguindo os valores da solidariedade local, da auto-ajuda e da ajuda-mútua” (2007, p. 186).

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No Governo Lula há, sem dúvida, uma alteração na lógica de gestão, marcadas

pela racionalização dos benefícios43 e profissionalização do campo da assistência social.

Imprime caráter público na constituição de equipamentos próprios no campo da

assistência social e, a partir daí, são realizados concursos no âmbito municipal para a

composição das equipes responsáveis pela implementação da política nos municípios.´

É importante destacar as alterações que apontam para o sentido de imprimir

caráter público a esta política social, no entanto, são mantidos os eixos e fundamentos

que vinham orientando particularmente a execução da política, a lógica fundamental do

combate à pobreza mediada pela parceria com o setor privado e ações pontuais nas

consequências da pobreza com vistas à redução de seus índices e combate à fome44.

Também se mantém o paralelismo das ações assistenciais vinculadas formalmente e

institucionalmente à assistência e regulamentadas pela LOAS. Por outro lado, o

principal programa de transferência de renda e combate a fome não estão submetidos à

lógica e legislação da assistência social, especialmente ao controle social.

O Programa Bolsa Família unifica os programas de transferência de renda e é

considerado “carro-chefe” do Programa Fome Zero45. A ele articulados existem outros

programas centrais do governo Lula na Assistência Social, que são financiados por este

ente e executados no nível municipal: ProJovem Adolescente e Urbano46, Programa de

Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, dentre outros47.

No governo Lula a legislação da política de Assistência Social toma novos

rumos, articulada, a nosso ver, à continuidade do processo de contra-reforma do Estado,

seguindo as orientações dos organismos internacionais. Na Assistência Social são

constituídas estratégias para o acesso a programas e projetos de enfrentamento da

pobreza. Seus equipamentos são a “porta de entrada” para o acesso aos serviços

ofertados por esta política, principalmente, através da inserção no Cadastro Único de

Programas Sociais e no PBF. O objetivo expresso do programa é a alteração dos 43 O Governo Lula unifica diversos programas de transferência de renda, vinculados à educação, alimentação, auxílios para a compra de gás, dentre outros e subsume inclusive programas existentes em âmbito local (no estado do Rio de Janeiro havia o Programa Cheque Cidadão que tinha forte vinculação com o segmento religioso e no ano de 2004 foi extinto migrando seus beneficiários – que ainda não eram contemplados pelo programa federal – para o PBF), ação que mesmo o governo FHC, com forte corte neoliberal que figurava de forma mais “aparente” não consolidou. 44 Este governo não apenas respalda, como aprofunda a orientação do governo anterior de FHC, ao qual o PT era o principal opositor, durante seus dois mandatos e afirma enquanto traço distintivo do atual governo. 45 “O Fome Zero atua a partir de quatro eixos articuladores: acesso aos alimentos, fortalecimento da agricultura familiar, geração de renda e articulação, mobilização e controle social” (fonte: fomezero.gov.br). 46 Trata-se do Programa Nacional de Inclusão de Jovens nas modalidades Adolescente, para jovens de 15 a 17 anos, e Urbano, para jovens de 18 a 29 anos. 47 São programas com vínculo direto com a Assistência Social e com condicionalidades vinculadas ao PBF.

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patamares de pobreza e reversão dos índices de indigência e miséria e de articular

“portas de saída” da proteção social destinada pelo Estado aos mais pobres, por meio do

incentivo ao desenvolvimento de potencialidades individuais e das famílias para a

ruptura dos ciclos de reprodução da pobreza, localizando – da mesma forma que o

programa desenvolvido no governo anterior – a geração da pobreza por “inadaptações”

(ou inadequações) à ordem que podem ser resolvidas na promoção de disposições

“inatas” que levariam a desintegração dos mesmos ao sistema.

A implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), como

ferramenta operacional da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) traz

elementos inovadores para esta política social, como destacamos, que, ao mesmo tempo,

modernizam e atualizam esta política, profissionalizam parte do sistema, mas mantêm

na contemporaneidade características que estiveram presentes na trajetória histórica da

mesma.

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1.3 A Política de Assistência Social na Atualidade

Consideramos que o processo de implementação da Política Nacional de

Assistência Social (PNAS-2004) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS),

assim como a concretização dos princípios, diretrizes e objetivos propostos no

documento que os concebe, desde a sua publicação em 2004 se baseia em pressupostos

anteriores – àqueles contidos na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) – e que

vêm sendo pensados e debatidos desde o fim da década de 1980 e início da década de

199048.

A Assistência Social, enquanto política de Seguridade Social não-contributiva é

por direito reclamável por aqueles que dela necessitam. Nos marcos da legislação atual

este público circunscreve-se em determinadas situações de “vulnerabilidade” e “risco”

e, para alguns programas e projetos, dentro de perfil sócio-econômico específico.

Constitui público usuário da Política de Assistência Social, cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos, tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social (BRASIL, 2004:33).

O público circunscrito a esta política social tem em sua composição expressões

da “questão social” que são, a nosso ver, concebidas neste documento numa perspectiva

que já fundamenta uma contradição com a perspectiva da Seguridade Social nos seus

marcos regulatórios. O destaque aos vínculos de afetividade, processo de

estigmatização, violência familiar, a precarização do trabalho e a informalidade, assim

como as “estratégias de sobrevivência” criminalizadas têm soluções apontadas no

interior da assistência social, a partir da promoção dos vínculos e desenvolvimento de

potencialidades como medidas “inclusivas” à ordem do capital.

Estas expressões da “questão social”, entendidas como resultado da contradição

entre capital e trabalho, da força destrutiva do capitalismo exercida para a dominação

48 A Política de Assistência Social estabelece princípios e diretrizes para a implementação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS e é resultado de amplos debates realizados em todos os Estados e no Distrito Federal durante o ano de 2004, a partir de uma proposta preliminar elaborada pela Secretaria Nacional de Assistência Social – SNAS/MDS com a participação ativa do CNAS, dando cumprimento às deliberações da IV Conferência Nacional de Assistência Social (2003) (fonte: CNAS, 2009).

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dos meios de produção e reprodução da vida social, não podem ser resolvidas no âmbito

de uma política social e mesmo que a Assistência Social preveja a articulação com as

demais políticas sociais esta mediação fica comprometida por uma política econômica

que privilegia o acúmulo e concentração de riquezas pelo capital e comprime cada vez

mais as medidas que estruturam direitos sociais.

Os processos subjetivos – como os estigmas e a afetividade – são fundamentados

em processos concretos que fundamentam esta ordem societária. Ainda que esta

dimensão tenha seu trato exclusivamente no nível que apresenta sua aparência, quando a

dimensão concreta, que determina suas características: a precariedade das condições de

vida e reprodução social de indivíduos e famílias, a produção de riqueza na mesma

medida em que se produz miséria e a acumulação e concentração privada por segmentos

capitalistas restrito a pequenos grupos supõe a reversão da própria ordem societária

vigente.

A constituição da Seguridade Social que contemple o atendimento da classe

trabalhadora nos seus segmentos vinculados formalmente ou não no mercado de

trabalho implica o estabelecimento da luta de classes num patamar que exige sua

organização numa dimensão que tenha como horizonte uma perspectiva emancipatória e

que contemple a consecução de direitos no sentido da constituição de reformas que

permitam estas condições se consolidarem, para que esta mobilização possa ser,

inclusive, promovida.

Trata-se de um movimento intrínseco, alimentado pela organização dos

trabalhadores e que é possibilitado pelo atendimento às suas necessidades sociais de

reprodução em primeira instância. A oferta de serviços no âmbito da assistência se

constitui no nível dos “mínimos sociais”, insumos que garantiriam o acesso a

alimentação, primeiramente, e o acesso pontual e fragmentado às políticas de saúde e

educação na forma de condicionalidades, como veremos adiante.

O destaque da assistência social dentre as políticas sociais segue um processo

que alça os programas de combate à pobreza a condição de principais medidas estatais

no trato da “questão social”. A constituição da Seguridade Social numa perspectiva

ampliada, que preveja o redimensionamento da política econômica praticada nos

últimos governos, ajustadas ao neoliberalismo, junto com a estruturação de medidas no

âmbito das políticas sociais que compõem o sistema de proteção social é condição para

o avanço das mobilizações e das lutas para a consecução de direitos. Como dissemos, é

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um movimento intrínseco: para o estabelecimento de mobilizações para a afirmação e

consolidação de direitos se faz necessária a organização e pressão dos trabalhadores e

para empreender este processo é fundamental que seus segmentos precisam ter suas

necessidades de reprodução social atendidas49.

A Norma Operacional Básica (NOB-SUAS)50 estabelece o caráter do SUAS; as

funções da política pública de assistência social para extensão da proteção social

brasileira; níveis de gestão do SUAS; instâncias de articulação, pactuação e deliberação

que compõem o processo democrático de gestão do SUAS; financiamento e as Regras

de transição (Brasil(c), 2004, p. 13).

A Norma Operacional Básica (NOB) disciplina a operacionalização da gestão da Política de Assistência Social, conforme a Constituição Federal de 1988, a LOAS e legislação complementar aplicável nos termos da Política Nacional de Assistência Social de 2004, considerando a construção do Sistema Único da Assistência Social – SUAS, abordando, dentre outras questões, a divisão de competências e responsabilidades entre as três esferas de governo; os níveis de gestão de cada uma dessas esferas; as instâncias que compõem o processo de gestão e como elas se relacionam; os principais instrumentos de gestão a serem utilizados; e, a forma de gestão financeira que considera os mecanismos de transferência, os critérios de partilha e de transferência de recursos (fonte: CNAS, 2009).

A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) tem como público-alvo

central os segmentos da população/famílias que se encontram em situação de

vulnerabilidade51 e destina ações para garantia de proteção social (básica e especial)

prioritariamente a este público-alvo. Constituem-se ações no campo desta política nos

marcos do governo Lula que não são consolidados numa perspectiva de afirmação de 49 A mobilização, a promoção de ações de organização dos segmentos mais pauperizados é tarefa das mais difíceis, pois está perpassada pelas condições destacadas. É necessário que a classe trabalhadora organizada, suas vanguardas, nas suas bandeira, reivindicações e lutas, contemplem o debate acerca da constituição das políticas de enfrentamento da pobreza, não apenas através da sua negação, mas para a formulação de estratégias que reconheçam estes segmentos da classe trabalhadora como parte integrante dela e suas demandas como imperativo “de classe”, não apenas na forma paliativa que as ações governamentais adotam, mas como necessidades que devem ser atendidas pela constituição de direitos. 50 Dentre as legislações que regulamentam a Assistência Social destacamos também a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB/RH) foi aprovada em 2006 como deliberação da 5ª Conferência de Assistência Social (2005) e define a gestão de recursos humanos nesta política (fonte: CNAS, www.mds.gov.br/cnas). 51 A Norma Operacional Básica do Sistema Único da Assistência Social (NOB-SUAS) estabelece uma combinação de características das famílias que compõem a “Taxa de Vulnerabilidade” e definem o que define o que seja “população vulnerável”, quais sejam: famílias que residem em domicílio com serviços de infra-estrutura inadequados; família com renda familiar per capita inferior a um quarto de salário mínimo; família com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo, com pessoas de 0 a 14 anos e responsável com menos de 4 anos de estudo; família na qual há uma chefe mulher, sem cônjuge, com filhos menores de 15 anos e ser analfabeta; família na qual há uma pessoa com 16 anos ou mais, desocupada (procurando trabalho) com 4 ou menos anos de estudo; família na qual há uma pessoa com 10 a 15 anos que trabalhe; família no qual há uma pessoa com 4 a 14 anos que não estude; família com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo, com pessoas de 60 anos ou mais; família com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo, com uma pessoa com deficiência. Todos os indicadores se baseiam em dados do IBGE, Censo Demográfico e PNAD (anos 2000 para o IBGE e 2001 em diante para os demais índices) (Brasil, 2005, p.135). Tais parâmetros ainda não estão constituídos concretamente como base para análise do território e planejamento das ações da assistência social.

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direitos de Seguridade Social. Ainda que se inscrevam garantias neste campo

fundamentadas nos “direitos socioassistenciais” alterações fundamentais no campo da

afirmação e consolidação de direitos articulados não são concretizados. A composição

da assistência social é superdimensionada, ainda que mediada – em sua formulação –

como política balizada pelo “desenvolvimento social”.

O princípio da atenção alcança, assim, um patamar que é balizado pelo esforço de viabilização de um novo projeto de desenvolvimento social, onde não se pode pleitear a universalização dos direitos à Seguridade Social e da proteção social pública sem a composição correta e suficiente da política pública de assistência social, em nível nacional (Brasil(c), 2004, p. 16).

Este governo possui um projeto de desenvolvimento social e tem por base o

estabelecimento de políticas de “corte social”, que são estruturadas seguindo a lógica

orientada pelos organismos internacionais, como já destacamos. Segundo Netto (2004)

a política proposta pelo segmento parasitário-financeiro do grande capital é, a partir de então, conduzida, em seu conteúdo determinante, por um governo à frente do qual encontra-se um partido que, até sua posse, encarnava a sua negação – e política que agora, com o PT no Executivo federal, não encontra nenhuma resistência parlamentar-institucional (Netto, 2004, p. 14).

A dimensão política que orienta o governo atual não rompe com os fundamentos

do neoliberalismo e com a condução que privilegia os interesses do capital, mesmo em

seu discurso e na composição das ações e serviços sociais afirmando o privilegiamento

do desenvolvimento social e econômico dos “menos favorecidos”.

A composição da PNAS segue também esta lógica, ainda que contenha

expressões da pressão de segmentos organizados no interior desta política –

profissionais, formuladores e organizações da sociedade comprometidas com o caráter

público desta política52 – no seu texto tem expresso que a assistência social destina-se

aos segmentos vulneráveis da população e que ela deve “prover proteção à vida, reduzir

danos, monitorar populações em risco e prevenir a incidência de agravos à vida face às

situações de vulnerabilidade” (Brasil(c), 2004, p. 16).

Fundamentalmente se afirma a proposição de propor soluções que amenizem as

condições em destaque e que não podem ser alteradas em seus fundamentos apenas pela

política de Assistência Social. A legislação que regulamenta a política nacional

52 Devemos lembrar que parte das vanguardas do Serviço Social, por exemplo, estiveram – e estão – presentes na disputa de concepções no campo da assistência social, na formulação e gestão desta política social. O conjunto CFESS/CRESS historicamente promoveu discussões e formulações que fundamentam a concepção de Seguridade Social ampliada (como expresso na Carta de Maceió, resultante do Encontro Nacional CFESS/CRESS realizado em 2000, que mencionaremos adiante) e são expressão da movimentação, desde a década 1980, para a constituição e impressão do caráter público nesta política social.

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superdimensiona, a nosso ver, a capacidade de atendimento a estas demandas na

composição da própria política. A ampliação e o destaque desta política expressa uma

contradição: a precarização dos equipamentos e serviços públicos junto à transferência

de responsabilidades para a “sociedade civil” nas diversas políticas sociais e a

ampliação das ações, programas e projetos focalizados no combate à pobreza nas suas

expressões mais visíveis, num sentido emergencial e focalizado que se localizam na

assistência social.

Esta análise, baseada nos elementos e dados que confirmam este processo,

contribuem para confirmar a existência de um processo de assistencialização das

políticas sociais. Entendemos que a caracterização destas situações como circunstâncias

que colocam indivíduos e famílias em conjuntura de vulnerabilidade são resultado de

uma política econômica neoliberal implementada desde o início da década de 1990 e

que tem continuidade nos governos Lula, assim como a manutenção do ajuste fiscal, da

política de superávit primário e da focalização das políticas sociais. Não será a

ampliação da política de Assistência Social que possibilitará garantia de qualidade de

vida aos segmentos da população mais pauperizados.

As ações estruturadas neste sentido respondem a necessidades fundamentais. A

transferência de renda pode atender a necessidade de alimentação ou pode servir para a

compra de insumos que não seriam possíveis apenas com os recursos que as famílias

tinham acesso antes de serem beneficiárias destes programas, mas estas ações pontuais

não constituem – e não podem constituir, mesmo que aliadas a projetos de promoção e

capacitação dos mesmos – elementos de ruptura com a situação de pobreza e miséria

resultantes da concentração de renda e riqueza e não podem ser entendidas como

medidas que promovem proteção social, pois são apenas paliativos se não articuladas a

um conjunto de políticas garantidoras de direitos.

A concepção de proteção social no âmbito da política de Assistência Social

presente na NOB é denominada como uma fração específica deste sistema, denominada

como “proteção social de assistência social” destinada às famílias vitimizadas e

fragilizadas em sua condição de cidadania e têm como suporte categorias que se

referenciam na vulnerabilidade social como imposições e ofensas à dignidade humana.

Trata-se de uma modalidade de proteção social garantida pela política de assistência

social que se ocupa das vitimizações, fragilidades, contingências, vulnerabilidades,

como destacamos a seguir:

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A proteção social de assistência social se ocupa das vitimizações, fragilidades, contingências, vulnerabilidades e riscos que o cidadão, a cidadã e suas famílias enfrentam na trajetória de seu ciclo de vida por decorrência de imposições sociais, econômicas, políticas e de ofensas à dignidade humana. O princípio da atenção social alcança, assim, um patamar que é balizado pelo esforço de viabilização de um novo de um novo projeto de desenvolvimento social, onde não se pode pleitear a universalização dos direitos à Seguridade Social e da proteção social pública sem a composição correta e suficiente da política pública de assistência social, em nível nacional (Brasil(c), 2004, p. 16).

A concepção de “atenção” prestada pela assistência social a estas características

verificadas na composição das famílias supõe desenvolvimento social, condição

destacada como fundamento para a composição da assistência social. No entanto, este

“desenvolvimento” circunscreve-se quase que exclusivamente nas ações promovidas no

interior desta política social. Mesmo em articulação com outros ministérios, que

coordenam as demais políticas sociais, os projetos são vinculados ao público já restrito

da assistência social e recortados basicamente dentre os beneficiários do Programa

Bolsa Família, num atendimento minimalista de frações dos segmentos pauperizados: os

mais pobres dentre os pobres.

Este modelo está amparado numa perspectiva de garantia da “dignidade

humana” e pode ser verificado nas palavras da Sposati (1998) nas quais destaca que a

população mais pobre tem o “direito de ser gente”. Na compreensão da autora isso

significa a incorporação pela sociedade do que considera “mínimos de dignidade” como

direitos sociais determinantes para a garantia da condição de ser humano decorrente de

um padrão de cidadania. Segundo Sposati,

o que se entende como “direito de ser gente” supõe a incorporação, pela sociedade, do que considera como mínimos de dignidade que, consignados como direitos sociais, são condições da cidadania. Isso exige determinado padrão de atuação, que garanta desenvolvimento humano, equidade, autonomia e redistribuição de renda (1998, p. 23).

Estes mínimos que constituiriam a dignidade humana são mediados na

assistência social na contemporaneidade por programas e projetos de administração dos

índices de pobreza e indigência, pois significam precisamente um parâmetro de direitos

humanos, que dizem respeito à totalidade da classe trabalhadora ou do atendimento

apenas às necessidades essenciais de sobrevivência?

Não nos debruçamos no debate dos direitos humanos, mas supomos que sejam

constituídos por garantias de patamares dignos de reprodução social, para além da

sobrevivência e sequer podem ser parametrados pelos direitos garantidos pelo trabalho

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formal, pois, como veremos adiante, a sociabilidade capitalista implica na alienação do

trabalhador do trabalho como meio de responder a necessidades humanas, mas como

meio de vida, que limita as capacidades humanas. A suposição de mínimos de dignidade

no sentido afirmado pelos programas e projetos de enfrentamento da pobreza, a nosso

ver, se constituem pela medida de sobrevivência de indivíduos e famílias em situação de

extrema pobreza ou indigência somente.

A defesa de condições de sobrevivência ultrapassa circunscrita a mera

reprodução cotidiana não supera uma lógica de manutenção da vida, um “quase

consenso” – pois não a destruição em si da vida, sem justificativa e objetivos, não se

constitui como meta explícita mesmo no capitalismo – e implica em ações públicas e do

segmento filantrópico que tanto são voltadas para os seres humanos quanto à defesa da

natureza (plantas, animais, ecossistema etc). O ser humano figuraria “hierarquicamente”

acima das outras formas de vida, mas no capitalismo os seres humanos são mais uma

peça da engrenagem do modo de produção capitalista.

A concepção de ser social, que não prescinde da relação do homem com a

natureza, mas não está implicada por uma essência “natural” própria deste “ser”. A

“composição” do ser social está mediada pela sua constituição como sujeito histórico

perpassados pelas determinações da sociedade em que vive. Lessa (2004) destaca

não há nada semelhante a uma "natureza" humana dada historicamente [para Lukács],de uma vez para sempre, nos moldes de Rousseau ou do senso comum da cotidianidade contemporânea (Lukács, 1979, p.14; e tb. Lukács, 1976-81, vol. III, p.269-74-CLXV-CLXXII). O homem não é necessariamente bom ou mau, sua história não está traçada a priori por uma força ou tendência pertencente a uma sua essência mais profunda, a qual apenas de modo superficial e transitório seria tocada pela história (Lessa, 1994, p. 2)

A constituição do ser social está perpassada pelas contradições do capitalismo,

mediação esta que permite estabelece os patamares de sociabilidade próprios a produção

e reprodução do capital. A afirmação de valores contrapostos à ordem burguesa,

conforme destaca Lessa, citando Lukács, depende da análise do seu desenvolvimento

ontológico e das contradições que perpassam esta composição:

o ser social é o resultado de uma síntese peculiar que converte em totalidade os inúmeros atos dos indivíduos singulares (Lukács, 1979b, p.95). Afirmamos, agora, que o desenvolvimento do ser social – a história – é necessariamente contraditório. Devemos, pois, antes de nos voltarmos à problemática da reprodução, esclarecer a aparente contradição entre a unidade que o conceito de totalidade sugere, e a nossa afirmação da ineliminável contraditoriedade do desenvolvimento ontológico (Lessa, 1994, p. 4).

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Lessa considera que A postulação, central na ontologia lukácsiana, está

implicada na “radical historicidade e sociabilidade do mundo dos homens” e destaca

que a formação do ser social circunscreve a composição das ações humanas no

atendimento às suas necessidades

a partir da práxis social, o indivíduo, ao agir, ao responder às necessidades postas ao seu desenvolvimento pela realidade que o cerca, concomitantemente contribui à construção do ser social enquanto gênero e à construção da sua individualidade específica. As contradições entre generidade e particularidade, constituintes essenciais tanto do ato em sua singularidade como da processualidade social global, compõem as mediações sociais reais da elevação à consciência, em escala social, da bipolaridade indivíduo/sociedade (Lessa, 1994, pp. 21-22)

Ao ponderarmos as condições de vida e reprodução social da população

pauperizada e das respostas no âmbito da sociedade capitalista para o atendimento às

mesmas devemos considerar as dimensões constitutivas do ser social na sociabilidade

promovida nesta ordem societária. A pobreza é fruto da desigualdade social e o que

figura aparentemente como uma conjuntura adversa é resultado da contradição entre

capital e trabalho e resultado da produção e concentração de riqueza pelo capital. Esta

condição do capitalismo implica na manutenção das causas que produzem a pobreza e

as medidas para o trato desta manifestação da “questão social” não objetiva nesta

sociedade romper com este modo de produção.

Para a Sposati ser pobre é viver à circunstância sem garantias do amanhã

(Sposati, 1998, p. 23), identificando um modelo de Seguridade Social a ser construído

que se configure como um “conjunto das ações estatais que atende às necessidades do

ser humano de segurança na adversidade e de tranquilidade para o futuro” (Sposati,

1998, p. 22). A Assistência Social, neste espectro, deveria se estabelecer como sistema

de proteção e de garantias de cobertura de riscos e vulnerabilidades. Nesse modelo as

redes de seguranças devem garantir o reconhecimento da cidadania dimensionada pela

criação de possibilidades para esta população tornar-se alcançável pelas políticas de

proteção e desenvolvimento social. Na ótica da autora

A Assistência Social deve se constituir no sistema de proteção, garantindo direitos e fazendo uma política de equidade, principalmente na cobertura de riscos e vulnerabilidades sociais. Para tanto, as políticas públicas devem operar, simultaneamente, dois sistemas: o de prevenção e o de uma rede de segurança, que não permita ao cidadão perder o “direito de ser gente” e, de outro, trazendo à superfície o destinatário da ação assistencial, tornando-o cidadão alcançável pelas políticas públicas de proteção e de desenvolvimento social (1998, p. 23).

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Afiança-se à Assistência Social a responsabilidade pela garantia de direitos à

população sem cobertura previdenciária. Oferece proteção para tornar o seu usuário

alcançável pelas demais políticas de proteção e desenvolvimento social. Mas como estas

políticas não são desenvolvidas no sentido da garantia de direitos, pois se tornam

regressivas no bojo do neoliberalismo, constituindo um ciclo em que se destinam

políticas pobres para os pobres, paliativas e focalizadas, tornando seu usuário refém

desta política social. Propõe-se nos níveis de proteção estabelecidos pela PNAS o

restabelecimento e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários para que se

formem redes de solidariedade e cooperação, como medida para solucionar situações de

risco, vulnerabilidades e para criar condições de auto-sustentabilidade.

A segurança social ancorada numa perspectiva de solidariedade de classe –

através da constituição de seguros sociais co-financiados pelo trabalhador, pelo

patronato e pelo Estado – no qual os fundos cobrem as perdas através da contribuição

dos assalariados que asseguram àqueles trabalhadores com perda de salário devido à

incapacidade temporária ou permanente (Cf. Behring, 2002) é diferente da solidariedade

constituída pela Seguridade Social na atualidade.

Houve pressão do movimento operário em torno da insegurança da existência que peculiariza a condição operária (desemprego, invalidez, doença, velhice). Superando o recurso à caridade e à beneficência privada ou pública, o movimento operário impõe o princípio dos seguros sociais, criando caixas voluntárias e, posteriormente, obrigatórias para cobrir perdas (Behring, 2002, p. 167).

A proteção social ofertada pela de assistência definida na PNAS e as garantias

de segurança social têm como objetivos: aquisições materiais, ações socioeducativas

com o objetivo de garantir a reprodução social destes segmentos vulnerabilizados na

perspectiva de desenvolver o “protagonismo” e a “autonomia”. Segundo a Política

Nacional de Assistência Social,

A proteção social de assistência social através de suas ações produz aquisições materiais, sociais, socioeducativas ao cidadão e cidadã e suas famílias para: suprir suas necessidades de reprodução social de vida individual e familiar; desenvolver suas capacidades e talentos para a convivência social, protagonismo e autonomia (Brasil(c), 2004, p. 16).

Desenvolvimento humano e social e os direitos de cidadania são entendidos

como “garantias de segurança” diante de “riscos circunstanciais”. Situa estes riscos na

esfera da capacidade individual de desenvolvimento de potencialidades que rompam

com estas circunstâncias através do protagonismo e da autonomia como se estas

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características não-desenvolvidas fossem as responsáveis pelos ciclos geracionais de

pobreza e miséria pelos quais estas famílias ou segmentos sociais passam e não como

processo imposto por condições estruturais de nossa sociedade.

A proteção social de assistência social, ao ter por direção o desenvolvimento humano e social e os direitos de cidadania, tem por princípios: a matricialidade sociofamiliar; territorialização; proteção pró-ativa; integração à seguridade social; integração às políticas sociais e econômicas. A proteção social de assistência social, ao ter por direção o desenvolvimento humano e social e os direitos de cidadania, tem por garantias: a segurança de acolhida; a segurança social de renda; a segurança do convívio ou vivência familiar, comunitária e social; segurança do desenvolvimento da autonomia individual, familiar e social; a segurança de sobrevivência a riscos circunstanciais (Brasil(c), 2004, p. 17).

O objetivo de alçar ao desenvolvimento humano e social e aos direitos de

cidadania através da acolhida, segurança de renda e de convívio familiar e comunitário

são alvos expressos pela política que busca desenvolver autonomia pela política de

assistência social quando, como dissemos, as demais políticas sociais e econômicas não

estabelecem as condições necessárias para ruptura com uma estrutura social baseada na

exploração do trabalho e reprodução da pobreza e da miséria na medida em que produz

e concentra as riquezas produzidas. Sem a socialização do trabalho assalariado – no

capitalismo –, das condições de proteção aos trabalhadores e a redistribuição de riqueza

não há política social que possa garantir as premissas previstas na PNAS, inclusive a

assistência social.

Esta proteção social define princípios e garantias que não podem estar ancoradas

apenas na Assistência Social ainda que aponte para o reconhecimento de demandas da

população considerada “vulnerável”, que se encontra descoberta pelas demais políticas

sociais e desprovida das condições mínimas de existência. Tratam-se de ações

caracterizadas na PNAS como parte da iniciativa pública, com primazia do Estado em

sua execução, para o atendimento às necessidades básicas da população que não tem

condições de provê-las (Brasil (c), 2004).

Por assim dizer, a PNAS aponta que a “Assistência Social como política de

proteção social configura-se como uma nova situação para o Brasil. Ela significa

garantir a todos, que dela necessitam, e sem contribuição prévia a provisão dessa

proteção” (BRASIL, 2004, p. 15). Mas a centralidade na vulnerabilidade entendida da

maneira que é formulada no próprio documento se contrapõe a idéia de assistência para

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todos os que dela necessitam, pois suas ações encontram-se ancoradas em critérios

seletivos e focalizados de pobreza e indigência.

Destro dos diferentes “perfis” definidos como público usuário da Assistência

Social destacamos aqueles que “exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais

políticas públicas” e os que possuem “inserção precária ou não inserção no mercado de

trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que

podem representar risco pessoal e social” (Ibidem). É considerado público em situação

de vulnerabilidade aquele que ainda não foi absorvido pelo mercado, por “redução da

capacidade pessoal” ou inabilitado pela conjuntura, ou inapto para o trabalho.

Tal risco pode ser lido de diferentes formas, a nosso ver, considera-se o risco de

não sobrevivência que estes indivíduos ou famílias correm ao não terem acesso a

condições de manutenção de suas necessidades básicas e do risco que oferecem à

sociedade, pois podem utilizar-se de estratégias de sobrevivência criminalizadas, na

medida em que não fazem parte das atividades formais e informais lícitas no mercado

de trabalho.

Importa lembrar que, tal como foi trabalhado anteriormente,

A reestruturação produtiva, as mudanças na organização do trabalho e a hegemonia neoliberal, (...), têm provocado importantes reconfigurações nas políticas sociais. O desemprego de longa duração, a precarização das relações de trabalho, a ampliação de oferta de empregos intermitentes, em tempo parcial, temporários, instáveis e não associados a direitos, limitam o acesso aos direitos derivados de empregos estáveis (Behring e Boschetti, 2007, p. 133).

Observamos que os diferentes apontamentos acerca das potencialidades de

superação de riscos e vulnerabilidades estão circunscritos a ações de fortalecimento do

indivíduo/família e busca da autonomia através dos “recursos” existentes nos núcleos

familiares e nas “comunidades” em que vivem, por meio da constituição de redes de

auto-ajuda e ajuda-mútua que já mencionamos. Constituem-se estratégias para

“autonomização” das famílias que se dão no bojo das iniciativas individuais, familiares

e/ou comunitárias. A idéia de autonomia encontra-se fortemente vinculada ao patamar

de renda com base em critérios de ruptura com índices de indigência e se estabelece

como mediação de uma assistência focalizada no combate aos termos absolutos da

pobreza e não fundamenta a política de Assistência pela articulação políticas estruturais.

Neste sentido, está claro no documento da PNAS que o objetivo da Assistência

Social consiste na construção de ações de garantia de proteção social de seus usuários e

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de condições para sua autonomia baseadas em si e na sua estruturação, como medida de

combate à pobreza focalizada e restrita que se comporta como medida oposta á

constituição de uma perspectiva ampliada de Seguridade Social.

São caracterizadas ações denominadas como estratégias de porta de entrada e

porta de saída53, ou seja, as situações de “vulnerabilidade” tornam uma determinada

população usuária da política de Assistência Social, permitindo o acesso ao conjunto de

ações e projetos integrantes desta política como entrada; por sua vez a saída se

circunscreve na superação (alcance da autonomia) diante das condições que a tornaram

usuária, através do desenvolvimento das suas potencialidades.

A Assistência Social possui relação direta com o mercado de trabalho e com a

criação de ocupações ou “iniciativas” reconhecidas como atividades geradoras de renda.

As vulnerabilidades reconhecidas e atendidas pela via das ações assistenciais dizem

respeito às condições de sustentabilidade dos indivíduos/famílias, que deve se dar

prioritariamente pela inserção no mercado.

Esta “integração” ao mercado formal é dificultada seja pela composição destas

famílias, a reprodução por várias gerações dos ciclos de pobreza e indigência ou pelos

níveis de capacitação de seus membros em sua maioria considerados “inferiores” diante

da oferta de mão-de-obra no mercado e o desemprego estrutural, característico da fase

tardia do capitalismo e, no âmbito da assistência social, são promovidas ações de

capacitação (normalmente para os serviços como manicure, serviço de garçom,

construção civil e até grafite) promovem e estimulam a geração de renda via

empreendedorismo, e não necessariamente via proteção social e da proteção ao

trabalhador com vínculo formal de emprego, via assalariamento, a forma de trabalho

central no capitalismo.

É a esta vulnerabilidade que cabe ao Estado combater por meio da redução de

índices quantitativos que depõem contra esta ordem social e que são transferidos para a

esfera individual e da família, como núcleo de responsabilidade pela reprodução social

dos seus membros ainda que não tenham condições mínimas de fazê-lo a ela cabe a

53 Na SMAS da Prefeitura do Município do Rio de Janeiro inclusive dentre os instrumentos (formulários) utilizados no atendimento e acompanhamento dos usuários e famílias atendidos nos CRAS contemplam um “Plano de Travessia” (formulado pelo setor de Vigilância da Exclusão Social) no qual devem ser sinalizadas as demandas, os encaminhamentos, seu cumprimento ou não, até que, após a realização de todas as ações necessárias para o atendimento destas demandas – desde o encaminhamento para atendimento na saúde e políticas de emprego a atividades esportivas e cursos de capacitação – considere-se que o usuário alcançou sua autonomia e não mais “depende” da intervenção (ou auxílio) estatal.

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responsabilidade de manutenção de seus vínculos e da sua subsistência e à assistência

social o fomento de sua autonomia e auto-sustentabilidade.

A idéia é que este público alvo da política de assistência social seja “autônomo”,

ou seja, não mais componha as camadas da população que “dependem” da assistência

social, da proteção social oferecida por ela via ações estatais. Mesmo aqueles que de

forma permanente se encontram inaptos para desenvolver atividades laborativas, caso

integrem um núcleo familiar em condições de garantir a sua sobrevivência através do

desenvolvimento das suas potencialidades permitindo alcançar sua autonomia não são

atendidos, em princípios, pela assistência social, principalmente pelos critérios

rebaixados de renda que são compostos a partir da matricialidade sociofamiliar como

juízo de valor.

Como os critérios geralmente definidos para inserção das famílias nos

programas de assistência social são estabelecidos a partir da renda familiar per capita, é

possível transferir a responsabilidade pela proteção do Estado para a família, desde que

ultrapassem a linha da extrema pobreza e indigência e alcancem, pelo menos, uma linha

de pobreza definida arbitrariamente como “tolerável” pela sociedade, já que esta

expressão da “questão social” é considerada natural a qualquer ordem social. A

desresponsabilização do Estado na estruturação de um sistema de proteção social

constitutivos de cidadania acontece também em núcleos familiares em que existem

integrantes definidos pela LOAS como público-alvo da assistência social, caso se

considere as particularidades presentes nos sujeitos individuais em particular.

A idéia de integração predominante na PNAS e em muitos dos programas

assistenciais passa por formas de inserção no mercado de trabalho sem vínculos formais

de emprego e sem garantias de direitos, como sinalizamos.

Sposati (1998) destaca que este modelo se baseia na idéia de uma política

destinada ao pobre consumidor para atendimento da população usuária numa

perspectiva de constituição de um padrão de consumo de segunda categoria. Dessa

forma afirma que

No modelo do Pobre Consumidor, a população que está no estado informal – no subemprego ou no emprego precário – não tem a possibilidade de direitos. O modelo não incorpora os excluídos como sujeitos da questão social. Parte da concepção de que a Assistência Social é uma política para um segmento de classe, os mais pobres e os carentes. É uma política que trabalha com os necessitados e não com necessidades sociais. Dito de outra forma, é destinada àqueles que não têm condições financeiras para suprir suas próprias

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necessidades. Então a Assistência Social instala uma forma precária de consumo de segunda categoria, com a mediação do Estado, seja diretamente, ou através das organizações de filantropia. É a transformação do cidadão no pobre consumidor (p. 25).

Mas o provimento de necessidades de reprodução social para os trabalhadores na

sociedade capitalista se dá através da venda da força de trabalho, e esta é a forma

operante neste modo de produção. As contradições em torno das concepções – e das

estratégias sobre elas fundamentadas – acerca do que é trabalho e as formas de acesso a

ele que tensionam a relação da política de Assistência Social enquanto política de

Seguridade Social com as demais políticas sociais.

A restrição de políticas de desenvolvimento econômico e social que possibilite a

geração de empregos formais e das garantias vinculadas a eles delega para a assistência

social a responsabilidade por mediar a reprodução social de amplos segmentos da

população descobertos pelos direitos previdenciários e de conectar esta população a

políticas estruturais que existem residualmente ou que estão completamente

precarizadas, como a habitação, saneamento, saúde, educação dentre outras políticas

fundamentais para a reprodução social destes segmentos e para o estabelecimento de

condições de exercício de cidadania.

Existe uma tensão que se constitui entre o público-alvo da política de assistência

social e a população “empregada” com vínculo formal, ao primeiro pode-se destinar a

assistência social, desde que sejam considerados inaptos ao trabalho de forma

permanente, temporariamente ou conjunturalmente, e a segunda a quem se destina a

cobertura previdenciária em situações de incapacidade temporária ou permanente

(acidentes, doenças, idade etc)54.

No âmbito da política de assistência social se situa o entendimento acerca da

geração de emprego e renda para aqueles que se encontram fora da cobertura

previdenciária por motivo eventual entende-se que a capacitação para retomarem ou se

inserirem no mercado coloca a assistência social como porta de entrada para a inclusão

no mercado de trabalho, a porta de saída da vulnerabilidade como se esta política

pudesse ter condições de oferecer garantias de inserção social num contexto regressivo

de direitos e que as vulnerabilidades estivessem circunscritas à uma dimensão eventual 54 Devemos considerar que os empregados sem cobertura previdenciária podem apenas se enquadrar no perfil de potencial público-alvo da assistência social, a não ser que contribuam autonomamente para a previdência social. As famílias que têm dentre seus membros trabalhadores com vínculo formal também podem ser público-alvo, pois podem estar caracterizadas dentro dos patamares e critérios de renda estabelecido pelos programas e projetos da assistência, como o PBF.

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e não estrutural da sociedade e pudessem ser solucionadas através de medidas de

desenvolvimento de potencialidades individuais.

O entendimento de porta de saída inscrito na política de assistência social, a

nosso ver, compreende a idéia que ao Estado cabe, no máximo, assistir àqueles que não

tem condições de alcançar o mercado de trabalho, ou que não podem disponibilizar sua

força de trabalho no mercado, por “ocasião” ou condições permanentes. São o público

considerado vulnerável, ou seja, aqueles que estão em situação de “inaptidão”

temporária ou permanentemente para o trabalho.

A assistência social, a partir dos resultados que produz na sociedade – e tem potencial de produzir – é política pública de direção universal e direito de cidadania, capaz de alargar a agenda dos direitos sociais a serem assegurados a todos os brasileiros, de acordo com suas necessidades e independente de sua renda, a partir de sua condição inerente de ser de direitos. A assistência social, assim como a saúde, é direito do cidadão que independe de sua contribuição prévia e deve ser provido pela contribuição de toda a sociedade. Ocupa-se de prover proteção à vida, reduzir danos, monitorar populações em risco e prevenir a incidência de agravos à vida face às situações de vulnerabilidade (Brasil(c), 2004, pp. 15-16).

O trabalho da assistência social se volta para a potencialização das famílias, para

que elas possam atender as necessidades, inclusive, destes considerados inaptos. A idéia

é que todos os que estão circunscritos neste perfil devem deixar de obter benefícios

estatais e terem sua sustentabilidade garantida no interior dec seus núcleos familiares. A

família deve encontrar a porta de saída da “exclusão”. O documento considera que “a

família deve ser apoiada e ter acesso a condições para responder ao seu papel no

sustento, na guarda e na educação de suas crianças e adolescentes, bem como na

proteção de seus idosos e portadores de deficiência” (Brasil, 2004, p. 90).

Para Sposati (1998) há um terceiro modelo de proteção, diverso da filantropia e

do pobre consumidor baseado no direito à seguridade, que implica na elevação da

Assistência Social à política pública que ofereça cobertura independente de contribuição

a todos que dela necessitem. Destaca também a necessidade fortalecer a dimensão

estatal, a responsabilidade pública. Desta forma afirma que,

se quisermos transitar da Assistência Social para a Seguridade Social devemos fazer dois grandes movimentos. O primeiro é elevar a Assistência Social ao patamar de política pública. Isso implica na decisão da sociedade de assumir a universalização dos riscos sociais, não só para o trabalhador contributivo, mas para o cidadão de modo geral. Nosso modelo, na verdade, distingue o cidadão entre contributivo e não-contributivo. Uma política de Seguridade deve estabelecer que todo brasileiro, independente de contribuição, tenha assegurado um conjunto de atenções. É por isto que devemos lutar. O segundo movimento é

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garantir que a Assistência Social seja de responsabilidade pública, pois, neste país patrimonialista, as ações são isoladas, fragmentadas, tanto no campo público, como nas organizações privadas sem fins lucrativos (Sposati, 1998, p. 24).

Este modelo tratar-se-ia de um campo em construção no qual a Assistência

Social se consolida como política pública que oferece cobertura pública (direta ou em

parceria) a um conjunto de necessidades. “O terceiro modelo, o do Direito à Seguridade

Social, é ainda um campo em construção. Nele, se entende a Assistência Social como

uma política universal de seguridade, responsável pela cobertura pública (direta e/ou em

parceria) de um conjunto de necessidades. Estas consistem em garantir um padrão de

inclusão que assegure a cidadania” (Sposati, 1998, p. 25).

Esta perspectiva acerca do papel das políticas sociais, que tem forte impacto na

construção da política de Assistência Social, compreende, a nosso ver, um conjunto de

ações empreendidas e em desenvolvimento pelo governo Lula. A política central deste

governo se ancora na transferência e geração de renda, mas tocam residualmente no

processo de redistribuição da riqueza socialmente produzida para os trabalhadores,

garantindo a transferência de enormes quantias para o capital e trabalham para

uniformizar um patamar de pobreza e não para reverter desigualdades sociais.

Pontuamos aqui os aspectos presentes na organização dos programas e projetos

no âmbito da Assistência Social nas duas últimas gestões federais da Assistência Social.

Detalharemos em seguida os principais aspectos presentes nos projetos de combate à

pobreza e nos programas conectados especialmente ao programa de transferência de

renda no atual governo.

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1.4 Os Programas e Projetos de Assistência Social

Os programas e projetos no âmbito da Assistência Social se traduzem em

medidas de enfrentamento da pobreza tratando-a como situação específica e como

expressão natural a qualquer ordem social, pautada pelos eixos abordados no item

anterior. A redefinição do papel do Estado no trato das manifestações da “questão

social”, através da prestação de serviços minimalistas e focalizados, fundamentada na

transferência de responsabilidades para a “sociedade civil” balizam esta programática,

nos marcos do ideário neoliberal.

Netto destaca que o combate à pobreza torna-se uma política específica (Netto,

2007, p. 159). A desresponsabilização estatal se concretiza pelos fundos reduzidos, pela

“responsabilização abstrata da ‘sociedade civil’ e da ‘família’ pela ação assistencial”

com destaque para a participação das ONG’s e do terceiro setor na execução das

políticas (Ibidem). A privatização e mercantilização dos serviços para os segmentos da

população que dispõem de renda para participar do mercado são indicados pelo autor

como os elementos que também pautam o reordenamento das políticas sociais, e se

combinam com a manutenção por parte do Estado de serviços públicos precarizados

para os segmentos mais pauperizados (Netto, 2007, p. 160).

As características destacadas pelo autor determinam fundamentalmente os

programas e projetos que têm por objetivo o enfrentamento da pobreza que estão

localizados na Assistência Social: “a política voltada para a pobreza é prioritariamente

emergencial, focalizada e, no geral, reduzida à dimensão assistencial” (Ibidem).

No atual estágio do capitalismo destaca-se o trato emergencial e focalizado da

pobreza por meio de programas e projetos com estas características, e que convergem às

soluções macro-estruturais engendradas para o trato da “questão social”. Nas palavras

Behring (2002): “Para a política social, [o] conjunto de tendências e contratendências

que constituem o capitalismo tardio traz consequências importantes. O desemprego

estrutural acena para o aumento de programas sociais, inclusive de caráter assistencial

permanente” (Idem, p. 171). Atualmente as ações no âmbito da assistência social se

fundamentam na transferência de renda e na geração de mecanismos de auto-

sustentabilidade sem proteção do Estado.

As análises críticas formuladas no interior do Serviço Social reivindicam –

historicamente – que as políticas de Seguridade Social, especialmente, estejam

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vinculadas a uma política econômica que concretamente aponte para a superação das

desigualdades, com maior destinação de recursos para estas políticas e para a geração de

emprego e renda formais55. O direcionamento das políticas estatais neste sentido

possibilitariam garantir a inserção dos trabalhadores na Seguridade Social via

previdência e, sendo a Assistência Social uma política compensatória, caberia a ela

suprir “carecimentos” ocasionais e/ou temporários, ou permanentes nos casos previstos

na LOAS através de mínimos sociais56.

A Assistência Social se pauta no estabelecimento de patamares de vida e

definição do que sejam estes carecimentos e os mínimos sociais necessários para

superá-los. Sposati (1997) destaca cinco patamares de padrão de vida para a definição

dos mínimos sociais em torno das seguintes garantias: sobrevivência biológica;

condição de poder trabalhar; qualidade de vida; desenvolvimento humano e

necessidades humanas (Idem, pp. 15 - 16). Estas dimensões apontadas pela autora

constituem-se como parâmetro para a institucionalização da cidadania dos brasileiros.

Tratam-se de condições de manutenção frente à pobreza absoluta, condições para ser

empregado, acesso a serviços e garantias e desenvolver capacidades humanas (Ibidem).

O estabelecimento destes mínimos sociais, a partir da sua relação com suas

determinações causais, pode convergir a uma concepção minimalista na sua constituição

na legislação da Assistência Social, que supõe mínimos de sobrevivência articulados a

políticas mediadas por programas e projetos focalizados e pontuais. Caberia à

assistência social, a nosso ver, em seus programas e projetos a articulação com a saúde,

assim como, educação, habitação, dentre outras políticas sociais que – estruturadas por

investimentos que garantam o acesso a estas medidas na constituição de um sistema de

proteção social – assegurariam o atendimento não só às necessidades imediatas de

sobrevivência e reprodução social consideradas dignas para um “ser humano”.

A ruptura com os ciclos que produzem a pobreza e miséria, como expressões da

“questão social” exige, necessariamente, um sistema de proteção social constituído por

medidas de ampliação e consolidação do conjunto de políticas sociais afiançadoras de

55 Cf. Behring: 2002, 2008 e 2009; Behring e Boschetti: 2007; Iamamoto: 1998; Mota: 2005 e 2008; Netto: 2001, Pastorini: 1997; Pastorini e Galízia: 2006; Rodrigues: 2007 e 2009; Santos: 2006; Sposati et ali 1986; dentre outros autores e referências bibliográficas que trabalhamos. 56 Que prevê ações assistenciais de proteção à família, maternidade, infância e adolescência, e velhice para garantia de necessidades básicas que estes segmentos não tenham como prover. “A assistência social realiza-se de forma integrada às políticas setoriais, visando ao enfrentamento da pobreza à garantia dos mínimos sociais, ao provimento de condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais” (Parágrafo único dos objetivos da LOAS, Lei 8.742/1993, artigo segundo).

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direitos. Portanto, a Assistência Social realizada de forma orientada no que pode realizar

em si, fundamentalmente promovida por meio de ações minimalistas de administração

da pobreza, que conformam o conjunto de ações denominadas como “combate à

pobreza” nos últimos governos, é uma deformidade da constituição de um modelo de

Seguridade que supõe o atendimento do conjunto de necessidades de reprodução social

como direitos.

Entendemos que se constitui um processo no qual as respostas às expressões

mais visíveis da “questão social” têm sua estruturação, para os trabalhadores mais

pauperizados, constituídas e respondidas no interior da política de Assistência Social.

Estas ações não atuam nas suas causas, demandam por respostas compostas por um

sistema de proteção social que articule os setores governamentais e seus ministérios57.

Refletem a precarização e desmonte da rede de serviços sociais, e a quase inexistência

de políticas no âmbito da geração de emprego e renda, cultura, esporte, educação e

saúde.

Atualmente o combate à pobreza é política específica e para o público-alvo das

ações assistenciais, atendido pela política de Assistência Social, são estruturados

programas e projetos focalizados para o reparo pontual de dimensões que deveriam ser

mediadas por políticas estruturantes. Um exemplo que destacamos, de um projeto no

âmbito da Assistência Social na Prefeitura do Rio de Janeiro é o Programa “Dando Asas

para o Futuro”, localizado no nível de proteção especial58 constituído pela liberação de

valores mínimos para a compra de material de construção para realização de “reparos”

nas construções das residências de seus beneficiários59. Um programa de caráter seletivo

e pontual, que define as piores situações dentre as já agravadas condições de habitação,

57 O trato das expressões da “questão social”, como caracterizamos, é parcial e fragmentado e isso se expressa na constituição da proteção social. Mas a fragmentação de setores (expressa nos governos pela criação de “pastas” específicas) como assistência, habitação, meio-ambiente, educação etc. implica na estruturação das ações a partir desta segmentação. 58 A solicitação de “inclusão” no programa também poderia ser solicitada para usuários atendidos pela proteção básica já que, por vezes, este público também apresenta condições de “vínculos” e “fragilidades” característicos do público-alvo da atenção promovida pelos níveis de média e alta complexidade. Cabe destacar que a transposição dos níveis de atendimento do SUS para o SUAS é mecânico e não se adequa mecanicamente na assistência social. Sendo o CRAS “porta de entrada” desta política social, as situações de vida das famílias, independente da sua “complexidade”, são manifestadas nos atendimentos. No município referido a rede de proteção social na assistência ainda não havia se estruturado para atender e mediar estas situações, não oferecia serviços nos níveis de complexidade mais graves – para além das referências na violência familiar, de gênero e contra a criança e o adolescente, de forma pontual – e restringia o atendimento às necessidades às ações oferecidas principalmente pelos programas e projetos existentes basicamente pelos CRAS, particularmente os programas financiados pelo governo federal. 59 Estes valores tinham um teto (2008) de R$ 900,00. Eram solicitados três orçamentos, levantados pelos demandantes, que seguiam em anexo ao relatório, elaborado pelo assistente social, que solicitava o benefício justificando as necessidades apresentadas após visita domiciliar.

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figura como substitutivo de uma política de habitação inconsistente ou inexistente, neste

caso60.

Junto a esses aspectos, a rede precarizada de serviços sociais e políticas públicas,

dificultava o acesso destes usuários por meio de encaminhamentos. Como destacamos,

o desmonte da proteção social e a busca pela proteção social da assistência social são

processos auto-implicados que escamoteiam a pobreza em ações pontuais e

fragmentadas no interior da própria política de assistência social. Consideramos que este

exemplo ilustra como medidas no campo de outras políticas sociais são operadas no

interior da política de assistência social como medidas compensatórias e extremamente

seletivas. Contemplam alguns beneficiários e, contribuem para camuflar e naturalizar a

ausência de políticas de habitação destinadas à população numa perspectiva

universalista, que atenda aqueles que dela necessitarem.

Ou seja, a Assistência Social passa a estruturar e mediar políticas de geração de

emprego e renda, esporte, cultura, educação e saúde para a população caracterizada

como público-alvo desta primeira. Estes usuários, não tendo suas demandas atendidas

pelas políticas sociais, encontram no campo das ações assistenciais, mediadas pela

assistência, respostas parciais para suas demandas, ou se encaixam no serviço que é

oferecido, simplesmente por serem os únicos existentes61.

A garantia dos direitos sociais previstos no artigo 6º da CF só poderão ser

materializados numa perspectiva de articulação das diferentes políticas setoriais e com

uma política econômica que esteja sintonizada com a busca de esses objetivos. Ainda

que a promoção e a integração ao mercado de trabalho seja um dos objetivos da

Assistência Social (Art. 2º, 3º item da LOAS) esta perspectiva se fundamenta na 60 Este programa é uma parceria entre a referida prefeitura municipal e a aeronáutica. Seu público-alvo inicial era a “população de rua” que permanecia nos arredores do Aeroporto Tom Jobim, no Centro do Rio de Janeiro. Oferecia estes recursos para reparos pontuais nas residências como uma das medidas para que este público não permanecesse naquela localidade. Junto com a Prefeitura tentava-se retomar os “vínculos familiares” e fomentar iniciativas, através primeiramente da abordagem e depois pelo acompanhamento das famílias. Parte dos recursos, dependendo da situação das famílias (caracterizado nos relatórios encaminhados pelos assistentes sociais solicitando o recursos), poderiam ser direcionados a população que não necessariamente estava definida como público-alvo inicial. Havia grande procura e estabelecia-se uma “disputa” entre os que estavam em piores condições para o recebimento do chamado “kit construção”. Além das condições da residência – avaliados também por um engenheiro, caso esta família passasse para uma “segunda fase” – deveria haver disponibilidade de mão-de-obra para a execução dos reparos, que não era fornecida pelo programa, e que este público estivesse no perfil de renda dos programas sociais, também definidos de forma rebaixada. 61 Um exemplo: os cursos oferecidos para os jovens entre 15 e 17 anos normalmente se situavam no campo de atividades esportivas e culturais, como forma de ocupação do tempo. Vemos na concepção do público-alvo da assistência social que são considerados os riscos da adoção de estratégias de sobrevivência criminalizadas e o uso do tempo ocioso dos jovens, seja com qual atividade, é promovido para que não se tornem “perigosos” ou ofereçam “risco” à sociedade. Caso este público não se sinta contemplado pelas atividades oferecidas há duas opções: participar assim mesmo (concorrendo dentre os critérios de seleção, pois não é garantido o acesso de todos que demandam) ou não fazê-los.

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aparência que as ações da assistência promovem ou incentivam que esta população se

torne alcançável por políticas de geração de emprego e renda que atendam às suas

necessidades.

Não se trata do desenvolvimento de ações no interior da assistência mediadas

pela transferência e geração de renda. Uma perspectiva ampliada de Seguridade Social

implica na sua reforma contemplando ações que estruturem um sistema de proteção

social com base em políticas de desenvolvimento econômico redistributivas e garantias

de direitos aos trabalhadores.

O programa de transferência de renda do atual governo62 (PBF) articula-se a

geração de emprego e renda, promovido de forma vinculada a cursos de capacitação

para o desenvolvimento do empreendedorismo, mas também atualmente articulada ao

Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Não se define como política estrutural

baseada no desenvolvimento econômico numa concepção redistributiva, pelo contrário,

possui caráter parcial, promovendo vínculos temporários e precários (ainda que

articulada ao Ministério do Trabalho e Emprego TEM, e utilizando recursos do

mesmo63).

Como exemplo dessas ações temos o Plano Setorial de Qualificação

(PLANSEQ)64. O PLANSEQ gera empregos temporários nas obras do PAC, vinculado

ao PBF desenvolvido pelo MTE para inserção profissional em execução pelo Governo

Federal desde 2008. Este programa indica um membro da composição familiar dos

beneficiários do PBF, que seja maior de 18 anos e tenha a 4ª série do ensino

62 Programa de transferência de renda do Governo Federal executado pelos municípios em todo o Brasil implementado desde 2005 conforme caracterizamos. 63 Este programa é financiado pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), com meta de 184.297 pessoas localizadas em 12 regiões metropolitanas e 08 capitais do Brasil (fonte: MDS). 64 O Programa se inscreve na agenda do “Trabalho Decente” do MTE considerando-o como “um trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna.que tem dentre seus objetivos a “disponibilização, em base setorial, com ênfase formal, de oportunidades de qualificação social (reflexão sobre cidadania, fortalecimento e o mundo do trabalho), profissional (fundamentos técnico-científicos da ocupação) e ocupacional (atividades específicas à ocupação), em articulação com a intermediação de mão-de-obra, geração de emprego e renda e elevação de escolaridade, visando apoiar a manutenção ao emprego, trabalho e renda e/ou inserção desses trabalhadores/as, em base setorial, no mercado de trabalho e a ampliação de suas oportunidades de geração de emprego e renda, tendo como princípios mecanismos de concertação e diálogo social. Consubstaciada em Planos Setoriais de Qualificação – PlanSeQs” (fonte: MTE Programa Nacional de Trabalho Decente – PNTD). O público-alvo do programa contempla vários segmentos de trabalhadores, ms define seu público prioritário: “Deverão ter preferência de acesso as pessoas em maior vulnerabilidade econômica e social, populações mais sujeitas às diversas formas de discriminação social que, conseqüentemente, têm maiores dificuldades de acesso a um posto de trabalho, particularmente os/as trabalhadores/as desempregados/as com baixa renda e baixa escolaridade, desempregados de longa duração, afrodescendentes, indiodescendentes, mulheres, jovens, pessoas com deficiência, pessoas com mais de quarenta anos e outras” (fonte: MTE, manual de orientações para projetos do PLANSEQ, em www.tem.gov.br).

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fundamental completo para trabalhar em obras da construção civil. O PLANSEQ tem

por objetivo oferecer “qualificação profissional de trabalhadores pertencentes a famílias

beneficiárias do Programa Bolsa Família para inserção em postos de trabalho gerados

pelo setor da construção civil nas obras do PAC”.

Trata-se de mais um programa parcial e fragmentado, com metas quantitativas

restritas para inserção no mesmo, ou seja, não contempla sequer o universo de

beneficiários no perfil que ele mesmo define para o acesso65. Estes usuários devem

corresponder aos critérios dos “testes de meios”, apresentando as condições de renda

familiar que caracterizam-na dentro do perfil do PBF e cumprir as condicionalidades

dos programas que estejam vinculados a este último, que estão localizadas

fundamentalmente na Assistência Social, Saúde e Educação66.

Na Assistência Social é exigida freqüência mínima de 85% da carga horária

relativa aos serviços socioeducativos para crianças e adolescentes de até 15 anos em

risco ou retiradas do trabalho infantil67 e inseridas no Programa de Erradicação do

trabalho Infantil (PETI) para as famílias beneficiadas pelo PBF. O PETI desenvolve

ações lúdicas e de reforço escolar e culturais e esportivas68. É um programa financiado

por recursos federais, um “dinamizador” é contratado para mediar as atividades69 que

são desenvolvidas no contraturno escolar para ocupar o tempo destas crianças e

adolescentes fora do horário em que estão estudando para que não voltem ao trabalho.

Já houve financiamento com recursos específicos além do PBF, mas hoje este programa

não transfere renda específica, figura como condicionalidade para as famílias

continuarem recebendo os benefícios70.

65 Este membro é selecionado por meio dos dados fornecidos no Cadastro Único de Programas Social que é o formulário enviado para o governo federal para análise e liberação do benefício vinculado ao PBF e define o “contemplado” através destas informações. O usuário recebe uma correspondência enviada diretamente por este ente federativo que o encaminha aos postos de credenciamento, no qual ainda passará por cursos e que não garante seu posto de trabalho, pois, dentre estes, ainda há outra seleção para a inserção de fato. 66 Para a Educação: freqüência escolar mínima de 85% para crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos e mínima de 75% para adolescentes entre 16 e 17 anos; para a Saúde: acompanhamento do calendário vacinal e do crescimento e desenvolvimento para crianças menores de 7 anos; e pré-natal das gestantes e acompanhamento das nutrizes na faixa etária de 14 a 44 anos e, para a Assistência Social: freqüência mínima de 85% da carga horária relativa aos serviços socioeducativos para crianças e adolescentes de até 15 anos em risco ou retiradas do trabalho infantil (fonte: MDS). 67 Fonte: MDS (www.mds.gov.br) 68 Estas atividades variam de acordo com cada pólo e conforme as parcerias que são estabelecidas com a rede, que pode ser pública ou privada e filantrópica. 69 Profissional com escolaridade de nível médio, não necessariamente vinculado á educação ou a alguma dimensão específica das atividades. Normalmente a contratação é terceirizada, para não constituir vínculo trabalhista, há cada três meses este dinamizador deve ser substituído por outro, no caso do Rio de Janeiro. 70 Até a unificação dos programas o PETI transferia bolsas no valor de R$ 45,00 reais por criança retirada do trabalho infantil.

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No caso da Saúde as condicionalidades para receber o benefício do PBF são

exame pré-natal, acompanhamento nutricional para determinados membros das famílias

que compõem o domicílio cadastrado. Crianças de zero a sete anos para pesagem e

vacinação, gestantes e nutrizes de 14 a 44 anos para consultas periódicas. Esta

condicionalidade deve ser cumprida uma vez a cada semestre para manutenção do

benefício.

Destacamos que os membros da família, fora do público priorizado na

condicionalidade, e não são previstas iniciativas neste sentido no programa não

incluídos na promoção do atendimento na rede de saúde. Também não existem garantias

de acesso e atendimento na rede para situações fora do atendimento pontual

condicionado ao PBF. Visto, como já destacamos, o desmonte desta rede. Como

dissemos, numa perspectiva de uma saúde como política pública cada vez mais

precarizada e restrita estes serviços não são incluídos na oferta numa perspectiva

universalista e sequer estão presentes pela articulação da assistência como garantia de

acesso aos mesmos.

Na educação há o acompanhamento da freqüência escolar, condição para

manutenção dos benefícios para crianças e adolescentes entre 05 e 14 anos71. As

medidas de ampliação e qualificação da educação não estão compreendidas na

mediação entre condicionalidade e acesso e permanência nesta política pública. Nas

ações da assistência estas medidas não se compatibilizam com as condicionalidades

junto com a avaliação da qualidade dos serviços prestados na educação. A eficácia e

efetividade do PBF e a medida de avaliação do seu sucesso na mediação com a

educação está circunscrito a frequência com vistas à elevação do nível de escolarização

formal, mais uma vez como combate a índices de vulnerabilidade e exclusão.

Ações de recuperação do nível de escolarização dos jovens e adultos (entre 18 e

29 anos) também estão previstas através do Programa Nacional de Inclusão de Jovens72

(ProJovem) na modalidade “Urbano” que oferece ensino fundamental e capacitação

para o trabalho. Durante um ano, em média, o aluno (que deve ser no mínimo

71 Exige-se a frequência de 85% na educação para esta faixa etária e de 75%. Para jovens de 15 a 17 anos para que recebam o Benefício Vinculado ao Jovem (BVJ) com até dois benefícios por família que tenham membros da família neste perfil, mas é uma condicionalidade apenas para este benefício, não condiciona o recebimento dos benefícios básico e variável do PBF (fonte: MDS, www.mds.gov.br). 72 O ProJovem foi lançado em 2005 pelo governo federal. Em abril de 2008 o programa passo a ter quatro modalidades: Adolescente, Urbano, Campo e Trabalhador e aumenta a faixa etária de abrangência incluindo, agora, jovens de 15 a 29 anos. O Adolescente contempla jovens entre 15 e 17 anos e o Urbano contempla a faixa etária entre 18 e 29 anos (fonte: MDS).

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alfabetizado) completa o ensino fundamental e participa de um curso de capacitação

para o mercado de trabalho e realiza coletivamente uma ação comunitária que é

desenvolvida ao longo do período através do desenvolvimento por assistentes sociais do

Plano de Ação Comunitária (PLA)73.

O atual governo coloca em destaque as ações direcionadas para a juventude. Nas

palavras do presidente Lula:

"Desde o início do nosso governo, temos procurado nos empenhar para resolver os principais problemas da juventude", explicou o presidente. Segundo ele, o ProJovem vem se somar aos diversos programas e ações do governo, como o Programa Universidade para Todos (ProUni) e o Escola de Fábrica, do Ministério da Educação; o Segundo Tempo, do Ministério dos Esportes; e o Primeiro Emprego, do Ministério do Trabalho. O presidente falou do orgulho que teve ao participar (...) da entrega de bolsas do ProUni, em São Paulo (fonte: MEC, em portal.mec.gov.br)74.

O ProJovem Urbano é realizado em parceria com a educação no que diz respeito

ao espaço físico (unidades escolares) e com recursos humanos terceirizados, mas é

fundamentalmente estruturado pela Assistência Social não pela educação. Atende a

parcela da população que chegou a idade adulta sem escolarização fundamental75, desde

que, mais uma vez, esteja dentro dos patamares de renda que definem sua situação como

“vulnerável” a riscos ou que ofereçam risco à sociedade, visto que, sem dúvida, o

rebaixamento da escolaridade é um dos fatores que os prejudica na disputa por postos de

trabalho “regulares”.

Ns palavras do Ministro da Educação Fernando Haddad:

"O ProJovem é um programa também de educação que inova do ponto de vista de pedagogia, tem um novo formato e ao MEC caberá a parte educacional, conveniar com estados e entidades sem fins lucrativos, para atrair os jovens com um estímulo pecuniário para que voltem aos estudos” A seu ver, é um programa bem-integrado, inovador em todos os aspectos (fonte: MEC, em portal.mec.gov.br)76.

73 Podem ser realizadas ações educativas, eventos e outras atividades na “comunidade” de origem destes jovens. Esta ação, no município do Rio de Janeiro, ficava prejudicada pelo repasse de recursos de responsabilidade das ONG’s contratadas para a condução do programa. Segundo a página eletrônica do ProJovem “O Plano de Ação Comunitária (PLA), que se refere ao planejamento, realização, avaliação e sistematização de uma ação social escolhida pelos alunos, fundamentada no conhecimento de sua realidade próxima (fonte: ProJovem, www.projovem.com.br) 74 Entrevista realizada na ocasião do lançamento do ProJovem, disponível no portal do Ministério da Educação: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1708&catid=209 75 Até 2008 este público contemplava jovens de 18 a 24 anos e foi ampliado, dentro do perfil caracterizado como “juventude”. A população acima da faixa etária estabelecida, mesmo que dentro dos critérios de escolaridade incompleta e renda não podem participar do programa. 76 Entrevista realizada na ocasião do lançamento do ProJovem, disponível no portal do Ministério da Educação: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1708&catid=209

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O Programa objetiva: Formação Básica, para elevação da escolaridade, tendo em

vista a conclusão do ensino fundamental; qualificação profissional, com certificação de

formação inicial; participação cidadã, com a promoção de experiência de atuação social

na comunidade (fonte: MDS)77. É um programa instalado no âmbito da assistência

social e não da educação, estruturado para atender amplamente os setores que estão

dentro do perfil de recuperação da escolaridade, que seria definida pelo nível de

escolarização (como o PROEJA78) e não estabelece uma perspectiva de garantia de

acesso universal para o público em geral, mas com metas pré-estabelecidas79 e público

restrito, pois não garante acesso, no caso do ProJovem Urbano, para pessoais com idade

superior a faixa etária delimitada.

Não são estruturados com qualidade programas no âmbito da política de

Educação e são ofertados através da Assistência Social programas com este título e

objetivo para uma determinada parcela incluída nestes critérios. E, de uma forma geral

como já destacamos, não são vinculados projetos no âmbito da alteração das condições

de habitação, acesso a serviços de saúde e educação de qualidade, saneamento e

transporte, dentre outras políticas públicas fundamentais para a melhoria da qualidade

de vida da população e alteração do quadro de desigualdade, inclusive para o público

que não é considerado pobre ou extremamente pobre.

As primeiras modificações no padrão de proteção social em geral expressam-se no redirecionamento dos recursos sociais gerais e/ou privados (não mercantis) para programas focalizados, isto é, direcionados e compensatórios, emergenciais e temporários, guiados pela “seleção” de beneficiários. São as primeiras modificações porque respondem às estratégias econômicas mais gerais de austeridade fiscal, baseadas na idéia hegemônica de evitar o desperdício e procurar o reequilíbrio das contas públicas. O principal argumento

77 A capacitação para o mercado de trabalho compreende “Formação Técnica Geral, que aborda aspectos comuns a qualquer ocupação e que permitem ao jovem compreender o papel do trabalho e da formação profissional no mundo contemporâneo; arcos ocupacionais, em número de 23, que preparam o jovem para atuar no mundo do trabalho, como empregado, pequeno empresário ou membro de cooperativa, baseando-se em concepções contemporâneas de organização do trabalho, cada arco desenvolve competências relacionadas à concepção, à produção e à circulação de bens ou serviços, ampliando e articulando as possibilidades de atuação do jovem no mundo do trabalho; Projeto de Orientação Profissional (POP), que é um trabalho de cunho reflexivo, ao longo de todo o curso, preparando o jovem para melhor compreender a dinâmica do mundo do trabalho e planejar o percurso de sua formação profissional e (...) o componente Participação Cidadã, que também corresponde a uma das dimensões curriculares, compreende dois conjuntos de atividades” (fonte: ProJovem, em www.projovem.com.br). A matriz curricular do curso pode ser acessada no página eletrônica acima referida. Destacamos que o município executor escolhe dentre os 23 arcos ocupacionais aquele que será desenvolvido. 78 Programa de Integração Profissional ao Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Decreto 5154/05) e faz parte do Programa Brasil Profissionalizado (fonte: MEC). É destinado a jovens a partir de 17 anos e sem limite de idade. O acesso e a permanência têm critérios diferenciados dependendo da unidade de ensino que o oferece, mas também não garante acesso universal, depende de processos seletivos que não contemplam o universo de demandatários, depende das vagas que a rede oferece, assim como nos demais níveis de ensino, médio e superior. 79 Os recursos destinados ao programa são destinados aos municípios a partir de metas definidas entre o ente federal e a municipalidade. Estas metas já estão condicionadas pela faixa etária definida pelo programa, e são determinadas pela capacidade instalada no município que atenderá a demanda de parte do público dentro deste perfil.

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utilizado para isto é que os mais necessitados não são os mais beneficiados pelas políticas sociais. Portanto, os gastos dever-se-iam redirecionar e concentrar em programas dirigidos às camadas mais pobres da população. O problema agrava-se quando se absolutiza a focalização em detrimento de qualquer outra forma de proteção como, por exemplo, a manutenção e o melhoramento das políticas de proteção social permanentes (Pastorini e Galízia, 2006, p. 95-96).

Este quadro não é expressão inaugurada pelo atual governo. Ainda que os

programas descritos sejam inovações, seguem a mesma lógica de administração dos

índices que medem a pobreza. Alguns programas têm sua nomenclatura alterada e são

pontualmente reformulados, como é o caso do ProJovem que destacamos aqui nas

modalidades Urbano e Adolescente80.

Retomando um breve histórico dos programas de combate à pobreza nos

governos do período democrático e o escopo em que se desenham verificamos que os

programas de combate à pobreza se configuram como resposta à “questão social” e se

baseiam fundamentalmente através de programas de renda mínima no Brasil a partir da

década de 1990, seguindo orientações dos organismos internacionais. Alteram-se os

fundamentos das políticas sociais e se estabelecem programas e projetos de combate à

pobreza como política específica e adquirem centralidade nos governos democráticos

tornando-se populares entre os segmentos atendidos num processo de naturalização da

pobreza e de manutenção das desigualdades sociais.

Os programas de transferência de renda “têm uma nítida orientação de combate à

miséria e à pobreza extrema, embora não tenha conseguido alterar o quadro de

desigualdade social e concentração da riqueza socialmente produzida” (Boschetti, 2008,

192 - 193). No escopo do neoliberalismo o combate às desigualdades aparece como

combate à pobreza absoluta. Os programas de composição da renda mínima para a

população mais pauperizada são estruturais nestes governos numa perspectiva social-

democrata tardia, como destaca Netto (2007):

Se, de fato, o combate às desigualdades não faz parte do conjunto prático-ideológico do neoliberalismo, é seu elemento constitutivo um elenco de programas sociais voltados ao enfrentamento da pobreza. No plano dos princípios, tais programas até podem contemplar uma proposição que certa socialdemocracia tardia vem incorporando como progressista: a do rendimento

80 A recuperação da escolaridade era um projeto vinculado ao ProJovem, programa que foi desdobrado, em 2007, (por meio da Medida Provisória 411/07) nas modalidades Urbano e Adolescente (antigo agente jovem, destinado a jovens na faixa etária entre 15 e 17 anos); Campo – Saberes da Terra (“programa de escolarização de jovens agricultores/as familiares em nível fundamental na modalidade de Educação de Jovens e Adultos – EJA, integrado à qualificação social e profissional” direcionado, assim como o Urbano, para recuperação da escolaridade de jovens entre 18 e 29 ano) e Trabalhador (fonte: MEC, portal.mec.gov.br)

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mínimo garantido, compatível com a tese do imposto negativo (Netto, 2007, p. 159).

A transferência de renda retoma o necessário debate acerca de como se operam

medidas no capitalismo para distribuição de renda e riqueza. Este debate se relaciona à

garantia de propriedade e de acumulação privada. Trata-se de uma característica central

na conformação do capital e, tal como afirma Netto (2007), a economia mundial hoje

atinge um grau de concentração e centralização de riqueza ainda não visto e tem

impactos que cada vez mais ampliam a desigualdade entre geração de riqueza,

apropriação e acumulação privada e desigualdade social. Netto sustenta que

A concentração da propriedade conecta-se diretamente aos processos de concentração e centralização de capitais que se aceleram nos último trinta anos – com efeito, a economia mundial atingiu um assombroso grau de concentração e centralização – sem prejuízo da continuidade da concorrência intercapitalista (2007, p. 157).

A concentração de poder econômico se vê refletida na concentração de poder

político. Operam-se mecanismos no campo cultural e ideológico, fomentado pelos

meios de comunicação oficiais, de desqualificação da política, dos espaços

democráticos e de participação. O formato de democracia no capitalismo

contemporâneo comprime cada vez mais a participação política possível nos espaços

democráticos existentes, seja pelo caráter privado dos mesmos, seja pelas condições de

participação concreta para uma população sem as necessárias condições de reprodução

social ou apenas com acesso a mínimos de sobrevivência.

A concentração do poder econômico conduziu e está conduzindo a uma enorme concentração do poder político. Aqui, claramente, revela-se o caráter antidemocrático do capitalismo monopolista contemporâneo: ao mesmo tempo em que desqualificam a política, ladeando as instâncias representativas (parlamentos, assembléias legislativas) ou nelas fazendo sentir o peso dos seus lobbies, essas “elites orgânica” do grande capital – empresários, executivos, analistas, cientistas, engenheiros – realizam a sua política, tomando decisões estratégicas que afetam a vida de bilhões de seres humanos, sem qualquer conhecimento ou participação destes. E não é preciso dizer da característica corrupta dessa política (Netto, 2007, p. 158).

Entendemos que a alteração do quadro de desigualdade social e concentração de

riqueza não são objetivos dos programas de transferência de renda, como já vimos

debatendo. Instala-se uma lógica oposta a uma perspectiva redistributiva ancorada na

redução da concentração de renda e riqueza socialmente produzida e redistribuição da

mesma, via uma política econômica caracterizada neste escopo e políticas sociais

garantidoras de direito.

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Permanece uma distribuição extremamente desigual tendo o Estado como

mediador desta distribuição: para as classes dominantes são transferidas vultosas

quantias (investimento no setor privado, política de juros etc.) e parte quase

insignificante para a população que é beneficiária dos programas de transferência de

renda, considerada a proporção de quem recebe e quanto81.

Dados de 1999 revelam que os 10% mais ricos se apropriam de 47,4% da renda nacional, cabendo aos 50% mais pobres apenas 12,6% dela – e, particularmente, que o 1% mais rico se apropria de mais que os 50% mais pobres. Mais exatamente: o “1% mais rico do Brasil, pouco mais que 1,5 milhão de pessoas (...) controlam 17% da renda nacional e possuem 53% do estoque líquido de riqueza privada do país” (Estensoro apud Netto, 2007, p. 139).

A concentração de riqueza no Brasil chega ao ponto que cinco mil famílias se

apropriam de 2/5 do fluxo de renda gerado no período de um ano, o que significa que a

grande maioria da população dentre os 180 milhões de brasileiros divide os demais 3/5,

ainda de forma extremamente desigual, como destaca Netto82.

Estudos recentes mostram que apenas cinco mil famílias, num país de 180 milhões de habitantes, apropriam-se de um estoque de riqueza equivalente a 2/5 de todo o fluxo de renda gerado pela sociedade no período de um ano. Tais famílias embolsam o equivalente a 3% da renda nacional total, com o seu patrimônio representando cerca de 40% do PIB brasileiro (Netto, 2007, p. 139).

Enquanto são desenvolvidos programas de transferência e renda para atingir as

famílias “mais vulneráveis”, verifica-se economicamente que o investimento em

serviços de infraestrutura públicos continua insuficiente. Milhões de famílias continuam

sem serviço de água e saneamento básico, educação e outras garantias de direitos, no

Brasil e na América Latina83. As políticas de proteção social e de garantias de direito

permanecem precarizadas.

81 A política de juros altos garante altos lucros aos bancos e pequenos grupos capitalistas se configurando como uma transferência de renda direta e desproporcional ao que se transfere através dos programas de renda mínima. Dentre os três maiores bancos privados o Bradesco, fechou 2007 com lucro líquido de superior a R$ 8 bilhões, um aumento de 58,5% em relação lucro obtido no ano anterior (fonte: folha online) No ano de 2007 o valor pago pelo PBF para 9 milhões de pessoas chegou a R$ 15 bilhões. O valor acumulado apenas pelo maior banco representou 53% desse valor total (fonte: agência Brasil). 82 O autor destaca que estes processos não se restringem ao Brasil – apesar do país ser um dos líderes de concentração de renda e desigualdade. No mundo se amplia a porcentagem da participação dos 10% mais ricos na distribuição de renda – de 46,9% para 50,8% – enquanto que os 10% mais pobres tiveram sua participação reduzida –de 0,9% para 0,8% - nos dados referentes ao período de 1988 a 1993 (Entessoro apud Netto, 2007, p. 140). 83 O PAC, como sinalizamos, propõe o “desenvolvimento social” por meio da promoção de ações para melhoria de infraestrutura urbana, especialmente, no caso do Rio de Janeiro, na área de transporte ferroviário e rodoviário, saneamento e construção de alguns equipamentos e serviços em “comunidades carentes”, a conclusão dos projetos de urbanização de Manguinhos, Alemão, Rocinha e dos morros do Pavão/Pavãozinho-Cantagalo, na Zona Sul da capital, estão previstas para 2010 (fonte: Governo Estadual, www.governo.rj.gov.br). Ao mesmo tempo transfere vultosas quantias de recursos públicos para o setor privado executar estas obras. Milhões de reais são destinados ao programa num processo que beneficia este setor e que permanece meio a acusações de superfaturamento, atraso na entrega das obras. Auditores do Tribunal de contas da União - TCU estão investigando os valores dos contratos, que podem

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O cenário latino-americando inscreve-se num contexto mais amplo. Relatando, em 2001, a situação dos clamados “países em desenvolvimento”, o PNUD relacionava: 968 milhões de pessoas sem acesso a serviços de água potável, 2,4 bilhões sem acesso a saneamento básico, 854 milhões de adultos analfabetos, 325 milhões de crianças fora da escola, 163 milhões de crianças com menos de cinco anos subnutridas (PNUD, 2001 apud Netto, 2007, p. 141).

Em relatório do Banco Mundial (1995) os dados confirmam esta concentração:

os 10% mais ricos concentram 51% do PIB e os 40% mais pobres apenas 7% do

mesmo.

Segundo relatório de 1995 do Banco Mundial, os 10% mais ricos da população abocanham 51,3% do PIB. (...) Os 40% mais pobres no Brasil ficam com apenas 7% do PIB, o índice mais baixo de todos os 145 países incluídos no relatório do Unicef sobre a Situação Mundial da Infância (1995). E os 20% mais ricos ficam com 68% da renda nacional, a mais alta taxa de concentração do mundo. Com esse desempenho, o país é enviado de volta ao Terceiro Mundo e obrigado a andar na triste companhia de Guiné-Bissau, Guatemala e Panamá (Helene, 1996, p. 6).

Os governos do período democrático implementaram uma política que reprime

demandas do mundo do trabalho enquanto procuraram estabelecer pactuações com a

população mais pauperizada através de medidas de atendimento destes segmentos, que

têm suas necessidades atendidas parcialmente. Este processo, conjugados a apologia

ideológica dos programas e medidas de combate à pobreza, conformam junta a esta

população o “crédito” das soluções engendradas aos governos ou suas figuras centrais84,

consideradas as possíveis no capitalismo, o modo social naturalizado assim como as

desigualdades por ele geradas.

O Governo Lula recuperou e ampliou o populismo conservador de Collor e de FHC. As reivindicações dos trabalhadores organizados são preteridas, pois seu atendimento custaria caro ao capitalismo brasileiro e ao capital financeiro, mas,

conter sobrepreços e estimações excessivas, assim como a participação das empresas nas licitações, para verificar se são garantidos os princípios da isonomia e igualdade, estabelecido pela Lei de Licitações (fonte: licitações.net.br, referente às licitações realizadas pela Prefeitura de Várzea Grande). Mas até o momento irregularidades não foram comprovadas, ainda que tenhamos clareza que no processo de beneficiamento do capital, a implantação do programa veio responder à demanda do setor industrial e comercial mantendo as características, no que concerne ao atendimento às necessidades dos trabalhadores, fragmentado e pontual, no que diz respeito a inserção no mercado de trabalho num processo contraditório com ações concretas no campo da constituição de infraestrutura nos espaços (ou “comunidades”) onde estes serviços são mais precarizados ou inexistentes. 84 O “senso comum” já convencionou o vínculo do PBF ao presidente Lula. Nos meios de comunicação oficiais e na grande mídia, especialmente nos debates realizados durante o período eleitoral onde se punha a candidatura à reeleição do referido presidente a discussão sobre a manutenção ou não do programa contribuiu para mobilizar os segmentos mais pauperizados em torno de sua eleição, como medida para garantir a manutenção dos benefícios, visto que os seguidos governos alteram os programas de combate à pobreza e que eles não se constituem como direito e sim como benefícios, esta cultura é reproduzida e tem seus frutos nestes processos de representação. Atualmente, os índices de aprovação do governo giram em torno de 84% (Pesquisa CNT/SENSUS, agosto/2009, consultada em Último Segundo, www.ig.com.br), e nos últimos sete anos, não apresentam sinais de decréscimo, ainda que o corte social deste governo não estabeleça patamares de consolidação de direitos nos marcos de uma Seguridade Social ampliada, como já caracterizamos.

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ao mesmo tempo, passa a fazer demagogia social com os trabalhadores pauperizados, desorganizados e desinformados (Boito, 2005, p. 9).

Temos convencionado no “senso comum” o vínculo do PBF ao presidente Lula.

Nos meios de comunicação oficiais e na grande mídia, especialmente nos debates

realizados durante o período eleitoral onde se punha a candidatura à reeleição do

referido presidente a discussão sobre a manutenção ou não do programa contribuiu para

mobilizar os segmentos mais pauperizados em torno de sua eleição.

As inovações nos programas adquirem um grande peso político, conforme

sinalizamos, e são parâmetros, inclusive, de debates no período eleitoral85 e adquirem

peso de políticas permanentes na mesma medida em que se expande a crise e as

desigualdades sociais, conforme sinalizam Pastorini e Galízia.

O aumento, a ampliação e as inovações produzidas nos programas assistenciais, emergenciais, compensatórios são especialmente importantes do ponto de vista do peso político que adquirem em relação às políticas permanentes antes predominantes do ponto de vista de quantidade de beneficiários, recursos etc. Tanto em razão de condições econômico-estruturais externas, quanto devido a pressões político-sociais internas, bem como ao aumento dos níveis de pobreza e desemprego, os programas assistenciais aumentaram em quantidade, modificando-se notavelmente a relação entre eles e os permanentes (2006, p 96).

Sua reeleição, junto com outros fatores, teve presente o apoio deste público

como medida de garantia da manutenção dos benefícios, visto que os seguidos governos

alteram os programas de combate à pobreza e que eles não se constituem como direito e

sim como benefícios, esta cultura é reproduzida e tem seus frutos nestes processos de

representação. Atualmente, os índices de aprovação do governo giram em torno de 84%

(CNT/SENSUS, 2009)86, e nos últimos sete anos, não apresentam sinais de decréscimo,

85 Durante as últimas eleições majoritárias (2006) uma das discussões era se permaneceria, ou não, o PBF. A continuidade do programa foi um dos pilares de continuidade da atual gestão, visto o público que atinge, a visibilidade nacional e internacional e o fato de concretamente alterar o patamar de renda de milhões de famílias. Ainda que o marco das desigualdades permaneça e que a alteração no padrão de vida não seja ampliado por este programa qualquer transferência de renda para famílias nos patamares de pobreza, ou extrema pobreza significa alterações no consumo das mesmas. Este público não tem demonstrado potencial de mobilização, pelo menos, não há registro de que ocorra qualquer tipo de pressão, seja para garantia do benefício, seja para sua ampliação, pois não está parametrado como um direito, mas como um benefício socioassistencial. 86 Pesquisa CNT/SENSUS, agosto/2009, consultada em matéria da página “Último Segundo” (em www.ig.com.br). Em seu 95º levantamento, divulgada em agosto deste ano, “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve 84% de aprovação entre o eleitorado. Em dezembro de 2008, a aprovação do desempenho pessoal do presidente estava em 80,3% e a desaprovação, em 15,2%. Nas últimas treze rodadas da pesquisa, Lula vem apresentando melhora no índice de aprovação. Em setembro de 2005, durante a crise do mensalão, Lula era aprovado por apenas 50% dos entrevistados. O governo tinha obtido melhor índice na série histórica da pesquisa, iniciada em 1998, em janeiro de 2003, quando Lula assumiu a presidência com 83,6% de avaliação positiva” (Idem).

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ainda que o corte social deste governo não estabeleça patamares de consolidação de

direitos nos marcos de uma Seguridade Social ampliada, como já caracterizamos.

Outro estudo do Banco Mundial (2004), delimitava quatro áreas de ação

prioritária para o combate à desigualdade por parte dos governos e da sociedade civil,

quais sejam: Criar instituições políticas e sociais mais abertas; assegurar que as

instituições econômicas e políticas busquem uma maior igualdade; aumentar o acesso

dos pobres a serviços públicos; e reformar os programas de transferência de renda, de

forma que atinjam as famílias mais pobres, inclusive usando medidas condicionando as

transferências à manutenção dos filhos na escola e à utilização dos serviços de saúde,

com vistas a melhorar a sua capacidade de geração de renda no futuro (fonte: Banco

Mundial, www.bancomundial.org.br).

No governo Lula estas orientações são seguidas à risca, como vimos.

Destacamos aqui a avaliação sobre os gastos sociais, realizada pelo Ministério da

Fazenda em 2005, que compreende as ações no período 2001-2004. No documento87

considera a população mais pobre, para a qual são direcionadas as políticas e programas

de combate à pobreza de acordo com a seguinte classificação: os mais pobres na faixa

de renda inferior à R$ 100,00 per capita, localizados assim dentre os 40% mais pobres

categorizados em “classes de renda”88.

Destacamos que as faixas de renda variam entre R$ 50,00 e R$ 789,00, a partir

de R$ 790,00 se localizariam os 10% “mais ricos”. Estas faixas classificatórias não

expressam a concentração de renda.

Para tanto, vamos considerar como “mais pobres” as pessoas que, antes da interferência do governo, se encontram nos quatro primeiros decis da distribuição de renda, ou seja, entre os 40% mais pobres. Segundo a PNAD 2003, essa parcela da população corresponde aos indivíduos que têm renda domiciliar per capita mensal inferior a R$ 100, antes das transferências do governo (SPE, 2005, p. 11).

O Programa Bolsa Família (PBF) foi lançado em 2003 pelo Governo Federal,

unificando os programas existentes, um programa de transferência de renda

condicionado pela educação (frequência escolar), saúde (acompanhamento de crianças

87 Texto “Orçamento Social do Governo Federal: 2001-2004” produzido pela Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda em 2005, disponível em www.fazenda.gov.br. 88 “As classes de renda são construídas ordenando-se os indivíduos de acordo com sua renda domiciliar per capita. A população assim ordenada é então dividida em dez grupos de igual tamanho, de forma que o primeiro grupo contém os 10% mais pobres da população; o segundo grupo, os próximos 10% mais pobres, e assim por diante, até que o último grupo seja formado pelos 10% mais ricos. De acordo com a PNAD 2003, o limite superior de renda domiciliar per capita mensal desses grupos, convencionalmente denominados decis, são: R$50, R$82, R$115, R$150, R$197, R$253, R$332, R$471, R$789” (SPE, 2005, p. 11).

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até sete anos, pré-natal e acompanhamento de nutrizes entre quatorze e 44 anos) e

assistência social (freqüência nos programas socioeducativos), conforme abordamos. O

programa transfere valores de até R$ 182,00 famílias de acordo com sua renda e

composição familiar89.

Em outubro de 2003 foi lançado o Programa Bolsa Família, que unificou quatro programas de transferência de renda, a saber: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio-Gás e Cartão Alimentação (...). O programa procura incentivar ações positivas para o rompimento do círculo da miséria e para a inclusão social. Para isso, são estabelecidas algumas condicionalidades para receber o benefício, tais como: exame pré-natal, acompanhamento nutricional e freqüência escolar. O Programa Bolsa Família também tem ampliado o número de famílias beneficiadas e quase triplicou o valor médio do benefício pago, que passou de R$28,00 para R$75,00. Até o final de 2006 pretende-se atender 11,2 milhões de famílias em situação de pobreza (SPE, 2005, p. 25).

Os programas de transferência de renda “não garantem o direito à segurança

econômica, senão uma renda, o que é radicalmente distinto” (Lavinas, 2007, p. 59). A

autora destaca que caso haja aumento de demanda por estes benefícios a tendência é que

haja déficit de cobertura, o que implicaria que nem todos os elegíveis seriam atendidos

(Idem).

A existência de programas focalizados e condicionados à comprovação da

insuficiência de renda tem como finalidade a restrição do acesso e de certa maneira

estigmatizador dos beneficiários (somente os mais pobres são os que podem acessar ao

benefício) (Idem, p. 60). Os programas de transferência de renda, como o PBF,

costumam deixar de atender segmentos que estariam “habilitados” a receber o benefício,

e vemos que segue a orientação dos organismos internacionais na reforma operada no

governo Lula para unificar e racionalizar os benefícios dos diversos programas que

existiam antes do PBF, com vistas a atingir as famílias mais pobres dentre os pobres.

Lavinas (2007) destaca dados que revelam a seletividade e a cobertura parcial do

público-alvo no perfil do BPC, benefício reclamável e garantido como direito para os

que estiverem dentro do perfil:

89 São beneficiárias do PBF 11.233.127 de famílias em 5.564 municípios (referência ao mês de julho de 2009 segundo dados disponíveis no Sistema de Benefícios ao Cidadão (SIBEC), da Caixa Econômica Federal). Atualmente os valores dos benefícios variam de R$ 22,00 à R$ 200,00 por famílias de renda entre R$ 70,00 e R$ 140,00 per capita (informações com base no decreto 6.917/09 que passará a vigorar em 1º/09/2009 fonte: MDS). Atualmente o valor médio dos benefícios é de R$ 85,00, a partir de 01º/09/09 as famílias receberão os benefícios reajustados: o Básico (R$ 68,00 apenas para famílias que recebem até R$ 70,00 per capita), o Variável (no valor de R$ 22,00 para crianças de até R$ 15 anos incompletos com até três benefícios por família com renda até R$ 140,00 per capita) e o Variável Vinculado ao Adolescente de até 17 anos – BVJ (com até dois benefícios por família no valor de R$ 33,00). A composição da renda para o cálculo inclui renda formal (salários, aposentadorias e pensões) e informal (do trabalho informal e outras atividades geradoras de renda, que são declaradas pelo responsável familiar (titular do benefício) das pessoas que moram no domicílio de referência (fonte: MDS).

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A Pnad 2004 revelou o problema: do total de famílias com renda familiar per capita inferior a um quarto do salário mínimo – aquelas, portanto, em situação de indigência, pois essa é a linha de indigência considerada para habilitação [ao BPC] –, metade não havia sido contemplada por nenhum tipo de auxílio. Significa, portanto, dizer que o déficit de cobertura costuma afetar mais gravemente aqueles grupos mais vulneráveis, mais desprotegidos, o que não é exatamente o melhor meio de se combater a iniqüidade e a miséria (Lavinas, 2007, p. 61).

A autora ainda destaca a necessidade de assegurar essa transferência de renda

como um direito para que se evite o uso assistencialista destes benefícios com a redução

da “fila” e dos critérios restritos de acesso ao benefício, como uma medida de

consolidação desta transferência como garantia de segurança socioeconômica para a

população mais pobre (Lavinas, 2007, p. 65)90. Com dados destaca que no mesmo

período em que houve alterações na renda também houve recuo nos investimentos em

serviços básicos como coleta de lixo e acesso à rede de esgoto, por exemplo, para os

domicílios caracterizados como referência pelas famílias abaixo da linha da pobreza

(2007, pp. 65 – 66).

Como vimos na caracterização dos atuais programas existentes consolida a

lógica de estruturação das políticas sociais para os trabalhadores pauperizados por meio

de medidas no campo da Assistência Social por meio de ações assistenciais de caráter

emergencial. Seu caráter compensatório é central na concepção e formulação dos

programas através do estabelecimento de metas de redução de índices quantitativos que

medem a pobreza apenas economicamente (renda) em nível rebaixado e não nas suas

mediações com o acesso a bens e serviços essenciais.

Pastorini e Galízia (2006) destacam como funciona a relação entre os

organismos internacionais na formulação das medidas de combate à pobreza que são

condicionantes dos empréstimos – e do endividamento – para o país, que fortalecem

fundalmentalmente as parcerias entre o estado e o setor privado (Parcerias Público-

Privado - PPP).

Ainda hoje existe um trabalho conjunto entre o Grupo Banco Mundial, FMI e BID. Os empréstimos programáticos de ajuste e os de assistência técnica, segundo os próprios relatórios de EAP, contribuem para atingir as metas previstas nos programas controlados pelo FMI, como gestão da dívida e das despesas públicas. Por sua vez, o BID prioriza as áreas de ensino médio e superior e o setor urbano (saneamento, rodovias etc.) para realizar um forte investimento no país (mais de 50% dos projetos em execução no Brasil),

90 Lavinas (2007) destaca que em 2004 14% das famílias (quase 7 milhões de famílias) saíram da faixa de renda abaixo de R$ 100,00 per capita e que ainda permanecem os demais 43 milhões de pessoas ainda neste perfil - 86% (p. 64).

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apoiando de forma intensa o Programa de “Parcerias Público-Privado” (PPP). Também existe uma divisão de responsabilidades e competências entre as cinco entidades que integram o Grupo Banco Mundial, dentre elas, mencionaremos: empréstimos, assistência técnica, financiamento de investimentos do setor privado, programas de estímulo para atrair investimento estrangeiro, consultorias para privatização, garantias contra riscos políticos para os investidores estrangeiros, assessoramento para empresas comprometidas com o social e com a questão ambiental, dentre outras (Pastorini e Galízia, 2006, p. 94).

O debate sobre processo de assistencialização das políticas sociais no Brasil se

orienta pelas alterações nas políticas sociais e na contra-reforma do sistema de

Seguridade Social. Por um lado, estas alterações refletem na política de Assistência

Social, nos moldes em que ela se estabelece: uma política específica de combate à

pobreza compreendendo uma dimensão emergencial no trato das expressões da “questão

social” em suas manifestações mais agudas e visíveis. Por outro lado, o Serviço Social,

que atua predominantemente nas políticas sociais – e que hoje tem um campo de

trabalho expandido no campo da Assistência Social – enfrenta os rebatimentos da

assistencialização das políticas sociais na sua prática profissional, produzindo o que

denominamos como uma tendência: a assistencialização da prática profissional.

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CCaappííttuulloo 22

AAssssiisstteenncciiaalliizzaaççããoo ddaass PPoollííttiiccaass SSoocciiaaiiss ee oo SSeerrvviiççoo SSoocciiaall

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2.1 O processo de assistencialização das políticas sociais e a proteção social no

Brasil

O estudo sobre processo de assistencialização das políticas sociais no Brasil

contemporâneo tem como foco o debate teórico no interior do Serviço Social, onde a

Assistência e a Seguridade Social são interpretadas sob diferentes perspectivas em

autores que já trabalhamos no capítulo anterior. Teceremos algumas considerações

acerca do rebatimento deste processo na política de assistência social, em particular e

assim como no Serviço Social, expresso na demandas à profissão e na sua intervenção,

produzindo o que denominamos aqui como uma tendência de assistencialização do

exercício profissional.

Entendemos que o processo de assistencialização das políticas sociais no Brasil

está pautado na forma como elas se organizam desde finais do século XX, referenciada

nas orientações dos organismos internacionais que apontam para a focalização das

políticas sociais, seus programas e projetos no combate à pobreza91.

Como pudemos observar na análise do capítulo anterior, a mundialização do

capital sob hegemonia das finanças, acompanhado da reestruturação produtiva e difusão

do ideário neoliberal, se refletiu numa nova formatação para as políticas sociais. As

políticas de ajuste de orientação neoliberal (com importante participação dos

organismos internacionais) agravaram as condições de produção e reprodução das

classes trabalhadoras (aumento de pobreza, miséria, desemprego, precarização e perda

de direitos etc).

Esses processos foram acompanhados de intervenções no social direcionadas

para o combate à pobreza através de programas focalizados, seletivos, assistencialistas

(orientados pela lógica da parceria entre o Estado e a sociedade civil, do voluntariado,

da solidariedade e o fomento do “terceiro setor”) numa perspectiva de administração e

alteração dos índices de pobreza e indigência. Dentro dessa dinâmica, o “lugar” da

assistência passa a ser redimensionado.

Iamamoto observa que não houve mudanças substanciais na condução política

nos últimos governos para as políticas sociais. A direção que estrutura a gestão do

Estado para estas políticas indica que “só há ‘gestão responsável’ com a política

91 Para uma compreensão histórica deste processo ver: Capitulo 1 – seção 1.3.

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neoliberal, que mantenha o ajuste fiscal duro, o juro real elevado, a política monetária

concentracionista, o câmbio flutuante e a livre movimentação de capitais” (2008, p. 36).

No atual contexto político-econômico trata-se de garantir a manutenção de

níveis de exploração, baseado na precarização e flexibilização das relações trabalhistas

para garantia crescente dos lucros do capital mantendo a “coesão social”. Ainda que

haja um aumento no “investimento social”92, mantêm-se a concentração de riquezas e o

repasse orçamentário para pagamento de juros da dívida, assim como o apoio aos

programas peças centrais da contra-reforma, pois “essa mesma política (...) é o

pressuposto dos programas sociais, na tentativa de compensar o que está sendo

agravado pela política econômica e pela ausência de efetivas reformas” (Ibidem)93.

O Estado premido pela necessidade de favorecer as finanças e garantir elevados níveis de superávit primário tem estreitado seu espaço para realizar investimentos públicos e oferecer políticas sociais públicas essenciais ao desenvolvimento, em favor de sua privatização. São instituídos critérios de seletividade para o atendimento aos direitos sociais universais, constitucionalmente garantidos, expressando um efetivo desmonte do legado de direitos conquistados nos últimos séculos. Esse processo se expressa em uma dupla via: de um lado na transferência de responsabilidades governamentais para as “organizações sociais” e “organizações da sociedade civil de interesse público”; e de outro lado em uma crescente mercantilização do atendimento às necessidades sociais, abrindo espaços ao capital privado na esfera da prestação de serviços sociais (Iamamoto, 2008, p. 39).

Quando analisam as políticas sociais em países de América Latina, Pastorini e

Galizia (2006) destacam a pauta dos organismos internacionais que orientam a

focalização das políticas sociais. As orientações destes organismos, por sua vez, não

rompem totalmente com a responsabilidade estatal, mas conformam uma perspectiva de

manutenção do ajuste fiscal focalizando o combate à pobreza, segundo as autoras

supracitadas: na entrada dos anos 90, o BIRD, além da imposição dos programas de estabilização econômica (controle do déficit fiscal, cortes nos gastos públicos, reformas tributária e da previdência, abertura do mercado etc.), pagamento da dívida externa e políticas de ajuste, determina a implementação de programas paliativos e focalizados para o alívio da pobreza (2006, p. 77).

92 Esse aumento do investimento não se dá em todas as áreas. Pesquisas de Sicsú, Salvador, Boschetti, dentre outros, indicam que esse aumento dos recursos – ainda aquém das necessidades da população – concentra-se em algumas áreas e programas específicos. 93 Atualmente a proposta de criação das organizações sociais (que cria as fundações sociais para administrar os hospitais etc) qualifica entidades privadas sem fins lucrativos (associações e fundações dentre outros), para desenvolverem atividades consideradas de “interesse público”. Com esta qualificação estas organizações podem habilitar-se para receber recursos públicos e administrar serviços, instalações e equipamentos através de contratos de gestão com os governos. Trata-se de mais uma medida em que o Estado transfere para o setor privado a responsabilidade de gestão e execução de políticas públicas de sua alçada e tem medidas encaminhadas no âmbito da Saúde para a gestão dos equipamentos e serviços públicos da área.

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É importante ressaltar que este processo de mudanças tem início nos anos 1980,

mas, devido o ascenso dos movimentos organizados dos trabalhadores, instalou-se uma

contradição entre garantias conquistadas no marco formal-legal e a implementação do

ideário neoliberal, na entrada da década de 1990, como vimos no caso brasileiro. Este

tensionamento não teve continuidade nos moldes do período de abertura democrática e a

concretização formal disputava com a grande pressão do capital internacional no sentido

dos ajustes neoliberais94: Desde finais dos anos 80 o combate à pobreza transformou-se numa condicionalidade dos empréstimos do BIRD. Ele está subjacente ao objetivo do serviço da dívida: a redução da pobreza, sob o domínio dos organismos multilaterais, implicando uma redução dos gastos sociais públicos e o redirecionamento das despesas (focalizando as ações sociais para os pobres). A criação do Fundo Social de Emergência (FSE) é um exemplo de mecanismo flexível para “administrar a pobreza”, proposto por esses organismos (Chassudovsky apud Pastorini e Galizia, 2006, p. 78).

Este sistema de proteção construído legalmente no final da década de 1980

continha como horizonte determinações de uma perspectiva social-democrata,

contemplando direitos para os trabalhadores contemplada na perspectiva de concessões

do capital e de conquistas desta classe95. Mas, ainda que na Constituição Federal de

1988 e nas legislações que regulamentam as políticas sociais estejam contidos

elementos de garantia de direitos, não se constituiu uma direção redistributiva, mas um

arranjo político compensatório das desigualdades sociais. Não podemos entender estas características como distorções do sistema de proteção, pois nunca a universalização redistributiva foi colocada como o objetivo primordial da sua organização. Isto se articula com a constituição do caráter seletivo do Estado protetor brasileiro, que incluiu apenas parte dos grupos de trabalhadores urbanos com vínculo formal de emprego que poderiam ter um papel ativo de transformação social (real ou potencial) (Idem, p. 81).

94 Este processo implicou, inclusive, na cooptação de grandes lideranças dos movimentos que na década de 1980 expressaram-se como força política que mobilizou as conquistas que a classe trabalhadora (ainda) tem até hoje. Fica mais claro, com o advento do governo petista – partido criado em 1980 no bojo das lutas entre capital e trabalho – que segmentos comprometidos com uma programática anti-neoliberal, adotam uma medidas em consonância com o ideário neoliberal. Ainda que haja tensões e contradições observáveis neste governo (diferente do anterior, vinculado ao PSDB, partido social-democrata em sua composição), como já foi destacado se trata de uma gestão que se situa no espectro de uma social-democracia tardia correspondente aos tempos atuais e marcada pela regressão de direitos e garantias para a reprodução social da classe trabalhadora. 95 A social-democracia se fortalece no período “dourado” do capitalismo – quando havia a oposição entre modelos societários opostos, capitalismo e socialismo – no qual foi possível avançar em conquistas para a classe trabalhadora. Neste período de expansão do capital foi estabelecido um pacto entre classes, possibilitado pela superprodução e necessidade de concretização da mais-valia extraída, no qual os partidários da social-democracia criam que os avanços legislativos e graduais possibilitariam para uma transição societária (não necessariamente vinculada ao socialismo, mas minimamente inscrito na lógica de um “capitalismo humanizado” para avançar em conquistas) sem a necessidade de um processo revolucionário e de ditadura do proletariado (onde a maioria oprime a minoria, e o conjunto de trabalhadores é responsável pela transição).

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Já no atual contexto brasileiro, o trato das expressões da “questão social” se

estrutura no alívio da pobreza e na “parceria” com a iniciativa privada. É importante

destacar que no caso da assistência a significativa inserção do segmento do privado na

provisão da atenção aos setores que não têm acesso da proteção do Estado sempre

esteve presente. Entretanto, hoje, ela intensifica-se, expande-se, consolida-se,

assumindo em alguns casos características diferentes. Segundo Iamamoto (2008), as

políticas sociais, num processo de privatização e delegação de atribuições, passam a ser

co-executadas fundamentalmente sob a lógica da parceria entre o Estado e a sociedade

civil:

As múltiplas manifestações da questão social, sob a órbita do capital, tornam-se objeto de ações filantrópicas e de benemerência e de “programas focalizados de combate à pobreza”, que acompanham a mais ampla privatização da política social pública, cuja implementação passa a ser delegada a organismos privados da sociedade civil, o chamado “terceiro setor” (2008, p. 36).

A configuração da Assistência Social como “a” política de proteção social,

especialmente para aqueles que não são segurados pela previdência social, se desenha

nas orientações dos organismos internacionais nas legislações vigentes. Mesmo que a

PNAS não a afirme como tal, sua implementação, sem poder fugir dessa lógica, segue

este caminho pré-determinado.

Na contemporaneidade esta política na sua prática concreta veio se consolidar

como uma política para os mais pobres, focalizada e emergencial, orientada para atender

as famílias em situações de risco ou vulnerabilidade social. As manifestações da

“questão social” que configuram estas circunstâncias são consequências características

dos ajustes neoliberais implementados como resposta à crise. Nesse sentido Behring

afirma que

Tratou-se de desencadear políticas voltadas às vítimas mais visíveis do ajuste fiscal neoliberal, para os mais pobres dentre os pobres, os mais “vulneráveis”, “excluídos” ou em “situação de risco”, segundo os termos em voga. Essa espécie de “política social ambulância” e preventiva de situações de irrupção frente à dramaticidade das condições de vida e trabalho das maiorias no Brasil seria a única compatível com a lógica macroeconômica do Plano Real, a lógica da estabilidade a qualquer custo e da “responsabilidade fiscal” (2009, p. 8).

É neste contexto de desmonte da seguridade social e expansão da dimensão

assistencial no combate à pobreza que podemos caracterizar o que aqui denominamos

de processo de assistencialização das políticas sociais.

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A política social bem focalizada e de natureza assistencial – a assistência ganha paradoxalmente um estatuto maior nesse novo contexto e é a este paradoxo que se refere a tese da assistencialização – é atribuída a capacidade de administrar de forma tecnicamente competente os elementos que geram a pobreza e a miséria, expressões mais agudas da questão social, inerente ao capitalismo e, em geral, dramática na periferia do capital (Idem., p. 9).

A terminologia (ou “termo síntese”) assistencialização é uma das polêmicas que

tem orientado o debate dentro e fora do Serviço Social acerca das alterações nas

políticas sociais nos últimos anos e, em particular, da política de Assistência Social. Por

remeter-se a esta política entende-se, por um lado, que implique na sua desqualificação

(Sposati, 2009), especialmente no que tange sua estruturação a partir da estruturação da

Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e do Sistema Único da Assistência

Social (SUAS). Da mesma maneira Sposati (2009) destaca que o termo não

compreenderia a totalidade do processo de desmonte e resignificação da Seguridade

Social.

Entendemos que a assistencialização das políticas sociais se refere ao processo

em que, na Seguridade Social, a Assistência Social passa a adquirir centralidade dentre

suas políticas sociais, e sua dimensão assistencial passa a ter conexão com as demais

políticas sociais, na medida em que o combate à pobreza torna-se política específica e

prioritária (mediada pela assistência social) e o processo de precarização e privatização

dos serviços sociais estruturante, como vimos, é a lógica instalada no trato das

expressões da “questão social”.

São características do processo de assistencialização das políticas sociais: o

reordenamento da Seguridade Social no sentido da focalização, precarização e

privatização, conjugado com uma perspectiva assistencial no campo da assistência,

caracterizada pelas respostas estatais de caráter emergencial, contingenciadas e

fragmentadas para o enfrentamento da pobreza e traduzem-se, junto a este processo,

pela naturalização das manifestações da contradição entre capital e trabalho.

Em face da crescente desigualdade há um cenário de redefinição político-

institucional, para além da programática econômica no espectro do ajuste neoliberal. “A

figura do pobre [é situada] no centro das políticas focalizadas de assistência. Ocorre,

então, um deslocamento da função assistencial, que se torna instrumento essencial de

legitimação do Estado” (Netto, 2007, p. 150).

A administração da pobreza passa a ser orientação central da política de

Assistência Social em seus programas, projetos e benefícios. A construção de uma

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dimensão setorial desta política, articulada às demais políticas sociais, para mediar o

acesso dos usuários à rede de serviços é rompida, funcionando numa lógica restrita às

ações desenvolvidas no seu interior.

Ainda que não haja relação direta entre focalização na pobreza e desarticulação

das políticas sociais, entendemos que o destaque dado à Assistência Social, nos moldes

do combate à pobreza focalizado, acontece em correspondência a desarticulação das

demais políticas sociais. Portanto, há uma participação central da Assistência Social

como medida de gestão da pobreza, sem que esta medida, que figura como

administração dos índices de indigência e pobreza absoluta compreenda a articulação

com políticas sociais de direito e garantias para além dela mesma, ou seja: habitação,

educação, saúde, trabalho e emprego etc.

A articulação da Assistência Social com estas políticas sociais fica subsumida ao

processo de precarização e secudarização destas últimas em relação ao foco estrito na

administração da pobreza. São estabelecidas no interior da assistência medidas

destinadas aos segmentos da população que são atendidas por meio de programas

compensatórios no trato da pobreza com transferência de renda mínima, principalmente,

que referenciam o acesso a educação e a saúde na forma de condicionalidades pontuais

e fragmentadas96.

Ao mesmo tempo em que nas políticas sociais ocorre um processo de

precarização e focalização, priorizam-se as ações em parceria com o setor privado na

prestação de serviços sociais. Aos segmentos da classe trabalhadora que podem pagar

por medidas de proteção no mercado destinam-se um conjunto heterogêneo de serviços

e bens – planos de saúde, escolas e/ou universidades particulares, previdência

complementar, por exemplo – com diferentes níveis de qualidade que serão

acessados/comprados de acordo com o poder de compra. Para aqueles que não tem

condições de "consumir” estes serviços privados a alternativa concreta é buscar

acesso/atendimento via serviços públicos ou nas entidades filantrópicas97.

A oferta pública torna-se cada vez mais restrita à população mais pauperizada,

sendo a ela destinados serviços assistenciais básicos e fundamentalmente emergenciais.

96 Conforme caracterizamos no Capítulo I, item 1.4 – Programas e Projetos da Assistência Social. 97 A alternativa de não ter acesso a nenhum serviço existe um compasso de espera de soluções “vindas do alto” que não trazem mudanças significativas ao modelo implementado, mas se legitimam na lógica do neoliberalismo, como “concessão”, “ajuda”, ou “favorecimentos” individuais e personalistas. Caso não haja mobilizações que impulsionem alterações no sentido da afirmação de garantias e ampliação de direitos a tendência é que este processo se mantenha, consolide e amplie.

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102

Esta é uma característica histórica da Assistência Social e que não conseguiu ser

rompida pelos avanços pós-regulamentação98.

Em suma: o processo de assistencialização das políticas sociais se caracteriza

pela compressão das políticas sociais públicas garantidoras de direito em contrapartida

ao destaque da Assistência Social como principal mecanismo de combate à pobreza,

pela ampliação do setor privado e das parcerias com ele, assim como da garantia de

serviços públicos e gratuitos focalizados e emergenciais.

Com o advento do neoliberalismo este movimento é evidenciado na legislação

pro meio de medidas para inserção dos “excluídos”, nas palavras de Pastorini e Galízia

(2006):

Como já fora colocado, os programas assistenciais não tiveram importância estrutural nem política até finais da década de 80. E isso foi entendido como um problema, cuja solução foi dada através da criação de mecanismos constitucionais que permitissem incluir no sistema de proteção as populações historicamente excluídas. No entanto, a partir da hegemonia das reformas neoliberais, os programas assistenciais passam a adquirir uma importância financeira e política sem precedente, transformando-se em definidores dos sistemas de proteção social em detrimento de qualquer outra forma e opção. Assim, este movimento evidencia uma debilidade geral das políticas permanentes e universais, pois sobrepõe a “assistencialização” da proteção social. Vale a pena ressaltar: o problema não reside unicamente no aumento dos programas assistenciais focalizados, e, sim, na desconsideração, despreocupação e redução das políticas de proteção social de caráter permanente (Pastorini e Galízia, 2006, p. 96).

A debilidade das políticas sociais de caráter permanente e universal como

destacam as autoras citadas, se conjugam a ampliação da assistência em sua dimensão

assistencial que passam a predominar sobre as políticas garantidoras de direitos nas

várias dimensões da vida e das necessidades de reprodução social. O que antes era uma

característica parcial adquire status de política permanente resultando num

enfraquecimento político e social, como destacam as autoras.

Produz-se, então, uma mudança na relação de importância ou predominância política entre as diversas formas de proteção social. Enquanto o tradicional padrão de proteção definia-se pelo predomínio político-social das políticas sociais permanentes de saúde e aposentadorias – que, embora excludentes, garantiam direitos sociais e, sobretudo certa força política às categorias de trabalhadores protegidas –, os programas assistenciais eram considerados “complementares”. No padrão que se está constituindo, estes últimos adquirem um status político diferenciado superior, enquanto os permanentes e unificados experimentam estratégias diversas de privatização, redução, seletividade,

98 A regulamentação da Assistência Social com a Lei Orgânica de Assistência Social (Lei nº 8.742/1993), na PNAS (2004) e no SUAS (2005), não avançam neste sentido, como vimos no Capítulo I.

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desresponsabilidade e desoneração pública na execução direta, resultando no seu enfraquecimento, tanto político quanto social (2006, p. 97).

Estas características compreendem um amplo processo de redefinição das

políticas sociais contrário ao definido pela Constituição Federal e pelas legislações que

regulamentaram a Seguridade, “a expansão dos programas e políticas denominadas de

assistência é uma das faces do processo de ‘assistencialização’ da proteção social que

tem como par dialético a privatização da previdência social, da saúde e da educação”

(Pastorini e Galízia, 2006, p. 100).

As recentes aprovações da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e

implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) recolocaram no centro

do debate as discussões acerca dos avanços e possibilidades da proteção social no

Brasil, reavivando polêmicas e debates, tanto dentro quanto fora da categoria dos

assistentes sociais. Estas análises são ainda parciais no sentido que o SUAS e a PNAS

começam a ser praticados a partir do ano de 2005, portanto, sua forma e suas

determinações estão em processo de definição, ainda que sejam fortemente

determinadas pelos aspectos que já trabalhamos no capítulo anterior.

Situamos estas polêmicas especialmente na orientação e consolidação do modelo

de gestão que a PNAS e o SUAS apontam para o combate à pobreza. Entretanto, devem

ser caracterizadas por uma análise de conjuntura que contemple uma perspectiva de

totalidade, ou seja: devemos observar estas mudanças na sua relação com as políticas de

Seguridade Social e com as políticas sociais e econômicas de forma geral, considerando

as mediações que conformam o trato da “questão social” na sociedade capitalista”.

Nesse sentido Rodrigues (2009) afirma o caráter parcial de muitas das análises

sobre o SUAS e ressalta que sua consolidação como política de Seguridade Social está

vinculada e mediada pelas ações presentes que determinarão sua construção tendo como

horizonte esta perspectiva.

este sistema é até a presente data um nascituro, um ser que, embora já concebido, ainda está para nascer. A garantia de seu nascimento, como um fato, está hipotecada ao futuro. Em outras palavras, o SUAS é, até então, uma promessa. Há algumas ações que apontam no horizonte de sua construção, mas o SUAS ainda não está construído. Portanto, qualquer balanço deste nascituro tem que basear-se em tendências, ou seja, numa análise prospectiva. É óbvio que uma análise neste sentido só pode apontar esboços – ainda não muito delineados – do que poderá vir a ser o SUAS e de qual poderá vir a ser seu significado (Rodrigues, 2009, p. 21).

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104

Consideramos que o processo de assistencialização, e as mediações que já

sinalizamos, situam os avanços que podem ser construídos no campo da Assistência

Social numa arena de disputas na qual o peso maior é dado pelo direcionamento dos

organismos internacionais, implementadas com “sucesso” nos últimos anos, no que diz

respeito ao atendimento aos mais pobres dentre os pobres e a conformação de consensos

em torno desta perspectiva. A conjuntura de contra-reforma do Estado, engendrada na

década de 1990 e que continua em curso, e de desmonte da Seguridade Social brasileira

balizada na Constituição Federal de 1988 configura um cenário adverso para a

constituição de políticas públicas garantidoras de direito, conforme sinaliza Behring:

Já é amplamente reconhecido e tratado na literatura que houve uma verdadeira desconstrução da seguridade social a partir dos anos 90, sobretudo com a contra-reforma do Estado, desde 1995 (...). O caminho de reformas democráticas – possibilidade aberta com a Constituição de 1988 – não foi retomado no contexto de um governo de centroesquerda, a partir de 2003, apesar de algumas inovações, a exemplo do próprio SUAS (2009, p. 7).

A mesma autora destaca que as principais inovações nas políticas sociais se

situam no campo da Assistência Social, especialmente com a PNAS e a constituição do

SUAS. Mas a recomposição do Estado e acréscimo de parcela de responsabilidade na

constituição do SUAS (constituição de equipamentos públicos como os Centros de

Referência de Assistência Social – CRAS e Centros Especializados de Referência de

Assistência Social – CREAS, realização dos concursos etc.) se conjuga ainda com a

precarização dos equipamentos, serviços e das contratações dos recursos humanos

(Idem, p. 7).

Na verdade, vimos sustentando que se mantiveram muitos elementos de continuidade e que dificultam as possibilidades de consolidação da seguridade social como reforma democrática. Houve, de fato, alguma recomposição do Estado, com a realização de concursos públicos em várias áreas e instituições que estavam praticamente desprofissionalizadas e sem quadro próprio. Vemos aqui a área ambiental, a assistência social e a previdência social, especialmente. As principais inovações no campo da seguridade social se deram na assistência social: a construção do SUAS e de todo o seu marco regulatório, o Estatuto do Idoso e a implementação da idade de 65 anos para acesso ao BPC, o Cadastro Único e o Programa Bolsa Família (Ibidem.).

Entendemos que a relação da Assistência Social com as demais políticas sociais

e com a política econômica deve ser o ponto de partida para a compreensão do sistema

de Seguridade Social e sua funcionalidade. Analisar a política per si não compreenderá

os elementos necessários para encaminhamentos que se contraponham à direção da

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restritividade e da focalização da Assistência Social no combate à pobreza. Nesse

sentido,

é fundamental avaliar o SUAS frente à trajetória da assistência social brasileira. Porém há, aqui, um grande risco: a tentação de aprisionarmos a avaliação do SUAS apenas ao âmbito da política de assistência social. Evitar este risco exige ampliarmos nosso horizonte de análise, impõe vislumbrarmos não apenas o rebatimento do SUAS na assistência social, mas, também, nas demais políticas sociais, naquele escopo da seguridade social possível, conquistada na Constituição Federal de 1988. Avaliar o SUAS nesta direção requer mais: implica considerar a relação entre as políticas sociais e a política econômica. Esta última demonstra a reiteração e o aprofundamento de uma política a favor dos interesses do capital parasitário e financeiro (Rodrigues, 2009, p. 22).

As tendências operacionais constituídas no SUAS significam avanços na

construção da Assistência Social mas refletem igualmente o quadro histórico da

construção desta política social. É necessário, portanto, avaliar as tendências postas para

esta política nesta nova fase de gestão no cenário em que ela se coloca para não

superestimar seu papel e, inclusive, sua funcionalidade na relação, e disputas, entre

projetos de classe.

Esta funcionalidade que mencionamos diz respeito à composição da relação

entre as classes sociais, o público-alvo da Assistência Social, e à conformação político-

ideológica que ela desenvolve. Das interpretações do desenvolvimento deste processo

de implementação “nacituro” da PNAS e do SUAS e, portanto, da construção da

Assistência Social brasileira no século XXI, temos, em resumo, duas grandes

interpretações. São estas interpretações que nos remetem ao debate do processo de

assistencialização das políticas sociais no Serviço Social99.

Por um lado uma possível leitura sustenta que a PNAS e a constituição do

SUAS100 estabelecem para esta política um patamar diferente do que constituiu a

trajetória da Assistência Social até então. Destaca a necessidade de ampliação das

medidas de proteção social desenvolvidas no âmbito desta política como ações que

reconhecem e reparam desigualdades, ao atender aos segmentos pauperizados “dano

99 Sabemos que o agrupamento destas interpretações pode produzir equívocos, mas se trata de um exercício teórico que visa ilustrar e situar o debate, conhecer seus parâmetros e conhecer tendências. Não se trata de compor campos em oposição ou de opor propostas distintas para a Assistência Social e para a Seguridade Social, ainda que estejam presentes análises que partem de perspectivas e pontos de partida que não são unívocos. Entendemos que a assistencialização é uma preocupação dos diferentes grupos de análise e situar de onde parte esta preocupação contribuirá para pensarmos como se situa a intervenção no campo do Serviço Social e os desafios que são postos neste processo para a profissão que atua predominantemente no campo das políticas sociais e, em especial, na Seguridade Social. 100 O SUAS é sistema que operacionaliza a PNAS e é constituído pela esfera pública.

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mais a quem tem menos” o que firma sua posição como política pública e de Seguridade

Social.

Consideramos que esta interpretação, presente em documentos do MDS e

apontada pelos técnicos do MDS, gestores da política, dentre outros101, não reconhece

os elementos com os quais caracterizamos o processo de assistencialização das políticas

sociais. A concretização normativa da PNAS e do SUAS dá suporte à lógica do combate

à pobreza (como política específica), e, por sua vez, não rompe completamente com

características históricas desta política social: a aparência filantrópica, mesmo quando

administrada pelo Estado, o trato emergencial dos fenômenos mais aparentes da

“questão social”, e administração da pobreza absoluta e da indigência como principais

metas. Esta constituição se consolida junto com o processo de precarização e

privatização do sistema de proteção social, configurando as políticas estatais como

medidas paliativas e pontuais.

Considerar – e consolidar – que os aspectos de gestão pública da assistência

social, da profissionalização dos quadros, da avaliação da qualidade dos serviços são

inovações constituídas pela Assistência Social (com a PNAS e o SUAS), deve ser

ponderado no bojo das transformações societárias e nas determinações que implicam

limites estreitos para o processo de constituição desta política como mecanismo

articulado a um sistema de proteção social nos espectro de uma Seguridade Social

ampliada.

Netto (2001) destaca que historicamente o capitalismo tem se constituído por

experiência que ora privilegiam o privado e ora o público na constituição de respostas à

“questão social” e dependem fundamentalmente do potencial coesivo que alcançam

estas ações e do nível organizativo dos trabalhadores.

A experiência histórica revela, contudo, que não temos invariavelmente uma seqüência regular, antes se configurando em situações complexas: a perspectiva “privada” pode ganhar destaque em fases de crescimento, quando não há políticas sociais setoriais suficientemente articuladas ou ainda quando suas potencialidades coesivas não se mostram com um mínimo de eficácia; alternativamente, a perspectiva “pública” pode manter-se dominante em fases de conjunturas críticas, quando a intercorrência de agudas refrações da “questão social” com rápidos processos de mobilização e organização sócio-política das classes subalternas sinaliza possibilidades de ruptura da ordem burguesa (Netto, 2001, p. 37).

101 Cabe destacar formuladores de “peso” como Sposati, que possuem expressivas contribuições para esta política e, neste caso, também para o Serviço Social.

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Consideramos que o modelo implementado no governo Lula articula – diferente

do governo anterior – características dos dois modelos apontados por Netto (2001). No

âmbito da Assistência Social constitui um sistema público combinado com a execução

de serviços pela rede privada e filantrópica e, na constituição de suas ações, tem como

eixo central o combate à pobreza. Mesmo não estabelecendo novas garantias de

direitos102 esta gestão alcança um nível de coesão social que freia, inclusive, a

mobilização de segmentos que atualmente são aliados na garantia desta perspectiva para

as políticas sociais.

Esta perspectiva seria uma segunda referência, pois, por outro lado, a

Assistência Social ancorada na perspectiva da Seguridade Social, fundamentada numa

perspectiva redistributiva, que exige uma política econômica sintonizada com este

objetivo, não se pode focar no alívio da pobreza nem se consolidar como uma política

específica de caráter permanente. A administração da pobreza, determinação sob a qual

tem se desenvolvido esta política, não corrobora com constituição de políticas de

direito, do desenvolvimento de uma política econômica redistributiva, a geração de

empregos e de vínculos com a Seguridade Social que ofereçam proteção social no seu

espectro.

Consideramos que diante das experiências já empreendidas durante estes cinco

anos de implementação da PNAS/SUAS são vislumbrados limites e possibilidades que

podem alçar a assistência social a estatutos distintos. De uma política compensatória e

transitória, visto seu papel articulador com as demais políticas sociais constitutivas de

cidadania, passa a política estruturadora, base de suporte às “carências” dos

“necessitados”. Naturaliza-se a própria constituição da Assistência Social, ainda que

desde 2004 mudanças importantes tenham sido operadas que não podem ser

desconhecidas.

A consolidação de um destaque da assistência na Seguridade Social está

coordenada com a retração daquelas políticas sociais sem as quais ela não pode ser

materializada. A legislação da Assistência Social caracteriza-a como uma política

pública que se realiza de forma integradas às políticas setoriais – Saúde, Educação,

Habitação, Trabalho, Previdência etc. No entanto na prática na Assistência Social passa 102 Na Assistência basicamente o único direito garantido por lei é o BPC, que pode ser “reclamado” numa perspectiva que “tende a universalidade”, visto que atende a todos que se circunscrevem ao perfil delimitado, diferente de outros programas e projetos com metas limitadas e pontuais no público que assiste.

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a imperar a lógica da administração de recursos mínimos de combate à pobreza

passando a caracterizar também as demais políticas que atendem a população mais

pauperizada. Uma necessária análise crítica deve apontar para um redirecionamento e

reformulação que garanta a implementação da Seguridade Social de forma que suas

políticas interajam, inclusive com outras políticas sociais.

Considerar o processo de assistencialização das políticas sociais é um momento

necessário para avançarmos nas formulações e contribuições para a constituição da

Assistência Social nos marcos da constituição de um sistema de proteção social

ampliado em sua concepção de direitos. Mas a formulação e a estruturação do SUAS,

sua execução e relação com as demais políticas sociais, não dependem somente da

reformulação da política de Assistência Social ou apenas da articulação de forças no

interior da categoria dos assistentes sociais, mas de uma conjunção de fatores que

historicamente esteve vinculada à mobilização de forças políticas e das “partes

interessadas”, como resultado de lutas, como conquistas destes segmentos.

É importante mencionar que não se localiza na Assistência o desmonte da

Seguridade Social, mas o redirecionamento e a centralidade que adquire a assistência no

bojo da Seguridade Social é suporte de uma perspectiva que a superdimensiona em face

às demais políticas sociais. A PNAS e o SUAS não são soluções que redimensionam a

política de Assistência Social no sentido da sua edificação como política articulada às

demais políticas sociais, este nem pode ser seu objetivo, na medida em que ele só se

realiza com a alteração dos processos de privatização e precarização da Seguridade

Social, com uma política econômica que rompa com a submissão nacional e que aponte

para reformas contrapostas a contra-reforma do Estado.

É fundamental entender que o SUAS abre margem para um redirecionamento das políticas sociais. Ele é, na verdade, uma grande ferramenta gerencial, que inova na gerência da política de assistência social. Mantida a política de contra-reforma do Estado – as privatizações da saúde e da previdência –, tal ferramenta gerencial pode ser utilizada na direção da edificação de uma seguridade social pública meramente assistencial (Rodrigues, 2009, p. 23).

Entendemos que o destaque desta política não aponta necessariamente para um

fortalecimento da Assistência Social como política pública de Seguridade Social. Na

nossa apreciação, por um lado, predomina uma perspectiva fortemente

assistencial/emergencial em que se pauta e, principalmente, pelas retrações das demais

políticas que a compõem, mantendo e consolidando características da Assistência Social

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historicamente estabelecidas103 – anteriores e posteriores ao seu reconhecimento e

operacionalização como política pública. Não se empreende um processo de

fortalecimento da Seguridade como um todo, da sua consolidação, mas, pelo contrário,

ocorre o aumento de programas e projetos assistenciais que vêm acompanhados de uma

redução do investimento público na política de saúde e de previdência social, políticas

integrantes da Seguridade, peça central do sistema de proteção social no Brasil.

Lembramos que o cenário de constituição da PNAS e do SUAS é diferente do

que pôs os marcos regulatórios desta política social no final da década de 1980. A

contra-reforma do Estado e o neoliberalismo são componentes constitutivos da política

de Assistência Social.

Dessa forma Behring afirma que

o SUAS está sendo concebido e operacionalizado num contexto histórico diferenciado daquele que propiciou a formulação do conceito de seguridade social da Constituição de 1988 e da LOAS em 1993, esta última já numa fase de esgotamento das conquistas democráticas das lutas sociais do período anterior e de ascensão da contra-reforma do Estado preconizada pela avalanche neoliberal (2009, p. 8).

Ainda nesta linha, faz-se necessário compreender outro fenômeno: a

assistencialização tem como foco uma política de assistência resumida à transferência

de renda. É no atual contexto de crise econômica e de difusão do ideário neoliberal em

que os programas de transferência de renda assumem papel protagonista como

estratégia de enfrentamento e combate à pobreza, aparecendo como principal foco de

ação estatal.

os programas de transferência de renda ganham notoriedade, e transferem prestígio aos governantes cujos países caracterizam-se por ampla cobertura social, financeira e política. Entretanto, analisados sob o prisma das necessidades básicas, os Programas revelam que o atendimento se restringe à sobrevivência, destituídas do caráter de direito social (Stein, 2008, p. 201).

Uma contradição que tensiona a redemocratização e a construção da Seguridade

Social se caracteriza pela participação subalterna do país na economia mundial – e a

dependência dos empréstimos e financiamentos dos organismos internacionais – e está

subsumida ao que determinam as orientações dos organismos internacionais para as

ações estatais. Não há ruptura com a responsabilidade estatal, mas se consolidam o

103 São características presentes dede antes do reconhecimento desta política: a parceria com o setor privado, a desvinculação orçamentária, a ausência do controle social (vários programas têm suas fontes de recursos desvinculadas do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS).

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ajuste fiscal e a focalização das políticas sociais no combate à pobreza estabelecido

como um dos traços do ideário neoliberal nos anos 1990. Com o ajuste fiscal as políticas

sociais passam a ser duramente afetadas e diminuídas, por terem seus recursos

reduzidos e/ou redirecionados, o que implica na focalização e seletividade dos

programas de corte social.

na entrada dos anos 90, o BIRD, além da imposição dos programas de estabilização econômica (controle do déficit fiscal, cortes nos gastos públicos, reformas tributária e da previdência, abertura do mercado etc.), pagamento da dívida externa e políticas de ajuste, determina a implementação de programas paliativos e focalizados para o alívio da pobreza (Pastorini e Galizia, 2006, p.77).

O sistema de proteção social erguido no aspecto legal-formal no final da década

de 1980 tinha como horizonte os modelos de seguridade social orientados por uma

perspectiva social-democrata. A Constituição Federal de 1988 e as legislações

complementares que regulamentam as políticas sociais setoriais (LOAS, LOS, ECA

etc.) sem dúvida estão formuladas numa perspectiva de garantia de direitos, mas ainda

que apontassem para um modelo de “bem-estar” não havia uma perspectiva

redistributiva, mas sim compensatória das desigualdades sociais.

Segundo Pastorini e Galízia (2006), este sistema de proteção se caracterizou

como um sistema “misto” ou “híbrido” no qual conviviam numa mesma estrutura o

público e o privado. Afiançava-se, a priori, garantias de direitos para o trabalhador

formal e políticas universalistas no campo da Saúde e da Assistência Social para a

população em geral e para os não formalmente empregados, conforme cada

necessidade. Manteve-se, como afirmam as autoras, os traços assistenciais

característicos da proteção social destinada à população mais pauperizada.

As estruturas e desenvolvimento econômicos, assim como interesses políticos diversos, construíram um sistema de proteção social numa combinação de formas institucionais públicas e privadas (tanto em financiamento como em prestadores de serviços) que permitiram defini-lo como “misto” ou “híbrido”. Caracteriza-se pela convivência, de certa forma “equilibrada”, de estruturas público-universais de saúde e estruturas particulares, contributivas, com provedores públicos e privados, e regimes de aposentadorias e pensões de repartição simples e obrigatórios, mas excludentes dos trabalhadores não formalmente empregados. Isso juntamente com um forte conteúdo assistencial e traços compensatórios para os setores mais empobrecidos, não incluídos como beneficiários dos programas de previdência social (Idem, p. 81).

Portanto, as características de sistema misto, que parecem contraditórias entre si,

já estavam pautadas na legislação que alça a Seguridade Social como sistema de

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proteção social no Brasil. Reiterou-se uma leitura da realidade dicotomizando as esferas

da economia, da política e do “social” na formulação e execução desta última como se

estivesse desvinculada da política econômica que vem sendo empreendida nos últimos

anos.

Não se apontou para a alteração do quadro de desigualdade através de políticas

redistributivas, visto que para que esse modelo funcione é necessário que sejam

desenvolvidas políticas de “pleno emprego” orientadas numa perspectiva de proteção ao

trabalhador104. Não podemos entender estas características como distorções do sistema de proteção, pois nunca a universalização redistributiva foi colocada como o objetivo primordial da sua organização. Isto se articula com a constituição do caráter seletivo do Estado protetor brasileiro, que incluiu apenas parte dos grupos de trabalhadores urbanos com vinculo formal de emprego que poderiam ter um papel ativo de transformação social (real ou potencial) (Pastorini e Galízia, 2006, p.81).

A redistributividade não esteve presente no sistema constituído, permaneceu o

caráter seletivo e os desdobramentos seguintes, ancorados na contra-reforma do Estado,

apoiaram-se, inclusive, nestas características.

Para os trabalhadores com vínculos formais de emprego, diferente daqueles sem

vínculo formal ou sem empregos, não se alterou, mesmo com a constituição da

Seguridade Social o lugar destinado pela proteção social brasileira, que determinou

vínculos, programas, serviços e benefícios diferenciados. Entretanto, para os

desempregados, sem vínculo formal de emprego ou vínculo precário, considerados

concretamente como pobres ou extremamente pobres, foram penadas outras estratégias

de proteção social como a política de Assistência Social. No entanto o seu papel de

articulação com as demais políticas que seria o caminho para tornar seu usuário

alcançável por elas (inclusive às políticas de geração de emprego e implicação na

previdência social) fica cada vez mais subsumido e sob a responsabilidade quase que

absoluta dos programas de transferência de renda, que condicionam a participação e o

acesso aos programas de Assistência Social à renda familiar.

104 Enquanto a Seguridade Social possui um desenho que tende a amparar de forma regular os trabalhadores com vínculo formal, a Assistência Social é uma política que, no bojo da Seguridade, atende aos que dela necessitam dentro de um perfil da população que se encontra em situação de vulnerabilidade pela não-cobertura previdenciária. Ficam de fora os trabalhadores pobres que não têm direito à previdência por não contribuírem ou que não podem acessar à assistência porque, teoricamente, “podem trabalhar”. Isto ocorre num universo em que “40,6 milhões de pessoas não são seguradas pela previdência (57,7% dos 70,5 milhões de ocupados: 10 anos ou mais), ou seja, 58 em cada 100 pessoas. Entre estes, 20,4 milhões (50,12%) não têm ou seus rendimentos são inferiores a um salário mínimo. Destes, 5 milhões são trabalhadores rurais e 15,4 milhões são urbanos” (fonte: Boschetti, 2003: Assistência Social no Brasil após Dez Anos de LOAS: Tendências no Âmbito Federal).

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Entendemos que não houve rupturas nos fundamentos que compõem a

perspectiva de combate à pobreza nos seguidos governos democráticos. As mudanças

nos programas centrais trouxeram algumas inovações para sua gestão e implementação

que não refletem alterações de fundo na condução das políticas sociais 105. Há uma

subversão dos valores e princípios constitutivos da regulamentação das políticas sociais

aliados a uma política econômica que submete reiteradamente as necessidades do

trabalho ao capital.

É nesse escopo que se alicerça grande parte da discussão de assistencialização

das políticas sociais. A referência na Assistência Social se pauta na concepção restrita e

emergencial que esta política tem em seu interior como perspectiva de construção da

cidadania para os pobres. Esta identificação se fundamenta em componentes ídeo-

políticos e materiais. Sem dúvida são articuladas respostas concretas que atendem às

necessidades objetivas e emergenciais através da transferência de renda, mas, junto a

isso se consolida a naturalização da pobreza e das respostas consideradas “possíveis”

nesta ou em qualquer sociedade, naturalizando as desigualdades sociais.

As formulações de Sposati e do grupo de pesquisadores da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) no fim da década de 1980, antes da

Constituição Federal de 1988 e da LOAS, já demarcava os rumos que tomaria a

Assistência Social no Brasil. Este grupo de pesquisadores e professores foi precursor na

discussão da assistência social e sua vinculação com a cidadania no interior do Serviço

Social, e é, ainda nos dias atuais, referência incontestável e importante na formulação

desta política.

A preocupação com o reconhecimento os direitos de cidadania para os cidadãos

pobres, com as estratégias de enfrentamento da miséria e da pobreza já caracterizava

objetivos da assistência mesmo antes da Constituição Federal de 1988, e o

reconhecimento desta política como direito social. Nos inícios da segunda metade dos

anos 1980 estes intelectuais afirmavam que,

Romper com a situação atual de miséria do povo brasileiro deve implicar um saldo que o fortaleça, que signifique um avanço na constituição de sua cidadania. É neste contexto que se resgata a assistência como política

105 Os programas e projetos de enfrentamento da pobreza começam a tomar forma no governo FHC, seguindo as orientações dos organismos internacionais, criando o Comunidade Solidária. O governo LULA cria o Programa Fome Zero, que coordena os programas de enfrentamento da pobreza, tendo como carro-chefe o Programa Bolsa Famílias. Mesmo com a regulamentação da Assistência Social com a PNAS e o SUAS não se rompe com a focalização, como vimos no capítulo 1.

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governamental, essa forma histórica com que a sociedade enfrentou a miséria, a pauperização (Sposati et ali, 1986, p. 13).

A história brasileira demonstra que em momentos de crise, de aguçamento das

manifestações da “questão social” e de agravamento da pauperização dos trabalhadores,

a Assistência Social passa a ser uma das principais respostas às necessidades sociais e à

pauperização; funcionando também como estratégia de construção de consensos em

torno do trato destas manifestações. Segundo Sposati et ali,

Enquanto a crise econômica evidenciará nos países desenvolvidos a crise do Welfare State entende-se que, em contrapartida, evidenciará nos países subdesenvolvidos, como o Brasil, o emergencial das políticas sociais. O assistencial é uma das características em que se expressa a ação do Estado brasileiro nas políticas governamentais de corte social. Uma das formas através das quais se pretende demonstrar esse assistencial consiste em evidenciar a emergência da qual se revestem as ações estatais, no campo social. É o assistencial que imprime o caráter de emergência às políticas sociais (1986, p. 22).

Esta dimensão assistencial à qual as autoras se referem é base da estruturação

das ações estatais e é parâmetro que guia as políticas governamentais de corte social.

Elementos de ruptura legal-formal com este referencial foram sinalizados na

Constituição Federal e nas leis que regulamentam as políticas sociais setoriais que

consolidam subsídios numa perspectiva que não correspondeu à realidade concreta de

sua operacionalização.

O emergencial continuou a ser a “tônica” das políticas sociais, inclusive as

políticas de caráter universalista – como a saúde – são perpassadas pelo corte da

emergencialidade; caráter que esteve presente historicamente na assistência e se

consolida com o destaque desta dentre as políticas de Seguridade Social quando a

assistência passa a compor seu “tripé”, junto com a Saúde e a Previdência Social.

Como afirma Mota (2009) se antes da Constituição Federal de 1988 a posição da

assistência era residual agora, com a reorganização das políticas de Seguridade sua

ampliação numa perspectiva focalista passa também a recompô-la na sua totalidade:

“Mas, se historicamente a política de Assistência, no caso da Seguridade, ocupava uma

posição residual, a sua ampliação e reorganização em tese estariam recompondo toda a

articulação do amplo arco da Seguridade” (Mota, 2009).

Atualmente os programas de combate à pobreza adquirem centralidade na

política de Assistência Social, rompendo com sua dimensão setorial dentro da

Seguridade Social e estabelecendo-a como política central no seu bojo. Significa dizer

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que a Assistência constituída como política de Seguridade Social deve estar articulada

no interior da perspectiva de Seguridade e da sua relação mais ampla com as políticas

sociais garantidoras de direitos, mediadas por uma política econômica redistributiva e

com as demais políticas setoriais.

A Assistência Social vem se estruturando com medidas focalizadas no seu

interior e através das ações que são realizadas através de seus programas e projetos. Na

atual conjuntura são estruturados programas e projetos que se constituem nos vários

setores governamentais: trabalho e emprego, cultura e esporte, educação e saúde a partir

da Assistência Social para os seus usuários, mediados principalmente pelas

condicionalidades do Programa Bolsa Família, principal programa assistencial.

Esta política social se estabelece como política compensatória das carências

resultantes da restritividade no atendimento às necessidades localizadas no âmbito das

garantias de condições de vida e reprodução social dos segmentos por ela atendidos.

Para os usuários da Assistência Social são destinados programas no âmbito dos setores

destacados acima, no interior de seus equipamentos ou oferecidos em parceria com

entidades não-governamentais e, as garantias de acesso aos serviços públicos, através de

articulação e encaminhamentos, estão perpassadas pela a precarização da rede de

serviços106.

O processo de precarização e focalização que decorre do enxugamento das

políticas sociais provocados em grande medida pelo redimensionamento dos gastos

sociais face uma política econômica restritiva, junto com o crescimento do setor privado

e seus pacotes de serviços. A oferta de serviços públicos torna-se cada vez mais restrita

à população mais pauperizada – que não pode pagar por serviços privados no mercado –

que tem acesso a pacotes assistenciais mínimos, assim como na Assistência Social107. O

público-estatal passa a ser predominantemente entendido como serviço destinado aos

pobres, salvo o caso da previdência social, política contributiva, que depende

fundamentalmente de vinculação formal ao sistema previdenciário. Para aqueles que

não podem pagar pelos serviços privados ofertados no mercado, são destinados

essencialmente “pacotes” emergenciais e focalizados.

106 Verificar Capítulo 1, quando caracterizamos os programas e projetos da Assistência (item 1.4). 107 Como já caracterizamos no Capítulo 1 – O Contexto Histórico do Debate sobre a Assistencialização das Políticas Sociais.

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O cuidado e o desafio para a análise da política de Assistência Social hoje são

vislumbrar a sua relação com as demais políticas sociais e econômicas e não restringir

apenas a ela própria. Nesse sentido Behring alerta,

não podemos correr o risco de isolar a política de assistência social, vê-la em si, a partir de um ângulo interno, fora das relações sociais que a circunscrevem e tensionam, eliminando do cenário as contradições, os projetos, a política e a relação com a economia e a luta de classes (2009, p.10-11).

Não cabe à Assistência Social a responsabilidade por atribuições que são das

políticas sociais em seu conjunto e, menos ainda, imputar competências e conseqüências

da política econômica. No entanto, a ausência de respostas via políticas sociais

afiançadoras de direitos, que garantem condições básicas de produção e reprodução –

tais como saúde, habitação, saneamento, iluminação, alimentação, educação, dentre

outras – se conjuga com o repasse da atribuição e da responsabilidade pela proteção

social à Assistência Social.

Dessa forma os benefícios e serviços assistenciais passam a ser entendidos como

a única alternativa para a população descoberta pela proteção social e impossibilitada de

aceder ao conjunto de bens e serviços públicos, assim como da cobertura previdenciária,

ou de acessá-los no mercado. Essa realidade leva alguns autores e técnicos a

redimensionar a Assistência Social atribuindo-lhe funções e característica que ela não

pode ter, como entende Behring

uma espécie de atribuição heróica da função de proteção social à assistência social, quando seus benefícios e serviços devem ser pensados numa perspectiva mais ampla de seguridade social, aqui vista para além do conceito restrito da Constituição brasileira. Concordamos aqui com Boschetti, para quem a assistência social não se pode atribuir a tarefa de realizar exclusivamente a proteção social. Esta compete, articuladamente, às políticas de emprego, saúde, previdência, habitação, transporte e assistência, nos termos do artigo 6º da Constituição Federal (Behring, 2009, p.10-11).

Em sentido semelhante Rodrigues (2009) destaca que a Seguridade Social que

tem sido constituída tem condições apenas de responder a determinadas situações de

pobreza absoluta, configurando uma seguridade focalista, centrada na assistência como

âncora de outros direitos.

aquela seguridade social centrada na assistência que se expande e se torna âncora dos outros direitos – e que, na verdade, toma o lugar dos outros direitos – é uma seguridade focalista! No máximo ela tem condições de responder à pobreza absoluta, mas não de diminuir ou mexer minimamente com a pobreza relativa e com a desigualdade social (Rodrigues, 2009, p. 24).

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A concepção de Seguridade Social pautada pelos autores que citamos se ancora

na vinculação das políticas sociais, com base em um orçamento inconsistente para a

estruturação de programas, do desenvolvimento para geração de empregos, que implica

numa política econômica, diversa da encaminhada pelos últimos governos, oposta aos

pressupostos que hoje a orientam: ajuste fiscal e contingenciamento de recursos para

composição de superávit primário, que restringe os investimentos para acúmulo de

reservas para o pagamento de juros da dívida.

Estes autores entendem que o processo de destaque da assistência dentre as

políticas de Seguridade Social e a centralidade que adquire dentre elas reorienta os

marcos da Seguridade postos na Constituição Federal de 1988 e nos seus marcos

regulatórios. A assistencialização é caracterizada como um fenômeno ancorado nestas

características que vem assumindo a Seguridade Social e com o aprofundamento da

dimensão assistencial nas políticas sociais.

Sabemos que a utilização do termo assistencialização não é consenso entre os

diferentes autores e teóricos preocupados em reflexionar acerca da Seguridade Social e

da Política de Assistência. Por exemplo, Sposati (2009) considera que o termo

assistencialização – e seu conteúdo – significa uma “negação” da Assistência Social. A

autora discorda da pertinência do uso da terminologia “assistencialização” para

significar o processo de precarização e focalização das políticas sociais e enumera duas

posições que referenciam este debate. Uma delas é denominada pela autora de

“idealista” e a outra de “niilista”.

A primeira (entendida como idealista) a seu ver exaltaria a capacidade de

“resolutividade” que a política de assistência social teria em sua competência de

atendimento, e a definiria como a política capaz de mediar os direitos que são do âmbito

das políticas sociais e não apenas da Assistência Social (Sposati, 2009).

A segunda posição que referencia o debate da assistencialização (chamada por

Sposati de niilista), na perspectiva da autora, reduz o papel da política de Assistência

Social e seu potencial concreto, considerando a “presença” desta política um fator

destrutivo da cidadania e dos direitos sociais. A autora supracitada define este campo

niilista como fatalista, pois estaria responsabilizando à assistência pela diminuição de

direitos no âmbito da Seguridade Social.

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Segundo Sposati (2009) as duas posições estariam equivocadas ao referenciar a

assistencialização na Política de Assistência Social (Idem), pois entende que os avanços

que vêm sendo constituídos no campo desta política social constituem a consolidação de

conquistas históricas para os segmentos mais pauperizados da população.

A nosso ver o debate acerca da assistencialização da Seguridade Social não se

restringe a essas duas posições108. Entendemos que a orientação da política de

Assistência Social e seu destaque em face às políticas de Seguridade Social não podem

ser secundarizados em nossa análise. O papel que os programas assistenciais adquirem

na atual conjuntura responde a um processo de reorientação das políticas sociais.

Através de programas e projetos de administração dos índices de pobreza e miséria a

assistência vem se consolidando como medida de proteção social central na Seguridade

Social, assim como o combate à pobreza se torna uma política específica, mediado pela

política de Assistência Social.

O processo crescente de pauperização, precarização do trabalho e desemprego

estrutural, amplia cada vez mais os segmentos descobertos por medidas de proteção ao

trabalhador, mediadas pela previdência social. Para os trabalhadores sem acesso à

proteção social, dentro dos perfis de pobreza e pobreza absoluta são destinadas ações

pontuais e emergenciais.

Estas medidas se configuram em estratégias de administração da pobreza se

constituem como característica central da Assistência Social. As demais políticas

sociais, as quais os usuários desta política têm acesso por meio de outros programas, ou

mesmos por meio do acesso aos serviços localizados em outras políticas sociais,

também são mediados pela lógica do combate à pobreza. A precarização da rede de

serviços, com a qual poder-se-ia referenciar o público-alvo atendido pelas ações no

campo da assistência, sofre um processo contínuo de precarização e privatização,

conforme já sinalizamos.

Consideramos que a racionalidade presente na formulação da Política de

Assistência Social nos dias de hoje e os impactos da sua gestão – assim como o

redirecionamento que é operado face ao seu destaque em relação às demais políticas

sociais – também são elementos determinantes para a afirmação da existência de um

processo de assistencialização da Seguridade Social.

108 Afirmação que se referencia nos autores trabalhados anteriormente, especialmente Behring, Boschetti, Mota, Pastorini e Galízia, e Rodrigues.

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Aspectos presentes nas duas perspectivas apontadas por Sposati (2009) estão

inseridas no contexto de assistencialização das políticas sociais. O

superdimensionamento da capacidade resolutiva da assistência no combate à pobreza é

um traço que pode ser evidenciado na prática e no discurso dos técnicos defensores das

diretrizes propostas pelos organismos internacionais, diretrizes estas que orientam o

redimensionamento das políticas sociais e põem os programas, projetos e benefícios de

assistenciais de combate à pobreza como eixo central das ações.

O destaque da Assistência no interior da Seguridade Social é um fator que

expressa a reorientação da Seguridade, junto às reformas da Previdência e a restrição

dos serviços de Saúde. A Assistência Social é uma política que tem um impulso

diferenciado na entrada dos anos 1990 e continuando nos anos 2000, no sentido de sua

ampliação focalizada no combate à pobreza, ainda como política pública de Seguridade,

mas nos marcos do processo de contra-reforma do Estado, que reorienta as políticas que

a compõe (e as demais políticas sociais).

O trato das expressões da “questão social” adquire um caráter cada vez mais

emergencial, no sentido de articulação de respostas fragmentadas e compensatórias por

todas as políticas e a Assistência Social passa a cumprir papel preponderante no

atendimento das populações mais pauperizadas, constituindo-se como a porta de

entrada das ações assistenciais e para as demais políticas sociais para este público. Esta

política tem se constituído por um conjunto de programas e serviços paliativos, com

características históricas que se rearranjam e tomam novas denominações, mas que

consolidam práticas próprias do trato da “questão social” pelo Estado capitalista

baseadas na seletividade, na emergencialidade, na focalização na pobreza e nos

vulneráveis.

Sposati, ainda em 1986, ao caracterizar o caráter emergencial das políticas

estatais já destacava estes aspectos e, ainda que a autora não os reconheça hoje como

elementos centrais da Assistência Social, entendemos que estas características são

retomadas com outro “fôlego” no bojo das estratégias baseadas no ideário neoliberal.

Nas palavras de Sposati (1986):

É preciso tornar claro que não se está tomando a emergência como a análise da capacidade governamental em responder com prontidão e rapidez de ação. O caráter de emergência é aqui conotado como respostas estatais eventuais e fragmentadas. Com isto, as políticas sociais brasileiras terminam sendo mais um

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conjunto de programas, cuja unidade se faz a reboque dos casuísmos de que surgiram (Sposati, 1986, p. 23).

Embora o termo “assistencialização” esteja em discussão no interior da categoria

de forma mais explícita na atualidade, com a promoção da PNAS e do SUAS109, este

termo foi utilizado em 1995 por Mota, quando publicou sua tese de doutoramento

“Cultura da Crise e as tendências da Seguridade Social”. A autora na época identificava

algumas tendências na Seguridade Social que apontavam para este processo,

conjugando a expansão da Assistência Social com a privatização da Saúde e da

Previdência Social, marcando alterações significativas neste “tripé” da proteção social

desde a década de 1990 (Mota, 2009).

Segundo a autora esse processo remetia à desregulamentação do trabalho,

consolidando o trabalho precarizado e sem o reconhecimento de direitos sociais,

projetando políticas sociais de “cobertura assistencializada e conjunturais” (Mota, 1995,

p. 228). Em seu texto de 2009, Mota reafirma que a assistencialização das políticas

sociais se consolida pela centralidade da Assistência Social como política responsável

pelas respostas às expressões da “questão social”. Nas palavras da autora: “identifico a

assistencialização não como um retrocesso em relação à existência ou não da

consolidação de direitos, mas sim pela centralidade que tem a assistência social hoje nos

embates e enfrentamentos da questão social no Brasil” (Mota, 2009).

Numa perspectiva diferente Sposati destaca que esta política “não se identifica

nem com a resolutividade das desigualdades sociais e nem com a confirmação ou

alimentação das mesmas” (Sposati, 2009). A própria autora considera que a análise da

política per si, e as constatações advindas das ponderações circunscritas a ela, não são

suficientes para compreender as consequências do processo de assistencialização, ainda

que não o reconheça enquanto tal. Assim afirma,

Não basta a constatação empírica dos assistentes sociais de que a assistência que acontece se reveste de um caráter paliativo, não resolvendo os problemas de força de trabalho, que aumentam cada dia. Impossível uma leitura de assistência de per si, sem atentar para as determinações sociais e históricas do significado da assistência como política governamental, de sua imbricação com as relações de classe e destas com o Estado (Sposati, 1986, p. 25).

A autora destaca que o planejamento do Ministério de Desenvolvimento Social

difere do que é realizado pelas gestões municipais (Sposati, 2009), pois é perpassado 109 Em abril de 2009 ocorreu o Seminário Nacional “O Trabalho do Assistente Social no SUAS”, organizado pelo conjunto CFESS/CRESS, no Rio de Janeiro, que teve uma de suas mesas centrais intitulada: Assistência Social: garantia de direitos ou assistencialização?”. Dentre seus debatedores estiveram Aldaíza Sposati e Ana Elisabete Mota.

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pelo processo de disputa de concepções no interior das gestões nos diversos níveis de

governo. Destaca que iniciativas realizadas no âmbito das gestões municipais podem

superar o que considera limites postos pelo governo federal e que podem apontar para

soluções de referência para alterações na política de assistência, trabalhando na

perspectiva de explorar possibilidades e potencialidades desta política social.

O MDS realiza o monitoramento dos equipamentos públicos da Assistência

Social (CRAS e CREAS) e pretende ampliar o acompanhamento dos serviços prestados

por eles. De acordo com Simone Albuquerque (2009):

O fundamental é garantir que os serviços e benefícios fortaleçam o caráter de proteção das famílias brasileiras (...) A proposta de avaliação não é apenas contabilizar, ma, também, conhecer detalhes, como estrutura física, atividades realizadas no local, recursos humanos disponíveis, além do funcionamento dos serviços de atendimento (fonte: Jornal MDS, 2009, p. 4)110.

Consideramos, ainda que as tendências mais gerais apontem para um processo

de assistencialização, a perspectiva de buscar estratégias “criativas”, situadas por

Sposati (2009) na esfera da gestão – seja municipal ou federal – identifica a

possibilidade de impulsionamento da política de assistência social por meio de

iniciativas localizadas nesta esfera particularmente, que indicariam possibilidades de

ruptura com os limites ainda presentes na formulação da política, por parte

especialmente de assistentes sociais que estão no âmbito da gestão111.

É necessário, a nosso ver, analisar a política de Assistência Social de forma

crítica e incentivar iniciativas e formulações nas diferentes esferas governamentais que

apontem para o campo da consolidação de direitos. No entanto, estas ações não são

suficientes para sinalizar rupturas com um processo estrutural às políticas sociais e,

inclusive, à política de Assistência Social. As alterações necessárias para o conjunto de

políticas sociais não estão circunscritas apenas à vontade dos sujeitos, seja na

formulação, na gestão ou execução dos serviços oferecidos.

Os elementos que estruturam a política de Assistência Social, ainda que a

implementação do SUAS altere em alguns patamares a relação das parcerias público-

privado, com a estruturação de equipamentos e serviços públicos, como referimo-nos

110 O primeiro levantamento foi realizado em 2008, que identificou 5.142 centros em todo país. Em 2009 será realizado o segundo levantamento incluindo a perspectiva de avaliação dos serviços prestados (fonte: Idem). 111 As intervenções realizadas por assistentes sociais que estão no MDS no Seminário supracitado e de outros gestores do nível municipal apontava para uma defesa dos avanços e conquistas nos últimos cinco anos – de implementação da PNAS e do SUAS – e para o caminho que está sendo trilhado pela assistência Social, seu crescimento e fortalecimento no combate à pobreza.

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anteriormente, mantêm a relação de serviços e benefícios destinados a sua população

usuária no escopo dos parâmetros de administração da pobreza.

A diferenciação da política de Assistência Social das ações filantrópicas e da

caridade institucionalizada não rompe as “parcerias” com entidades caracterizadas por

esta finalidade e que são estruturais na execução112. A execução dos programas e

projetos inscritos na Assistência Social, desde o fornecimento de insumos materiais a

contratação através da terceirização de recursos humanos etc., tem por orientação

central, ditada pelos organismos internacionais, que ao Estado cabe o papel de

“supervisor”113 e de principal responsável por esta política social através do repasse de

recursos financeiros administrados por elas.

O uso de um termo assistencialização se relaciona diretamente com a política de

assistência social e na sua mediação com as demais políticas sociais, mas é resultante da

caracterização de um processo de assistencialização e se deve em princípio aos

fundamentos sobre os quais esta política se assenta – filantropia, pareceria com serviços

privados, administração por ONG’s, etc – e que se conjugam, numa perspectiva mais

ampla, ao desmonte das demais políticas de Seguridade Social114. Apesar de sinalizado

na Constituição de 1988 um modelo de Estado de Bem-Estar, esta perspectiva não se

consolidou, por conta do desmonte de direitos, aprofundamento da precarização das

relações de trabalho por meio dos processos de contra-reforma. A Seguridade Social

figura como um dos principais eixos de desmonte e, neste processo, a Assistência Social

passa a ter destaque, através de seus programas e projetos, como principal medida de

proteção social115.

112 Os dados mais recentes apontam para o quantitativo de 6.942 instituições com Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS. Destas 64% no âmbito da Assistência Social, 16% na Saúde, 14% na Educação e 6% não enquadrado. Este quantitativo só representa entidades com atuação em âmbito nacional (fonte: CNAS em www.mds.gov.br/cnas). 113 O Estado possui agentes públicos para atuar na política, no entanto a execução dos programas no âmbito dos municípios se dá através de contratações realizadas por ONG’s, que, no ProJovem Adolescente executado na Prefeitura do Rio de Janeiro, por exemplo, contratam “orientadores sociai” para fazerem atividades com estes jovens, são responsáveis pela compra e fornecimento de lanches para os mesmos, os recursos materiais, etc. Estas contratações são precarizadas, há poucos profissionais que “supervisionam” e são contratados estagiários pelo prazo de três meses, para que não sejam estabelecidos vínculos. A prestação de contas não é transparente e o próprio programa vem como “pacote fechado” através do Governo Federal. O mesmo processo ocorre, como sinalizamos no Capítulo I, no ProJovem Urbano e no PETI. Cabe aos agentes públicos “conferir” o andamento, sem gerência direta sobre sua execução. 114 Estes fundamentos não sofrem ruptura significativa com as legislações que vieram regulamentá-la. Pelo contrário, vêm se consolidar referendadas pela LOAS, pela PNAS e pela NOB, pois embora sua gestão caiba ao Estado, em nenhum momento a legislação garante que ela seja executada por ele, pois as parcerias são mantidas nos estabelecimento da relação público-privado na execução ações e serviços. 115 No Governo Lula, a formulação e implementação do Programa Fome Zero, tendo como principal medida o Programa Bolsa Família, é modelo com status internacional, pela inovação na gesta e pela racionalização de recursos e benefícios que segue, com “sucesso”, as orientações dos organismos internacionais para as medidas de combate à

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Sposati (2009) entende que com a PNAS e o SUAS são rompidos paradigmas

históricos que estiveram presentes na trajetória da assistência e que o “fortalecimento da

política de assistência social [contribui] para que as outras políticas atinjam seus

objetivos quando ela deixa de ser o remendo das demais políticas sociais” (Idem.).

Entendemos que a articulação que esta política faz com as demais está

perpassada pelos aspectos do processo de precarização e focalização das demais

políticas sociais, como apontamos, e, ao invés de “potencializa-las”, imprime

características assistenciais para elas.

Programas e projetos assistenciais sustentam o acesso aos seus beneficiários aos

serviços sociais através de vinculação pontual, com a saúde, por exemplo, através das

condicionalidades dos programas de transferência de renda ou mesmo por conta da

precarização da saúde de uma forma geral e da educação também pelos critérios

quantitativos (frequência) que são parâmetros destas mesmas condicionalidades.

O MDS sustenta que o Programa Bolsa Família eleva o acesso à saúde116 por

meio da condicionalidade vinculada ao programa, pois, para o publico vinculado às

contrapartidas117, são destinadas ações para o cumprimento do calendário de vacinação,

verificação de peso em consultas semestrais. A Saúde, defendida como política que

atende preventivamente e “curativamente”, compreende medidas de atenção para além

das medidas estabelecidas nas condicionalidades, insuficientes para dar conta dos

diversos aspectos que compreendem uma concepção de saúde inscrita na Seguridade

Social118.

Ainda que algumas ações possam ser e venham sendo articuladas no âmbito da

Assistência Social para além dos programas de transferência de renda, as medidas

destinadas aos seus usuários restringem-se às suas ações e articulações internas, nos

próprios programas que oferece no âmbito da cultura, esporte e até de geração de

emprego e renda, subsumindo-a a ela mesma.

pobreza que devem ser estruturadas no cenário atual de crise capitalista. 116 Conferir o Jornal do MDS nº 17, publicado em julho/2009. 117 Conferir Capítulo I, 1.4 Programas e Projetos, no qual caracterizamos brevemente os beneficiários do PBF e os destinatários das condicionalidades, que se localizam em segmentos da família, especialmente as crianças e gestantes/parturientes. 118 O princípio de universalidade do acesso não é promovido pelo PBF, visto a característica do recorte do público-alvo. A articulação da Assistência Social não está perpassada apenas pela condicionalidade do programa mencionado, mas pelo encaminhamento para garantia de acesso para esta política pública, contraposto ao entendimento pontual da saúde. Esta perspectiva é permeada pela precarização dos serviços de saúde, dificultando o acesso aos diversos níveis de atendimento, não encontrando afirmação destes possíveis encaminhamentos na estruturação da rede.

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O público usuário da política de Assistência Social permanece

fundamentalmente circunscrito às ações desta política social, pois a rede de serviços

públicos não oferece condições para o atendimento às suas necessidades quando a eles

encaminhados, visto o processo de seletividade diante da precarização já caracterizada.

Seria necessário o desenvolvimento de políticas que estruturassem, desde serviços

básicos – como saneamento, água, rede elétrica – a serviços estruturais – como

habitação, por exemplo – como medidas de proteção social na perspectiva de uma

Seguridade Social ampliada.

Sposati (2009) destaca que as considerações que apontam para um processo de

assistencialização se fundamentam em “mistificações” e que as mesmas podem ser

dissolvidas considerando a trajetória histórica da política de assistência e os avanços

postos pela legislação recente e sua implementação.

Todas estas mistificações: Serviço Social como Assistência Social, pobreza e do pobre como objeto de uma política social, Assistência Social como proteção social, exige uma outra desmistificação que é o entendimento que no processo histórico da Assistência Social no Brasil existe em várias culturas. O que tratamos é uma ruptura de paradigmas que ocorre a partir da Constituição ou mais especificamente a partir da PNAS de 2004 e do SUAS (Sposati, 2009).

Mota (2009) afirma que a assistência social, dependendo da direção em que se

estrutura e se implementa, pode se constituir, ou não, num “mito”. O destaque da

Assistência Social no enfrentamento da desigualdade social estabelecido como principal

mecanismo no interior das ações estatais rompe com a perspectiva de que seja “um

direito que em determinadas conjunturas pode se traduzir num mito pela dimensão que

ela ocupe, não no interior específico na engenharia da seguridade, mas que ela adquire

no cenário mais amplo da sociedade” (Mota, 2009).

Para Mota, a Assistência Social estabelece-se como mecanismo privilegiado na

esfera da cultura e da ideologia como principal meio de combate ao crescimento da

desigualdade. A autora enfatiza que o processo de assistencialização não pode ser

confundido com o “assistencialismo” (Mota, 2009). Para ela a assistência se consolida

como política pública, mas seu destaque em face da Seguridade Social como medida de

proteção social, define sua orientação na “forma” do combate à desigualdade, que

destaca a Assistência Social como meio de combate à pobreza através de ações pontuais

e fragmentadas afinadas ao destaque desta política e a precarização da Seguridade

Social como um todo.

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Os mecanismos de proteção social no âmbito da Assistência Social, assim como

seus serviços e benefícios, caracterizaram-se historicamente como constitutivos de uma

perspectiva seletiva e fragmentada de acordo com o grau de necessidade demandada

dentre o público com maior grau de pobreza, numa perspectiva de benefício-privilégio.

É a presença do mecanismo assistencial nas políticas sociais que a configura como compensatória de “carências”. Com isso torna-se justificatório para o Estado selecionar o grau de carência da demanda (financeira, nutricional, física, etc.) para incluí-la / excluí-la dos serviços ou bens ofertados pelos programas sociais. Mesmo os serviços produzidos pela Previdência Social aos securitários recebem a tipificação de benefícios (Sposati et ali, 1986, p. 30).

Um dos efeitos do mecanismo assistencial é o rebaixamento das demandas, a

partir da configuração pontual dos atendimentos, um processo que pode ser observado

na Seguridade Social na contemporaneidade, conforme já indicamos anteriormente, e

que a nosso ver não é rompido na Assistência Social com a PNAS e o SUAS.

Consideramos, ao contrário, que as recentes alterações e mesmo que em muitos casos

constituam importantes avanços para a política de Assistência Social, não fazem frente

aos processos de privatização e precarização das políticas que integram a Seguridade

Social no Brasil.

Outro efeito da presença do mecanismo assistencial consiste em permitir a justificativa de um rebaixamento na qualidade dos serviços. Enquanto dirigidos a pessoas de “poucas exigências”, “ignorantes”, os programas sociais podem ser reduzidos a soluções precárias. Na perspectiva assistencial, os serviços públicos se destinam a uma população dita “carente e minoritária”. Neste sentido são prestados em condições precárias quantitativa e qualitativamente, e estabelecem clientelas elegíveis dentre os demandatários (Sposati et ali, 1986, p. 30 – 31).

Importa destacar a atualidade desta colocação das autoras uma vez que são

políticas precarizadas, características dos serviços público-estatais ofertados, mesmo nas

políticas de corte universal (como a saúde) que condicionam a sobrevivência, a vida ou

a morte da população pauperizada que as acessam e delas depende. As características

históricas das ações assistenciais pontuadas por Sposati et ali (1986) passam a estar

cada vez mais presentes na Seguridade Social. Ainda que a Saúde, por exemplo, não

seja destinada legalmente de forma exclusiva aos mais pobres, com a precarização deste

serviço no âmbito da esfera pública-estatal e a oferta de planos privados para as mais

diferenciadas faixas de renda acabam determinando o público que acessa

substancialmente a Saúde Pública.

Os benefícios, que foram se desqualificando e reduzindo-se no sistema de atendimento à saúde público-universal, estão sendo dirigidos para os setores mais pobres da população. Embora não explicitamente, o desinteresse, a

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despreocupação e a desvalorização pública dos sistemas de saúde público-universais acabaram por produzir uma adaptabilidade da política de saúde como um todo, orientando os benefícios para os setores mais pobres. O redirecionamento de recursos públicos e/ou privados para programas focalizados de todo tipo acaba, portanto, “assistencializando” alguns setores das políticas permanentes (universais ou contributivas), fragilizando-as. Produz-se, então, uma mudança na relação de importância ou predominância política entre as diversas formas de proteção social. Enquanto o tradicional padrão de proteção definia-se pelo predomínio político-social das políticas sociais permanentes de saúde e aposentadorias – que, embora excludentes, garantiam direitos sociais e, sobretudo certa força política às categorias de trabalhadores protegidas –, os programas assistenciais eram considerados “complementares”. No padrão que se está constituindo, estes últimos adquirem um status político diferenciado superior, enquanto os permanentes e unificados experimentam estratégias diversas de privatização, redução, seletividade, desresponsabilidade e desoneração pública na execução direta, resultando no seu enfraquecimento, tanto político quanto social (Pastorini e Galízia, 2006, p 97).

A previdência, após vários processos de privatização119, mesmo num espectro de

cobertura aos trabalhadores com vínculos formais, ainda supõe um recorte que atende a

determinadas faixas salariais restritos, pois além de um determinado teto a cobertura

tende a ser fomentada a autoproteção, por meio do incentivo a aquisição de serviços

privados, e do discurso da ineficiência do Estado, do déficit previdenciário, e das

“inseguranças” localizadas na proteção estatal.

As características apontadas120 coadunam com a afirmação de Sposati (2009)

que há uma “mistificação” que tensiona a indicação que a política de assistência social

se ocuparia somente dos pobres e das situações de pobreza. A autora considera que estas

são expressões da “exploração, concentração de riqueza e da sua não-distribuição” e

ainda que sejam objeto da Assistência Social não são exclusivas dela (Sposati, 2009).

Ainda que as camadas de salários mais baixos sejam as demandatárias da

Assistência Social – e de outras políticas públicas – a autora considera que a crítica à

assistência social apontaria para uma concepção equivocada quando afirma que esta

direção fundamenta as políticas sociais e significa uma banalização do processo

(Sposati, 2009). Mesmo reconhecendo que “a demanda pela política de assistência

social, saúde e demais políticas seja por camadas de menores salários”, entende estas

políticas não são, de fato, destinadas apenas para estas camadas (Sposati, 2009).

De forma diversa, Mota afirma que

119 A previdência social vem passando por inúmeros processos de privatização desde a década de 1990 e que tem como principal determinação tornar o acesso aos benefícios cada vez mais restritos, baseado no discurso do déficit previdenciário e das fraudes no sistema. 120 Já trabalhadas no capítulo anterior quando discorremos sobre a contra-reforma da Previdência Social.

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Neste momento, diante da precarização do trabalho e, sem dúvida, diante da ausência de políticas estruturadoras, na maioria dos pequenos municípios brasileiros, o trabalhador precarizado, informal, necessita remercantilizar o seu acesso a determinados bens e serviços: transporte, infraestrutura, educação, saúde. E neste sentido a assistência não se restringe mais da visão do que seria o pobre. Hoje é o trabalhador pobre, é o trabalhador que tem renda, é ele também usuário da política de assistência (Mota, 2009).

Desta forma é possível afirmar que no nosso entender a Assistência Social vem

se consolidando como substitutivo à proteção social, movimento contraposto aos

princípios defendidos amplamente no interior da categoria dos assistentes sociais como

a Seguridade Social necessária121.

Sposati (1986) afirma que as políticas estabelecidas no aparato estatais e as

respostas para as demandas da esfera do trabalho se reproduzem e são atualizadas

mantendo características que são, inclusive no caso da Assistência Social, anteriores e

posteriores a sua regulamentação e implementação por diferentes governos:

O assistencial é uma forma de caracterizar a exclusão com a face de inclusão, pela benevolência do Estado frente à “carência dos indivíduos”. Não é ele, de per si, a exclusão. Esta se dá também nas políticas sociais das sociedades capitalistas desenvolvidas, uma vez que, no limite, o conflito capital-trabalho permanece mantendo a desigualdade social. Mesmo ampliando-se a qualidade do usufruto de bens e serviços pela força de trabalho o Estado burguês permanece pautando a “distributividade” das soluções nos limites dos interesses do capital (Sposati et ali, 1986, p. 31).

A autora supracitada defende que os “testes de meios”122 sejam reduzidos como

medida de acesso aos serviços no âmbito da assistência social (2009), no entanto, a

realidade tem demonstrado que nesta política estes testes se consolidaram e se tornaram

aspecto central para acesso, continuando como atribuição demandada para a

administração dos assistentes sociais.

Para Sposati (2009) é a redução dos parâmetros rebaixados para o acesso aos

serviços que garante a ruptura com categorias depreciativas do público usuário.

121 As indicações contidas na Carta de Maceió, documento resultante do XXIX Encontro Nacional CFESS/CRESS realizado no ano 2000 e que aponta para um outro modelo de Seguridade Social e que, ainda hoje, é referência para a categoria dos assistentes sociais na discussão dos princípios orientadores da proteção social no Brasil, indicam para uma posição firme contra a perspectiva da focalização e denúncia pública propostas restritivas do acesso aos direitos constituídos; considera que o desvio de recursos da seguridade social para a sustentação da política macroeconômica faz parte de uma política regressiva do governo federal. Esta última característica que perdura aos dias atuais. A defesa de uma proteção social implica, superar a fragmentação setorial engendrada à revelia do princípio constitucional da Seguridade Social, a partir de sua tematização por meio dos eixos da gestão, controle social e financiamento e de propostas no sentido da articulação das três políticas. A Carta de Maceió aponta, inclusive, para um conceito mais amplo de seguridade social, que incorpore outras políticas sociais, constituindo um verdadeiro padrão de proteção social no Brasil (CFESS, 2009). 122 Os “testes de meios” são a verificação das condições de vida particularmente vinculada à renda familiar e per capita que determinam pelos programas e projetos para que o acesso seja viabilizado ou não.

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Avançar a assistência social no campo dos direitos significa a crescente redução dos testes de meios. Significa a prevalência da necessidade, significa o abandono / ruptura das categorias: o carente, o necessitado, o excluído, todas categorias altamente estigmatizadoras (Sposati, 2009).

Na assistência social o público usuário é claramente definido pelo corte de

renda, desde o Benefício de Prestação Continuada (BPC) ao público que pode acessar

aos programas e projetos atualmente existentes. O BPC atende à parcela mais pobre dos

idosos e às pessoas com deficiência123, mas ainda a assistência social é um direito

garantido para aqueles que atenderem os pré-requisitos e requisitos, independente da

situação financeira do governo (Cf. Lavinas, 2007).

Entendemos que se torna cada vez mais difícil romper com os “testes de meios”

quando o direcionamento das políticas sociais e econômicas aponta no sentido da

consolidação dos programas de combate à pobreza e quando a concepção de pobreza

que os orienta se restringe a mensurar estritamente à renda familiar para estabelecer

critérios de “entrada”.

As condições de acesso a bens e serviços a partir da assistência social estruturam

a reprodução dos testes de meios para que apenas os mais pobres dentre os pobres –

localizados na linha de indigência e extrema pobreza – tenham suas necessidades

básicas parcialmente atendidas para alteração de patamares dos famigerados índices de

desenvolvimento humano e social .

As características estigmatizadoras destacadas acima no discurso oficial buscam

ser combatidas numa perspectiva de alteração de patamares mínimos de renda, mas não

se coloca no centro das preocupações a luta contra as contradições que geram as

desigualdades. A preocupação com o atendimento das desigualdades é acompanhada de

uma despreocupação com as suas forças causais.

Desta forma, o conjunto de ações e benefícios direcionados para segmentos da

população que passam por estes testes de meios se conjuga com a assistencialização das

políticas sociais, que tem sua configuração concreta numa perspectiva focalizadora e

privatizante. Como consequência a política de Assistência Social restringe-se a atender

123 Podem acessar o BPC as pessoas com necessidades especiais consideradas incapacitantes para o trabalho e os idosos maiores de sessenta e cinco anos, que é o primeiro recorte, e que tenham conjugada a estas condições renda familiar de até um quarto do salário mínimo, hoje de R$ 465,00 (R$ 116,25). Em 2005 o BPC atendia a cerca de 2,2 milhões de pessoas (entre idosos e pessoas com deficiência) dentre os mais pobres, somando cerca de R$ 8,5 bilhões em recursos (Lavinas, 2007, p. 59). O governo dever arcar com os custos dos benefícios independente do número de demandantes, desde que estejam “classificados” dentro dos critérios supracitados, diferente dos programas de transferência de renda, como o PBF, que tem metas limitadas de beneficiários.

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precariamente aqueles setores da população que não podem acessar estes serviços no

mercado e aqueles que não obtêm proteção social como decorrência do seu vínculo

empregatício.

Constituir políticas de proteção social no bojo da Seguridade Social necessita, a

nosso ver, da retomada da concepção inscrita na Constituição Federal, avançando em

relação aos seus limites. Entendemos que as inseguranças, vulnerabilidade e fragilidades

apontadas pela PNAS/SUAS emergem da contradição entre capital-trabalho, e nesta

leitura não figuram como expressões da “questão social”.

Mas se não se rompem as “inseguranças”, vulnerabilidade e fragilidades

oriundas do conflito capital-trabalho com “uma” política social, não poderão ser

rompidas com a política de Assistência Social mesmo que ampliada. Tal como falamos

anteriormente não existe intervenção no social que possa atingir esse objetivo sem estar

amparada por uma política econômica que lhe garanta funcionamento para atender a

estas necessidades.

Portanto, a nosso ver, não se trata de ressignificar a PNAS e o SUAS, de lutar

por uma “outra” ou uma Assistência Social “melhor”, mas de entender primeiramente:

sua função compensatória e “razão de ser” circunscrita, a sua relação com as demais

políticas sociais. Entendemos que seja necessário propor ações no âmbito da Assistência

Social para além dos programas e projetos a ela circunscritos hoje e, em segundo lugar,

compreender que o processo de assistencialização, conforme o caracterizamos, se dá

concretamente na realidade, e que seus elementos e determinantes encontram-se hoje

pulverizando a Seguridade Social. Reconhecer a existência do processo de

assistencialização nas políticas sociais é condição para acertarmos nas ações que

precisam ser propostas para consolidar a Assistência Social como política de Seguridade

Social, ou seja, é condição da ação a análise que fazemos acerca da configuração das

políticas sociais.

A relação da Seguridade Social, e da Assistência em particular, com o debate do

direito ao trabalho, nos permitirá pontuar brevemente como o processo de

assistencialização das políticas sociais escamoteia as contradições fundantes da

sociedade capitalista e constituem uma cultura da “exclusão” e “inclusão” via políticas

fragmentadas no bojo da reestruturação produtiva e desregulamentação das relações de

trabalho e das garantias de direitos atreladas a esta vinculação.

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2.2 – Trabalho e Assistência Social

A relação da Seguridade Social com o trabalho e as políticas de proteção social

ao trabalhador passa pela discussão do direito ao trabalho e das garantias vinculadas ao

seu exercício e como se configuram estas medidas no interior das políticas sociais. Na

Assistência Social em particular os programas de transferência de renda adquirem

centralidade como forma de integração dos “excluídos”124.

O desemprego estrutural e a crise são os sintomas mais evidentes de uma

conjuntura de exponencial ampliação das desigualdades. A organização dos

trabalhadores, por sua vez, também está mediada pelas condições de inserção no

mercado de trabalho, na forma em que se estabelecem vínculos e em que estão

assistidos por mecanismos de proteção social e reprodução da sua força de trabalho.

Tendo em vista o entendimento da importância da relação entre Asssitência e

trabalho, faz-se necessário remetermos à sua categorização. Para Lukács (apud Lessa,

1996) o conceito de trabalho é sinônimo da transformação teleologicamente posta da

natureza, ou seja, uma atividade eminentemente humana, com meios e fins, que é

planejada antes da sua execução. Desta forma,

O único pressuposto da ontologia lukacsiana é retirado diretamente de Marx: os homens apenas podem viver se efetivarem uma contínua transformação da natureza. Diferentemente do que ocorre na esfera biológica, essa transformação da natureza é teleologicamente posta; seu resultado final é previamente construído na subjetividade sob a forma de uma finalidade que orientará todas as ações que virão a seguir. Essa transformação teleologicamente posta da natureza, após Marx, Luckács denomina de trabalho (Lessa, 1996, pp. 9-10).

O ser social se produz e reproduz num determinado modelo de sociedade, em

relações mediadas por uma linguagem e por uma forma de trabalho, portanto “já no seu

momento primordial, o ser social comparece como um complexo constituído, pelo

menos, por três categorias primordiais: a sociedade, a linguagem e o trabalho” (Lessa,

1996, p. 10).

Esta atividade põe ao homem a condição de transformar e ser transformado, pois

ao atender suas necessidades o homem cria novas necessidades e habilidades. A forma

124 Entendemos que o conceito de “exclusão” escamoteia a “questão social” ao denominar a população pauperizada como “excluída” e considerando o “fenômeno” da pobreza sem explicar sua funcionalidade na reprodução a ordem capitalista, nem como resultado da produção e concentração de riquezas na mesma medida em que produz o pauperismo. Como afirma Maranhão (2008) “Com a teoria da ‘exclusão social’, temos diante de nós um conceito que mais obscurece do que esclarece a totalidade das relações sociais em que o fenômeno está envolvido, e, por isso, deixa de apreender as condições concretas que fazem do desemprego crescente, e da pauperização ampliada, parte constitutiva da dinâmica social contemporânea” (p. 96).

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de exteriorização do homem está determinada pela forma de sociedade em que ele vive,

“a exteriorização da individualidade é também uma exteriorização de um dado patamar

específico de desenvolvimento social (...) em poucas palavras: ao transformar o real, o

sujeito também se transforma” (Idem., p. 11).

ao transformar a natureza, o indivíduo também se transforma. Primeiro, porque desenvolve novas habilidades. Em segundo lugar porque, para vencer a resistência que o ser opõe à sua transformação em objetos construídos pelos homens, é decisivo que venha a conhecer os nexos causais e as determinações mais importantes do setor da natureza que deseja transformar. Toda objetivação resulta em novos conhecimentos e novas habilidades – sendo breve, em novas possibilidades, e por isso, ao transformar a natureza, o indivíduo também se transforma (Idem., p. 11).

O homem é produto da sociedade, das relações sociais que nela se desenvolve e

da forma como se objetiva nela. A contradição fundamental da sociedade capitalista é a

apropriação privada dos meios de produção e a exploração do trabalho que opõe duas

classes fundamentais: os capitalistas por um lado e os trabalhadores por outro.

A dimensão genérica do ser social é dada pelo trabalho, só é possível como atividade coletiva: o próprio ato individual do trabalho é essencialmente histórico-social. Ora o trabalho vivo só se realiza mediante o consumo de instrumentos, matérias e conhecimentos legados por gerações anteriores. Resultados esses que trazem em si condensação de trabalho corporificado já realizado ou trabalho passado, atestando o caráter social do trabalho. Este expressa-se essencialmente no fato de que o homem só pode realiza-lo através da relação com outros homens. E só pode tornar-se homem ao incorporar à sua vida, à sua própria atividade formas de comportamento e idéias criadas por gerações precedentes. É neste sentido que o indivíduo concreto é, em si mesmo, um produto histórico-social (Iamamoto, 2001, pp. 43-44).

A classe trabalhadora, tendo em vista que possui somente a sua força de trabalho

e depende de sua venda para sua reprodução, é, por isso, a maior interessada na

alteração dos patamares de concentração e de distribuição de renda e da ampliação do

acesso à riqueza socialmente produzida. Mas estas melhores condições, ainda que já

tenham alcançado patamares diferenciados nos países centrais, possuem limites

endógenos ao sistema em que está situada.

Tendo em vista que a concentração de renda é determinada essencialmente pela

natureza da apropriação privada da riqueza produzida, não há, no interior da ordem

burguesa, a possibilidade de um “salário justo”. Como afirmava Marx (s.d.), uma

jornada de trabalho justa e um salário justo é incompatível com a ordem capitalista, é

necessário superá-la, abolindo o trabalho assalariado (Idem):

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A classe operária deve saber que o sistema atual, mesmo com todas as misérias que lhe impõe, engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução econômica da sociedade. Em vez do lema conservador de: “Um salário justo por uma jornada de trabalho justa!”, deverá inscrever na sua bandeira esta divisa revolucionária: “Abolição do sistema de trabalho assalariado!” (s.d., p.378).

Para o autor, o trabalho assalariado já é a organização vigente no capitalismo,

não pode ser, portanto, esta, a bandeira de luta dos trabalhadores que buscam a ruptura

com a sua condição de opressão. Nesse sentido, concordamos que a idéia de que

o trabalho assalariado já é a organização existente, a organização burguesa do trabalho. Sem ele não há capital, nem há burguesia, nem sociedade burguesa. Um ministério especial para o trabalho! E os Ministérios da Fazenda, Comércio, Obras Públicas não são os ministérios burgueses do trabalho? Junto a esses, um ministério proletário do trabalho tinha que ser, necessariamente, o ministério da impotência, o ministério dos piedosos desejos (Marx e Engels, s.d., p.118).

O primado liberal do trabalho tem como princípio a manutenção da vida através

da venda da força de trabalho, através do salário. Boschetti (2004) destaca que são

contraditórias as iniciativas que não passam diretamente por esta mediação, como a

renda mínima, que fornece recursos para famílias com patamares de renda rebaixados,

caracterizando as linhas de pobreza e indigência.

O primado liberal do trabalho ou, mais precisamente, do trabalho assalariado, materializou na história o princípio que o homem deve manter a si e à sua família com os ganhos de seu trabalho, ou com a venda da sua força de trabalho. (Polanyi, 1980). Visto que este princípio sustenta e funda a organização socioeconômica capitalista, a perspectiva e as iniciativas de instituição e garantia de renda por meio de políticas assistenciais, sob a forma de “renda mínima”, portanto dissociadas do exercício do trabalho, são profundamente permeadas por debates teóricos tensos, conflituosos e, como não poderia ser diferente, orientadas por perspectivas políticas e ideológicas antagônicas (Boschetti, 2004, p.66).

Para Boschetti “[a assistência é] uma política em constante conflito com as

formas capitalistas de organização social do trabalho” (2004, p. 66). A autora questiona

qual é o campo reservado à Assistência numa sociedade fundada no primado liberal do

trabalho: “Direito de cidadania, política compensatória, política de complementação

e/ou substituição de renda, política de promoção e/ou geração de emprego?” (Idem). No

interior da assistência social figuram iniciativas que tem por objetivo conjugar renda

mínima e capacitação para inserção no mercado de trabalho.

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Nos países centrais, destaca Boschetti (2004), o Estado Social foi orientado pelo

primado do trabalho como direito e foram garantidos direitos derivados do exercício do

trabalho.

As principais políticas que conformaram e consolidaram o Estado Social nos países capitalistas desenvolvidos foram orientadas pelo primado do trabalho e instituíram-se como direito do trabalho. Na impossibilidade de garantir o direito ao trabalho para todos, os Estados capitalistas desenvolvidos garantiram direitos derivados do exercício do trabalho (Boschetti, 2004, p. 68).

Nos países periféricos, como o Brasil, nunca se estabeleceram condições para a

garantia de pleno emprego, nem para criar mecanismos de proteção social para a

totalidade da população, nem através dos direitos derivados do exercício do trabalho

com vínculo formal, nem através de outras formas que permitissem a garantia de

direitos de cidadania de corte universal. Mesmo com a aprovação da Constituição

Federal de 1988 e o reconhecimento da Assistência Social como um direito de

cidadania, ainda existem importantes setores da população brasileira sem garantias de

proteção social. Uma das causas desta “desproteção” localiza-se na existência de

critérios de inserção utilizados para definir os destinatários dos programas

desenvolvidos no âmbito da política de Assistência Social. Mas como indica Boschetti,

baseada em dados oficiais,

No Brasil, os trabalhadores sem trabalho, somados aos que participam do chamado “mercado informal” de trabalho e que não estão assegurados pela previdência social totalizam a metade (em torno de 51 milhões de pessoas) da população ocupada. E os trabalhadores que não têm acesso a esses direitos devido a essa lógica perversa são os mais pobres, já que 79% dos trabalhadores não segurados (em torno de 25 milhões de pessoas) possuem renda inferior a dois salários mínimos mensais, e 79% dos trabalhadores que possuem uma carteira de trabalho assinada (em torno de 18 milhões de trabalhadores) recebem abaixo de cinco salários mínimos mensais (2004, p. 69).

O processo de reestruturação produtiva recoloca em outro patamar a discussão

do direito ao trabalho, pois o avanço das forças produtivas garantiu ao capital a

liberação de trabalho vivo, por conta da incorporação de trabalho morto, via as novas

tecnologias existentes e em desenvolvimento125. Este avanço não se traduz na melhoria

das condições de trabalho e na redução da jornada de trabalho.

125 Iamamoto (2008) destaca esta inversão da incorporação de trabalho morto pela forma de organização do trabalho pelo capital: “O processo de trabalho organizado pelo capital é presidido por uma inversão: o trabalho vivo é simples meio de valorização dos valores existentes expressos nos meios de produção. Tem-se o domínio do trabalho objetivado nos meios de produção, nas coisas, sobre o trabalho vivo, ou seja, sobre o trabalhador” (2008, p. 249).

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Este avanço das forças produtivas e redução do trabalho vivo na

contemporaneidade implica num desemprego estrutural, o que, por sua vez, contribui

também para a desmobilização da organização dos trabalhadores e conduz a um refluxo

na luta pela reversão das condições precárias de trabalho e da desestruturação dos

direitos de proteção ao trabalho.

Temos presente um processo de intensificação da exploração da força de

trabalho e da redução de direitos. Mas a história nos mostra que a intervenção sobre a

regulamentação do trabalho sempre se deu por meio das tensões no enfrentamento entre

capital e trabalho, o que demonstra as possibilidades de conquistas por parte dos

trabalhadores, ainda que o capital seja “o lado mais forte” nesta disputa.

Pelo que concerne à limitação da jornada de trabalho (...) nunca foi ela regulamentada senão por intervenção legislativa. E sem a constante pressão dos operários agindo por fora, nunca essa intervenção se daria. Em todo caso, este resultado não teria sido alcançado por meio de convênios privados entre os operários e os capitalistas. E esta necessidade mesma de uma ação política geral é precisamente o que demonstra que, na luta puramente econômica, o capital é a parte mais forte (MARX, s.d., p.375).

Parece que o enfrentamento das contradições da ordem burguesa e a disputa

interna esbarram em um limite: o direito ao trabalho nunca se universalizou e não será

universalizado nos marcos do capitalismo, pois a universalização do trabalho significa a

socialização dos meios de trabalho126.

O debate acerca do trabalho assalariado e do direito ao trabalho tem importância

significativa no entendimento acerca do processo de assistencialização das políticas

sociais, na medida em que o histórico da Seguridade Social e da consolidação de

conquistas no âmbito das garantias de proteção social se produziu como fruto das lutas

da classe trabalhadora. Precisamos nos questionar sobre a estruturação dos direitos

numa conjuntura em que as lutas classistas encontram-se num momento de refluxo.

Nesta mesma conjuntura temos a estruturação de medidas de proteção social no campo

da Assistência Social. Estas podem, portanto, serem consideradas conquistas ou

estratégias do capital?

126 O trabalho livre, como meio de atendimento às necessidades e desenvolvimento das capacidades humanas, se inscreve numa perspectiva emancipatória que supõe o fim do trabalho assalariado, de sua forma alienada, que limita o desenvolvimento destas capacidades e assume uma função de meio de vida oposta ao trabalho livre, horizonte da construção de uma nova ordem societária, oposta ao capitalismo.

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Como vimos, os programas e projetos estruturados no âmbito da Assistência

Social estão perpassados pela lógica da administração da pobreza, respondem às

necessidades fundamentais de reprodução social dos segmentos mais pauperizados da

classe trabalhadora, mas, no entanto, repõem as expressões da “questão social” em

outros patamares, pois não são oferecidas garantias no âmbito das políticas sociais ao

atendimento das necessidades sociais numa perspectiva ampliada da Seguridade Social.

A Seguridade Social, ancorada na proteção ao trabalhador e nas garantias de sua

reprodução social, fundamentalmente, responde parcialmente às necessidades desta

classe. Temos, portanto, uma tensão entre a garantia de atenção a essas necessidades,

sob a perspectiva dos trabalhadores, e seu manejo segundo os interesses do capital.

À política de Assistência Social caberia assistir aos segmentos não contemplados

pelas garantias previdenciárias derivadas dos direitos de proteção ao trabalhador127. No

entanto, num período no qual o desemprego se torna estrutural, as formas de inserção no

mercado de trabalho estão cada vez mais precarizadas, a parcela da população que se

encontra protegida pela Previdência Social e pela legislação trabalhista vem sendo

diminuída substancialmente. A pauperização crescente dos trabalhadores, a ampliação

do exército industrial de reserva, o recrudescimento das lutas e repressão aos

movimentos mais expressivos imprimem uma conjuntura de retrocesso nos direitos e

garantias já conquistados e constituem um momento não muito alentador para novas

conquistas.

Dentre outras determinações, há a necessidade imanente no modo de produção

capitalista de manter uma parcela da classe trabalhadora à margem do “mercado de

trabalho” – de forma permanente e/ou temporária – para que o capital disponha de um

exército industrial de reserva de acordo com suas necessidades. O mais próximo que se

chegou ao pleno emprego ocorreu nos países centrais, com a organização da produção

tendo como base os princípios fordista-tayloristas, articulado a uma forte regulação do

Estado, dando lugar aos chamados Estados de Bem-Estar Social, numa conjuntura

diferenciada, numa fase de expansão do capital e na qual, inclusive, projetos societários

127 O trabalhador precarizado (ou desempregado) sem vínculos previdenciários não possui garantias na ocorrência de interrupções temporárias e/ou permanentes. Caberia a Assistência assisti-los, quando não houvesse vínculo com a Previdência Social, política contributiva e destinada somente àqueles que tiverem um mínimo de contribuições ou estejam cobertos por legislações específicas (como o trabalhador rural e doméstico) provendo-lhe condições para o atendimento às suas necessidades de reprodução social.

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distintos conviviam no globo e o capitalismo tinha um modelo societário concreto para

competir: o comunismo.

Hoje, a diferença central, em relação ao passado, é o diminuto e restringido horizonte economicamente expansivo do capitalismo, no quadro da crise geral do assalariamento, dos mecanismos públicos de proteção aos riscos sociais do trabalho e da organização política dos trabalhadores e no marco da expansão e hipertrofia do capital financeiro, do desemprego massivo e da subtração das responsabilidades sociais do Estado (Mota, 2008, p. 26).

No centro da resposta em relação à expansão da pauperização coloca-se a

ampliação da política de Assistência Social, que atende ao público mais empobrecido,

com foco no combate à pobreza por meio de programas e projetos focalizados e restritos

a administração de índices que a medem128.

A relação entre Seguridade Social e trabalho na constituição dos Estados de

Bem-Estar Social sempre foi central e no Brasil, mesmo que seus elementos estivessem

presentes apenas no bojo da legislação orientada pela Constituição de 1988, não foi

diferente. No entanto, o desenvolvimento de políticas com objetivo de pleno emprego –

que pode contribuir para ampliar a cobertura previdenciária – não foi desenvolvida em

nenhum momento da trajetória histórica brasileira. Na conjuntura contemporânea,

diante das orientações dos organismos multilaterais, são gestadas diretrizes para que se

constituam políticas de combate à pobreza, junto com as reformas nas políticas sociais.

Mota (2008) entende que uma nova estratégia está em curso, pois

está em processo de consolidação uma nova estratégia de dominação política: uma nova reforma social e moral da burguesia (...) que se realiza através do atendimento de algumas necessidades objetivas das classes trabalhadoras, integrando-as às sua lógica reprodutiva. Essa reforma implica numa passivização da “questão social”, que se desloca do campo do trabalho para se apresentar como sinônimo das expressões da pobreza e, por isso mesmo, objeto do direito à assistência e não ao trabalho (2008, p.142).

A relação entre política social e trabalho, no contexto dos programas de combate

à pobreza, tem uma orientação central: gerar condições de auto-sustentabilidade das

famílias através da geração de renda, por meio da autonomia, solidariedade, construção

de redes de ajuda mútua e outras iniciativas periféricas ao mercado de trabalho chamado

de formal (ou de trabalho protegido ou considerado “decente”).

128 Maranhão (2008) destaca que com “a expansão da superpopulação relativa, cria-se assim tanto uma população proletarizada, sempre pronta a atender aos anseios do capital por trabalho, como, também, uma massa de desocupados duradouros e miseráveis que estão totalmente espoliados dos mais básicos meios de subsistência” (p. 105).Estes programas têm por objetivo prestar atendimento no sentido de “aliviar” a pobreza destes últimos.

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A expansão do direito à Seguridade Social apenas através da Assistência Social

pode significar a perpetuação da segmentação ou dualização da proteção, da reprodução

destas famílias de forma precária e insegura, sem proteção por parte do poder público.

Ainda é a previdência social que garante cobertura nos casos de incapacidade para o

trabalho quando se trata dos contribuintes. Nas formas precarizadas de atividades

econômicas em geral os patamares de renda continuam não alcançando o mínimo que

seja suficiente, inclusive, para contribuir de forma autônoma com a previdência,

passando portanto a serem protegidos pela Assistência Social ou ficando à mercê da

solidariedade social, caso não possam acessar os serviços privados.

O processo que se empreende na década de 1990, e que se aprofunda com os

anos 2000, conjuga privatização/mercantilização de bens e serviços públicos vinculados

à Seguridade Social com a expansão da Assistência Social numa dada perspectiva.

Acerca desta questão Mota manifesta que esta

era uma tendência inscrita na realidade, no processo de restauração capitalista e de financeirização e de expansão das fronteiras e da supercapitalização. Momento em que transformam os serviços públicos em serviços mercantis a despeito da assistência social ser um serviço desmercantilizado e, por isso mesmo, mantinha uma unidade contraditória. Enquanto se expandia um serviço desmercantilizado, se aprofundava a privatização de outros que também são constitutivas de direito e nem por isso deixaram de ser objeto de precarização e de dificuldade de expansão (Mota, 2009).

É a Assistência Social que vem responder demandas dos trabalhadores

precarizados ou sem qualquer vínculo de trabalho, visto o destaque desta política social.

Estes trabalhadores não acessam aos mecanismos de proteção previdenciários.

Ao lado da mercantilização novo processo se instala e que é a expulsão da presença da previdência e a inserção no campo da assistência armando reiteradamente, e a existência do cidadão-pobre, porque apesar de ser trabalhador ele é precarizado, ele é desprotegido, é temporariamente desocupado ou ele é definitivamente expulso do campo da produção e, portanto, também expulso dos mecanismos da previdência social (Mota, 2009).

A política de Assistência Social não necessariamente alcança a este público,

visto que para inserção em determinados programas, projetos e benefícios definem um

determinado perfil de renda que os caracteriza como pobres ou extremamente pobres.

Sem dúvida, esta política não oferece garantias equiparadas às da previdência social

pelos próprios critérios que determinam o acesso aos benefícios e serviços.

A classe dominante denomina, assim, de “excluídos” aqueles que ainda não se

inseriram no mercado, os considerados incapazes para o trabalho, seja por limitações

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“físicas” permanentes ou temporárias – os idosos, pessoas com deficiência, crianças e

mulheres – e aqueles que por necessidades não-permanentes não tem sua força de

trabalho incorporada no mercado, daí a necessidade de estratégias de “inclusão”, já que

a lógica imprimida pela burguesia qualifica o mercado para “dar conta” da incorporação

de todos e cabe ao Estado capacitar aos “inaptos” ou “incapazes” ou absorver suas

demandas, quando estas limitações forem consideradas irreversíveis.

A lógica imperativa da “inclusão” é dar à população a possibilidade de

qualificação e educação que nunca teve, por meio de capacitação profissional, cursos,

acesso ao ensino básico, dentre outros – resgatando a histórica “dívida social” – para

que sejam equiparadas às condições básicas e permitir a concorrência, seja através da

sua inserção no mercado de trabalho (formal ou informal) ou pela via do consumo129.

A idéia da mobilização e participação popular é uma das principais temáticas no

debate da Assistência Social, e no âmbito das demais políticas sociais. No entanto, o

público atendido pela política de Assistência Social possui particularidades na sua

trajetória, composição e capacidade concreta de articulação.

As condições para colocar a pauta dos direitos com base em interesses comuns à

classe trabalhadora e que contemplem os diferentes segmentos supõe um nível de

consciência de classe que não restrinja a luta mais geral dos trabalhadores apenas à

manutenção de direitos já conquistados e ameaçados, mas uma característica dos tempos

atuais é a constante ameaça destes interesses, que põem estes movimentos em posição

defensiva, o que também é necessário para a manutenção de conquistas históricas.

Iamamoto (2001) destaca que é o movimento mais amplo de apropriação

coletiva e organização destes interesses que caracterizam o movimento das classes.

A expressão política das classes supõe sua existência social objetiva, isto é, condições históricas que tornem possível interesses sociais comuns e sua apropriação coletiva pelos indivíduos sociais. Interesses que ultrapassam a mera dimensão econômico-corporativa, elevando-se a uma dimensão universal. Esse movimento dos sujeitos sociais, de apropriação coletiva e organização de seus interesses, revela-se como processo de luta e de formação da consciência de classe. Adquire visibilidade pública através da ação voltada à defesa de seus interesses comuns ante os das demais classes, dotando-os de universalidade (Iamamoto, 2001, p. 82).

Mota (2008) destaca a Assistência Social, dentre as políticas sociais, passa a ser

operada como “a” medida de proteção social, o que lhe imprime a condição de mito

129 Cf. Capítulo 1, a análise dos programas e projetos de Assistência Social, no item 1.4.

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social. Infunde-se, portanto, o conteúdo ideológico de que, mesmo restringindo-se à

ampliação desta política, teríamos a alteração da lógica da reprodução da pobreza e da

desigualdade social. Na verdade, as condições em que se inscreve prática e

ideologicamente são determinadas pelas condições estruturais de precarização do

trabalho e desemprego estrutural. Em suas palavras:

A Assistência Social, mais do que uma política de proteção social, se constitui num mito social. (...) mais pela sua condição de ideologia e prática política, robustecidas no plano superestrutural pelo apagamento do lugar que a precarização o trabalho e o aumento da superpopulação relativa tem no processo de reprodução social (Mota, 2008, p.141).

Outro aspecto destacado pela autora é o momento de refluxo da organização dos

trabalhadores. Inscrito nesta conjuntura, temos o deslocamento do significado fundante

da “questão social”, a contradição entre capital e trabalho, para a naturalização de suas

refrações:

a fragilização do movimento operário, [adquire] um caráter de resistência (...). Este aspecto implica num “deslocamento” do significado da questão social, que se afasta da relação entre pauperização dos trabalhadores e acumulação capitalista, para ser identificada genericamente com as expressões objetivas da pobreza (Mota, 2008, p.32).

A lógica liberal do trabalho perpassa fundamentalmente as políticas sociais de

previdência e assistência, pois tem sua relação direta com a inserção – ou não –no

mercado de trabalho. Conforme destaca Boschetti (2008), a Seguridade Social no

capitalismo se estrutura com base na organização do trabalho, com diferentes

expressões nas distintas conjunturas.

Nos marcos do capitalismo, a Seguridade Social, em todos os países em que se desenvolveu, mesmo considerando as diferenças da sua configuração – visto que não se instituiu da mesma forma em todos os países –, se estrutura com base na organização social do trabalho. Diante da incapacidade do modo de produção capitalista de assegurar trabalho para todos os trabalhadores, a seguridade social assume a função de garantir direitos derivados do trabalho para os trabalhadores que perderam, momentânea ou permanentemente, sua capacidade laborativa (Boschetti, 2008, 176).

Na contemporaneidade os processos de desregulamentação do trabalho tornam,

segundo Yasbek (2002), o trabalho assalariado inseguro, o que penalizaria os

trabalhadores. Destaca ainda a Seguridade Social como sistema que oferece proteção

social de acordo com a inserção no mercado.

Nesse novo contexto de precarização e subalternização do trabalho à ordem do mercado, a questão social se expressa por insegurança do trabalho assalariado e na penalização dos trabalhadores. Pois é do trabalho, de sua proteção e garantia

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que se construíram, em um processo de conquistas, os direitos sociais, a Seguridade Social (Yasbek, 2002, p. 52).

O modelo de Seguridade Social e a proteção social que pode ser oferecida por

ele se ancoram no direito ao trabalho e coloca limites estruturais que não admitem sua

consolidação na sociedade capitalista, visto que pressupõe a universalização deste

direito. Para Boschetti (2008) “este modelo só universaliza direitos sociais se

universalizar, igualmente, o direito ao trabalho, já que ela é condicionada ao acesso a

um trabalho estável e que permita a contribuição à seguridade social” (p. 177).

Nesta lógica, só tem acesso aos direitos da seguridade social os chamados “segurados” e seus dependentes, pois estes direitos (...), são entendidos como direitos decorrentes do direito do trabalho, destinando-se apenas àqueles inseridos em relações formais e estáveis de trabalho ou que contribuam como segurados especiais (Boschetti, 2008, 176).

Dependendo do mercado de trabalho os países periféricos tem maior prejuízo no

que diz respeito à cobertura por conta da relação entre emprego formal e informal.

“Desde 1993 aumenta a proporção dos empregados sem carteira assinada, destituída dos

direitos trabalhistas (...). O índice dos desempregados sem carteira assinada passa de

21,1% em 1995 para 24,2% do total de ocupados em 2003” (Iamamoto, 2008: 37).

A defesa do direito ao trabalho – da participação no mercado formal de trabalho e

da cobertura/proteção destinada a estes trabalhadores – esbarra no significado do

trabalho na ordem burguesa, que parte de duas premissas: a propriedade privada dos

meios de produção e a exploração da força de trabalho, ou seja, a defesa do direito ao

trabalho implicaria, em princípio, na defesa do trabalho assalariado, trabalho explorado.

Um dos mecanismos em destaque para a participação política dos diversos

segmentos da classe trabalhadora – defendido como espaço estratégico pelo Serviço

Social – são os espaços de controle social que, desde a década de 1980, são definidos

como estratégia de participação popular no controle das políticas sociais públicas e

também na sua formulação e monitoramento. A LOAS preconiza em suas diretrizes “a

participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das

políticas e no controle das ações em todos os níveis" (Art. 5º, II) estabelecendo

orientações para o exercício do controle social. Estão previstas a participação do

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governo, trabalhadores e usuários da política de Assistência Social nos conselhos e

conferências da política130.

Martins (2009)131 destaca que é necessário reconhecer os avanços da política,

mas que, no entanto, ainda não rompem com a subalternização dos usuários neste

processo, havendo a necessidade de redesenhar o controle social e sua participação.

É preciso reconhecer que os recentes avanços no campo da política pública de assistência social têm produzido consideráveis alterações no modo de ver e tratar a política. Porém, são ainda insuficientes para romper com os processos de subalternização dos usuários no acesso aos serviços e benefícios, assim como para a sua participação política nos processos de construção de sua autonomia. Ainda hoje persiste o uso clientelista da assistência social assim como o deficitário investimento nos serviços de modo especial. Nessa direção, a mobilização para a implementação de diversas estratégias que (re) desenhem o controle social deve ser intensa e urgente (Martins, 2009, p. 8).

A Assistência Social, com a PNAS e o SUAS, nos remete a noções que

fundamentam as possibilidades de concretizar formas de inserção da população atendida

por esta política social. Mas compreendemos que esta participação depende da sua

capacidade organizativa e de mobilização para além do espaço dos conselhos e

conferências. Martins (2009) destaca que

O exercício do controle social não depende apenas da criação de instâncias institucionais como os conselhos, mas da capacidade dos movimentos, organizações, fóruns, comissões, grupos e outras formas de articulação, por meio dos quais os atores da sociedade civil possam debater, alterar e gerar uma cultura de participação e de construção de direitos (Martins, 2009, p. 14).

Entendemos que não se pode superestimar a capacidade, mesmo com a inserção

organizada destes segmentos nos conselhos, de alteração na lógica dos conselhos, nos

quais o maior peso decisório é do segmento governamental para aprovação de suas

pautas, imprimindo em alguns momentos processos de cooptação das entidades que

participam destas instâncias. O avanço na consecução de direitos está, inclusive, para

além de pautas propostas por estes segmentos de usuários, na luta mais ampla dos

trabalhadores por direitos de caráter permanente, aliados a uma política econômica

redistributiva, como já afirmamos anteriormente.

Sem dúvida é um quadro que se apresenta desde a regulamentação da LOAS

com as entidades representativas atuando nas “vagas” destinadas aos usuários na 130 Os conselhos são órgãos colegiados, de caráter permanente e deliberativo. Um dos desafios históricos e se coloca até os dias atuais é a garantia da participação dos usuários nos conselhos, normalmente representados pelas organizações e instituições que lhe prestam serviços, não diretamente pelos que acessam a estes serviços. 131 No Caderno de textos para a Conferência Nacional de Assistência Social com o tema Participação e Controle Social no SUAS (CNAS /2009).

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composição dos conselhos, entretanto, o debate dos conselhos também encontra

limitações na medida em que se configuram como esfera de construção da política em

parceria com o Estado e sua representação.

Não consideramos que aos conselhos deva ser atribuído todo o peso de avanço

em conquista ou que se mistifique a participação dos usuários como alavanca para a

conquista e consolidação de direitos, visto as características próprias desta política e,

sobretudo, da concepção e do funcionamento concreto dos conselhos. Por outro lado,

sem fomentar formas de mobilização não será possível avançar concretamente na

direção da afirmação de direitos e garantias de condições de vida para os trabalhadores.

As formas de fomento à mobilização inscritas na dimensão política e educativa da

prática profissional voltadas a população mais pauperizada são limitadas pelas próprias

garantias de reprodução social destes segmentos têm (ou não) acesso e também são

perpassadas pelo processo de assistencialização das políticas sociais.

Como afirmamos anteriormente a composição da organização dos trabalhadores

deve mediar a luta pela afirmação e consolidação de direitos, mas a inserção das

chamadas forças populares ou segmentos subalternos sempre foi um desafio, que há

mais de quinze anos – desde o estabelecimento das legislações que preconizam a

participação popular por meio dos conselhos – não há efetivamente projetos no âmbito

da política de Assistência Social que dêem conta desta inserção parcial, mesmo porque

as condições em que se estruturam esta política estão pré-determinadas pela forma como

é concebida e operacionalizada.

Esta composição tem um determinado sentido, um objetivo, que articulados com

um determinado recorte da Assistência Social voltada para o combate à pobreza

conformam uma ideologia e uma “pedagogia” das políticas sociais, conforme destaca

Mota (2009):

toda Seguridade Social tem uma base material, ela existe a partir de determinações objetivas na dinâmica da sociedade, que transitam da esfera das estruturas materiais, econômicas para a esfera da política e quando transitam para a esfera da política estes mecanismos de reprodução. Embora tenham uma relativa autonomia, eles reiteram o campo da reprodução social e podem, (...) sem deixar de ser uma política, sem deixar de ser um direito, também se transformar numa ideologia (Mota, 2009).

Entende-se, a nosso ver, que esta política não tem a participação efetiva dos seus

usuários no controle social e que esta seria uma das formas de garantir um

tensionamento dentro dela, assim como os avanços necessários para a constituição de

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direitos, de políticas estatais, para aqueles que necessitam e demandam os programas e

políticas de assistência social.

Ao assistente social, considerado como um dos mediadores do acesso a serviços,

se atribui a responsabilidade pela mobilização dos sujeitos que são atendidos por esta

política através do uso de metodologias participativas no uso de sua “criatividade” para

a formulação de estratégias em seu trabalho cotidiano. É propriamente o rebatimento

das tendências do processo de assistencialização das políticas sociais na prática

profissional (e nas suas estratégias diante dela) o objeto da próxima seção.

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2.3 Rebatimentos do Processo de Assistencialização das Políticas Sociais no Serviço

Social

Conforme pontuamos o reordenamento das políticas sociais e o processo de

assistencialização das mesmas possui rebatimentos concretos para o Serviço Social,

visto que estas políticas são os principais espaços ocupacionais para a profissão.

Buscamos ilustrar como estas características podem ser observadas na intervenção

destes profissionais relaciona-se com o superdimensionamento da dimensão política

presente na atuação profissional que se expressaria em medidas propostas por estes

sujeitos no fomento da mobilização dos usuários que atende, especialmente na

Assistência Social.

Assim destaca Iamamoto (2004) quando pondera o reordenamento das políticas

públicas e os rebatimentos nos espaços ocupacionais compostos por elas: Observa-se uma clara tendência de deslocamento das ações governamentais públicas - de abrangência universal, - no trato das necessidades sociais em favor da privatização, instituindo critérios de seletividade no atendimento aos direitos sociais. Esse deslocamento da satisfação de necessidades da esfera do direito público para o direito privado ocorre em detrimento das lutas e de conquistas sociais e políticas extensivas a todos. É exatamente o legado de direitos conquistados nos últimos séculos, que hoje está sendo desmontados nos governos de orientação neoliberal, em uma nítida regressão da cidadania que tende a ser reduzida às suas dimensões civil e política, erodindo a cidadania social. Transfere-se para distintos segmentos da sociedade civil significativa parcela da prestação de serviços sociais, afetando diretamente o espaço ocupacional de várias categorias profissionais, dentre as quais os assistentes sociais. (Iamamoto, 2004, pp. 24-25).

Ainda que o Serviço Social tenha construído um projeto profissional que

apresenta como horizonte uma ordem societária baseada em anti-capitalistas, baseados

no trabalho livre, na socialização dos meios de produção e da riqueza socialmente

produzida, há o desafio do enfrentamento das manifestações da “questão social” ainda

na ordem do capital, que na contemporaneidade subverte a leitura da pobreza e das

desigualdades como constitutivos insuprimíveis do capitalismo. A permanência da pobreza e das desigualdades no quadro das nossas sociedades – ou, mais exatamente, nas formações econômico sociais capitalistas – não resulta da ausência de boa vontade e de esforços ou da fragilidade dos meios técnicos para uma melhor instrumentalização das políticas sociais a ela referidas. Pobreza relativa e desigualdades são constitutivos insuperáveis da ordem do capital – o que pode variar são seus níveis e padrões, e esta variação não deve ser subestimada quando estão em jogo questões que afetam a vida de bilhões de seres humanos. Mas as políticas hoje implementadas para o enfrentamento da pobreza estão longe de afetar positivamente aqueles níveis e padrões (Netto, 2007, p. 159).

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Compreendemos que o desafio posto está entre demandas profissionais e os

projetos profissionais que orientam o exercício dos assistentes sociais. No bojo do

processo de assistencialização das políticas sociais ao Serviço Social se põe o desafio de

atuar e formular respostas no espectro do seu projeto profissional, pois este agente

figura, dentre os gestores, formuladores e executores de ações nestas políticas públicas

e, em particular e com expressividade na Assistência Social com inserção nos três níveis

de governo.

É através da compreensão do espaço em que se situa a intervenção profissional e

as mediações pelas quais está perpassada, que poderemos tecer considerações que nos

levem as respostas para as atuais tendências que se apontam para a intervenção

profissional.

No entanto, soluções não serão empreendidas através de alterações de ordem dos

procedimentos interventivos (técnico-operativa). Netto (2007) afirma que neste espectro

para o Serviço Social se coloca uma negação, ou seja, “tais desafios não se situam no

âmbito de técnicas ou procedimentos interventivos – vale dizer, não se inserem no

circuito instrumental” (2007, p. 165).

O autor localiza o que, a seu ver, o aspecto a ser desvelado pela profissão,

localizado no significado social da profissão (ético-político) que estão circunscritos às

condições dadas para a produção e reprodução das relações sociais na

contemporaneidade. “os desafios profissionais do Serviço Social inscrevem-se no

âmbito da compreensão do significado social da sua intervenção, e este significado só é

inteligível se se elucidarem as condições em que as relações sociais se processam (vale

dizer: produzem-se e reproduzem-se) na sociedade contemporânea” (Netto, 2007, p.

165).

Um dos processos em que há alterações no trato da reprodução social é a forma

que o Estado vem responder à “questão social” e suas manifestações. As alterações

recentes na configuração das políticas sociais põem questões em destaque para o

Serviço Social no seu modo de organização e intervenção em face destas políticas. O

processo denominado “assistencialização das políticas sociais” pode ser observado na

sua dimensão concreta no seu reflexo na prática profissional dos assistentes sociais. A

requisição histórica da profissão se reatualiza e repõe a prática localizada no campo da

“assistência social” destinada aos mais pobres dentro das políticas sociais.

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Referindo-se à dimensão assistencial das políticas sociais, Iamamoto (2000), em

texto redigido em 1981, caracterizava a prática do assistente social relacionando-a

diretamente à prática de assistência, pois a ação profissional, – ainda que perpassada

pela dimensão intelectual na dimensão educativa da prática profissional direcionada a

população atendida (dimensão sócio-educativa) – constituía-se pela prestação de

serviços através dos recursos institucionais disponíveis, através da aplicação de critérios

de acessibilidade e com um caráter predominantemente em torno das necessidades

básicas e urgentes dos mesmos (dimensão assistencial). se realize através da prestação dos serviços sociais, previstos e efetivados pelas entidades a que o profissional se vincula contratualmente. Este tipo de prática faz do Assistente Social um “profissional da Assistência”, já que ele opera com recursos institucionais para a prestação de serviços, racionalizando e administrando sua distribuição, controlando o acesso e o uso desses serviços pela “clientela” (...). A prestação de serviços imediatos em que interfere o Assistente Social contribui para que sejam atendidas as necessidades básicas e urgentes de sobrevivência das classes trabalhadoras, especialmente de seus segmentos mais pauperizados, contribuindo com sua reprodução material. É acoplado a esses serviços buscados pela população que o profissional desempenha suas funções tipicamente intelectuais (Iamamoto, 2000, pp. 40-41).

Tal como se organizam as políticas sociais naquele momento e as requisições

postas à profissão determinavam elementos para a construção de um determinado perfil

profissional. Mesmo em processo de ruptura que se desenhava na década de 1960 de

rejeição ao perfil profissional conservador convivia-se – e se convive no interior da

profissão – com perspectivas moralizadoras, com o Serviço Social estava em busca de

seu espaço “próprio” ou de sua especificidade. Naquele momento a autora já

identificava uma contradição interna à profissão pela negação da dimensão assistencial

que a estigmatizava em contraponto à busca de um campo próprio de trabalho ou uma

especialização (pelo campo de atuação) para sua visibilidade adquirir um novo status

(Iamamoto, 2000, p. 41).

Incorporando, freqüentemente, a ótica da compartimentalização das disciplinas como um dado não-questionável, o Assistente Social tem a sensação de estar presente em segmentos da realidade particulares e particularizados “apropriados” pelas várias disciplinas, sem ter reconhecido o “seu” lugar. Sente a profissão diluída, difícil de ser definida e qualificada (Iamamoto, 2000, p. 42).

A lógica da fragmentação das ciências sociais perpassa também a profissão. A

busca do lugar específico do Serviço Social que figura nas legislações que

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regulamentam a profissão132 está perpassada pelas mudanças no trato da “questão

social” pelo Estado via políticas sociais. A constituição de projeto profissional que

refletisse a auto-imagem da profissão, em seus objetivos e sua direção social se

processou de acordo com o amadurecimento e acúmulo teórico-político da categoria e

pôde-se ver refletido no conjunto de leis que regulamentam seu exercício atualmente

(código de ética, lei de regulamentação, diretrizes curriculares).

Conforme destaca Netto (1999) a formulação dos projetos profissionais refletem

esta auto-imagem e determinam requisitos e prerrogativas para o exercício profissional.

Estas formulações são estruturas dinâmicas que vêm responder também as requisições

dos empregadores – onde figura o Estado centralmente, por meio das políticas sociais –

no bojo da contradição em que operam as medidas para o trato das expressões da

“questão social”.

Os projetos profissionais apresentam a auto-imagem de uma profissão, elegem os valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e funções, formulam os requisitos (teóricos, práticos e institucionais) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem as bases das suas relações com os usuários de seus serviços, com as outras profissões e com as organizações e instituições sociais privadas e públicas (inclusive o Estado, a que cabe o reconhecimento jurídico dos estatutos profissionais). Os projetos profissionais também são estruturas dinâmicas, respondendo às alterações no sistema de necessidades sociais sobre o qual a profissão opera, às transformações econômicas, históricas e culturais, ao desenvolvimento teórico e prático da própria profissão e, ademais, às mudanças na composição social do corpo profissional. Por tudo isto, os projetos profissionais igualmente se renovam, se modificam (Netto, 1999, pp. 4-5).

O acúmulo político que se consolida nestas legislações não é suficiente para

dirimir conflitos internos que continuam a conviver nas formulações teóricas e nas

práticas e podem vir a tensionar o projeto que seja hegemônico naquele momento, assim

132 A profissão é regulamentada pela lei 8.662/1993 (resolução CFAS n° 273/1993) e antes fundamentado pelo decreto nº 994 de 15 de maio de 1962 que regulamentada a lei 3.852/57, que vigorou até 1993. Vigoraram quatro códigos de ética antes de 1993 nos seguintes anos: 1947, 1965, 1975 e 1986. O primeiro (1947) regia-se pela moralidade cristã, o assistente social tinha como dever “Cumprir os compromissos assumidos, respeitando a lei de Deus, os direitos naturais do homem, inspirando-se sempre, em todos seus atos profissionais, no bem comum e nos dispositivos de lei, tendo em mente o juramento prestado diante do testemunho de Deus”. Em 1965, após a regulamentação da profissão, esta perspectiva não está presente, mas a atividade profissional ainda assume uma perspectiva conservadora no qual a zelar pela família, pela sua integridade e estabilidade (art. 6º dos deveres) baseando-se no bem comum e na integração social (art. 7º dos deveres). O código de 1975 é parametrado pela perspectiva do “bem comum”, “como conjunto das condições materiais e morais concretas nas quais cada cidadão poderá viver humana e livremente” e a “justiça social” entendendo justiça social como razão deste bem comum (valores são essenciais à plena realização da pessoa humana). O código de 1986 em sua apresentação afirma que ele expressa diretrizes para a profissão, que são determinadas socialmente e “traz a marca da conjuntura atual da sociedade brasileira” e aponta para garantias de uma “nova proposta da prática dos Assistentes Sociais”. Consolida-se em 1993 o código que orienta o exercício profissional com base em onze princípios fundamentais e na normatização coerentes com o período histórico e a perspectiva que hegemonizava a categoria e suas entidades representativas naquele momento.

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a renovação destas práticas levou ao amadurecimento das reflexões que foram insumos

importantes para a elaboração do código vigente.

todo corpo profissional é um campo de tensões e de lutas. A afirmação e consolidação de um projeto profissional em seu próprio interior não suprime as divergências e contradições. Tal afirmação deve fazer-se mediante o debate, a discussão, a persuasão – enfim, pelo confronto de idéias e não por mecanismos coercitivos e excludentes. Contudo, sempre existirão segmentos profissionais que proporão projetos alternativos; por consequência, mesmo um projeto que conquiste hegemonia nunca será exclusivo (Netto, 199, p. 5).

O código de ética de 1986133 que era marcado pelo perfil da organização da

categoria e suas entidades representativas, que se alinhavam ao movimento social e ao

processo de abertura democrática, com um claro reconhecimento da sua função social

vinculada a reprodução do trabalhador e uma direção social voltada para a garantia de

seus interesses e direitos. Nesse sentido, Vinagre disse:

No plano da reflexão e da normatização ética, o Código de Ética Profissional de 1986 foi uma expressão daquelas conquistas e ganhos, através de dois procedimentos: negação da base filosófica tradicional, nitidamente conservadora, que norteava a "ética da neutralidade", e afirmação de um novo perfil do técnico, não mais um agente subalterno e apenas executivo, mas um profissional competente teórica, técnica e politicamente (Vinagre, 1993).

O código foi revisto em curto prazo, visto que deixou de normatizar e

regulamentar dimensões éticas e profissionais, por conta do reduzido acúmulo no campo

da reflexão ética. Naquele momento Netto (1999) destaca que os avanços na direção

política marcaram este código, mas estas duas dimensões – normativa e ética-política –

foram consolidadas no código de 1993 “coroando o rompimento com o

conservadorismo na explicitação frontal do compromisso profissional com a massa da

população brasileira, a classe trabalhadora” (Netto, 1999, p. 14).

O código de ética de 1993134 reflete o amadurecimento da profissão na definição

de suas atribuições e competências em revisão ao código anterior. Reafirma as

conquistas políticas, mas normatiza e regula esta intervenção em relação aos assistentes

sociais, às instituições que trabalha e os seus usuários. Dois eixos nortearam a

construção deste código: a dimensão política com a reafirmação dos valores centrais e

normativa, regulamentando o exercício profissional.

A revisão do texto de 1986 processou-se em dois níveis. Reafirmando os seus valores fundantes - a liberdade e a justiça social -, articulou-os a partir da

133 Aprovado em 09 de maio de 1986 pela Resolução CFAS Nº 195/86. 134 Aprovado em 1993 e regulamentado pela Resolução CFESS nº 273, de 13 de março de 1993 e em vigor para orientar o exercício profissional.

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exigência democrática: a democracia é tomada como valor ético-político central, na medida em que é o único padrão de organização político-social capaz de assegurar a explicitação dos valores essenciais da liberdade e da eqüidade. É ela, ademais, que favorece a ultrapassagem das limitações reais que a ordem burguesa impõe ao desenvolvimento pleno da cidadania, dos direitos e garantias individuais e sociais e das tendências à autonomia e à autogestão social. Em segundo lugar, cuidou-se de precisar a normatização do exercício profissional de modo a permitir que aqueles valores sejam retraduzidos no relacionamento entre assistentes sociais, instituições/organizações e população, preservando-se os direitos e deveres profissionais, a qualidade dos serviços e a responsabilidade diante do usuário (Vinagre, 1993).

O referido código retira elementos que estavam presentes especialmente na

relação com os usuários e na organização da categoria que estavam mais localizados no

âmbito da sua mobilização e engajamento nas lutas da classe trabalhadora (art. 5º),

fundamentalmente. O código vigente retoma princípios que orientam esta direção para a

profissão, mas se estrutura como normatização de uma prática profissional, não como

um instrumento para organização dos trabalhadores.

Netto (1999) reflete acerca da relação entre projetos profissionais e projetos

societários e destaca o fato de que os projetos identificados com as demandas dos

trabalhadores numa sociedade de classes sempre estarão contra a corrente no

capitalismo. Isto pode ocasionar tensões e contradições inclusive no corpo profissional

visto que um projeto, mesmo que hegemônico, não homogeneíza o corpo profissional

quando se preserva o pluralismo dentro da macro-orientação que normatiza as

profissões. A atenção a essas questões se mostra mais importante quando se leva em conta a relação dos projetos profissionais com os projetos societários. Embora seja frequente a sintonia entre o projeto societário hegemônico e o projeto hegemônico de um determinado corpo profissional, podem ocorrer – e ocorrem – situações de conflito e mesmo de contradição entre eles. É possível que, em conjunturas precisas, o projeto societário hegemônico seja contestado por projetos profissionais que conquistem hegemonia em seus respectivos corpos (esta possibilidade é tanto maior quando tais corpos se tornam sensíveis aos interesses das classes trabalhadoras e subalternas e quanto mais estas classes se afirmem social e politicamente). Tais situações agudizam, no interior desses corpos profissionais, as diferenças e divergências entre os diversos segmentos profissionais que os compõem (Netto, 1999, p. 6).

Esta marca do código de 1993 era um elemento que indicava a sintonização com

as questões da sua época, a movimentação dos assistentes sociais e sua organização, a

consolidação da Constituição Federal de 1988, o amadurecimento da categoria

profissional na medida em que se pensa o Serviço Social a partir da sua inserção na

divisão do trabalho. A sintonia com os interesses dos trabalhadores sem dúvida é contra-

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hegemônica, mas a forma como se consolidam os projetos profissionais são intrínsecas

também ao projeto societário vigente.

É necessário observar estas mediações para entender as transformações que

ocorrem na atuação do assistente social, nas demandas, campos profissionais e práticas

concretas. Tensões e divergências que convivem no interior da categoria dos assistentes

sociais têm determinado espaços de disputa, pois tomam fôlego com as alterações

decorrentes da configuração das políticas sociais e rebatem no Serviço Social, pois a

expressão da profissão na realidade e sua intervenção são mediadas pelas conjunturas e

pelo modelo de sociedade.

A caracterização do que seja o objeto de intervenção do assistente social é

retomado na conjuntura da década de 1990 na medida em que a expansão da Assistência

Social e seu destaque se consolidam, face às demais políticas sociais e particularmente à

Seguridade Social. A reatualização de uma perspectiva conservadora no trato das

expressões da “questão social” nas políticas sociais é um fenômeno que se expressa nas

demandas postas à categoria e nas respostas esperadas nesta atuação.

O crescimento da política de Assistência Social também demanda um quadro

maior de profissionais de Serviço Social para atuar nesta política pública (ainda que não

sejam maioria135) para ocupar um espaço central. Esse é um importante dado que marca

uma mudança importante no mercado de trabalho para os assistentes sociais.

Existem contradições entre a imagem profissional para a sociedade e a auto-

imagem da profissão dos assistentes sociais, no entanto, não é possível o descolamento

destas duas dimensões, pois a atuação do assistente social conjuga: as demandas

institucionais e atribuições, e as competências profissionais estruturadas na legislação

que a regulamenta. Netto alerta para “alguns equívocos que estiveram presentes na

trajetória histórica da profissão e que devem ser contextualizados. O primeiro deles é a

confusão entre “a necessária consciência cívico-política com o militantismo e, em não

poucos casos, com a partidarização” (2007, p. 165). Nas palavras do autor

A confusão (ou no limite, a identificação) entre militância profissional e militância política só pode ser criticada e superada se se conduz a discussão para o plano do significado social da profissão. É apenas a partir da clareza da determinação do estatuto do Serviço Social na divisão sóciotécnica do trabalho e da condição do assistente social como profissional assalariado que se pode

135 Segundo Sposati (2009) 63% da força de trabalho que desenvolve diferentes atividades na Política de Assistência Social no âmbito da implementação do SUAS possui ensino fundamental e médio.

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demonstrar com rigor a falácia e o equívoco de subsumir o exercício profissional a exigências de natureza político-partidária (Netto, 2007, p. 165).

Uma outra questão importante a ser levada em consideração é a idéia que existe

um consenso no interior da categoria, mesmo contemplando sua composição

heterogênea, em torno da pobreza e sobre a forma “conforme a qual deve ser amenizada

e reduzida” (Netto, 2007, p. 165). O mesmo autor destaca que a forma que se

compreende o fenômeno e o analisa vai determinar, também na categoria, a maneira de

se encaminhar a atuação profissional. Diferentes análises levarão as perspectivas

diversas em torno da atuação profissional.

Dependendo, porém, de como o problema da pobreza seja compreendido, em sua gênese e em seu movimento, o seu trato profissional haverá de variar e hão de variar os procedimentos para interferir nos grupos humanos por ele afetados. Se é verdade que o profissional sempre se deparará com pobres, não menos verdade é que esses pobres só adquirirão um sentido que transcende a sua pura fenomenalidade se o profissional possuir e souber manejar categorias heurísticas capazes de qualificar teórica e socialmente a pobreza. Só então há de se colocar, concretamente, o problema dos instrumentos e das estratégias de intervenção; e eles não serão os mesmos para um profissional que compreende a pobreza como natural e insuprimível e para outro, que apreende como uma resultante necessária da exploração (Idem, p. 165-166).

A institucionalização do Serviço Social e sua relação com a ampliação ou

redução de direitos sociais na atual conjuntura vêem reflexos nas demandas à

intervenção profissional. Dessa forma,

Se é correta a vinculação (...) entre afirmação e ampliação de direitos sociais e institucionalização do Serviço Social, decorre dela que o desafio profissional central com que nos defrontamos é a própria ordem social contemporânea: ao exponenciar a questão social com revigorados dispositivos de produção e reprodução de pobreza e desigualdade, ela os processa mediante a redução e o recorte dos direitos sociais (Idem, p. 167).

Esta ampliação do campo de atuação para os assistentes sociais na política de

Assistência Social retoma um debate presente nas discussões das diretrizes curriculares

e no próprio Código de Ética Profissional (em 1986 e 1993) quando foram colocadas

encima da mesa as concepções diferentes acerca do objeto de atuação dos assistentes

sociais, momento em que foi definido como: as expressões da “questão social”.

Em disputa estavam concepções que apontavam para as políticas sociais e

também a assistência social como objeto junto à compreensão da atuação em face das

expressões da “questão social”. O processo de assistencialização das políticas sociais

recoloca de uma outra forma esse debate e coloca em questão concretamente a

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intervenção dos assistentes sociais e incluindo outras novas questões para o futuro da

profissão. Segundo Rodrigues “poderíamos dizer que esta assistencialização da

seguridade, esta perspectiva de reduzi-la à política de assistência social, não apenas

confronta e destoa com as lutas da categoria: ela também destoa daquilo que pode ser,

no futuro, o próprio trabalho dos assistentes sociais” (2009, p.24).

A discussão sobre os espaços sócio-ocupacionais, sobre a referência do

assistente social e de sua atuação nas demais políticas sociais compreende o debate

sobre atribuições e competências, assim como sobre a “matéria” do Serviço Social136. E

o destaque da política de Assistência Social nos últimos cinco anos, após a instituição

da PNAS e do SUAS, reacende o debate sobre os fundamentos da prática profissional e

de seus espaços ocupacionais. Sposati (2009) destaca que este processo não significa

necessariamente que exista uma identidade entre Serviço Social e Assistência Social.

Consideramos, conforme elementos já sinalizados sobre o processo de

assistencialização das políticas sociais, que este destaque da Assistência Social e a

requisição pela atuação dos assistentes sociais nesta política traz elementos que nos

podem confirmar rebatimentos deste processo na prática e na forma de pensar a

profissão e sua inserção inclusive nas demais políticas sociais.

Os riscos de um “possibilismo prático”137 diante do espaço no mercado criado

pela política de Assistência Social – para formulação, gestão e execução no seu interior

e ao pensar em se executar ações de “assistência social” dentro de qualquer política

social – contrapõe-se ao desenho das políticas sociais que não demonstra alterações

substantivas que indiquem a possibilidade de ruptura com as características históricas

que orientam às políticas sociais no Brasil. As mesmas mudanças da política de

Assistência Social que colocam o assistente social com certa centralidade na sua

execução, formulação e gestão através da profissionalização dos quadros que atuam na

política por meio de concursos públicos e também por contratações (muitas vezes com

136 Em debate atualmente no conjunto CFESS/CRESS está a Resolução que veta as práticas terapêuticas reivindicada por segmentos profissionais como exercício profissional congruente com o projeto ético-político e que desenvolve ações no âmbito da terapia de famílias, como especialização da prática (que não é exclusiva de qualquer profissão), mas que, a nosso ver, tratam a “questão social” fora da leitura hegemônica no Serviço Social – como já sinalizamos – e é uma distorção de atribuições e competências previstas nos artigos 4º e 5º da Lei de Regulamentação da Profissão (Cf. Revista Em Foco sobre Serviço Social Clínico, CRESS, 2005). 137 Expressão utilizada por Sposati (2009) citando Netto (2008) no Seminário “O Trabalho do Assistente Social no SUAS” (CFESS/CRESS, 2009) que caracterizaria a capitulação de segmentos profissionais diante do cenário regressivo para constituição de direitos numa concepção ampliada. Esta perspectiva se orienta pelo que é possível articular nos moldes do receituário neoliberal, traduzindo-se numa “social-democracia tardia e impotente” que se contrapõe a perspectiva de afirmação de direitos como horizonte estratégico (Netto apud Sposati, 2009).

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vínculos precários de trabalho) interpõem limites que não dependem da vontade e

mobilização somente destes sujeitos profissionais.

No atual contexto no âmbito do processo de assistencialização das políticas

sociais aos assistentes sociais lhes é demandado dentre as suas tarefas, a seleção dos

usuários através da utilização de critérios sócio-econômicos para definir acesso aos

programas. Sem dúvida, quando atuando junto às populações mais pauperizadas

vinculadas à maioria das vezes aos programas de transferência de renda138 –

especialmente na política de Assistência Social que tem uma forte presença de critérios

de elegibilidade para limitar o acesso e de condicionalidades para definir a permanência

– esta demanda profissional torna-se central na lógica que os guia “a administração da

pobreza”. Nas demais políticas sociais, cada vez mais restritas, o assistente social é

demandado para realizar esta mesma função. Esta foi uma requisição histórica que não

foi rompida nas relações institucionais.

Na divisão sócio-técnica do trabalho, o assistente social tem sido demandado como um dos agentes “privilegiados” pelas instituições geridas diretamente pelo Estado, ou por ele subvencionadas, para efetivar a assistência. O caráter histórico de sua atividade profissional em qualquer instituição está voltado prioritariamente à efetivação da assistência. Via de regra a efetivação das políticas sociais é o espaço primordial da prática do assistente social, embora outros profissionais também o integrem. Ele está diretamente vinculado à efetivação dessas políticas, entendidas enquanto mecanismos de enfrentamento da questão social, resultante do confronto capital-trabalho (Sposati et ali, 1986, p. 23).

Esta leitura difere da formulação acerca da prática profissional em suas

expressões concretas (com a inserção dos assistentes sociais em diversas políticas

sociais e segmentos privados, como empresas) que avançou no sentido da compreensão

da intervenção na esfera das expressões da “questão social”, na sua contribuição para a

formulação de políticas para além da dimensão emergencial ou expressamente sócio-

econômica. O assistente social, ao restringir sua prática profissional à prática da

assistência, mesmo atuando no interior das demais políticas sociais, limita, por sua vez,

seu próprio escopo interventivo.

Ocorreu a superação do entendimento do corte assistencial da intervenção do

assistente social, mas não das políticas sociais e a demanda pela atuação deste

profissional ainda reside no escopo desta dimensão presente historicamente na profissão

como assinalou Sposati (1986). 138 Tais critérios são pré-definidos nas políticas e programas sociais, especialmente os programas de transferência de renda e outros programas no campo da assistência social também estão parametrados pela inserção no Programa Bolsa Família, por exemplo.

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Superar a leitura fetichizada do assistencial no Serviço Social é movimento que vai além da questão profissional. Implica, de um lado, apreender o assistencial como mecanismo histórico presente nas políticas brasileiras de corte social. De outro, criar estratégias para reverter essas políticas na conjuntura da crise da sociedade brasileira para os interesses populares. A nível da prática do assistente social esta superação implica ainda o desvelamento da assistência como instância de mediação inerente ao Serviço Social (Idem, p. 53).

Consideramos que estas demandas postas à profissão nas políticas sociais

refletem uma dimensão assistencial que não necessariamente passa pela garantia de

direitos, mas que pode apenas reduzir a atuação profissional a este recorte presente na

assistência social. Não se trata de responsabilizar à política de assistência social por este

processo, mas não podemos deixar de observar a semelhança entre as demandas e

práticas realizadas historicamente no campo da assistência e aquelas que têm sido

demandadas nas demais políticas setoriais. Devemos destacar que estes critérios – com

outros aspectos em jogo – também implicam a participação de outros profissionais, que

atuam na saúde, previdência social, educação, habitação etc.

Nas políticas sociais a atuação dos diversos profissionais passa a ser cada vez

mais pontual, precarizada em seus processos de intervenção pelo desmonte e

focalização que estas políticas estão perpassadas. Com políticas sociais cada vez mais

restritas em critérios de acesso e atendimento os diversos profissionais que atuam nas

políticas sociais têm que, cada vez mais, restringir parâmetros e que estar “preparados”

para justificar estas limitações para os usuários que a demandam.

O assistente social é perpassado por estas determinações, pelo contrário, é cada

vez mais identificado como o “porta voz” e administrador de situações de conflitos de

interesses institucionais e de usuários, uma requisição histórica que se recoloca em

outro patamar com a retração das políticas. Este profissional assume uma posição

central na política de Assistência Social justamente pelos critérios que estão

determinados para o acesso e permanência nos programas e projetos no âmbito da

assistência social.

Uma das medidas para orientar aos profissionais quanto à intervenção do

assistencial na política de Assistência Social foi a edição da cartilha “Parâmetros para

atuação de assistentes sociais e psicólogos na Política de Assistência Social”, elaborada

pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e pelo Conselho Federal de

Psicologia (CFP) que sintetiza o conjunto de discussões dentro da categoria dos

assistentes sociais e psicólogos. Nesse documento são preconizados os princípios

defendidos ao longo de décadas pela categoria através de suas entidades de classe,

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perspectiva essa orientada pela necessária relação entre as políticas sociais e não na

exclusividade da Assistência Social como política de proteção social. Para a efetivação da Assistência Social como política pública, contudo, é imprescindível sua integração e articulação à seguridade social e às demais políticas sociais. Por isso, a concepção de Assistência Social e sua materialização em forma de proteção social básica e especial (de média e alta complexidade) conforme previsto na PNAS/SUAS, requer situar e articular estas modalidades de proteção social ao conjunto das proteções previstas pela Seguridade Social. Dito de outro modo, a Assistência Social não pode ser entendida como uma política exclusiva de proteção social, mas se deve articular seus serviços e benefícios aos direitos assegurados pelas demais políticas sociais, a fim de estabelecer, no âmbito da Seguridade Social, um amplo sistema de proteção social (CFESS /CFP, 2007, p.11).

No entanto o documento, que tem por objetivo estabelecer parâmetros de

atuação dos assistentes sociais e psicólogos no âmbito desta política, estabelece os

princípios que devem orientar a leitura da política e da prática realizadas, o que, sem

dúvida, contribuem para realizar uma análise crítica destes elementos.

A relação entre projeto ético-político e atuação profissional está mediada pelas

condições em que esta prática se desenvolve. Compreendê-las é o primeiro passo para

formulações no âmbito do Serviço Social que contribuam para o desvelamento dos

processos de precarização que perpassam a constituição da política social e seus

determinantes oriundos do pensamento liberal, baseada na igualdade de oportunidades

no sentido abstrato desta expressão.

A concepção presente no projeto ético-político profissional do Serviço Social brasileiro articula direitos amplos, universais e equânimes, orientados pela perspectiva de superação das desigualdades sociais e pela igualdade de condições e não apenas pela instituição da parca, insuficiente e abstrata igualdade de oportunidades, que constitui a fonte do pensamento liberal (CFESS /CFP, 2007, p. 16).

Ainda que este código seja orientado por estes princípios, não cabe como

atribuição própria “ao” assistente social articular os direitos nesta perspectiva, mas ao

movimento de trabalhadores organizados a luta por garanti-los, visto que este não é o

objetivo do Estado no capitalismo. A contradição reside entre as respostas que são

operadas pela política e a capacidade de mediar situações fora desta lógica.

Observamos na cartilha acima referida que o enfrentamento das situações, que se

apresentam de forma fragmentada e pontual, organizadas na forma de atendimentos

emergenciais, é situado como uma das atribuições dos profissionais – principalmente os

que atuam nos CRAS, porta de entrada da política de Assistência Social, a “casa das

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famílias” – mas, uma vez mais, situa uma contradição entre os limites e possibilidades

profissionais, visto a forma como se organizam os serviços e as possibilidades concretas

de reversão desta lógica.

A intervenção profissional, na perspectiva aqui assinalada, pressupõe enfrentar e superar duas grandes tendências presentes hoje no âmbito dos CRAS. A primeira é de restringir a atuação aos atendimentos emergenciais a indivíduos, grupos ou famílias, o que pode caracterizar os CRAS e a atuação profissional como um “grande plantão de emergências”, ou um serviço cartorial de registro e controle das famílias para acessos a benefícios de transferência de renda. A segunda é de estabelecer uma relação entre o público e o privado, onde o poder público transforma-se em mero repassador de recursos a organizações não governamentais, que assumem a execução direta dos serviços sócio-assistenciais. Esse tipo de relação incorre no risco de transformar o(a) profissional em um(a) mero(a) fiscalizador(a) das ações realizadas pelas ONGs e esvazia sua potencialidade de formulador(a) e gestor(a) público(a) da política de Assistência Social (CFESS /CFP, 2007, p. 31).

Em destaque está a dimensão educativa como possibilidade de imprimir outro

ritmo e estabelecer outras formas de interlocução com os usuários da política de

Assistência Social, uma das pautas históricas na luta pela Assistência Social pública,

inscrita na LOAS e hoje presente na PNAS é a inserção dos usuários no controle social

através dos fóruns e conselhos. Trata-se de uma proposição importante, no entanto, dar

voz e visibilidade significa ir além da “mobilização” destes segmentos, que tem que se

preocupar imediatamente com sua sobrevivência diária e assim demandam serviços

públicos para o atendimento às suas necessidades.

Antes de fazer política é necessário comer, beber, se vestir...139 As respostas

imediatas às necessidades destes segmentos atendem, sem dúvida, a demandas que são

fundamentais para que figurem possibilidades concretas de sua mobilização. Sem estas

garantias não se tornará realidade a participação política destes usuários nos espaços de

controle social ou outros espaços construídos para organizar a população.

No entanto, a organização dos trabalhadores para a consecução de garantias de

sua reprodução extrapola bandeiras de segmentos específicos, é necessário impedir

retrocessos e avançar nas conquistas, o que não é possível apenas com a organização

139 Como assinalou Engels, em discurso na ocasião do funeral de Marx: “Assim como Darwin em relação a lei do desenvolvimento dos organismos naturais, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da História humana: o simples fato, escondido sobre crescente manto ideológico, de que os homens reclamam antes de tudo comida, bebida, moradia e vestuário, antes de poderem praticar a política, ciência, arte, religião, etc.; que portanto a produção imediata de víveres e com isso o correspondente estágio econômico de um povo ou de uma época constitui o fundamento a parir do qual as instituições políticas, as instituições jurídicas, a arte e mesmo as noções religiosas do povo em questão se desenvolve, na ordem em elas devem ser explicadas – e não ao contrário como nós até então fazíamos” (Fragmento do discurso de Engels no funeral de Marx em 18 de março de 1883: arquivo consultado na página eletrônica http://www.marxists.org/portugues/marx/1883/03/22.htm)

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dos segmentos “subalternos”. A consciência de classe é determinação fundamental e a

capacidade que cada segmento dos trabalhadores, submetidas às formas como se

inserem no mercado de trabalham, determina também como se estabelece a correlação

de forças políticas para a obtenção das garantias assinaladas.

As classes sociais se diferenciam e se determinam mutuamente pelas respectivas inserções na estrutura produtiva. Contudo, a relação entre esta determinação e a atuação das classes nos processos sociais é mediada, necessariamente, pela consciência dos indivíduos que a compõem (Lessa, 2007, p. 178).

Trata-se de uma dimensão contraditória dentro da luta de classes, pois a própria

dinâmica societária implica aos trabalhadores a dificuldade em agregar pautas de

diferentes segmentos que se situam no campo do trabalho. Mas, não se pode tratar os

direitos no âmbito da assistência social de forma fragmentada, este processo já está

auto-implicado nas orientações dos organismos internacionais na medida em que

pautam o atendimento às necessidades mais básicas para superação de índices de

indigência como medidas centrais para as políticas sociais.

A forma como se organizam estas políticas de combate à pobreza determinam

também como se organizam os segmentos por ela atendidos. As implicações nas

funções desempenhadas pelo Serviço Social no bojo destas estratégias contribuem para

entender possíveis leituras da inserção profissional nesta política social e como são

retomadas teses que fundamentam de forma de atuar deste profissional.

Iamamoto (2008) destacou algumas teses explicativas que orientaram o debate

sobre o Serviço Social e complexificaram as análises acerca das características da sua

inserção no mercado de trabalho, que ilustram como se desenhou o exercício da

profissão dentre formuladores e segmentos profissionais, que ainda mediam o debate,

que é permanente e se reatualiza, de acordo com a dinâmica das sociedades e a

composição dos espaços ocupacionais e requisições.

As referências às teses140: da assistência social, da proteção social, da função

pedagógica e do sincretismo e da prática indiferenciada destacadas por Iamamoto

(2008) nos ajudam a compreender o vulto que a política de assistência social alça na

140 Iamamoto ainda trabalha duas outras teses que aqui não serão detalhadas, quais sejam: a tese da identidade alienada e da correlação de forças, pois entendemos que ainda que aspectos presentes nestas teses permeiem a discussão sobre as tendências para o Serviço Social na atualidade, nosso objeto se circunscreve, a nosso ver, no debate exposto nas demais teses por ela trabalhadas, quais sejam: sincretismo e prática indiferenciada;assistência social; proteção social; e dimensão pedagógica do assistente social (Cf. Iamamoto, 2008).

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realidade atual no que concerne a atuação profissional, e a possíveis leituras da sua

forma de intervenção.

No âmbito da assistência social Iamamoto destaca “a tese da assistência social”,

que caracteriza seus determinantes e inflexões para a leitura da prática profissional e

seus espaços ocupacionais, visto que esta política pública tem sido um dos âmbitos

privilegiados de atuação profissional (2008, p. 301). Destaca ainda que as diferentes

referências do debate sobre o tema sustentam teoricamente a sua qualificação no âmbito

das relações entre Estado e sociedade numa perspectiva de direito no bojo da

Seguridade Social (Idem, p. 301-302).

A autora sinaliza que este foi um tema “maldito” no movimento de

reconceituação do Serviço Social (2008, p.302), aspecto ressaltado também por Sposati

(2009).

Preconizavam-se, à época, em nome da educação e politização do povo, princípios e saídas políticas globais, freqüentemente relegando a um segundo plano a atenção às reivindicações imediatas da “população” e refutando as tarefas assistenciais, identificadas unilateralmente com ações a serviço dos interesses dominantes. Elas eram vistas como um “mal necessário” ou “atividade-meio” – sem nenhuma validade em si mesma – dotada de caráter provisório para outra efetivamente relevante: a educação política. Essa era uma contraposição à versão ingênua do passado em que as ações assistenciais eram lidas – também unilateralmente, mas com sinal trocado – como um “benefício” ou “bem” para os segmentos subalternos que figuravam como a “clientela” do Serviço Social. (Santos apud Iamamoto, 2008, p. 302).

As tendências apontadas durante o movimento de reconceituação ainda têm suas

expressões no debate interno da categoria141, seja, por um lado, pela redução da

dimensão de direito que a assistência social possui em seus programas e projetos, por

exemplo, seja pelo superdimensionamento da capacidade da assistência na

resolutividade das situações de risco e vulnerabilidades, ou a de promover ações

educativas junto a sua população usuária como medida que impulsionaria a conquista de

direitos neste âmbito.

Entendemos que o processo de assistencialização das políticas sociais, e suas

implicações diretas na Seguridade Social imprimem à tese da assistência um caráter

preponderante nos debates da categoria na atualidade. Esta indicação pode ser

observada como fruto da ocupação destes espaços pelos assistentes sociais na mediação

141 Como vimos no item programas e projetos e assistencialização das políticas sociais.

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dos serviços de assistência social e pela vinculação que a profissão teve historicamente

na formulação e implementação desta política.

Iamamoto (2008) destaca também que a tese da assistência social é identificada

como pioneira na leitura da possibilidade que esta modalidade, que se inscreve o

trabalho assistencial, possui para acumular condições para a “construção de alternativas

cabíveis para a sociedade” (Santos apud Iamamoto, 2008, p. 303). Ao mesmo tempo

sinaliza na tese o “potencial educativo” que pode resultar da atenção aos “problemas

concretos” (Ibidem).

É possível que a retomada desta perspectiva, não na forma que foi fundamentada

por Santos (1982), mas “renovada”, tenha espaço diante da expansão da Assistência

Social como espaço de atuação dos assistentes sociais e, mais, como expressão de uma

prática assistencial nas diversas políticas sociais, visto que, como destacamos no

capítulo anterior, o caráter pontual e fragmentado das políticas sociais demanda uma

ação profissional neste mesmo sentido.

A priorização do atendimento a estes problemas concretos, sinalizados na tese,

na atualidade se expressa pelo atendimento ao imediato e aparente, nas medidas

articuladas para administrar a pobreza extrema. Como vimos o potencial educativo é

limitado pela dimensão ideológica que a cultura fomentada pelos programas e projetos

sociais implica na sua execução. Esta idéia presente nesta formulação, a nosso ver, pode

fundamentar concepções sobre a assistência social e seu potencial no âmbito das ações

educativas, de mobilização dos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora

para a promoção de ações na defesa de seus direitos. Numa conjuntura em que os

programas e projetos no âmbito desta política social reiteram as condições de pobreza e

a miséria estabelecem, na mesma medida, a construção de consensos em torno do trato

destas expressões da “questão social” num combate focalizado e restrito.

Neste sentido, a inserção do assistente social nesta dimensão educativa é

superdimensionada em sua capacidade profissional de potencializar ações educativas

direcionadas para a ampliação da participação dos usuários da política nos espaços de

representação (como conselhos e fóruns) para sustentar novas aquisições142.

A população-alvo das políticas de assistência social (e, conseqüentemente do Serviço Social) é lida a partir da categoria de “subalterno”. A subalternidade é

142 Retomaremos o debate da “participação popular” e sobre os conselhos de direitos e de políticas nas considerações finais

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parte do “universo dos dominados, dos submetidos à exploração e à exclusão social, econômica e política” e tem na contraface, o “exercício do domínio ou direção através de relações político-sociais em que predominam os interesses dos que detêm poder econômico e a decisão política” (Yasbek apud Iamamoto, 2008, p. 306).

A leitura da subalternidade como situação específica dos segmentos dos

trabalhadores mais pauperizados e da inserção dos usuários da política de assistência

social é polêmica, pois pode descolar suas demandas do movimento mais amplo para a

conquista de direitos, numa perspectiva de classe, enquanto trabalhadores (mesmo que

precarizados ou desempregados). No cenário atual este deslocamento implica na

compartimentação de demandas, determinados direitos às frações “excluídas” e outros

para o segmento que está no mercado formal de trabalho.

Circunscreve-se na luta mais ampla por direitos no âmbito da Seguridade Social

o estabelecimento de reformas que contemplem direitos, e não somente benefícios ou

serviços assistenciais, também para os segmentos da classe trabalhadora “não-inseridos”

no mercado formal de trabalho. Somente com a reforma da Seguridade e a implicação

de uma política econômica redistributiva poderá a Seguridade ser redimensionada no

sentido da garantia de direitos em contraponto ao inchamento da assistência social como

principal política de enfrentamento da pobreza nos marcos dos programas e projetos

pontuais e fragmentados articulados no seu âmbito.

O debate sobre a posição que a política de assistência social ocupa na

Seguridade Social, como “prima pobre” ou dos segmentos atendidos por esta política

passa a predominar nos debates sobre a formulação da NOB (2005) e da PNAS (2004),

que seguem em determinada leitura da realidade e das necessidades deste segmento da

classe trabalhadora. Retomar a Seguridade Social como uma direção tática para a

conquista e consolidação de direitos considera a ampliação da assistência social

necessária, desde que constituída numa perspectiva que contemple a mediação do

acesso a direitos sociais e que dependem, fundamentalmente, da estruturação da rede de

serviços numa perspectiva que tenda a universalização dos direitos.

Uma leitura crítica das políticas sociais e o apoio à Seguridade Social como

direção tática supõem um dimensionamento da assistência social articulado às demais

políticas sociais e implica na sua construção através de ações estatais e direitos que

atendam aos que dela necessitam pela sua condição de inserção no mercado de trabalho

e não por critérios de renda baseados nos índices de indigência e miséria.

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Esta tese da assistência social responde ainda a alguns segmentos profissionais

que entendem esta política como protagônica da inserção do assistente social. Mas são

programas em que estes profissionais assumem papel central na administração dos

testes de meios e na garantia de acesso aos seus benefícios de acordo com os critérios

definidos por ela, mas reflete somente os limites que situam a intervenção profissional

na dimensão assistencial das políticas sociais.

Na tese da proteção social, defendida por Costa (1995) segundo Iamamoto

(2008) destaca que ela se apresenta em contraposição à política de assistência social

como distintiva da particularidade da profissão (Iamamoto, 2008, p. 311). Esta tese

contribui, a nosso ver, para a perspectiva alçada pela tese da assistência social;

Iamamoto ressalta que

Segundo Costa (1985), a proteção social envolve múltiplas dimensões dos processos históricos, pois a vida humana não se move apenas por tensões interclassistas, sendo, a luta de classes, um dentre muitos processos que a impulsionam. Esta concepção exige mudanças dos “paradigmas envelhecidos”, de que “parecem tudo explicar” – como, por exemplo, o da polarização entre as classes sociais – nos quais não se sustenta a abordagem proposta (Iamamoto, 2008, pp. 311-312).

A implicação de novos paradigmas para as políticas sociais, a nosso ver,

contribui nesta tese para uma leitura conservadora da intervenção do assistente social

que já foi ultrapassada nos debates profissionais e pelo movimento de ruptura com o

conservadorismo. Neste sentido, as vanguardas profissionais e seus principais teóricos

estabeleceram parâmetros críticos para a avaliação da configuração das políticas sociais

e da constituição do sistema proteção social brasileiro.

No bojo de uma análise na qual a política de assistência e o atendimento às

necessidades das “classes subalternas” se dão – através de estratégias de proteção social

auto-sustentáveis, pela conformação de redes de ajuda mútua para inserção social – são

retomadas antigas teses de integração social e não superam, numa perspectiva crítica,

uma análise baseada nos paradigmas das contradições entre capital e trabalho que geram

a “questão social”.

A subalternidade é considerada aqui como processo de subjugação de uma classe

por outra, que na sociedade capitalista caracteriza a posição da classe trabalhadora em

sua relação com a burguesia, por conta do poder econômico, político e social que esta

última exerce nesta sociedade, via apropriação, concentração e acumulação privada dos

meios de produção e da riqueza socialmente produzida pelo trabalho – e pela mais-valia

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– resultante da exploração da força de trabalho da primeira. Diferimos este processo de

uma condição subalterna meramente vinculada às condições mais imediatas de

sobrevivência do segmento mais pauperizado dos trabalhadores, segmentando-os da

classe trabalhadora como “categoria” específica – ainda que tenha especificidades na

constituição do seu processo organizativo coletivo – e com interesses próprios

secundários aos da classe genérica, conformando uma organização específica em defesa

de seus direitos fora da composição de garantias numa perspectiva ampliada de

reprodução social no espectro de uma Seguridade Social ampliada, que exige a

organização dos trabalhadores como classe-para-si, quando interesses em oposição

ganham dimensão política e deixam de ser apenas pelas determinações “comuns” de

vida (classe-em-si) e que suas vanguardas desta classe tomem também para si as

bandeiras de luta em defesa de direitos para todos as suas frações, numa organização

conjunta de demandas143.

Costa (1995) considera “‘seu alinhamento à corrente do pensamento marxista’,

mas repele a onipotência das explicações genéricas. Ela afirma abordar regularidades

históricas de outra forma, mais próxima ao pensamento antropológico, no veio das

indicações de historiografia marxista inglesa” (apud Iamamoto, 2008, p. 314).

Os “velhos paradigmas” destacados por Costa são, a nosso ver, eixos que

fundamentam a ordem capitalista e não são superados sem a superação do seu modo de

produção e reprodução da vida social. A nosso ver, tratam-se de pressupostos essenciais

para o entendimento de como se configuram as demandas postas à profissão e a

configuração dos seus espaços ocupacionais.

É claro que não podemos transpor modelos de análise de outras conjunturas de

forma mecânica para qualquer realidade, no entanto, observamos no pensamento de

Costa (1995), destacada por Iamamoto (2008), que não estão presentes as determinações

econômicas, políticas e sociais necessárias para uma análise que aponte para a

construção das políticas sociais contraposta ao modelo atual e o indicativo da necessária

superação da ordem capitalista como condição para o atendimento das demandas dos

trabalhadores segundo suas necessidades. A vinculação do marxismo a um modelo

economicista e a um superdimensionamento do que a autora denomina como

explicações genéricas são, a nosso ver, constitutivas de uma perspectiva que

compreende a totalidade das determinações do capitalismo. 143 Cf. Lessa, 2007: Trabalho e Proletariado no Capitalismo contemporâneo, editora Cortez.

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Os ganhos do pensamento marxista para a leitura da realidade nos permitem

alçar formulações que impliquem na constituição de um sistema de proteção social

ancorado lógica diferenciada com conquistas possíveis ainda nos marcos do

capitalismo, mas que apontam para a necessidade de uma nova ordem societária para a

sua realização em sua plenitude.

A proteção social destacada por Costa não aponta para a constituição de um

sistema, mas em experiências de constituição de redes de auto-ajuda e ajuda-mútua. Nas

palavras de Iamamoto (2008):

A concepção de proteção social, apresentada por Costa, não a considera como política pública, pois não é disso exatamente que se trata, E, sim, de “experiências autogestionárias ou não de proteção social”, que restaurem o aparato assistencial no interior das redes de solidariedade, integrando a esfera pública e privada. A autora propõe como estratégia de um novo sistema de proteção social “recompor o aparato assistencial com as redes de solidariedade e os grupos de auto-ajuda admitidos como capazes de conduzir as ações de defesa dos interesses coletivos”. (Costa, apud Iamamoto, 2008, p. 315).

Nos marcos do ideário neoliberal esta tese vem corroborar com uma perspectiva

que responsabiliza aos segmentos dos trabalhadores sem garantias de proteção social

por meio das políticas sociais por construir respostas às suas necessidades que são

oriundas das condições estruturais que geram a desigualdade e a pauperização.

Esta discussão acerca da proteção social difere da que já abordamos

anteriormente, não se trata do arco de ações e políticas públicas redistributivas que

respondem às necessidades da classe trabalhadora, é aqui destacado numa perspectiva

muito próxima à ancorada pela PNAS nos processos de ajuda mútua circunscrita na

responsabilidade da família e nos circuitos comunitários e seus vínculos para

sobrevivência.

A concepção de proteção social na perspectiva de longa duração é o campo teórico de interesse profissional. Ele abrange padrões de proteção de formações pré-industriais, industriais e pós-industriais – para além do Estado de Bem-Estar Social – envolvendo “processo de auto-ajuda, de diferentes redes de solidariedade e sobrevivência no interior de vários modos de vida”. Extrapolando os movimentos sociais, essa proposta afirma a necessidade de estudo de práticas e processos sociais, silenciosos e invisíveis, mas dotados de forte significado na vida coletiva, que se encontram nas práticas familiares e relações de compadrio, nas relações de gênero, etnia e de idade, na vizinhança, no trabalho e nas religiões. Apresenta, também, novas veredas para apreender processos como o paternalismo, o mandonismo e o clientelismo presente nas relações sociais na história política brasileira (Iamamoto, 2008, p. 312).

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A tese da função pedagógica do assistente social é influenciada, segundo

Iamamoto (2008), por Gramsci e é mediada “pelas políticas públicas – em especial a

assistência social – e pelos processos organizativos e lutas das classes subalternas,

inscrita pelos processos organizativos e lutas das classes subalternas, inscrita nos

processos de organização da cultura por parte das classes sociais” (Iamamoto, 2008,

316). Esta dimensão retoma a participação que o Serviço Social na sua atuação pode

potencializar segmentos que demandam serviços sociais em torno do fomento de

potencialidades de organização.

Por outro lado, o fundamento da formulação de Abreu (2002) retoma, segundo

Iamamoto (2008), o pressuposto da dimensão pedagógica do assistente social

determinado pelos vínculos que a profissão fundamenta junto às classes subalternas

“por meio dos efeitos da ação profissional na maneira de pensar e agir dos sujeitos

envolvidos no processo da prática” (Abreu apud Iamamoto, 2008, p 316). Esta

mediação seria um dos fundamentos da ação profissional e permitiria, no bojo das

contradições das relações entre Estado e sociedade possibilitariam ao Serviço Social

implicar seus usuários em processos de luta por garantias de direitos.

As ações pedagógicas concretizam a ação material e ideológica no modo de vida, de sentir, pensar e agir das classes subalternas envolvidas nos espaços ocupacionais, interferindo na reprodução física e subjetiva dessas classes, ao mesmo tempo que rebatem na constituição do Serviço Social como profissão. (...) “O princípio educativo na formulação gramsciana consubstancia-se na relação entre racionalização da produção e do trabalho e na formulação de uma ordem intelectual e moral, sob a hegemonia de uma classe” (Abreu apud Iamamoto, 2008, p. 317).

Esta formação intelectual e moral operada pelo assistente social em sua

intervenção pode realmente direcionar a atenção do usuário para uma perspectiva

conservadora ou crítica, mas não há garantias que esta forma de mobilização – ainda

que resulte na participação ativa destes usuários em espaços de reivindicação – fomente

articulação destes demandatários por serviços sociais com este objetivo.

No âmbito da política de assistência social há espaços, como os conselhos e

conferências, que podem contemplar esta participação, assim como fóruns, associações,

dentre outros espaços, no entanto, uma atividade profissional direcionada numa

perspectiva crítica continua circunscrita pelas suas determinações estruturais – dadas

pela configuração das políticas sociais – e continua a repor as expressões da “questão

social” em outro patamar, visto esta configuração no trato da “questão social”.

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A política de assistência social em seu caráter ressocializador é constitutiva dos processos de organização da cultura. Ela é vista como uma “modalidade de acesso do trabalhador a bens e serviços no atendimento de suas necessidades básicas, cujo componente material é referência determinante de determinada pedagogia” (Abreu apud Iamamoto, 2008, p. 317).

No âmbito dos programas e projetos de assistência social há espaço para este

tipo de ação educativa com seus usuários, mas a própria forma de atendimento às

necessidades nestes programas e projetos repõe uma determinada ideologia e cultura da

concessão de benefícios.

Para Abreu (2002) a assistência é um campo contraditório no qual se afirmam e

negam direitos e o direito à assistência pública seria uma forma de lutas por direitos na

sociedade capitalista para estas classes subalternizadas (apud Iamamoto, 2008, p. 317).

Entendemos que a forma como se configuram estes direitos no âmbito da assistência

também determinam as formas de acesso, a população que será atendida e capacidade

de mobilização. As demandas que fundamentam a profissão não respaldam esta

perspectiva e ainda que se afirme outra direção no projeto profissional, os limites destas

políticas também desenham os limites profissionais.

Dessa forma, Iamamoto (2008) destaca que esta concepção pode gerar uma

distorção, que ficou clara da década de 80 – na qual o Serviço Social vinculou-se mais

claramente a um projeto profissional alicerçado na defesa e garantia de direitos dos

trabalhadores – que equalizava a intervenção profissional a uma prática de militância

política. Não se trata de uma profissão que está na arena política pela própria

característica da profissão, esta é uma opção política que se inscreve numa dimensão

individual de dimensão coletiva que reconhece a necessidade de lutas numa dimensão

ampliada para articular soluções que são do âmbito da organização coletiva.

A derivação necessária dessa argumentação é a defesa do assistente social como um “intelectual orgânico” vinculado a um projeto de classe revolucionário de vocação socialista. Essa perspectiva a um projeto de classe oriundo dos anos 80, que torna fluidos os limites entre profissão e militância política revolucionária na defesa da sociedade socialista, por que equaliza inserções e dimensões diferenciadas vividas pelo assistente social, enquanto profissional assalariado e enquanto cidadão político, visto não ser a categoria politicamente homogênea, por tratar-se de uma especialização do trabalho na sociedade e não de uma atividade que se inscreva na arena política stricto sensu. Esta última observação é, certamente, um dos fulcros da diferença de interpretação da profissão com a autora, que tem o Serviço Social como uma forma de práxis (Iamamoto, 2008, p. 323).

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O assistente social, vinculado a um projeto profissional com vistas à

emancipação humana, teria como função pedagógica um caráter também “voltado para

a emancipação das classes subalternas” (Iamamoto, 2008, p. 329). Para Iamamoto, a

exposição de Abreu (2002) implica duas questões: a restrita faixa da população inserida

no segmento considerado subalterno que alça um perfil de politizado e que “não

dispõem de ampla representatividade nas condições efetivas em que opera o exercício

da profissão – apresenta-se como um “dever ser” distante da diversidade sociopolítica

que conforma a categoria” (2008, p. 329) e implica também na falta de mediações na

análise da profissão e seu exercício no âmbito do perfil profissional indicado por Abreu

(Ibidem).

Consideramos que a tese de Netto (1992) retomada por Iamamoto (2008) acerca

da estrutura sincrética do Serviço Social é a que nos permite aprofundar as teses

anteriores e explicar fundamentalmente o processo de assistencialização do Serviço

Social. Para o autor, “a funcionalidade histórico-social da profissão é sintonizar,

reproduzir e sancionar a composição heterogênea da vida cotidiana com as refrações da

questão social para situá-las novamente no mesmo terreno, mediante uma modalidade

específica de intervenção: ‘a manipulação de variáveis empíricas’, propiciando o

reordenamento dessas mesmas variáveis, que não são alteradas, resultando numa

‘prática inconclusa’” (apud Iamamoto, 2008, p. 266).

A atuação profissional se situa no âmbito da reprodução das relações sociais e do

atendimento no âmbito das expressões da “questão social”, sua intervenção repõe estas

expressões em outro patamar, na medida em que trabalha por meio de ações de

garantias de acesso a serviços sociais para o atendimento de necessidades postas por

seus demandantes. Na medida em que o assistente social trabalha com a rede de

serviços sociais – seja na articulação com outras políticas sociais em serviços oferecidos

pela rede pública-estatal ou organizações não-governamentais e rede privada

conveniada – atua no bojo de políticas precarizadas e minimalistas no atendimento a

estas mesmas necessidades.

As expressões da “questão social” repostas continuamente no âmbito das

relações sociais no capitalismo, ora perpassadas pela intervenção dos assistentes sociais,

tem nesta atuação um nível de atendimento que objetiva, quando no escopo do projeto

profissional hegemônico, alçar a condição de acesso a direitos, o que esbarra nos

processos, já mencionados, da incapacidade estrutural destas políticas de atenderem a

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necessidades fundamentais para superação das condições que colocam a “questão

social” e que dariam à profissão, e à sua intervenção, o significado que seu projeto

profissional supõe. Ainda que atuando dentre das contradições desta ordem societária, o

Serviço Social se vê limitado em seus objetivos na medida em que está circunscrito à

reprodução das relações sociais no bojo das determinações da ordem burguesa.

Iamamoto destaca que “como o sincretismo figura como a face aparente da

totalidade do ser social, a natureza da profissão na sociedade burguesa madura é

estabelecida a partir da sua fenomenalidade – aprisionada em sua indissociável

reificação –, pressupondo a ‘ausência do referencial crítico dialético’” (Iamamoto, 2008,

p. 267).

Para a autora a restrição da análise do Serviço Social a formas reificadas de

manifestação dos processos sociais “ainda que esse procedimento possa prevalecer no

universo profissional, denuncia a mistificação, mas não elucida a natureza sócio-

histórica dessa especialização do trabalho para além do universo alienado, em que se

realiza e se mostra encoberta no sincretismo. Em outros termos, o esforço de

desvendamento, ainda que essencial, torna-se parcial e inconcluso” (Iamamoto, 2008,

pp. 267-268).

Iamamoto destaca que a tese do sincretismo não desvela a totalidade das

condições que permitem ao Serviço Social atuar nas contradições em que se apresentam

as expressões da “questão social” e principalmente as determinações de ordem política

que perpassam a atuação profissional. Para a autora há um silêncio na obra de Netto

acerca desta dimensão política na lógica que coloca as relações sociais na ordem

burguesa, que possibilitaram conquistas históricas para a classe trabalhadora como

contra-tendências ao processo de exploração do trabalho no capitalismo se traduzindo

em conquistas de direitos que garantem condições de reprodução para esta classe no

bojo da relação capital-trabalho.

Esse estranho silêncio sobre a política, como instância de mediação da relação do homem com sua genericidade na análise de Netto (a qual sempre teve centralidade em sua vida pública), tona opaca, nesse texto, a luta de classes na resistência à sociedade do capital. Isso deriva em uma visão cerrada da reificação – forma assumida pela alienação na “idade do monopólio” – e a alienação tende a ser apreendida como um estado e menos como um processo que comporta contratendências, porque as contradições das relações sociais são obscurecidas na lógica de sua exposição (Iamamoto, 2008, p. 269).

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Iamamoto (2008) ainda destaca os desdobramentos da tese do sincretismo

apontadas por Netto (1992) como “‘prática indiferenciada’, do ‘sincretismo científico’ e

do ‘sincretismo ideológico’”144 (2008, p. 273) e aponta para a necessidade de

aprofundar o debate sobre o “sincretismo da prática indiferenciada” em virtude do foco

que privilegia o trabalho profissional (Idem). Destaca o que Netto (1992) aponta como

uma indiferenciação da prática filantrópica que se expressa ser pelo enquadramento

numa rede institucional, mas que “mantém-se ‘pouco discriminada’, com ‘referencial

nebuloso’ e ‘inserção institucional aleatória’” (Iamamoto, 2008, p. 273).

Mantém-se uma mesma estrutura operacional para a prática profissional similar

às protoformas da profissão. O Estado, na sua expansão monopolista, na medida em que

passa a centralizar as respostas face à “questão social” via políticas sociais mantém o

corte filantrópico junto às suas ações (Netto apud Iamamoto, 2008, p. 273-274) – o que

pode ser verificado em sua expressão mais exponeciada na política de Assistência

Social e a estruturação da rede de atendimento em parceria com a iniciativa privada,

não-governamental e filantrópica. Para Iamamoto (2008), ainda que reconhecendo a

aparência indiferenciada da profissão, entende que há determinações sócio-históricas

nas respostas profissionais e possibilidades de configuração que permanecem

obscurecidas por esta tese (2008, pp. 273-274).

Entendemos que a profissionalização do Serviço Social supera as protoformas da

profissão e dá um salto qualitativo com a perspectiva de ruptura com o conservadorismo

no plano ideal se expressando também na prática profissional, através da incorporação

de um referencial teórico crítico – que não suprime as expressões conservadoras da

profissão – e que garante a hegemonia de um projeto profissional fortemente vinculado,

como vimos, a uma perspectiva de garantia de direitos e alargamento das conquistas da

classe trabalhadora, diferente da perspectiva filantrópica, de ajuda pontual e

fragmentada.

144 O sincretismo ideológico se expressa pela medida de “continuidade visível em face ao passado profissional do Serviço Social, reiterando aos assistentes sociais a necessidade de verificar a compatibilização do novo âmbito de intervenção com as suas práticas precedentes e, especialmente, com suas elaborações formal-abstratas” (Netto, 2001, p. 131). O sincretismo “científico” diz respeito ao “sistema de saber que ancora (...) as suas práticas e, igualmente, suas representações” (Idem, p. 132) e remonta a constituição de um saber científico próprio da profissão. Para o autor o ecletismo é reiterado pelas “incidências da tradição positivista (e neopositivista)” (Ibidem, p. 150). ). São combinadas estratégias na intervenção profissional que remontam o pensamento conservador e que incorporam elementos da ruptura com esta perspectiva, de acordo com as demandas apresentadas conformando o ecletismo ( que não pode ser confundido com o “pluralismo”, pois remete a utilização de referências filosóficas oriundas de pensamentos distintos, as vezes não só contraditórios, mas frontalmente opostos) e o sincretismo (numa fusão imprecisa de ideologias diversificadas) na prática dos assistentes sociais.

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Nas palavras de Netto (2001): “a forma da prática profissional, nas suas

resultantes, não obteve um coeficiente de eficácia capaz de diferenciá-la de outras

práticas profissionais ou não, incidentes sobre a mesma problemática” (p. 100). Com

isso o autor destaca os limites na operacionalização de uma formulação com base na

intervenção das refrações da “questão social” (Idem). Entendemos que, com isso, o

autor não afirma determinações fatalistas na inserção do assistente social, mas considera

as possibilidades de ampliação do referencial crítico em suas expressões concretas na

intervenção profissional mediadas pela forma que são ordenadas as políticas com as

quais trabalha.

A lógica fragmentada e regressiva das políticas sociais coloca os assistentes

sociais – que atuam predominantemente no âmbito do Estado – condicionados à lógica

destas mesmas políticas. Queremos dizer com isso que esta lógica delimita as condições

da atuação profissional – assim como determina a de outros agentes profissionais que

atuam nelas – e traz as definições centrais para que o assistente social adote medidas de

garantia de acesso às políticas sociais e aos direitos garantidos por elas, na lógica em

são operados.

Nas palavras de Netto (2001):

Num caso como noutro, na explicação como na intervenção, este referencial [crítico] não rompe com a positividade com que se apresentam os processos sociais na moldura societária burguesa – não rompe, fundamentalmente, porque não supera a sua imediaticidade. No plano da articulação teórica, ultrapassa o senso comum com uma formulação sistemática, entretanto sem desbordar o seu terreno; no plano da intervenção, clarifica nexos causais e identifica variáveis prioritárias para a manipulação técnica, desde, porém, que a ação que sobre elas vier incidir não vulnerabilize a lógica medular da reprodução das relações sociais (2001, p. 101).

Dentro dos limites apontados pelo autor que se inscrevem as possibilidades de

intervenção, sem subverter fundamentalmente a lógica em que operam as políticas

sociais. Esta prática indiferenciada condicionada a uma estrutura sincrética admite as

contradições que se colocam nas relações institucionais para a mediação de direitos, no

entanto, consideramos que determinam centralmente os limites postos para a profissão

no âmbito da garantia de direitos que não dependem somente da vontade de seus

agentes profissionais.

Para Iamamoto (2008) a tese de Netto (1992) “não permite vislumbrar nem a

presença dos movimentos revolucionários na história e nem horizontes de ruptura da

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positividade, em uma análise aprisionada num ‘pessimismo da razão’, que não dá lugar

ao ‘otimismo da vontade política’, parafraseando Gramsci” (Iamamoto, 2008, p. 271).

Mas entendemos que nesta oposição entre a tese de Netto e Iamamoto tem um eixo de

articulação com a dimensão política, como destacado pela autora, que superdimensiona

a capacidade profissional, ainda que a relacionando ao processo mais amplo de

intervenção da classe trabalhadora no âmbito das lutas por garantias de direitos, até

porque o momento regressivo para a garantia de direitos no bojo do neoliberalismo

implica num refluxo destas lutas e influencia, em certa medida, a capacidade de

intervenção profissional para fomentar estas garantias para os demandatários dos

serviços sociais.

Entendemos que o otimismo da vontade está condicionado às determinações

concretas destacadas pelos autores de exponenciação da “questão social” e suas

expressões e recolocam a necessidade de um pessimismo da razão vinculado a estes

condicionantes, para que possamos avançar na reflexão sobre as possibilidades postas

para o Serviço Social nesta conjuntura no que se circunscreve ao âmbito da intervenção,

diante destes limites, na sua relação com o movimento mais amplo da sociedade, que

determina igualmente as condições que vai atuar, visto o projeto profissional afirmado

na direção da garantia de direitos para a classe trabalhadora e que aponta para a

construção de uma outra sociedade parametrada por outros princípios ancorados na

ruptura com a ordem vigente baseada na exploração do trabalho e na apropriação e

acumulação privada dos meios de produção e da riqueza socialmente produzida.

Iamamoto (2008) destaca os vetores da tese de Netto (1992) que seriam dois:

“(a) ‘as condições para a intervenção na sociedade burguesa marcada pela positividade’

ou pseudo-objetividade; (b) ‘a funcionalidade do Estado no confronto das refrações da

‘questão social’’. Essas condições, que extrapolam a prática profissional, aparecem

como se fossem limites endógenos ao Serviço Social” (Iamamoto, 2008, p. 274).

Concordamos com a autora que estas condições extrapolam o âmbito de atuação

do Serviço Social, mas a tese de Netto reforça-as enquanto condicionantes da prática

profissional – na atuação no âmbito das políticas sociais – e alerta quanto ao parâmetro

das políticas sociais, que na atual conjuntura figuram como ações minimalistas no trato

das expressões da “questão social” apenas para a redução de índices absolutos de

pobreza e miséria e tensionam permanentemente as garantias de direitos para os

trabalhadores do mercado formal. Estes limites acabam figurando como condições

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internas da profissão, ainda que a extrapole, na medida em que configuram o locus no

qual se insere e é demandada a intervenção profissional.

Os limites apontados, ainda que não sejam próprios do Serviço Social, aparecem como tais, o que torna a especificidade profissional uma incógnita para seus agentes, segundo o autor, pois: “a profissionalização permanece num circuito ideal, que não se traduz operacionalmente. As peculiaridades operacionais de sua prática não revelam a profissionalização: tudo se passa como se a especificação profissional não rebatesse na prática – o específico prático-profissional do Serviço Social mostrar-se-ia na fenomenalidade como inespecificidade operatória”. Em síntese, a profissionalização distinguir-se-ia das práticas filantrópicas apenas por meio da “sanção social e institucional”, sem redundar em qualquer diferenciação na forma de operar, ainda que produzindo efeitos sociais diversos: sua especificidade mostrar-se-ia como inespecificidade operatória, o que é atestado pela aparente “polivalência” ou aparente “intervenção indiferenciada do assistente social” (Netto apud Iamamoto, 2008, p. 275).

Iamamoto destaca ainda outro vetor desta tese que se relaciona às políticas

sociais estatais que repõem de forma ampliada as manifestações da “questão social”

cronificando-as (2008, p. 274). Considerando a atuação profissional no âmbito das

políticas sociais restaria à profissão, na teses de Netto (1992), a “‘racionalização de

recursos e esforços para o enfrentamento das refrações da questão social’. Esse é o ‘anel

de ferro’ que aprisiona a profissão, não lhe permitindo ir além de suas protoformas”

(apud Iamamoto, 2008, p. 274).

Este anel de ferro é o que sinalizamos como condição que condiciona o Serviço

Social na sua intervenção dentro das políticas sociais, superando sim as suas

protoformas – pois é uma profissão formada intelectualmente por meio da universidade,

numa perspectiva generalista e que se inspira predominantemente na superação crítica

da perspectiva conservadora no bojo do projeto profissional hegemônico – mas,

perpassado, em sua intervenção, por estas determinações.

Netto destaca que a aparência do papel social dos assistentes sociais é a

polivalência, consequência da operacionalização prática destes profissionais – atuando

nas políticas estatais, particularmente – e se traduz na sua “intervenção indiferenciada”.

os seus agentes, que se vêem requisitados para um papel social cujo conteúdo difuso só pode ser preenchido através de uma aparente polivalência que exaure qualquer diferenciação prático-profissional. A polivalência aparente é a mais nítida consequência da peculiaridade operatória do Serviço Social –, na sua intervenção indiferenciada. E, sobretudo, a expressão cabal do sincretismo que penetra todos os interstícios da sua prática (Netto, 2001, p. 105).

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Encontramos na atualidade vetores que acompanham estas características

sinalizadas por Netto (2001), que estiveram presentes historicamente no Serviço Social

como prática profissional e são exponenciadas na atualidade. Um exemplo são as

práticas terapêuticas exercidas por profissionais com esta especialização145.

Faleiros destacou em documento público recentemente repassado por endereço

eletrônico intitulada “Considerações sobre a Ementa de Resolução sobre Vedação de

utilização de práticas terapêuticas por parte do CFESS” e destaca que o processo de

aprovação de resolução que veta estas práticas como uma negação da história do

Serviço Social, e determina uma restrição do campo de atuação dos assistentes sociais.

Afirma que “é uma vertente teórico-prática que corresponde à forma do exercício

profissional previsto no inciso V do Art. 4º da Lei 8662/93 para se fazer a intervenção

profissional” e afirma que “Na História do Serviço Social está enraizada a prática

terapêutica e a definição internacional a contempla. O CFESS não pode abolir a história

onde surge inclusive o nome da assistente social Virginia Satir fundadora da prática

terapêutica com famílias”.

Faleiros possui uma ampla produção teórica no Serviço Social, e é considerado

por Iamamoto (2008) como “um dos expoentes de maior peso do movimento de

reconceituação do Serviço Social latino-americano” (p. 293)146. A vertente

“psicologizante” do Serviço Social é expressão que se expressa mais fortemente no

campo da saúde e saúde mental e, a nosso ver, é uma forma de articular respostas –

numa perspectiva conservadora – às expressões da “questão social” quando não

encontram atendimento concreto através da intervenção e dos encaminhamentos

promovidos pelo assistente social. Cabe destacar que não estamos negligenciando a

dimensão subjetiva em que se expressam as condições concretas dos usuários destes

serviços, mas o atendimento clínico cabe às especialidades que têm sua formação

profissional vinculada a esta área e constitui-se como uma distorção do exercício

profissional

Iamamoto destaca que as políticas sociais concretamente não fazem a eversão da

“questão social”, mas destaca que estas mesmas políticas são fruto de conquistas 145 Cf. Nota 131. 146 Iamamoto (2008) trabalha a tese de Faleiros, denominada como “tese da correlação de forças”, não destacada neste trabalho. Nesta tese “Seu traço distintivo é a preocupação com as relações de poder, que se desborda em uma importante e pioneira contribuição na temática da política social, considerado o campo em que se situa a profissão. (...) o eixo central de sua abordagem é a relação do Serviço Social com a política, introduzindo noções gramscianas de ‘hegemonia’ e intelectual no Serviço Social brasileiro’” (pp. 293-294). Sua tese se situa na mudança dos comportamentos por meio do paradigma das relações interpessoais (Idem, 294).

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mediadas pelas lutas sociais no bojo do capitalismo, mas sinaliza que nesta relação entre

as classes o bloco dominante atua no sentido de imprimir-lhes o caráter de concessão e

de ajuda antecipando-se às reivindicações como medidas de desmobilização destas

mesmas lutas (2008, p. 275). Entretanto, “O campo das políticas públicas e dos direitos

sociais é, também, uma arena de acumulação de forças políticas de lutas em torno de

projetos para a sociedade no enfrentamento das desigualdades condensadas na questão

social” (Ibidem.).

Este processo contínuo que se desenvolve na relação entre as classes sociais

determina também a forma como a qual se colocam a organização dos trabalhadores e

as lutas sociais no capitalismo. O influxo destas lutas também está condicionado pelas

políticas sociais articuladas no neoliberalismo.

O mercado de trabalho profissional para o assistente social convive com novas

demandas em condições desfavoráveis (Iamamoto, 2008, 277). A autora circunscreve

estas condições desfavoráveis ao “lastro conservador presente no desempenho de papéis

e atribuições profissionais, de fragilidades de formação, de pouca ousadia na construção

de respostas profissionais, além da baixa remuneração percebida pelos assistentes

sociais” (Ibidem.).

Iamamoto (2008) destaca que há ações desenvolvidas pelos profissionais com

“fecundas experiências inovadoras” que ainda não têm a visibilidade necessária e que

contrapõem as tendências conservadoras presentes nos aspectos mencionados.

Entendemos que nestas afirmações de Iamamoto reside uma polêmica que circunscreve

uma das contradições presentes no debate sobre a profissão e sua intervenção prática: o

destaque que é dado à dimensão política da profissão circunscrita centralmente nas

iniciativas profissionais e no âmbito de experiências que ilustram a garantia da direção

contra-hegemônica do Serviço Social, mesmo contra todas as tendências regressivas que

determinam a profissão.

Consideramos necessário que os profissionais com uma formação qualificada e

uma intevenção competente e conectada com a realidade permite avanços diante das

requisições profissionais que se situam no plano conservador. É possível que projetos de

intervenção possam se circunscrever na direção social hegemônica da profissão e que

apontem para garantias de direitos, no entanto, são as condições que colocam a

demanda pelo Serviço Social, as políticas sociais num processo contínuo de reposição

da “questão social”, que mediam estes projetos e não é o assistente social – ou qualquer

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outro profissional – que circunscrevendo uma prática inovadora que romperá com um

processo estrutural que fundamenta sua inserção profissional.

Ainda que o desempenho do profissional consiga romper com determinações

institucionais conservadoras – ou ainda que o conjunto de assistentes sociais pudesse

elaborar e implementar projetos profissionais conectados à uma perspectiva crítica, que

aponte para a garantia de direitos – a fragmentação do atendimento às expressões da

“questão social”, a configuração do Estado no atendimento às necessidades do conjunto

da população demandatária de políticas sociais, determina os limites estruturais de

atuação, ainda que estes projetos sejam necessários e fundamentais para o avanço da

profissão e oposto à naturalização das manifestações da “questão social” e para uma

atuação profissional conectada à direção social afirmada pelo Serviço Social.

Para Iamamoto (2008) a hipótese que orienta a formulação de Netto (1992) é o

superdimensionamento da ruptura com o conservadorismo no Serviço Social destacando

que a “‘dinâmica das vanguardas altamente politizadas ofuscou a efetividade da

persistência conservadora’ (Netto, 1996: 112) que dispõe de profundas raízes na

categoria” (Iamamoto, 2008, p. 277). A autora segue destacando que:

Para o autor, o processo de renovação teórica e cultural do Serviço Social, ao esgarçar o lastro conservador antimoderno que cravou o passado profissional, resultou na constituição de uma intelectualidade dotada de maioridade no campo da elaboração teórica, que animou o mercado editorial com dominante influência da tradição marxista. Assim, a literatura profissional passou a veicular um conjunto de polêmicas relevantes atinentes ao Estado e movimentos sociais, à democracia e cidadania, às políticas sociais – e, em particular à assistência – além dos embates entre teoria e metodologia na formação profissional, permitindo estabelecer uma interlocução com outras áreas do conhecimento (Iamamoto, 2008, p. 277).

A construção da perspectiva crítica no campo da formulação teórica no Serviço

Social avançou na compreensão dos determinantes da intervenção profissional e da

conjuntura e estrutura da sociedade nos aspectos atinentes à atuação profissional, no

entanto, a expressão concreta destes elementos esbarra nas próprias determinações das

políticas sociais e do cerne da atuação dos assistentes sociais nestas políticas.

Na assistência social há uma larga formulação, autores que contribuem não só

para a reflexão teórica sobre esta política, mas são agentes centrais na formulação da

política, nos avanços dos marcos regulatórios e na afirmação de perspectiva de garantia

de direitos neste âmbito.

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Para Iamamoto (2008) um ambiente político marcado pelo colapso do

socialismo real e pela ofensiva neoliberal, junto com a redução da influência de

esquerda marca a cooptação de intelectuais no poder e contribui para a derruição das

bases da hegemonia teórico-cultural que colocaram no cenário os avanços numa

perspectiva de ruptura com o conservadorismo no seio da profissão, sinalizando um

deslocamento destas bases e ameaçando-as (p. 277).

A autora prossegue destacando quais aspectos determinam a preservação de

espaços ocupacionais e a configuração das respostas profissionais que neste processo

serão engendradas, situando-as na necessidade de formação acadêmica, na graduação e

pós-graduação, para romper com o que chama de adestramento teórico.

a preservação dos espaços ocupacionais subordina-se à capacidade demonstrada pelos assistentes sociais de responder às novas competências: a clareza de como respondê-las. Isso remete às responsabilidades da formação acadêmica, dotada de um perfil generalista, complementada pelo fomento de especializações e da formação continuada no campo da pós-graduação (alternativa à graduação já especializada), que resulte num intelectual com qualificação operativa para além do adestramento teórico (Iamamoto, 2008, 279).

Compreender a conexão entre formação e intervenção profissional é

fundamental, a nosso ver, para que possamos identificar os limites e as possibilidades de

atuação, com análises institucionais que reflitam a realidade e suas contradições

conjunturais e estruturais. No entanto estes aspectos continuarão sendo condicionados

pelas condições que os profissionais mesmos identificarão. Consideramos que não

podemos situar no campo da vontade e da capacidade de formulação as condições que

promoverão uma intervenção profissional conectada, ou não, com o projeto profissional

hegemônico.

Segundo Iamamoto (2008) a profissão é tratada por Netto (1996) fundamentada

pela dimensão política como instância decisiva para assegurar a hegemonia da ruptura com o conservadorismo e alargar as bases sociais de legitimidade do Serviço Social junto às classes subalternas. A profissão passa a ser tratada como um campo de lutas, “em que os diferentes segmentos da categoria, expressando a diferenciação ideopolítica existente na sociedade, procuram elaborar uma direção estratégica para a sua profissão” (Netto, 1996 in Iamamoto, 2008, p. 27).

Esta direção estratégica afirmada e determinada pela dimensão política passa

pela mediação interna à profissão, por meio da interlocução de suas entidades

representativas (CFESS/CRESS, ABEPSS, ENESSO), pela articulação da categoria

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diante de sua intervenção profissional, mas estão mediadas fundamentalmente pelas

condições que se estruturam as lutas sociais e a organização geral dos trabalhadores,

pois a afirmação de um projeto profissional vinculado à garantia de direitos para esta

classe depende fundamentalmente de como esta classe se insere nas relações sociais e

na capacidade de frear a redução de direitos e avançar nas conquistas.

Os limites circunscritos à atuação da profissão de forma organizada se relaciona

às fronteiras que qualquer profissão enfrenta no seu interior, que é o condicionamento

posto pela fragmentação do trato da “questão social” em suas manifestações –

especialmente via políticas sociais – e das respostas articuladas no âmbito do

capitalismo.

Para Iamamoto “A centralidade assumida pelas respostas profissionais, de

caráter teórico-prático, às demandas emergentes – expressão das transformações vividas

pela sociedade nas últimas décadas – mostra um estatuto profissional aberto a novas

possibilidades, o que contrasta com o circuito fechado que informava a análise da

fenomenalidade da prática no debate sobre o sincretismo” (Iamamoto, 2008, p. 280).

Esta autora considera que o diferencial que Netto destaca nos ensaios de 1992 e

1996 se situa na dimensão contraditória das relações sociais e das respostas articuladas

neste âmbito e não apenas como reprodução da lógica reificada do capital (Iamamoto,

2008, p. 280) destaca que estas respostas são “permeáveis a uma direção estratégica

contra-hegemônica. A profissão é atravessada pela luta de classes, o que comparece

diluído na elaboração anterior” (Idem).

Iamamoto prossegue afirmando que a inflexão mediada pela dimensão política

da profissão e destaca que há uma inflexão em 1996 quando Netto sinaliza esta

dimensão para afirmação do projeto profissional hegemônico.

Essa inflexão não pode ser debitada apenas à presença de bases sociais da categoria voltadas a uma direção social estratégica contra-hegemônica informada pela tradição marxista, responsável pela renovação da cultura profissional. Ora, os determinantes societários do sincretismo, tal como propostos no primeiro texto, transcendem essas injunções, porquanto inscritos na própria concepção de reprodução social expressa pelo autor na primeira elaboração comentada. A hipótese é de que há, de fato, nesse segundo momento, uma revisão do “sincretismo da prática indiferenciada”, ainda que não explicitada pelo autor. Ela é tributária da análise do processo de reprodução social saturado de contratendências, tal como expresso na lógica da construção do texto, inteiramente permeado pelos dilemas contraditórios da história do tempo presente (Iamamoto, 2008, pp. 280-281).

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A nosso ver ainda que a dimensão política esteja concretamente inscrita na

profissão na mediação que realiza no bojo das relações sociais e da esfera reprodução

social afinada as contra-tendências que se desenham no seu interior e na qual se

circunscreve a intervenção profissional superdimensiona a capacidade de consolidação

de conquistas ancoradas neste processo, visto a envergadura que o capitalismo toma nos

tempos atuais.

As respostas prático-profissionais são alçadas a um papel de destaque, enquanto terreno privilegiado do embate ideopolítico, traduzido em “respostas profissionais de caráter interventivo” às exigências do mercado de trabalho, mas capazes de se distanciarem dele criticamente. A condição para tanto é que essas respostas sejam conectadas às tendências dos processos sociais e a um projeto contra-hegemônico para a sociedade, desafio necessário para o aprofundamento dos rumos impressos à renovação do Serviço Social no País, norteados pela teoria social crítica (Iamamoto, 2008, p. 281).

Não se pode confundir o espaço profissional como espaços de militância no que

diz respeito à intervenção profissional, uma prática mediada pela dimensão política

compreende as limitações de ordem institucional para que sejam propostas medidas que

interfiram nas relações nela engendradas, mas vão além do âmbito da prática

profissional stricto sensu147.

O efeito da atividade profissional no processo de reprodução das relações sociais não decorre apenas do seu “modo de operar”, que, segundo [Netto], historicamente pouco se diferenciou das atividades similares que antecederam essa profissionalização; mas sim de sua funcionalidade social, indecifrável se pensada como atividade do indivíduo isolado, porque depende dos organismos aos quais se vincula e das relações sociais que lhe dão vida (Iamamoto, 2008, p. 283).

Estão presentes no interior da profissão perspectivas diversas que são baseadas

em diferentes ideologias, como destaca Netto, que tende a fundir concepções que muitas

vezes sequer dialogam entre si, para estruturar respostas que possam dar conta da

realidade e afirmar o projeto profissional em meio às determinações concretas que

permeiam a categoria. Esta percepção imprecisa que configuram o objeto da profissão e

criam diferentes antagonismos e a busca de sínteses que reimpliquem a profissão no

projeto hegemônico ou em projetos profissionais diversos que estejam mais próximos

das respostas demandadas à profissão.

147 Importante destacar que no âmbito institucional se organizam movimentos e a atuação sindical também e se circunscrevem na luta mais ampla por afirmação de conquistas institucionais dentre o conjunto de profissionais que atuam em determinado campo e de segmentos e categorias inscritos nas relações institucionais e de políticas sociais (também no âmbito privado e não-governamental) em que se circunscrevem os assistentes sociais no bojo da sua relação com os trabalhadores de forma geral.

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Netto (1999) já destacava que estas questões não podem ser resolvidas apenas

dentro do corpo profissional e que a análise do movimento real é o que pode imprimir a

indicação de soluções que contribuam, inclusive, com o movimento geral de

organização dos trabalhadores.

É evidente que estas divergências não podem ser resolvidas somente no marco do corpo profissional. Seu direcionamento positivo exige a análise do movimento social (que é o movimento das classes e camadas sociais) e o estabelecimento de relações e alianças com outros corpos profissionais e segmentos sociais (aqui incluídos os usuários dos serviços profissionais), principalmente aqueles vinculados às classes que dispõem de potencial para gestar um projeto societário alternativo ao das classes proprietárias e dominantes (Netto, 1999, p 6).

Entendemos que estas determinações devem estar presentes para a análise dos

processos sociais que se põem nos espaços profissionais, na formulação, gestão e

execução das políticas sociais para que possamos avançar na direção do horizonte

apontado no projeto profissional dos assistentes sociais, a necessária construção de uma

nova ordem societária, onde direitos sejam garantidos de forma concreta e em que se

supere a exploração e opressão do homem por meio da apropriação a acumulação das

riquezas socialmente produzidas, uma sociedade sem exploração do trabalho e sem

classes sociais.

No campo das políticas sociais, perpassado pelo processo de assistencialização,

reside um dos desafios dos tempos atuais que se situa no campo da profissão (sua

fiscalização, regulamentação e exercício) e na relação com o movimento geral dos

trabalhadores. Superar aspectos das respostas a “questão social” articuladas no

capitalismo não encontra soluções no interior de uma profissão, mas a contribuição que

o Serviço Social pode oferecer situa-se na formulação teórica e política, assim como em

projetos que sinalizem as contradições presentes no interior destas políticas nas quais

atua.

A atuação dos assistentes sociais no campo da assistência foi ampliada nos

últimos anos e sua presença não é o que o caracteriza como “profissional de assistência

social” ou determina sua identidade como profissional “protagonista” desta política

social, no entanto, nos cabe a atenção às demandas historicamente postas à profissão.

O Serviço Social possui relativa autonomia tensionada pelos empregadores e

pelas demandas aos profissionais, particularmente num período de retração de direitos,

reestruturação produtiva e de predomínio do ideário neoliberal e crise, cenário em que

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se amplia a requisição de serviços sociais e pela mediação do assistente social nas

diversas políticas sociais para consecução destes direitos.

Neste contexto estes serviços mediados pelos assistentes sociais, particularmente

os de assistência social, figuram como benesse, iniciativa de governos que lançam suas

marcar (nos três níveis de governo), sem a característica de conquista resultante da

organização e da luta dos trabalhadores, mas como fruto de concessões que sequer se

caracterizam como direito permanente garantido a quem dele necessitar, mesmo quando

dentro dos perfis e parâmetros estabelecidos, visto as metas baseadas no

contingenciamento de recursos.

O desafio reside em não alimentar o fatalismo, mas estabelecer uma leitura da

realidade crítica e parametradas nas condições concretas que se desenvolve o exercício

da profissão. Como destacamos na análise de Netto (Iamamoto, 2008), o movimento de

afirmação de um referencial crítico de análise foi superdimensionado, frente a uma

inserção prática demandada institucionalmente – especialmente nas políticas sociais –

para mediação e administração de serviços assistenciais, emergenciais e fragmentados,

configurados pela própria rede com a qual o Serviço Social atua.

Podemos observar que no atual contexto de crise a intervenção profissional é

demandada, mas não para fortalecer processos de organização dos segmentos com os

quais atua, mas para mediar os serviços oferecidos pelo Estado. A ultrapassagem do

sincretismo teórico não elimina esta característica sincrética da prática do exercício

profissional, devido a própria inserção do Serviço Social no mercado de trabalho e os

meios e finalidades que lhe são colocados.

A busca por uma especificidade para a profissão encontrou eco na ampliação e

no destaque da Assistência Social dentre as políticas de Seguridade Social e a ampliação

do mercado de trabalho neste campo. Nossas preocupações residem na qualificação

desta política, na retomada da concepção ampliada de Seguridade Social e no

desvelamento do processo de assistencialização.

O assistente social, ao mediar serviços sociais nas políticas sociais em que está

inserido, participa da reprodução e reposição das expressões da “questão social” ainda

que o projeto hegemônico da profissão seja a orientação de sua intervenção. Há de se

dimensionar os aspectos concretos da intervenção – o acesso aos serviços e benefícios

no âmbito das políticas sociais – e a dimensão “pedagógica”, sem superdimensionar esta

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última como aquela que permite expressar a direção social da profissão, na medida em

que está perpassada pela capacidade circunscrita à formação, análise institucional,

pesquisa e outros aspectos que dependem diretamente dos profissionais.

A mutação do papel da política de Assistência Social enquanto política de

Seguridade Social traduzida numa política de combate à pobreza tem incidência

fundamental na construção de consensos em torno de como devem ser tratadas as

expressões da “questão social” e de como elas aparecem em nossa sociedade. O

processo de assistencialização das políticas sociais implica em rebatimentos concretos

na prática profissional, e não só, marca, em especial na Assistência Social, a formulação

política e teórica em suas fundamentações. Afirmar uma direção crítica no bojo deste

processo significa consolidar direitos para o combate às desigualdades sociais, num

momento que elas se traduzem pela naturalização da pobreza e consolidação de uma

cultura que socializa a crise.

Para que as diferentes dimensões da profissão se expressem de forma articulada

é necessário reafirmar a referência num projeto societário oposto ao capitalismo, tal

qual a direção social da profissão é afirmada pelos segmentos mais críticos. A dimensão

teórica crítica, que se expressa numa ética vinculada aos interesses da classe

trabalhadora não pode ser operada mecanicamente na prática cotidiana por meio de

projetos de intervenção que sinalizem as necessidades do público usuário e, as

dificuldades em garantir acesso. A ruptura com estas condições, que são as mesmas que

estabelecem a requisição profissional: a constituição de políticas estatais que repõem em

bases ampliadas a “questão social”, constituem os limites para a afirmação deste projeto

profissional nesta ordem societária.

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CCoonnssiiddeerraaççõõeess ffiinnaaiiss

O processo de assistencialização das políticas sociais tem como marca a

constituição de um modelo de Seguridade Social minimalista e focalizado que, como

vimos tem como pilar a estruturação de programas e projetos de alívio da pobreza que

se traduzem em ações que buscam racionalizar benefícios e serviços voltados para as

populações mais pobres (em termos de renda) dentre os setores pauperizados numa

perspectiva de administração e gestão da pobreza em seus fenômenos mais agudos e

aparentes, como a fome e recursos materiais/econômicos mínimos de sobrevivência

biológica.

Este contexto de reformulação das políticas sociais no Brasil incide no mercado

de trabalho e no exercício profissional dos assistentes sociais, um dos profissionais

diretamente vinculados à formulação e gestão das políticas sociais, e em muitos casos

como agentes mediadores de demandas e, particularmente, dos serviços oferecidos pelas

políticas sociais. O processo de reordenamento da Seguridade Social e especificamente

da Política de Assistência brasileira articula-se de forma direta com a estratégia de

redução dos investimentos nas políticas estruturadoras de direitos, com base numa

política econômica que privilegia, por um lado, o acúmulo e concentração de riquezas

pelo capital e, por outro, o fornecimento de mínimos de sobrevivência para manter

estatisticamente os índices de pobreza e indigência “sob controle”; dessa forma

precariza e privatiza (de forma direta ou indireta) a rede de serviços. Estas mudanças

afetam o Serviço Social uma vez que tornam a intervenção profissional restrita, não por

sua vontade, a reposição das expressões da “questão social” em suas mediações e

encaminhamentos com vistas a garantia de acesso a direitos.

Abordamos no decorrer da nossa exposição à Seguridade Social, não como um

fim em si mesmo, mas como mecanismo tático para a constituição e ampliação de

direitos sociais com vistas à consolidação de um sistema de proteção social universal.

Entendemos que consolidar e avançar nesta perspectiva de Seguridade Social é

necessário, levando em consideração o compromisso profissional com a luta pela

realização plena de direitos e considerando os limites estruturais de sua concretização

numa sociedade composta por classes opostas.

O Serviço Social se insere na maioria das vezes como mediador da relação entre

interesses de classe distintas na sua inserção nas políticas sociais que como vimos vêm

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se traduzindo em ações estatais que assumem a forma de medidas compensatórias de

necessidades e não no espectro de garantia de direitos de cidadania. A profissão aponta

hegemonicamente na sua legislação profissional, formulação e direção política, na

direção social solidária com a classe trabalhadora e com um projeto societário que, na

sua dimensão estratégica, orienta para o futuro e delimita suas bases no presente. Esta

dimensão da profissão, em sua prática política e interventiva, se circunscrevem nos

marcos dos limites e possibilidades profissionais e no bojo da organização mais ampla

da sociedade e da luta de classes.

No campo das políticas de Seguridade Social e da Assistência Social, em

particular, se inscrevem desafios na ordem de alteração dos quadros em que elas se

estabelecem. Sua implementação é norteada por ações de combate à pobreza, nos

moldes da orientação neoliberal, nas quais serviços e benefícios teriam por objetivo

primário a alteração dos índices de pobreza absoluta e indigência, reafirmando assim

uma perspectiva restrita de Seguridade Social e de Assistência explicitada em seus

critérios de acesso e atendimento.

Os assistentes sociais inserem-se nesse contexto de tensão onde são colocados

diferentes projetos societários e de proteção social, âmbito de disputas para afirmação

da direção social da profissão, diante dos impasses postos pelas demandas, pelos

recursos disponíveis e a necessária afirmação do projeto profissional.

No caso da Política de Assistência Social a principal porta de entrada – para

acesso á benefícios e serviços – são os Centros de Referência da Assistência Social

(CRAS)148 e os CREAS, centros em que sempre devem estar presentes os profissionais

assistentes sociais como técnico de referência149.

O CRAS (ou Casas das Famílias) entendido como espaço responsável pelos

serviços continuados de proteção social básica, é assim caracterizado como: espaços físicos localizados estrategicamente em áreas com maior índice de vulnerabilidade e risco social e pessoal. Prestam atendimento socioassistencial, articulam os serviços disponíveis em cada localidade, potencializando, coordenando e organizando a rede de proteção social básica intersetorialmente com políticas de qualificação profissional, inclusão produtiva, cooperativismo e

148 “O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é uma unidade pública da política de assistência social, de base municipal, integrante do SUAS, localizado em áreas com maiores índices de vulnerabilidade e risco social, destinado à prestação de serviços e programas socioassistenciais de proteção social básica às famílias e indivíduos, e à articulação destes serviços no seu território de abrangência, e uma atuação intersetorial na perspectiva de potencializar a proteção social” (fonte: MDS, www.mds.gov.br ) 149 Nos municípios de pequeno porte (I) um assistente social por equipamento, pequeno porte (II) dois assistentes sociais e pelo menos dois destes profissionais em municípios de médio e grande porte, metrópole e Distrito Federal (fonte: Idem, cf. NOB – SUAS).

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demais políticas públicas e sociais em busca de melhores condições para as famílias (fonte: MDS, 2009).

Segundo a legislação vigente, os técnicos lotados em esses equipamentos

públicos devem participam de atividades de recepção e acolhimento de famílias,

realização de procedimentos profissionais relacionados às demandas de proteção social

de Assistência Social, vigilância social: acompanhamento familiar “em grupos de

convivência, serviço socioeducativo para famílias ou seus representantes; dos

beneficiários do Programa Bolsa Família, em especial das famílias que não estejam

cumprindo as condicionalidades; das famílias com beneficiários do BPC”,

encaminhamento para avaliação e inserção dos potenciais beneficiários do PBF no

Cadastro Único e do BPC, na avaliação social e do INSS, dentre outras atividades

(Idem).

Em nossa experiência profissional nos CRAS150 foi possível verificar como estas

atividades, características indicadas pela legislação, podem comprimir o conjunto de

atribuições e competências previstas nos artigos 4º e 5º da Lei de Regulamentação da

profissão e do Código de Ética Profissional, especialmente: o concernente ao

atendimento, pesquisa, orientação dos usuários com vistas a utilização de recursos –

através da rede de serviços sociais para a garantia de direitos (art. 4º da lei

8.662/1993)151. Estas atribuições são comprometidas no bojo do reordenamento das

políticas sociais enquanto espaços ocupacionais e rede de serviços152.

As atividades desenvolvidas pelos assistentes sociais nos CRAS basicamente

consistem em: atendimento social, visitas domiciliares, reuniões com famílias,

150 Atuamos na área durante o período que compreendeu os anos 2006-2009 em duas prefeituras municipais em Nova Iguaçu (baixada fluminense) e Rio de Janeiro (capital). Passou não somente pelos CRAS, mas pelo CMAS de Nova Iguaçu, como secretária executiva. 151 Destacamos os itens V, VI e VII do art. 4º, que delimitam competências profissionais circunscritas na relação com a rede de serviços, pesquisa e avaliação cabendo ao assistente social a orientação dos usuários para identificar recursos e de fazer uso dos mesmos no atendimento e na defesa de seus direitos; planejar, organizar e administrar benefícios e serviços sociais e planejar, executar e avaliar pesquisas que possam contribuir para a análise da realidade social e para subsidiar ações profissionais, o art. 5º refere-se às atribuições privativas, que dizem respeito a ações exclusivas em matéria de Serviço Social (Lei 8.662/1993). 152 A cartilha “Parâmetros para atuação de assistentes sociais e psicólogos na Política de Assistência Social” produzida pelo CFESS e o CFP orienta as ações dos técnicos que atuam no CRAS, assistentes sociais e psicólogos, como nos referimos no Capítulo 2, item 2.3. As orientações compreendidas no Guia de Orientação Técnica do SUAS (Nº 1) Proteção Social Básica De Assistência Social (2005) supõe Conhecimento da legislação, dos “fundamentos éticos, legais, teóricos e metodológicos do trabalho social com e para famílias, seus membros e indivíduos” e de “trabalho com grupos e redes sociais”. E a capacidade de: “executar procedimentos profissionais para escuta qualificada individual ou em grupo, identificação de necessidades e oferta de orientações a indivíduos e famílias, fundamentados em pressupostos teóricometodológicos, éticos e legais; articular serviços e recursos para atendimento, encaminhamento e acompanhamento das famílias e indivíduos; trabalhar em equipe; produzir relatórios e documentos necessários ao serviço; desenvolver atividades socioeducativas de apoio, acolhida, reflexão e participação, que visem o fortalecimento familiar e a convivência comunitária” (fonte: Guia de Orientação Técnica do SUAS, 2005).

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articulação com a rede social e visitas institucionais153. Como já foi destacado no

capítulo que precedeu estas considerações154, e conforme verificamos ocorrer no

cotidiano da prática profissional, existe uma restrição significativa dos atendimentos e

intervenções profissionais às situações emergenciais apresentadas pelos indivíduos,

como, por exemplo: monitoramento, controle e inserção nos programas de transferência

de renda, principalmente no Programa Bolsa Família (PBF), programa que assume um

lugar central na assistência, constituindo-se no “quase tudo” do sistema de proteção

social brasileiro (parafraseando Lavinas).

A crescente demanda pelo programa e por outros benefícios e serviços pela

população mais pauperizada é direcionada para estes equipamentos, o fluxo de

demandatários, as inúmeras tarefas que são colocadas no âmbito da “supervisão” de

programas e projetos (como PETI, ProJovem Adolescente e Urbano) implica na

constituição de “plantões” para que pelo menos o atendimento presencial seja garantido,

ainda que não haja resultados concretos para as demandas destes usuários.

Trabalhar com estas demandas emergenciais e buscar as implícitas é uma tarefa

dos assistentes sociais, no entanto o seu desvelamento não implica necessariamente que

seus encaminhamentos contemplem estes pleitos. Mesmo atuando com a rede de

serviços revelam-se situações de burocratização, quando os desdobramentos das

intervenções profissionais esbarram numa série limitações como: os “testes”

comprobatórios para inserção dos beneficiários em programas e projetos, a precarização

da rede, a falta de recursos humanos, financeiros, infra-estruturais etc., que não

permitem realização dos atendimentos com a qualidade mínima necessária e requerida

para dar resposta às demandas da população.

Essa concentração da assistência social na transferência de renda e desta no PBF

conduz a uma concentração dos esforços nesse programa, uma vez que no PBF há a

necessidade de comprovação de renda familiar (na maioria dos casos, os vínculos

precários de trabalho dos membros que compõem as famílias contemplam-nas como

beneficiárias do mesmo155, mas em casos que há renda formal e ela ultrapassa os valores

153 Também eram realizadas visitas domiciliares encaminhados pelo Ministério Público, Vara da Infância e da juventude, dentre outros. Devido a precariedade das contratações nestes setores os relatórios eram encaminhados – em parceria firmada pela Prefeitura e estes órgãos – para que os técnicos dos CRAS realizasses as visitas em seu território para emissão de parecer e “inserção” na rede de serviços sociais. As medidas sócio-educativas, que passaram para a responsabilidade municipal, também foram direcionadas para o atendimento nos CRAS sem qualquer estruturação e direcionamento específico para a realização deste acompanhamento. 154 Observar as considerações no capítulo 2, item 2.3, sobre a Cartilha com os parâmetros de atuação de assistentes sociais e psicólogos elaborada pelo CFESS e CFP. 155 A inserção não significa “beneficiamento”, visto que existem metas nos municípios que, em caso de extrapolamento destas metas são priorizadas as famílias com menos recursos (dentre as que já têm menos recursos).

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per capita definidos pelo programa, não é possível incluí-los, ainda que as diferenças

sejam mínimas); assim como se requere um acompanhamento das condicionalidades

exigidas pelo programa (nas áreas de saúde, educação e assistência social).

Os usuários que procuram ou são beneficiários do PBF na maioria das situações

não acessam o programa como direito, mas como uma ajuda, um auxílio dos

governantes ou profissionais gestores do programa. Observamos isso mesmo em

atividades coletivas, como reuniões com famílias156. A possível defesa de ações

individuais por parte dos profissionais para contemplar famílias neste perfil, que não é

imediatamente “público-alvo”, não é uma solução pertinente, visto que se localiza numa

ação individual que é passível de ser eticamente condenável, ainda que as finalidades

tenha o sentido de garantir melhor condição de vida para aquele usuário ou família157.

Mesmo sendo os CRAS equipamentos públicos, estes não são percebidos pelos

usuários e em alguns casos pelos gestores, técnicos e profissionais como espaços

públicos; essa visão difusa dos CRAS pode estar vinculada ao fato de que os programas

e projetos viabilizados na área de assistência social, em sua maioria, relacionam-se

ainda com as parcerias público-privadas, seja com a própria rede de entidades

assistenciais credenciadas (como as religiosas, filantrópicas, de ajuda em geral etc.) ou

com diferentes ações desenvolvidas pelos governantes orientadas pela lógica da ajuda e

do favor.

Nos locais nos quais os CRAS são instalados convive-se, muitas vezes, com a

existência de “centros sociais” que podem responder com mais rapidez e com maior

concretude às demandas postas pelos usuários que não são respondidas por meio do

acesso aos serviços públicos 158 e contam com a parceria das associações de moradores

em pactuação com seus promotores.

No caso de nossa atuação nos municípios do Rio de Janeiro e Nova Iguaçu estas metas ainda não comprometiam o acesso aos benefícios pelos usuários incluídos dentro do perfil de renda. 156 As reuniões realizadas com as famílias beneficiárias para apresentação de programas e projetos, explicação de condicionalidades do PBF e para o debate de outras temáticas pode ser considerada uma “ação educativa”, no entanto as condições de vida precárias, a organização das “comunidades”, suas associações de moradores entre outros elementos implicavam em dificuldades em reconhecimento de representações e ações coletivas em defesa de direitos. 157 A ampliação de critérios não depende da intervenção individual do assistente social. Ainda que haja margem nas considerações sobre a renda familiar, principalmente quando é informal, não são as condições gerais que orientam os programas. A RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) filtra os dados dos beneficiários do PBF para verificar se a renda declarada está em conformidade com os critérios do programa. Caso haja inconformidades o usuário tem que comprovar sua carência (testes de meios) para permanecer como beneficiário ou tem seu benefício bloqueado. 158 Os centros sociais são espaços privados financiados por políticos em gestões municipais principalmente (vereadores) que os instalam em localidades carentes de serviços públicos. Oferecem “serviços sociais” que vão de atendimentos na área médica e odontológica (consultas básicas, exames preventivos etc.) a fotografias para emissão de documentos, cestas básicas etc. Não há transparência nos recursos utilizados (origem e controle) e estes serviços vinculam a população atendida aos indivíduos que promovem estas atividades, são utilizados como contrapartida para o recebimento de votos nas eleições.

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O encaminhamento das demandas para a rede filantrópica (conveniada ou não)

contribui para a confusão entre público e privado, e favorece a indefinição e

justaposição entre assistência social e filantropia/benesse. O padrão estabelecido na

prestação de serviços no âmbito da Assistência Social atribui responsabilidades

compartilhadas e é baseada na formação de redes de solidariedade, auto-ajuda e ajuda-

mútua (Cf. Montaño, 2007) e esta lógica não foi rompida com a implementação do

SUAS e são estes limites que perpassam a atuação dos assistentes sociais em sua prática

profissional.

As considerações presentes na PNAS sobre a “subalternidade” dos sujeitos, e da

necessidade de criação de espaços de fomento ao seu protagonismo superdimensiona a

capacidade de mobilização destes segmentos nos espaços de intervenção profissional

por meio de ações desenvolvidas pelos assistentes sociais (e outros profissionais).

A direção social hegemônica na profissão aponta para a afirmação de direitos,

mas a atuação nestes espaços lida com uma concepção de administração da pobreza em

seus programas e projetos, na “prevenção” de situações de “vulnerabilidade” e

“exclusão social”, numa orientação afinada ao ideário neoliberal, da afirmação de

parcerias, redes de solidariedade e de ações do estado e da sociedade civil que se

equivalem, pois não oferecem garantias de direitos, apenas ações pontuais e focalizadas.

Não é toda demanda apresentada que recebe algum encaminhamento ou inserção

em algum programa ou projeto, o “acolhimento” pode se resumir ao atendimento

prestado pelos profissionais que compõem as equipes técnicas, como o assistente social.

A Assistência Social historicamente esteve vinculada ideologicamente à caridade

e filantropia pela própria modalidade de ações que desenvolve. A criação de uma

estrutura com os CRAS no nível da proteção básica (e CREAS na proteção especial), a

realização de concursos públicos e composição de equipes técnicas profissionalizadas é

um avanço na direção de ruptura com esta lógica, mas não é suficiente. Atualmente a

filantropia está profissionalizada em seus equipamentos e serviços prestados, com a

contratação de profissionais para seus quadros, inclusive para atender aos requisitos de

certificação para que possam receber recursos públicos por meio do conveniamento para

prestação de serviços para o Estado.

Os conselhos de políticas e de direitos, constituídos a partir da década de 1990

com a regulamentação das leis orgânicas das políticas, são considerados espaços

potenciais para a disputa de concepções e projetos, para a garantia dos interesses dos

usuários dos serviços públicos. Nas formulações do Serviço Social, dentre destacados

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autores e dentre as ações políticas das entidades representativas da profissão159, se

destaca a evidência destes espaços de controle social como mecanismos de promoção da

“participação popular”, regulamentados por lei para a garantia de representação (e

disputa) de interesses dos segmentos governamental, de trabalhadores e usuários dos

serviços prestados pelas políticas, possibilitando, em princípio, a participação destes

últimos no controle, formulação, definição e na fiscalização das políticas sociais.

Conforme caracteriza Bravo a instalação e implementação destes espaços

configurou-se num período adverso para a consolidação do controle social como medida

efetivamente garantidora dos interesses da classe trabalhadora.

A sociedade brasileira, nos anos 80, ao mesmo tempo em que vivenciou um processo de democratização política superando o regime ditatorial instaurado em 1964, experimentou uma profunda e prolongada crise econômica que persiste até os dias atuais. As decepções com a transição democrática ocorreram, principalmente, com seu giro conservador após 1988, não se traduzindo em ganhos materiais para a massa da população (2001, p. 77).

Para Bravo a participação da população no controle social é concebida “como a

gestão nas políticas através do planejamento e fiscalização pela sociedade civil

organizada” (Idem, p.78) no estabelecimento de novas bases na relação entre Estado e

sociedade. Não expressa a perspectiva de controle “coercitivo” exercido pelo Estado,

mas de “participação da população na elaboração, implementação e fiscalização das

políticas sociais” (Ibidem).

No caso dos conselhos de Assistência Social160 há aspectos característicos pela

condição dos usuários dos serviços, em sua maioria representados pelas entidades

prestadoras de serviço em muitos casos vinculadas às práticas de caridade e

filantropia161. Observamos que no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS)

cada vez mais predominam na representação da “sociedade civil” as entidades religiosas

159 Dentre os autores destacamos Bravo (Cf. 1996; 2001; dentre outros) e os Relatórios dos Encontros Nacionais do Conjunto CFESS/CRESS (disponível em www.cfess.org.br). 160 Os conselhos e conferências de Assistência Social, regulamentados pela lei 8.742/93, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) como espaços deliberativos e de participação popular. 161 Na representação titular da “sociedade civil” temos dentre as “entidades e organizações de Assistência Social” a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB (organização da Igreja Católica), a Federação Brasileira das Associações Cristãs de Moços e a Associação da Igreja Metodista; dentre os “representantes dos usuários ou de organizações de usuários” a Associação para valorização e Promoção de Excepcionais – AVAPE, a União Brasileira de Cegos – UBC e a Federação Nacional das APAES e dentre os “representantes dos trabalhadores da área de Assistência Social” a Federação Nacional dos Assistentes Sociais – FENAS, a Federação Nacional dos Empregados em Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas – FENATIBREF e a Federação Nacional dos Psicólogos – FENAPSI. Que, junto com a representação governamental (com quatro representantes titulares do MDS, dois do Ministério Do Planejamento, Orçamento e Gestão – MP e um do Ministério da Fazenda – MF, junto a dois representantes estaduais, um do Rio de Janeiro e outro do Rio Grande do Sul) compõem os dezoito conselheiros nacionais (fonte: CNAS, www.mds.gov.br/cnas).

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(como CNBB e ACM) e, dentre a representação de usuários e suas organizações, as

entidades prestadoras de serviços (como a APAE) como sinalizamos. O exercício do

controle social no sentido de estabelecer garantias para os usuários dos serviços pode

ser comprometido, também, na forma de representação dos usuários nos conselhos de

Assistência Social e pelos interesses que venham prevalecer para estas entidades na sua

relação com o Estado.

Destacamos que até 2008 competia aos conselhos fixar normas para a concessão

de registros e certificado de fins filantrópicos às entidades privadas prestadoras de

serviços e assessoramento de assistência social e a concessão do atestado de registro e

certificado a estas entidades (art. 18, parágrafos III e IV). Ainda que os conselhos sejam

tenham o caráter fiscalizador sobre as entidades de atendimento, assessoramento e de

garantia e defesa de diretos, conforme disposto no decreto 6.308/2007162, recentemente

a edição da Medida Provisória em 2008 (MP 446/2008)163 transfere a responsabilidade

pela certificação para os Ministérios da Saúde e Educação, no caso de entidades

prestadoras de serviço nestas áreas e, no caso da Assistência Social, o Ministério de

Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Segundo esta Medida a certificação para entidades e organizações de assistência

é automática quando possuir vínculo com o SUAS, em seu artigo 21 versa que “a

comprovação do vínculo da entidade de assistência social à rede socioassistencial

privada no âmbito do SUAS é condição suficiente para a concessão da certificação, no

prazo e na forma a serem definidos em regulamento” (Brasil(c), 2008)164.

Estes espaços são um direito conquistado, mas ainda não se consolidaram, a

nosso ver, como espaços públicos de defesa da política de assistência social nem como

espaços de participação dos usuários. A capacidade deliberativa dos conselhos é cada

vez mais limitada e tende a expressar interesses opostos aos das classes trabalhadoras,

programáticas tende a ser desconsiderados165. Ainda que sejam espaços tensos, nos

162 O decreto 6.308/2008 dispõe sobre as entidades e organizações de assistência social de que trata o art. 3o da LOAS, e dá outras providências. 163 A Medida Provisória 446, de novembro de 2008, dispõe sobre as novas regras para certificação das entidades beneficentes de assistência social, regula os procedimentos de isenção de contribuições para a seguridade social, e dá outras providências e dispõe que o CNAS não mais será o órgão responsável pelo processo de certificação de entidades. 164 Com a alteração dada pelo decreto 446/08 CNAS cabe, neste processo, “acompanhar e fiscalizar o processo de certificação” junto ao MDS e “apreciar relatório anual que conterá a relação de entidades e organizações de assistência social certificadas” dando ciência aos conselhos nas demais esferas de governo (Idem). Estas alterações, a nosso ver, distanciam cada vez mais os conselhos de seu caráter fiscalizador e deliberativo quanto à prestação de serviços, elas legitimam e referenciam cada vez mais a participação privada na Política de Assistência Social. 165 O Conselho Nacional de Saúde (CNS) em 2007 conseguiu afirmar posição contrária ao projeto (PLP 92-A/2007)

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quais diferentes interesses estão em disputa sem mobilização e pressão do conjunto da

classe trabalhadora não são suficientes para garantir posições que afirmem o caráter

público, universal e irrestrito, na contramão da contra-reforma do Estado e do

reordenamento das políticas sociais.

Destacamos dois “eixos” como problemas que também incidem sobre a

organização e participação dos usuários dos serviços de assistência social – e

conseqüentemente na potencialização dos conselhos como espaços para a afirmação de

conquistas de direitos: (a) a lógica de submissão da política de assistência social aos

programas e projetos de combate à pobreza e (b) a relação com a rede de serviços

precarizada ou privada, com caráter fortemente assistencial, marcas da política de

Assistência Social que já caracterizamos nos capítulos anteriores.

O público-alvo das ações desta política se circunscreve a um ciclo de

pauperização crescente, que não encontra respostas consistentes e estruturadora de

direitos nas políticas sociais. É esta fração da classe trabalhadora que tem suas

condições de vida e saúde mais precarizados no capitalismo contemporâneo e, como

afirmamos anteriormente, não tem acesso a direitos estruturais para a garantia de

reprodução social166, substituídos por serviços e ações minimalistas no fornecimento de

insumos para a sobrevivência. A mobilização e participação organizada em associações

e organizações de usuários passa pela mediação dos seus meios de vida precários; pela

fragmentação de demandas por direitos da classe trabalhadora perpassados pelos níveis

de inserção no mercado de trabalho (formal, informal ou desemprego); e, mais, pela

existência deste segmento como classe-em-si e não no espectro do conjunto de

trabalhadores como classe-para-si projetando politicamente seus interesses coletivos.

A constituição da Assistência Social no bojo da Seguridade Social numa

perspectiva ampliada requer o estabelecimento de serviços que atendam com qualidade

as demandas e sejam estruturados como direitos e não como benefícios de caráter

parcial, eventuais e fragmentados. A vinculação precária, informal e o desemprego são a que autoriza a criação das fundações públicas de direito privado (também rejeitado na 13ª Conferência Nacional) e ainda assim antido na pauta do Congresso Nacional pelo Governo. Cabe destacar que o CNS promoveu audiências com as lideranças dos Partidos no Congresso Nacional com o objetivo de ampliar o debate com os parlamentares sobre o assunto realizou contatos com a OAB, Governadores, Prefeitos, Secretários de Saúde e com Ministros do Supremo Tribunal Federal – STF (fonte: CNS: consultado em conselho.saúde.gov.br). Em 2009, a matéria vem tramitando com apreciações em primeiro turno e adiamentos por conta da prioridade de outras pautas. Foi sinalizado um “recuo” do governo federal diante do projeto, desmentido pelo Jornal o Globo em julho do ao ano corrente, declarações creditadas a Temporão de que "o modelo atual é ineficiente, anacrônico e do século passado. É preciso criar metas, contratos, permitir pagamento de salários mais adequados e profissionais mais capacitados". Segundo a reportagem, Temporão "avisou que mantém a luta pelo projeto, embora reconheça a dificuldade de aprová-lo” (fonte: Jornal O Globo, 13/07/2009). 166 Conferir nota 130.

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forma de inserção no “mundo do trabalho” como características predominantes dentre o

público-alvo da Assistência Social. No entanto, a relação desta política com o trabalho,

e com o direito ao trabalho, se dá predominantemente pelo estímulo à criação de redes,

empreendorismo e experiências “inovadoras” fora da formalização que oferece

garantias por meio do acesso à Previdência Social.

Nas palavras de Rodrigues (2009). [A] concepção de seguridade, fruto da luta da classe trabalhadora, nada tem a ver com o empreendedorismo e com a economia solidária propostos hoje. Tal seguridade tem a ver com aquele direito ao trabalho que a classe trabalhadora reivindicou de forma muito explícita desde 1848 e que irá aparecer na Comuna de Paris e retornar, com vigor, em 1917. O empreendedorismo e esta economia solidária têm muito mais similitudes com as propostas do capital de precarizar o trabalho, ampliando a informalidade e a insegurança, do que com o trabalho protegido com direitos, reivindicado pela classe operária (Rodrigues, 2009, p. 27).

Para a autora o trabalho é a âncora da concepção de Seguridade e que foi

possível num outro contexto da luta de classes nos países de capitalismo desenvolvido,

quando havia ainda o “socialismo real” que era um freio para o capital (Idem). Trata-se, portanto, de outro contexto histórico, de outra correlação de forças no plano internacional entre o capital e o trabalho, no qual o direito ao trabalho, enquanto âncora de um sistema de seguridade social capaz de alçar patamares civilizatórios e trazer algumas reformas possibilitava aos trabalhadores sobreviverem, se educarem, se alimentarem e fortalecerem sua organização política e seus interesses (Ibidem).

Os recursos limitados e a fragmentação das políticas se opõem a consolidação da

Seguridade Social tal qual inscrita na Constituição Federal e aos necessários avanços

diante desta formulação, ainda parcial na perspectiva ampliada de atendimento às

necessidades. Para reversão do quadro de pobreza e miséria se faz necessária uma

política econômica diversa da que vem sendo desenvolvida e uma outra cultura de

direitos.

a seguridade social é um espaço de disputa de recursos – uma disputa política que expressa projetos societários, onde se movem os interesses das maiorias, mas estão presentes as marcas históricas da cultura política autoritária no Brasil, que se expressa pela pouca distinção entre público e privado, pelo clientelismo e pelo patrimonialismo. O resultado desse embate tem forte impacto sobre uma parcela enorme da população que conta com as políticas de seguridade para sua sobrevivência (CFESS/CRESS, 2000).

Pensamos aqui a Seguridade Social como uma concepção tática e não como um

fim em si mesma. As reformas no capitalismo são necessárias e somente adquirem a

perspectiva de garantia de direito quando são fruto da organização e da luta dos seus

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demandantes, a classe trabalhadora. A luta dos trabalhadores se estabelece num patamar

de mobilização que pode ser observado ao longo da história nos períodos de ascensão e

refluxo. A crise econômica e os impactos do neoliberalismo têm implicações diretas

sobre os processos que implicam na garantia de direitos, na mobilização social e na

organização dos trabalhadores, não apenas “pano de fundo”.

Compreendemos a Política de Assistência Social como política de Seguridade

Social e que a ampliação da assistência nos moldes em que vêm se constituindo, com

programas e projetos focalizados, que administram os índices de pobreza e miséria

refletem uma conjuntura de crise e das respostas articuladas pelo capital a ela. Os

aspectos da formação social brasileira: sua estrutura econômica-social e o processo de

modernização conservadora põe e repõe contradições e desigualdades sociais e tem suas

determinações expressas na atual conjuntura com o reordenamento das políticas sociais,

o foco no combate à pobreza e a precarização e privatização de serviços.

Pensamos, ainda, que a Assistência Social não é uma política inferior, por tratar

dos segmentos da população mais pauperizados que são fração da classe trabalhadora

com vínculos precários ou desempregados, que não são atendidos por serviços

previdenciários, que oferecem proteção social em caso de necessidades quando os

vínculos com o trabalho precisam ser interrompidos (acidentes, doenças, maternidade,

velhice, etc.). Esta política social faz parte do processo de construção do suporte

necessário para o atendimento às necessidades de reprodução social destes segmentos e

é fundamental para que o enfrentamento à ordem seja uma pauta comum dos

trabalhadores enquanto classe.

Entendemos que a assistência não pode ser apreendida e utilizada como único

mecanismo de enfrentamento das expressões da “questão social” (Mota, 2008, p.145) e

que para avançar em conquistas e consolidação de direitos se faz necessário defender a

Seguridade Social de forma ampla, inclusive para além dos marcos constitucionais. Esta

“bandeira” de luta diz respeito aos trabalhadores que estão inseridos no setor produtivo,

de serviços, funcionalismo público, e também aos que estão desempregados.

Faz-se necessária a organização da classe trabalhadora também à frente das

bandeiras de enfrentamento da retirada de direitos e pela sua ampliação, que significa

pautar também direitos para os segmentos que não são contemplados pela perspectiva

presente na formulação e execução das políticas sociais, os que não são tratados como

fração da classe trabalhadora pauperizada, mas como “excluídos”.

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Consideramos importante observar que esta política social deve ser base também

para o movimento dos trabalhadores organizados, que devem pautar o atendimento às

necessidades básicas dos segmentos pauperizados como pauta do enfrentamento ao

capital; que faça a discussão das estratégias adotadas pelos governos e que aponte para

alternativas a esta política, para que seja vanguarda de um processo que subverta a

ordem do capital, que aponte para a emancipação humana, deve dar conta de representar

também aos interesses daqueles que não têm suas necessidades básicas garantidas.

Estamos num estágio do capitalismo extremamente regressivo para manutenção de

direitos e para o avanço rumo a novas conquistas. Os movimentos que são

empreendidos para que sejam concretizadas referências para a consecução de direitos

esbarram neste processo de refluxo para sua consolidação167. Mas, como afirma Netto

(2007) o desafio reside na garantia de direitos, de conter retrocessos para avançar em

conquistas de direitos que já estão fundamentados.

A quadra que estamos vivendo e que se abriu em meados dos anos 70 do século passado marca um estágio claramente regressivo na história social recente. Alguém poderia observar que, apesar da regressividades atual (ou precisamente por causa dela), poucas épocas históricas registraram tantas demandas de direitos. Porém, se cresceu a consciência acerca de novos direitos, de direitos de terceira geração, mesmo aqueles que os reconhecem teoricamente têm clareza de que nem mesmo os velhos direitos desfrutam de condições reais de vigência – o problema contemporâneo não é o de fundamentar direitos, mas o de garanti-los (Netto, 2007, p. 161).

Neste período de crise, índices refletem a redução de desigualdades entre ricos e

pobres168, não implicada na redução da pobreza, mas por conta do aumento do

desemprego –especialmente com a redução de empregos qualificados – que atinge mais

fortemente os segmentos diretamente vinculados aos setores afetados pela crise. A

estabilidade da pobreza se mantém e não há redução na desigualdade real refletida na

distribuição de renda e riqueza, pois ações neste sentido não vão além dos mesmos

programas de transferência de renda mínima.

O alargamento da distância entre ricos e pobres é uma medida necessária à

reprodução do capitalismo e não há elementos que apontem para a reversão desta

167 No âmbito do CNAS temos o encaminhamento de abaixo-assinado para aprovação do PL SUAS, mobilização pelo conjunto CFESS/CRESS, estabelecimento de parâmetros de atuação para os profissionais de Serviço Social e Psicologia (CFESS/CFP), as Conferências de Assistência debatendo o fortalecimento do controle social, dentre outras ações no âmbito da política de Assistência Social. 168 O Índice de Gini (calculado pelo IPEA) em junho de 2009 caiu para o menor patamar desde 2002. Houve um recuo de 4,1% em relação a 2008, indo para 0,493 e significa uma redução da distância entre ricos e pobres, mas que, de forma alguma, representa melhoria na vida dos pobres, mas reflete o impacto da crise especialmente na classe média (fonte: correio braziliense).

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estrutura “está claro que a ordem social contemporânea não dispõe, conservada a sua

estrutura atual, de qualquer potencialidade para reduzir aquelas distâncias, seja em

escala mundial, seja em escala nacional” (Netto, 2007, p. 161).

As regulações políticas necessárias para, ao menos, atenuar estas distâncias, não

figuram no cenário. Mesmo para os mais otimistas as condições regressivas no âmbito

da garantia de direitos não podem se furtar a uma análise que dê conta dos processos de

longo prazo do capital. Planetarizado e mundializado, o capital escapa aos controles e às regulações políticas a que, nas três décadas gloriosas do Welfare, pareceu submisso. Na verdade, nas atuais condições – socialmente regressivas, culturalmente deletérias e politicamente excludentes – eventuais alternativas democráticas, progressistas e humanistas só seriam pensáveis mediante um planejamento e um controle social racionais; porém, “o capitalismo e a racionalidade do planejamento social abrangente são radicalmente incompatíveis” (Mészáros, apud Netto, 2007, p. 162).

O projeto social-democrata se vê hoje enquadrado pela política neoliberal,

expressada nas medidas que determinam os traços regressivos de nossa época para a

consolidação de direitos. A programática neoliberal para a gestão do capitalismo

subsidia a socialdemocracia. A quadra histórica contemporânea tem seus traços regressivos ainda mais acentuados na escala em que a alternativa socialista viu-se duplamente comprometida a partir dos anos 70 – de um lado, o movimento comunista permanece ainda sob os escombros da queda do Muro e do colapso da União Soviética; de outro, o chamado “socialismo democrático” capitulou vergonhosamente em face do capital, com a socialdemocracia hoje plenamente identificada, do ponto de vista programático, com a gestão neoliberal do capitalismo (Netto, 2007, p. 162).

No Brasil, o neoliberalismo e os resultados das medidas nele inspiradas apontam

para um cenário regressivo para as garantias de proteção social e afirmam a

consolidação de medidas pontuais e paliativas para a contenção da pobreza e da miséria.

O Serviço Social se vê mediado por estas determinações na sua intervenção cotidiana

nas políticas sociais, trabalhando com uma rede cada vez precarizada e com referencial

mais distante do que figurou como projeto para a proteção social com base na

Seguridade Social.

Neste sentido, se põe a necessária discussão sobre a direção social da profissão,

a necessidade da preservação de valores e sua atualização, tal como afirma Netto (2007)

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destacando que o projeto profissional aponta para o futuro em solidariedade com uma

perspectiva societária que interessa à classe trabalhadora. Mas, na medida em que, no Brasil, tornam-se visíveis e sensíveis os resultados do projeto societário inspirado no neoliberalismo – privatização do Estado, desnacionalização da economia, desemprego, desproteção social, concentração exponenciada da riqueza etc. -, nesta mesma medida fica claro que o projeto ético-político do Serviço Social tem futuro. E tem futuro porque aponta precisamente ao combate (ético, teórico, ideológico, político e práticosocial) ao neoliberalismo, de modo a preservar e atualizar os valores que, enquanto projeto profissional, o informam e o torna solidário ao projeto de sociedade que interessa à massa da população (Netto, 1999, p. 19).

Esta direção e este sentido não dependem apenas da capacidade da categoria em

se articular, ela depende de um processo que exige determinações de outra ordem: a

pressão dos movimentos sociais e dos segmentos afetos a esta regressão dos direitos. A

afirmação de direitos não depende da vontade dos agentes profissionais e a encruzilhada

que se põe à profissão, frente a outros projetos que são divergentes, e por vezes opostos

à afirmação hegemônica da profissão, coloca outros desafios a ela e às suas

organizações políticas.

A convivência com projetos conservadores está para além do processo de

assistencialização das políticas sociais. A afirmação destas perspectivas, inclusive em

outras políticas sociais que estão cada vez mais precarizadas, põe os profissionais em

busca de respostas para a sua prática que nem sempre estão circunscritas ao avanço

histórico que alçou.

As dificuldades que se põem no cenário implicam que pensemos e formulemos

ações para o presente para que possam refletir resultados num futuro próximo. A

reversão do quadro de desigualdades, de constituição de reformas que impliquem em

políticas para a garantia de direitos sustentada por uma política econômica redistributiva

é pressuposto para a organização e mobilização dos trabalhadores. Netto (2007) afirma

que a reversão deste processo “é possível, embora pouco provável no curto prazo. Mas

ela é possível no médio prazo se não deixarmos para amanhã o que pode ser feito hoje”

(2007, p. 167).

A Seguridade Social como mecanismo tático significa ter no horizonte uma

perspectiva que vá além da sua consolidação, que aponte para a construção de uma

sociedade baseada em parâmetros e valores anticapitalistas. A concepção de Seguridade

que se consolidou na categoria dos assistentes sociais está posta desde a Carta de

Maceió, entendida “como um padrão de proteção social de qualidade, com cobertura

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universal para as situações de risco, vulnerabilidade ou danos dos cidadãos brasileiros”

(CFESS/CRESS, 2000). Não se limita a uma política social, ou apenas às que se

consolidaram como tal – Saúde, Assistência e Previdência Social – mas a um conjunto

de políticas sociais que tem como parâmetro a participação da população no controle

social.

Compreender o processo de assistencialização das políticas sociais é, a nosso

ver, fundamental para avançarmos no entendimento de como ele se expressa na atuação

do assistente social na política de Assistência Social e nas demais instituições

empregadoras, especialmente no âmbito estatal. A análise destas tendências, da

configuração das demandas institucionais, dos espaços ocupacionais, sem dúvida, é uma

inquietação que permanece. Entendemos que o estudo da configuração dos espaços

ocupacionais dos assistentes sociais, no bojo do reordenamento das políticas sociais,

assim como as características das demandas institucionais e as respostas profissionais

possíveis no arco das possibilidades inscritas nas contradições da sociedade capitalista,

é um passo fundamental para identificar expressões concretas da assistencialização no

Serviço Social e, sem dúvida, nos estimula para a elaboração de nossos estudos futuros.

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