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O período pombalino no norte da América portuguesa: a administração de Francisco Xavier de Mendonça Furtado e a colaboração regalista do bispo Miguel de Bulhões em Grão-Pará e Maranhão (1751-1759) Estevão Barbosa Damacena* INTRODUÇÃO Neste presente trabalho pretendemos travar uma discussão acerca do período pombalino na história do império português, tendo como foco de análise os desdobramentos da política de Estado conhecida como regalismo. Não custa reforçar a ideia de que o movimento regalista teve como característica principal a busca pelo reforço da autoridade régia frente ao controle papal. Objetivou submeter a igreja ao controle do Estado, não mais precisando da interferência do papado romano nas decisões eclesiásticas. Pombal e seus colaboradores queriam engrandecer o poder do Estado. O problema que se instaurava na efetivação deste objetivo era o poder paralelo que a igreja exercia no mundo político da monarquia portuguesa. O regalismo visou não acabar com o poder da Igreja, mas sim cooptá-lo: montar uma realidade no qual o Estado tivesse o controle da instituição eclesiástica, sem qualquer mediação do papa em Roma. Grosso modo, buscava-se a criação de uma igreja “nacional”- com todas as aspas possíveis para esta ultima palavra-, tendo o rei como cabeça da instituição. Posto isso, vale dizer que o regalismo como uma prática efetiva do poder estatal influenciou diretamente o mundo colonial. Nos recorrentes conflitos de jurisdições existentes entre poder secular e religioso aqui existente, prevaleceu a supremacia do primeiro. 1 Pombal e seus colaboradores visaram suprimir e perseguir religiosos em dissintonia com os interesses do soberano, mas também incentivaram e recompensaram aqueles prelados que colaboraram na efetivação dos projetos régios para a colônia. Caso este que é o objeto de estudo deste trabalho. Fizemos uma pesquisa sobre a trajetória do bispo Frei Miguel de Bulhões no Grão-Pará e Maranhão, personagem no qual se configurou como um intenso colaborador das reformas *Graduado em Licenciatura Plena em história pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 1 MUNIZ, Pollyana Gouveia Mendonça. Cruz e coroa: Igreja, Estado e conflito de jurisdições no Maranhão colonial. Revista Brasileira de História, v. 32, p. 39-58, 2012, p. 40.

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O período pombalino no norte da América portuguesa: a administração de Francisco

Xavier de Mendonça Furtado e a colaboração regalista do bispo Miguel de Bulhões em

Grão-Pará e Maranhão (1751-1759)

Estevão Barbosa Damacena*

INTRODUÇÃO

Neste presente trabalho pretendemos travar uma discussão acerca do período pombalino

na história do império português, tendo como foco de análise os desdobramentos da política de

Estado conhecida como regalismo. Não custa reforçar a ideia de que o movimento regalista teve

como característica principal a busca pelo reforço da autoridade régia frente ao controle papal.

Objetivou submeter a igreja ao controle do Estado, não mais precisando da interferência do

papado romano nas decisões eclesiásticas. Pombal e seus colaboradores queriam engrandecer o

poder do Estado. O problema que se instaurava na efetivação deste objetivo era o poder paralelo

que a igreja exercia no mundo político da monarquia portuguesa. O regalismo visou não acabar

com o poder da Igreja, mas sim cooptá-lo: montar uma realidade no qual o Estado tivesse o

controle da instituição eclesiástica, sem qualquer mediação do papa em Roma. Grosso modo,

buscava-se a criação de uma igreja “nacional”- com todas as aspas possíveis para esta ultima

palavra-, tendo o rei como cabeça da instituição.

Posto isso, vale dizer que o regalismo como uma prática efetiva do poder estatal

influenciou diretamente o mundo colonial. Nos recorrentes conflitos de jurisdições existentes

entre poder secular e religioso aqui existente, prevaleceu a supremacia do primeiro.1 Pombal e

seus colaboradores visaram suprimir e perseguir religiosos em dissintonia com os interesses do

soberano, mas também incentivaram e recompensaram aqueles prelados que colaboraram na

efetivação dos projetos régios para a colônia. Caso este que é o objeto de estudo deste trabalho.

Fizemos uma pesquisa sobre a trajetória do bispo Frei Miguel de Bulhões no Grão-Pará e

Maranhão, personagem no qual se configurou como um intenso colaborador das reformas

*Graduado em Licenciatura Plena em história pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 1 MUNIZ, Pollyana Gouveia Mendonça. Cruz e coroa: Igreja, Estado e conflito de jurisdições no Maranhão

colonial. Revista Brasileira de História, v. 32, p. 39-58, 2012, p. 40.

pombalinas para aquela região durante gestão do governador Francisco Xavier Mendonça de

Furtado, contexto este que elucidaremos nas páginas adiante.

O Império, reformas e ação: O governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado e sua

dura missão no norte da América Portuguesa.(1751-1759)

O período pombalino no império português, a partir de uma análise geopolítica, teve por

preocupação máxima a segurança e a manutenção de seus territórios. Dentro de uma conjuntura

de acirramento político com as outras potências europeias, era imprescindível para Portugal

manter suas colônias salvas de invasões inimigas, seja através de um jogo diplomático, seja

através de uma tentativa de criação de mecanismos efetivos para a proteção de seus territórios no

além mar. Em meados do século XVIII, podemos dizer que a situação do império português não

era as das mais favoráveis do ponto de vista da manutenção e segurança de suas colônias2. Na

América portuguesa, o Rio de Janeiro foi alvo, em 1711, de um ataque de corsários franceses. A

riqueza da cidade foi saqueada, causando assim pânico e medo aos moradores, como também

muitos prejuízos aos cofres da coroa3. Na década de trinta do mesmo século o próprio Sebastião

de Carvalho e Mello é enviado em uma missão diplomática à Londres a fim de buscar ajuda na

defesa dos territórios na parte Oriental, em Goa. Inclusive, o irmão mais novo do futuro marquês

de Pombal, José Joaquim, morreu em uma batalha militar na defesa de territórios no pacifico4. Já

na década de 50, a coroa portuguesa selou um acordo d iplomático com a Espanha com o objetivo

de melhor delimitar as regiões de fronteiras no sul e no norte do atlântico, acordo este conhecido

como o Tratado de Madri(1750).

É neste contexto imperial turbulento que o Marquês de Pombal ascendeu ao poder em

1750 como ministro de D. José. O diagnóstico político de Pombal e seus estadistas vão de

encontro ao fato de que a vida econômica de Portugal estava cada vez mais dependente da

América portuguesa. Neste sentido, eram necessárias reformas de cunho econômico e geopolítico

para que este território do atlântico sul não se perdesse para as nações inimigas beligerantes.

2 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. A cidade e o Império. O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003, p. 52. 3 Ibdem, p.53. 4 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal o paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p.2.

Portanto, a monarquia josefina envia à colônia um personagem extremamente importante rumo

ao objetivo de fazer valer os novos desígnios da coroa para o mundo colonial neste contexto de

fragilidade do império português.

Em 1751, enfim Mendonça Furtado recebeu uma nova missão da coroa portuguesa. Seu

nome foi escolhido para ser governador da região norte da América, uma escolha de confiança do

poder régio rumo a um projeto de restauração do Estado de Grão-Pará e Maranhão. 5 Em suma, o

historiador Fabiano Vilaça dos Santos entende que o irmão de um dos validos mais conhecidos da

história de Portugal chegou ao Norte do Brasil para fazer valer na colônia as novas determinações

advindas da metrópole. Mendonça Furtado seria um “personagem central na retomada da

colonização amazônica no período pombalino”.6

Na leitura documental das cartas que ele trocou com seu irmão Pombal, percebe-se que

houve uma contundente insatisfação do governador para com os jesuítas. O motivo segundo ele

que atrasava por completo o progresso do Estado era o enorme poder que os regulares tinham

sobre a vida social e política dos indígenas. Em outras palavras, os jesuítas, segundo o

governador, representavam a ruína do Estado, pois o poder temporal destes sobre os nativos

acarretava muitos prejuízos para o novo projeto que a coroa queria estabelecer. Mendonça

Furtado afirmava que os regulares se utilizavam do domínio temporal de seus aldeamentos para

escravizar os nativos. O governador também acusava os padres da companhia de ensinarem

somente a língua geral, e não o português. Isso acarretou em uma completa insatisfação do

governador, pois a coroa visava naquele momento transformar o índio em vassalo, promover sua

civilidade indígena para que estes se integrassem totalmente a sociedade. Para tal projeto, era

imprescindível que eles aprendessem o português, e isto, segundo o governador, os jesuítas

estavam pouquíssimos dispostos a colaborar.7

5 SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo das conquistas do norte. Trajetórias Administrativas no Estado de

Grão-Pará e Maranhão. (1751-1780). São Paulo: Annablume, 2011. p. 57.

6 Ibdem, p. 52.

7 SANTOS, Fabiano Vilaça dos, op. cit., p. 60-61.

Portanto, o primeiro passo para uma reconstrução daquele Estado às luzes do projeto

pombalino em voga, era necessário se retirar as “plantas daninhas”8. Não há duvidas de que os

jesuítas eram estas plantas daninhas para Mendonça Furtado.

Nesta investida contra os jesuítas e a luta na efetivação dos desígnios pombalinos para a

região, Mendonça Furtado contou um uma colaboração para lá de bem vinda. Trata-se do bispo

do Pará, Frei Miguel de Bulhões, personagem principal doravante.

Regalismo na colônia: O bispo Miguel de Bulhões e seu alinhamento aos interesses régios

O projeto pombalino de retomada da colonização no Estado de Grão-Pará e Maranhão não

poderia ser realidade sem a intensa colaboração do Bispo daquele Estado. Segundo Fabiano

Santos, D. Frei Miguel de Bulhões e sua a colaboração configuram-se como fatores

determinantes para a efetivação das políticas metropolitanas advindas com a chegada de

Mendonça Furtado.9 Yllan de Mattos confirma: “[..]foi, sem rodeios, o responsável pela

efetivação, em simbiose com Francisco Xavier de Mendonça Furtado, do projeto pombalino.”10

Frei Miguel de Bulhões já era conhecido pelo poder régio anteriormente à chegada de

Mendonça Furtado nos trópicos. Frei Bulhões era visto, de certa forma, com “bons olhos” pela

coroa. Isto fica comprovado por meio das instruções régias que o governador recebeu para

nortear sua gestão em 1751. Estava expresso nesta documentação que Miguel de Bulhões seria

um personagem importante na busca de informações sobre o “excessivo poder que têm nesse

Estado os eclesiásticos.”11 Também seria um aliado crucial para a apuração da “verdade [...] a

respeito do mesmo poder excessivo e grandes cabedais dos regulares”.

O prelado, portanto, ingressou no projeto de suprimir o poder demasiado dos jesuítas

naquela região. Bulhões efetivou uma aliança junto à coroa em um enfrentamento aberto contra

os missionários. A confiança “temporal” que o governador tinha no bispo era tamanha que

8 Ibdem, p .58. 9 Ibdem, p. 233.

10 MATTOS, Yllan. op. cit., p. 60.

11 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na era pombalina. São Paulo: Instituto histórico e geográfico

brasileiro,1963, t. 1: 30 apud SANTOS, Fabiano Villaça dos. op. cit., p. 245.

quando teve de ausentar-se rumo à sua missão na demarcação de limites do Tratado de Madri em

1754, Mendonça Furtado deixou justamente o prelado como governador interino.

Mendonça Furtado remeteu uma carta a seu irmão logo no inicio de sua chegada ao Grão-

Pará, cujo conteúdo aludia às suas observações sobre a região, e aqui neste caso se predispôs a

fazer um logo elogio ao caráter do bispo Frei Miguel de Bulhões:

Aqui vim achar o Bispo desta Capitania, o qual seguro a V.Exªque é um Prelado que além de

concorrerem nele todas aquelas circunstâncias que constituem um verdadeiro pastor, até concorrem

as de um benemérito vassalo de S. Maj., porque em tudo o que diz respeito ao Real Serviço, se

interessa como se fosse da sua obrigação, e me fala em tudo o que lhe diz respeito com um zelo

ardentíssimo. Eu tenho estimado infinitamente achá-lo nesta Cidade, e parece-me que além de que

fazemos uma boa sociedade se há de interessar igualmente comigo, para tudo o que for do serviço de

S. Maj.12

Na leitura das correspondências, fica claro para nós que Mendonça Furtado buscou em um

primeiro momento cercar-se ao máximo possível de informações estratégicas sobre o

funcionamento daquele Estado. Através dos relatos do bispo, o governador incorpora a ideia de

que os responsáveis pela ruína da região eram os missionários. O governador em carta a ao

marquês de Pombal no ano de 1752 afirmava que Miguel de Bulhões, “além de ser dotado de um

grande talento e zelo, conhece todas as Missões”.13 Ninguém melhor que o Bispo sabia “das

consequências que se seguem do estabelecimento por que elas (as missões) são administradas, e

com a sua excelente expressão ficaria S. Maj. inteiramente capacitado da maior parte do que se

passa nestas Capitanias”14. Segundo Mendonça Furtado, “ninguém que com mais verdade e

conhecimento” que o prelado para que “pudesse informar a S. Maj” sobre o que realmente

passava naquela região.15

Com efeito, D. José autorizou o bispo do Pará a visitar as aldeias das missões. Miguel de

Bulhões tinha por intuito fazer relatos da situação que observava para posteriormente relatar ao

poder régio. Nestas visitações, o bispo configurava-se como um duplo agente. Sua preocupação

12MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit., p. 161 (Grifo nosso). 13Ibdem. :p. 227. 14 Ibdem, p. 227. 15 Ibdem, p. 227.

não era apenas de matiz religiosa, mas sim imbuída de uma função temporal, pois ali sua

motivação era fazer valer os interesses régios.16

Em carta remetida ao Marquês de Pombal em 1752, o prelado expõe: “nada será bastante

para adiantar o Real Serviço, porque todas as providências conducentes ao bem comum têm aqui

por obstáculo invencível as conveniências dos missionários”.17 O bispo entendia que os jesuítas

se constituíam como um grande empecilho à efetivação dos objetivos metropolitanos para a

região, sobretudo com relação à questão da liberdade indígena, ao projeto de assimilação dos

nativos, à transformação desejada do índio em vassalo. Para Miguel de Bulhões, os inacianos não

estavam nem um pouco dispostos a colaborarem com as “novas regras” do jogo para a questão

indígena. Pelo contrário, segundo a concepção de Fabiano Santos, para o prelado os jesuítas

assumiram uma postura de total oposição a tal projeto.18

A questão da liberdade indígena foi o assunto que permeou toda a trajetória de Francisco

Xavier de Mendonça Furtado e podemos afirmar que o bispo Miguel de Bulhões teve um papel

intenso para que os interesses da monarquia fossem alcançados quanto esta questão.19 Fabiano

Vilaça do Santos afirma que o prelado se utilizou de suas prerrogativas religiosas para

conscientizar os fiéis para a nova realidade política e social no território20. Em seu livro, o

historiador traz as palavras do bispo em uma de suas cartas pastorais:

Impiedades e injustiças com que eram tratados os índios pelos habitantes das índias ocidentais e

meridionais, os esquecidos das próprias leis de humanidade, não só mal tratavam os ditos índios com

atrozes injurias, mas até lhes chegavam a tirar a liberdade.21

A espada e a cruz, o rei e o sacerdócio ganharam um tom de total simbiose na relação do

poder temporal e religioso. Em Grão-Pará, tanto o bispo quanto o governador coadunaram seus

raios de ação para suprimir o poder dos religiosos da Companhia de Jesus. Frei Miguel de

Bulhões era um perfil de bispo ideal para aquele momento político do império português no norte

16 MATTOS, Yllan de. A outra inquisição os meios de ação e funcionamento da Inquisição no grão-pará

pombalino. (1763-1769). 2009. 218 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós Graduação em

História, Universidade Federal Fluminense, p. 58. 17 Ibdem, p. 246. 18 SANTOS, Fabiano Vilaça dos. op. cit., p. 246. 19 Ibdem, p. 247. 20 Ibdem, p. 247. 21 Ibdem, p. 248.

da América portuguesa. Isto fica claro quando Mendonça Furtado precisou se ausentar do Estado

rumo ao encontro dos espanhóis para tentar fazer cumprir o Tratado de Madri na região de

fronteira no extremo norte. O governador não hesitou na escolha do governador interino. Seu

mais “fiel amigo e colaborador”- Miguel de Bulhões- fora escolhido para aquele cargo.

A coleção de cartas reunidas pelo historiador Marcos Carneiro de Mendonça, a principal

fonte usada até aqui, contém poucos fragmentos que tratam justamente deste período do bispo

Miguel de Bulhões como governador interino. Entretanto, afirmamos que as poucas que vimos

foram suficientes para afirmamos que o prelado cumpriu esta missão com zelo e diligência.

A expedição de Mendonça Furtado saiu de Belém no dia 2 de outubro de 1754 em direção

ao encontro com os espanhóis. Entretanto, Santos afirma que a elaboração e execução desta

viajem não foi fácil.22 Houve uma série de dificuldades enfrentadas, dentre elas a que mais se

agravou foi a necessidade de alimentos para a subsistência da comitiva. Como era uma viagem

longa e com um grande numero de contingente (astrônomos, desenhistas, engenheiros, geógrafos,

índios) fazia-se necessário um constante suporte de recursos para o mantimento de toda a

expedição. Miguel de Bulhões fez todos os esforços para que esta situação fosse solucionada.

Pediu ajuda à capitania do Maranhão na produção de alimentos. Retomemos as palavras do bispo:

Tenho continuado em fazer todas as possíveis diligências para socorrer este arraial com

bastante farinha, o que entendo poderei conseguir no presente ano sem dependência do

Maranhão, donde certamente não espero farinha, nem arroz pelas razões, que já tive a

honra de participar a V. Ex.23

A razão alegada pelo prelado era da falta de alimentos que a capitania do Maranhão

também estava sofrendo. Todavia, é importante ressaltar aqui todo o empenho do bispo em atuar

de forma veemente no socorro à expedição, fazendo valer assim seu cargo como governador

interino. Não custa lembrar que o cargo de governador, por mais que fosse interino, não era

concedido a qualquer colono. Na verdade, a posição de governador geral e vice-rei constituíam-se

como cargos máximos da autoridade régia no mundo ultramarino. Os governadores podiam até

22 SANTOS, Fabiano Vilaça dos. op. cit., p. 65. 23 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina: correspondência inédita do governador e

capitão-general do estado Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Brasília: Senado

Federal, Conselho Editorial, 2005, t. 3: p.83.

promulgar leis ou anular decisões judiciais que julgavam soar destoante com os interesses da

monarquia.24Portanto, temos por premissa sublinhar e destacar a relevância desta atitude de

Mendonça Furtado em nomear o bispo como governador interino durante sua ausência do Estado.

Em suma, o irmão do marquês de Pombal confiava nas competências religiosas e, sobretudo

políticas do prelado para o cumprimento dos objetivos pombalinos naquela região.

Agora, uma questão que nos perguntamos após este desenvolvimento até aqui: podemos

considerar o bispo Miguel de Bulhões, de fato, um regalista, dado seu total alinhamento ao poder

régio? A hipótese que temos para responder esta pergunta, com base na documentação, é que o

Bispo Miguel de Bulhões apresentou fortes traços de um prelado regalista.

O primeiro ponto que nos fornece munição para embasar esta hipótese foi a constatação

do total interesse do bispo em deslegitimar a ordem dos jesuítas para com a coroa. Não podemos

fazer uma leitura ingênua deste conflito que se estabeleceu entre o clero regular e o secular no

Grão-Pará. Se levarmos em consideração que Miguel de Bulhões tinha simpatias com o

jansenismo, o lugar de fala do bispo fica comprometido, pois o movimento jansenista foi

responsável pela campanha da difamação da ordem dos inacianos, culminando em sua expulsão

em 1759 pelo consulado pombalino25. Não cabe aqui nos desdobrarmos acerca de uma discussão

densa sobre o que foi o movimento jansenista no seio do mundo eclesiástico português, pois não

temos isso como objetivo do capitulo. Em linhas gerais, o jansenismo tinha simpatias pelo

regalismo26. A relativa autonomia e o demasiado poder dos jesuítas não agradavam em nada os

eclesiásticos de matriz jansenista, consequentemente não agradava ao próprio Miguel de Bulhões.

24 HESPANHA, Antonio Manuel. Antigo regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do império

colonial português. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima(orgs.). Na trama das redes. Política e

negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010, p. 60. 25 MATTOS, Yllan de. A outra inquisição os meios de ação e funcionamento da Inquisição no grão-pará pombalino. (1763-1769). 2009. 218 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, p. 53. 26 SOUZA, Evergton Sales. Jansenismo e reforma da igreja na América portuguesa. p. 3. Disponível em:

http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/evergton_sales_sousa.pdf acessado em: 01/12/15.

A situação agravava-se ainda mais na medida em que os jansenistas tinham concepções

teológicas divergentes dos jesuítas.27

Neste sentido, as palavras do bispo contra a ordem foram passadas pelo filtro de sua

ideologia, culminando assim em informações possivelmente tendenciosas. Quando o bispo

claramente diz que os jesuítas eram um “obstáculo invencível” aos interesses da metrópole na

região, é bem plausível que cheguemos a conclusão de que essas informações estavam

amalgamadas com sua formação teológica- e porque não política- jansenista. Com efeito, a nossa

hipótese é de conceber o jansenismo/regalismo presente nas ações do bispo como elemento

crucial para sua postura anti-jesuítica e, sobretudo, para sua aliança com o governador na busca

da garantia dos interesses régios. Basicamente, não podemos aceitar como “verdade” tudo que o

bispo disse contra os jesuítas. Evidentemente que o discurso de Miguel de Bulhões tem muitos

exageros. Entretanto, nosso interesse não é buscar a “verdade” em suas palavras. Temos que ter

noção que o discurso do prelado é também um discurso político, logo está passível de mentiras na

busca de legitimação de seus interesses.

Vale ressaltar que a postura e as ações de Miguel de Bulhões foram de encontro à garantia

e legitimação de um período de gradativas reformas no interior do império português a partir da

ascensão de Pombal. Foi um bispo que buscou efetivar o projeto pombalino para o Estado de

Grão-Pará ao lado de Mendonça Furtado. Um perfil de prelado que não se preocupou somente

com questões religiosas, mas também buscou atuar na esfera secular de todas as maneiras a fim

de contribuir com os desígnios metropolitanos.

A trajetória do bispo foi observada pelo marquês de Pombal. A partir da década de

cinquenta do século XVIII, o pombalismo não tolerou mais prelados que não estivessem em

sintonia com o poder régio. Os bispos que não estavam dispostos a colaborar viram-se

rapidamente desterrados para Portugal. Caso por exemplo de Antonio José de Queiroz, bispo do

Pará subsequente ao Frei Miguel de Bulhões. Em um período de regalismo promovido pelo

consulado pombalino, seria difícil a sobrevivência de pelados que não estivessem em

27 Sobre as divergências teológicas entre jesuítas e jansenistas, cf. SOUZA, Evergton. Jansenismo e reforma da

igreja na América portuguesa. op cit., p. 5

alinhamento ao Estado. D. Miguel de Bulhões pode ser encarado como bispo de “transição” em

uma época de transformação da estrutura política e econômica do império português. É fora de

duvida dizer que o poder eclesiástico não foi “domesticado”; ele foi cooptado a fim de que os

interesses seculares fossem garantidos e realizados.

CONCLUSÃO

Este trabalho visou contribuir para a reflexão acerca da história da America portuguesa,

sobretudo na região do norte do atlântico lusitano. De certa forma, há uma carência

historiográfica brasileira sobre o período colonial que contemple a região da Amazônia. O

trabalho de Fabiano Vilaça dos Santos foi um de nossos principais referenciais historiográficos

sobre a região, sobretudo no que tange à trajetória do governador Mendonça Furtado e sua

relação com o bispo Frei Miguel de Bulhões.

De certa forma, os resultados deste presente trabalho inserem-se em uma discussão sobre

a natureza do Estado moderno português e sua relação com as possessões ultramarinas. A partir

de categorias analíticas de uma historiografia mais recente sobre o Estado e o Império português

no mundo moderno, podemos aferir sobre a ideia de que há limites na afirmação de uma

centralização do poder régio nos espaços de decisão da vida cotidiana do mundo colonial. É

necessário que se entenda que a dominação colonial não esteve pautada em uma relação bipolar

entre colono x colonizador. Muitos indivíduos advindos da metrópole enraizaram-se de tal

maneira nos espaços de sociabilidade do mundo colonial, que muitas das vezes eles passaram a

defender interesses das próprias elites locais, conflitando assim com os interesses da própria

metrópole. Exemplo este que podemos enxergar nos estudos de Stuart Schwartz sobre o tribunal

da relação na Bahia. O autor conclui que a magistratura portuguesa instalada no tribunal em

meados do século XVII estabeleceu uma relação tão intensa com os indivíduos locais que de

certa forma houve um processo de “abrasileiramento da burocracia”28 no mundo colonial.

28 SCHWARTZ apud GOUVÊA, Maria de Fátima. Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo

português. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes. Política e negócios no

império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. p. 181.

Os resultados que nossa pesquisa mostrou foram que, com o advento do período

pombalino em meados do século XVIII, esta dimensão mais negociadora do Estado português

sofreu algumas mudanças. Se levarmos em consideração que alguns autores defendem que o

império português tinha uma dinâmica própria, na qual muita das vezes se via alguns limites ao

poder régio na vida de seus súditos pelo fato do intenso deslocamento dos indivíduos, e,

sobretudo, a partir do enraizamento de muito deles no cotidiano da colônia, na segunda metade

do século XVIII esta situação foi repensada com o Marquês de Pombal. O consulado pombalino

caracterizou-se por uma intensa preocupação com o engrandecimento do poder do rei. Segmentos

e grupos sociais, assim como as instituições que passaram a ser uma ameaça a este objetivo de

reforço da autoridade do monarca, viram-se rapidamente perseguidos. Os ataques perpetrados

pelo governador e pelo bispo do Pará contra a ordem dos jesuítas são, para nós, um exemplo da

pouca vontade do poder metropolitano em dialogar. Uma vez diagnosticado que os inacianos não

queriam colaborar com os interesses régios, a consequência direta foi a perseguição e depois a

expulsão dos jesuítas do império e do reino. O regalismo também situa-se como uma política na

qual estava clara a ideia de reforço da autoridade do rei e do Estado. A tentativa de controle da

igreja insere-se em uma preocupação por parte do consulado pombalino com um poder paralelo

ao monarca que a igreja exercia. O objetivo não era suprimir este poder eclesiástico, mas sim de

trazê-lo para a tutela do Estado a fim de que os planos políticos e sociais do Estado fossem

efetivados.

O regalismo foi um exemplo da tentativa do reforço da autoridade monárquica. Frei

Miguel de Bulhões foi um prelado cujo perfil agradou muito ao consulado pombalino. Não a toa

foi recompensando com o bispado de Leiria após sua estadia em Grão-Pará. Em contra partida, o

bispo do Pará subsequente José de Queiroz não conseguiu compreender que o momento era

diferente. Em dissintonia com os objetivos da coroa na região, o bispo ainda defendia um papel

subalterno para as populações indígenas. O prelado foi rapidamente destituído por Pombal em

1864. Àquela altura, o regalismo já era uma realidade como uma política de Estado. Mendonça

Furtado e sua sintonia com o bispo Miguel de Bulhões em Grão-Pará se inserem em um espectro

maior de uma nova realidade política e social do século XVIII que o pombalismo queria

estabelecer no reino e no império português.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

Fonte Impressa

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inédita do governador e capitão-general do estado Grão-Pará e Maranhão, Francisco

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