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O PERFIL FEMININO DE HELENA, DE MACHADO DE ASSIS Renata Franqui (Universidade Estadual de Maringá) Cezar de Alencar Arnaut de Toledo (Universidade Estadual de Maringá) [email protected] Resumo O texto discute as nuances da personagem Helena, de Machado de Assis. O objetivo é verificar os aspectos que constituem sua subjetividade, a fim de dimensionar a função social atribuída à mulher naquele momento histórico e como a literatura a retrata. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, realizada a partir da apreciação da narrativa machadiana, bem como de literatura de apoio. A obra é uma importante representação dos costumes sociais característicos da sociedade urbana brasileira do século XIX, bem como uma fonte profícua para a compreensão do papel social desempenhado pelas mulheres das classes mais abastadas no Brasil dos anos oitocentos. A ideia é mostrar que a obra possui um sentido pedagógico e, por intermédio de sua protagonista, pode ser entendida como um contributo para a manutenção do status quo patriarcal, conservando a ordem vigente. Palavras-chave: Educação feminina; Literatura Brasileira; Machado de Assis. Introdução O romance “Helena”, de Machado de Assis, foi originalmente publicado em 1876, na forma de 35 folhetins, no jornal O Globo, seguido da publicização do livro impresso, no mesmo ano. O romance urbano conta a história de Helena, uma jovem delicada e perspicaz que, em virtude da morte do Conselheiro Vale - por quem fora adotada como filha -, vê-se acolhida pelos familiares paternos, que acreditavam na legitimidade do parentesco. O enredo é ambientado no bairro do Andaraí, zona norte do Rio de Janeiro, e foi construído a partir da relação de afeto entre Helena e seu suposto irmão, Estácio, rapaz de robustos predicados. A escolha da obra como fonte

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Page 1: O PERFIL FEMININO DE HELENA, DE MACHADO DE ASSIS · 2019. 6. 4. · O PERFIL FEMININO DE HELENA, DE MACHADO DE ASSIS Renata Franqui (Universidade Estadual de Maringá) Cezar de Alencar

O PERFIL FEMININO DE HELENA, DE MACHADO DE ASSIS

Renata Franqui (Universidade Estadual de Maringá)

Cezar de Alencar Arnaut de Toledo (Universidade Estadual de Maringá)

[email protected]

Resumo

O texto discute as nuances da personagem Helena, de Machado de Assis. O objetivo é verificar os aspectos que constituem sua subjetividade, a fim de dimensionar a função social atribuída à mulher naquele momento histórico e como a literatura a retrata. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, realizada a partir da apreciação da narrativa machadiana, bem como de literatura de apoio. A obra é uma importante representação dos costumes sociais característicos da sociedade urbana brasileira do século XIX, bem como uma fonte profícua para a compreensão do papel social desempenhado pelas mulheres das classes mais abastadas no Brasil dos anos oitocentos. A ideia é mostrar que a obra possui um sentido pedagógico e, por intermédio de sua protagonista, pode ser entendida como um contributo para a manutenção do status quo patriarcal, conservando a ordem vigente. Palavras-chave: Educação feminina; Literatura Brasileira; Machado de Assis. Introdução

O romance “Helena”, de Machado de Assis, foi originalmente publicado em

1876, na forma de 35 folhetins, no jornal O Globo, seguido da publicização do livro

impresso, no mesmo ano. O romance urbano conta a história de Helena, uma jovem

delicada e perspicaz que, em virtude da morte do Conselheiro Vale - por quem fora

adotada como filha -, vê-se acolhida pelos familiares paternos, que acreditavam na

legitimidade do parentesco. O enredo é ambientado no bairro do Andaraí, zona norte

do Rio de Janeiro, e foi construído a partir da relação de afeto entre Helena e seu

suposto irmão, Estácio, rapaz de robustos predicados. A escolha da obra como fonte

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para a realização deste trabalho se deu pelo fato de ser uma importante

representação dos costumes sociais característicos da sociedade urbana brasileira

do século XIX, bem como fonte profícua para a compreensão do papel social

desempenhado pelas mulheres, especialmente as mais abastadas, no Brasil dos

oitocentos.

A CONDIÇÃO SOCIAL DA MULHER NO BRASIL OITOCENTISTA

A compreensão das identidades femininas engendradas na sociedade

brasileira do século XIX requer que se recorra à historicidade da época. A chegada

da família real portuguesa, em 1808, trouxe mudanças significativas no cenário

político, social e cultural do Brasil. Logo após, a independência política recém-

proclamada (1822), os debates acerca da abolição da escravatura e a vinda de

imigrantes europeus alteraram expressivamente a dinâmica da sociedade brasileira.

No cenário de transformações sociais e econômicas características do século XIX, a

função social da mulher fora redesenhada. Seu protagonismo se desenvolvia

especialmente devido à forte influência do ideal positivista comtiano, no qual a

natureza da mulher era considerada moralmente superior à do homem, mas a quem

não deveria caber uma função política na sociedade.

A atuação das mulheres era reduzida ao espaço privado, ocupando uma

posição secundária em relação ao homem, para o qual cumpria a função de

incentivadora em suas conquistas e êxitos. Essa diferenciação entre os papéis

sociais a serem desempenhados por um e outro gênero se devia à concepção da

época de que os homens “[...] eram seres ativos, menos dados a sentimentos, com

instinto sexual mais acentuado, e as mulheres, indivíduos submissos, puros,

bondosos, de sexualidade menos desenvolvida e destinadas principalmente a ser

mães e esposas” (STEIN, 1984, p. 24). Por ser considerada um ser naturalmente

puro, amoroso e abnegado, à mulher cumpria o destino de abdicar de sua

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individualidade para desempenhar funções sociais condizentes ao ideal da época,

pondo-se sempre a serviço de outrem.

HELENA: NUANCES DE UMA PERSONALIDADE MOLDADA À LUZ DO PATERNALISMO

A obra “Helena” exibe uma representação da sociedade da época, cujos

personagens retratam os papéis socialmente atribuídos aos diferentes atores

sociais. As características dos personagens, apresentadas ao longo da narrativa

machadiana, põem em evidência as particularidades da sociedade brasileira nos

oitocentos, sobretudo no que se refere aos hábitos e costumes da elite.

Em Helena, Machado de Assis apresenta a heroína que dá nome ao romance

de modo profundo, caracterizando a densidade de seus aspectos subjetivos. No

romance machadiano a personagem Helena torna-se conhecida a partir da morte do

Conselheiro Vale. Homem considerado em vida pelo seu comportamento exemplar e

boas relações, fez cumprir seu último desejo, narrado em testamento, que fazia da

jovem Helena sua filha oficialmente reconhecida e herdeira de parte de seus bens.

Em sua análise do romance, Chalhoub fala a respeito da inserção de Helena

na família Vale. Ao ter o testamento conhecido e "[...] não satisfeito em legar as suas

propriedades, o conselheiro Vale dispunha que os seus também lhe deviam herdar

os sentimentos" (CHALHOUB, 2003, p. 14). Para o autor, "[...] vontade senhorial

carrega tamanha inércia que continua a governar os vivos postumamente"

(CHALHOUB, 2003, p. 13). O autor ressalta a predominância do "[...] ideário de

dominação de classe: a vontade do chefe de família, do senhor-proprietário, é

inviolável, e é essa vontade que organiza e dá sentido às relações sociais que a

circundam" (CHALHOUB, 2003, p. 13).

Helena é apresentada ao público leitor como uma moça de dezesseis ou

dezessete anos, de maneiras polidas e gravidade de aspecto, “delgada sem

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magreza”, “talhe elegante e atitudes modestas” (ASSIS, 2012, p. 31). “Uma só coisa

pareceu menos aprazível ao irmão: eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão

de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o único senão que lhe achou, e não

era pequeno” (ASSIS, 2012, p. 32). A valorização de tais predicados femininos

evidenciava uma face conservadora que punha a mulher como guardiã do lar,

espaço que lhe cabia na sociedade oitocentista, constituindo um molde a ser

seguido pelas mulheres e cristalizando a ordem vigente.

A sensibilidade de Helena contrastava com sua própria racionalidade –

característica normalmente atribuída ao gênero masculino. “Dessa forma, Machado

de Assis abordava uma experiência subversiva ao que era designado aos gêneros”

(SALVAIA, 2016, p. 94).

Os romances moralizantes – a exemplo de Helena –, são aqui entendidos

como recursos pedagógicos, uma vez que serviam como veículos para educar as

mulheres letradas a respeito de seus comportamentos e modos de ser. Nesse

sentido, a construção da personagem Helena revela expectativas sociais a serem

desempenhadas pelas mulheres no período que corresponde às décadas finais dos

oitocentos. Assim, Helena constituía fonte de inspiração e de reconhecimento para

as mulheres que a conheceram pela narrativa de Machado, cumprindo seu sentido

pedagógico. A obra, por intermédio de sua protagonista, deve ser considerada como

um contributo para a manutenção do status quo patriarcal, conservando a ordem

vigente.

Considerações finais

A análise de uma obra literária é um importante instrumento para a

compreensão de um dado momento histórico. O retrato traçado por Machado de

Assis caracteriza os limites das sociabilidades e dos modos de ser e de pensar da

sociedade em uma época marcada pela falta de identidade nacional, dada às

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alterações sociais, políticas e econômicas decorrentes do período imperial.

Especialmente no que se refere à expectativa socialmente atribuída à figura feminina

naquele período, salienta-se que competia às mulheres saber se portar nos espaços

de sociabilidade, a partir de um padrão de civilidade que estivesse de acordo com as

regras de comportamento determinadas pelas elites europeias.

Assim, apesar da origem humilde de Helena, sua ascensão social propiciada

pelo seu reconhecimento como pertencente à abastada família de seu falecido pai,

atribuiu-lhe a incumbência de se adequar aos padrões sociais de comportamento e

recato esperados de uma mulher da elite naquele momento histórico. Discutir o perfil

feminino delineado por Machado de Assis na obra permite entender as nuances das

relações sociais que se estabeleceram no período, revelando aspectos fundamentais

para a compreensão da sociedade retratada à época, marcada pela particularidade

das relações paternalistas, na qual a mulher devia cumprir o papel de esposa

recatada, mãe zelosa e dona de casa esmerada. Referências

ASSIS, M. de. Helena. 9. ed. São Paulo: Ática, 1979. CHALHOUB, S. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SALVAIA, P. Diálogos possíveis: o folhetim Helena (1876), de Machado de Assis, no jornal O Globo. 2014. 166f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP, 2014. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000931456>. Acesso em: 2 abr. 2018. STEIN, I. Figuras femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.