o pecado original do pt_a constituiÇÃo do partido dos trabalhadores em joinville
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Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc, sob orientação da Profª. Valdete Daufemback Niehues.TRANSCRIPT
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ASSOCIAÇÃO EDUCACIONAL LUTERANA BOM JESUS/IELUSC
CURSO DE COMUNICAÇAO SOCIAL – HABILITAÇÃO EM JORNALISMO
O PECADO ORIGINAL DO PT:
A CONSTITUIÇÃO DO PARTIDO DOS TRABALHADORES EM JOINVILLE
FRANCINE HELLMANN
Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc, sob orientação da Profª. Valdete Daufemback Niehues.
Joinville
Julho 2010
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“Aos esfarrapados do mundo E aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas sobretudo com eles lutam”
PAULO FREIRE
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Agradeço a minha mãe, por seu infindável apoio;
ao meu pai, por me ensinar a esperar algo do mundo;
a minha mestra Valdete Daufemback Niehues, por acreditar em mim; aos meus camaradas,
por me ensinarem a utopia e ao Henrique da Cruz Cassús,
pelos dias e noites de paciência e compreensão, e pelo amor.
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RESUMO
A presente monografia é um estudo sobre a constituição do Partido dos Trabalhadores
em Joinville. Tem por objetivo analisar a relação entre fé e política a partir das Comunidades
Eclesiais de Base e sua contribuição na formação de lideranças que acreditaram ser possível a
constituição de um novo partido que representasse os trabalhadores na luta por justiça social.
Com este propósito, foram entrevistadas lideranças que atuaram nas CEBs e que estiveram
envolvidas na formação do PT. A pesquisa sinalizou que o sentimento de fé da Ala
Progressista da Igreja Católica concebeu o espírito do Partido dos Trabalhadores. As
lideranças religiosas de duas paróquias e o trabalho de pastoral foram importantes na
mobilização e instrumentalização de trabalhadores que se apropriaram dos ensinamentos que
misturavam fé e política a partir da leitura e reflexão de textos bíblicos que indicavam
caminhos de uma nova sociedade. Porém, o imaginário de um ideal de sociedade ficou mais
próximo diante da possibilidade de participação política na esfera pública para intervir na
estrutura do Estado, a fim de promover a justiça social. Assim, a política partidária se
sobressaiu à fé religiosa. Nascia o PT.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 07
1. TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO ................................................................................. 14
1.1 Comunidades Eclesiais de Base ................................................................................. 21
2. FÉ E POLÍTICA NAS CEBs EM JOINVILLE .......................................................... 26
2.1 Análise ...................................................................................................................... 27
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 55
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 58
ENTREVISTAS REALIZADAS ......................................................................................... 62
ANEXO .................................................................................................................................. 64
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INTRODUÇÃO
Estudar a relação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) com a política que
engendrou a constituição do Partido dos Trabalhadores em Joinville decorre do meu
envolvimento e paixão pelo tema. Frequentei e participei ativamente da Pastoral da Juventude
da Paróquia Cristo Ressuscitado, localizada no bairro Floresta, entre aos anos de 2001 e 2005,
a mesma comunidade em que surgiu a primeira CEB em Joinville na década de 1970.
Portanto, trinta anos antes, quando eu nem sequer havia nascido, pulsava nesta comunidade
um ideal de vida comunitária, assentado nos princípios da fé, por meio da reflexão da Bíblia
revisitada.
Quase uma geração foi o período que transcorreu entre o movimento da CEB nesta
comunidade e minha participação na Paróquia Cristo Ressuscitado. Tempo longo, se o
considerarmos na dinâmica do tempo local. Tempo breve, diria Eric Hobsbwm (1995), se for
considerado na escala do tempo histórico. Quando comecei a frequentar os cultos religiosos
nesta paróquia, em 2001, pouco sabia sobre Teologia da Libertação, movimento propulsor que
mantinha a comunidade de fé em seus propósitos nessa Igreja com tendência libertária.
Durante o primeiro ano de minha iniciação neste ambiente, as celebrações eram
realizadas em uma estrutura térrea, parecida com um grande galpão, sem torres nem
pirâmides. Nas paredes internas dela havia desenhos do “trem das CEBs”. A imagem de
Cristo crucificado não se encontrava em primeiro plano acima do altar, como de costume nos
templos católicos, mas, no canto esquerdo. Atrás do altar, a parede ostentava uma pintura com
muitas pessoas de mãos dadas formando um círculo ao redor de Jesus Ressuscitado, de braços
abertos. No entanto, a Teologia da Libertação já não estava mais tão presente na liturgia e na
organização comunitária.
Todos esses objetos e suas disposições ficaram vivos em minha memória, porém, só
consegui compreender seu significado a partir da presente pesquisa. O círculo em torno de
Jesus, por exemplo, representava a igualdade entre as pessoas. Neste plano, ninguém ocupava
posição de destaque, a não ser Jesus Cristo, o eixo central de todas as reflexões, que
anunciava uma nova vida.
Um ano depois da minha entrada na Paróquia Cristo Ressuscitado, a antiga estrutura
da igreja foi demolida e um prédio piramidal foi construído em seu lugar. Foi quando percebi
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que o ambiente antigo trazia uma sensação mais aconchegante do que aquela nova construção.
Mais amplo, o interior do novo prédio ficou semelhante a outros templos da Igreja Católica
com os tradicionais bancos em fileiras, um altar construído afastado do público e, na sua
esquerda, a presença do sacrário para orações solitárias. Atrás do altar, a nova pintura que
compõe um painel alto e imponente tem influências bizantinas: Jesus, o bom pastor, está
representado como rei, possui uma aura real, conduz seus seguidores representados na figura
de cordeiros.
O prédio com o formato de um grande chalé, cujo extenso telhado está disposto no
sentido vertical, forma um triângulo metálico. Nas largas janelas e no canto dos bancos,
pequenas placas sinalizam o nome das famílias e comércios doadores destes bens.
Na época da reforma da igreja, minha compreensão não alcançava o significado
daquilo tudo. Nem mesmo o que significavam ou o que representavam as CEBs para os
católicos que acreditavam na força de uma comunidade unida pela reflexão de passagens
bíblicas, tendo como centro, Jesus Ressuscitado.
Foi neste ambiente que passei parte de minha adolescência e juventude. Nascida de
uma família católica que abraçou a ideologia do Partido dos Trabalhadores, convivendo com
discussões sobre política, participei de grupo de jovens e posteriormente me envolvi com o
PT.
Nesta caminhada tive acesso ao livro “CEBs: 25 anos de caminhada na Paróquia
Cristo Ressuscitado. Joinville – SC – Brasil”, de autoria do Padre Luiz Facchini e da Irmã
Dalila Pedrini. Foi por meio desse livro que comecei a compreender o que eram as CEBs.
Para Facchini e Pedrini (2000, p. 29), as CEBs são comunidades católicas embasadas na
Teologia da Libertação, formadas, geralmente, por trabalhadores pertencentes às classes
populares e por suas famílias. “São formadas a partir do lugar e ambiente onde as pessoas
residem, se encontram e se relacionam no dia-a-dia”.
A partir dessa compreensão e, observando a transformação pela qual havia passado os
ensinamentos daquela paróquia, de uma atuação litúrgica politizada e coletiva a uma atuação
individual e despolitizada, aos poucos deixei de participar da Pastoral de Juventude e
direcionei minha vida à militância política.
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Mais tarde, já na faculdade, as CEBs e o PT tornaram-se novamente sujeitos da minha
inquietude. Como foi possível que a religião e a política, temáticas aparentemente
contraditórias, tenham-se unido em Joinville, a partir das CEBs?
Neste contexto, propus estudar se a proposta das CEBs e seu desdobramento no
movimento dos trabalhadores, representado pela Pastoral Operária, contribuiu na constituição
do Partido dos Trabalhadores em Joinville. Busco, portanto, a compreensão de como um
grupo de joinvilenses concebeu a relação fé e política, imbuídos pelo sentimento de liberdade
e justiça em tempos de ditadura militar.
Delimitei a pesquisa no período de 1973, com a formação da primeira CEB em
Joinville, a 1980, quando o Partido dos Trabalhadores foi fundado legalmente. Para tanto,
além de pesquisar em fontes documentais escritas, fez-se necessário buscar informações por
meio de entrevistas gravadas a fim de compreender o movimento das lideranças comunitárias
ligadas a um ideal libertário dentro dos princípios da fé católica.
Para colher informações das pessoas entrevistadas recorri à orientação metodológica
da história oral. De acordo com Alberti (1989) a história oral, enquanto método de
aproximação do objeto de estudo, não é recente. Ela já era utilizada por Heródoto e Tucídides
para construírem suas narrativas históricas sobre acontecimentos passados. A autora ressalta
que nessa época, porém, não havia o recurso do gravador para registrar e transformar tais
relatos em documentos de consulta.
Segue-se a isso o período da Idade Média em que “o recurso a relatos e depoimentos
para a reconstituição de acontecimentos e conjunturas não era tão incomum quanto se poderia
imaginar” (ALBERTI, 1989, p.2). Porém, durante o século XIX, com o predomínio da
história positivista e a importância que se deu ao documento escrito, os depoimentos não eram
considerados “confiáveis”, já que eram imbuídos de valores e sujeitos a falhas de memória.
Foi apenas no final dos anos de 1960, a partir dos Estados Unidos e Europa, em um
movimento de descontentamento com os métodos quantitativos de investigação, que a história
oral se firmou no mundo acadêmico. O advento do gravador de áudio tornou a história oral
produtora de fontes de consulta e somou a sua prática, procedimentos técnicos de gravação e
tratamento das entrevistas.
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Porém, Alberti (1989) ressalta que, embora a entrevista tenha adquirido status de
documento, isso não faz com que a história oral tenha passado a preencher os requisitos da
ciência positiva:
Trata-se de tomar a entrevista produzida como documento, sim, mas deslocando o objeto documentado: não mais o passado ‘tal como efetivamente ocorreu’, e sim a versão do entrevistado. A entrevista de história oral, portanto – seu registro gravado e transcrito -, não documenta nada além de uma versão do passado (ALBERTI, 1989, p. 2).
Thompson (1992) discorre largamente sobre a fidedignidade da evidência da história
oral. Tomando cuidado para “não ignorar o valor extraordinário que possuem [as fontes orais]
como testemunho subjetivo, falado” (THOMPSON, 1992, p.138). O autor avalia a história
oral da mesma forma como se avaliam os outros modos de evidência histórica. Questiona os
interesses em voga no momento de produção de documentos, como uma matéria jornalística,
o relatório de um embaixador ou uma autobiografia; além do resultado de pesquisas
estatísticas, cujas respostas podem ser distorcidas pelos entrevistados por uma série de
variáveis sociais.
Ainda segundo Thompson (1992), a história oral é uma fonte bastante parecida com as
autobiografias publicadas, mas tem um maior alcance, pois permite que o pesquisador escolha
a quem entrevistar e quais perguntas fazer. O contato da entrevista também abre caminho para
a descoberta de outros documentos, fotografias, entre outros; que de outra forma não teriam
sido localizados. “Os historiadores orais podem pensar agora como se eles próprios fossem
editores: imaginar qual a evidência de que precisam, ir procurá-la e obtê-la” (THOMPSON,
1992, p. 25). O autor afirma que o resultado crítico dessa nova abordagem será formulado
com base em evidências vindas de uma nova direção, uma vez que a realidade é complexa e
multifacetada, de amplitude muito maior do que a maioria das fontes convencionais consegue
revelar.
Para Thompson (1992), a história oral tem um importante compromisso com a
mensagem social da história, pois a possibilidade de ouvir e respeitar o depoimento das
classes subalternas, os desprivilegiados e os “derrotados” da história oficial, proporciona a
contestação do relato tido como verdadeiro, já que reconstrói de forma mais realista e mais
imparcial o passado.
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Isso não significa que, dando voz aos que historicamente foram menos ouvidos,
encontraremos a verdade absoluta sobre os fatos. Faz-se necessário levar em conta a
subjetividade da memória humana. A memória pode ser distorcida pela debilidade física do
entrevistado, pela nostalgia da velhice, por preconceito, vergonha, influências de versões
coletivas, etc.
Thompson (2001) explica que alguns pesquisadores, na ânsia de corrigir preconceitos
e fabulações, deixam de considerar a razão pela qual os indivíduos constroem suas memórias
de determinada maneira. De acordo com ele, esses pesquisadores não se dão conta de que as
‘distorções’ da memória podem ser um recurso, além de um problema.
Por exemplo, um depoimento cujo entrevistado oculte muitas informações pode
revelar vergonha, sofrimento ou medo de punição, individual ou coletiva. Tais sentimentos
possivelmente representarão hábitos sociais da época ou fatos ocultos que geraram traumas.
Thompson (1992) afirma que a principal lição é aprender a estar atento àquilo que não é dito e
a considerar o que significam os silêncios. Para ele, os significados mais simples são
provavelmente os mais convincentes.
Orlandi (2005) afirma que não há uma “chave” de interpretação por meio da qual é
possível chegar a um sentido verdadeiro, pois “não há uma verdade oculta atrás do texto. Há
gestos de interpretação que o constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz
de compreender” (ORLANDI, 2005, p. 26).
Muitas pessoas conservam lembranças que, quando recuperadas, liberam sentimentos
como tristeza ou comoção. Não raramente os pesquisadores orais se tornam amigos e
confidentes dos entrevistados. Diante disso, aumenta a responsabilidade ética do entrevistador
para com sua fonte. “Recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de
identidade” (THOMPSON, 1992, p.215). Entrevistar pessoas enxergando-as apenas como
fontes é torná-las meros corpos contadores de história. A comunicação pode dar a elas vida
novamente. Tal aprendizado, sistematizado por Thompson (1992), assemelha-se a um dos
maiores conhecimentos com que concluo o curso de Jornalismo. Acredito que, principalmente
nesse ponto, minha pesquisa contribui para o campo da Comunicação Social.
A análise de discurso, metodologia sobre a qual discorro a seguir, me auxiliará na
interpretação do material obtido em entrevistas e documentos escritos. Para Orlandi (2005), a
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análise de discurso leva o entrevistado e o pesquisador a se questionarem sobre o que
produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da linguagem:
Perceber que não podemos não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos, sua opacidade. Saber que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. A entrada no simbólico é irremediável e permanente: estamos comprometidos com o sentido e com o político. Não temos como não interpretar. Isso, que é contribuição da análise de discurso, nos coloca em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem (ORLANDI, 2005, p. 9).
Assim, ciente das limitações desta pesquisa, procurei o viés da reflexão para orientar
na interpretação das fontes. A realização das entrevistas foi fundamental para levantar dados
sobre este estudo, considerando a proposta de dar voz às pessoas que viveram e vivenciaram
dois momentos históricos na constituição de um mesmo sonho, o sonho da liberdade, da
justiça, uma herança da promessa do Iluminismo, alicerçada pela ala progressista da Igreja
Católica. Primeiramente, a politização por meio das CEBs, proclamando uma mudança na
maneira de ver o mundo, depois, a politização partidária, como processo de mudança por
meio da participação nas decisões governamentais.
Dividido em dois capítulos, este trabalho de conclusão de curso pretende contribuir
para o desenvolvimento de outras pesquisas, a partir deste olhar sistematizado em relação a
um tema ainda pouco pesquisado em Joinville.
O primeiro capítulo, Teologia da Libertação, aborda teoricamente a origem da
mudança de olhar da Igreja Católica sobre a realidade social da América Latina a partir de
1950 e sua decisão de assumir uma opção preferencial pelos pobres. Para compreender o que
levou a essa mudança de perspectiva da Igreja, até então conservadora, busquei contextualizar
a situação política do mundo, que após a Segunda Guerra Mundial foi polarizado entre
capitalistas e socialistas, e, mais especificamente, da América Latina, que passava por regimes
políticos populistas e autoritários. Da abordagem sobre Teologia da Libertação decorre o
subcapítulo, Comunidades Eclesiais de Base, que resgata o surgimento de um novo método de
evangelização e organização comunitária cristã, embasado na Teologia da Libertação e na
Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire. Nesse subcapítulo traço uma comparação entre o
trabalho das CEBs e a Teoria da Ação Comunicativa, de Habermas.
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O segundo capítulo, Fé e Política nas Comunidades Eclesiais de Base em Joinville,
analisa a experiência das CEBs nos bairros Boa Vista e Floresta, a partir de 1973, e a
organização partidária de líderes formados por essas comunidades, que resultou na fundação
do Partido dos Trabalhadores em Joinville. Meu olhar sobre essa história é tecido com base na
teorização de entrevistas realizadas com o Padre Luiz Facchini e mais dez lideranças das
CEBs que participaram da constituição do PT, além de pesquisas nos livros tombo da
Paróquia Cristo Ressuscitado e alguns documentos encontrados sobre o tema. O recurso da
história oral foi fundamental para fechar lacunas encontradas nos registros deste período.
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1 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
O presente capítulo tem por objetivo estudar a atuação da ala progressista da Igreja
Católica ao se aproximar da comunidade e conduzi-la por caminhos da fé e da política para
combater a opressão e as injustiças sociais e alcançar a liberdade.
Desde a Reforma Protestante, a Teologia da Libertação foi o movimento mais
significativo da Igreja Católica, iniciado na América Latina e que representou um novo
processo histórico por afirmar a opção preferencial pelos pobres. A temática da libertação
“Apresenta-se com a originalidade de incluir, como inerente a ela, a situação histórica e a
realidade social dos povos latino-americanos” (GALILEIA, 1978, p.13).
Para Scherer (1996, p.32), a Teologia da Libertação “nasce e se desenvolve enquanto
expressão de problemas da realidade social latino-americana, no desejo de transcendê-la
através da criação de uma sociedade mais justa e igualitária”. A questão pertinente é entender
a razão de esse movimento ter surgido no seio da Igreja. De acordo com Gohn (1997, p.229),
“A religião é de modo geral um valor muito importante na vida do homem pobre latino-
americano”. O passado colonial moldou uma cultura em que a religião é sinônimo de
esperança. Por isso, a Igreja Católica sempre teve um importante papel na “correlação das
forças sociopolíticas existentes”.
No entanto, para além do papel da Igreja Católica enquanto fomentadora de esperança
das populações pobres, é preciso levar em conta o contexto social e político que marcou o
século XX, em especial, após a Segunda Guerra Mundial com a polarização do capitalismo e
do socialismo, e dos regimes políticos populistas vivenciados por vários países da América
Latina. Por outro lado, inúmeros movimentos surgiram acreditando ser possível a justiça
social a partir de mudanças na base econômica produtiva. Boff, C. (2010) cita a Revolução
Cubana que em 1959 inspirou um processo de emancipação dos países latino-americanos dos
países imperialistas, como foi o movimento guerrilheiro na Guatemala na década de 1960, do
movimento sandinista na Nicarágua, em 1961, a unificação do movimento insurrecional na
Venezuela, em 1962, a Frente Esquerda Revolucionária e o movimento da Esquerda
Revolucionária, no Peru, a guerrilha com "Che" Guevara, na Bolívia, em 1967, entre outros.
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No âmbito da Igreja, agentes de pastoral, antes mesmo de estarem ligados à Teologia
da Libertação, já estavam envolvidos com a política ou em correntes ideológicas que
acreditavam na ruptura do sistema capitalista. Segundo Boff (1979), foi nesse contexto que
alguns dos setores da Igreja Católica passaram a se perguntar o que a fé tinha a ver com os
problemas políticos, econômicos e educacionais enfrentados pela sociedade. Havendo uma
relação, o envolvimento político e econômico levava automaticamente a um compromisso
com Deus. Era preciso responder a essas questões e ter controle sobre a insurreição popular
que poderia estar por vir.
Para Martins (1994), a Igreja passou a posicionar-se ao lado dos pobres a partir da
questão agrária no Brasil. O defrontamento com a realidade social dos camponeses pobres,
principalmente do nordeste do país, obrigou bispos, alguns com biografias notadamente
conservadoras, a agirem nos parâmetros da doutrina progressista. De acordo com o autor, em
1950, poucas semanas após o Partido Comunista ter lançado um manifesto em favor de uma
reforma agrária radical, ocorreu um encontro entre párocos, fazendeiros e professores rurais
da diocese de Campanha, no interior de Minas Gerais, de onde resultou uma carta escrita por
Dom Inocêncio Engelke, a qual defendia que a Igreja deveria se antecipar à revolução.
O documento daquele bispo é significativo porque expõe, sem procurar disfarçar o contexto ideológico, idéias e preocupações que se manterão no centro das inquietações da Igreja nas décadas seguintes, como estas: ‘os dias confusos em que vivemos’, o êxodo rural e o despovoamento do campo, os efeitos desagregadores da vida na cidade, o perigo do comunismo e a agitação política no campo (MARTINS, 1994, p. 100)
Este documento, intitulado “Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural”,
é esclarecedor para explicar a conveniência da Igreja Católica em defender os trabalhadores
rurais. A partir da metade da década de 1950 as Ligas Camponesas apoiadas pelo Partido
Comunista começaram a disputar com a Igreja Católica a confiança dos trabalhadores rurais,
por meio da defesa da reforma agrária. As Ligas Camponesas defendiam a expropriação da
terra de seus proprietários, medidas radicais que preocupavam a Igreja, a qual pregava ações
graduais, baseadas na justa indenização. Porém, ambas buscavam uma legislação que
regulasse as relações de trabalho no meio rural. Para Martins (1994, p.103),
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O desafio concreto e eficaz da militância comunista no meio rural e, particularmente, o desafio da ação das Ligas Camponesas, de inspiração socialista e radical, levou a Igreja a uma ação pastoral que veio a se materializar naquilo que hoje chamamos de trabalho de base.
Com a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, a Igreja Católica passou
a defender, também, a sindicalização dos trabalhadores do campo. Para Martins (1994, p.116),
“era o meio de assegurar a hegemonia dos líderes e militantes católicos nas organizações que
fariam a mediação política das demandas daquele novo sujeito político, que era a inquieta
massa dos camponeses e trabalhadores rurais”. De acordo com o autor, mais de uma vez a
Igreja tentou organizar federações sindicais dos camponeses para evitar que essas caíssem nas
mãos dos comunistas.
Certamente a diminuição do poder da Igreja Católica em Cuba a partir da Revolução
Comunista apoiada pelos camponeses, alertou para uma situação que no Brasil se desenhava
nos mesmos parâmetros. Por isso seria necessário estimular, estrategicamente, um movimento
controlado em favor da reforma agrária. Assim, até o golpe militar em 1964, a Igreja evoluiu
para uma visão desenvolvimentista em relação à reforma agrária.
Atribuía-se a pobreza e a injusta distribuição de terras à insuficiência de capital e não a
sua má distribuição. A partir dessa lógica, entendia-se que a intervenção do Estado com
políticas modernizadoras venceria o atraso das regiões carentes, eliminando a situação de
pobreza das populações rurais. Porém, com a tomada de poder pelos militares, o governo
ditatorial promoveu uma série de atitudes contrárias à promoção da erradicação da pobreza e
das injustiças nas áreas rurais.
O incentivo do governo ditatorial à entrada de multinacionais na Amazônia fez a
Igreja perceber que o desenvolvimento maciço de capital, ao contrário do que se supunha,
criava graves problemas sociais equiparáveis ou superiores à miséria rural do Nordeste. Ainda
acreditando na interferência do Estado como solução para a realidade social, a Igreja passou a
incentivar a consciência crítica dos fiéis e dela própria. Nasceu assim, o método ver-julgar-
agir, que viria a ser utilizado pelas comunidades de base e encarava como uma relação
dialética o pensamento crítico e a ação.
Para Martins (1994), essa mudança de atitude de bispos e agentes de pastoral de
“conservadores” para “progressistas” não se configurou como uma contradição, pois a
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correção dos desvios da realidade social são premissas da atuação religiosa e estão presentes
na doutrina e educação dos religiosos, especialmente sob a influência da Ação Católica.
Ao se envolverem dramaticamente na realidade dos pobres do campo, os bispos não deram o salto histórico da incoerência de conduta que representasse, eventualmente, a ruptura com a tradição conservadora. [...] Foi a coerência doutrinária e ética dos bispos e dos agentes de pastoral que abriu a perspectiva que possibilitou a compreensão crítica do processo econômico e político (MARTINS, 1994, p.126).
Importante mencionar que os militares, propulsores do golpe de Estado no Brasil, em
1964, também defendiam a reforma agrária, mas suas intenções eram de neutralizar lideranças
políticas do campo e despolitizar a discussão. Segundo Martins (1994) a Igreja inicialmente
sentiu-se atendida e apoiou o golpe, porém logo se deu conta de que a onda de repressão
política não atingia apenas os comunistas e integrantes das Ligas Camponesas, mas também
militantes católicos, em especial os que estavam ligados aos programas de educação e
conscientização popular.
De acordo com Martins (1994, p.120), os militares consideravam tanto os comunistas
e os progressistas, quanto os católicos, como “corporações que tinham internamente estrutura
de Estado, o que constituía uma ameaça ao Estado nacional”. A partir daí o confronto entre
Igreja e ditadura tornou-se radical.
Para Sherer (1993, p.34), nessa época “jovens teólogos progressistas, treinados em
Louvain, Frankfurt e outras universidades da Europa e Estados Unidos” fizeram uso de seus
conhecimentos sobre as ciências sociais para criar uma teologia voltada às necessidades do
povo da América Latina, que enfrentava uma realidade social semelhante à dos brasileiros
pobres. Esses padres tinham consciência
das contradições do sistema social latino-americano e da inadequação das medidas políticas e econômicas propostas, tais como desenvolvimento capitalista (desenvolvimentismo) e política populista, as falhas da Aliança para o Progresso, a onda das ditaduras militares, seguida pelo aumento da miséria do povo latino-americano, e a violência institucionalizada (SHERER, 1993, p. 34).
Por intermédio desses teólogos e com a experiência das comunidades do nordeste e da
Amazônia formou-se a ala progressista da Igreja Católica, possibilitando a constituição da
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Teologia da Libertação. Assim, desde o Concílio Vaticano II, nos anos de 1960, o qual
recomendou uma doutrina orientada socialmente, a Igreja Católica mudou o eixo de sua
política no continente latino-americano:
Até então ela estava voltada para a sociedade política, exercendo influência junto ao Estado por meio de partidos democratas cristãos e movimentos sociais como a Ação Católica. A partir do Concílio ela desenvolveu estratégias para voltar-se para a sociedade civil, passando a ser, ela própria, um agente ativo na organização dessa sociedade, por meio das pastorais e comunidades eclesiais de base (CASANOVA, 1994, citado por GOHN, 1997, p. 230).
A opção de voltar às atenções à grande massa de oprimidos e com ela lutar por suas
reivindicações imediatas criava um vínculo ainda mais forte entre a Igreja e a população
pobre. A Igreja Católica parte então para a avaliação das “condições de existência da maioria
populacional” (SHERER, 1993, p. 33).
Como na realidade histórica latino-americana a maioria do povo encontra-se submetido a situações de opressão, miséria, a não-cidadania, a meta fundamental dessa teologia vem a ser a busca de mecanismos que possibilitem a libertação destas variadas formas de opressão (SHERER, 1993, p.33).
Além do Brasil, em diversos outros países da América Latina havia nesse momento
ditaduras militares que constituíam um “inimigo” claro, monopolizava o poder do Estado e
deveria ser combatido. Dessa forma, a Igreja lança-se na promoção do engajamento contra a
exploração para, a partir disso, desencadear o que Sherer (1993) chama de “processo histórico
de libertação dos povos latino-americanos” e que, na prática, configura-se na domesticação de
uma possível insurreição e promoção da justiça por meio da paz cristã.
Segundo Boff, L. (1979), a Teologia da Libertação fomentou vários movimentos
populares, como a Ação Popular (AP) e o Movimento de Educação de Base (MEB) inspirado
no método Paulo Freire, que focava a educação na pedagogia do oprimido. Muitos cristãos e
agentes de pastorais também participaram desse processo, principalmente a Ação Operária
Católica (AOC), a Juventude Universitária Católica (JUC), a Juventude Agrária Católica
(JAC) e a Juventude Estudantil Católica (JEC).
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A partir de então, católicos comprometidos com a mudança social começaram a buscar
sentidos teológicos nas realidades consideradas profanas (econômicas, políticas e
educacionais). Essa nova linha de pensamento considerava que a salvação não se dava apenas
no fim da vida, mas era um processo que começava neste mundo e culminava na eternidade.
Porém, a Teologia da Libertação encontrou críticas dentro da própria Igreja, que
continha diferentes linhas de pensamento. Krumwiede (1971), citado por Scherer (1993),
construiu uma tipologia que representa as forças sociais dentro da Igreja Católica da América
Latina nessa época:
a) Conservadores e reacionários querem manter a estrutura tradicional e o modelo hierárquico da Igreja. Tratam problemas sociais através da caridade. b) Progressistas advogam uma sociedade pluralística, na qual todos os grupos sociais devem estar integrados e devem defender seu direito de igualdade de condições. Eles recomendam a formação de grupos cristãos militantes, objetivando dar sua ajuda a programas de desenvolvimento comunitário (educação, organização de cooperativas e outros). c) Progressistas radicais dizem que os objetivos das diferentes classes sociais são incompatíveis. A Igreja deve ter uma opção preferencial pelos pobres e ajudá-los na luta pela mudança na estrutura do poder (internamente e em relação à dominação econômica, política e financeira externa). Os teólogos da libertação são os pensadores desse grupo e sua prática pastoral é levada avante pela rede de trabalhos de parte das CEBs (KRUMWIEDE, 1971, citado por SCHERER, 1993, p. 36).
Inicialmente, havia o temor de que a Teologia da Libertação se resumisse apenas às
questões sociais e, consequentemente, afastasse as pessoas da fé.
O papa João VI (1963 – 1978) era entusiasta da renovação da Igreja. Sua encíclica
Populorum Progressio foi dirigida especificamente à America Latina para que essa superasse
a miséria e a injustiça. Porém, tratava a Teologia da Libertação com cautela, pois
compartilhava o temor de que ela poderia tornar-se um “sociologismo”. Esta desconfiança
ficou evidente nos trabalhos da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano
realizada em 1968, em Medellín, Colômbia. Nesse encontro a libertação foi um tema axial,
porém introduziu-se a perspectiva de libertação integral, que conjugava a libertação política
com a libertação do pecado e de suas consequências. De acordo com Boff (1979), o discurso
da libertação integral sempre foi proclamado na fé católica. No entanto, a Teologia da
20
Libertação ultrapassa este pensamento ao incluir no discurso teológico questões sociais,
econômicas, políticas e educacionais.
Entre a Conferência de Medellín e a Terceira Conferência Geral do Episcopado
Latino-americano, realizada em Puebla de Los Angeles, no México, em 1979, surgiu uma
grande produção literária sobre o assunto e, junto a isso, muitas dúvidas: Qual era a relevância
teológica dos movimentos populares de libertação? Como se dava a relação entre salvação em
Cristo e libertação sócio-histórica? Havia mesmo uma relação? Como articulá-la?
Em 6 de agosto de 1978 o papa Paulo VI faleceu. João Paulo I iniciou seu pontificado
20 dias depois, vindo a falecer em 28 de setembro do mesmo ano. João Paulo II assumiu o
pontificado em 16 de outubro e permaneceu como pontífice por 26 anos. A visão de João
Paulo II sobre a nova teologia que nascia na América Latina foi fundamental para os
encaminhamentos de Puebla.
De acordo com Boff (1979), João Paulo II passou de uma postura reticente e de
desconfiança para um apoio surpreendente e entusiástico. Em seu discurso inaugural dos
trabalhos em Puebla foi rígido quanto à iminência religiosa da Teologia da Libertação; e
afirmou que não eram os processos sociais que possuíam caráter teológico, mas a teologia da
libertação, porque integral, incluía também as dimensões sócio-econômica e cultural.
João Paulo II demonstrou, inicialmente, uma profunda sensibilidade com os problemas
sociais latino-americanos e convocou ao trabalho prático nas comunidades de base. Porém,
segundo Boff (1979), o pontífice repetiu insistentemente que a inspiração para a libertação
não deveria emanar de ideologias, mas do Evangelho.
Puebla confirmou e alargou o conceito de Igreja preferencial dos pobres formulado no
Concílio Vaticano II e expandido em Medellín. Ao final do encontro, os bispos formulam um
documento em dez temas-eixo: (1) a consagração do método já utilizado nas comunidades
cristãs de base, ver, analiticamente, julgar, teologicamente e agir, pastoralmente; (2) as
condenações proféticas ao capitalismo liberal e seus regimes de força que violam a dignidade
humana, à doutrina da segurança nacional e ao marxismo dentro da tradição das encíclicas
sociais; (3) o reconhecimento da dimensão social e política da fé; (4) a opção preferencial
pelos pobres e contra a pobreza; (5) a defesa e promoção da dignidade da pessoa humana; (6)
a opção pela libertação integral; (7) a opção pelas Comunidades Eclesiais de Base; (8) a
21
assunção e purificação da religiosidade popular; (9) a opção preferencial pelos jovens e (10) a
promoção e libertação da mulher (BOFF, 1988).
1.1 Comunidades Eclesiais de Base
Após Medellín, em 1968, o corpo eclesiástico mostrou-se mais receptivo às doutrinas
que configurariam a Teologia da Libertação. Além disso, assumiu que a maioria dos cristãos
era explorada por minorias ricas também cristãs. Lentamente, foi-se optando por uma atenção
preferencial pelos pobres, sendo que a palavra “preferencial” significava não excluir os ricos,
o que na prática configurava-se como uma medida paradoxal, pois inviabilizava o pleno
incentivo às mudanças estruturais da sociedade, mas era justificado pela crença de que todas
as pessoas são “filhas de Deus”.
Sherer (1993) explica que as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) representaram
um importante aspecto no desenvolvimento da Teologia da Libertação na América Latina. Era
nelas que se praticava esse novo pensamento da Igreja Católica. Para a autora, a criação das
CEBs está relacionada à infraestrutura pastoral do continente.
Por um lado, a escassez de padres na América Latina para servir ao campo e às periferias urbanas pobres exigia uma solução alternativa. Por outro, a existência anterior de organizações cristãs de base (grassroots organizations), principalmente no Brasil – os Movimentos de Educação de Base (MEBs) – inspirou a criação das comunidades cristãs de base – ‘Comunidades Eclesiais de Base’ (CEBs) –, com a participação também de leigos e religiosas (SHERER, 1993, p. 35).
Para Facchini e Pedrini (2000), as CEBs são comunidades de uma região que reúnem
pessoas com a mesma fé, na mesma Igreja. São Eclesiais por sua natureza religiosa,
congregadas na Igreja cristã. São de Base por serem formadas, geralmente, por trabalhadores
e famílias pertencentes às classes sociais menos favorecidas, ou ainda por comunidades
indígenas.
22
As Comunidades Eclesiais de Base
reúnem uma faixa social crente e oprimida, em comunhão de fé, de esperança e de caridade que, em torno da Palavra de Deus, celebram sua vida e suas lutas junto à vida e às lutas do próprio Cristo Jesus, buscando ali, forças, para a conversão pessoal, comunitária e para a transformação do mundo (FACCHINI e PEDRINI, 2000, p. 29).
De acordo com Frei Betto (1985), alguns pesquisadores acreditam que as CEBs
surgiram em Nísia Floresta, arquidiocese de Natal na década de 1960, outros, defendem que
elas originaram-se em Volta Redonda. O periódico Latinamerica Press (1985), citado por
Sherer (1993), afirmou que entre Medellín (1968) e Puebla (1979), desenvolveram-se redes de
CEBs principalmente no Brasil, Chile, México, Honduras, Panamá, Equador, Bolívia,
Paraguai, Colômbia, El Salvador, Nicarágua e República Dominicana.
Boff (1988) conta que a experiência das comunidades de base no Brasil foi tão bem
sucedida que já em 1975 se realizou em Vitória, Espírito Santo, o primeiro encontro nacional
das CEBs. Segundo Castanho (1987), participaram dessa atividade 70 pessoas de 11 dioceses
brasileiras, entre bispos, especialistas em teologia, padres, religiosos e alguns leigos. Esse
processo de impulsionar uma nova Igreja foi chamado em Vitória de eclesiogênese, que
significava gênese de uma Igreja. “Era uma nova realidade que nascia do coração do próprio
povo pobre em virtude do Espírito inovador de Deus, organizada pelo leigo em torno da
palavra de Deus e do seguimento de Jesus Cristo” (BOFF, L., 1988, p. 124).
No segundo encontro, também em Vitória, no ano seguinte, reuniram-se
representantes de 24 Igrejas, de 17 estados. Ao todo foram quase 100 pessoas, entre leigos,
religiosos, padres e bispos. Metade da assembleia eram agentes pastorais e a outra metade
representantes das bases.
Em 1978, no encontro de João Pessoa, na Paraíba, manifesta-se um fato notável: “a
Assembleia é constituída em sua maioria pelos próprios representantes das bases. Eles que
organizam, falam, decidem. Os bispos, os agentes de pastoral e os assessores escutam e
aprendem” (BOFF, L. 1988, p.124). Foram cerca de 150 representantes de 47 dioceses, entre
eles bispos, agentes de pastoral, assessores de várias especialidades e pessoas da base. Pela
primeira vez participam representantes das comunidades indígenas.
23
De acordo com Frei Betto (1985), as CEBs brasileiras percorreram três etapas
interligadas. A primeira etapa é propriamente a vida em comunidade, com motivação
religiosa, buscando no Evangelho as pistas para a sua atividade social. A segunda etapa é a
dos movimentos populares, iniciados com a participação dos próprios membros das CEBs.
Dessa fase participam não apenas católicos, mas protestantes, espíritas, ateus, entre outros. “A
divisão não é mais entre quem tem e quem não tem fé. É entre quem está do lado dos
interesses dos pobres e quem está a favor dos privilégios dos opressores” (BETTO, Frei,
1985, p.23).
Da base popular surge a rede de pequenos movimentos nos quais o povo experimenta
a união e mobilização. Em diversas regiões a população chega a eleger vereadores, deputados
estaduais e federais.
A terceira etapa é o fortalecimento do movimento operário. Muitos membros das
CEBs participaram da Oposição Sindical e de sindicatos não patronais, atuaram em greves e
em lutas das categorias. Inclui-se aqui o trabalho das pastorais operárias. Frei Betto (1985),
cita ainda o surgimento de uma quarta etapa, a de reformulação partidária: “a busca de novos
canais de expressão política para a sociedade civil brasileira” (BETTO, 1985, p. 24).
As CEBs eram orientadas pelo método ver-julgar-agir, desenvolvido nas primeiras
experiências de comunidades de base no nordeste e confirmado no encontro de Puebla. Sherer
(1993, p.35) explica que esse método teve uma influência considerável da teoria educacional
de Paulo Freire, “que advoga a necessidade do desenvolvimento de uma consciência crítica
em relação ao processo de libertação”.
Os encontros bíblicos eram realizados nas casas dos moradores ou no salão paroquial
da Igreja. Após a reflexão, a entoação de cânticos e orações, os participantes tinham a
oportunidade de exporem suas dificuldades reais. Em geral, tratava-se de problemas
domésticos – como doenças na família, conflitos entre vizinhos, – ou profissionais –
desemprego, sindicato, obrigação de fazer horas extras (BETTO, 1975).
A primeira parte, o reconhecimento das principais dificuldades da comunidade
chamava-se ver. A segunda parte do método, julgar, estava ligada ao Evangelho. O grupo,
após exposição de uma situação, perguntava sobre o modo de como Jesus agiria, para então,
emitir o parecer coletivo das decisões a serem tomadas, o que se configurava no agir, terceira
24
parte do processo. Segundo Betto (1975), o método não funciona de modo linear, como se
cada momento estivesse separado um do outro.
O método funciona, na prática, de modo dialético. O ver já traz no seu bojo elementos para o julgar e exigências para o agir. Cada momento se inter-relaciona com os demais. A avaliação de agir nas reuniões seguintes não é um recomeçar tudo de novo, mas a continuidade da ação, retomada sob a consciência crítica de suas falhas e erros e de suas implicações pastorais (teológicas, bíblicas e políticas no sentido amplo) (BETTO, 1975, p. 30).
A partir da reflexão, os grupos projetavam “condições de possibilidades” de superação
dos dilemas da comunidade por meio da validade da fala e do agir comunicativo. Para
Habermas citado por Dutra (2005, p. 47), “o ato da fala é uma ação” comunicativa. Habermas
conferia o poder da comunicação com oportunidades iguais de diálogo como instrumento
emancipador da sociedade (GONÇALVES, 1999).
Nas CEBs, os círculos bíblicos, criados por Frei Carlos Mesters, utilizavam a leitura
da Bíblia para reler a própria história de seus participantes e buscar as raízes dos males
sociais, além de manter viva a fé. Os fatos da vida eram comparados aos fatos da Bíblia. Para
isso os círculos bíblicos utilizavam como materiais de estudos “folhetos em linguagem
popular – linguagem visual e não conceitual, concreta e não abstrata, como nas parábolas do
Evangelho” (BETO, 1975, p.32).
Os padres, as freiras, os religiosos e os leigos que exerciam liderança nas CEBs, e que
orientavam os fiéis no método ver-julgar-agir, eram chamados de agentes de pastoral. A
possibilidade de leigos exercerem esse papel destacado na comunidade representou uma
novidade na vida da Igreja.
Muitos agentes deixavam a convivência familiar e abandonavam a profissão que
exerciam para se dedicar exclusivamente ao trabalho pastoral. Algumas dioceses possuíam
condições financeiras para remunerar esses líderes, cujo trabalho não era coordenar, mas
assessorar a comunidade a se descobrir como agente de sua história.
25
Por isso, exige-se que o agente pastoral viva vinculado ao povo, comungando a sua vida para, no espaço eclesial, entender melhor sua palavra. Caso contrário, o agente correrá o risco de cair na atitude colonialista de quem quer ensinar à comunidade popular sem antes aprender com ela e refazer suas categorias e valores elitistas, academicistas, populistas ou vanguardistas (BETTO, 1975, p.18).
Se interpretados à luz da teoria da ação comunicativa, de Habermas, os esforços para
aproximar e reafirmar a convivência de agentes de pastoral à comunidade configura-se uma
tentativa de evitar o estabelecimento de uma relação de poder, presente no agir instrumental
(ou estratégico), que visa à manipulação de um sujeito a outro. Embora, de acordo com Tesser
(2002, p.74), “o agir instrumental é utilizado com muita frequência na relação formador-
formado”, portanto, necessário em diversos processos de aprendizado, incluindo o de
conscientização popular realizado pelas CEBs.
Pode-se afirmar que no discurso a proposta das CEBs busca uma consciência política
da comunidade em relação à realidade social, por meio de um aprendizado, tendo como
mediador, o agente de pastoral. No entanto, se nessa relação estiver presente o princípio do
agir instrumental, ou seja, uma relação de poder alicerçada em níveis desiguais de
conhecimento torna-se questionável a validade desse aprendizado, se o objetivo for o alcance
de mudanças que têm o debate como o meio efetivo.
Segundo Tesser (2002, p.74):
No agir comunicativo, o indivíduo só pode julgar a sua experiência em relação a outras pessoas. É no decurso de debates normativos com as outras pessoas que a mudança pode ocorrer sem constrangimento. É nessas trocas que os indivíduos podem explicar-se, argumentar, apelar a critérios de verdade, de exatidão, em relação às normas. Essas interações não implicam a dominação de pessoas envolvidas, contrariamente ao que acontece no agir instrumental, que visa ao domínio do outro.
Assim, por meio de uma proposta inovadora, a ala progressista da Igreja Católica,
representada por agentes de pastorais imbuídos de sentimentos de fé buscavam a aproximação
da comunidade usando de uma linguagem compreensível às pessoas que procuravam a
superação dos males das injustiças sociais. A conciliação da formação política e da
manutenção da fé parecia o caminho a ser seguido pelos “oprimidos” ou por aqueles que viam
neles agentes da mudança a se estabelecer.
26
2 FÉ E POLÍTICA NAS COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE EM JOINVILLE
Este capítulo tem como objetivo analisar a ação comunicativa das Comunidades
Eclesiais de Base e sua relação na formação do partido dos trabalhadores em Joinville. Para
tanto, optou-se por entrevistar lideranças comunitárias que participaram das CEBs e da
formação do PT, visando à compreensão de como estas pessoas imbuídas pelo sentimento de
justiça e liberdade conceberam a relação fé e política em tempos de Ditadura Militar, na
esperança de uma nova sociedade.
As entrevistas foram realizadas a partir de um roteiro previamente estruturado,
embasado em conhecimentos relacionados ao tema pesquisado, com possibilidades de
introdução de novas questões de acordo com a abordagem das falas dos entrevistados. O
tempo de duração de cada entrevista oscilou entre 50 e 90 minutos, de acordo com a
disposição e motivação ao exercício de fala dos entrevistados. Foram realizadas onze
entrevistas com lideranças que participaram das CEBs da Paróquia Cristo Ressuscitado, no
bairro Floresta, e da Paróquia Imaculada Conceição, no Boa Vista. Geralmente as pessoas que
concediam entrevistas indicavam como fontes de informação colegas de sua convivência que
passaram pela experiência da militância nas comunidades da fé e política. Dessa forma, cada
entrevistado era instigado a recordar-se de companheiros que haviam participado das CEBs,
ou que acompanharam o nascimento do Partido dos Trabalhadores em Joinville. Não consta
na presente pesquisa a análise das falas de dois importantes participantes da vida da CEB
Cristo Ressuscitado e da fundação do Partido dos Trabalhadores em Joinville e em Santa
Catarina, Ideli Salvatti e Eurides Mescolotto, por impossibilidade de agendamento das
entrevistas.
Por meio de relatos dos entrevistados, pretende-se capturar os discursos a partir de
suas memórias, para compreender o processo de aproximação político-religiosa entre as CEBs
e o Partido dos Trabalhadores. A etimologia da palavra “discurso” tem em si a ideia de curso,
de percurso, de correr por, de movimento. “O discurso é assim palavra em movimento, prática
da linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando” (ORLANDI, 2005,
p.15).
27
Há outras maneiras de se estudar a linguagem que precedem os estudos da análise de
discurso: a linguística, por exemplo, encara a língua como um sistema de signos ou regras
formais, a gramática normativa como regras de bem dizer. A análise de discurso as leva em
consideração, mas compreende a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, como
parte de um contexto social, constitutiva do ser humano e de sua história.
Pinto (1999) define discurso como textos associados às práticas socioculturais no
interior das quais surgiu e que costuma ser chamado de contexto, sendo que textos são
produtos culturais, formas empíricas do uso da linguagem verbal, oral ou escrita, ou outros
sistemas semióticos no interior de práticas sociais contextualizadas histórica e socialmente. O
processo de análise de textos abordando-os como práticas sociais inseridas em contextos
determinados é chamado de análise de discurso.
Os participantes na produção e análise dos discursos são chamados sujeitos, “no duplo
sentido de assujeitados às determinações do contexto e de agentes das ações de produção,
circulação e consumo dos textos” (PINTO, 1999, p.8).
2.1 Análise
Martins (1994) afirma que quando, em 1964, os militares aplicaram o Golpe de
Estado, a Igreja Católica, a princípio, apoiou a ação autoritária em nome da preservação da
moral e das famílias brasileiras. Porém, com o recrudescimento do sistema militar, a partir do
Ato Institucional número 5, o Conselho Nacional dos Bispos do Brasil marcou posição
contrária às torturas e toda natureza de arbitrariedade contra a vida humana. A Ditadura
Militar ascendeu o espírito da resistência e dos movimentos, agora apoiados por instituições
que lutavam pelos direitos humanos.
Não somente o Brasil passava pela amarga experiência da Ditadura Militar. Em toda
América Latina governos autoritários criaram suas bases de repressão impedindo a
democracia. Foi nesse contexto que, a partir de Medellín, a ala progressista da Igreja se
aproximou da comunidade utilizando metodologias de reflexão sobre a realidade que se
apresentava. Os princípios da Teologia da Libertação fomentaram esperanças às comunidades
28
pobres, acreditando ser possível alcançar as dádivas da justiça por meio da fé e politização.
Nessa esfera, as pastorais tiveram um papel fundamental na ligação entre a Igreja e a
população.
Em Joinville, o movimento teve início em 1973 quando três agentes de pastoral
instalaram residência no bairro Floresta - na época, área periférica da cidade. Na paróquia
regente Sagrado Coração de Jesus, situada na Rua São Paulo, o Padre Luiz Facchini, a
religiosa Clementina Fuzatto e o Padre Davi Boyington, inspirados nos documentos latino-
americanos orientados pela Teologia da Libertação, iniciaram a construção de Comunidades
Eclesiais de Base. A irmã de Luiz Facchini, Lucia Facchini, foi convidada a acompanhá-los,
porém sua função resumiu-se aos cuidados com as tarefas domésticas da casa de residência.
No bairro Boa Vista, a Comunidade Eclesial de Base teve início com a chegada do
Monsenhor Boleslau Smielewski, em 1981, na Paróquia Imaculada Conceição.
A partir do trabalho dos padres e lideranças nas CEBs no Boa Vista e no Floresta foi
disseminado o processo de consciência social e política a uma parcela de católicos, o que
possibilitou o desenvolvimento de movimentos populares e o engajamento dos sindicatos e
partidos às causas sociais.
Neste período, o Brasil atravessava uma crise política e democrática com os militares
no poder. Dessa forma, em tempos de regime autoritário, assim como em outras cidades, a
estrutura eclesial em Joinville tornou-se um abrigo aos movimentos populares e o discurso
religioso transformou-se em um meio de difusão de ideias políticas. Por outro lado, como já
citado, Gohn (1917, p.230) explica que a Igreja Católica utiliza as pastorais e Comunidades
Eclesiais de Base para voltar-se à sociedade civil “passando a ser, ela própria, um agente ativo
na organização dessa sociedade”.
Quando o trabalho das CEBs foi iniciado, tanto no bairro Floresta quanto no Boa
Vista, a população não conhecia a intenção dos agentes de pastoral e, por isso, ainda não
havia uma relação de identificação que inspirasse confiança.
No Floresta, nos primeiros meses de atividade esses agentes foram se inserindo na
comunidade para conhecer a realidade dela e levantar informações relevantes que dessem
suporte ao trabalho de base. Esses religiosos visitavam as famílias e mantinham contato para
que a rede fosse aumentando. Com esse trabalho, “As reações iniciais, de desconhecimento e
dúvida, sobre os agentes, foram sendo superadas. Um encontro sucedia o outro. Criaram-se
29
laços de amizade e a casa dos agentes passou a ser frequentada e chamada ‘nossa casa’”
(FACCHINI, 2000, p.34).
O trabalho comunitário teve início a partir de um curso de estudos bíblicos e análise de
conjuntura, oferecido a 12 famílias. Para Facchini (2000), o grupo era tímido, oprimido e
apresentava dificuldades de se expressar.
Durante o curso os participantes chegaram à conclusão de que era necessário
compreender a realidade do bairro, por isso organizaram uma pesquisa de coleta de dados. A
partir de então, subdividiram o bairro em oito núcleos, onde seriam formados círculos
bíblicos, cuja direção seria assumida por casais participantes dos cursos.
No Boa Vista, em 1981, Monsenhor Boleslau, que tinha experiências de CEBs em
outras paróquias do Brasil, iniciou sozinho os ensinamentos da Teologia da Libertação na
Paróquia Imaculada Conceição. De acordo com Zimermann (2006), a população dessa região
congregava de uma religiosidade tradicional.
O padre implantou o trabalho de pastoral através de grupos de lideranças. Por meio de
reuniões, foi introduzindo ensinamentos em relação à Bíblia, ao Concílio Vaticano II, às
Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil, aos manuais das conferências
episcopais de Medellín e Puebla e afirmou que naqueles volumes toda doutrina da Igreja
Católica estava escrita. Segundo Zimermann (2006), nas reuniões, festas e celebrações na
comunidade o pároco explicava sobre a mudança de postura da Igreja em relação aos pobres.
Monsenhor trouxe à tona diversas reflexões sociais, sempre seguindo o
direcionamento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e das campanhas
anuais da Fraternidade como, por exemplo, a questão indígena no país, o preconceito racial e
a reforma agrária. Com o incentivo do padre, a comunidade discutia ainda a situação
sociopolítica e econômica do Brasil.
A Teologia da Libertação, balizadora do trabalho das comunidades de base, tem um
fundo metodológico parecido com a pedagogia do oprimido de Freire (2005). O trabalho das
CEBs em Joinville também se assemelhou às propostas desse autor, de libertação dos menos
favorecidos e de subversão da relação entre educadores – enquanto detentores do saber – e
educandos – enquanto praticantes da “decoreba” e do arquivamento da narração do mestre.
Facchini confirmou essa relação: “Também temos a figura de Paulo Freire no ambiente
30
educativo, que nos abre os caminhos para um saber com consciência crítica” (ENTREVISTA:
Joinville, 26 de fev. de 2010).
A figura dos agentes de pastoral surgida junto com as CEBs, trabalha com a superação
dessa problemática dicotômica entre educador e educando, entre lideranças e a comunidade.
Esses agentes são padres, religiosos ou leigos, que recebem formação sobre metodologia das
CEBs, política, conjuntura social e econômica, durante sua formação religiosa, dentro da
própria comunidade ou em cursos e formações em outras cidades. Por isso, os agentes se
destacam na comunidade e tendem a tornar-se pessoas mais instruídas pelas experiências
adquiridas. Bertoldi, catequista e liderança da Pastoral dos Mangues no bairro Boa Vista nos
anos de 1980, afirmou que a partir da formação que recebeu das CEBs, mudou a visão que
tinha sobre a religião.
Com o tempo eu fui aprendendo. Fui para Florianópolis e Joaçaba estudar CEBs. Com o tempo e os estudos eu vi que aquilo não tinha muito a ver com religião, tinha a ver com uma Igreja diferente. Não uma Igreja só ‘papa hóstia’, uma Igreja Cristo Ressuscitado. (ENTREVISTA: Joinville, 13 de mar. de 2010)
Da mesma maneira, Schimitz, morador do bairro Floresta, também estudou a doutrina
das CEBs: “A gente discutia. Tinha formação. Fizemos curso de teologia para aprender a
interpretar a Bíblia, a escola de ministérios” (ENTREVISTA: Joinville, 28 de mai. de 2010).
A importância que se dava à formação teológica e sociopolítica das lideranças da
comunidade também é percebida no depoimento de Matos, do bairro Boa Vista:
As CEBs levaram a gente à discussão, a várias reuniões fora. Eu fiz reuniões em Lages, em São Paulo. E com todo esse diálogo e conversa fomos adquirindo experiência. As CEBs abriram a mente da gente e foi através delas que eu hoje sou quem sou. Eu vim da agricultura e já tinha uma tendência política, mas não conhecia muito bem e foram as CEBs que abriram o meu horizonte e me fizeram enxergar mais longe (ENTREVISTA: Joinville, 24 de fev. de 2010).
Assim como Bertoldi, Schimitz e Matos, a partir da formação que recebiam das CEBs,
outros membros da comunidade tornavam-se lideranças.
Como já mencionado, para não haver distanciamento dos moradores da região, os
agentes procuram continuar vivendo (no caso de leigos) ou viver (no caso de religiosos e
31
padres) no mesmo lugar social da comunidade. Talvez por isso o Padre Luiz Facchini, a Irmã
Clementina Fuzatto e o Padre Davi Boyington, tenham saído de suas residências institucionais
para se instalarem em uma casa no bairro Floresta, frequentada pela comunidade. Por outro
lado, é possível que esses religiosos estivessem descontentes com a conduta conservadora da
Igreja e tenham encontrado no projeto das CEBs do bairro Floresta uma opção para
realizarem seus ideais de acordo com a nova proposta dos concílios.
No Livro Tombo I da Paróquia Cristo Ressuscitado, Facchini relata que o Padre Davi
chegou a Joinville em 1972, por resolução pessoal, para conhecer uma nova forma de
evangelizar, a fim de renovar a sua congregação. Nessa mesma época, Clementina desejava se
afastar por um ano da Congregação das Irmãs Franciscanas da Imaculada Conceição porque
discordava da forma como era pregado o Evangelho.
Independentemente dos motivos que tenham levado o grupo a se mudar para o seio da
comunidade, a atitude levou à superação da reação inicial de desconhecimento e dúvida da
comunidade com relação aos agentes. De acordo com Facchini e Pedrini (2000, p.34) diversos
encontros eram realizados na residência. Com estas atitudes, “criaram-se laços de amizade e a
casa dos agentes passou a ser frequentada e chamada ‘nossa casa’”.
Diminuir o distanciamento entre lideranças e comunidade pode ser interpretado como
forma de tentar eliminar o agir instrumental da teoria de Hebermas. Porém, Bertoldi
demonstra em seu relato uma relação de poder alicerçada em níveis desiguais de
conhecimento com a comunicação, com objetivo de domínio de um indivíduo sobre outro,
prática recorrente na comunidade.
Quando cheguei a Joinville havia uma invasão muito grande, pois aqui era o final dos mangues. Nisso chega o Monsenhor com as CEBs e disse assim: “Ivanir, vamos fazer uma associação de mangues?” Eu disse: “Monsenhor, eu nem sei do que o senhor está falando”. “Não, nós temos que fazer, tu tens que acolher todas as pessoas que vêm de fora”. Daí ele disse: “Deixa que eu te conduzo. Tu só diz que vais comigo”. Era sempre assim. (BERTOLDI. ENTREVISTA: Joinville, 13 mar. 2010)
O mesmo entusiasmo da entrevistada motivado pela orientação do padre para que ela
assumisse uma liderança nas CEBs enquanto intermediária da Igreja e comunidade observa-se
no depoimento de Boettcher, R.:
32
Eu tinha muito medo e o Facchini fazia aqueles encontros fortes baseados na Bíblia, e dizia: “o cristão não pode ter medo, Jesus Cristo foi até a última gota”. Tinham as greves que pipocaram pela cidade e a pastoral operária servia lanche para os piqueteiros. Vinha a polícia e tocava o carro em cima da gente e eu pensava em não ir mais. Sofria muito de medo, pois isso foi há 30 anos e eu tinha 25 anos. Eu era uma pessoa meio ingênua, nasci no mato, acomodada, pai alemão, trabalhei dez anos dentro do grupo plástico só montando peças, não tinha conhecimento, não tinha muita leitura. Pensava que nós estávamos errados, mas ia para as reuniões do Facchini e saia vibrando. Ele tinha um poder de força espiritual muito grande. Ele tinha convicção que Jesus Cristo pregava igualdade, que era um político e que a gente não podia se acomodar, que a gente estava certo (BOETTCHER, R.. ENTREVISTA: Joinville, 15 de mar. de 2010).
No Boa Vista, Monsenhor Boleslau instituiu na comunidade a catequese direcionada
às crianças e aos adolescentes no seu próprio ambiente familiar, alternando semanalmente
entre as residências de cada um dos membros do grupo. Por meio dessa metodologia de
trabalho, o pároco encontrou uma maneira de chegar às famílias, no intuito de evangelizar a
comunidade dentro dos preceitos da justiça e da fé cristã.
A orientação em ampliar a evangelização e a adaptá-la à realidade de cada região e
comunidade vinha do alto clero. O documento “Catequese renovada. Orientações e
conteúdos”, elaborado pela CNBB, em 1983, inspirado nos documentos da Igreja (Vaticano
II, Medellín, Puebla, Evangelii Nuntiandi e Catechesi Tradendae), é uma resposta ao apelo
que o Papa João Paulo II fez em sua visita ao Brasil em 1980, de que fosse dada atenção
especial à catequese. Esse documento propõe uma evangelização que responda aos desafios
de uma nova situação histórica e autoriza a adaptação de linguagem, método e conteúdo da
catequese às condições históricas e culturais das crianças, jovens e adultos catequizandos. “A
Catequese deve levar em conta a experiência e os problemas, a situação histórica dos homens
a que se dirige” (CNBB, Catequese Renovada ações e conteúdos, 1983, disponível em:
http://catequistabr.dominiotemporario.com/doc/CBV-catequese-renovada-cnbb-1983.pdf,
acessado em 04 de jul. de 2010).
À luz da compreensão do que ocorria no mundo na época, a dedicação à catequese
surge como forma de investir no futuro da Igreja por meio da promoção progressiva de
mudanças, tendo como foco uma consciência de preceitos cristãos, evitando, assim, a revolta
armada, como estava ocorrendo em países da América Latina.
33
De acordo com Zimermann (2006, p.17), o bairro era habitado majoritariamente por
operários, carente em infraestrutura, com sérios problemas sociais, principalmente de
emprego e moradia. “Havia pouco tempo, a poderosa empresa metalúrgica sediada na região
[Tupy], trouxera do Paraná e de outras regiões de Santa Catarina, inúmeras famílias, que
vieram em busca de trabalho e de uma vida melhor”. Essa conjuntura, na visão de algumas
lideranças, tornava o bairro Boa Vista propício ao desenvolvimento de movimentação popular
embasada na ideia de supremacia dos trabalhadores, que visava a revolução socialista.
No Floresta, a partir de 1975, o mesmo trabalho de evangelização passou a ser feito
pelos líderes de grupos bíblicos de reflexão, cujos encontros eram realizados nas residências
dos fiéis. De acordo com Boettcher, R., “Foi uma novidade pra nós que participávamos muito
pouco da Igreja, pois lá no sítio onde a gente morava, vínhamos uma vez por mês no Sagrado
Coração de Jesus” (ENTREVISTA: Joinville, 15 de mar. de 2010). A entrevistada conta que os
moradores da região eram religiosos, porém desassistidos institucionalmente.
A religiosidade dessas famílias era transmitida de pais para filhos, mesmo sem a
proximidade física com a Igreja. “Desde criança a gente foi educado na Igreja.
Caminhávamos horas para ir à Igreja que era longe, rezar terço no domingo. Mas a gente nem
conhecia a Bíblia. Naquela época era proibido o católico ler a Bíblia” (SCHIMITZ.
ENTREVISTA: Joinville, 28 de mai. de 2010).
Também para Bertoldi, a leitura da Bíblia era restrita e pouco utilizada. No entanto, a
fé estava assentada no consentimento da partilha, da oração:
Meu pai tinha pouco estudo, mas já tinha espírito de partilha, de levar Deus ao outro. Era muito rezador. Pegava pouco a Bíblia, porque na época a gente não podia pegar muito a Bíblia. Trazia os folhetos da missa que e partilhava com a gente. O que ele pudesse passar, ele passava (ENTREVISTA: Joinville, 13 de mar. de 2010).
De acordo com Gohn (1997), na América Latina, o passado colonial moldou uma
cultura de que a religião é sinônimo de esperança, fundamental à vida das pessoas pobres.
Segundo Bertoldi (ENTREVISTA: Joinville, 13 de mar. de 2010), “Deus prega para todos,
para o rico e para nós também. Mas o rico não se interessa porque ele acha que compra
Deus”. Esta interpretação eleva o não rico à condição de confiança e de proximidade com
Deus. Nas pregações das CEBs Deus estava mais perto das pessoas pobres.
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O surgimento da extensão da prática religiosa para além das paredes da Igreja, como
os grupos bíblicos e a catequese atuantes no âmbito das casas dos paroquianos configurou
algo novo em relação à costumeira forma de praticar a fé no recinto sagrado, na sede da
paróquia, seja no Floresta, ou no Boa Vista.
Por outro lado, a disposição geográfica e a postura dos participantes nos cultos e a
popularização das orações aproximavam as pessoas, diferentemente do que ocorria no ritual
tradicional nas Igrejas.
Tinha um momento de louvor, agradecíamos por alguma coisa. Depois se lia a Palavra, depois o Evangelho do dia. Aí todo mundo podia falar. Era um círculo. Nunca se fazia assim em forma da Igreja, sempre em círculo, que daí um fica ao lado do outro e observa o outro. Não fica em uma coisa isolada. (BERTOLDI. ENTREVISTA: Joinville, 13 de mar. de 2010)
Para Facchini, o formato do círculo relembra a origem da Igreja, a noção de
comunitarismo sem pirâmides sociais. “Nos remete à nossa busca por igualdade, onde todos
temos vez e voz, somos iguais” (ENTREVISTA: Joinville, 26 de fev. de 2010).
De acordo com Boettcher, R., as reuniões em pequenos grupos, os encontros de reflexão
nas casas estimulavam a leitura da Bíblia.
A gente até tinha Bíblia, meu pai sempre tinha, mas ficava lá em cima do guarda-roupa, empoeirada, ninguém podia pegar, a gente nunca abria, não sabia ler, não sabia compreender como é que lia, versículos, capítulos. As CEBs tinham um modo diferente, então a gente lia a Palavra de Deus na Bíblia e transportava para os dias de hoje e havia sempre uma ação após aquela reunião daquela vizinhança na rua (ENTREVISTA: Joinville, 15 de mar. de 2010).
O aparecimento do processo de conscientização da entrevistada em relação à condição
humana, expresso em seu discurso, demonstra que o método ver-julgar-agir utilizado nas
reflexões sob orientação dos agentes de pastoral alcançou o efeito crítico desejado. Salienta-se
que antes do Concílio Vaticano II a prática religiosa da Igreja não incluía questionamentos
sobre a condição humana. A CEBs foram as motivadoras na mudança da condição espiritual e
política da entrevistada. O mesmo processo de aprendizado pode ser verificado em Schimitz:
35
Eu vim para Joinville em 75 e comecei a participar, mas eu tinha bem pouco conhecimento de como interpretar a Bíblia ou conduzir uma comunidade. A gente foi aprendendo com a cara e a coragem, mas aprendemos coisas bem importantes. Abriu a mente da gente para fazermos coisas sem visar interesse próprio, fazer para melhorar a vida das pessoas. Acho que a maior coisa que aprendi foi fazer alguma coisa para melhorar o mundo, a sociedade, a vida das pessoas, sem visar interesse próprio (ENTREVISTA: Joinville, 28 de mai. de 2010).
Kohlberg, citado por Habermas (1989), chama de aprendizado o desenvolvimento da
capacidade de as pessoas discernirem e resolverem conflitos de ação moralmente relevantes.
“Ao fazer isso, a pessoa em crescimento compreende o seu próprio desenvolvimento moral
como um processo de aprendizagem” (HABERMAS, p.155, 1989).
Ao que parece, após o envolvimento de Boettcher, R. com as CEBs e posteriormente
com o Partido dos Trabalhadores, seu olhar em relação à sociedade e à Igreja modificou de
maneira significativa:
Hoje eu convenço os outros de que temos que participar da vida política da cidade, da rua e da universidade. Por que é a maioria que deve decidir o que é melhor? Antes das CEBs e antes do PT eu não tinha essa visão. Eu me acomodava com alguém que decidisse por mim. Pois o meu pai sempre mandou, decidiu, o meu patrão na Hansen sempre mandou e eu obedeci. Quando eu comecei a participar dos cursos de leis trabalhistas, de análise de conjuntura, de como está organizada a sociedade, do partido político, eu comecei a compreender que eu tenho que participar dessa história. (ENTREVISTA: Joinville, 15 de mar. de 2010).
A Ação Comunicativa estava presente nos encontros semanais dos círculos bíblicos
nas casas das famílias. Neles, observam-se também, traços da pedagogia do oprimido, que, de
acordo com Freire (2005), deveria ser forjada com e não para o povo. Essa forma de educação
faz da opressão e suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, resultando no engajamento
necessário para a luta por sua libertação. Assim, o fortalecimento da comunidade, calcada na
utopia da liberdade e na justiça, legitima o poder de validade da ação pela mudança.
Essa ação para mudança é confirmada nos depoimentos com relação aos problemas
cotidianos da comunidade, como brigas de vizinhos, ou mais socialmente relevantes, como
condições de trabalho nas empresas. O método utilizado para superar as dificuldades
apresentadas pela comunidade, em geral, era o ver-julgar-agir (BETTO, 1975).
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Devido à repercussão da CEB, que pregava uma experiência dos primeiros cristãos, havia mais diálogo com as pessoas. Quando havia qualquer atrito com vizinhos eram enviadas pessoas escolhidas na comunidade, a pessoa certa com o dom para conversar. Resolvíamos muitos problemas que às vezes as pessoas queriam ir para a delegacia, para a Justiça. Resolvia-se pela proposta que a comunidade apresentava, da união dos pequenos, que os cristãos não podiam ficar brigando entre eles, tinha que haver paz. (SCHIMITZ. ENTREVISTA: Joinville, 28 de mai. de 2010).
Assim, no seio da comunidade surgiam pessoas com dispostas a executar determinadas
tarefas. Essas aptidões eram explicadas no campo do sobrenatural, como “dons de Deus”.
Desde nova já tinha esse dom. Era dom. Levava nas casas [dos moradores do mangue] óleo para eles fritarem. Distribuía mais onde tinha mais gente e menos se era menos gente. Ia nas padarias, pegava o pão e levava junto. Sabia que estavam bem alimentados, bolinho de soja e pão, não ficava preocupada. O Monsenhor trazia o café e outras coisas. Fiz isso por anos, até começarmos a botar ordem (BERTOLDI. ENTREVISTA: Joinville, 13 de mar. de 2010).
No Floresta, sobretudo a partir do final da década de 70, quando o Padre Davi
Boyington foi transferido para Campinas e a comunidade prosseguiu com apenas um
sacerdote, a preocupação com a formação das pessoas que despontavam como lideranças na
comunidade se intensificou.
Facchini (2000) cita a realização das Escolas de Ministérios, estudos para
coordenadores dos grupos de jovens, realização de estudos, palestras e debates sobre os
documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Papa. Além do mais,
neste período houve a preocupação das CEBs em apoiar os seus membros a participarem de
cursos e encontros fora da paróquia.
Os cursos de formação tratavam da realidade social, porém sempre embasadas na fé
cristã. Na primeira Escola de Ministérios foram abordados temas relativos à organização
sócio-econômica-política do país, à forma de organização dos trabalhadores, à mística da cruz
e da ressurreição no conflito, eclesiologia, cristologia e releitura bíblica na ótica dos
empobrecidos.
Em 1975, a Comunidade Cristo Ressuscitado foi desmembrada da Paróquia Sagrado
Coração de Jesus, tomando o status de paróquia. “Na verdade a Igreja não existia, era um
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terreno grande onde o Padre Luiz começou a rezar missas em um quadradinho de 1,5 metros
quadrados, só para proteger o padre e fazer a celebração” (SOUZA. ENTREVISTA: Joinville,
30 de mar. de 2010).
Nos cultos dominicais a “Palavra de Deus” era explicada à luz da realidade atual dos
participantes, que em sua maioria eram operários. Rebello (ENTREVISTA: Joinville, 18 de
mar. de 2010) conta que os materiais utilizados nos cultos e nas reflexões bíblicas eram
elaborados pelo próprio Padre Luiz Facchini: “Hoje a liturgia vem do Rio de Janeiro, de São
Paulo e não trata da realidade de Joinville. O Luiz Facchini trazia sobre a realidade de
Joinville. Se tinha uma greve na Tupy, nós discutíamos sobre aquele momento”.
De acordo com Schimitz, havia um grupo que preparava os materiais utilizados nos
grupos de reflexão dos círculos bíblicos: “Às vezes era junto com comunidades de Curitiba e
de São Paulo. Pessoas que se encontravam para elaborar o livrinho” (ENTREVISTA:
Joinville, 28 de mai. de 2010).
Os círculos bíblicos são grupos que têm em média dez pessoas, as quais se reúnem
para estudar o Evangelho.
É reservado um espaço para discutir a Palavra e nesse momento os problemas aparecem, as pessoas convivem [...] Como estão muito próximos da comunidade, as necessidades dela aparecem. Discutem as dificuldades e sempre buscam soluções na Bíblia. Muitos têm dificuldade de falar dos seus problemas, com a convivência, se reunindo durante um longo período semanalmente, se sentem mais à vontade (BOETTCHER, G.: ENTREVISTA, Joinville, 22 de abril de 2010).
De acordo com Souza (ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de 2010), “os livretos de
Círculos Bíblicos traziam o Evangelho e um questionário para baseá-lo na vida atual, com
seus problemas. Uma forma de conscientizar as pessoas do grupo e a comunidade de uma
forma geral sobre os problemas que nos cercavam”. Rebello (ENTREVISTA: Joinville, 18 de
mar. de 2010) conta: “Discutíamos muito a questão da reforma agrária – no livro trazia muito
isso – da luta sindical, da importância de tirarmos os sindicatos dos ‘pelegos’ e das mãos do
patrão”.
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[...] e daí ia nascendo as necessidades. Se era problema com enchente, com saúde, com custo de vida. Então daquela reflexão bíblica, da Palavra que a gente lia, movíamos ações de reivindicação ou de mutirão para ajudar as famílias necessitadas. Foi ali que compreendemos um pouco, porque o Padre Facchini sempre fazia as pregações em cima de Atos dos Apóstolos, naquele texto dos primeiros cristãos, onde tudo era em comum e não haviam necessitados. Ele sempre persistia nas pregações daquele texto e a gente foi assumindo esse compromisso de melhorar, não haver necessitados, de a gente ir buscando aquilo que faltava (BOETTCHER, R. ENTREVISTA: Joinville , 15 DE MAR. de 2010).
A forma pedagógica das pregações exercia um movimento semelhante ao exercício de
um estilingue que é puxado para trás a fim de impulsionar e arremessar a pedra para frente, ao
alcance desejado. Como o mito fundador de Chauí (2000), a reflexão bíblica a partir dos
“Atos dos Apóstolos” apropriava-se de um discurso que buscava no passado a origem de uma
sociedade ideal, de uma vida em comum.
Os apóstolos faziam muitos milagres e maravilhas, e por isso todas as pessoas estavam cheias de admiração e de respeito. Todos os que criam estavam juntos e unidos e repartiam uns com os outros o que tinham. Vendiam as suas propriedades e outras coisas e repartiam o dinheiro com todos, de acordo com a necessidade de cada um. Todos os dias, unidos, se reuniam no pátio do Templo. E nas suas casas partiam o pão e comiam com alegria e humildade. Louvavam a Deus por tudo e eram estimados por todos. E cada dia o Senhor juntava àquele grupo as pessoas que iam sendo salvas. (ATOS DOS APÓSTOLOS – 2:43-47).
Assim, a superação de um mundo concreto de injustiças estava por vir, na defesa da
luta por meio das falas e pela ação comunicativa dos sujeitos. Os oprimidos tanto no campo
como na cidade, poderiam ver a situação mudada a partir da participação popular. Uma das
bandeiras de luta das CEBs era a conquista ao direito a terra, por isso, incentivava o
Movimento dos Sem Terra. Por outro lado, na cidade, a Pastoral Operária defendia os
sindicatos combativos que buscavam a justiça social (SOUZA. ENTREVISTA: Joinville, 30
de mar. de 2010).
Porém, com o desenvolvimento dos trabalhos da comunidade e a expansão do
processo de formação, surgiam na comunidade novos líderes que, por sua vez, exerciam poder
de influência sobre os demais, reproduzindo o discurso dos padres ou introduzindo novas
maneiras de interpretação da realidade.
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Aquele período de CEBs foi muito rico para mim. Eles [o padre e outras lideranças] me mandavam para os encontros estaduais e nacional representando a região e eu ia para as comunidades dentro de Joinville falar sobre Evangelho e sobre Bíblia, mas do meu jeito. Eles não podiam mais me controlar, porque eu comecei a estudar o marxismo e então as minhas ideias eram diferentes. Eu falava sobre as CEBs mesmo e a organização dos pobres. Eu dizia que Jesus condenava a injustiça, que Jesus era um homem diferente dos outros e começava a pisar no império. Eu usava as CEBs para poder pregar o Jesus Cristo de outra forma. Eu falava sobre o Estado, que foi criado quatro mil anos antes de Cristo, por que o primeiro homem não é Adão nem Eva. Jesus foi um personagem que criaram porque ele denunciava as injustiças. Tiveram vários profetas antes dele (BICALHO. ENTREVISTA: Joinville, 21 de mar. de 2010).
Essa constatação é importante para compreender o posterior envolvimento das CEBs
em movimentos sociais, sindicatos e no Partido dos Trabalhadores. Algumas dessas ações não
tinham a aprovação do padre e serão explicadas mais à frente.
Dessa forma, as prioridades e defesas das CEBs variavam de acordo com as
influências externas de agentes de pastoral, além da região em que se estabeleciam.
Joinville é uma cidade operária. Nós estávamos muito mais centrados no sindicalismo e nos problemas do dia-a-dia. Mas, por exemplo, em Chapecó se trabalhava mais a questão rural. No ABC paulista, também a questão do sindicato. Osasco, na grande São Paulo, mais as favelas, a situação de pobreza e miséria. Ela se adaptava à realidade local. (SOUZA. ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de 2010)
As reivindicações defendidas pelas CEBs e afirmadas pelos agentes de pastoral
(melhorias no trabalho, acesso a terra, moradia, saúde, custo de vida) estavam intimamente
relacionadas às dificuldades cotidianas da comunidade, resultando assim, em um processo de
identificação da comunidade com a Igreja que promovia as CEBs.
Para Bauman (2005, p. 17) há dois tipos de comunidade: as “de vida e de destino”,
cujos membros têm uma ligação absoluta de convivência, e, as unidas por ideias ou por
princípios. As CEBs podem ser explicadas a partir da segunda definição, por se tratar de
grupos unidos na fé em busca de libertação espiritual e transformação social. Por intermédio
dos agentes de pastoral das CEBs a comunidade tornava-se adepta à nova ideia da Igreja que
conjugava a religiosidade com a busca por justiça social.
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Na medida em que as CEBs foram se fortalecendo, a relação de identificação das
pessoas com a Igreja passou para um sentimento de pertencimento. De acordo com Bauman
(2005) essa relação de pertencimento nasce de um desejo de segurança. Nas CEBs os grupos
bíblicos representava uma foram de segurança: “Muitas pessoas têm dificuldade de falar dos
seus problemas, com a convivência, se reunindo por um longo período semanalmente, se
sentem mais à vontade. Nos grupos pequenos aparecem mais os problemas” (BOETTCHER,
G. ENTREVISTA: Joinville, 22 de abr. de 2010).
No círculo bíblico os agentes de pastoral conduziam os participantes a refletir sobre as
angústias cotidianas, suas causas, comparando com passagens bíblicas para, buscar formas de
superação das dificuldades.
Se discutia assuntos ligados às vidas das pessoas. A gente lia a Bíblia, fazia uma reflexão e levantava os problemas dos moradores. Vários assuntos dos trabalhadores, de família, desavenças e procurava-se sempre resolver os problemas ali no grupo (SCHIMITZ. ENTREVISTA: Joinville, 28 de mai. de 2010).
Tudo isso não seria possível sem romper com os padrões antigos de conduta da Igreja
Católica. De acordo com Souza,
As CEBs fugiam das celebrações e ritos da Igreja tradicional. Era discutir com a comunidade as questões sociais, os problemas sociais que tínhamos, através das pastorais. Por isso que surgiu a Pastoral Operária. Por meio dela surgiram outras pastorais. Era para fugir de só agradecer e pedir a Deus, para que a gente discutisse e a Igreja tivesse uma posição sobre as questões da realidade e do dia-a-dia, na defesa dos direitos, dos interesses da comunidade (ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de 2010).
A proposta das CEBs compreendia a superação das dificuldades que assolavam os
moradores da região e relacionava-as com a situação de miséria e opressão dos pobres do
Brasil e da América Latina. Assim, os fiéis eram organizados em pastorais que tratavam dos
assuntos mais relevantes para a comunidade. No bairro Boa Vista, por exemplo, a pastoral
mais atuante foi a que tratava dos problemas dos moradores das áreas de mangue. No bairro
Floresta, destacam-se a Pastoral Operária (PO) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O
trabalho dessas pastorais confunde-se na história das CEBs de Joinville com a intervenção no
movimento sindical e a formação de movimentos populares.
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A luta pela terra é explicada por Facchini e Pedrini (2000, p.88) a partir de uma
concepção de justiça embasada no Evangelho:
A terra, no Projeto de ser Criador, deve ser Pão, Pátria e Altar para toda a humanidade. A luta para que a terra seja de quem nela trabalha, faz parte de sua obra de redenção. Foi assim que as CEBs Cristo Ressuscitado se fizeram presentes na luta pela terra na Colônia de Pesca de Itapema do Norte, nos muitos loteamentos clandestinos e irregulares da cidade de Joinville, nos mangues e em vários conflitos, inclusive, com enfrentamentos policiais.
Todas essas ações foram impulsionadas pela CPT da Paróquia Cristo Ressuscitado.
Segundo Bicalho,
Em 75 eu cheguei aqui e comecei a participar das CEBs. A gente fundou a Comissão Pastoral da Terra e estávamos organizando o CDH de Joinville. Houve uma tarefa para mim, que seria cuidar de tudo que estivesse relacionado com a terra, tanto na área urbana, como rural. Aí começamos a organizar os pobres lá dos mangues de Joinville. Fizemos umas ocupações grandes (ENTREVISTA: Joinville, 21 de mar. de 2010).
Já os integrantes da pastoral operária discutiam situações relacionadas ao trabalho.
Muitos deles atuaram na área sindical participando de chapas de oposição em eleições de
diversas categorias de trabalhadores.
Através da Pastoral Operária a gente discutia como organizar o sindicato, as categorias, tentar fazer um núcleo para ter uma interferência dentro do sindicato, colocar gente em que confiássemos em quem os trabalhadores pudessem confiar (SOUZA. ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de 2010).
A confiança a que Souza se refere está relacionada ao conceito de liderança e
identificação. Os trabalhadores integrantes das CEBs desejavam que os sindicalistas que os
representavam compartilhassem dos mesmos valores, da luta pela justiça e liberdade,
defendendo, dessa forma, os interesses dos operários e não dos empregadores.
A intervenção da Igreja nas questões sociais da comunidade e sua pedagogia político
religiosa despertaram a atenção do governo ditatorial e do empresariado joinvillense. Facchini
e Pedrini (2000) citam a apreensão pelo Exército, em 1974, de materiais que seriam utilizados
nos Círculos Bíblicos. Em 1976, o Serviço Nacional de Informação realizou uma investigação
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para descobrir o que eram as CEBs, qual seu papel político e quem eram seus principais
responsáveis. Em 1978, órgãos de imprensa locais publicaram trechos de letras de cânticos
das CEBs, de materiais da Pastoral Operária e de Círculos Bíblicos, acusando-os de
subversivos e comunistas. Na Câmara de Vereadores, parlamentares acusaram os agentes de
pastoral de fazerem pregações marxistas. No natal de 1978 o pároco recebeu uma carta do
Comando de Caça aos Comunistas (CCC) anunciando que um “confronto final” estava
marcado para o ano de 1979 por ser ele “simpatizante ativista da canalha comunista que
enxovalha nosso país” (CARTA DO CCC, citada por FACCHINI; PEDRINI, 2000, p. 79). De
acordo com os autores, as CEBs foram investigadas outras vezes pela Divisão da Ordem
Política e Social (DOPS).
A mesma perseguição ocorreu no Boa Vista, já nos anos de 1980. Monsenhor Boleslau
foi vítima de repressão não só do Governo Militar, mas também de uma parcela da
comunidade local que era contra o trabalho de organização comunitária desenvolvido nas
ocupações irregulares do bairro. Monsenhor impulsionou a criação da Pastoral dos Mangues
para auxiliar nos trabalhos relacionados à falta de moradia e de alimentação de centenas de
migrantes que vieram de outros estados à procura de trabalho. Quando conseguiam emprego,
percebiam baixos salários. Por isso o trabalho da pastoral era fundamental no auxílio de
preparação de terrenos ocupados, na construção de moradias e nas questões judiciais de
disputa pelos terrenos.
As ações do padre renderam-lhe apedrejamentos na casa paroquial, ameaças por
telefone e perseguições noturnas. Sua morte, em setembro de 1989, é atribuída por Bertoldi ao
trabalho que ele realizava nas CEBs:
Perseguiram o Monsenhor até matar. Até hoje ninguém explica aquilo. Ele saía muito para pescar nas segundas-feiras, que é o dia de folga dos padres. Era 4 de setembro, ele saiu para pescar e não voltou mais. Deu terça, quarta-feira e não voltava. No dia 7 de setembro ele amanheceu boiando nas águas, inteirinho, sem nenhum arranhão, sem nada (ENTREVISTA: Joinville, 13 de mar. de 2010)
O padre tinha problemas cardíacos e o laudo pericial apontou choque cardiogênico
seguido de asfixia por afogamento como causa da morte. No entanto, Zimmermann (2006,
p.140) levanta dúvidas sobre a causa da morte do padre Boleslau:
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Se Monsenhor Boleslau desapareceu na tarde do dia 4 de setembro e seu corpo foi encontrado somente no dia 7 pela manhã, onde esteve durante três dias? Intensas buscas foram efetuadas a partir do Rio Seco até o município de Araquari. Sabe-se que o corpo humano bóia após 48 horas de submersão. – Por que, então, não foi encontrado antes? Os documentos e o chapéu do padre foram encontrados em terra firme. Como foram parar lá. [...] Como se explica a quase ausência de água nos pulmões e abdômen? [...] Como se explica um corpo intacto após 90 horas de exposição à fauna marinha?
Martins (1994, p.96), que escreve sobre a Teologia da Libertação aplicada às áreas
rurais do país, explica que, quando um padre, uma religiosa ou um bispo defende os
camponeses que compõem sua paróquia ou diocese, em caso de conflito, “imediatamente um
número desproporcional e poderoso de forças policiais e militares se levantam contra eles”.
Para o autor, isso ocorre porque, no Brasil, “a propriedade fundiária é uma das bases
essenciais do sistema econômico”. Traçando um paralelo ao cenário de Joinville, empresas
eram proprietárias de grandes áreas de terra ocupadas por migrantes trabalhadores. A
organização dos moradores pelas CEBs incomodava os empresários que se sentiam afetados.
Também o trabalho da Pastoral Operária perturbava-os porque organizava os trabalhadores
nas lutas e reivindicações por melhores condições de trabalho e de salário.
Ao contrário do Monsenhor Boleslau, o Padre Luiz Facchini escapou das
perseguições, exilando-se por um ano na Suíça.
Eu tive que ficar um ano fora, pois havia ameaças de morte. Na verdade houve da parte do poder estabelecido uma reação violenta de perseguições e inclusive de martírio, perseguição mesmo, não só de pessoas ligadas à Igreja, mas de pessoas que nem tinham ligação com a Igreja, mas que eram de movimentos de esquerda, com uma consciência mais voltada ao socialismo. Na verdade a socialização de todos os meios é a melhor forma. Se você quiser chamar de socialismo, comunismo, mas a possibilidade de pôr todos os bens ao alcance de todos é a melhor forma de governar um município, um estado uma nação (FACCHINI. ENTREVISTA: Joinville, 26 de fev. de 2010).
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Segundo Facchini e Pedrini (2000), a repressão não esmoreceu a comunidade das
CEBs Cristo Ressuscitado, que parecia sair ainda mais fortalecida de cada adversidade. Após
a carta do CCC, o bispo da diocese de Joinville, Dom Gregório Warmeling, publicou um
artigo condenando o clima de insegurança do país e as ameaças ao Padre Luiz Facchini.
Shimitz recorda o sentimento de união promovido pela resistência conjunta às
perseguições e defesa do padre.
Um momento de muita emoção foi quando o Padre Luiz contou na celebração na Capela Nossa Senhora Aparecida sobre as ameaças. Ele relatou e chorou. Então eu subi no altar, dei um abraço nele e disse que era em nome de toda a comunidade. O Eurides e o Ari estavam na porta da Igreja na expectativa que os militares poderiam vir pegar o Padre Luiz. Naquela tarde todas as comunidades da paróquia foram convocadas para irem a Cristo Ressuscitado defendê-lo. Para prendê-lo, teriam que levar todos nós (ENTREVISTA: Joinville, 28 de mai. de 2010).
A criação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) de Joinville, em 1978,
foi impulsionada pelas CEBs para que ele prestasse amparo jurídico às ações sociais
empreendidas, já que, como sociedade civil, poderia responder legalmente a implicações
judiciais. O CDDH de Joinville foi o terceiro do Brasil e primeiro no Sul do país. De acordo
com Facchini e Pedrini (2000), a atuação do CDDH subdividiu-se em setores como
associações de moradores (impulsionando a organização dos moradores de loteamentos
irregulares e a atuação de movimentos sociais), sindicatos (intervindo em campanhas salariais
e sindicais, organização dos desempregados e conseqüente luta pela terra) e política
(promovendo intercâmbios de formação, formando núcleos de direitos humanos e de luta pelo
transporte público).
Com o respaldo do CDDH, as CEBs iniciaram sua intervenção em movimentos sociais
e expandiram sua intervenção sindical e política. Conforme Rebello,
Nós tínhamos a juventude, e criamos a associação dos desempregados, isso em 1981. Quem comandava a Associação dos Desempregados era o seu Macedo, que estava desempregado justo por causa da luta sindical. Chegamos a colocar cerca de 400 pessoas na catedral (ENTREVISTA: Joinville, 18 de mar. de 2010).
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As associações, os sindicatos e o CDDH interagiam com as CEBs. Essas entidades são
consideradas integrantes da sociedade civil. Bobbio (1987) descreve três predominantes
figuras da sociedade civil: a) a figura da pré-condição de Estado, ou melhor, daquilo que
ainda não é estatal; b) da antítese do Estado, ou seja, daquilo que se põe como alternativa ao
Estado; c) da dissolução e do fim do Estado. De acordo com o autor, o Estado é entendido
“como o conjunto dos aparatos que num sistema social organizado exercem o poder coativo”
(1987, p.33).
O CDDH, os movimentos populares e os sindicatos que se formaram ou fortaleceram a
partir das CEBs em Joinville, envolviam-se nos problemas cotidianos da comunidade e
compartilhavam da luta das comunidades de base (não só de Joinville, mas de todo Brasil e de
outros países da América Latina) contra a ditadura militar, tema já abordado no capítulo 1
“Teologia da Libertação”. Dessa forma, em um primeiro momento, essas organizações da
sociedade civil apresentaram-se como alternativa ao Estado (b), pois promoviam trabalhos
assistencialistas, como a alimentação dos moradores do mangue no bairro Boa Vista e a
construção de casas por meio de mutirões para amenizar a situação de fome e falta de
moradia. Em um segundo momento essas organizações representavam uma pré-condição do
Estado (a).
Evidência disso é o posterior envolvimento dos membros da comunidade com o
Partido dos Trabalhadores, que se apresentava como uma alternativa aos movimentos de
esquerda do país e intentava a participação em espaços políticos democráticos. “Nessa época
só existiam dois partidos, a Arena e o MDB, e daí, claro, a gente não tinha envolvimento
político-partidário. Essas discussões todas acabam sendo políticas, mas um vínculo partidário
não se tinha” (SOUZA. ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de 2010). É importante frisar
que Souza teve uma história de militância no PT. Daí a sua convicção de que não era possível
a comunidade se envolver com os dois partidos da época, nascidos da ditadura militar. A sua
crença no PT tornou-se visceral, como uma profissão de fé. Para Larangeira (2006), essa
convicção é conhecida como petismo, crença no poder redentor do partido. É o petismo “que
faz o PT se arvorar como o único partido genuinamente de esquerda, representante legítimo
dos oprimidos e explorador, o porta-voz do povo” (LARANGEIRA, 2006, p.114).
Porém, a possibilidade de envolvimento com o MDB era concreta e pode ser
observada nas palavras do próprio Souza:
46
Na época em que o Padre Luiz foi ameaçado pelo Comando de Caça aos Comunistas, fizemos celebrações de encher a Igreja, que era um grande galpão. O prefeito, que na época era o Luiz Henrique, ia à missa levar apoio ao Padre Luiz Facchini. Foi aí que surgiu um vínculo muito forte entre o Luiz Facchini e o Luiz Henrique na época. O MDB representava, entre os dois partidos da época, um partido de oposição. Para mim era normal, pois eu não tinha envolvimento nenhum (ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de 2010).
De acordo com Schimitz, o PT foi apresentado às CEBs por pessoas de outros centros
urbanos. Essas relações foram possíveis por meio da estrutura da Igreja Católica, nos diversos
movimentos de apoio aos trabalhadores, como a Pastoral Operária.
A primeira vez que ouvi falar em formar um partido da classe trabalhadora foi em uma reunião da Pastoral Operária em Sorocaba, lá por 79. Era próximo da eleição para presidente, indireta. Um tempo depois apareceram o João Socas e o Cleber Pinheiro na comunidade para começarmos a discutir o PT. Conversamos na comunidade e depois fizemos algumas reuniões aqui, em Florianópolis, Criciúma (ENTREVISTA: Joinville, 28 de mai. de 2010).
Após o estabelecimento de um contato inicial em outros centros urbanos, as CEBs de
Joinville foram procuradas por lideranças do movimento que iniciava a formação do PT em
âmbito nacional:
E então veio um convite para a Pastoral Operária de Joinville discutir o estatuto do PT em Curitiba. Fomos em quatro aqui de Joinville: eu, a Ruth [Boettcher], o [Eurides] Mescolotto e a Ideli [Salvatti]. Tinha dez pessoas da Pastoral Operária de Santa Catarina e dez do Paraná. Passamos o dia todo escutando, vieram dois sindicalistas de Osasco, em São Paulo, trazer a ideia do partido. Trouxemos a ideia do PT de lá e através da PO fomos discutindo, organizando. Vimos que a ideia era legal, a criação do partido era importante (SOUZA. ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de 2010).
Ao que parece, a formação do PT em Joinville teve auxílio de Socas, na época,
liderança do movimento petista de Florianópolis.
47
A primeira reunião para falar do PT foi realizada na casa do Senhor Pedro, pedreiro, já falecido. Três, dos cinco participantes, faziam parte da pastoral operária. Seguindo os propósitos dessa reunião, em que houve compromisso de aumentar a organização e participação de todos, começou a organização do PT em Joinville. A certo momento cheguei a me reunir com a Pastoral Operária para explicar o porquê da fundação de um partido ligado aos trabalhadores (SOCAS. ENTREVISTA: Florianópolis, 09 de jul. de 2010).
Assim, o PT nascia em âmbito nacional com um projeto político que muito se
assemelhava aos ideais de justiça, igualdade e liberdade das CEBs. Surge da união de diversas
organizações de esquerda do país, com diferentes origens e que, naquele momento histórico,
compartilhavam de um mesmo objetivo: derrubar a ditadura militar e promover a justiça
social.
Segundo Bobbio (2005, p.111), o principal critério utilizado para distinguir a direita e
a esquerda “é a diversa postura que os homens organizados em sociedade assumem diante do
ideal de igualdade, que é, com o ideal da liberdade e o ideal da paz, um dos fins últimos que
os homens se propõem a alcançar e pelos quais estão dispostos a lutar”.
Assim, pontuado na luta pelo ideal de justiça, no primeiro parágrafo do Manifesto do
Partido dos trabalhadores, citado por Gadotti (1989, p. 52), reconhece-se a proximidade com o
discurso das CEBs:
O Partido dos Trabalhadores surge da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política para transformá-la. A mais importante lição que o povo aprendeu em suas lutas é a de que a democracia é uma conquista que, finalmente, ou se constrói por suas mãos ou não virá.
No PT as CEBs encontraram força para intervir em ambientes políticos. Além das
semelhanças programáticas, o interesse dos integrantes das CEBs pela formação de um
partido pode ser analisado à luz da teoria de Bobbio (1987, p. 36). Para o autor, “os partidos
têm um pé na sociedade civil e um pé nas instituições” e “cumprem a função de selecionar,
portanto de agregar e de transmitir, as demandas provenientes da sociedade civil e destinadas
a se tornar objeto de decisão política”.
Após estudarem o funcionamento político e econômico da sociedade, organizar
entidades trabalhistas e movimentos populares, os integrantes das CEBs desejavam agora se
48
fazerem ouvidos nos ambientes de decisão política. Nessa atitude encontramos novamente
traços da Teoria da Ação Comunicativa. De acordo com Gonçalves (1999, p. 131),
Como uma forma de transformação da sociedade contemporânea na busca de solução para os graves problemas que assolam a humanidade, Habermas visualiza o resgate de uma racionalidade comunicativa em esferas de decisão do âmbito da interação social que foram penetradas por uma racionalidade instrumental.
Quando se fala em racionalidade comunicativa, em oposição à racionalidade
instrumental, quer-se afirmar que os seres humanos não são simples reagentes do meio em
que vivem, mas têm suas ações repletas de sentidos e, graças à linguagem, são capazes “de
comunicar percepções e desejos, intenções, expectativas e pensamentos” (GONÇALVES,
1999, p.131). Ou seja, assim como a teoria de Habermas, os integrantes das CEBs
vislumbraram a possibilidade de atuar em espaços políticos introduzindo seu método de
diálogo, em detrimento de um governo autoritário e de decisões arbitrárias.
Porém, a entrada de participantes das CEBs no meio político-partidário não se deu sem
conflitos com a direção da Igreja que desejava não perder o controle sobre a autonomia da
comunidade.
Veio um pessoal de Criciúma para se reunir com o pessoal da Pastoral Operária, que era um grupo grande. Aí o Padre Luiz disse que não. Ele não queria que formássemos o PT. A gente estava na reunião e eles não deixaram o pessoal que veio de Florianópolis e Criciúma sentar nas cadeiras. Então eu puxei eles para a minha casa. À tarde eles vieram conversar comigo e dali para frente nasceu o PT (SCHIMITZ. ENTREVISTA: Joinville, 28 de mai. de 2010).
De acordo com Facchini (ENTREVISTA: Joinville, 26 de fev. de 2010) havia
orientação para que a Igreja não assumisse posições partidárias, sob a justificativa de
assegurar a diversidades dos fiéis. Por outro lado, documentos da CNBB conclamavam aos
cristãos a assumirem uma postura política. Diante dessas contradições as lideranças se
apropriaram do conhecimento político adquirido nas CEBs para tomar a decisão de optar pela
fundação de um núcleo partidário petista, que colocava o trabalhador no centro das disputas
eleitorais.
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Os padres falavam que nos éramos diferentes, que não devíamos participar do processo eleitoral, mas nós entendíamos que o maior político era Jesus Cristo, que Ele não tinha medo do enfrentamento, que Jesus bateu o chicote, pois o templo não podia ser um covil de ladrões. Nossos candidatos eram todos trabalhadores que tinham crescido nas CEBs. Isso aproximava muito o PT da Igreja, mas eles diziam que tínhamos que separar Igreja e política. Recebemos muitas críticas, mas a gente não entendia o motivo. E até hoje a gente acredita que todo cristão tem que participar do processo político (REBELLO. ENTREVISTA: Joinville, 18 de mar. de 2010).
O padre Luiz Facchini, soberano até então em relação à comunidade, viu suas bases de
poder ruir com a desobediência de alguns membros da comunidade. Novas lideranças estavam
emergindo. De acordo com Maquiavel (2009, p.17), “aquele que promove o poder de um
outro perde o seu, pois tanto a astúcia quanto a força com as quais fora ele conquistado
parecerão suspeitas aos olhos do novo poderoso”.
O novo poder que surgia na comunidade era o político. A partir da atuação das
próprias CEBs, outros membros da comunidade passaram a atuar como formadores de
opinião. Quando o PT surgiu, os líderes das CEBs vislumbraram um novo instrumento para
intervir em espaços políticos e lutar por uma sociedade mais justa e igualitária, mesmo
objetivo da Teologia da Libertação. É a busca de espaço público, explicado por Bauman
(2000), como segurança de estar no mundo, de acordo com as promessas do Estado
Democrático que se desenhava na caduca estrutura do poder militar. Assim, a organização
religiosa perdeu a posição de único instrumento de intervenção social daquela comunidade, o
que despertou uma reação negativa do pároco.
Teve um momento em que o Luiz Facchini chamou uma reunião com todos nós. Devia ter umas 15 ou 20 pessoas ligadas mais diretamente à Pastoral Operária e mais envolvidas com o PT, para discutir a questão da Igreja o do partido. A preocupação dele era de que nós estávamos no partido e a gente ia aos poucos abandonar a Igreja, abandonar a pastoral. Ele temia isso, ele queria essa força para ele, junto à Igreja. E a gente discordou, a gente achava que o partido era mais importante, era uma coisa maior, tinha uma abrangência muito maior. E acabou que ele tinha razão, que a grande maioria acabou priorizando o PT à Igreja (SOUZA. ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de 2010).
Porém, mesmo com as negativas do pároco, a voz das novas lideranças se sobressaiu e
o poder político partidário estabeleceu-se na comunidade. De acordo com Schimitz
50
(ENTREVISTA: Joinville, 28 de mai. de 2010): “Ocupávamos às vezes o espaço da Igreja. O
padre Luiz não pôde mais impedir e deu espaço para trabalharmos”.
No livro “CEBs 25 anos de caminhada na Paróquia Cristo Ressuscitado. Joinville – SC
– Brasil” Facchini não menciona o conflito ideológico entre ele e lideranças na formação do
PT. No entanto, faz menção sucinta do envolvimento de integrantes das CEBs no PT:
“Membros das CEBs Cristo Ressuscitado foram lançados pelo PT (Partido dos
Trabalhadores), para os cargos de deputado federal, estadual e vereador – para Joinville”
(FACCHINI; PEDRINI, 2000, p.77).
Para Orlandi (2005), em sociedades como a nossa as relações de poder produzem
censura, de modo que sempre há silêncio acompanhando as palavras. Por isso, “devemos
observar o que não está sendo dito, o que não pode ser dito” (p.83).
O silêncio de Facchini sobre os conflitos que ocorreram na comunidade pode ser
interpretado com base na relação positiva que ele estabeleceu entre as CEBs e a formação do
PT:
Do seio dos próprios círculos bíblicos, concomitante com uma consciência sindical daquele período, as coisas nascem praticamente juntas. O sindicalismo não mais atrelado aos interesses das grandes empresas, dos grandes patrões, mas como ferramenta, uma força libertadora para os operários nas suas reivindicações, nas suas lutas. O PT nasce desse meio religioso, sindical, e trabalhista. Se constrói uma política com “P” maiúsculo, com a participação efetiva de todos. Com a arte da busca da construção do bem comum. Aí então é que nasce a organização política que leva o nome de PT (FACCHINI. ENTREVISTA: Joinville, 26 de fev. de 2010).
Ducrot (1972), citado por Orlandi (2005), distingue duas formas de não-dizer, ou seja,
de deixar algo implícito: o pressuposto e o subentendido. O pressuposto deriva propriamente
da instância da linguagem e o subentendido depende do contexto e não está necessariamente
ligado ao que foi dito.
Facchini deixa implícita a tentativa de apropriar-se da responsabilidade pelo
envolvimento da comunidade na política voltada para o bem comum, atribuindo-a ao trabalho
das CEBs, aos ensinamentos da Teologia da Libertação e aos movimentos social e sindical
por ele impulsionados. Segundo Facchini (ENTREVISTA: 26 de fev. de 2010): “A teologia
da libertação foi uma luz para as CEBs e para a organização popular do povo que participava
51
delas. Nasce aí uma aliança entre a ação da Teologia da Libertação e da promessa do Partido
dos Trabalhadores, uma aproximação de conhecimentos que se entrecruzam e se fundem”.
Os líderes políticos da comunidade lançaram-se à construção do PT na cidade,
promovendo reuniões e realizando filiações para obter a legalização do partido. Segundo
Boettcher, R. (ENTREVISTA: Joinville, 15 de mar. de 2010):
A gente foi visitando as pessoas de casa em casa, falando desse sonho de criar um partido político, que fossemos nós as lideranças para fazer a política, fazer as leis. Alguns achavam que estávamos loucos, outros se empolgavam e se filiavam. Caminhamos cerca de dois anos até legalizar o partido, fazer uma comissão provisória e participar da primeira eleição.
Essas ações obedeciam às orientações do movimento nacional de formação do PT que,
antes de sua legalização, denominava-se Movimento Pró-PT. Gadotti (1989, p. 47) cita o
documento “Sugestões para normas transitórias de funcionamento”, aprovado em um
encontro em São Bernardo do Campo, em outubro de 1979:
1) O Movimento pelo Partido dos Trabalhadores, desde já democrático e aberto à participação dos trabalhadores da cidade e do campo, dos camponeses, dos posseiros, dos profissionais liberais, dos professores e bancários, parlamentares, estudantes, trabalhadores autônomos da cidade e do campo etc., proclama sua decisão de lutar pela sua legalização. 2) Com esse objetivo, o Movimento pelo PT pretende agora iniciar a criação de sedes, a confecção de fichas de seus militantes e promover campanhas de finanças. 3) O PT deverá iniciar, oportunamente, uma campanha de assinaturas através de uma ampla mobilização de massas, visando divulgar sua proposta: as listas de assinatura deverão ser nacionalmente uniformes.
Com essas orientações do Movimento Pró-PT, lideranças ligadas às CEBs pretendiam
alcançar objetivos que não conseguiram por meio da Igreja, mesmo diante da relutância do
padre que até então foi o líder espiritual e político que os inspirou na busca de uma vida em
abundância no reino terrestre.
Assim, imbuídos de um sentimento de unicidade partidária, as lideranças procuraram
saídas para os encontros de discussão política que até então eram feitos nos espaços da Igreja,
o que não mais permitidos pelo pároco. Os militantes petistas passaram a se reunir no
escritório do advogado Osvaldo Michelutti, que foi o candidato a vice-prefeito em 1982,
52
quando João Schmidt concorreu a prefeito (BOETTCHER, R.: ENTREVISTA: Joinville, 15
mar. de 2010).
Além das lideranças das CEBs do Floresta, integraram o Movimento Pró-PT em
Joinville lideranças das CEBs do Boa Vista, moradores do Aventureiro e de outros bairros da
cidade. Bertoldi afirmou que Monsenhor Boleslau incentivou a participação no partido,
considerado um instrumento de mudança social.
Acreditamos que seria um partido diferente do que os partidos de roubalheira que víamos até então. O Monsenhor mesmo me levou para conhecer o PT. Ele disse que as Comunidades Eclesiais de Base têm que trabalhar pelo social e pelo comunitário. Pelo social seria se envolvendo na política sim. Ele dizia que tínhamos que nos meter na política, pois ela é a defesa do bem comum. E o bem comum do povo o que é que é? Saúde, terra, educação, moradia. Ele dizia que primeiro começava por nós e depois, com a união do povo, as coisas iam mudar. Zé Matos ia de bicicleta de casa em casa perguntar quem queria se filiar ao PT. Sempre que a gente conversava com alguém, com pais de catequizandos, conversávamos um pouco sobre o PT. (ENTREVISTA: Joinville, 13 de mar. de 2010).
Ao que se percebe, de acordo com entrevistados, os dois párocos, Facchini e Boleslau,
tinham visões diferentes em relação ao PT. Boleslau incentivava os fiéis a participarem da
vida política porque acreditava na mudança e justiça social a partir da nova agenda
democrática do país.
Segundo Souza, pouco antes da legalização nacional do PT, que ocorreu em 1980, o
grupo alugou uma sala para realizar reuniões na Avenida Beira Rio.
A reunião de fundação mesmo do PT, dia 10 de fevereiro de 80 foi ali. Nós estávamos mais ou menos em 25 pessoas. Aí surgiu a pergunta de quem iria ser o filiado número um. Escolhemos o João Schmitz, pois além de ele ser uma pessoa mais velha, ele era operário, carpinteiro. Ele representava aquela coisa do Partido dos Trabalhadores. Tanto que ele foi o nosso primeiro candidato a Prefeito, o nosso primeiro presidente do PT. Depois fizemos uma fila e eu fui o número seis (ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de 2010).
Vinte anos após a Conferência de Medellín, aconteceu aquilo que o conservadorismo
da Igreja Católica temia ao resistir à doutrina da ala progressista da Teologia da Libertação. O
envolvimento político de lideranças das CEBs no movimento petista em Joinville contribuiu
para o distanciamento de fiéis da Igreja. Souza (ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de
53
2010) acredita que esse afastamento preocupou o Padre Luiz Facchini. As atividades dentro
do PT tomaram o tempo de Souza, a ponto de desistir de seus estudos e, inclusive, da Igreja.
Percebendo que não conseguiria impedir o envolvimento dos líderes das CEBs no PT,
o padre procurou intervir no partido, tentando garantir o nome de um membro da família
Facchini para a candidatura a prefeito. A rejeição dessa proposta pelos novos líderes causou
um rompimento entre lideranças políticas e o pároco.
De acordo com SCHIMITZ,
Depois da primeira eleição, que eu fui candidato, houve um rompimento, pois eles queriam que o Justino, irmão do Padre Luiz, fosse candidato a prefeito. O João Facchini e o Padre Luiz trabalharam na comunidade e trouxeram o Justino de Florianópolis para ser o candidato. Como o pessoal não aceitou e todo mundo veio falar comigo para eu ser o candidato – eu não tinha experiência, nunca fui político, mas devido à circunstância, que era importante que fosse um trabalhador, eu acabei aceitando. Aí houve um afastamento do Padre Luiz, a gente não tinha mais espaço lá e começamos a procurar outros locais para se encontrar (ENTREVISTA: Joinville, 28 de mai. de 2010).
Segundo Rebello, as lideranças das CEBs tinham grande influência no PT. Talvez por
isso o nome de João Schmitz tenha prevalecido ao de Justino Facchini, defendido pelo padre:
Nós conseguimos que o seu João Antonio Schmitz saísse candidato, por entender que o partido era dos trabalhadores. Havia vários nomes como o Justino Facchini, de Florianópolis, mas conseguimos colocar o João Schmidt, por conta das CEBs que era muito forte (ENTREVISTA: Joinville, 18 de mar. de 2010).
Assim, as CEBs cumpriram a proposta de agendamento de formação política a que se
propuseram. As lideranças elevaram os níveis de participação e decisão no campo político da
esfera pública, mesmo a contragosto do líder espiritual.
De acordo com Souza (ENTREVISTA: Joinville, 30 de mar. de 2010), João Facchini,
irmão do padre Facchini, ao abandonar o sacerdócio, pretendia candidatar-se como vereador
pelo MDB. Porém, com a instituição do PT em Joinville, integrou ao partido e concorreu às
eleições como candidato a deputado estadual, em 1982.
Em entrevista, Facchini menciona o rompimento com o PT quando percebeu que o
partido tornou-se incoerente com a proposta da Teologia da Libertação. As lideranças foram
54
infiéis à Igreja. Nessa circunstância, a Teologia da Libertação não poderia assumir a conduta
de uma ideologia religiosa:
O PT se deixou contaminar pela tentação do poder financeiro e interesses de pequenos grupos. É a fruta proibida do livro dos Gêneses, é a tentação do poder político, onde a vida humana começa a sofrer e as pessoas começam a ceder à tentação do poder. Isso começa na década de 90. É mais evidente na medida em que o PT foi assumindo o poder. É quando a gente começa a visualizar que as pessoas eleitas não permanecem fiéis (ENTREVISTA, Joinville, 26 de fev. de 2010).
Ao que parece, a separação entre a fé e a política, depois de uma caminhada que
formou lideranças no seio da Igreja, de alguma maneira, frustrou o líder religioso. Talvez a
política estivesse assumindo um caminho autônomo, independente da Igreja que a havia
acolhido, na medida em que, nacionalmente, a redemocratização do país dava sustentabilidade
à formação de partidos para lutar por direitos. A Igreja teria sido a ponte de passagem da
comunidade que, agora, poderia ser desfeita porque havia cumprido o seu papel de agregadora
social, de formadora de líderes que interligavam um nascente partido que prometia mudanças
por meio de assento nos poderes legislativo e executivo.
Filho das CEBs, concebido a partir do verbo pelo desejo e curiosidade de lideranças da
Pastoral Operária que se desviaram das orientações do líder espiritual, nasceu o PT, um
partido que alimentou as esperanças de construção de uma nova sociedade.
55
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho de conclusão de curso se propôs estudar a relação das Comunidades
Eclesiais de Base com a constituição do Partido dos Trabalhadores em Joinville. Durante a
pesquisa em curso, busco compreender a relação da fé e política que moveu lideranças na luta
por justiça social, primeiramente, seguindo líderes religiosos sob a capa da Teologia da
Libertação, para, posteriormente, acreditar na força de um partido que representasse os
trabalhadores.
A Teologia da Libertação é a sistematização teórica da opção preferencial da Igreja
pelos pobres e se desenvolveu principalmente na América Latina, a partir do Brasil. Porém,
essa metodologia só poderá ser plenamente compreendida se forem analisadas as condições
em que foi concebida e as circunstâncias de sua expansão.
Os religiosos que iniciaram o trabalho das CEBs na década de 1950 defendiam seus
fiéis nas comunidades carentes, como uma ação pedagógica, motivada pela coerência ética e
religiosa que não permitia mais que se calassem diante das injustiças sociais. A sistematização
e teorização dessa postura religiosa, realizadas entre os encontros eclesiais de Medellín e
Puebla, foram chamadas de Teologia da Libertação.
Diante da situação de miséria de comunidades rurais e urbanas espalhadas por toda a
América Latina, a Igreja se viu condicionada a conceder aos adeptos da Teologia da
Libertação a permissão da prática reflexiva sobre o mundo, até mesmo como uma foram de
controlar convulsões sociais num período de efervescência política mundial. No Brasil, a
assimilação da Teologia da Libertação ocorreu em um momento histórico de um Estado
autoritário e opressor.
Sob a capa da defesa das minorias, a Igreja reuniu lideranças, promoveu movimentos e
organizações sociais dentro de seu espaço e procurou intervir, por meio da fé, no espírito
revolucionário das forças populares adeptas de uma ideologia socialista. Ao invés da
revolução, propôs mudanças sociais por meio da paz, a partir do diálogo e da conciliação de
classes. A nova sociedade proposta pela Igreja estava alicerçada nos princípios do
assistencialismo, da mudança de conduta da sociedade civil, da organização comunitária e da
promoção de uma sociedade igualitária.
56
O trabalho das CEBs em Joinville se fortaleceu diante da difícil situação vivida por
moradores da periferia da cidade, além dos ocupantes das áreas de mangue – em sua maioria
trabalhadores que migravam de outros estados em busca de trabalho. Os conflitos entre
proprietários e ocupantes de terras foram minimizados com o auxílio da Igreja.
O trabalho das CEBs, embasado na Teologia da Libertação, fortaleceu as pastorais, em
especial a Pastoral Operária, que se sentiu motivada a lutar por conquistas materiais dos
trabalhadores. Uma vez que a opção preferencial da Igreja pelos pobres limitou-se muito mais
ao trabalho de evangelização e de assistencialismo do que propor mudanças na estrutura do
Estado para promover a distribuição de rendas que resultasse no avanço da justiça social, a
Pastoral Operária concebeu a ideia de intervir nos espaços de decisões políticas por meio de
um partido que representasse os trabalhadores.
O PT de Joinville é, sob essa ótica, resultado de uma perspectiva de esperança de viver
a democracia e do desejo da participação dos trabalhadores nas decisões políticas do país. Por
isso, o engajamento de líderes da Pastoral Operária no movimento nacional Pró-PT foi
fundamental na constituição do PT. Porém, contribuiu para que esta perspectiva se realizasse,
o espírito de desobediência dessas lideranças às determinações do Padre Luiz Facchini,
mentor das CEBs em Joinville, que, inicialmente, era contra a ideia da criação de um partido.
As lideranças, “grávidas” de esperanças que aprenderam a cultivar com o trabalho das CEBs,
conceberam o PT.
Ao que parece, havia um descompasso entre a teoria da Teologia da Libertação e a
prática, enquanto CEBs, na medida em que se pregava a emancipação dos oprimidos pelos
próprios oprimidos, porém, os rumos das comunidades do Floresta e do Boa Vista eram
definidos pela influência de seus líderes, em especial, religiosos.
Pode-se considerar que o Partido dos Trabalhadores e as CEBs eram dois instrumentos
distintos utilizados para realizar o mesmo objetivo: a busca de justiça social. Trazendo a
discussão para o tempo presente é possível afirmar que o PT parece ter herdado das CEBs a
limitação que afastou da Igreja a discussão política. A promessa de modificações na estrutura
do Estado para promover uma nova sociedade com disposição igualitária, talvez tenha que
esperar mais um pouco.
Essas formulações são resultado de meu olhar enquanto pesquisadora e, como toda
interpretação, poderão ser modificadas, complementadas, totalmente contrapostas ou
57
refutadas por outro observador ao aprofundar o tema. Espero que essa pesquisa possa
contribuir a outros pesquisadores sobre esse momento político de Joinville.
O que restou das Comunidades Eclesiais de Base? O saudosismo das antigas
lideranças de um período de pertencimento simbólico do círculo pintado na parede da Igreja
Cristo Ressuscitado, no Floresta? A saudade do Monsenhor Boleslau no Boa Vista?
A orientação do alto clero da Igreja Católica para seguir uma liturgia originária da
América do Norte, conhecida como Renovação Carismática Católica e inspirada em Igrejas
Pentecostais voltada à espiritualidade individual, concepção oposta à Teologia da Libertação,
encontrou ressonância nas comunidades e tornou ultrapassada qualquer tentativa de
experiências coletivas. Porém, antigas lideranças das CEBs ainda frequentam a Igreja
Católica, agora separando o espaço de fé do espaço político.
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ENTREVISTAS REALIZADAS
AGNOR BICALHO (PARAFUSO), casado, agricultor, natural do Espírito Santo e residente
em Joinville. Entrevista concedida à autora em 21 de março de 2010.
ALOÍSIO TADEU DE SOUZA (PARDAL), ex-operário, artesão e comissionado da
Fundação Cultural de Joinville, natural e residente em Joinville. Entrevista concedida a autora
em 30 de março de 2010.
GILBERTO BOETTCHER, casado, teólogo, ex-diretor da Fundação Pauli-Madi Pró
Solidariedade e Vida, empresário, natural e residente em Joinville. Entrevista concedida à
autora em 22 de abril de 2010.
IVANIR BERTOLDI, casada, dona de casa, natural de Itajaí, residente em Joinville.
Entrevista concedida à autora em 13 de março de 2010.
JOÃO SCHIMITZ, ex-carpinteiro, aposentado, residente em Joinville. Entrevista concedida à
autora em 28 de maio.
JOÃO SOCAS, engenheiro eletricista e professor universitário, residente em Florianópolis.
Entrevista concedida à autora em 09 de julho de 2010.
JOSÉ BASÍLIO DE MATOS, ambulante, natural de Jacinto Machado – SC, residente em
Joinville. Entrevista concedida à autora em 24 de fevereiro de 2010.
LUIZ FACCHINI, solteiro, padre, natural de Taió – SC, residente em Joinville. Entrevista
concedida à autora em 26 de fevereiro de 2010.
RUTH BOETTCHER, casada, ex-operária, ex-comerciante, ex-assessora parlamentar, natural
e residente em Joinville. Entrevista concedida à autora em 15 de março de 2010.
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VALSONI CELESTINO (LICO), comissionado da Prefeitura Municipal de Joinville e
residente em Joinville. Entrevista concedida em 23 de março de 2010.
VILMAR REBELLO, ex-seminarista, ex-comerciante, comissionado da Prefeitura Municipal
de Joinville, natural e residente em Joinville. Entrevista concedida à autora em 18 de março de
2010
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ANEXO
Roteiro de entrevistas
Quando você começou a participar das Comunidades Eclesiais de Base?
Em qual paróquia e quando as Comunidades Eclesiais de Base iniciaram em Joinville?
Quantas Comunidades Eclesiais de Base havia em Joinville?
Quais as Comunidades Eclesiais de Base mais atuantes?
Quais eram os ideais das Comunidades Eclesiais de Base?
Fale sobre a atuação das Comunidades Eclesiais de Base, como eram os encontros e quem
eram as lideranças.
Quais eram as bases de reflexão das Comunidades Eclesiais de Base (textos bíblicos, textos
conjunturais, políticos)?
Havia alguma reflexão política nos encontros das Comunidades Eclesiais de Base?
Você conhecia os princípios da Teologia da Libertação?
De que forma a Teologia da Libertação estava presente nas Comunidades Eclesiais de Base?
Você era filiado a algum partido político enquanto participava das Comunidades Eclesiais de
Base?
As Comunidades Eclesiais de Base s tinham alguma aproximação com partidos políticos?
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Qual a relação entre as Comunidades Eclesiais de Base e o Partido dos Trabalhadores?
As Comunidades Eclesiais de Base faziam parte de algum movimento católico nacional ou
internacional?
As Comunidades Eclesiais de Base tinham apoio do bispo e autoridades da Igreja?
Os ideais das Comunidades Eclesiais de Base eram colocados em prática? De que maneira?
Qual a aproximação ideológica entre a Teologia da Libertação e o projeto político do PT?
O que mudou na sua vida participando nas CEBs?
Algum dia você ou a comunidade receberam ameaças ou coisas semelhantes por participarem
das Comunidades Eclesiais de Base?
Quando as Comunidades Eclesiais de Base começaram a declinar? Por quê?
Atualmente, o que ficou dos princípios da Teologia da Libertação no projeto político do PT?