o público e o privado - portal da...

169
O público e o privado Revista do Programa de Pós-Gra- duação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará Dossiê Arte, Cidade e Subjetividades Contemporâneas

Upload: others

Post on 20-Apr-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privadoRevista do Programa de Pós-Gra-duação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará

Dossiê Arte, Cidade e Subjetividades Contemporâneas

Page 2: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições
Page 3: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

R E I T O R Francisco de Assis Moura Araripe

VICE-REITOR Antônio de Oliveira Gomes Neto

PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

José Jackson Coelho Sampaio

C O N S E L H O E D I T O R I A L

E D I TO R

Alexandre Almeida Barbalho João Tadeu de Andrade Rosemary de Oliveira Almeida

C O N S U LTO R E S INTERNOS

Claudia Sousa Leitão Francisca Rejane de Bezerra Andrade Francisco Josênio C. ParenteFrancisco Horácio da Silva Frota João Bosco Feitosa dos Santos José Filomeno de MoraesJosé Jackson Coelho Sampaio Jouberth Max Maranhão Piorsky Aires Geovani Jacó de FreitasGisafran Nazareno Mota Juca Hermano Machado Ferreira Lima Kadma Marques RodriguesLiduina Farias Almeida da Costa Maria Celeste Magalhães Cordeiro Maria Glauciria Mota Brasil

Maria Helena de Paula Frota Maria do Socorro Ferreira Osterne Monica Dias MartinsRegianne Leila Rolim Medeiros Sofia Lerche Vieira

C O N S U L T O R E S E X T E R N O S

Abdelhafid Hammouche (Universidade de Lille I - França) Adalberto Moreira Cardoso (IESP-UERJ)Antonio Albino Canelas Rubim (UFBA) Daniel Chaves de Brito (UFPA)

Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes (UFC) Elísio Estanque (CES - Universidade de Coimbra) Irlys Barreira (UFC) Jawdat Abu-EI-Haj (UFC) José Machado Pais (Universidade de Lisboa)

José Mauricio Castro Domingues da Silva (IESP-UERJ) José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS) Lilia Maia de Morais Sales (UNIFOR) Luiz Jorge Wernek Viana (PUC-Rio)

Manoel Domingos Neto (UFF) Marcelo Parreira do Amaral (Universidade de Frankfurt) Marcos Luiz Bretas (UFRJ) Maria Alice Rezende de Carvalho (PUC-Rio)

Maria Lucilia Monteiro (Universidade Nova Lisboa) Maria Ozanira Silva e Silva (UFMA) Mariano Fernandez Enguita (Universidad de Salamanca) Miguel Alberto Bartolome (Insti-tuto Nacional de Antropologia e História – INAH-MX) Paulo Filipe Monteiro (Universidade

Nova Lisboa) Pedro Demo (UNB) Robert Austin (Universidade da Austrália) Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (PUC-RS) Ronald Chilcote (University California)

Sérgio Adorno (USP)

CENTRO DE HUMANIDADES Marcos Antônio Paiva Colares

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS Maria da Conceição Pio

O público e o privado. Fortaleza: UECE, 2003-. Semestral. Conteúdo: ano 9, n.17, Janeiro/Junho, 2011

1. Humanidades e Ciências Sociais

CDD 320.000

ISSN 1519-5481

P R O J E TO GRÁFICO

Clarice FrotaEDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Cristiê Gomes Moreira

Page 4: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado

Revista do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará - UECE. Tem por objetivo divulgar artigos e comunicações resultados de pesquisas e estudos na área de políticas públicas. Periódico semestral e temático, recebendo também colaborações com temas diversos, desde que relevantes para a área. A revista possui uma versão on line localizada na página www.uece.br/politicaspublicas e www.politicasuece.com do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UECE com diversas informações das atividades desenvolvidas.

Correspondência

A submissão de artigos deve ser feita através do endereço eletrônico [email protected], para a Editoria da Revista. Correspondências via correio comum devem ser encaminhadas para: Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas - UECE. Campus do Itaperi. Av. Paranjana, 1700, Fortaleza – Ceará. CEP: 60.740.9003 - Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e SociedadeSecretaria: Cristina Maria Pires de Medeiros Endereço eletrônico: [email protected]: (85) 3101-9887 - Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas PúblicasSecretaria: Maria de Fátima Albuquerque de Araújo Souza

Endereço eletrônico: [email protected]/fax: (85) 3101-9880

A revista O público e o privado está indexada em:Latindex | www.latindex.unam.mxSumários de Revistas Brasileiras | http://www.sumarios.org.br

Page 5: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

ApresentaçãoDesafios urbanos e mundo contemporâneo:

a cidade, a cultura e a arte

Este número da revista O público e o privado foi organizado no contexto de produções acadêmicas elaboradas a partir do Acordo de Cooperação firmado entre a Faculté de Sociologie et Anthropologie (Université Lumière Lyon 2 / França) e o Mestrado Acadêmico de Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS / UECE) e, por extensão, de uma rede de pesquisa que reflete sobre os desafios urbanos que marcam a contemporaneidade. Portanto, em seu número 17, esta Revista reúne, em parte, contribuições de pesquisadores do Brasil, da França, de Portugal e Espanha. Estes estiveram reunidos em Fortaleza, em 2010, para participar do Seminário Internacional Arte, Cidade e Subjetividades Contemporâneas, evento que, apoiado pelo MAPPS, tratou de questões as quais configuram os contornos atuais das relações que se tecem entre as cidades, a cultura e a arte. Às citadas contribuições, uniram-se ainda aquelas formuladas por pesquisadores que tematizam a particularidades deste contorno relacionado à realidade de Fortaleza.

Neste sentido, o artigo de Marco Aurélio de Andrade Alves e Alba Maria Pinho de Carvalho, intitulado As Marcas do Progresso: Alguns Códigos Urbanos na Cidade de Fortaleza dos Séculos XIX e XX inicia o dossiê com uma discussão histórico-sociológica sobre os comportamentos sociais previstos por alguns Códigos de Postura e normas urbanas vigentes em Fortaleza dos séculos XIX e XX, associando-as às necessidades de disciplina e adequação dos indivíduos a um “modo próprio de se viver” na Cidade.

Andrea Sobreira Cialdini Borges e João Bosco Feitosa dos Santos com o texto Trajetória de Políticas Habitacionais em Cenários de Desigualdade Social: o caso de Fortaleza discutem a trajetória da política de habitação de interesse social no Brasil, identificando sua formação em contexto de desigualdade social, mediante cenário de muitas lutas urbanas. Tomando como foco discursivo a moradia, demonstram que o modelo de desenvolvimento urbano no país é marcado pela ausência de planejamento urbano e pelo favorecimento dos interesses das elites dominantes.

No capitulo seguinte, Teresa Helena Gomes Soares e Hermano Machado Ferreira Lima, apresentam texto intitulado: O Centro de Fortaleza/CE e a Atual Proposta de Reabilitação: do que se Trata? Os autores refletem sobre as propostas de políticas urbanas e habitacionais implantadas pelo Poder Público Municipal para o Centro de Fortaleza a partir do Plano Habitacional para Reabilitação da Área Central de Fortaleza/CE – PHRACF. Neste texto

Page 6: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições de moradia dos centros urbanos na elaboração do PHRACF.

O texto Espaço Público, Requalificação Urbana e Consumo Cultural: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu entorno de autoria de Linda Maria Pontes Gondim, apresenta analise da crise do espaço público na cidade contemporânea tendo como caso empírico o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, a partir do qual é percebida sociabilidade que permite convivência de usos e contra-usos, os quais expressam lutas na e pela cidade.

Roselane Gomes Bezerra em seu artigo Narrativas da Cidade Virtual, reflete sobre a concepção de cidade e de política urbana que os gestores pretendem transmitir por meio da publicidade de projetos de requalificação. A autora toma como elementos de comparação imagens de futuras edificações em outdoors, revistas e em maquetes de visualização tridimensional, nas cidades de Almada, em Portugal, e de Fortaleza, no Brasil e seus rebatimentos nas representações dos planos de intervenção urbana.

Lígia Dabul em seu artigo Rápidas Passagens e Afinidades com a Arte Contemporânea analisa alguns aspectos da interlocução entre arte contemporânea e Ciências Sociais, enfocando o discurso que a arte vem produzindo acerca das sociedades na atualidade, estabelecendo diálogos entre novas experiências artísticas que tratam do centramento / descentramento de sujeitos implicados na vivência da alteridade seja no lugar da exposição, no espaço virtual ou no contexto da cidade.

O texto escrito por Abdelhafid Hammouche e traduzido por Maria Ester Monteiro tem como título a seguinte questão: A Arte a Serviço da Cidade? Partindo desta indagação Hammouche tenta caracterizar a dinâmica política das cidades na contemporaneidade. Estas têm em comum o fato de encontrarem na arte e na cultura um meio de intervenção e organização privilegiado. Deste modo, o autor ilustra a análise do lugar da arte no espaço urbano a partir de alguns exemplos da história recente da cidade de Lyon, na França.

José da Silva Ribeiro problematiza no artigo Hibridação Cultural: Sonoridades Migrantes na América Latina uma dentre as possíveis vias de concretização do processo de hibridação cultural, ou mestiçagem, ou “crioulização” – aquela chamada de sonoridades migrantes. Para tanto, o autor parte da consideração de fusões sonoras que extrapolam contextos nacionais, a fim de refletir acerca da experiência temporal urbana como elemento fundamental ao encontro entre culturas, à definição de objetos, situações e locais nos quais a hibridação acontece.

Page 7: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Por sua vez o artigo Interterritorialidades – Passagens, Cartografia e Imaginários, de Lília Amaral, trata paralelamente o lugar da transformação artística e política vinculando-o ao campo cultural. Neste, os diálogos, negociações e transações orientadas por uma estética relacional, conformam a experiência de alteridade a partir da arte. Esta redimensiona e impulsiona a sustentabilidade da arte contemporânea brasileira, por meio da noção de interterritorialidade, a qual possibilita o cruzamento entre uma cartografia da arte atual e a esfera pública brasileira, por meio da análise da configuração da Rede Nacional de Artes Visuais da FUNARTE.

Kadma Marques Rodrigues e Gerciane Maria da Costa Oliveira discutem no artigo Antônio Bandeira: da invenção da cidade como forma-paisagem, a trajetória deste pintor cearense. Esta evidencia uma gradativa passagem da figuração à abstração, a qual funde sua experiência de vida nas cidades de Fortaleza, Rio de Janeiro e Paris em uma forma-paisagem que reinventa simbolicamente a própria experiência urbana de todos nós.

O último artigo, de autoria de Santiago Olmo, curador da XXXI Bienal de Pontevedra (Espanha), intitulou-se Para que servem as bienais? Considerando a crise do modelo “tradicional” de bienal, Olmo abordou a possibilidade de uma renovação deste a partir da experiência concreta da bienal Utrópicos. Tendo como eixo temático a relação cultura e sociedades complexas na América Central e Caribe, este evento salientou aspectos informativos e de investigação como mediadores do exercício do papel político da arte na cidade.

João Bosco Feitosa dos Santos e Kadma Marques Rodrigues.

(organizadores)

Page 8: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições
Page 9: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Apresentação

D O S S I Ê A RT E , C I D A D E E S U B J E T I V I D A D E S CONTEMPORÂNEAS

As marcas do progresso: alguns códigos urbanos na cidade de Fortaleza dos Séculos XIX e XX Marco Aurélio de Andrade Alves e Alba Maria Pinho de Carvalho

Trajetória de Políticas Habitacionais em Cenários de Desigualdade Social: o caso de Fortaleza Andrea Sobreira Cialdini Borges e João Bosco Feitosa dos Santos

O Centro de Fortaleza/CE e a Atual Proposta de Reabilitação: do que se Trata?Teresa Helena Gomes Soares e Hermano Machado Ferreira Lima

Espaço Público, Requalificação Urbana e Consumo Cultural: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu entornoLinda Maria Pontes Gondim

Narrativas da Cidade VirtualRoselane Gomes Bezerra

Rápidas Passagens e Afinidades com a Arte ContemporâneaLígia Dabul

A Arte a Serviço da Cidade? Abdelhafid Hammouche

Hibridação Cultural: Sonoridades Migrantes na América LatinaJosé da Silva Ribeiro

Interterritorialidades – Passagens, Cartografia e ImagináriosLília Amaral

Antônio Bandeira: da invenção da cidade como forma-paisagemKadma Marques Rodrigues e Gerciane Maria da Costa Oliveira

Para que servem as bienais?Santiago Olmo

13

25

39

59

71

97

87

107

Sumário

129

143

157

Page 10: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

RESENHA

Sebastião Rogério Ponte Fortaleza Belle Époque – reforma urbana e controle social ( 1860 – 1930)Hermano Machado Ferreira Lima

173

Page 11: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

SummaryPresentation

DOSSIER ART, CONTEMPORARY CITY AND SUBJECTIVITIES

The marks of progress: some urban legal codes of Fortaleza city from the XIX and XX centuriesMarco Aurélio de Andrade Alves e Alba Maria Pinho de Carvalho

Trajectory of housing policies in a inequality scenarios: the case of FortalezaAndrea Sobreira Cialdini Borges e João Bosco Feitosa dos Santos

The city center of Fortaleza/CE and current proposal of rehabilitation: what is it about?Teresa Helena Gomes Soares e Hermano Machado Ferreira Lima

Public Space, urban requalification and cultural consumption: the dragão do mar cultural center and its surroundingsLinda Maria Pontes Gondim

Narratives from the virtual cityRoselane Gomes Bezerra

Quick passages and affinities with the Contemporary ArtLígia Dabul

The Art at the service of the city?Abdelhafid Hammouche

Cultural hybridization: migrants sonority in Latin AmericaJosé da Silva Ribeiro

Inter-territorialities: paths, cartographies and imaginariesLília Amaral

Antonio Bandeira: The invention of the city as a landscape formKadma Marques Rodrigues e Gerciane Maria da Costa Oliveira

For what it’s worth the biannuals?Santiago Olmo

13

25

39

59

71

87

97

107

129

143

157

Page 12: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

REVIES

Sebastião Rogério Ponte Fortaleza Belle Époque – reforma urbana e controle social ( 1860 – 1930)Hermano Machado Ferreira Lima

173

Page 13: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

13(*) Marco Aurélio de Andrade Alves é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará -UFC. Membro do Observatório RH Ceará. @ - [email protected] Alba Maria Pinho de Carvalho é Doutora em Sociologia e Professora Associada da UFC. @ - [email protected]

The marks of progress: some urban legal codes of Fortaleza city from the XIX and XX centuries

Marco Aurélio de Andrade Alves*Alba Maria Pinho de Carvalho*

As marcas do progresso: alguns códigos urbanos na cidade de Fortaleza dos

séculos XIX e XX

Palavras-chave: códigos de postura, habitus, processo civilizador, cotidiano, cidade.

RESUMO: Abordo neste artigo alguns aspectos que constituíram a realidade urbana da Cidade de Fortaleza no Estado do Ceará, durante o século XIX e início do século XX tomando como suporte de reflexão alguns conceitos sociológicos desenvolvidos por Pierre Bourdieu, tais como “habitus”, e “processo civilizador”, desenvolvido por Norbert Elias. Reflito sobre os comportamentos sociais previstos por alguns Códigos de Postura e normas urbanas vigentes na Cidade, associando-as às necessidades de disciplina e adequação dos indivíduos aos padrões de “civilidade”. As reflexões que seguem, ilustram o contexto urbano da Cidade de Fortaleza em distintas épocas, incluindo o período de influência do padrão urbano francês no século XIX, e a fase áurea da indústria têxtil no início do século XX. Demonstro de que forma determinadas tendências, e regras de convívio se adequaram a um “modo próprio de se viver” na Cidade.

Regras e Posturas: medidas de ordem

Desenvolvo esta análise tomando como referência o estudo da dissertação de mestrado “Onde moram os operários...vilas operárias em Fortaleza 1920-1945”, desenvolvida pela Professora Margarida Andrade, vinculada ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará, e alguns estudos realizados pelo escritor e historiador Eduardo Campos, ex-membro integrante do Instituto Histórico e Antropológico do Ceará.

Page 14: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

14Marco Aurélio de Andrade Alves

Alba Maria Pinho de Carvalho

A Fortaleza que exponho neste estudo integra um lócus de “restrições” e de “punições” que se orientam e se dirigem à um sentido próprio de “ser morador”. Sentido este, incorporado como verdade e modelo de “civilização”, onde se pretende implantar sobre os indivíduos, um modo de vida “harmônico com o progresso”, e adaptável a um padrão de urbanismo disseminado pelo modelo europeu, representado aqui principalmente pelo esquema haussmaniano1, o qual se perpetuou por muitos anos na história de Fortaleza. No livro “O inventário do quotidiano: breve memória da Cidade de Fortaleza” o escritor e historiador Eduardo Campos ilustra como o comportamento urbano reinante em Fortaleza estava atrelado aos códigos de postura e o quanto estes influenciavam a adequação dos indivíduos a uma nova ordem social. Ao citar a casa como espaço físico, aponta sua influência na constituição da idéia de progresso vigente:

A casa não era apenas o número, algarismos brancos da placa vazados em azul de céu de presépio. Erigia-se dona calçada alta que pelos anos trinta teve de se submeter às novas regras do código de posturas. Assim o seu piso acabaria rebaixado, providência que praticamente eliminaria os desníveis verificados entre uma casa e outra. E em ato contínuo ocorreu o assentamento do fio de pedra, sinônimo de progresso, o chão aberto e as pedras trabalhadas (com menos de um metro) logo atochadas na areia, e rejuntadas de cimento... (CAMPOS, 1996: 57)

O trecho citado de crônica histórica exemplifica o disciplinamento físico e a uniformização do espaço residencial da Cidade. Este disciplinamento ocorrido no início do século XX, também pode ser visto nos modelos empregados para a construção de vilas operárias a partir da década de 1930. O Código de posturas de 1932, por exemplo, determinava que as vilas deveriam ser constituídas por 10 casas, isoladas entre si ou conjugadas duas a duas, separadas das demais por uma área lateral de um metro e meio de largura e que deveriam estar recuadas dos alinhamentos da via pública em pelo menos 3 metros. Destacando-se ainda, que entre as casas não era permitido a comunhão entre quintais.

As especificações citadas tendiam a controlar o espaço social de modo que as construções se adequassem a um modelo de vida disciplinada e adaptada as exigências dos industriais da época. Para eles, controlar a vida pública do operário e distanciá-los das influências negativas do “botequim”, da greve e de contatos transgressores entre vizinhos, era combater a desordem, sem jamais eliminar a possibilidade de contar com um vasto contingente de mão-de-obra disponível integralmente (ANDRADE, 1990:153, 154, 155).

1 Modelo de urbaniza-ção advindo da França e inspirado pelo Barão de Haussmann, re-sponsável pela mod-ernização da Cidade de Paris entre os anos de 1853 e 1870.

Page 15: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

15As marcas do progresso: alguns códigos urbanos na cidade de Fortaleza dos séculos XIX e XX

Eduardo Campos (1996) também revela como a necessidade da distinção social acabou se transformando em controle, ao possibilitar um tipo de vigilância cotidiana e de interdependência entre os sujeitos. Expõe em algumas linhas:

Acudiam a dona da casa para verificar, de modo bastante discreto, quem se aproximava vindo de qualquer lado; ou a reparar o traje das pessoas, ou inventariar, em segredo, de que se constituía a mobília de eventual vizinho em mudança. (CAMPOS, 1996: 57)

Os moradores da Cidade que a esta época, estavam em sua maioria concentrados no atual centro (então bairro residencial), eram testemunhas de uma transformação que iria tornar a Cidade, um centro de novos hábitos, costumes e práticas. Para demonstrar estes fatos, faço referência ao Código de postura do ano de 1864 que muito visou à transformação das condições de saúde e higiene até então predominantes. O código, influenciado pelas teorias científicas européias, visava à prevenção de focos epidemiológicos e de doenças que poderiam contaminar o ar citadino. Dentre as principais ações do código estavam, a coleta e o controle sobre o despejo de dejetos humanos, a não exalação de vapores na atmosfera da Cidade, a assepsia de quintais, rios e veios aqüíferos e a construção de barracos mediante vigilância sanitária. Daí em diante, tudo aquilo que viesse de encontro às normas do “progresso”, sinônimo de limpeza, controle e disciplina, era terminantemente combatido.

No ano posterior, lançavam-se proibições do tipo: “um só indivíduo não pode conduzir mais de cinco cavalos, burros ou bois, carregados ou sem cargas, pelas ruas...”; “equipar-se ou correr a cavalo ou em burro pelas ruas...” e “conduzir-se magotes de gado vacum, cavalar, e muar pelas ruas desta cidade” (ANDRADE: 1990: 86). A condução de animais era prática comum em Fortaleza, no entanto, os planejadores começaram a condenar este tipo de conduta tendo em vista que o espaço público começava a ser organizado para permitir o trânsito dos indivíduos. Nesse sentido as vias deveriam estar livres para o “caminhar seguro” do “ir e vir” entre os munícipes.

As restrições do Código de posturas do ano de 1868 representaram a imposição do traçado xadrez (planta da cidade) sobre a lógica da espontaneidade que orientava as construções de casas de palha na Cidade. A partir deste momento as tão comuns casas de palha que abundavam a cidade eram encaminhadas para as periferias e localidades distantes do Centro. Além disso, todas e quaisquer formas de habitação ditas “insalubres” só podiam ser construídas mediante a fiscalização de agentes sanitaristas, o que está bem claro na lei

Page 16: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

de n°1.692, datada do ano de 1875, a qual determinava que as casas de palha devessem ser construídas para fora do limite das avenidas Duque de Caxias, Imperador e das Ruas do Pajeú (o que constituía o Centro da Cidade, habitado pelas elites).

No ano de 1932, esta norma é aliviada, porém permanecia severa com relação à organização dos distintos tipos de habitação. Em termos de localização as vilas operárias eram consideradas menos inconvenientes do que as habitações populares. Enquanto que se exigia das vilas uma localização situada para fora da zona urbana, das casas populares se exigia uma localização, de no mínimo cem metros de distância do centro (ANDRADE, 1990: 153). Isso explica o fato de que, as vilas, mesmo sendo identificadas como pobres, eram consideradas menos perigosas, principalmente aquelas pertencentes às fábricas.

A determinação proposta distanciava aquilo que não fazia parte do círculo de convivência do mundo cultural das elites. As práticas e comportamentos julgados “incivilizados” ou “inadequados” ao modelo de aformoseamento da Cidade, eram afastados para regiões cada vez mais periféricas. O simples contato com quaisquer hábitos desviantes era motivo suficiente para uma “possível epidemia” ou “infestação” de práticas indesejadas. Conforme relata Margarida Andrade (Idem) as residências da Cidade em 1888 já se distinguiam claramente por segmentos.

É importante ressaltar, para o entendimento da localização dos territórios das classes ricas e pobres, o tipo de parcelamento do solo predominante em Fortaleza, o qual se dava a partir de um traçado ortogonal com “ruas” norte a sul e “travessas” leste a oeste. As casas de esquina começaram a subdividir o quintal. O muro se voltava para as travessas (com quartinhos ou pequenas casas de aluguel, botequins e barbeiros). Ficam conhecidas pejorativamente as “casas de travessa” - lugar de gente pobre. (...) a expansão do tecido urbano, embora pequena, dá origem a um processo segregatório, levando à formação de “bairros exclusivos” das classes abastadas. (ANDRADE, 1990:105).

Concomitante a implantação destas regras, grupos distintos ampliavam seus códigos e estabeleciam sólidas fronteiras simbólicas no espaço social, ao passo que os “ricos” se distanciavam cada vez mais dos “pobres”. O centro da Cidade era reservado, de preferência, ao convívio entre os membros das elites, detentoras legítimas do capital cultural e econômico.

16Marco Aurélio de Andrade Alves

Alba Maria Pinho de Carvalho

Page 17: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Hábitos e Práticas na cidade de Fortaleza

A separação física e simbólica dos grupos possibilitava o surgimento de habitus distintivos. O capítulo 8 do código de 1879, por exemplo, versa sobre a utilização do Passeio Público, então espaço preferido para a prática de lazer dos ricos da Cidade. Os termos eram os seguintes:

Art.112 – A entrada de pessoas no Passeio Público terá lugar das cinco horas da manhã às seis e meia da tarde.

Art.113 – É proibido:

1. A entrada de quem não estiver vestido; dos embriagados, e dos que se acharem ilegalmente armados.

2. Tirar flores, arrancar plantas, ramos de árvores.

3. O despejo de urina ou de qualquer imundície dentro ou fora, junto ao gradil do passeio.

4. Sair ou entrar escalando o gradil ou muro do passeio.

5. A entrada de animais, exceto a de cães que, acompanharem a seus donos, estando estes munidos da competente licença (CAMPOS, 1988)

Os códigos também não poupavam punições a determinadas atitudes, tais como gritar ou perturbar o sossego público com barulho ou sons que inquietassem a vizinhança. A proibição destas condutas visava atender as exigências de civilidade necessárias ao convívio saudável nos centros urbanos:

Nenhuma pessoa a qualquer hora da noite, dentro desta Cidade poderá andar pelas ruas gritando, e inquietando assim os cidadãos pacíficos, e o sossego público, sob pena de ser condenado a dois mil reis para as despesas do conselho, ou quatro dias de prisão, e na reincidência o duplo, assim como sofrerá as mesmas penas todo aquele que consentir em quitandas, vendas, ou botequins, ou em outras quaisquer casas, toques de machinha, ou qualquer instrumento que inquiete a vizinhança no globo desta Cidade, ou seja, os toques de dia ou de noite. (CAMPOS, 1988: 65, 66).

17As marcas do progresso: alguns códigos urbanos na cidade de Fortaleza dos séculos XIX e XX

Page 18: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

A cidade obedecia aos reclames do “progresso” e atendia ao controle da moral e da disciplina no espaço público, preservando o “sossego” e a harmonia no convívio entre as pessoas. Nada que pudesse incomodar os cidadãos “pacíficos” podia ser admitido neste espaço. O controle dos hábitos e dos costumes através da proibição de determinado tipo de vestuário “impróprio” ou “indecente” também irá compor este quadro de manutenção da moral. O artigo 69 da Lei n°308 do Código de Postura de 1844 prevê punições para aqueles que desobedecessem as seguintes exigências:

Nenhuma pessoa livre ou escrava poderá entrar nesta cidade, ou percorrer suas ruas, de camisa e ceroula, pela imoralidade e indecência do trajo; e a que o contrário fizer será multado em mil réis, ou dois dias de prisão, esta multa só terá cumprimento seis meses depois da publicação da presente postura, para que ninguém se possa chamar à ignorância ou boa fé (CAMPOS 1988: 77).

O tipo de prática citada, ora combatida, era muito comum. Alega Eduardo Campos (Idem) que a cláusula se referia principalmente aos “matutos” que andavam muito à vontade sem se ater para as modificações de convivência social imposta pelo progresso da urbe, exigindo melhor apresentação do indivíduo e “sua adequação aos tempos de renovação ou aperfeiçoamento de hábitos” (Idem: 83).

Algumas leis faziam forte referência ao “matuto” e ao “sertanejo”. O autor do estudo sobre a Fortaleza provincial, afirma que as expressões citadas acima eram usadas como “tipos de qualificação consciente das peculiaridades de localização geográfica da maioria dos moradores e usuários da coisa pública” (Idem: 83). Referia-se àqueles que vinham de sítios e localidades afastadas. O matuto, portador de hábitos rurais, ao usufruir dos serviços e da realidade urbana, viu-se na condição de incorporar novos esquemas de percepção (estruturas cognitivas). Inserido num mundo diferente, com novos referenciais, foi obrigado a assumir um conjunto de práticas aceitáveis ao espaço social da Cidade. Àqueles que não se adequavam aos regulamentos eram excluídos do convívio urbano civilizado, alijados a vigilância da polícia sanitária ou ainda expulsos para os cordões de isolamento (PONTE, 2000).

Neste antigo cenário de Fortaleza, orientado pelos “arroubos” e “vantagens” do progresso, o “pudor” também era controlável. Eduardo Campos se refere aos “banhos paradisíacos”, comuns entre os munícipes “pouco preocupados com o respeito à moral comunitária”. Refere-se às práticas como “fatores contaminantes”. O artigo 70 da lei de n° 328 do Código de 1844 previa o seguinte:

18 Marco Aurélio de Andrade AlvesAlba Maria Pinho de Carvalho

Page 19: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Fica proibido a qualquer pessoa apresentar-se nua, das seis da manhã às seis da tarde, nos largos ou riachos desta cidade, sob qualquer pretexto que seja multa de 4 mil réis e oito dias de prisão (CAMPOS, 1988: 78).

Aqui apontamos alguns códigos, normas e condutas (posturas) que orientaram a população da Cidade de Fortaleza no século XIX. Faz-se ilustrativo também, percebermos como as vilas operárias, construídas no começo do século XX incorporaram este modelo de urbanização e como passaram a configurar seus espaços públicos e privados. A vila estabelecia regras duras aos seus moradores, e no início servia de instrumento coercitivo pelo patronato, na obtenção da obediência dos operários (ANDRADE, 1990: 189,194)

Para a autora Margarida Andrade era evidente a necessidade do empresariado de atrair a força de trabalho, num momento em que predominava a escassez de mão-de-obra, sobretudo da especializada. A classe empresarial no intuito de captar, reter e controlar a mão-de-obra operária impunha regras, atitudes e valores no cotidiano de seus trabalhadores, adequando-os ao bom desempenho do trabalho livre (Idem: 197,198). Grandes portões de ferro separavam a vila, da vida do bairro e das povoações onde a fábrica se instalava. É demonstrável que a partir de determinada hora da noite a circulação entre vila e rua ficava interrompida.

A interiorização de um habitus específico se fixou como algo marcante dentro destas vilas. Não só códigos de controle da vida pública e privada passaram a disciplinar seus operários na lógica produtiva, mas, uma série de maneiras de pensar e agir, uma vez que apropriadas, passavam a orientar os agentes integrantes deste espaço social. Os grupos dominantes (industriais) da época exerciam uma espécie de poder simbólico sobre os operários urbanos através da concessão de bônus e outras regalias (insenção de aluguel, etc.). Para Bourdieu, habitus é um conjunto de esquemas implantados desde a primeira educação familiar, que são constantemente reatualizados ao longo da trajetória social dos agentes (MICELI, 1992: 42). Sua natureza exige, da parte dos grupos e ou das classes de agentes, um mínimo de controle e domínio de um código comum.

O habitus, de fato, representa a interiorização das estruturas objetivas, e vigorou na antiga Cidade de Fortaleza através da inculcação de valores implantados pela idéia de progresso, disseminada nos Códigos e regulamentos institucionais, e através da estruturação de experiências e práticas específicas,

19As marcas do progresso: alguns códigos urbanos na cidade de Fortaleza dos séculos XIX e XX

Page 20: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

tais como o uso de determinado tipo de traje, onde se via distinguir o homem ciente da moralidade, do homem “descuidado” do campo. Conforme já esclarecido, o domínio e a realização de práticas de higiene revelaram o tipo de habitus do homem urbano.

Habitus e processo civilizador na Constituição do Homem Urbano

Se levarmos em consideração que a Cidade é constituída por diferentes campos sociais, estaremos cientes de que as diversas disputas de forças e de poder, travadas em suas várias direções engloba o homem da convivência urbana, que é um homem com diversificados habitus. Como já vimos, aquele que predomina em determinados espaços centrais da Cidade, é o homem adequado aos costumes europeizados, e que está de acordo com a “moda francesa” da belle époque. Caminhar pela cidade nestes tempos de ares europeus era carregar símbolos distintivos através das vestimentas e dos modos, era estar ciente com o “decoro” e com a “norma social” das elites que tinham na França o modelo de civilização. Bourdieu expõe:

o habitus é um princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas.(BOURDIEU, 1996: 23)

Para o autor cada posição que ocupa o agente social na estrutura, valida um tipo de habitus diferenciado. Estes habitus funcionam como operadores de distinções, portanto, capazes de gerar práticas distintas e distintivas. Funcionam como esquemas classificatórios, princípios de classificação, visão, divisão e gostos diferentes (BOURDIEU, 2008). Estabelecem as diferenças entre o que é bom e mau, bem e mal, distinto e vulgar. Na análise aqui realizada identificamos alguns destes grupos que atuavam em distintos campos na Cidade. São eles: industriais, operários, matutos, gestores e escravos.

Para Bourdieu as diferenças marcantes entre as práticas dos agentes e suas opiniões expressas, tornam-se diferenças simbólicas. A distinção define distâncias que predizem encontros, afinidades, simpatias e desejos. É dessa forma que as pessoas as quais ocupam lugares de destaque no espaço social, pouco irão constituir alianças com pessoas pertencentes a grupos com menor destaque na escala. Os distintos grupos não se agradam, nem se compreendem. Bourdieu enfoca:

20 Marco Aurélio de Andrade AlvesAlba Maria Pinho de Carvalho

Page 21: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

cada posição ocupada no espaço social, isto é, na estrutura de distribuição de diferentes tipos de capital, que também são armas, comanda as representações desse espaço e as tomadas de posição nas lutas para conservá-lo ou transformá-lo. (Idem: 27).

Conforme Bourdieu os sujeitos são agentes que atuam e sabem agir conforme um senso prático em um sistema adquirido de preferências de princípios de visão e divisão (gostos) e de estruturas cognitivas duradouras (produto da incorporação de estruturas objetivas). Dessa forma, podemos situar o habitus como uma espécie de senso prático que condiciona o agente a agir numa dada situação conforme as regras da situação. O sistema de preferências produzido pelos habitus direciona os agentes para determinados pólos do campo de poder (posições). No entanto, este mecanismo no qual estão fadados os sujeitos, é para Bourdieu “uma engrenagem trágica, exterior e superior aos próprios agentes”, pois para que existam no campo social os agentes são constrangidos a participar de um jogo que lhe impõe esforços e sacrifícios (Idem: 44).

Ao buscar um diálogo com Norbert Elias o autor concorda com a idéia de que a necessidade da luta pelas oportunidades de poder, posição e prestígio, a partir da estrutura hierarquizada do sistema de dominação, leva os envolvidos a obedecerem a um cerimonial, que funciona muito mais como um fardo. Nenhum integrante que faz parte do grupo se sente encorajado a iniciar uma reforma ou mudança no campo em que está inserido, pois qualquer tentativa é combatida por amplos nichos de privilegiados que temem que as estruturas de poder as quais lhes asseguram privilégios possam ceder ou desaparecer caso algo venha abalar a ordem estabelecida.

Os Códigos de postura neste sentido podem ser encarados como dispositivos que legitimam o monopólio da violência física (voltado para punir) e simbólica (controlar pelas atitudes). Em Norbert Elias (1993, 1997) a compulsão dos indivíduos em controlar-se e moderar-se é uma marca de distinção. As restrições e convenções sociais que envolvem o indivíduo são capazes de moderar suas ações, condicionadas por medo ou repugnância. Para Elias a repressão de determinadas práticas representa mudanças na maneira como as pessoas vivem juntas na estrutura da sociedade.

Para o autor os processos históricos e naturais que envolvem o homem na sociedade se influenciam mútua e inseparavelmente. Dessa forma podemos compreender de que forma os Códigos de postura predominantes em Fortaleza, influenciaram ou foram influenciados pelas mudanças de concepções ocorridas na área de saúde, tais como os hábitos de higiene. Os sentimentos de vergonha e asco, os avanços no patamar da delicadeza,

21As marcas do progresso: alguns códigos urbanos na cidade de Fortaleza dos séculos XIX e XX

Page 22: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

a contenção do pudor, o uso da vestimenta formal, etc. são considerados processos naturais e históricos simultaneamente. A introjeção dos hábitos de higiene na vida urbana da Cidade de Fortaleza pode ser considerada fruto de processos naturais e históricos.

As transformações físicas sofridas na estrutura da cidade e em suas habitações, aos poucos fez desenvolver novos hábitos e novas vivências na intimidade e na vida pública. As funções corporais e o autocontrole se ajustaram a novas necessidades sociais vinculadas a idéia de progresso. A vida pública exigia do indivíduo um tipo de postura cada vez mais coletiva e compartilhada.

Podemos perceber tomando como referência Norbert Elias (1993, 1994), que o sentimento de vergonha e constrangimento, antes inexistente, passou a fazer parte do cenário cotidiano da cidade a partir do momento em que os hábitos passaram a ser motivos de desaprovação. Quanto mais comedida uma sociedade, mas próxima do ideal de civilidade. Dessa forma a esfera íntima e as funções do mundo privado (predomínio dos instintos, sentimentos e pulsões) se distanciaram do resto da vida social. Para Elias o processo civilizador constitui uma mudança na conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção específica. Para ele as pessoas não planejam essas mudanças de forma consciente, racional e deliberada. Afirma: “Nada é o resultado de um planejamento calculado em longo prazo” (1993: 139). Estas mudanças não são caóticas e ocorrem dentro de certa ordem. O autocontrole na cidade, por exemplo, aos poucos foi se tornado estável, uniforme e generalizado.

Elias entende que toda reorganização das relações humanas são acompanhadas de mudanças nas maneiras e na estrutura da personalidade do homem, resultando numa forma de conduta e de sentimentos “civilizados”. Para ele as funções sociais são submetidas a uma pressão estimulada por uma competição, o que as tornam cada vez mais diferenciadas. Quanto mais diferenciadas, maior o número de funções. Afirma:

À medida que mais pessoas sintonizavam sua conduta com a de outras, a teia de ações teria que se organizar de forma sempre mais rigorosa e precisa, a fim de que cada ação individual desempenhasse uma função social (ELIAS, 1993: 196)

Nesta teia de ações, comportar-se corretamente tornou-se tão forte que um “cego aparelho automático de autocontrole” foi firmemente estabelecido visando prevenir transgressões do comportamento social. Na quebra

22 Marco Aurélio de Andrade AlvesAlba Maria Pinho de Carvalho

Page 23: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

deste autocontrole e da regulação dos comportamentos a pessoa se torna uma ameaça para a outra. Seu autocontrole vincula-se a diferenciação, a estabilização das funções sociais e à multiplicidade e variedade de atividades que se sincronizam. Para Elias quanto mais intricado é o tecido social, mais diferenciado, complexo e estável é o autocontrole individual. Quanto maior a divisão de funções, mais estável e autocontrolada é a sociedade.

O autocontrole foi intensificado com o monopólio da força física. Elias afirma: “só com esse monopólio é que os indivíduos desde a infância se sintonizam com um padrão regulado e diferenciado de autocontrole” e só assim a autolimitação se torna uma segunda natureza no indivíduo. Quanto mais apertada é a teia de interdependência em que o indivíduo está emaranhado (aumento da divisão de funções), maior é o espaço social por onde se estende a rede e maior é a integração em unidades funcionais e institucionais. Elias aborda:

As pressões que atuam sobre o indivíduo tendem a produzir uma transformação de toda a economia das paixões e afetos rumo a uma regulação mais contínua, estável e uniforme dos mesmos, em todas as áreas de conduta, em todos os setores de sua vida (ELIAS, 1993: 202).

Dessa forma conseguimos perceber que foi possível a constituição de um padrão individualizado de hábitos semi-automáticos nos comportamentos dos agentes sociais na Cidade. Para Elias, as coações que as pessoas exercem no decorrer de suas vidas sociais são conceituadas como “coações sociais” que ocorre devido à interdependência entre os sujeitos. Ele as encara como coações externas, e que, portanto, podem ser encontradas em todas as relações de duas ou três pessoas. Os indivíduos também são capazes de criar processos de autocoação desenvolvendo em si mesmos, determinados medos e pressões. Este processo é mais intenso quanto maior for a pressão externa. No processo civilizador a autocoação é mais forte do que as coações externas.

Os indivíduos na Cidade de Fortaleza passaram a conviver com diversos mecanismos de pressões externas representados pelas proibições previstas nos Códigos de postura ou nos regulamentos habitacionais das vilas operárias. No entanto, conforme percebemos, determinados comportamentos comuns e que foram proibidos fortemente durante o século XIX, porque desagradáveis e incoerentes com a nova lógica vigente, aos poucos foram desaparecendo ao ponto de sua completa extinção. O sentimento de vergonha e repugnância nutrido nos moradores da Cidade e aflorados quando algum ato ou gesto de desaprovação prevaleciam, conduziram a população a um novo processo de adequação social e assim como no processo civilizador de Elias o medo de transgredir e as proibições sociais assumiram o caráter de vergonha.

23As marcas do progresso: alguns códigos urbanos na cidade de Fortaleza dos séculos XIX e XX

Page 24: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Referências

ANDRADE, Margarida Júlia Farias de Salles. Onde moram os operários...vilas operárias em Fortaleza 1920-1945. Dissertação de mestrado do curso de Arquitetura. Universidade Federal da Bahia;1990.

CAMPOS, Eduardo. A Fortaleza Província: rural e urbana. Fortaleza, Secretaria de Turismo, Cultura e Desporto, 1988.

_________________ O inventário do quotidiano: breve memória da Cidade de Fortaleza. Edições Fundação Cultural de Fortaleza. Série Pesquisa n ° 6. Prefeitura Municipal de Fortaleza, 1996.

PONTE, Sebastião Rogério. A Bélle Époque em Fortaleza: remodelação e controle in: Uma Nova História do Ceará. Fortaleza. Edições Demócrito Rocha, 2000.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção de Sérgio Miceli. Editora Perspectiva: São Paulo, 1992.

________________ Razões Práticas: Sobre a teoria da Ação. Campinas; 4ª edição. São Paulo, 2003.

________________ A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2008.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1994. Vol 1.

_____________ O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993. Vol 2.

_____________Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

24

ABSTRACT: This work tackles some aspects of the urban reality of the City of Fortaleza,Ceará, during the nineteenth and early twentieth century, based in some of the sociological concepts created by Pierre Bourdieu, such as “habitus” and “civilizing process”, further developed by Norbert Elias. We analyze social behaviors predicted by “Posture Codes” and urban standards enforced in the City, linking those behaviors to the discipline and adequacy to “patterns of civility” needs. The analyses that follows illustrates the urban context of Fortaleza in different periods, including the period of French influence of the urban pattern in the nineteenth century and the heydays of the textile industry, in the early twentieth century. We demonstrate how certain trends and rules of living are suited to a “proper way of living” in the City.

Keywords: posture code, habitus, civilizing process, everyday life, city.

ArtigoRecebido: 05/03/2011Aprovado: 16/05/2011

Marco Aurélio de Andrade AlvesAlba Maria Pinho de Carvalho

Page 25: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

25(*) Andréa Sobreira Cialdini Borges é Assistente social, especialista em planejamento e gestão de políticas públicas pela UECE, aluna do curso de Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade (Programa de pós-graduação em políticas públicas da UECE), turma 2010. [email protected] João Bosco Feitosa dos Santos é Economista, doutor em sociologia pela UFC, professor do curso de Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade - UECE. @ - [email protected]

Trajectory of housing policies in a inequality scenarios: the case of Fortaleza

Andréa Sobreira Cialdini Borges*João Bosco Feitosa dos Santos*

Trajetória de políticas habitacionais em cenários de desigualdade social:

o caso de Fortaleza

Palavras-chave: política de habitação, desigualdade social, orçamento participativo.

RESUMO: O objetivo deste texto é discutir a trajetória da política de habitação de interesse social no Brasil, mapeada em espaço de desigualdade social e cenário de muitas lutas urbanas. Trata-se de estudo bibliográfico e documental, tendo o município de Fortaleza como cenário de desigualdade social na percepção da trajetória de políticas habitacionais. Partimos do pressuposto de que as dificuldades encontradas hoje na ordem da gestão urbana, especificamente no que se refere à moradia estão vinculadas ao modelo de desenvolvimento urbano no país marcado pela ausência de planejamento urbano e pelo favorecimento dos interesses das elites dominantes. O estudo revela a importância da intersetorialidade e da necessária integração das políticas públicas para que as ações atinjam seus objetivos e tenham maior sustentabilidade social. Este é o grande desafio da política pública no Brasil, ou seja, a democratização do poder público e a universalização dos direitos sociais básicos, bem como reduzir as desigualdades socioterritoriais sem perder o vínculo com as particularidades e diversidades locais.

Introdução

A trajetória da política de habitação de interesse social no Brasil, tem sido mapeada num espaço onde a desigualdade social foi palco de muitas lutas urbanas, considerando a importância da intersetorialidade e a necessária integração das políticas públicas para que as ações atinjam seus objetivos e tenham maior sustentabilidade social.

Page 26: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

26Andréa Sobreira Cialdini Borges

João Bosco Feitosa dos Santos

Em 2000, o Censo Demográfico do IBGE apontou um total de 82.771 domicílios em 157 aglomerados subnormais que levam Fortaleza a compor o ranking da terceira cidade brasileira em número de favelas, ficando atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro.

De acordo com a Fundação João Pinheiro, em 2006 apresentou um déficit habitacional de 171 mil domicílios localizados na área urbana da região metropolitana1, o que corresponde a 19% do total das unidades habitacionais. Para confirmar o retrato da situação de carência do setor habitacional, verifica-se a relação entre precariedade de moradia e fator econômico, considerando que 93,2% do déficit está concentrado nas famílias que possuem renda mensal de 0 a 3 salários mínimos, 3,5% corresponde às famílias com renda acima de 3 e até 5 salários mínimos, enquanto que na faixa que engloba as famílias que recebem mais 5 salários mínimos, verifica-se o déficit de apenas 3,3% dos domicílios.

Parte-se do pressuposto de que as dificuldades encontradas hoje na ordem da gestão urbana, especificamente no que se refere à questão da moradia estão vinculadas à forma como ocorreu o desenvolvimento urbano no país em que as cidades brasileiras cresceram marcadas pela ausência de planejamento urbano e pelo favorecimento dos interesses das elites dominantes. Essas características as tornaram frutos dos déficits sociais acumulados por décadas de governos descomprometidos com os interesses da maioria da população, portanto, permeadas de contradições e de desigualdades sociais.

Estas contradições se tornam mais visíveis aos nossos olhos quando ocorrem as catástrofes urbanas, atualmente bastantes evidenciadas na mídia, principalmente nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. No entanto, percebe-se que o município de Fortaleza também não está preparado para grandes enchentes, toda cidade sofre os transtornos de um temporal, e as pessoas mais atingidas diretamente são os moradores das áreas de risco que possuem apenas essa alternativa como moradia, caracterizando a grande desigualdade social existente nas cidades brasileiras.

Não somente as catástrofes apontam as contradições da gestão urbana, mas, questiona-se, neste texto se o planejamento urbano participativo tem correspondido a intenção da participação como eixo norteador ou encobre um discurso de velhas práticas de gestão municipal que aumentam a desigualdade social na urbe. Indaga-se também o que seria necessário para maior eficiência das políticas de habitação gestadas nos diferentes governos em suas três esferas.

1 A Região Metro-politana de Fortaleza é composta atualmente por 13 municípios: Aquiraz, Caucaia, Chorozinho, Eu-sébio, Fortaleza, Guaiuba, Horizonte, Itaitinga, Ma-racanaú, Maranguape, Pacajus, Pacatuba e São Gonçalo do Amarante.

Page 27: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

27Trajetória de políticas habitacionais em cenários de desigualdade social: o caso de Fortaleza

Desigualdade de renda e direitos no Brasil

De acordo com estudos do Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA) a tendência de redução da pobreza no Brasil tem sido revelada maior do que a queda da desigualdade social. Permanece, portanto, uma forte concentração de renda, na qual os 40% mais pobres vivem com 10% da renda nacional, os 10% mais ricos vivem com mais de 40%. No relatório “Pobreza, desigualdade e políticas públicas”, divulgado em janeiro de 2010, o IPEA apresenta que entre 1995 e 2008, o Brasil conseguiu reduzir a taxa de pobreza absoluta a um ritmo de 0,9% anual e a da pobreza extrema de 0,8%, por meio, principalmente, de diferentes iniciativas de combate à pobreza, baseadas nos programas de transferência de renda às famílias, como o programa Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o reforço de políticas públicas, a elevação do salário mínimo e a ampliação do acesso ao crédito, num cenário de estabilidade econômica e de crescimento do País.

No entanto, as desigualdades sociais ainda persistem e são nitidamente reconhecidas nos espaços da cidade, onde as favelas se misturam aos luxuosos prédios e condomínios fechados no emaranhado tecido urbano.

A dificuldade no combate à desigualdade social no Brasil está na sua própria origem, pois foi alicerçada no modelo adotado de capitalismo dependente, balizada pela visão conservadora de que essa distribuição desigual é um fato “natural”, como resultado do fracasso individual de muitos e sucesso individual de poucos, e não como produto de um modelo excludente.

A desigualdade nas cidades brasileiras tem suas causas nas formas com que se organizou a sociedade, em particular, na maneira com que se construiu o Estado Brasileiro, marcado pelo patrimonialismo, no qual se confundem o interesse público e o privado, nas dinâmicas de exploração do trabalho impostas pelas elites dominantes desde a colônia e, principalmente, no controle absoluto dessas elites sobre o processo de acesso à terra, tanto rural quanto urbana.

A extrema desigualdade existente entre cidadãos e moradores é destacada por Koga e Nakano (2006) que diferenciam cidadãos como aqueles que possuem condições para interferir nas decisões coletivas e os demais são considerados apenas meros moradores. Mas o que significa exercer a cidadania hoje?

Dagnino (1994) reflete sobre a nova cidadania como uma estratégia política e democrática, onde o cidadão é um sujeito social ativo, reconhecedor de seus direitos e que tem como ponto de partida o direito a ter direitos, ou

Page 28: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

seja, a criação de novos direitos que emergem de suas lutas específicas. Por exemplo, a aquisição da casa por si só não garante a conquista efetiva dos direitos, pois ao chegar a um conjunto habitacional os moradores passam a perceber outros direitos que precisam ser conquistados, tais como: o acesso à educação, saúde, trabalho, saneamento, a ser respeitado pela nova vizinhança, a receber suas correspondências em dia, dentre outros.

Ao mesmo tempo em que se vai constituindo esses novos direitos, o beneficiário da política de habitação vai redescobrindo novas formas de sociabilidade mediante sua relação com o Estado, sua relação com o outro e com a sociedade, fortalecendo a capacidade coletiva de dar conta das diversidades de questões emergentes na cidade.

Para dar conta desse processo, Dagnino (1994) aponta a importância da participação efetiva do cidadão na gestão das políticas públicas e propõe “[...] a existência de sujeitos-cidadãos e de uma cultura de direitos que inclui o direito de ser co-partícipe da gestão da cidade.” (p.109 - 110). De fato, a relação da sociedade com o Estado na operacionalização de uma política pública nem sempre é amistosa, pois implica também conflitos que buscam gerar, por parte da sociedade, aprimoramento da política em favor do interesse público, em caso contrário, ela passa a ser um mero instrumento de dominação.

Neste sentido, a década de 1980 constitui um momento de amadurecimento de um discurso inovador pela luta por moradia, que iniciou em 1963 quando da realização do Seminário de Reforma Urbana pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e teve seu ápice no bojo do processo de redemocratização do País que se tornou conhecido como Movimento Nacional pela Reforma Urbana.

As estratégias para promoção de reforma urbana participativa

O Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) questiona e politiza o planejamento urbano, traz à tona o debate da função social da propriedade, da justa distribuição dos bens e serviços, da gestão democrática e da recuperação ambiental das cidades. De acordo com o calendário traçado pelo Plenário Pró-participação Popular na Constituinte, participaram do Movimento pela Reforma Urbana: mutuários, inquilinos, posseiros, favelados, arquitetos, geógrafos, engenheiros, advogados, profissionais da classe média e entidades representativas do movimento de massa. Dentre essas entidades destacam-se: Articulação Nacional do Solo Urbano, Federação Nacional de Arquitetos, Federação Nacional dos Engenheiros, Coordenação Nacional

28 Andréa Sobreira Cialdini BorgesJoão Bosco Feitosa dos Santos

Page 29: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

de Associações de Mutuários do BNH, Movimento de Defesa do Favelado, Instituto dos Arquitetos do Brasil, além de 48 entidades estaduais e locais.

A partir deste movimento, surgem, então, as propostas aprovadas pelos artigos 182 e 183 que formam o capítulo da política urbana na Constituição Federal de 1988, que posteriormente é regulamentado pela lei 10.251, de 10 de julho de 2001 – o Estatuto da Cidade.

Outra forma de promover o exercício da cidadania são as experiências de Orçamento Participativo iniciadas no Brasil a partir de 1989. Em Fortaleza, na primeira gestão da prefeita Luizianne Lins (2005-2008) foram priorizadas as demandas do Orçamento Participativo com o objetivo de urbanização e recuperação das áreas de risco e beneficiamento das famílias que residem nestes espaços ilegais e desfiliados2 da cidade, além de revitalizar os instrumentos de controle social da política de habitação, em conformidade com as diretrizes e princípios consagrados na Lei Orgânica do Município de Fortaleza, na Política Habitacional de Interesse Social (PHIS), no Estatuto da Cidade e no Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS).

Como requisitos do SNHIS e instrumentos de controle social da política de habitação de forma participativa e democrática, destacam-se os conselhos e as conferências. Com caráter deliberativo, controlador e avaliador da Política de Habitação de Interesse Social, em dezembro de 2006 foi instituído o Conselho Municipal de Habitação Popular (COMHAP) do município de Fortaleza que deu subsídios à realização da I Conferência Municipal de Habitação que ocorreu em 13 de abril de 2007.

Essa garantia da participação da sociedade constitui um processo recente, portanto, mesmo que apresente suas fragilidades, revela-se de extrema importância na gestão da política de forma mais democrática. Anterior a existência do Orçamento Participativo em Fortaleza, os critérios na escolha dos beneficiários da política de habitação se dava por meio de lideranças comunitárias que, mediante trabalhos clientelistas e eleitoreiros, manipulavam a comunidade no jogo de troca de casas por votos, beneficiando parte da população, porém não garantindo o acesso a quem dela necessitasse de forma prioritária e, muito menos, resolvendo problemas de eliminação das áreas de risco no município.

Seguindo a diretriz do governo federal, o município de Fortaleza privilegiou a construção do Plano Diretor Participativo, no qual teve início em fevereiro de 2006 e contou com diferentes segmentos da sociedade, totalizando a participação de cerca de 10 mil fortalezenses3. O lançamento da lei ocorreu no

29Trajetória de políticas habitacionais em cenários de desigualdade social: o caso de Fortaleza

2 Castel (1998) com-preende desfiliação como ruptura em re-lação às redes de in-tegração primária e, neste sentido, as áreas de risco são desfiliadas das políticas públicas básicas, tais como: moradia, água, sanea-mento, energia, dentre outras.

3 Participaram do Nú-cleo Gestor do Plano Diretor Participati-vo representantes de movimentos sociais, ONGs, representações profissionais, sindica-tos, órgãos de classe, instituições de pesqui-sa, membros do poder público executivo e conselheiros do Orça-mento Participativo. Fortaleza, 2008. Dispo-nível em: <http://www.fortaleza.ce.gov.br/in-dex.php?option=com_content&task=view&id=8768&Itemid=239>. Acesso em: 14 jul. 2009.

Page 30: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

dia 13 de março de 2009 e após longo processo de discussão e debate, inaugura-se, portanto, o primeiro Plano Diretor construído de forma coletiva na cidade.

Apesar da experiência participativa e democrática com que foi elaborado, o plano apresenta fragilidades na sua efetivação e recebe críticas dos movimentos sociais que o caracterizam como uma peça ficcional por falta de regulamentação de leis complementares. Somente os novos índices de construção, que orientam o mercado imobiliário, entraram em vigor. Algumas leis já perderam o prazo de validade, como a da alíquota do IPTU progressivo no tempo, a que cria o Sistema Viário Básico e a do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano (CMDU).

De acordo com Gaspar (2009), os planos diretores podem ter eficácia local, mas estão longe de atingirem realidades sub-regionais e dificilmente se articulam organicamente com planos de desenvolvimento de alcance nacional. Segue citando que:

[...] O intricado tecido de morfologias que transpõem fronteiras político-administrativas, [...] exige repensar práticas de planejamento e gestão, concedidas no âmbito de municípios autônomos. São anacrônicos os instrumentos tradicionais de planejamento urbano, pois não contemplam exigências extralimites municipais. (MOURA apud GASPAR, 2009, p. 47).

Em relação a esta análise, pode-se acompanhar hoje em Fortaleza a falta de preparação da cidade para sediar a copa do mundo em 2014, decisão não contemplada no atual Plano Diretor e que implicará em obras que não se restringem apenas a reformas de estádios, mas que devem incidir em toda a cidade, considerando que dentre as maiores dificuldades do município de Fortaleza encontram-se carências históricas de infraestrutura urbana, sistemas de transporte, saneamento e limpeza pública. Quanto à mobilidade urbana, questão primordial para uma capital que vai sediar um evento deste porte, três das principais obras ainda não foram concluídas, quais sejam: o Metrô de Fortaleza (Metrofor), a ampliação do Aeroporto Internacional Pinto Martins e o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT).

Outra grande crítica que interfere diretamente na gestão, não só da política de habitação, mas do conjunto das políticas públicas, refere-se à inexistência de um instituto de planejamento no município, extinto há 11 anos e com promessas de recriação pela atual gestão, anunciadas em dezembro de 2010, denominado sob a sigla de IPLANFOR - Instituto de Planejamento de

30 Andréa Sobreira Cialdini BorgesJoão Bosco Feitosa dos Santos

Page 31: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Fortaleza. Atualmente três órgãos municipais dividem essa tarefa na cidade, quais sejam: Secretaria de Planejamento do Município (SEPLA), Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (HABITAFOR), e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Infraestrutura (SEINF).

Considerando que o planejamento costuma figurar como a primeira função administrativa que servirá de base para as demais, no planejamento governamental as transformações ocorridas na comunidade na qual o governo pretende intervir não devem ser determinadas por circunstâncias fortuitas ou externas, sem que haja a participação da população interessada no resultado das decisões e propósitos que devem ser gerados por todos.

Assim como o Plano Diretor, o Estatuto da Cidade constitui uma importante ferramenta que atua diretamente na política de habitação, pois possui a função de regulamentar os instrumentos de controle de uso e ocupação do solo e de regularização fundiária que possibilitam aos poderes públicos municipais uma nova possibilidade de resgatar para sociedade a valorização provocada por seus próprios investimentos em infraestrutura urbana, e de induzir a utilização de imóveis em áreas urbanas retidas pela especulação.

Com a aprovação do Estatuto da Cidade, percebe-se, inicialmente, uma fase de desarticulação e instabilidade institucional da política habitacional em nível nacional que se refletiu também nos estados e municípios. Em verdade, a pauta de discussão sobre a habitação circulou entre diversos ministérios, em 2003, após várias reivindicações da sociedade civil, é criado o Ministério das Cidades na primeira gestão do Governo Lula.

O Ministério das Cidades e as estratégias para o Sstema Nacional de Habitação

A partir da criação deste ministério, foi aprovada a Política Nacional de Habitação em 2004, que institui o Sistema Nacional de Habitação e passa a definir as diretrizes gerais na atuação do governo federal na política habitacional. Em 2008 foi formulado o Plano Nacional de Habitação (PLANHAB), definindo estratégias de ação para equacionar os principais problemas habitacionais brasileiros nos próximos 15 anos.

Fruto deste plano surge o Programa Minha Casa Minha Vida4, lançado em março de 2009. O referido programa prevê a construção de 01 (um) milhão de casas, onde 15 mil destas serão destinadas ao município de Fortaleza, às famílias que possuem renda mensal até 03 (três) salários mínimos. A prefeitura de Fortaleza, através da HABITAFOR, realizou em torno de 100

31Trajetória de políticas habitacionais em cenários de desigualdade social: o caso de Fortaleza

4 A Lei nº 11.977 de 07 de julho de 2007 dispõe sobre o Progra-ma Minha Casa Minha Vida e Regularização Fundiária de assenta-mentos localizados em áreas urbanas.

Page 32: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

mil inscrições no período de abril a julho de 2009, com várias matérias veiculadas na mídia acerca da grande procura pela população nos postos de atendimento5.

Mesmo antecipando alguns entraves burocráticos relacionados à aprovação de projetos, contratações, licitações e recursos, ainda não foi entregue nenhuma unidade habitacional em Fortaleza, existindo apenas dois conjuntos habitacionais nos bairros Vila Velha e Barra do Ceará em fase de conclusão de obra totalizando 352 apartamentos, o que constitui um número ínfimo diante da quantidade de pessoas inscritas no programa. Entretanto, em dezembro de 2010, o presidente Lula e a superintendência da Caixa Econômica Federal - CEF, órgão financiador do programa, anunciaram a assinatura de contratos que somariam 07 (sete) mil unidades habitacionais, além de 8.631 que estão sendo construídas em todo o estado do Ceará. Porém, este número ainda está muito aquém do previsto no lançamento do programa, o que necessita de um alinhamento entre os órgãos gestores responsáveis pela viabilidade do mesmo, a fim de que possam operacionalizar com maior eficiência, eficácia e efetividade social.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), também criado no governo Lula promoveu investimentos em infra-estrutura importantes para a política de habitação. De acordo com estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a análise da evolução dos indicadores de desempenho sugere impacto positivo nas ações do PAC no que se refere ao acesso à água, esgotamento sanitário, adensamento excessivo e banheiro no interior da moradia. Contudo, em relação à regularização fundiária, o programa não conseguiu avançar muito, seja devido ao baixo volume de recursos dedicados a esta rubrica, seja das dificuldades, complexidades e morosidades inerentes ao processo de regularização fundiária. (IPEA, 2009).

Seguindo a orientação em nível nacional, Fortaleza inicializa sua experiência de concessão da titularidade dos imóveis às famílias beneficiárias e, assim como apontado pelo IPEA, muitas dificuldades foram encontradas pelo caminho, relacionadas à liberação de recursos, entraves burocráticos, ausência de empresas experientes no desenvolvimento deste tipo de ação, preconceitos acerca da titularidade feminina6 partindo tanto da comunidade como de alguns técnicos executores da política, dentre outros.

Percebe-se prioridade maior na construção de obras de infraestrutura que “tiveram o fluxo financeiro garantido e livre de contigenciamentos” (IPEA, 2009). Parte-se aqui da hipótese de que as obras físicas dão maior visibilidade politicamente do que o papel da casa propriamente dito, bem como do trabalho social que perpassa tanto a questão da obra física como as

32 Andréa Sobreira Cialdini BorgesJoão Bosco Feitosa dos Santos

5 Fonte: Informativo produzido pela Pre-feitura Municipal de Fortaleza em junho de 2009 com o título: “Minha Casa Minha Vida. Em Fortaleza, mais 15 mil casas po-pulares. Inscreva-se até 30 de junho.”

6 A Lei Nacional 11.124/2005 do Sis-tema Nacional de Ha-bitação de Interesse Social indica que a ti-tularidade dos imóveis concedidos pelo poder público, seja, preferen-cialmente, em nome da mulher.

Page 33: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

questões jurídicas referentes à titularidade, ações estas descentralizadas e executadas pelos municípios através de suas unidades executoras.

A Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (HABITAFOR), é o órgão principal responsável pela elaboração, implementação e execução da política de habitação no município de Fortaleza. A HABITAFOR foi criada pela Lei nº 8.810 de 30 de dezembro de 2003, e, segundo informações de servidores e técnicos que militavam na área da política de habitação, surgiu por excelência, para garantir o repasse de um recurso destinado ao Projeto de Urbanização da Lagoa do Opaia, através do Programa Habitar Brasil, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que tinha como exigência a criação de uma UEM – Unidade Executora do Município. Anterior à criação da HABITAFOR, a habitação era uma política descentralizada com execução nas 06 Secretarias Executivas Regionais (SER’s), através dos extintos Distritos de Habitação e Trabalho, bem como por algumas iniciativas do terceiro setor. Contudo, atualmente não é garantida à HABITAFOR a exclusividade da execução de todos os projetos habitacionais, pois há dois grandes projetos - Vila do Mar e Programa de Requalificação Urbana com Inclusão Social (PREURBIS)7 – que, por motivos de ordem mais política do que administrativa, apresentam suas coordenações ligadas diretamente ao Gabinete da Prefeita e à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Infraestrutura (SEINF), especificamente.

A priorização de reassentamento das famílias em áreas próximas as que residem evitando prejuízos em relação aos laços de vizinhança estabelecidos e a utilização das políticas públicas locais constitui uma determinação importante que vai de acordo com a recomendação da Política Nacional de Habitação. No entanto, em Fortaleza isso não se efetivou na totalidade dos projetos executados, tendo em vista a dificuldade de terreno na cidade para construção de Habitação de Interesse Social devido à fragilidade do Plano Diretor vigente desde 1992, uma lei ultrapassada, ignorada e desrespeitada na visão das entidades da sociedade civil organizada8.

Muitos foram os recursos para desenvolvimento dos programas habitacionais em Fortaleza, tais como: Programa de Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários; Programa de Subsídio Habitacional de Interesse Social; Habitar Brasil BID; Projetos Prioritários de Investimentos (PPI – Intervenções em favelas); Cartas de Crédito Associativas e do Pró-moradia; Programa de Arrendamento Residencial (PAR)e Programa Crédito Solidário.

Além dos programas citados, recursos oriundos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado na segunda gestão do Governo Lula (2007-

33Trajetória de políticas habitacionais em cenários de desigualdade social: o caso de Fortaleza

7 O Projeto de Sanea-mento, Urbanização e Habitação Vila do Mar se destina a famílias residentes nas áreas de risco do Grande Pirambu, área de risco localizada no litoral da zona oeste da cidade Fortaleza. O PREUR-BIS consiste num projeto habitacional e requalificação urbana destinado às famílias residentes às margens do Rio Cocó no bairro Dias Macedo.

8 Dos 22 projetos habi-tacionais em andamen-to no período de 2005 a 2010, apenas 07 deles caracterizavam-se pela urbanização da área com reassentamento das famílias no pró-prio local ou a menos de 200m de distância deste.

Page 34: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

2010), e, por conseguinte, capitalizado por Fortaleza mediante sete projetos habitacionais desenvolvidos em áreas de risco bastante emblemáticas na cidade - São Cristóvão, Campo Estrela, Vila do Mar, Maravilha, Lagoa do Papicu, Lagoa do Urubu e Açude João Lopes – pretendem reaizar um redesenho no mapa dos assentamentos precários do município.

Apesar de todo o investimento já realizado por parte do poder público, da luta dos movimentos sociais urbanos, bem como do acompanhamento social, jurídico e urbanístico, a demanda por moradia se apresenta bem maior que a quantidade de projetos ofertados pelo poder público, o que deixa aquém a possibilidade de superação do déficit habitacional existente.

A execução da política se dá não só através da intervenção física e jurídica, como também da intervenção social, que inicia com a identificação das famílias por meio do cadastramento que é realizado in loco, a elaboração do diagnóstico social que dará subsídios à construção do projeto de engenharia, à formulação do Projeto de Trabalho Técnico Social que será executado antes, durante e após o reassentamento das famílias no novo espaço de moradia.

Sobre a acessibilidade das informações de uma determinada área, enquanto ferramenta primordial no processo de gestão de políticas públicas a partir da elaboração de diagnósticos efetivos, parâmetros avaliativos, construção de indicadores que possam trazer à tona a complexidade das condições de vida da população, Koga (2002, p. 25) aponta que,

[...] a simples presença de uma política pública pode não revelar sua capacidade de interferência nas situações de exclusão social, visando colocar os sujeitos na condição de protagonistas a caminho da inclusão social. Faz-se fundamental o modo pelo qual a política pública opera, levando em conta a cultura, a geografia da própria população com a qual trabalha e a participação dos cidadãos. O peso da qualidade, neste caso, é tão forte quanto a quantidade.

Considerações Adicionais

A despeito de nos últimos dez anos observar-se grande avanço na política habitacional brasileira, especificamente em Fortaleza, algumas observações são importantes.

Apesar da importância do trabalho social enquanto parte da execução dos projetos habitacionais, percebe-se ainda negligência na sua execução, tendo

34 Andréa Sobreira Cialdini BorgesJoão Bosco Feitosa dos Santos

Page 35: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

em vista que apresentaram baixos índices de execução orçamentária e, assim como a regularização fundiária, apresentou contingenciamentos em prol das obras de execução física propriamente.

A visão multidimensional da realidade impõe que o trabalho social na habitação extrapole os limites da ação localizada, para se inserir no âmbito das políticas públicas, devendo contribuir também para a inserção social das famílias, para a inserção urbana dos empreendimentos, para a gestão democrática dos investimentos públicos, e, principalmente, deve estar compromissado com os interesses da população, no atendimento de suas necessidades sociais e afinado com as diretrizes e os objetivos da Política Nacional de Habitação (PNH).

Há uma real e urgente necessidade de maior integração da política habitacional com as outras políticas sociais, tais como: geração de emprego e renda, saúde, assistência social, educação, juventude. A casa por si só não garante as condições dignas de habitabilidade, haja vista que o avanço das políticas de habitação não tem conseguido reverter a mazela da desigualdade social e, sobretudo, amenizar os problemas de enchentes e outras catástrofes em áreas onde vivem populações que moram em condições pobreza, de inadequado saneamento, e em locais inadequados para habitação.

Em suma, o grande desafio da política pública no Brasil consiste em intervir para a democratização do poder público e a universalização dos direitos sociais básicos, bem como reduzir as desigualdades socioterritoriais sem perder o vínculo com as particularidades e diversidades locais.

35

ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss the history of housing policy of social interest in Brazil, mapped into the space of social inequality and urban scenario of many struggles. It’s a bibliographic and documental study focusing the city of Fortaleza as a scenario of social inequality in the perception of the trajectory of housing policies. We assumed that the difficulties encountered today in urban management, specifically with regard to housing are linked to the urban model of development adopted in the country, marked by the absence of urban planning and by favoring the interests of dominant elites. The study reveals the importance of intersectorial cooperation and the necessary integration of public policies for the actions to reach their goals and have greater social sustainability. This is the great challenge for public policy in Brazil, namely, the democratization of public power and the universalization of basic social rights, as well as reducing socio-territorial inequalities without losing the link with the local peculiarities and diversities.

Keywords: housing policy; social inequality; participatory budget.

ArtigoRecebido: 18/03/2011Aprovado: 02/05/2011

Referências

ACSELRAD, H. A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

Trajetória de políticas habitacionais em cenários de desigualdade social: o caso de Fortaleza

Page 36: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

36

BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social. Fundamentos e história. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2008. (Biblioteca Básica de Serviço Social. Vol.2).

BRAGA, E. A. F. Os labirintos da habitação popular (conjunturas, programas e atores). Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1995.

BRASIL. Ministério das Cidades. Plano Diretor. Guia para a elaboração pelos municípios e cidadãos. 2.ed. Brasília: Ministério das Cidades/CONFEA, 2005.

BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação. Déficit Habitacional no Brasil 2006. Brasília: 2008.

BRASIL. Ministério das Cidades/Centro de Estudos da Metrópole. Assentamentos precários no Brasil urbano. Brasília: 2007

BRASIL. Ministério das Cidades/Centro de Estudos da Metrópole. Capacidades administrativas, déficit e efetividade na política habitacional. Brasília: 2007

BRASIL. Ministério das Cidades/Universidade Federal de Santa Catarina. Acesso à terra urbanizada: implementação de planos diretores e regularização fundiária plena. Brasília/Florianópolis: 2008.

BRAVO, M. I. S.; PEREIRA, P. A. P. (Orgs.). Política social e democracia. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2002.

CASTEL, R. As metamorfoses da questão social – uma crônica do salário. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

COM 1,3 milhão de casas, projeto Minha Casa Minha Vida supera metas. Diário do Nordeste, Fortaleza, 30 dez. 2010. Política. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/noticia.asp?codigo=308631&modulo=963. Acesso em: 14 jan 2011.

DAGNINO, E. (Org.). Os Anos 90: Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.

GASPAR, R.C. A cidade na geografia econômica global: um panorama crítico da urbanização contemporânea. São Paulo: Publisher Brasil, 2009.

IPEA. Brasil em Desenvolvimento: Estado, planejamento e políticas públicas (Sumário analítico). Brasília-DF: Ipea, 2009.

Andréa Sobreira Cialdini BorgesJoão Bosco Feitosa dos Santos

Page 37: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

37

JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2007. jul.2009.

KOGA, D. Medidas de cidades: entre territórios de vida e territórios vividos. São Paulo: Cortez, 2003.

KOGA, D., NAKANO, K. Perspectivas territoriais e regionais para políticas públicas brasileiras. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo, ano XXVII, n.85, p.98-108, Mar/2006.

MARICATO, E. Brasil, Cidades. Alternativas para crise urbana. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

______, E. Metrópole na periferia do capitalismo: desigualdade, ilegalidade e violência. São Paulo: Hucitec, 1996.

PEREIRA, P. A.P. Necessidades humanas. Subsídios à crítica dos mínimos sociais. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2008.

ROCHA, Sonia. Pobreza no Brasil: Afinal do que se trata. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

ROLNIK, Raquel. É possível uma política urbana contra a exclusão? Serviço social e Sociedade, São Paulo, ano XXIII, n. 72, p. 53-61, nov. 2002.

SADER, E.; GENTILI, P. Pós-neoliberalismo. As políticas sociais e o estado democrático. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

VALENÇA, Márcio M. (org.). Cidade (i)legal. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008.

Trajetória de políticas habitacionais em cenários de desigualdade social: o caso de Fortaleza

Page 38: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

39(*) Teresa Helena Gomes Soares é mestra em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará – UECE (2011). Assistente Social, com bacharelado em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará - UECE (2004) e Especialização em Serviço Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais pela Universidade de Brasília – UNB (2010). @ - [email protected] Hermano Machado Ferreira Lima é Graduado em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor Adjunto da Universidade Estadual do Ceará do curso de Ciências Sociais e do Mestrado Acadêmico de Políticas Públicas e Sociedade. @ - [email protected]

The city center of Fortaleza/CE and current proposal of rehabilitation: what is it about?

Teresa Helena Gomes Soares*Hermano Machado Ferreira Lima *

O centro de Fortaleza/CE e a atual proposta

de reabilitação: do que se trata?

Palavras-chave: questão urbana e habitacional, centros urbanos e políticas públicas.

RESUMO: Este artigo tem o objetivo de analisar a atual versão do Plano Habitacional para Reabilitação da Área Central de Fortaleza/CE - PHRACF, refletindo sobre as propostas de políticas urbanas e habitacionais apresentadas pelo Poder Público Municipal para esse território. Para tanto, trazemos considerações sobre as condições urbanas e habitacionais no contexto nacional e local e sobre as principais alterações ocorridas nos centros urbanos e como estas influenciam nas atuais condições de moradia dos habitantes desses territórios.

Introdução

O contexto societário – base da nossa investigação – é marcado pelas consequências da reestruturação produtiva e da mundialização do capital (HARVEY, 1992) vivenciadas no Brasil, especialmente com origem nos anos 1970, que, aliadas ao avanço tecnológico, acarretaram o crescimento indiscriminado das cidades nos últimos 40 anos, trazendo drásticas alterações nas suas funções econômicas e sociais.

Por um lado, observamos o elevado grau de modernização e integração do contexto local e global das cidades e, de outra parte, o aumento da pobreza, do desemprego e das relações precarizadas de trabalho, afetando vários segmentos da vida em sociedade.

Page 39: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

40 Teresa Helena Gomes SoaresHermano Machado Ferreira Lima

Essa conjuntura culminou com o aumento desordenado das cidades e o desequilíbrio do cenário urbano, caracterizado por migrações intensas de pessoas em busca de melhores condições de vida nas cidades. Em adição, temos a permanente dívida do Poder Público para com a elaboração e desenvolvimento de políticas sociais e públicas eficazes no trato da problemática urbana e habitacional que pudessem melhorar ou equacionar esses índices.

São inúmeros os problemas inventariados para demonstrar como a questão urbana e habitacional tomam proporções cada vez mais difíceis de equacionar, notadamente quando estamos diante do modelo societário brasileiro, com histórico de ampla desigualdade social e de negação dos direitos. Os dados estatísticos sobre o aumento da população urbana, seguido do acréscimo de favelas, cortiços e habitações em áreas de risco, são exemplos concretos do alarmante cenário urbano das cidades brasileiras.

Mediante a análise dos dados estatísticos sobre as condições urbanas e habitacionais no Brasil, foi possível observar que a falta de moradia e as habitações em estado de precariedade compõem o conhecido deficit habitacional1, identificado e compreendido no cenário brasileiro por intermédio de importantes publicações periódicas, como as lançadas pela Fundação João Pinheiro, trabalhando dados atualizados do IBGE e PNAD, e também por meio de pesquisa direta com a população.

Conforme dados de pesquisa efetivada pela Fundação João Pinheiro, encomendada e publicada pelo Ministério das Cidades (2009), o deficit habitacional brasileiro em 2007 foi estimado em 6.273 milhões de domicílios, dos quais 5.180 milhões, ou seja, 82,6% estão localizados nas áreas urbanas.

Observamos que a Região Nordeste possui o segundo maior índice de falta de moradias no Brasil, totalizando 2 milhões e 144 mil e perfazendo 34,2% do total do deficit, perdendo apenas para a região Sudeste, cujo déficit é de 2 milhões e 335 mil residências, com 37,2% do total no País. A cidade de São Paulo possui o maior saldo negativo habitacional no Brasil, totalizando 1 milhão e 234 mil habitações.

Outro dado relevante mencionado por essa pesquisa é a relação direta entre a condição de pobreza e o negativo habitacional, indicando que 89,4% do deficit habitacional brasileiro estão concentrados na faixa de renda de até três salários mínimos, ou seja, atinge, prioritariamente, a população pobre das grandes cidades. Esse dado pode ser comprovado pela tabela 01.

1 O conceito de deficit habitacional utilizado está ligado diretamen-te às deficiências do estoque de moradias. Engloba aquelas sem condições de serem ha-bitadas devido à pre-cariedade das constru-ções ou em virtude de desgaste da estrutura física. Elas devem ser repostas. Inclui ainda a necessidade de in-cremento do estoque, devido a coabitação familiar forçada (fa-mílias que pretendem constituir um domi-cílio unifamiliar), aos moradores de baixa renda sem condições de suportar o paga-mento de aluguel e aos que vivem em casas e apartamentos alugados com grande densidade de pessoas. Inclui-se ainda nessa rubrica a moradia em imóveis e locais com fins não residenciais. O deficit habitacional pode ser entendido, portanto, como “deficit por re-posição do estoque” e “deficit por incremento de estoque”. (BRASIL, 2009, p. 16)

Page 40: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

41O centro de Fortaleza/CE e a atual proposta de reabilitação: do que se trata?

Tabela 01 Deficit habitacional urbano por faixa de renda média familiar mensal

ESPECIFICAÇÃO

As relações entre – pobreza / falta de moradia e pobreza / moradia em estado de precariedade – repetem-se em todas as regiões brasileiras, sendo mais acentuadas na Região Nordeste, onde 95,9% do deficit estão concentrados na faixa de renda de até três salários mínimos.

Dentre as regiões brasileiras, o Nordeste (95,9%), seguido pela Região Norte (89,7%), é o que expressa maior concentração de deficit no segmento de renda abaixo de três salários mínimos. Esse dado constata que, mesmo tendo uma concentração populacional menor do que outras regiões como a Sudeste2, as regiões Norte e Nordeste apresentam a maior concentração de deficit habitacional entre a população de baixa renda, revelando índices desfavoráveis em relação às outras regiões, expondo as disparidades regionais ainda existentes no Brasil atual.

O Ceará registra a quinta posição no índice de concentração do deficit habitacional na faixa de até três salários mínimos, com 95,8% do negativo inserido nessa faixa de renda, ligeiramente aquém dos Estados do Piauí (98,3%), Alagoas (96,4%), Pernambuco (96,3%) e Maranhão (96,0%), respectivamente.

As disparidades quanto ao acesso à moradia adequada, especialmente pela população mais pobre, alcançam diferentes níveis no âmbito nacional e regional, mas também no interior das cidades, provocando a criação das divisões entre zonas e, no caso de Fortaleza, entre as zonas leste e oeste. Essa situação incentiva a produção de duas cidades, uma legal e outra ilegal, revelando,

[...] o quadro de contraposição entre uma minoria qualificada e uma maioria com condições urbanísticas precárias relaciona-se a todas as formas de desigualdade, correspondendo a uma situação de exclusão territorial. Essa situação de exclusão é muito mais do que a expressão da desigualdade de renda e das desigualdades sociais:

Faixa de renda média familiar mensal (em salários mínimos)

Total

Fonte: BRASIL, 2009.

89,4% 6,5% 3,1% 1,0% 100,00

Até 03

Mais de 03 a 05

Mais de 05 a 10

Mais de 10

BRASIL

2 Região que possui o maior déficit habitacio-nal brasileiro.

Page 41: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

é agente de reprodução dessa desigualdade. Em uma cidade dividida entre a porção legal, rica e com infra-estrutura e a ilegal, pobre e precária, a população que está em situação desfavorável acaba tendo muito pouco acesso a oportunidades de trabalho, cultura ou lazer. Simetricamente, as oportunidades de crescimento circulam nos meios daqueles que já vivem melhor, pois a sobreposição das diversas dimensões da exclusão incidindo sobre a mesma população fazem com que a permeabilidade entre as duas partes seja muito pequena. (ROLNIK, 2002, p.54)

Não queremos com essa consideração suscitar o debate sobre a divisão das cidades em dois lados opostos, pois temos a nítida compreensão de que a todo momento os contrastes entre as regiões e os bairros se relevam, interagem e se afrontam, expondo as contradições típicas das nossas cidades.

Revelando outros dados da referida pesquisa comprovamos que o deficit habitacional não está concentrado apenas na falta de moradia adequada, mas também na presença de edificações subutilizadas, além de espaços urbanos vazios e degradados, que poderiam ser recuperados e destinados às populações que deles necessitam. Essas condições foram identificadas, no caso das ocupações, aos imóveis abandonados no Centro de Fortaleza, os quais possuem potencial para passar por intervenções do Poder Público, a fim de posterior destinação, prioritariamente, às famílias de baixa renda e que já residem na área central, mas pouco é feito nesse sentido.

Sobre a situação dos imóveis vazios no Brasil, a referida pesquisa traz as seguintes informações:

Segundo a PNAD 2007, mais de 84% das unidades vagas no país estão em condições de serem ocupadas e devem constituir-se, basicamente, em estoque do mercado imobiliário. Mais de 73% delas estão localizadas em áreas urbanas, das quais 36,6% nas regiões metropolitanas. Em todo o Brasil são cerca de 7,351 milhões de imóveis não ocupados, dos quais 5,396 milhões localizados nas áreas urbanas. São 6,220 milhões em condições de serem ocupados, 832 mil em construção e 300 mil unidades em ruínas. Números que, mesmo considerando apenas os imóveis habitáveis, são superiores ao total do déficit de habitações no país (BRASIL, 2009, p.35).

42 Teresa Helena Gomes SoaresHermano Machado Ferreira Lima

Page 42: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Sobre a realidade da Capital cearense, dados recentes apresentados pela Prefeitura Municipal de Fortaleza e o Censo IBGE 2010 indicaram a existência de uma população de 2.447.409 habitantes e deficit habitacional de 77.615 moradias, levando em consideração a necessidade de construção de habitações e a reestruturação de moradias precárias. A população favelada chega a 700.000 habitantes, equivalendo aproximadamente a 30% do total de moradores do Município (IBGE, 2010; HABITAFOR, 2007).

Do mesmo modo como o País passou por intensiva alteração socioeconômica com a influência da globalização, da abertura dos mercados internacionais, da microeletrônica e da flexibilização das relações de trabalho, Fortaleza também acompanhou essas mudanças, incorporando grandes obras no seu espaço interno e na região metropolitana, como o Complexo Portuário do Pecém, as rodovias Sol Poente e Sol Nascente, o novo Aeroporto Pinto Martins, Shoppings Centers, grandes conjuntos habitacionais, além da expansão urbana, habitacional e comercial de bairros distantes da área central. (SILVA, 2000)

Todo esse contexto de aceleração urbana, articulado às mudanças ocorridas nos processos de produção e reprodução da economia e do trabalho, faz parte das alterações significativas que consolidaram o terreno da questão urbana no Brasil e em Fortaleza, como destaca Silva (2000, p. 216):

Fortaleza, na condição de capital, acompanha o processo que atinge todo o sistema urbano brasileiro que se traduz nas transformações rápidas, na modificação substancial de sua fisionomia urbana. A cidade expressa em sua estrutura, forma e movimento a dinâmica da sociedade nacional estando consoante com as transformações decorrentes de medidas políticas, econômicas e sociais adotadas no País nos últimos anos.

A explicitação desses dados nos ajudaram a entender o atual contexto das cidades brasileiras e em especial Fortaleza, com destaque para sua Área Central, que será nosso objeto de análise no item a seguir.

A questão dos centros urbanos e o caso da área central de Fortaleza/CE

Com o crescimento e metropolização das grandes cidades, seus centros urbanos foram declinando e perdendo parte das suas funções históricas, havendo redução do seu contingente habitacional, bem como saída de parte dos serviços e de entidades importantes, que se deslocaram para outros bairros durante a descentralização das urbes.

43O centro de Fortaleza/CE e a atual proposta de reabilitação: do que se trata?

Page 43: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Além disso, alguns segmentos comerciais e de lazer também foram deslocados para outras centralidades, como os bairros periféricos ou aqueles localizados nas adjacências das áreas centrais. Como Rufino (2005, p.01), entendemos que “as cidades sofreram nos últimos 30 anos um processo de reestruturação urbana, resultado da transformação da sua base econômica e do processo de descentralização física”, fato que também alterou a dinâmica das suas centralidades.

As áreas centrais foram perdendo a primazia para outros bairros, principalmente com origem nos anos de 1950 e 1960, acompanhadas do esvaziamento da população que lá residia. Os moradores com melhor poder aquisitivo deixaram os centros e passaram a morar em bairros mais compatíveis com suas necessidades residenciais e de consumo.

Rufino (2005, p.36) esclarece que o “processo popularmente chamado de decadência ou deterioração do centro consiste principalmente no seu abandono por parte das camadas economicamente mais favorecidas e dos municípios vizinhos”. No caso de Fortaleza, alguns municípios vizinhos, especialmente os que compõem a Região Metropolitana, também desenvolveram seus centros comerciais e passaram a não mais depender completamente do centro comercial da Capital.

Nos anos 1920 e 1930 apenas as famílias abastadas residiam e tinham seus negócios no Centro de Fortaleza, porém, hoje, a maior parte dos segmentos comerciais lá instalados está voltada para as populações de baixa renda. Quanto ao setor habitacional, este é, principalmente, composto por moradores com rendimento médio de até cinco salários mínimos, podendo variar de acordo com a área (PMF, 2009).

Em Fortaleza, os segmentos de maior poder aquisitivo se deslocaram especialmente para os bairros do seu setor leste, tais como Aldeota e Meireles, mas também houve mudanças para os bairros periféricos e adjacentes à área central. Parte do comércio varejista, das entidades públicas e das empresas prestadoras de serviços abandonou essa região provocando o seu esvaziamento. Ocorreu de forma geral “[...] uma perda de estatus na moradia da área central; nesse período consolidam-se os novos bairros residenciais com padrões de habitação diferenciados, exercendo grande atração para as classes média e alta” (RUFINO, 2005, p. 52).

Essas reflexões demonstram que houve mudança significativa nos usos das áreas centrais de Fortaleza e de outras cidades brasileiras, como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Se na primeira metade do século XX o Centro era considerado o abrigo dos segmentos de melhor poder aquisitivo da

44 Teresa Helena Gomes SoaresHermano Machado Ferreira Lima

Page 44: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

sociedade fortalezense, hoje ele se destina especialmente às camadas pobres, que se valem da ocupação de edificações abandonadas e as transformam em cortiços ou passam a residir nas favelas localizadas no seu entorno. As considerações a seguir ilustram bem essa mudança de usos.

O abandono dos consumidores de maior rendimento, a oferta de imóveis a baixo preço e a grande concentração de transportes públicos reforçou a ocupação da área central pelas classes baixas e pelo comércio popular. Segundo pesquisa sobre o perfil do cliente e do empresário da área central (SEBRAE, 2004) a origem da maior parte dos clientes da área central é dos bairros da periferia de Fortaleza das classes C e D e com grande dependência de transporte público (RUFINO, 2005, p. 53).

Não houve, contudo, um esvaziamento total do Centro, mas a transferência dos usos habitacionais para comerciais e de serviços, atendendo, principalmente, a população que reside nos bairros periféricos, sendo denominado por (SILVA, 1992) de “Centro da Periferia” por “consubstanciar-se em locus privilegiado para a população de menor poder aquisitivo e, em alguns casos, em ponto de encontro desse segmento da sociedade fortalezense” (DANTAS, 2009, p. 223).

No período de metropolização, houve também a estagnação de bairros residenciais mais antigos, como Antônio Bezerra, Benfica e Joaquim Távora, e até mesmo declínio habitacional, como o ocorrido nos bairros Jacarecanga, Farias Brito e José Bonifácio. Houve esvaziamento da função habitacional e a transformação de comércios e serviços voltados para o público de baixa renda. Nos bairros Montese, Parangaba e Messejana, surgiram novos centros comerciais para atender à classe média baixa e o público de renda alta passou a ser atendido na Aldeota e Água Fria. (GONDIM, 2007; SILVA, 2000)

A deterioração da área central e o declínio habitacional observados em Fortaleza podem ser comprovados pelos dados estatísticos coletados no Estudo das Vantagens Competitivas do Centro da Cidade de Fortaleza3, o qual mostra que a densidade habitacional média da zona central em 1991 era de 56/hab./ha e no ano de 2000 decaiu para 45 hab./há. Atualmente, esse número pode ter diminuído ainda mais, em decorrência do agravamento das problemáticas sociais observadas nas áreas centrais, como a violência, a falta de manutenção das praças e o número alarmante de vendedores ambulantes que ocupam suas ruas e calçadas, sem falar da poluição sonora e visual (PMF, 2009).

Analisando dados contidos no Plano Habitacional para Reabilitação da Área Central de Fortaleza - PHRACF (2009), coletados dos censos do IBGE de 1996 e 2000, verificamos que a população residente na área central no ano

45O centro de Fortaleza/CE e a atual proposta de reabilitação: do que se trata?

3 Estudo elaborado pela Empresa Espaço Plano – Arquitetura e Consultoria, no ano de 2004, para a Secretaria de Planejamento – SE-PLA.

Page 45: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

de 1996 era de aproximadamente 27.584 habitantes e no ano de 2000 caiu para 24.775, comprovando o declínio habitacional acima mencionado.

Apesar de todas essas mudanças, porém, constatamos que o Centro de Fortaleza não perdeu sua força comercial nem o seu potencial habitacional, tendo infraestrutura urbana, equipamentos sociais, além de um contingente significativo de imóveis subutilizados ou fechados que poderiam ser mais bem aproveitados e destinados à habitação popular. A seguir são lançados dados que comprovam a efervescência da economia na área central de Fortaleza.

A economia local da área central, apesar do conjunto de situações adversas (perda da diversidade, aumento do comércio informal), possui ainda uma relevância significativa no contexto municipal, sendo o maior empregador e está entre os bairros que mais arrecadam impostos. Concentra cerca de 20% dos empregos, 9% da arrecadação do ICMS, 16% da arrecadação de ISS, 11% da arrecadação de IPTU e 5% da arrecadação de ITBI de Fortaleza (RUFINO, 2005, p. 66).

No contexto habitacional, é observada a subutilização de vários prédios, em que apenas os pavimentos térreos estão ocupados, podendo ser os demais pisos utilizados como moradia popular. Também ressaltamos a presença de terrenos desocupados ou usados como estacionamentos em áreas com alto potencial habitacional, uma vez que o Centro ainda oferece interessante estrutura urbana, composta por transporte coletivo e equipamentos sociais, como escolas, hospitais, comércios e serviços.

A tabela 02 contém indicadores sobre a situação dos imóveis subutilizados no Centro de Fortaleza.

Tipo de Imóvel

Galpão ocupado por depósito

Edificação desocupada no térreo

Lotes desocupados

Estacionamentos

Edificações desocupadas nos pavimentos superiores

Total

Fonte: PMF, 2009

Total m²

5.734,50

38.890,80

1.288,50

52.886,56

9.228,80

100.089,16

%

5%

36%

1%

49%

9%

100

Tabela 02: Imóveis subutilizados no Centro de Fortaleza.

46 Teresa Helena Gomes SoaresHermano Machado Ferreira Lima

Page 46: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Os dados da tabela 02 demonstram que 49% das áreas subutilizadas se destinam a estacionamentos que, na sua maioria, estão em situação de irregularidade. Conforme discussão trazida pelo PHRACF (2009), precisa haver intervenção do Poder Público para a regularização dos estacionamentos que minimamente tenham possibilidade de legalização e os demais espaços devem ser destinados à construção de moradias.

Na sequência, aparecem as edificações desocupadas no térreo, perfazendo 36%, seguidas daquelas desocupadas nos pavimentos superiores, chegando a 9% dos imóveis subutilizados. Ainda trazendo dados do PHRACF (2009), foram identificados e catalogados 36 edifícios nessas condições, destacando o potencial para aproveitamento e destinação desses imóveis como moradias de interesse social, devendo-se isso, investir estudos mais específicos e a aplicar instrumentos urbanísticos compatíveis à situação.

Foi nesse âmbito de declínio e deterioração das áreas centrais que, nos anos 1990, no Brasil, surgiram as intervenções junto aos centros urbanos. Experiências vivenciadas em importantes cidades, como Paris, Lisboa e Bolonha, atreladas às ideias de planejamento estratégico das cidades, foram influenciando as políticas de reestruturação dos centros urbanos no Brasil. Afloraram, então, as influências em torno da renovação ou reabilitação das áreas centrais das grandes cidades brasileiras, impulsionadas pelas experiências vivenciadas nas grandes metrópoles mundiais.

A renovação tem o objetivo de substituir edificações envelhecidas e/ou desvalorizadas por edifícios novos e marcados por uma estética pós-moderna, provocando mudança no uso do solo, atraindo novos serviços e, consequentemente, ensejando a expulsão da população moradora, em virtude da especulação imobiliária decorrente da gentrificação. A reabilitação ou requalificação é uma ação que preserva, o mais possível, o ambiente construído e também a população moradora (MARICATO, 2001).

Em decorrência destas concepções, fica fácil compreender por que a renovação é a modalidade mais defendida pelo grande capital imobiliário, o qual enxerga nela uma possibilidade de especular e aumentar os seus rendimentos, enquanto a reabilitação é defendida pelos moradores, movimentos sociais, profissionais e militantes da questão urbana e habitacional, sendo entendida com uma ação mais inclusiva e democrática. (MARICATO, 2001)

Autores como Kowarick, Maricato e Rolnik alertam sobre o processo de “gentrificação”4 ocorrido em algumas cidades brasileiras e internacionais. Quando as áreas centrais dessas cidades foram “revitalizadas”, deu-se

4 Gentrificação é a substituição dos an-tigos moradores por outros de faixas mais altas de renda. (MA-RICATO, 2001, p. 142) Resguardadas as diferenças que mar-cam os distintos tipos de enbrecimento ur-bano, pode-se dizer que eles consistem em um tipo específico de intervenção urbana que altera a paisagem urbana por meio da acentuação ou da tran-formação arquitetônica com forte apelo visu-al, adequando a nova paisagem às demandas de valorização imobi-liária, de segurança, ordenamento e limpeza urbana voltadas ao uso ou à reapropriação das classes média e altas, que resulta em espaços com forte inflexão se-gregacionista mediante demarcações socioes-paciais que fomentam a gragmentação de espaço em diferentes lugares. (LEITE, 2010, p. 03)

47O centro de Fortaleza/CE e a atual proposta de reabilitação: do que se trata?

Page 47: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

ênfase à abordagem histórica, cultural e turística dos centros históricos, abrindo espaços, principalmente, para centros gastronômicos e turísticos, supervalorizando-os e, consequentemente, expulsando a população residente e em nada contribuindo para a reabilitação de interesse social dos usos dos centros urbanos em foco. Essa situação pôde ser observada nos casos de Salvador e Recife.

As intervenções urbanísticas que não envolvem a população residente e não promovem a habitação nem a manutenção dos segmentos populares no “Centro Revitalizado” ensejam uma nova ocupação ou a reocupação dos espaços centrais pelas classes sociais de maior poder aquisitivo, expulsando os moradores originais ou segregando os setores empobrecidos das grandes cidades, sendo muitas vezes o próprio Poder Público agente e impulsionador desses mecanismos.

Maricato (2001) e Rolnik (2005) exprimem que a melhor maneira de garantir a sustentabilidade de ações dessa natureza é favorecendo o uso residencial nos centros urbanos, com manutenção das populações residentes – em grande parte, pertencentes aos segmentos pobres – viabilizando amplo arranjo institucional com agentes da iniciativa pública e privada, articulada a uma legislação urbanística que viabilize a implementação de políticas, planos, programas e projetos voltados para a ideia.

O Plano Habitacional para Reabilitação da Área Central de Fortaleza – PHRACF5 e suas principais propostas

As reflexões sobre o PHRACF foram obtidas através da análise documental e observação direta do processo de elaboração do Plano durante os anos de 2007 e 2009, além de observação participante efetivada nos dois Fóruns que viabilizaram a consulta popular acerca das versões preliminar e final do Plano.

Para análise dos também dados foi realizada pesquisa bibliográfica e documental sobre questão urbana e habitacional, políticas públicas e centros urbanos, com ênfase dos dados estatísticos que tratam do déficit habitacional brasileiro e das condições urbanas e habitacionais da Cidade de Fortaleza.

O PHRACF está dividido em duas partes, a primeira das quais consolida todo o diagnóstico da área central, com sua caracterização socioespacial e econômica e a segunda parte corresponde às intervenções e propostas do Plano para os segmentos urbanísticos, habitacionais também legais. O nosso

48 Teresa Helena Gomes SoaresHermano Machado Ferreira Lima

5 O Plano de Reabilita-ção da Área Central de Fortaleza foi elaborado pela Fundação de De-senvolvimento Urbano e Habitacional de For-taleza – HABITAFOR, entidade ligada à Pre-feitura Municipal de Fortaleza – PMF, com recursos advindos des-se Programa e contra-partida da PMF, a qual tem a responsabilidade de elaborar e executar o referido Plano.

Page 48: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

objeto de investigação está centralizado nas propostas do Poder Público para essa área, então, centralizamos nossa exposição na segunda parte do Plano que aponta os principais direcionamentos para a sua intervenção.

As diretrizes gerais do Plano estão delineadas na sequência.

- Recuperação do referencial histórico e cultural de formação da identidade de Fortaleza, mediante a recuperação arquitetônica e urbanística do patrimônio histórico construído e das referências paisagísticas formadoras da imagem da Cidade.

- Recuperação da presença dos elementos naturais na paisagem da área central, por meio de espaços públicos articulados no entorno do riacho Pajeú e na ligação entre a área central e a orla marítima.

- Gestão democrática e participação popular.

- Articulação institucional, com a composição de um Grupo Gestor, que será responsável pela captação de recursos públicos e privados, pela elaboração e implementação do Plano e pelo monitoramento de suas metas.

- Aproveitamento dos serviços e equipamentos urbanos disponíveis e já implantados na área central, reforçando e reabilitando o patrimônio sob uso.

O Plano indica importantes pontos de debate sobre as intervenções habitacionais no Centro, mas alerta para o fato de que devem ser consideradas as tipologias e formas de acesso à moradia, observando a possibilidade de viabilizar subsídios diretos, financiamentos e locação social, com vistas a adequar os programas e modalidades habitacionais às características da demanda do Centro, especialmente aos segmentos populares, expressos como o principal público a ser atingido com as intervenções.

Quanto aos programas habitacionais previstos para a área central, são enfatizados aqueles que atendem às demandas expostas na caracterização socioespacial – objeto da primeira etapa do Plano – tendo como necessidades principais os segmentos de Urbanização e Regularização de Assentamentos Precários e Informais e a Produção de Novas Moradias.

Relativamente à Urbanização e Regularização de Assentamentos Precários e Informais, é destacada a necessidade de atuação junto às favelas, estando previstos os programas de Urbanização e Regularização Fundiária de âmbito

49O centro de Fortaleza/CE e a atual proposta de reabilitação: do que se trata?

Page 49: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

municipal, estadual e federal, como o Projeto de Assistência Técnica - PAT – PROSANEAR, o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (Urbanização de Favelas) e o Programa Habitar Brasil BID - PHBB. Além desses, também são citados os Programas Morar Melhor, Pró-Moradia, Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários.

No que se refere aos cortiços/cubículos, existe a pretensão de implantar o Programa de Atuação em Cortiços, com recursos do BID, mas requerendo a elaboração de legislação específica para controlar e coibir ações de beneficiamento próprio e especulação imobiliária por parte dos proprietários de imóveis nessas condições, a exemplo da legislação do Município de São Paulo (Lei Moura6). Observamos, entretanto, que, durante a elaboração do Plano, não foi feito estudo aprofundado sobre os moradores desses segmentos habitacionais nem das favelas no entorno, ação que consideramos fundamental para balizar qualquer tipo de intervenção na área, sendo considerado um aspecto limitador da atuação da HABITAFOR.

Quanto aos dados que tratam da demanda por novas moradias, foi feita a estimativa pela construção de 2.185 unidades, das quais 1.754 contam com renda inferior a três salários mínimos (SM), 214 com renda entre três e cinco SM, 144 com renda entre cinco e dez SM e 73 com renda acima de dez SM. Para a construção de moradias, foi cogitada a possibilidade de as unidades habitacionais não possuírem vagas para garagem e/ou elevadores, visando à redução dos custos e sendo necessárias, para isso, alterações na legislação urbana. Tal questão, contudo, ainda não foi consenso entre técnicos e população durante as atividades que contaram com a consulta popular e aparece como um ponto ainda aberto à discussão na versão final do Plano.

Para a produção de moradias em terrenos vazios e subutilizados, como galpões ou estacionamentos, foi considerada fundamental a utilização de recursos federais, estaduais, distritais e municipais, por meio do Programa de Arrendamento Residencial - PAR (Federal), do Programa de Requalificação Urbana e Ambiental de Assentamentos Precários (Estadual) ou do Programa Morar Melhor (Municipal). Foi sugerido que as tipologias adotem uso misto, com aproveitamento do térreo para salas comerciais, cujo aluguel pode ser revertido para manutenção condominial do edifício residencial.

Após a seleção dos terrenos com viabilidade técnico-econômica para construção de unidades, o Plano indicou que o Poder Executivo encaminhe projeto de lei identificando e registrando os terrenos selecionados como zonas especiais de interesse social - ZEIS, a fim de regulamentar a aplicação de instrumentos urbanísticos, em especial o direito de preempção, o IPTU

50 Teresa Helena Gomes SoaresHermano Machado Ferreira Lima

6 A Lei Moura (Lei do Município de São Pau-lo, nº. 10.928, de 08 de janeiro de 1991) define o cortiço como a unida-de usada como mora-dia coletiva multifami-liar, apresentando total ou parcialmente as se-guintes características: constituída por uma ou mais edificações cons-truídas em lote urbano; subdividida em vários cômodos alugados, su-balugados ou cedidos a qualquer título; várias funções exercidas no mesmo cômodo; acesso e uso comum dos es-paços não edificados e instalações sanitárias; circulação e infraestru-tura no geral precárias e superlotação de pes-soas. (ABIKO, 1995, p. 16)

Page 50: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

progressivo no tempo, a transferência do direito de construir, dentre outros. Também foi indicado que os recursos do Programa Especial de Habitação Popular – PEHP poderiam ser utilizados como complemento a outras fontes de investimento, desde que sejam destinados para beneficiar a população com renda de até três salários mínimos.

Outro programa considerado relevante é o “Minha Casa Minha Vida”, do Governo Federal, que pode viabilizar a construção de unidades na área central, por meio da iniciativa privada, desde que a construção não ultrapasse o valor de R$ 45.000,00 e atenda famílias com renda de até três salários mínimos. Também existe a possibilidade de construção de unidades deste Programa com recursos estaduais.

As indicações do Plano concluem que os programas de aquisição de unidades habitacionais podem estar associados ao Programa de Locação Social. Este encontra-se em votação da Câmara Municipal de Fortaleza (PL. 0261/07), mas também não adquiriu consenso entre os técnicos e a população nos fóruns de debate promovidos.

Outra estratégia interessante de habitação para a área é a reforma de edifícios vazios e subutilizados. Foram selecionados e catalogados 36 prédios abandonados ou subutilizados, sendo feito o estudo de sua viabilidade, entretanto, os custos com reformas são maiores do que com a construção, sendo em média de R$ 60.000,00. Assim, durante a implementação do Plano, os imóveis selecionados deverão receber novos estudos de viabilidade técnico-econômica e, caso sejam considerados viáveis, o Poder Executivo deverá demarcá-los como Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS por meio de projeto de lei e aplicar os instrumentos urbanísticos, de modo a incentivar sua utilização como habitação de interesse social.

As intervenções apresentadas até aqui são aquelas consideradas estratégicas e prioritárias, mas para que o Plano logre êxito, foram incorporadas as intervenções difusas, que fazem parte das políticas das diversas secretarias e autarquias municipais, que precisam estar articuladas para desenvolver medidas fundamentais à implantação e funcionamento do Plano.

As principais intervenções difusas7 estão relacionadas à melhoria do sistema viário e das condições de mobilidade, principalmente em relação aos pedestres; a recuperação de espaços e equipamentos públicos, para garantir os serviços básicos de apoio ao uso habitacional e atrair a visita de turistas e moradores de outras regiões da Cidade, para valorizar o patrimônio histórico e paisagístico da área central; a adoção de medidas de desenvolvimento e

51O centro de Fortaleza/CE e a atual proposta de reabilitação: do que se trata?

7 São ações para me-lhoria e manutenção dos serviços e equipa-mentos públicos que devem contribuir, de forma difusa e genera-lizada, para a reabilita-ção da área central de Fortaleza. Estas ações fazem parte da política sistemática das diver-sas secretarias e autar-quias municipais, mas que precisam ser re-forçadas e articuladas entre si. (PMF, 2009, p. 106)

Page 51: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

inclusão social voltadas para a camada mais pobre da população, composta por moradores de rua, catadores de material reciclável, dentre outros; melhorias e manutenção de todos os sistemas de infraestrutura urbana e serviços públicos, tais como iluminação pública, drenagem, pavimentação, coleta de lixo, dentre outros, além da implantação e acompanhamento dos programas habitacionais (PMF, 2009, p.86).

Sobre as diretrizes para a revisão da legislação urbanística, é indicada a redefinição de normas e instrumentos urbanísticos e tributários aplicados à área central de Fortaleza como condição fundamental para viabilizar o Plano. A versão final do Plano indica que a revisão da legislação urbanística deve ocorrer em três níveis: Zoneamento Urbano e Ambiental; Normas de Implantação de edificação de uso residencial; Instrumentos Tributários (Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana - IPTU/Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis - ITBI) e as políticas de descontos e isenções aplicadas em relação aos imóveis do Centro da Cidade.

No Centro, foram delimitadas a Zona Especial de Preservação do Patrimônio Paisagístico, Histórico e Cultural – ZEPH e a Zona Especial de Dinamização Urbanística e Socioeconômica – ZEDUS. Também foi feita a proposta de delimitação das ZEIS, as quais foram retiradas da versão final da lei aprovada pelos vereadores, sendo fundamental a retomada da discussão, garantindo sua definição, a fim de viabilizar a destinação de moradia popular no Centro.

As principais recomendações para o Zoneamento Urbano e Ambiental são as seguintes:

regulamentar e delimitar as ZEIS, considerando em especial os perímetros dos setores estratégicos de intervenção 01, 02 e 03, pois estas ZEIS são do tipo 03, ou seja, compostas de imóveis vazios ou subutilizados; ampliar a abrangência da Zona de Preservação Ambiental do Riacho Pajeú, visando à consolidação, em médio prazo, de um parque linear; criar zonas de transição – amortecimento – entre as áreas densamente ocupadas e as áreas de preservação e articular os instrumentos urbanísticos citados nas zonas com as estratégias de cada um dos setores de intervenção prioritária (PHRACF, 2009, p. 115-116).

No que se refere à implementação do Plano, merecem destaque as seguintes ações: o arranjo institucional, os planos de ação para os setores de intervenção estratégica e a implementação de programas habitacionais, mediante planejamento, projetos, obras, trabalho social e contratos.

52 Teresa Helena Gomes SoaresHermano Machado Ferreira Lima

Page 52: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Sobre o arranjo institucional, está previsto que a gestão operacional e executiva dos programas habitacionais ficará sob responsabilidade da HABITAFOR e o monitoramento das ações do Plano Habitacional do Centro será acompanhado por um grupo gestor ampliado, envolvendo representantes da sociedade civil. A articulação para a formação desse grupo se dará, inicialmente, com a inserção de uma comissão temática sobre o Centro dentro do Conselho Municipal de Habitação Popular de Fortaleza – COMHAP. Esta comissão tem caráter consultivo e deliberativo sobre as etapas de execução do Plano. A gestão compartilhada entre técnicos da HABITAFOR e os representantes da comissão técnica do Conselho Municipal de Habitação Popular de Fortaleza - COMHAP deverá acompanhar todas as etapas de implementação do Plano, desde a composição de equipes técnicas à contratação de projetos e obras.

As atribuições do COMHAP para a viabilização do Plano se referem à definição dos programas, com seus objetivos, critérios de atendimento, metas e projetos; elaboração e execução orçamentária das ações referentes ao Plano e o monitoramento e avaliação das metas estabelecidas no Plano. Quanto à HABITAFOR, esta será responsável pela coordenação e execução das ações diretamente ligadas aos programas habitacionais, sendo necessário reforço da capacidade técnico-gerencial da equipe técnica para implementar programas inéditos no Município.

Durante a pactuação do Plano com a equipe técnica da HABITAFOR, foi estabelecido um cronograma de atividades prevendo que, até o primeiro semestre de 2010, seria feito o planejamento das ações, com a estruturação dos programas, a obtenção dos recursos, o cadastro da demanda, o cadastro dos cortiços/cubículos, o treinamento das equipes internas e o estabelecimento do planejamento estratégico, com a definição de prioridades, prazos, metas e indicadores de monitoramento.

Para a implementação dos programas habitacionais, foram pensadas quatro fases: Planejamento, Projetos e Obras, Trabalho Social e Contratos. A fase de planejamento envolverá desde a seleção de imóveis, a desapropriação, o cadastro de demanda, o planejamento dos programas a serem implantados, a obtenção de recursos financeiros até a gestão com os demais setores dos Governos municipal, estadual, federal e a sociedade civil. Para tanto, foi constituído um “passo - a - passo” do que deve ser desenvolvido para implementar os programas.

No que se refere às ações de abrangência técnico-social, estas vêm sendo atualmente desenvolvidas pela HABITAFOR, por meio de cadastro da demanda, acompanhamento em frentes de obras e monitoramento pós-ocupação, mas em outras áreas da Cidade. Vale destacar, entretanto, que os

53O centro de Fortaleza/CE e a atual proposta de reabilitação: do que se trata?

Page 53: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

projetos de trabalho técnico-social vão além dessas atividades, privilegiando a realização de diagnósticos socioeconômicos, ambientais, culturais e espaciais, a elaboração de projetos que visam a incorporar a noção do acesso a direitos fundamentais, tendo pelo menos quatro frentes de trabalho – a mobilização e organização comunitária, a educação sanitária e ambiental, a geração de trabalho e renda e a regularização fundiária.

Por fim, o próprio Plano recomenda cuidado especial com a gestão dos contratos, sendo sugerido que a HABITAFOR estabeleça convênios com as cooperações técnicas, dos governos francês e italiano, que têm larga experiência com esse tipo de programa. A equipe técnica destacou que este Plano só terá êxito com a priorização de investimento nos setores estratégicos, articulados às intervenções difusas, que devem ser implantadas de maneira continuada, com atuação integrada entre as diferentes secretarias municipais e órgãos públicos estaduais e federais.

Além disso, para a fixação da nova população e melhoria das condições de quem já reside no Centro, foram indicados a reabilitação dos espaços e equipamentos públicos, a adequação da infraestrutura instalada, a melhoria das condições de mobilidade urbana e um conjunto de desenvolvimento econômico e social. O Plano indica, ainda, que os avanços conquistados com a aprovação do PDP/FOR devem ser complementados com a aprovação e delimitação das ZEIS para as áreas centrais, que, juntamente aos demais instrumentos urbanísticos e todas as ações integradas, podem viabilizar uma melhor estruturação da área central de Fortaleza, conferindo uma gestão mais democrática.

Considerações Finais

Dentre os principais resultados obtidos pelo Plano, destacamos a relevante caracterização socioeconômica e espacial do Centro, que possibilitou o levantamento de informações deveras importantes para especificar as potencialidades e problemáticas do Centro da Cidade, a mudança de uso, o processo de esvaziamento habitacional e de deterioração ambiental. Um ponto forte, mas que ainda precisa ser complementado, foi a identificação das moradias precárias e também dos imóveis com potencial para moradia popular, além do breve levantamento quantitativo de potenciais moradores para o Centro de Fortaleza.

Apesar de termos conhecimento de que as atividades não atingiram de forma massiva o público-alvo da intervenção, necessitando ampliação das discussões quando da efetivação do plano, constatamos que a capacitação

54 Teresa Helena Gomes SoaresHermano Machado Ferreira Lima

Page 54: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

da equipe técnica municipal e a introdução de consultas populares mediante a realização de fóruns, oficinas temáticas e territoriais, além da mobilização e repasse de informações à população, foram ações interessantes e que contribuíram para a aproximação do povo na elaboração do Plano.

A promoção de discussões em torno do uso e ocupação do solo, da legislação urbanística, da necessidade de introduzir instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, como a delimitação de ZEIS, do IPTU progressivo no tempo e do direito de preempção constituem medidas que podem colaborar significativamente com o acesso à moradia de interesse social.

Apesar de ter havido entrelaçamento de ações entre HABITAFOR, Secretaria do Centro e COMHAP no processo de elaboração do Plano, com o acompanhamento da sua elaboração, percebemos fragilidades na articulação entre esses segmentos e destes com as secretarias municipais e os movimentos populares que lutam por moradia. Dessa maneira, consideramos fundamental a retomada das discussões em torno do Plano, devendo haver sua ampla divulgação e debates sobre o seu conteúdo nas secretarias municipais e nos espaços que abrigam a sociedade civil e os movimentos populares em prol de moradia.

É relevante destacar, porém, que, nos meses de abril e julho de 2010, realizamos visitas institucionais à Secretaria do Centro - SECE/FOR e HABITAFOR, com o objetivo de identificar quais ações estão sendo priorizadas no sentido de implementar o Plano. Os relatos obtidos, contudo, revelaram, que pouco se avançou desde a conclusão do Plano, no final de 2009.

A elaboração dos projetos previstos e definição da sua viabilidade jurídica para implementação, ficaram previstas para o segundo semestre de 2010, mas até o presente momento nada foi efetivado. Os referidos prazos não foram cumpridos e o cronograma de execução ainda não foi refeito. A Prefeitura alega que o principal entrave para sua operacionalização é a falta de recursos, mas temos a nítida compreensão que questão também envolve falta de prioridade e de competência técnica e política para a sua efetivação. Questões estas, que podem ser minoradas a partir de amplo arranjo institucional e político entre as esferas federal, estadual e municipal, envolvendo as secretarias e autarquias locais.

Foi relatado o fato de que está havendo articulação da Prefeitura de Fortaleza junto ao Governo Federal para inclusão desse Plano nas ações do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, bem como estão sendo feitas negociações com os setores privados, mais especificamente grupos empresariais atuantes no Centro, para o desenvolvimento de ações integradas,

55O centro de Fortaleza/CE e a atual proposta de reabilitação: do que se trata?

Page 55: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

mas não conseguimos identificar nenhuma ação concreta no sentido de um prazo para se iniciar a execução do referido Plano.

A realidade nos mostra as dificuldades dos governos municipais em implementar as políticas sociais e públicas projetadas para a população e quando se trata de alterar o contexto urbano e habitacional, setor nitidamente permeado pelas relações de poder que envolvem especulação imobiliária e necessidade de ampla articulação política e técnica para se efetivar, tal tarefa se torna ainda mais difícil. Dessa maneira, o Centro de Fortaleza segue a passos lentos diante da efetivação de mudanças urbanas e habitacionais concretas do seu espaço urbano e da viabilização de melhorias das condições habitacionais e sociais para a população que lá reside e freqüenta.

ABSTRACT: This article has the objective to analyze the current version of the Habitation Plan for Whitewashing of the Central Area of Fortaleza/CE - PHRACF, reflecting on the proposals of urban and habitation politics presented by the Municipal Public Power for this territory. For in such a way, we bring reflections on the urban and habitation conditions in the national and local context and on the main occured alterations in the urban centers and as these influence in the current conditions of housing of the inhabitants of these territories.

Keywords: urban and habitation question, urban centers and public politics.

ArtigoRecebido: 25/05/2011Aprovado: 16/05/2011

Referências

ABIKO, Alex Kenya. Introdução à Gestão Habitacional. São Paulo: EDUSP, 1995. 31 p.

ARAÚJO, Ana Maria Matos, CARLEIAL, Adelita Neto. O processo de Metropolização em Fortaleza: uma interpretação pela migração. Scripta Nova. Revista Eletrônica de Geografia e Ciências Sociais. Universidade de Barcelona. Nº 94, 2001.

BRASIL. Estatuto da Cidade. Estatuto da Cidade: Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001. 273 p.

________. Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação. Déficit Habitacional no Brasil 2007. Brasília, 2009. 129 p.

DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. O Centro de Fortaleza na contemporaneidade. In: De cidade à metrópole: (trans)formações urbanas em Fortaleza. Fortaleza: Edições UFC, 2009. cap. 04, p. 187-227.

GONDIM, Linda Maria de Pontes. Os “Governos das Mudanças” (1987 – 1994). In: SOUSA, Simone de. Uma nova História do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. 448 p.

56 Teresa Helena Gomes SoaresHermano Machado Ferreira Lima

Page 56: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

O centro de Fortaleza/CE e a atual proposta de reabilitação: do que se trata?

_________, Linda Maria de Pontes. O Dragão do Mar e a Fortaleza pós-moderna: cultura, patrimônio e imagem da cidade. São Paulo: Annablume, 2007. 240 p.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 1992.

INSTITUTO CIDADANIA. Projeto Moradia. Programa do Partido dos Trabalhadores. São Paulo, 2000. Disponível em <www.icidadania.org.br>. Acesso em novembro/2002.

LEITE, Rogério Proença. A exaustão das cidades: antienobrecimento e intervenções urbanas em cidades brasileiras e portuguesas. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo. Vol. 25. Nº 72. 2010.

MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. 204 p.

MINISTÉRIO DAS CIDADES. Programa de Reabilitação de Áreas Centrais. Brasília: Disponível em <http://www.cidades.gov.br>. Acesso em 06/2010.

PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA - PMF. Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR. Plano Habitacional para Reabilitação da Área Central de Fortaleza - PHRACF. Fortaleza, 2009. Disponível em http://www.cidades.gov.br. Acesso em 20/06/2009.

_____________. Secretaria de Planejamento (SEPLA). Programa Morar no Centro, Levantamento de Imóveis Potenciais, 2004.

_____________. Secretaria de Planejamento (SEPLA). Estudos das vantagens competitivas do centro de Fortaleza. Fortaleza: Espaço Plano – Arquitetura e Consultoria, 2004.

ROLNIK, Raquel. Por uma Política de Reabilitação de Centros Urbanos. Revista ÓCULUM, Campinas: PUC Campinas, 2005.

RUFINO, Maria Beatriz Cruz. Regeneração Urbana e Estratégias Residenciais em Áreas Centrais: O Caso de Fortaleza (Brasil). Dissertação de Mestrado em Planejamento e Projeto do Ambiente Urbano. Universidade Federal do Ceará - Fortaleza/CE. Universidade do Porto/Portugal. 2005. 165 p.

SILVA, José Borzacchiello da. A cidade contemporânea no Ceará. In: SOUSA, Simone de. Uma nova História do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. 448 p.

57

Page 57: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

59(*) Linda Maria de Pontes Gondim é Socióloga, doutora em Planejamento Urbano e Regional e Professora associada da Universidade Federal do Ceará @ - [email protected]

Public Space, urban requalification and cultural consumption: the dragão do mar cultural center and

its surroundings

Linda Maria de Pontes Gondim *

Espaço Público, requalificação urbana

e consumo cultural: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu

entorno

Palavras-chave: requalificação urbana, espaço público, Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.

RESUMO: O artigo discute a crise do espaço público na cidade contemporânea, expressa na proliferação de formas espaciais segregadoras, como shopping centers, condomínios fechados e áreas requalificadas. O texto analisa o caso do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, cuja construção teve como um dos principais objetivos a recuperação do espaço público de Fortaleza. Tal projeto apresentou resultados ambivalentes. Se, por um lado, seus espaços abertos são utilizados por vários tipos de pessoas, a frequência aos museus e espetáculos é restrita a pessoas de classe média ou alta, por conta do limitado capital cultural da população de baixa renda. No entorno do CDMAC, predominam usos lucrativos como bares, restaurantes e casas de shows. Mas é conspícua a presença de grupos de jovens do lado de fora desses espaços, promovendo a gratuidade do consumo de música e dança, e interagindo com o comércio informal (e barato) de bebidas e comidas. Tais práticas fogem aos usos previstos, expressando uma sociabilidade no sentido que Simmel atribui ao termo: tratam-se de trocas afetivas endógenas, que ocorrem entre grupos constituídos por pares. Como tal, a sociabilidade permite a convivência de usos e contra-usos, os quais expressam lutas na e pela cidade.

crise do espaço público nas cidades contem-porâneas

A morte do espaço público ou sua difícil sobrevivência nas grandes cidades contemporâneas tem sido um tema recorrente nas análises que tratam das transformações do espaço urbano. Por um lado, a mercantilização do

A

Page 58: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

60 Linda Maria de Pontes Gondim

patrimônio, da cultura e da paisagem, por meio de projetos de requalificação de áreas históricas ou frentes marítimas, contribuiria para a gentrificação desses espaços (LEITE, 2004; SORKIN, 1992). Por outro lado, a escalada da violência, a erosão da ideologia igualitária e a obsessão pela segurança criam “cidades de muros”: guetos, territórios controlados por gangues juvenis ou traficantes de drogas, condomínios fechados, shopping centers, praças e parques cercados (CALDEIRA, 2004; SORKIN, 1992).

As críticas aos projetos de requalificação urbana convergem na avaliação de que estes seriam incapazes de “ressuscitar” os lugares de convivência entre pessoas de classes e grupos sociais diferentes. A exclusão social seria mesmo acentuada por eles e pelo tipo de planejamento que lhes é associado. Apresentado como uma reversão da lógica racionalista, totalizante e autoritária do urbanismo modernista, o planejamento estratégico priorizaria a “gestão participativa” mediante a formação de parcerias entre governo, empresários e demais atores do processo de construção do espaço urbano. Apesar da retórica democrática, as intervenções voltadas para a requalificação do patrimônio histórico-arquitetônico e de frentes marítimas, inspiradas nessa perspectiva, nada mais seriam do que “estratégias” – no sentido que De Certeau (1999) confere ao termo – para disciplinar o consumo do espaço urbano. Os usuários deste seriam selecionados pelo tipo de atividades promovidas nos espaços requalificados, incompatíveis com o capital cultural e os recursos materiais da população de baixa renda.

Alguns autores, como Rogério Proença Leite (2004) e José Guilherme Magnani (2002), questionam essa visão, que obscurece a importância das “práticas” dos citadinos, que se opõem às “estratégias” do poder estatal ou empresarial (De CERTEU, 1999). Assim, é possível pensar em “contra-usos” nos espaços requalificados, capazes de subverter a lógica dos projetos e criar outros lugares, mediante a “[...] demarcação socioespacial da diferença e das ressignificações que esses contra-usos realizam” (LEITE, 2004: 215). Essa abordagem implica uma concepção não normativa e dinâmica do espaço público, condizente com o conceito de sociabilidade proposto por Georg Simmel. Tal conceito ressalta a forma, e não os conteúdos da interação social. Ou seja, independentemente desses conteúdos, a sociabilidade significa o convívio prazeroso entre “iguais”, no sentido de que características “inteiramente pessoais” e fatores “inteiramente materiais” (SIMMEL, 2006: 69) são abstraídos.

A sociabilidade permite a prevalência do “nós”, e esse “nós” tanto pode tolerar, como entrar em conflito com “os outros”. O tipo de relação entre o “nós” e “os outros” não altera a natureza da sociabilidade, que é sempre baseada em trocas afetivas e prazeirosas entre aqueles que dela participam,

Page 59: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

61Espaço Público, requalificação urbana e consumo cultural: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu entorno

ou seja, “trocas endógenas”. Assim, o medo e a violência podem estar lado a lado com a sociabilidade, que ocorre dentro de grupos constituídos por pares, e não entre grupos desiguais, ou mesmo diferentes. Essa visão é compatível com a convivência entre “usos” e “contra-usos”, na linha de Rogério Cerqueira Leite (2004), e aponta para uma concepção de espaço público não idealizado conforme modelos utópicos. Estes, via de regra, tomam como referência períodos históricos e espaços geográficos restritos e idealizados, como a polis grega na época de Péricles (ARENDT, 1989) ou a esfera pública dos salões e cafés da Europa ocidental nos séculos XVII e XVIII (HABERMAS, 1984).

Essas rápidas considerações teóricas são relevantes para analisar um projeto de requalificação da antiga área portuária de Fortaleza, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), construído em 1998 e inaugurado oficialmente em abril de 1999. Sua construção teve como um dos objetivos norteadores a recuperação do espaço público em Fortaleza, o que seria realizado tanto pela concepção do projeto arquitetônico do centro cultural, como pelo efeito catalisador de novos usos que este promoveria e que se estenderiam a seu entorno. Desenhado de forma a permitir a livre circulação e o acesso de um público diversificado a seus equipamentos, o Dragão do Mar contribuiria para favorecer o encontro e a convivência de diferentes grupos sociais: turistas e nativos, jovens e velhos, pobres e ricos, famílias e consumidores individuais (GONDIM, 2007).

O edifício do CDMAC combina uma arquitetura que se diria “pós-moderna” – pelas citações e hibridismo que a caracterizam – e também moderna, sobretudo por sua relação com as edificações remanescentes do seu passado histórico de área portuária (GONDIM, 2007). À época da construção do Dragão do Mar e mesmo alguns anos depois, os edifícios em seu entorno tinham aspecto deteriorado, mas a expectativa era que o novo edifício propiciasse a recuperação desse patrimônio. Nesse sentido, prevaleceu a “concepção viral” do urbanismo modernista, “na qual as qualidades radicais de alguma coisa totalmente fora de contexto infestam e colonizam o que a circunda” (HOLSTON, 1996: 246).

Espaço público como lugar dos diferentes: o público do CDMAC

Mais de dez anos depois de sua inauguração oficial, o Dragão do Mar continua a oferecer uma programação cultural diversificada, acessível a um público heterogêneo: concertos de música clássica, shows de rock; exposições de arte

Page 60: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

moderna e contemporânea; espetáculos teatrais, performances, debates sobre filmes, lançamento de livros, contação de histórias infantis etc. (GONDIM, 2007). Não caberia, aqui, entrar no mérito dessa programação, nem tampouco discutir o CDMAC como parte da política cultural do Governo Estadual, que o mantém1. O foco do presente artigo é a contribuição que um projeto de requalificação urbana pode oferecer para a criação ou manutenção de espaços públicos na cidade; nestes, o exercício da cidadania adquire visibilidade, por se expressar materialmente no convívio dos citadinos em locais não privados, cujo acesso é livre (gratuito e sem constrangimentos). Trata-se da autêntica urbanidade, “[...] baseada na proximidade física e na livre movimentação e na sensação de que a cidade é nossa melhor expressão de um desejo por uma coletividade” (SORKIN, 1992, p. xv).

Nessa perspectiva, qual seria a contribuição do CDMAC para a urbanidade de Fortaleza? Um aspecto a considerar é a co-presença de pessoas heterogêneas. A esse respeito, qualquer observador mais atento discernirá no CDMAC uma pluralidade de visitantes que percorrem seus espaços abertos, como constatou pesquisa realizada pela autora (GONDIM, 2007: 197)2. Nas observações sistemáticas realizadas, constatou-se a frequência de pessoas cujo aspecto (vestuário, cor da pele, etc.) denota pertença a classes e grupos sociais menos favorecidos. Também estão representadas faixas etárias e situações sociais diversificadas: famílias inteiras, casais de namorados, grupos de adolescentes, idosos, crianças em idade escolar, pré-escolar ou mesmo bebês, acompanhadas pelas mães ou pais. Tal diversidade pode ser vista sobretudo ao longo da passarela que liga os três edifícios em que se divide o equipamento cultural.

A situação é diferente, porém, quando se tratam de espaços fechados, onde ocorrem atividades culturais: é diminuta a presença de pessoas de baixa renda em concertos e espetáculos de dança, mesmo quando o ingresso aos mesmos tem preço simbólico. Ainda que o acesso aos dois museus do CDMAC – o Memorial da Cultura Cearense e o Museu de Arte Contemporânea – seja gratuito aos domingos, eles atraem um público bem mais homogêneo do que os espetáculos (gratuitos) nos espaços abertos.

Evidentemente, vários fatores, além do preço do ingresso, inibem o consumo de bens culturais. Além de outras despesas, como transporte e lanches, há que considerar aspectos culturais relevantes, como falta de interesse por museus, associada ao nível de escolaridade e, consequentemente, à classe social. Trata-se de um fator crucial mesmo em países com mais alto nível de desenvolvimento econômico, como a França (BOURDIEU; DARBEL, 1969). Apesar da ênfase do governo francês, ao longo de várias décadas,

62

1 O CDMAC, oficial-mente, é uma Organi-zação Social, mas o Go-verno Estadual é seu principal mantenedor. 2 Pesquisa realizada com o apoio do Conse-lho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Linda Maria de Pontes Gondim

Page 61: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

em programas de difusão da cultura erudita (por meio de Casas de Cultura, museus, bibliotecas, salas de espetáculos etc.), a conquista de novos públicos atingiu principalmente as classes médias, “no duplo sentido de um aumento do número dos ativistas culturais dessas classes e de uma intensificação do consumo cultural de suas frações já mais praticantes” (PASSERON, 1995: 337).

No caso do Brasil e, em particular, de Fortaleza, onde a pobreza se associa a uma extrema desigualdade social, é ainda mais difícil para os excluídos ultrapassar as barreiras simbólicas que se erguem contra eles. A esse respeito, é pertinente o comentário de uma urbanista sobre o CDMAC:

A própria monumentalidade do Dragão, que ignora a escala do antigo conjunto e não estabelece diálogo com os edifícios vizinhos, talvez tenha construído uma ‘imagem de arrogância’. O Dragão promoveu uma certa ‘assepsia’ e uma apreensão do espaço totalmente distinta do que antes havia. Sabe-se que há conteúdos psicológicos no espaço. Talvez alguns grupos sociais enxerguem, agora, ‘portas invisíveis’ num espaço que outrora lhes fora familiar (apud GONDIM, 2007: 212)3.

O entorno do CDMAC: usos e contra-usos

As edificações existentes nos quarteirões adjacentes ao edifício do CDMAC foram quase todas restauradas e ocupadas com novos usos. Desse ponto de vista, a concepção do Centro Cultural como catalisador de mudanças teve êxito, evitando a destruição do único conjunto arquitetônico remanescente do passado4. No entanto, pode-se dizer, parodiando Holston, que o “vírus” da cultura inoculado pelo CDMAC mostrou-se bem pouco resistente: é notória a predominância de bares, restaurantes, danceterias e casas de show em seu entorno. Galerias de arte, teatros, produtoras de cinema e vídeo foram expulsos pela valorização imobiliária, que tornou proibitivos os aluguéis ou a compra dos imóveis para fins pouco lucrativos. Os usos comerciais, além de invadirem as calçadas, tornam sua presença conspícua pela polifonia que provocam, pois bares e restaurantes vizinhos, instalados a céu aberto, oferecem, ao mesmo tempo, “música ao vivo” em altos decibéis. A ocupação de calçadas e ruas para fins privados encurrala os pedestres, enquanto os muitos veículos atulham as ruas estreitas à procura dos poucos lugares para estacionar. No entorno do Dragão do Mar, especialmente nas ruas pouco iluminadas e nas proximidades das casas de show, verifica-se a presença de pedintes, prostitutas, drogados e vendedores de drogas, que a mídia e alguns frequentadores responsabilizam pelos atos de violência que se tornaram comuns na área.

63

3 O depoimento da urbanista foi colhido em pesquisa realizada pela Autora (GONDIM, 2007), que optou por manter o anonimato da informante, em conso-nância com o Código de Ética da Associação Internacional de Socio-logia. 4 Críticos argumentam que a construção de um edifício monumen-tal, em contraste com os sobrados e outros edifícios da antiga área portuária, rompeu a escala existente, com-prometendo o conjunto arquitetônico.

Espaço Público, requalificação urbana e consumo cultural: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu entorno

Page 62: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Contrastando com a permanência do Dragão e dos casarões de sua vizinhança imediata, a área do entorno tornou-se território da efemeridade, como constatou um pesquisador:

[Naquela área] Nada parece ter uma vida superior a dois anos. Os clubes noturnos e bares inauguram e fecham em um intervalo de tempo muito curto. Uma paisagem efêmera, onde concretamente transitamos entre alguns estabelecimentos que funcionam, outros fechados e alguns em ruínas. Em frente ao clube por mim investigado, há uma edificação em ruínas. [...] Ali já me contaram que se abrigam sem-tetos e batedores-de-carteira, podendo ser também o lugar para ‘fumar um’, ou simplesmente ‘fazer pegação’. Já vi também policiais adentrando ali, buscando apreender drogas ou alguns responsáveis por assaltos. (GADELHA, 2009: 114)

Mas não seriam essas presenças “indesejáveis” expressão de um “contra-uso”, possibilitado pela própria existência do centro cultural e dos equipamentos de lazer que se lhe seguiram? Não se trata de uma pergunta retórica, pois ela pode conduzir à armadilha de romantizar a delinquência ou atribuir aos delinquentes o papel de “agentes da mudança social”, ou mesmo de “nova classe revolucionária”. Talvez esse equívoco possa ser evitado se consideramos um exemplo menos carregado de valores: a presença de jovens nas proximidades de locais onde o lazer é comercializado.

Nos clubes, casas de shows e adjacências, o consumo não se restringe ao que é ofertado de forma previsível, como música, dança, shows, bebidas e comidas. Consome-se também o ver e o ser visto, os encontros, o prazer de ser parte de um grupo – a sociabilidade, enfim. A rua se torna

[...] passarela onde desfilam as turmas seus estilos (as gramáticas corporais do visual de vestes pretas da turma do metal; dos scarpin, adidas e all stars da turma indie; da maquiagem preta e dos casacos da turma gótica, dos cabelos coloridos etc.) (GADELHA, 2009: 115)

O público apropria-se das ruas e calçadas e o “lado de fora” se torna o lugar dos encontros e do compartilhamento, inclusive de bebidas ou drogas:

embora o clube esteja aberto a partir das vinte e três horas, somente da meia-noite e meia ou uma hora, em diante, é que o publico começava a entrar no local. [...]

64 Linda Maria de Pontes Gondim

Page 63: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Enquanto isso todos ficavam do lado de fora, bebendo ou conversando com os amigos, e isso de maneira quase ritual, já que todos os sábados era assim. O ‘lado de fora’ era o lugar do encontro, das conversas nas rodinhas de amigo, do ‘baseado’ partilhado embaixo das arvores. (GADELHA, 2009: 123-124).

Esses grupos juvenis, ao preferirem o “lado de fora”, promovem uma gratuidade do consumo e, ao mesmo tempo, exercem a sociabilidade no espaço urbano à revelia do que foi pensado no projeto do CDMAC e do que é esperado pelos empresários atraídos pelo lugar. A permanência de jovens nas ruas e calçadas promove um diálogo com o comercio informal, onde se compram lanches e bebidas a baixo preço – evidência de um “contra-uso” que vai de encontro ao que foi planejado pelo governo e ao que é desejado pelos empresários do setor formal. Há também o ilícito, como as drogas e o sexo em lugares públicos; ou o indesejável, como a poluição sonora, o lixo e a lama.

Cabe aqui uma restrição ao conceito de “contra-usos” para caracterizar essas práticas alternativas, pois tal conceito induz ao equivoco de classificar a priori os espaços “gentrificados” como “usos regulamentados”. Embora tenham sido concebidos pela lógica estratégica do poder estatal e dos interesses empresariais, os projetos de requalificação urbana, por si só, não tem o poder de fomentar, nem tampouco excluir, a sociabilidade entre desiguais – objetivo maior das promessas de recriação do espaço público por meio desses projetos. Convém lembrar que o “impulso sociável” fundamenta-se num princípio democrático: “cada indivíduo deve garantir ao outro aquele máximo de valores sociáveis (alegria, liberação, vivacidade) compatível com o máximo de valores recebidos por esse indivíduo” (SIMMEL, 2006:69; itálicos no original). Uma sociedade que não sabe distribuir sua riqueza com um mínimo de equidade dificilmente conseguirá que os incluídos compartilhem “alegria, liberação e vivacidade” com os excluídos dos direitos de cidadania.

Nesse contexto, a ideia de “práticas de cidadania insurgente” (HOLSTON, 1996) assume valor heurístico por ser aplicável tanto aos que são plenamente “cidadãos”, como àqueles que não têm acesso, no todo ou em parte, a bens materiais e culturais necessários para o desfrute da vida urbana. A “cidadania insurgente” encontra-se, assim, na interseção de dois processos: de um lado, o aumento da visibilidade e a expansão das reivindicações dos grupos subordinados ou marginalizados; de outro lado, a emergência ou consolidação de novas formas de violência e de segregação, que buscam conter e controlar aqueles grupos. Exemplificando: condomínios fortificados, shopping centers, praças cercadas e bairros gentrificados, assim como territórios de gangues, ocupações de terras urbanas, bairros de homossexuais e minorias étnicas,

65Espaço Público, requalificação urbana e consumo cultural: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu entorno

Page 64: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

são partes da luta – ou melhor, de uma guerra – na cidade e pela cidade. Trata-se, em todos os casos, de espaços para a prática de sociabilidades, que não excluem disputas pelo direito à cidade.

Nessa “guerra”, não há a priori perdedores e ganhadores. O que se sabe de antemão é que a violência intergrupos não elimina – pode até aumentar – a sociabilidade intragrupos. Esta, para os participantes, não é “certa” nem “errada”: é apenas necessária para a sobrevivência material, psíquica e cultural dos indivíduos. Entretanto, a falta de comunicação e convívio entre os diferentes (re)cria e acentua desigualdades, comprometendo o próprio sentido da vida urbana, ou seja, a urbanidade.

Considerações finais

A necessidade de exercer a sociabilidade na cidade moderna decorria da massiva co-presença de “estranhos” nos lugares públicos (SENNET, 1995). Na cidade contemporânea, a crescente desigualdade social e o aumento da segregação espacial têm sido agravados pelas políticas econômicas neoliberais, que preconizam cortes nos gastos públicos com programas sociais compensatórios. Esse tem sido o cenário do incremento da violência, que atinge maior visibilidade nas metrópoles.

O medo da violência tem gerado respostas que acentuam ainda mais a segregação das classes sociais, por meio da criação de espaços enclausurados para a moradia, o lazer e outras atividades. O outro lado dessa mesma moeda é a guetificação dos pobres, confinados em favelas e periferias sujeitas ao controle de traficantes, gangues, milícias. Uma das estratégias utilizadas para romper essa dinâmica tem sido o investimento público em grandes projetos de requalificação urbana, que geralmente combinam políticas culturais com intervenções no patrimônio histórico-arquitetônico.

A construção do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura em Fortaleza é uma expressão dessa tendência, e teve como um de seus objetivos contribuir para a recuperação do espaço público na cidade. A ideia era que o equipamento cultural seria um catalisador da recuperação da área, atraindo para ela outros usos culturais e contribuindo para a revitalização econômica do seu entorno. Havia uma preocupação explícita em assegurar que o CDMAC não fosse voltado somente para as classes de maior poder aquisitivo, e que propiciasse a convivência entre pessoas heterogêneas em termos econômicos e culturais.

Em parte, esse objetivo foi atingido, tanto que é notória a presença de diversos grupos e tipos de pessoas nos espaços abertos do edifício. Entretanto, a

66 Linda Maria de Pontes Gondim

Page 65: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

frequência às atividades culturais não tem a mesma diversidade, devido, principalmente, à desigual distribuição de capital cultural entre as pessoas que compõem o público do CDMAC.

Quanto ao entorno, é verdade que o CDMAC atraiu novos usos que permitiram a revitalização da área e a recuperação física do seu patrimônio arquitetônico. Tais usos, entretanto, ficaram restritos àqueles que proporcionam maior lucratividade, como bares, restaurantes e casas de show, em detrimento de atividades culturais como teatros e galerias de arte. A presença destas nas proximidades do Centro Cultural tornou-se inviável, devido à excessiva valorização imobiliária da área.

Isto não significa simplesmente que o imperativo do mercado suplantou a intervenção estratégica do Estado. Afinal, o mundo da vida, longe de ser binário, é feito por muitos agentes, cujas lógicas não são apenas estratégicas. Como lembra De Certeau (1999), as prática cotidianas dos sujeitos podem se transformar em táticas que se contrapõem a objetivos estratégicos, sendo capazes de modificar, dificultar ou mesmo impedir a sua realização.

Nesse sentido, a situação do espaço público no entorno do CDMAC é ambígua, pois nele convivem usos e contra-usos. A prevalência dos interesses comerciais não elimina o compartilhamento de comidas e bebidas compradas ao setor informal pelos frequentadores que ficam “lá fora” – tanto os que podem, como os que não podem pagar o ingresso para entrar nos ambientes privados. A festa não se restringe ao espaço interno dos clubes e casas de show, pois nas calçadas e ruas próximas, jovens fazem a sua “festa pública”. O ver e o ser visto é também uma forma de consumo, em que predomina a estética.

A rua, nessas áreas, é lugar de surpresa e variedade. Prazer e estética se combinam com medo e perigo. Nos lugares freqüentados por playboys de classe média, pessoas e práticas “indesejadas” também se fazem presentes. Pelas ruas onde circulam adolescentes em busca de um som legal para dançar, transitam garotas e garotos de programa em busca de clientes, viciados em busca de drogas, traficantes em busca de viciados. Os encontros entre esses diferentes sujeitos no espaço público não constituem manifestações de sociabilidade, pois dificilmente há trocas afetivas entre eles.

Como a “morte rubra” no conto de Poe 5, os excluídos aproveitam-se dos bailes de máscaras para se infiltrar e contaminar justamente os que se enclausuram para se proteger da violência. A presença dos “indesejáveis” nos espaços gentrificados parece ser inofensiva na medida em que se limitem a brincar e a servir ao consumo. Mas sua visibilidade tem consequências para a busca da cidadania.

67

5 Trata-se do conto “The masque of the red death”, de Edgar Allan Poe (QUINN, 1984 [1842]).

Espaço Público, requalificação urbana e consumo cultural: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu entorno

Page 66: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1989.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, 2000.

BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. L’amour de l’art; les musées d’art européens et leur public. Paris: Les Editions de Minuit, 1969.

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. v. 1. Artes de fazer. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

GADELHA, Kaciano. Sobre estéticas musicais, culturas juvenis e espaço urbano: notas de uma etnografia no entorno do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. In: BARREIRA, Irlys; BARREIRA, César (Orgs.). A juventude e suas expressões plurais. Fortaleza: Edições UFC, 2009. p.111-132.

GONDIM, Linda M. P. O Dragão do Mar e a Fortaleza Pós-Moderna: cultura, patrimônio e imagem da cidade. São Paulo: Annablume, 2007.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

HOLSTON, James. Espaços de cidadania insurgente. Revista do Patrimônio, Rio de Janeiro, n. 24, 1996, p. 243-253.

LEITE, Rogério Proença. Contra-usos da cidade; lugares e espaço público na

68

ABSTRACT: This article discusses the crisis of public space in the contemporary city, which appears in the proliferation of segregating spatial forms such as shopping centers, gated residential areas and gentrified areas. The text analyses the case of Dragão do Mar Center of Art and Culture, whose building had among its main objectives the recovery of Fortaleza’s public space. This project presented mixed results. On one hand, its open spaces are used by different types of people; on the other hand, in its museums and shows the attendance is mostly high and middle class, due to the limited cultural capital of low income population. On the vicinity of Dragão do Mar, profitable uses such as restaurants, bars and dancing places prevail. But the presence of young people outside these places is conspicuous, promoting free consumption of music and dance, and interacting with informal venders of cheap food and beverages. Such practices escape from the foreseen uses, expressing sociability in the sense defined by Simmel: they are endogenous affectionate exchanges that occurred between peers. As such, sociability permits the coexistence of uses and counter-uses, which express struggles in and for the city.

Keywords: gentrification; public spaces; Dragão do Mar Center for Art and Culture.

ArtigoRecebido: 07/05/2011Aprovado: 30/05/2011

Linda Maria de Pontes Gondim

Page 67: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

experiência urbana contemporânea. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

MAGNANI, José Guilherme C. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 49, jun. 2002, p. 11-29.

PASSERON, Jean-Claude. Figuras e contestações da cultura. In: ___ O raciocínio sociológico; o espaço não popperiano do raciocínio natural. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 325-373.

POE, Edgar Allan. The masque of the red death. In: QUINN, Patrick (Ed.). Edgar Allan Poe: poetry and tales. Nova York: Library of America, 1984, p. 485-490.

SENNET, Richard. O declínio do homem público; as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SIMMEL, Georg. Questões fundamentais de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

SORKIN, Michael (Ed.). Variations on a theme park: the American city and the end of public space. Nova York: Hill and Wang, 1992.

69Espaço Público, requalificação urbana e consumo cultural: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu entorno

Page 68: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

71(*) Roselane Gomes Bezerra é Pós-doutoranda do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. @ - [email protected]

Narratives from the virtual city

Roselane Gomes Bezerra *

Narrativas da cidade virtual

Palavras-chave: projetos; política urbana; publicidades; arquitetura; narrativa.

RESUMO: O objetivo deste artigo é perceber que concepção de cidade e de política urbana os gestores pretendem transmitir por meio da publicidade de projetos de requalificação. Os referentes empíricos desta pesquisa foram imagens de futuras edificações em outdoors, revistas e em maquetes de visualização tridimensional, nas cidades de Almada, em Portugal, e de Fortaleza, no Brasil. Tendo como base as representações dos planos de intervenção, examinei como os projetos de arquitetura estão sendo apropriados pelos gestores nas narrativas do processo de reforma urbanística que as cidades estão a vivenciar nos últimos anos.

ntrodução

Ao percorrer as ruas de uma cidade percebemos que a urbe expressa um importante meio de comunicação, quotidianamente defrontamo-nos com diferentes anúncios, sinalizações, grafites e presenciamos também uma propagação de publicidades acerca de projetos de intervenção a serem implementados pelos administradores públicos. Essa difusão de imagens evidencia que a linguagem visual muitas vezes se sobrepõe à arquitetura no espaço citadino, especialmente quando somos convidados a ingressar na “cidade virtual”1 projetada por arquitetos responsáveis pelos planos de “requalificação” urbana.

I1 Ao utilizar o termo “cidade virtual” estou me referindo aos no-vos espaços projetados pelos arquitetos com o objectivo de estabele-cer uma nova imagem para a cidade, espe-cialmente por meio de intervenções relacio-nadas aos projectos de “requalificação” urbana.

Page 69: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

72 Roselane Gomes Bezerra

Acreditando que esse fenômeno revela processos sociais pertencentes a própria cultura urbana contemporânea, o argumento desse artigo é perce-ber que concepção de cidade e de política urbana os gestores pretendem transmitir por meio da publicidade de projetos de requalificação. Ou seja, de representações com simulação de novas configurações espaciais.

Elegi essa temática como objecto de pesquisa a partir da observação de publi-cidades de projetos de intervenção nas cidades de Fortaleza, no Brasil, e de Almada, em Portugal2. Partindo da premissa de que a relação entre imagem e texto constitui um melhor significado para a comunicação o suporte de análise para o entendimento dessa problemática foi a classificação dos textos verbais e das iconografias presentes em algumas publicidades oficiais de projetos de intervenção nessas cidades. Porém, admitindo que as representações3 articulam não somente códigos visuais ou verbais e convenções, mas também práticas sociais (CHAPLIN, 1994), entendo que não se pode compreender a propagação dessas imagens sem pensar o objecto dessas representações, ou seja, as políticas de transformações nas cidades.

Esse processo de intervenção urbana que visa estabelecer novas apropriações espaciais faz parte das políticas de diversas cidades nas últimas décadas4. Designada pelos gestores como “requalificação”, “reabilitação” ou “revita-lização” de áreas históricas, de zonas consideradas degradadas ou de antigas instalações industriais, os administradores buscam uma mudança nas apro-priações espaciais com o objetivo de valorizá-las e atrair novos usos, conside-rados como mais qualificados. Esse fenómeno já muito estudado na sociologia urbana (HARVEY, 1993; ZUKIN, 1995; FEATHERSTONE, 1995; SMITH, 1996; JAMESON, 1997) é definido por meio de diferentes termos e também sentidos, sendo atribuído para definir intervenções em áreas residenciais ou espaços públicos. Autores brasileiros com Rubino (2003; 2009) se refere a esse processo como “enobrecimento urbano”, Leite (2004; 2009) opta por não traduzir esse conceito e o classifica como gentrification, para esse autor esse processo trata-se de um tipo específico de intervenção que modifica a paisa-gem urbana por meio de um forte apelo visual, adequando-a às demandas de valorização imobiliária, de segurança, ordenamento e limpeza urbana. O autor português, Paulo Peixoto (2009), fala do carácter polissémico desses léxicos nos discursos jornalísticos, técnicos, políticos e científicos. Fortuna (1997) denomina como “destradicionalização” as intervenções urbanas contempo-râneas que voltam-se para a revalorização da cultura e do património com vistas à adequação das cidades no contexto de “concorrência intercidades”

Os novos espaços planeados para a cidade são divulgados pelos gestores por meio de publicidades que apresentam os projectos dos arquitetos em

2 Fortaleza é a capital do Estado do Ceará localizada no nordeste do Brasil. Incluindo a Região Metropoli-tana, Fortaleza possui 3.655.259 habitantes, sendo a sexta cida-de mais populosa do Brasil, e a segunda do Nordeste. Almada, no início dos anos 2000, tornou-se a sexta ci-dade mais populosa de Portugal, com cerca de 160 000 habitantes e está limitada a leste pela cidade do Seixal e a sul por Sesimbra, possui uma longa costa a oeste para o Oceano Atlântico, e a norte e nordeste abre-se para o Estuário do Tejo em frente aos municípios de Lisboa e Oeiras.

3 O conceito de “re-presentações” foi de-finido por Durkheim (1970) como produ-ções mentais sociais. Para este autor, a so-ciedade exerce uma acção coercitiva sobre as consciências indi-viduais daí o carácter “colectivo” das repre-sentações. Moscovici (1981), introduz na noção de representa-ção a ênfase no sujeito individual. Este autor confere a sociedade um peso diferenciado da perspectiva socio-lógica durkheimiana, ampliando assim este conceito, que se dife-rencia também pela adopção do comple-mento “sociais” no lugar de “colectivas”. Para Jodelet (2001) as representações sociais são dotadas de “vitali-dade, transversalidade e complexidade”, elas circulam nos discur-

Page 70: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

73Narrativas da cidade virtual

fotografias, em vídeos e em maquetes das edificações. Além da organização de eventos para mostrar a “cidade virtual”, os decisores públicos tornam as representações, dos novos espaços, conhecidas da população através da divulgação em revistas e outdoors. Os futuros espaços resultantes da edificação ou restauração de equipamentos, especialmente voltados para a cultura ou lazer, são anunciados em imagens que expõem uma configuração harmoniosa e com uma certa higienização espacial e social, muitas vezes há uma espetacularização da arquitetura em edifícios grandiosos em que a estética é demasiadamente valorizada.

A partir do exame das narrativas verbais e visuais5, da “cidade virtual”, nas publicidades de projectos de “requalificação” em Almada e em Fortaleza percebi como essas representações seriam importantes para pensar a temática da cidade e da ação de visibilidade de uma política urbana. Essa análise permitiu perceber que antes dos novos “lugares” se consolidarem, por meio da execução dos projetos, as publicidades dos planos arquitectónicos estão a desempenhar não só o papel de apresentar aos potenciais utilizadores os es-paços “projetados”, mas também estão a ser utilizadas pelos gestores públicos como uma figura de linguagem, que fetichiza a estética da arquitectura e a transforma num meio de anunciar uma ideia de urbanidade. Nesse sentido, ao observar essas imagens dos projectos de intervenção a minha primeira questão foi: que concepção de cidade e de politica urbana os gestores pre-tendem transmitir por meio da publicidade de projectos de transformação urbana? O fio condutor dessa análise foi pensar a publicidade dos projectos como narrativa de um processo de reforma urbanística que as cidades vêm vivenciando nos últimos anos. Trata-se da produção simbólica concernente a mediatização de uma política urbana.

A cidade da passarela

O fato da sociedade contemporânea está inundada por imagens pode existir a possibilidade de uma menor consciência crítica a respeito da concepção de cidade que está a ser apresentada nas publicidades dos projetos de in-tervenção urbana. Guy Debord (1997), já nos anos 1960, chamava a atenção para o fenómeno da imagem vir substituindo a realidade, para esse autor a própria sociedade se transformou em espectáculo, e tudo é instantaneamente relacionado a imagem e a mercadoria. Leach (2005) concorda com essa previsão de Debord e acrescenta que actualmente vivemos num mundo de publicidade e bens de consumo, que nos vende a nossa própria imagem. Para Leach o slogan: “Veja, você também pode ser assim” é uma maneira da publicidade vender não só o produto, mas um estilo de vida. Direccionando essa associação para as publicidades dos projetos de intervenção urbana,

sos, são veiculadas em mensagens e imagens mediáticas e concre-tizadas em condutas e em organizações mate-riais e espaciais.

4 No caso da cidade de Almada as inter-venções realizadas são comparticipadas pelo Quadro de Referência Estratégico Nacional – QREN que constitui o enquadramento para a aplicação da política comunitária da Europa de coesão económica e social em Portugal no de período 2007-2013, que por sua vez é fruto de uma candidatura do Município de Almada ao Programa Polis XXI – Parcerias para a Re-generação Urbana. Em Fortaleza são fundos do governo federal para o desenvolvimento do turismo.

5 Assim como Barrei-ra (2007), considero como narrativas os discursos, imagens e representações que de-sempenham o papel de apresentar um bairro ou uma cidade.

Page 71: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

podemos supor que a representação da “cidade virtual” pode está induzindo a seguinte afirmativa, “Veja, a sua cidade também pode ser assim”. Nesse caso, assim como no “reino dos salões de beleza, passagens de modelos, cabelos pintados e pestanas falsas (…) que re-(a)presenta a realidade e dita o gosto” (LEACH, 2005: 102) estamos diante de um reino dos ateliês de arquitectura e imagens de espaços urbanos bem desenhados e ocupadas de forma ordenada que também “dita o gosto”.

Essa tendência vem contribuindo para uma concorrência entre as cidades. Nesse processo os gestores adoptam a busca por financiamentos para exe-cução de projetos de intervenção. Os administradores competem entre si na procura por ateliês de arquitetura que desenvolvam planos capazes de transformar a imagem de bairros ou mesmo de cidades. Assim, a política urbana se volta predominantemente para uma image-making que sustentaria a busca de rentabilidade econômica mediante as práticas de “renovação urbana” voltadas para uma city marketing (ARANTES: 2001).

Especialistas no marketing urbano falam na necessidade de realizar um diagnóstico das características da cidade e dos mercados a quem ela pode ser vendida, examinando adequadamente o tipo de consumidor virtualmente sensível aos atributos locais que a cidade oferece ou pode oferecer (KOTLER, HAIDER, REIN, 1994); ou seja, a concorrência entre as cidades tem como fim a venda de seus atributos, mas também passa por um conceito, uma marca como na divulgação das mercadorias.

Nesse contexto, as publicidades dos espaços urbanos virtuais, adquirem o papel de seduzir os usuários da cidade e visitantes e assim como os mane-quins numa passarela expõem uma nova concepção da urbe. Essa ideia, que os gestores transmitem por meio da propagação dos projectos de intervenção está construindo a “cidade da passarela”, a qual tem como actor principal os arquitectos, pois são estes que elaboram a urbe ideal, limpa, harmoniosa, imponente e bela.

Assim, espaços são inventados, que significa na língua portuguesa desco-bertos, imaginados, arquitetados, idealizados, urdidos ou tramados, e como vivemos em uma “sociedade do espectáculo” os projectos dos arquitectos tornam-se o elemento central capaz de legitimar uma política que tem como componente principal uma mudança de imagem. Como informa La Cecla (2011: 32), “o arquitecto pousa a sua capa sobre a cidade para garantir que a cidade está na moda”. Desta forma, eles são os porta-vozes dos gestores e o seu ofício a narrativa adequada para justificar o novo conceito de cidade.

74 Roselane Gomes Bezerra

Page 72: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Nessa lógica de urbanidade importa menos as apropriações vernáculas e mais as edificações com capacidade para atrair novos utilizadores. Atraídos pelas representações, os habitantes e visitantes das cidades estão se acostumando a presenciar publicidades de projectos que envolvam, especialmente, estru-turas de lazer, contemplação e cultura, é uma espécie de estandardização dos espaços virtuais. São modelos reproduzidos e reelaborados de acordo com paradigmas já padronizados ou conforme a criatividade dos arquitectos.

Na “cidade da passarela” a estética é a palavra de ordem. Elementos con-siderados identitários da antiga urbe, como edificações emblemáticas para um determinado período, elementos de instalações industriais ou portuárias que perderam suas funções, construções que tiveram seus usos modificados ou tornaram-se espaços vazios são transformados em património e ícones da cidade ou são simplesmente destruídos de acordo com as necessidades dos projectos arquitectónicos.

Nesse conceito de cidade o importante é a construção de símbolos que exaltem a urbe. Na disputa por visitantes, e em alguns casos por jovens moradores, o papel do arquitecto é ser criativo. Esses profissionais não são convidados pelos gestores para se dedicar também aos impactos sociais que podem decorrer das intervenções. E assim, a “cidade da passarela” se apresenta aos olhos dos utilizadores dos espaços urbanos como uma solução atrativa frente aos diversos problemas que a “cidade real” se manifesta no quotidiano dessas pessoas. Ou seja, as narrativas da cidade virtual, na qual se assentam, ou “desfilam”, os espaços urbanos, abrangem idealizações de como vai ser o “lugar requalificado”.

Essa concepção da urbe que os gestores estão transmitindo por meio das publicidades dos projectos, legitimada pela assinatura e “genialidade” de um arquitecto e fundamentadas em léxicos como moderna, disciplinada ou cidade do futuro contribui para um falseamento da realidade. Pois, não podemos definir uma cidade como um “vir-a-ser”, e assim, concordo com Cancline (2008), ao afirmar que pactua com a corrente de pensamento ur-bano que vê as cidades em tensão entre o que elas são e o que queríamos que fossem. Partindo dessa ambiguidade apresento a seguir as estratégias de comunicação de alguns projectos nas cidades de Almada e de Fortaleza.

Projectos para contemplação

Os espaços que são alvos dos projectos de intervenção urbana, geralmente, encontram-se em processo de degradação espacial, social ou simbólica, ou seja, edificações deterioradas, utilizadas por pessoas marginalizadas ou

75Narrativas da cidade virtual

Page 73: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

abandonadas pelos poder público para em seguida justificar futuras inter-venções. Porém, ocorre também o fato de áreas que devido ao seu potencial para o turismo, graças a sua história, paisagem ou centralidade, sejam eleitas pelos gestores como espaços a serem “requalificados”.

Qualquer que seja a configuração do espaço as publicidades, dos planos de transformação, surgem gerando expectativas para a população. Mediante as representações gráficas ou das maquetes, das futuras edificações, essas divulgações – apresentadas em pontos estratégicos da cidade, em locais deteriorados ou eleitos para a execução de projectos – realçam a emergência de uma arquitectura monumental com relevo para os aspectos visuais, como estruturas e cores bem definidas e uma higienização social e espacial.

No caso da cidade de Almada o plano de urbanização “Almada Nascente Cidade da Água”, amplamente divulgado em revistas e outdoors, é exemplar desse processo. Este projeto foi elaborado por um consórcio de três ateliês de arquitetura, entre os quais o ateliê do arquiteto britânico Richard Rogers, vencedor do Prémio Stirling, atribuído pelo terminal do aeroporto de Barajas, em Madri e do Prémio Pritzker pelo conjunto de sua obra, a qual se destaca o Centro Pompidou em Paris, produzido juntamente com o arquiteto Renzo Piano.

O projeto “Almada Nascente Cidade da Água” tem como objectivo reabilitar um conjunto de terrenos da Margem Sul do Tejo que foi ocupado por grandes instalações industriais, agora desactivadas, como a Lisnave, a Siderurgia Nacional e a Quimiparque. Os gestores querem aproveitar o potencial pai-sagístico dessa área, que se localiza na margem do rio Tejo de frente para a cidade de Lisboa e estabelecer nesse espaço uma nova centralidade com áreas residenciais de lazer e de cultura.

A análise das representações gráficas desse plano, em revistas da Câmara Municipal6 e em outdoors, revelou que existe a divulgação da ideia de um ordenamento e uma disciplina no espaço urbano. Esse fato pode ser notado nas imagens que apresentam uma perfeita sintonia entre as pessoas, os automóveis, os transportes públicos e os espaços “reabilitados”. O aspecto de gentrification, perceptível em diversas figuras do projecto, é decorrente também da inexistência de apropriações privadas nas áreas públicas, ou seja, de pessoas indesejadas como, vendedores ambulantes, que muitas vezes ocu-pam os espaços que possuem uma grande circulação de pessoas (Figuras 1).

É importante enfatizar que esse plano apresenta uma valorização à per-manência, ou mesmo ao retorno, de alguns elementos do passado. Como

76 Roselane Gomes Bezerra

6 Em Portugal a Câma-ra Municipal corres-ponde a prefeitura para as cidades brasileiras. Como informa Bar-reira (2007) “o mo-vimento de recupe-ração e atribuição de dignidade a locais considerados históri-cos”, orienta a lógica das intervenções, e a perspectiva denomina-da “deterioração” ou “degradação” “passa a significar o outro lado da mesma moeda” (2007: 179).

Page 74: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

por exemplo, nas imagens de um guindaste, que pertencia ao estaleiro da Lisnave. Nas representações gráficas do projecto esse equipamento aparece cercado pelas novas edificações e tornou-se um elemento simbólico da futura “Cidade da Água”. Esse fenómeno pode ser definido como uma estratégia de construção de ícones da cidade. Nesse sentido, a história e a memória da devem estar fixadas nas edificações, por meio da permanência de símbolos emblemáticos. As expressões que acompanham essas representações, como por exemplo: “Almada Terra Pensada. Terra Amada”, e “Almada Nascente. Cidade da Água. O Ontem pensado. O Amanhã desejado” reforçam a ideia de que um dos objetivos dos gestores é a importação de referências do passado para a cidade do futuro (Figura 2).

As diferentes iconografias utilizadas para a divulgação desse projeto podem demonstrar também a busca de uma maior legitimidade quanto a garantia de execução. Isso pode ser constatado na apresentação de outdoors com simu-lações dos espaços projectados para a “Cidade da Água”, porém com uma frase, em forma de carimbo sobreposto a imagem que anunciava: “Plano de Urbanização Aprovado” (Figura 3).

As classificações utilizadas para definir esse plano de intervenção, nos meios de comunicação social, também foram importantes para perceber que concepção de cidade os gestores públicos de Almada pretendem transmitir. Neste caso, os léxicos: requalificar; reabilitar; criar; renovar; implantar; construir; modernizar e disciplinar, presente em diversas publicidades, re-alçam a ideia de que os gestores planeiam para essa cidade a “criação” de novos espaços urbanos que contribuam para uma nova imagem de Almada, nesse caso de uma cidade moderna, ordenada social e espacialmente e voltada para o “futuro”.

Em Fortaleza identifiquei as publicidades dos projetos de requalificação do bairro Praia de Iracema e especialmente do Aquário Ceará como casos ilustra-tivos do processo de narrativas de uma política urbana. As intervenções nessa área da cidade são classificadas como pelos gestores como reurbanização e requalificação e estão sendo idealizadas pelo governo estadual e municipal.

Conforme a arquiteta Lia Parente, coordenadora do projeto de “Requalifi-cação da Praia de Irecema” a intervenção nesse bairro tem como objetivo revitalizar toda a faixa de praia. De acordo com um decreto assinado pela prefeita durante o lançamento da campanha “Reviva Iracema”, no ano de 2007, do Grupo O POVO de Comunicação, vão ser desapropriados 27 imóveis e além da reconstrução do calçadão à beira-mar serão recuperados

77Narrativas da cidade virtual

Page 75: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

alguns equipamentos, como a estátua de Iracema, um espigão de pedras que adentra ao mar, a Ponte Metálica e o Pavilhão Atlântico. Outra etapa desse projeto consistirá na construção da Casa do Turista; da Casa da Lusofonia; do Instituto Cultural Iracema; do Museu do Olhar; do Museu do Forró; de um Centro do Artesanato e da implementação de um pólo gastronômico e de um estacionamento.

Além dessas intervenções que tem um claro apelo no desenvolvimento do lazer, cultura e turismo, está sendo apresentado à população o projeto do Acquário Ceará. Encomendado pelo governo do Estado, esse equipamento, se insere no conjunto de obras que a prefeitura está realizando no bairro Praia de Iracema e tem como um dos principais objetivos desenvolver o turismo e transformar a imagem do bairro Praia de Iracema, da cidade de Fortaleza e até mesmo do Estado. Segundo os gestores o Acquário será o maior da América Latina e irá contribuir para a preservação do meio ambiente e para transformar a realidade social do Estado do Ceará pelo turismo. Em uma apresentação pública na Câmara dos Vereadores foi in-formado que “esse projeto irá melhorar o perfil dos visitantes da beira-mar trazendo famílias e jovens o que irá diminuir a prostituição e consequente-mente o turismo sexual da área”.

O projeto é assinado pelo arquiteto Leonardo Fontenele e está orçamentado em R$ 250 milhões. O plano contempla 21,5 mil metros quadrados de área construída e tanques com capacidade para 15 milhões de litros de água e terá em seus quatro pavimentos áreas de lazer, dois cinemas 4D, simuladores de submarino e equipamentos que proporcionam interação entre o público e o aquário, por meio de túneis submersos que levarão os visitantes ao interior do tanque de animais marinhos.

O Acquário Ceará está sendo anunciado em assembleias públicas como um dos mais importantes investimentos do Governo do Estado. Além das imagens com fotografias do projeto e de vídeos, com simulação de como vai funcionar o equipamento, o acquário também está sendo apresentado para a população por meio de uma maquete que foi exposta no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (Figura 4).

A análise das representações gráficas do plano de “Intervenções Praia de Iracema” e do “Acquário Ceará” demonstra a importância do ofício do arqui-teto na divulgação da política urbana que os administradores dessa cidade querem transmitir. Como pode ser visualizado nas figuras da reforma do mo-numento Iracema Guardiã, da Urbanização da Ponte Metálica e do Acquário, o ordenamento do espaço urbano, demonstrado por meio da presença de

78 Roselane Gomes Bezerra

Page 76: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

poucos usuários, de famílias com crianças e do primor nas estruturas físicas, contribui para transmitir a imagem de uma cidade que investe em reformas urbanas e que valoriza o potencial paisagístico e simbólico da Praia de Ira-cema, que é definido pelos gestores como um lugar com “vocação natural para o lazer” (Figuras 5, 6 e 7).

Por fim, é perceptível que as representações desses equipamentos que integram espaços para contemplação, a preservação do meio ambiente, a educação e a cultura, reforcem a imagem de Fortaleza como cidade turística e da Praia de Iracema como um lugar de lazer, encerrando assim, a imagem desse bairro como um espaço degradado, de turismo sexual e inseguro.

Considerações finais

O objectivo deste artigo não foi apresentar um estudo comparativo entre as duas cidades seleccionadas para a observação, entretanto, a partir das di-ferentes publicidades analisadas foi possível constatar que a concepção de urbe que os gestores desejam transmitir, por meio da divulgação de projectos de “requalificação” urbana, baseia-se na representação de equipamentos monumentais e na ordenação dos espaços como forma de transformar a imagem das cidades.

As publicidades dos projetos estão demonstrando que existe uma apropriação do ofício do arquiteto, por parte dos decisores públicos, como narrativas do processo de reforma urbanística que as cidades vêm vivenciando nos últimos anos. A utilização do trabalho desses profissionais contribui para a difusão da ideia da “higienização” social e espacial da urbe. Essa concepção mascara os aspectos conflituosos que existem em determinados usos nos espaços ur-banos, nomeadamente os “contra-usos” (LEITE, 2004) ou usos considerados ilegítimos ou ilícitos para determinados lugares da cidade (BEZERRA, 2009).

As imagens dos projetos colaboraram para a concepção de que existe uma necessidade de transformação em determinadas áreas, o que impulsiona a identificação de espaços “degradados” . Nesse caso, a solução apresentada pelos gestores é a execução de projetos de requalificação, revitalização ou reabilitação urbana. Assim, a incidência da apresentação desses projetos de intervenção está a tornar-se uma constante e a publicidade da “cidade virtual” impinge uma crescente valorização da estética da arquitetura. Para Leach (2005) este fenômeno enquanto condição cultural que seduz os usu-ários dos espaços urbanos, tem um efeito direto no ofício dos arquitetos, já que essa disciplina é mediada pela imagem.

79Narrativas da cidade virtual

Page 77: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Na medida em que a estetização persiste enquanto con-dição cultural que invade – a um maior ou menor nível – toda a sociedade actual, os seus efeitos são tanto mais notórios numa disciplina mediada pela imagem. A arqui-tectura encontra-se dependente desta condição, dado que os arquitectos assumem o processo de estetização como consequência necessária da profissão. Convencionou-se que os arquitectos devem ver o mundo em termos de representação visual – planos, secções, alçados, pers-pectivas, e por aí fora. O mundo do arquitecto é o mundo da imagem (2005:25).

As narrativas da cidade virtual demonstram que os gestores estão utilizando o trabalho dos arquitetos para defender uma concepção de urbanidade asso-ciada à monumentalidade e ao ordenamento de espaços urbanos. Entretanto, para concluir essa análise, devo acrescentar que percebo nas publicidade desses projectos, mediante a utilização do trabalho dos arquitectos, um outro objetivo dos decisores públicos, que é utilizar os projetos de intervenção como justificação para a busca de financiamentos que atentam interesses de inves-tidores que acreditam no potencial económico de algumas áreas das cidades.

Figura 1 Projeto “Cidade da Água”, destaque para arco que pertencia ao estaleiro da Lisnave.

Fonte: Revista Almada Informa, Novembro de 2008.

80 Roselane Gomes Bezerra

Page 78: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Figura 2 Outdoor localizado em frente ao antigo estaleiro da Lisnave. Publicidade do projecto

“Almada Nascente - Cidade da Água”. Foto da autora.

Figura 3 Publicidade da aprovação do Plano de Urbanização.Fonte: Revista Almada Informa, Outubro de 2008.

81Narrativas da cidade virtual

Page 79: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Figura 4 Maquete do Acquário Ceará.

Fonte: http://www.skyscrapercity.com

Figura 5 Imagem da requalificação do calçadão da Praia de Iracema

com destaque para a reforma do Monumento Iracema Guardiã.Fonte: http://www.skyscrapercity.com

82 Roselane Gomes Bezerra

Page 80: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Figura 7 Projeto Acquário Ceará.Fonte: http://www.skyscrapercity.com

Figura 6 Imagem da Urbanização da Ponte Metálica.

Fonte: http://www.skyscrapercity.com

83Narrativas da cidade virtual

Page 81: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

ABSTRACT: The aim of this paper is to examine what is the conception of city and urban policy that their managers want to transmit through the advertisements of urban intervention projects. The empirical referents of this research were images of future buildings on billboards, magazines and models of three-dimensional visualization at the towns of Almada, in Portugal, and Fortaleza, in Brazil. Based on the representations of the requalification plans, I have examined how the architectural designs are being appropriated by managers in the narratives of the urban reform process that the cities are experiencing at the recent years.

Keywords: projects; urban policy; advertisements; architects; narrative.

ArtigoRecebido: 30/04/2011Aprovado: 16/05/2011

Referências

ARANTES, Otília B. Fiori (2001). Urbanismo em fim de linha. São Paulo: Edusp.

BARREIRA, Irlys (2007). Usos da cidade: conflitos simbólicos em torno da memória e imagem de um bairro In Análise Social, vol XLII (182), Lisboa.

BEZERRA, Roselane Gomes (2009). O bairro Praia de Iracema entre o “adeus” e a “boemia”: usos e abusos num espaço urbano. Fortaleza: Labo-ratório de Estudos da Oralidade – UFC, Ed. Expressão Gráfica.

CANCLINE, Néstor García (2008). Imaginários culturais da cidade, In A cultura pela cidade. Teixeira Coelho (org.). São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2008.

CHAPLIN, Elizabeth (1994). Sociology and Visual Representation. London and New York. Routledge.

DEBORD, Guy (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Con-traponto.

DURKHEIM, Émile (1970). Representações Individuais e Representações Coletivas. In: Sociologia e Filosofia. Forense Universitária: Rio de Janeiro.

FEATHERSTONE, Mike (1995). Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo, Studio Nobel.

FORTUNA, Carlos (1997). As cidades e as identidades: narrativas, pa-trimônios e memórias. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, ANPOCS, 33 (fev.).

HARVEY, David (1993). A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola.

84 Roselane Gomes Bezerra

Page 82: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

JAMESON, Fredric (1997). Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática.

JODELET, Denise (2001). Representações sociais: um domínio em expansão In: As representações sociais. Jodelet, D. (Org.). Rio de Janeiro: EdUERJ.

KOTLER, P; HAIDER, D.H. & REIN, I. (1994). Marketing público. São Paulo: Makron Books.

LA CECLA (2011). Contra a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio.

LEACH, Neil (2005). A anestética da arquitectura. Lisboa: Antígona.

LEITE, Rogério Proença (2004). Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Aracaju, SE, UFS.

__________ . (2009). “Espaços públicos na pós-modernidade”, In Carlos Fortuna e Rogerio Proença Leite (orgs.), Plural de cidade: novos léxicos urbanos, Coimbra, Almedina.

MOSCOVICI, Serge (1981). On Social Representations in: FORGAS, J. P. (org.) Social Cognition: Perspectives on Everday Understanding. Londres: Academic Press.

PEIXOTO, Paulo (2009). Requalificação urbana, In Carlos Fortuna e Rogerio Proença Leite (orgs.), Plural de cidade: novos léxicos urbanos, Coimbra, Almedina.

RUBINO, Silvana (2003). “Gentrification: notas sobre um conceito incômo-do”, In Maria Cristina Schicchi e Dênio Benfatti (orgs.), Urbanismo: dossiê São Paulo - Rio de Janeiro. Campinas/ Rio de Janeiro, PUC-Campinas/ Prourb-UFRJ.

___________. (2009). Enobrecimento urbano, In Carlos Fortuna e Rogerio Proença Leite (orgs.), Plural de cidades: léxicos e culturas urbanas. Coimbra: Edições Almedina.

SMITH, Neil (1996). The new urban frontier: gentrification and revanchist city. Londres/Nova York: Routledge.

ZUKIN, Sharon (1995). The cultures of cities. Cambridge: Blackweell.

85Narrativas da cidade virtual

Page 83: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

87(*) Lígia Dabul é Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) @ - [email protected]

Quick passages and affinities with the Contemporary Art

Lígia Dabul *

Rápidas passagens e afinidades com a Arte

Contemporânea

Palavras-chave: arte contemporânea, ciências sociais, sociedades contemporâneas, discurso

RESUMO: Neste artigo analisamos alguns aspectos da interlocução entre arte contemporânea e ciências sociais. Enfocamos discurso que a arte vem produzindo acerca das sociedades contemporâneas, apresentando contrapontos da pesquisa antropológica. Em seguida, a partir de configurações atuais de formas por meio das quais a arte vem concebendo suas próprias ações, estabelecemos alguns diálogos com formulações sobre o centramento de sujeitos implicados na alteridade.

F ormas de apreender e apresentar a arte contemporânea são especialmente instigantes para pensarmos aspectos da vida que nos é dada viver coletivamente no começo adiantado desse século. E cada vez mais os ímpetos para

compreendê-los arregimentando, ainda que não exclusivamente, a tradição das ciências sociais, encontram familiaridade com muitas extensões dos discursos que a arte contemporânea produz a respeito dela mesma, incor-porando a vida social como matéria explícita da criação artística e diapasão de avaliações que dirige a ela.

Também na arte contemporânea1 muitas das circunstâncias nas quais comunicamos algo a nosso próprio respeito consistem ao mesmo tempo em mecanismos de compreensão, delimitação e avaliação do que somos. Muitos propõem, nesse sentido, que a mídia constitui em considerável medida uma série de iniciativas no campo das artes, e não apenas porque, dando notícias delas, fazem com que, de certa maneira, existam amplamente. Na realidade, ao serem abordados pela mídia, artistas adequam suas ações à

1 Aqui evito, embora não possa tratar mais detidamente, qualquer idéia de ocorrência substantiva que a ca-tegoria arte contempo-rânea possa carregar. Acompanho o caráter contrastivo, relacional e conjuntural que N. Heinich (2008) assina-la configurar a chama-da arte contemporânea, e que descrevo em L. Dabul (2001).

Page 84: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

88 Lígia Dabul

visibilidade que preferem ter e calculam poder promover. Essa constatação traz mais implicações que apenas nos darmos conta, por exemplo, daquele caráter difusor que alguns meios podem assumir para as artes, especialmente agora, com a extensão dos meios virtuais. Também em relação a diversas outras dimensões da vida social, há estudos que indicam já não ser mais oportuno colocar, por exemplo, a imprensa escrita, a televisão ou registros para documentação ou difusão na web, como circunstâncias exteriores ao evento analisado2. No caso da arte contemporânea, há numerosos e variados e extensos discursos que circulam comunicando, constituindo, muito do que a situam no mundo.

As proposições que acionam a liquidez, soltamentos diversos, a aceleração inaudita das sociedades onde a chamada arte contemporânea tem seus significados postos, são dessas que hoje aparecem como campo semântico sem o qual não se poderia sequer enunciar o que interessa das experiências que fundam a arte. Boa parte das palavras que artistas e outros atores sociais envolvidos com a arte utilizam estão referidas e muitas vezes são explicitamente remetidas a discursos aparecidos em espaços de reflexão como a filosofia, a comunicação e as ciências sociais – que por sua vez não raro estão conduzindo noções que perpassam as mais diversas áreas da vida. Esses trânsitos de formas de comunicar concepções acerca da arte e dos contextos nos quais se inclui, permitem que elas perpassem e se nutram em distintos campos de significado, descartando e recarregando – abrindo – seus sentidos. Ao lado dessas possibilidades, idéias são legitimadas por serem atribuídas a pensadores com pretígio que ultrapassa suas áreas de atuação, como muitos cientistas sociais contemporâneos, e adquirem autonomia que, aos olhos deles, provavelmente as tornaria em excesso imprecisas.

De qualquer modo, o interesse por essas afinidades de fato entre maneiras tão diferentes de compreender o mundo – e a própria arte – consiste em um dos muitos procedimentos que suscitam e revigoram práticas de criação, sejam as artísticas, sejam as científicas. E há muito as ciências sociais e a arte contemporânea se fitam, reconhecendo suas identidades já na própria percepção crítica do mundo onde se inserem3, em sua identificação sumária em traços cruciais4, em suas dificuldades de convivência5. Arnd Schneider e Christopher Wright reivindicam novas perguntas e reconhecimentos para refletirem sobre o que lhes aparece como “afinidade profunda”6 entre experiências que se visitam cada vez mais – as da antropologia e as da arte.

Seguindo algo dessa atitude, gostaria, em primeiro lugar, de chamar a atenção e de levantar algumas questões sobre a disseminação de categorias que se implantam em diferentes maneiras de pensar e lidar com os lugares onde as ciências sociais e a arte procuram lançar luz e, com isso, habitar.

2 Ver, por exemplo, em Patrick Champagne (2003), demonstra-ção de que os modos por meio dos quais a mídia constrói “acon-tecimentos”, como manifestações popula-res, consistem já nos próprios aspectos de conflitos sociais que cientistas sociais con-sideram relevantes e se dispõem a pesquisar. 3 Ver, por exemplo, P. Bourdieu e H. Haacke (1999). 4 Ver, por exemplo, L. A. Fernandes Dias (s.d.). 5 Ver, por exemplo, E. M. Lagrou (2004). 6 A esse respeito, ver Arnd Schneider and Christopher Wright (2006).

Page 85: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

89Rápidas passagens e afinidades com a Arte Contemporânea

Faremos, ainda que rapidamente, ponderações a respeito de distanciamentos entre concepções especialmente difundidas de processos importantes de configuração do que chamamos mundo contemporâneo. Mais adiante, focamos na categoria público, que as ciências sociais e a arte tanto tentam visualizar, sondando possibilidades encontradas quando examinamos novas práticas artísticas.

Isso nem sempre é um mundo

Já há algumas décadas são constatadas, sublinhadas e analisadas por pesquisadores e muitos indivíduos e instituições (artistas, críticos de arte, a imprensa e a universidade, por exemplo) as mudanças profundas nas sociedades contemporâneas que afetam de maneira muito extensiva indivíduos e povos, mais que tudo no que diz respeito à sua conexão (também a propiciada pelas novas tecnologias, como a que permite a existência e difusão da web) e circulação generalizadas e velozes, algo que caracterizaria mesmo a especificidade de uma sociedade contemporânea urbana, globalizada, pós-moderna – junto igualmente com a circulação de informações e mercadorias/coisas. De outro lado, é marcada e remarcada correntemente uma dispersão de indivíduos e povos, uma propensão de desenraizamento e desterritorialização, que se deveriam à própria configuração das sociedades contemporâneas, favorecedoras do chamado hibridismo de culturas, seres e de linguagens, da multiplicação de nexos entre pessoas, de trânsitos por ambientes, de mutações cada vez mais fugazes das formas de comunicação e existência.

São também consideravelmente difundidos os supostos dos deslocamentos que perpassariam os sentidos das experiências mais importantes da vida nas grandes cidades. Na verdade, segundo muitas dessas formulações, a dispersão espacial não teria exatamente sentido, pois consistiria quase que em fruto de um movimento necessário e constitutivo da contemporaneidade. Esses fluxos se dariam em espaços, tempos e configurações bem variadas e seriam compostos em sua natureza por indivíduos, ou no máximo por somatórios de indivíduos com potencialmente diferentes origens e destinos ou pontos um tanto impermanentes de chegada. De fato, essa dispersão é concebida como faceta de certa homogeneização dos indivíduos e desses deslocamentos mais e mais detectados, e naturalizados como atributo do mundo globalizado.

Não se trata de fazermos uma análise da sociedade globalizada, e muito menos de compreender seus traços determinantes, ou fundamentais, ou o estar nela em cada aqui e agora específico sobre o qual hoje recai o interesse da arte e em boa medida das reflexões que as ciências sociais pretendem lançar sobre ela. Importa marcar o quanto são difundidas formas de pensamento

Page 86: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

voltadas para o exame da arte – e também junto ao senso comum – que tratam a globalização como processos de homogeneização do mundo e das maneiras de experimentá-lo. Ao lado desse espalhamento e da legitimação – também nas artes e nas ciências sociais - dessas maneiras de conceber o mundo, ensaios e pesquisas são voltados para a sua contestação. Marshall Sahlins, por exemplo, ao tratar de formulações que aventam uma possibilidade de desaparecimento da cultura como objeto da antropologia ou ainda como interesse fundamental das ciências humanas, coloca em questão supostos de processos de homogeneização. Para ele, “a globalização e outras peripécias capitalistas, longe de impor uma hegemonia monótona sobre o planeta, têm gerado uma diversidade de formas e conteúdos culturais historicamente sem precedentes”7.

A globalização, para muitos desses autores, consistiria em, mais que realidade estabelecida historicamente, de fato percepção, cosmologia, mito ocidental sobre o mundo contemporâneo “com muitas versões”8 e bastante difundido, próprio de alguns grupos sociais, ou de algumas classes sociais do Ocidente, que experimentariam nosso mundo como globalizado, conectado, disperso, em constante transformação e algo democrático9. De fato, vagas idéias de deslocamento – constitutivo do mundo contemporâneo, inevitável, com freqüência de massa, necessário, facilitado até – são acompanhadas de uma idéia de democracia - todos são, todos somos cidadãos do mundo globalizado, indivíduos urbanos e globalizados, concebidos como virtualmente conformados por disposições de transferir – de fato ou por meio de desejos - experiências para outros tempos e lugares. Por seu turno, essa idéia de democratização - a diversidade permitida e o livre acesso a informações e bens - é também acompanhada com muita freqüência por aquela noção de homogeneização de formas de vida e pensamento que seria propiciada pela crescente conexão e comunicação, por essa dispersão, e no limite, em fenômeno não raro assinalado como incrustado na globalização, pelas diásporas.

Assim, de maneira um tanto paradoxal, a adesão involuntária dos indivíduos a processos que os homogenizam, é idéia que guarda proximidade com a da liberdade que teriam, ou que poderiam e deveriam ter, de desvencilhar-se de qualquer determinação relativa a laços sociais locais, crenças estabelecidas em seus grupos e lugares de origem, comportamentos preexistentes inculcados por instituições sociais por meio das quais foram socializados. Essa noção de liberdade individual, de escolhas dentre percursos sociais a cada dia inventados, algo que valorizamos e que boa parte da arte contemporânea sugere como ponto de partida e de chegada de muitas de suas realizações voltadas para o mundo social, não deixa de dar sentido à inclusão dos indivíduos justamente naqueles processos que reconhecemos como inexoráveis e abarcadores, que percorrem extensamente e velozmente as sociedades contemporâneas .

90 Lígia Dabul

7 M. Sahlins (1997: 73) 8 Otávio Velho (1997), por exemplo, apresen-ta a idéia de globali-zação como “jogo de linguagem permitido por interconexões con-cretas, como artefato e (...) como um mito com muitas versões” (57-58) Cit. por L. Munia-gurria, 2006. 9 Para interessante análise de processos de propagação dessas concepções acerca do mundo contemporâneo junto a atores sociais envolvidos com a arte contemporânea, ver Muniagurria (2006). Em L. Dabul (2011) analiso repercussões de mudanças das rela-ções sociais instituídas pela web na criação poética.

Page 87: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Como salientado por Sahlins, para além do questionamento dos processos naturalizados como próprios e fundamentais do capitalismo, ou do mundo contemporâneo, encontramos na verdade a revitalização de “permanências” – territorialização de povos, redefinições e florescimento de identidades vivenciadas como ancestrais, de rituais característicos de formas de vida social singulares, singularíssimas, a ponto de deflagrar e dar sentido a todos os processos de deslocamento, comunicação e às aparentes mutações que irremediavelmente acompanhariam as escolhas por mudanças. Estaríamos, em boa medida, desacostumados a considerar acontecimentos que, se são propícios à redefinição no tempo, guardam e fazem perdurar continuidades importantes de tal modo que só têm significado por conta delas. Uma fixidez por trás dos trânsitos, singularização por meio da alteridade compulsória ou deliberada, pertencimentos onde são enxergadas iminências de vazios – tantos acontecimentos que investem carne e osso, concretude, no lugar que reservamos, quase sem nada, para insinuar o sentido de boa parte das experiências contemporâneas que produzimos e a respeito das quais refletimos.

Redescentramentos, recentramentos

Noutro plano, gostaria de mencionar a abertura conduzida por inúmeras iniciativas que têm lugar na chamada arte contemporânea em formas que costumamos usar para analisá-la. Pesquisa sobre a formação de artistas em uma grande escola de arte contemporânea brasileira10 já indicava que aqueles que conseguiam constituir uma identidade de artista naquele ambiente dirigiam cada vez mais sua produção para os atores sociais qualificados ali como aptos para avaliarem a produção artística, e a arte em geral, em especial os responsáveis por sua formação, como seus professores. A exposição da obra, propriamente, e então o contato da obra com o público, ficavam, com o tempo, cada vez mais delegados a outros atores sociais, como donos de galerias, curadores, colecionadores. Havia então uma distinção paulatinamente feita, no caso dos que conseguiam construir uma carreira artística, entre para quem dirigiam sua produção, isto é, para quem constituía interlocutor de fato, e as situações efetivas de exposição.

Se focamos no ponto de vista do artista, o público da arte contemporânea apresentada em espaços expositivos demarcados não corresponde na maior parte dos casos àqueles atores sociais para quem os trabalhos expostos foram dirigidos enquanto eram confeccionados. Não parece realmente estarem voltados para o desconhecido, numeroso e diversificado público que aflui a centros culturais ou museus de arte centrais, que nada cobram ou cobram bem pouco para que ele entre em contato com a produção já legitimada pelo campo artístico. O público depara, entra em contato, com trabalhos

10 Ver Dabul (2001).

91Rápidas passagens e afinidades com a Arte Contemporânea

Page 88: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

produzidos pelos artistas para jurados, galeristas, colecionadores, curadores, críticos, atores sociais de instituições de conservação e exposição (como os próprios museus), para aqueles de fundações e outras agências que dão suporte a artistas e, mais que tudo, para os próprios artistas.

Artistas não raro mencionam essa distância que experimentam em relação às situações em que o público entra em contato com sua obra. Na verdade, delegar a outros a condução e gestão da exposição da obra, de certa forma alienar-se dessa situação de presença do público, isto é, de uma das formas de existência de sua produção, é procedimento efetuado mesmo por artistas que sublinham em seu trabalho o chamado olhar etnográfico que incluiria um “outro” (e que muitas vezes também sublinham que o público se colocaria no lugar desse “outro” “participante” da própria concepção da obra). Do mesmo modo é comum que artistas que supõem ser fundamental para seus trabalhos a interatividade, a interação do público durante sua exposição, estejam afastados dos espaços e momentos de contato efetivo do público com suas criações.

Johan Huizinga, em Homo Ludens, já indicava implicações dos artistas terem se distanciado das situações de exposição de suas obras. Hoje podemos acompanhar modalidades de iniciativas classificadas - e por vezes muito reforçadas no campo artístico - como arte contemporânea que incluem o corpo do artista nessas situações de exposição – como nas chamadas arte urbana e intervenções e interferências, muitas produzidas por coletivos, muitas organizadas em meio virtual, às vezes realizadas em meio virtual. Numerosos artistas conduzem a situação de apresentação ou realização de seu trabalho, ou ao menos observam e registram essa realização, em geral em espaços públicos.

É essa uma circunstância muito distinta daquelas em que o contato do público com a arte é quase que desconhecido para o artista, e por isso requer procedimentos bem diferentes para as ciências sociais refletirem sobre o significado de indivíduos estarem em contato com a chamada arte contemporânea. São contextos radicalmente diversos do que encontra o público que se dirige para o espaço expositivo tão delimitado de museus de arte e centros culturais para entrar em contato com produção apresentada como artística. Em interferências em espaços públicos abertos, não expositivos, os artistas e suas iniciativas se dirigem concretamente (embora não de forma exclusiva) a um público disperso que não necessariamente avalia ou tem como avaliar o que se passa como arte - o que não significa, como mencionamos, que o campo artístico não valorize e estimule iniciativas como essas. Tanto para artistas como para estudiosos do público, trata-se de mudança importante nas próprias categorias que temos para analisar essa situação de encontro, ou de convivência, seja do público com a arte, seja do artista com esse contato.

92 Lígia Dabul

Page 89: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Ao serem realizadas em locais públicos, supondo a co-presença de diversos indivíduos não necessariamente voltados para elas, essas experiências artísticas, para além da multiplicidade de significação que a arte costuma proporcionar, incorporam a imprevisibilidade de variadas maneiras e em escalas diversas. Abolindo a exclusividade de suas práticas frente a outras pré-existentes, a especificação prévia do lugar da arte na cidade ou no mundo, e dos sujeitos recrutados de algum modo para as suas realizações, os artistas descentram também os processos que irrompem e procuram acompanhar. Essa pulverização de experiências artísticas por lugares, com indivíduos, em tempos por vezes fora de suas próprias apreciações, esparge também a possibilidade de aventarmos quais são elas. Certamente esses impulsos não podem então mais ser aquilatados neles mesmos. A pergunta é se, para além desses procedimentos por certo inovadores, acreditaremos que, mais que criações, estamos agora lidando com indivíduos tocados por elas mas jamais conhecidos, e com improvisações11, meras, um monte delas sem a menor conexão que possa haver a princípio com a arte.

Numerosos desdobramentos para cientistas sociais atraídos pela arte contemporânea advêem da imprevisilidade extrema dessas iniciativas, do fato dos artistas cada vez mais estarem abstendo-se das garantias que as idéias de recepção e de público guardam, do imenso campo de possibilidades que se abre para imaginarmos e estudarmos formas de interação social quando artistas aparentemente não se interessam mais em classificar suas experiências como arte. De outro lado, por certo é difícil abandonarmos supostos como o de que, ainda agora, as iniciativas da arte contemporânea são conformadas também por diferentes maneiras de aproximar e excluir indivíduos do seu âmbito, algo como motivos da atitude que instiga o artista, o que o situa, mais uma vez, no centro, ou em toda a extensão daquilo que cria. Trata-se de centramento que suportou ao longo do tempo a abolição de objetos e de estéticas, e que sempre aparece como pertinente. A arte, de fato, há muito dispensou a idéia de poder realizar-se sem que ímpetos especiais, especializados, sejam imprescindíveis. Parece ser justamente por conta disso que encontrou tantas vezes nas ciências sociais, particularmente na antropologia, necessidade muito familiar de lançar-se ao outro – não artista, não ocidental, não central, não pesquisador – para instituir e assim demarcar sua própria existência.

Por outro lado, considerando que quase sempre nos sentimos partindo do zero ao pesquisarmos novas formas de artistas buscarem estar no mundo, e refletindo sobre essa espécie de etnografia que não se ressente mais com a sua extensão, com o que comunicaria e faria ser experimentado junto com o que o etnógrafo experimenta - talvez assim começaríamos a formular mais

93Rápidas passagens e afinidades com a Arte Contemporânea

11 Acompanhamos aqui a diferenciação entre creativity e im-provisation propos-tas por T. Ingold e e. Hallam (2007).

Page 90: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

uma afinidade com a arte contemporânea. Redefinindo por onde retomar a passagem, e com as preocupações remetidas ao que pode para uma cientista social consistir atar-se às pessoas para, por meio do que conhece delas intuir o que não sabe a seu próprio respeito, os ganhos de compreender as novas experiências que artistas estão produzindo nas cidades parecem ser evidentes.

Referências

BOURDIEU, Pierre e HAACKE, Hans. Livre-troca: diálogos entre ciência e arte. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

CHAMPAGNE, Patrick. “A vião mediática”. In Bourdieu, Pierre (dir.) A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2003.

DABUL, Lígia. “A poesia disseminada, a poesia inseminada: aspectos da criação poética na web” In Vinhosa, Luciano (org.) Horizontes da arte. As práticas artísticas sob o impacto das novas tecnologias. Niterói: Nau Editora, 2011 .

DABUL, Lígia. Um percurso da pintura. A construção de identidades de artista. Niterói: Eduff, 2001.

FERNANDES DIAS, José Antônio B. “O metier que existe: Antropologia e arte contemporânea.” Hojas de Antropologia Social. [S.I.: s.n., s.d.] p 81-87

HEINICH, Nathalie. “Para acabar com a discussão sobre arte contemporânea”. In Maria Lucia Bueno e Luiz Octávio de Lima Camargo (org.) Cultura e consumo: estilos de vida na contemporaneidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1993.

INGOLD, Tim e HALLAM, Elizabeth. “Creativity and cultural improvisation: a introduction”. In Tim Ingold and Elizabeth Hallam (Ed.) Creativity and Cultural Improvisation. Oxford/New York: Berg, 2007.

ABSTRACT: In this article we review some aspects of the dialogue between contemporary art and social sciences. We focus on the discourse that art has been producing about contemporary societies, showing counterpoints from anthropological research. Then, from the current ways in which art conceive their own actions, we establish some dialogues with formulations about the focus given to subjects involved in the otherness.

Keywords: contemporary art, social science, contemporary societies, discourse

ArtigoRecebido: 08/05/2011Aprovado: 25/05/2011

94 Lígia Dabul

Page 91: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

95Rápidas passagens e afinidades com a Arte Contemporânea

LAGROU, Elsje Maria. “Antropologia e Arte: uma relação de amor e ódio”. Ilha. Revista de Antropologia. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: UFSC. V. 5, 2004.

MUNIAGURRIA, Lorena. “Ganhar o olhar”: estudo antropológico de ações de mediação de artes visuais. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS, 1997.

SAHLINS, Marshall. “O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica”. Parte I. Mana. Rio de Janeiro, Vol. 3, n. 1, Abr. 1997.”

SAHLINS, Marshall. “O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica”. Parte II. Mana. Rio de Janeiro, Vol. 3, n. 2, Out.1997.

SCHNEIDER, Arnd and WRIGHT, Christopher. “The Challenge of Practice”. In A. Schneider and C. Wright (Ed.) Contemporary Art and Anthropology. Oxford/New York: Berg, 2006.

Page 92: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

97(*) Abdelhafid Hammouche é Professor da Université Lille 1 – Clersé– CNRS (UMR 8019).

The Art at the service of the city?

Abdelhafid Hammouche *

A Arte a serviço da cidade? **

Palavras-chave: cidade, política cultural, subjetividade, arte, sociedades contemporâneas.

RESUMO: A presente contribuição retoma os termos do Seminário «Interfaces : arte, cidade e subjetividades contemporâneas » na tentativa de caracterizar a cidade em geral, analisando, em seguida, a partir de alguns exemplos da história recente de cidade de Lyon, na França, o lugar da arte no espaço urbano. O exemplo da referida cidade mostra como se instaura uma vontade de « se abrir » para o mundo e ao mesmo tempo criar a cidade. É verdade que a relação que se estabelece com a cidade reflete a associação de forças que perpassam a associação dos indivíduos e dos grupos, mas decorre igualmente da estratégia da cidade no âmbito cultural que tende a querer afirmar uma identidade no plano internacional. A política cultural local se constrói por meio do cruzamento de fontes de financiamento que permitem ver que toda política local se inscreve em um quadro nacional, mas pode-se pensar que a construção européia e a aceleração dos intercâmbios internacionais enfraquecem as identidades nacionais e oferecem uma oportunidade de afirmação da identidade local. Neste sentido, a política cultural poderia ser pensada como um conjunto de ações que participa da « globalização » do local,, ou seja, que contribui para afirmar a dimensão simbólica do local, tornando-o um « todo », concorrendo assim para uma redefinição da relação local-nacional.

Retomo neste momento os termos do seminário « Interfaces : arte, cidade e subjetividades contemporâneas » tentando inicialmente caracterizar a cidade em geral para em seguida analisar, a partir de

alguns exemplos na história recente da cidade de Lyon, na França, o lugar da arte no espaço urbano. Tentarei então estabelecer uma ligação entre cidade e arte pela subjetividade contemporânea que me servirá de fio condutor. Para iniciar, parece-me esclarecedor retomar e complexificar a oposição clássica entre cidade e campo, sempre imperfeitamente analisada, sem que seja concedido às transições o lugar que merecem. Um dos pontos de distinção

(**) Tradução : Ma-ria Ester Campos Monteiro

Page 93: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

98 Abdelhafid Hammouche

entre o espaço rural e o espaço urbano é a familiaridade ou o interconhecimento estendido à quase totalidade das pessoas que constituem a comunidade em que vivem para o primeiro e a relação anônima para o segundo. É o que diz paradoxalmente o título de uma obra célebre da sociologia urbana : O campo na cidade, de Young et Willmott (1983), consagrada à vida de um bairro de Londres nos anos 1950. A aparente contradição do título se explica pela vida social desse bairro da capital inglesa que se estrutura numa base de redes de vizinhança fortemente marcada pelo parentesco, objeto de estudo dos autores. Todos se conhecem e este interconhecimento implica a família e os amigos contribuindo para organizar a solidariedade e o cotidiano. Assim, não é raro a esposa deixar os filhos pela manhã para a própria mãe cuidar e o pai os levar de volta à noite com alguns legumes. Esta base relacional será desestabilizada pela renovação por que passa o bairro. A cidade se transforma. Com o distanciamento entre seus moradores, a pequena cidade não é mais possível. Esta primeira ilustração me permite complexificar: a cidade não é um espaço totalmente entregue aos anônimos desconhecidos. Os citadinos, pelo emprego, pela história familiar, pelo percurso residencial chegam a limitar o estranhamento inerente a algumas formas urbanas. Sob certas condições os indivíduos, diferentemente, conforme suas condições sociais, se dão mais ou menos a possibilidade de imprimir sua marca no meio que lhes concerne para ficar com seus « próximos », a fim de se manterem afastados de locais de reputação temerária. Entretanto, ninguém está imune a mudanças sempre difíceis de definir, conforme vimos rapidamente no estudo de Young et Willmott. Muitas outras situações se prestam a mudanças mais ou menos bruscas. Fica então com relação a tais evoluções a questão de saber por que e como um local aparentemente calmo se transforma mais ou menos subitamente. O inverso é também verdadeiro : partes de cidades passam por processos de embelezamento com processos de ocupação complexos, a exemplo do que se produz com a chamada gentrificação. Muitas cidades assistiram a transformação de bairros populares em Londres ou em Paris, por exemplo, ao acolher novas camadas da população às vezes em detrimento de antigos moradores que tiveram de deixar tais locais por terem se tornado caros demais para eles.

É com definição deste cenário de uma urbanidade marcada pela ambivalência e por oscilações em diversas direções que se pode introduzir um segundo elemento em nossa discussão : o da subjetividade. Poderíamos dizer, a título de definição sumária, que se trata de um estado interior da pessoa, uma forma de pensar, de ser : é o que contribui para constituir uma impressão singular e uma propriedade característica da pessoa. É o que fundamenta intimamente sua singularidade. Contrariamente ao senso comum, poderíamos dizer que

Page 94: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

99A Arte a serviço da cidade?

nenhum gesto humano, nenhum ato humano se priva de subjetividade. Com o risco de me repetir parcialmente, nenhuma maneira de agir, de pensar ou de exprimir se reduz totalmente a uma outra. A percepção do sentido ou sua construção, dois componentes característicos da humanidade, não seriam totalmente uniformes, independentemente da proximidade de entendimento ou do condicionamento. Não digo, entretanto, que esta singularidade se constrói do nada nem que está desconectada da comunidade na qual se insere. Os dois pólos, a singularidade e a comunidade, caminham juntos. É a relação entre os dois, a dialética que faz com que aconteçam no tempo e no espaço, conforme as sociedades e os grupos sociais. No meu entendimento, a subjetividade só é compreendida pela expressão que a configura. O que é limitador pois cada um(a) possui uma vida psíquica « interior », com seus pensamentos, suas percepções mais ou menos organizadas, mais ou menos consolidadas. Pode-se pensar numa espécie de poço sem fundo do ser íntimo e de seus tumultos mais ou menos felizes. Mas estes sentimentos « interiores » que condicionam a pessoa e atuam provavelmente nas interações cotidianas só podem ser sociologicamente abordados por meio de suas manifestações sobretudo linguageiras ou, de forma mais abrangente, por meio do estado de espírito e das emoções expressas. Evidentemente, não haveria como pensar em uma expressão limitada a uma única pessoa e seria mais prudente falar de intersubjetividade do que de subjetividade, pois é no conjunto, é numa sociedade com seus agentes que se estrutura a vida social. A consideração social da subjetividade, a atenção que se dá à expressão do que poderia, por comodidade, ser chamado de « o estado de espírito » no sentido de subjetividade varia no tempo e no espaço. Em cada sociedade esta consideração muda historicamente e conforme o meio social. Para ater-se à Europa, o lugar do indivíduo, a atenção concedida socialmente à expressão do que lhe é característico e, de forma mais abrangente, o lugar ocupado pela intersubjetividade na vida sociável mudaram profundamente. Assim, por avançar rapidamente, a segunda revolução do sentido, expressão que tomo emprestada a Eduard Shorter (1977), provocou desde os anos 1960, pelo menos nas sociedades europeias, uma transformação na consideração pelo indivíduo e suas margens de liberdade relativas às normas e às instituições como a família ou o casamento. De forma mais abrangente, toda a sociedade está marcada por este processo de individuação. Sobre este ponto, que precisaria ser longamente desenvolvido, mas não no âmbito deste artigo, não me alongarei para passar ao último elemento de nossa problemática, tentando fazer o elo com os pontos precedentes : a arte.

Em alguns aspectos, a arte, que foi inicialmente a atividade dos artesãos, antes de ser valorizada com uma certa ambivalência pelas obras artísticas,

Page 95: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

é um dos espaços de convocação da subjetividade e da singularidade. Certamente, tanto uma quanto a outra estão socialmente enquadradas. Mas, pelo menos a partir do século XIX e do Salon des Refusés de 1863 em Paris, a contestação da arte oficial se identifica com a afirmação das singularidades e conhece uma grande expansão. Citando ainda esquematicamente e de forma abreviada : a referida singularidade e o reconhecimento social que a acompanha não são mais o apanágio de alguns artistas. Evidentemente, todos não poderiam se prevalecer do status de artista, fruto de um processo de legitimação do qual participam sobretudo as instituições culturais. Mas cada um se faz valer de um potencial artístico que a escola ou a família nas classes médias e nos círculos abastados quer ter a missão de despertar. É assim que estamos nas sociedades de singulares, aliás, de artistas. É claro que numa tal configuração, as relações de alteridade, as relações com as normas, com o comum mudam profundamente. Aqui também seriam necessárias análises mais profundas dessas transformações e adaptações dos grupos, das pessoas e das instituições responsáveis. Contentar-nos-emos em ver como uma cidade, a de Lyon, tenta, por meio de sua política cultural, da arte contemporânea mas também por meio da arte na rua, apoiar esse viver juntos.

Lyon, uma cidade que quer ser aberta para o mundo

A imagem mais difundida de Lyon nos anos 1960 é a de uma cidade burguesa, reservada, em que as manifestações culturais eram convencionais e sem grande alarde. No espaço de algumas décadas, a cidade consegue reverter em grande parte esta representação para se tornar a cidade das « Luzes », da arte contemporânea, das noites sonoras e de muitas outras expressões artísticas contemporâneas. Como se deu essa mudança?

No início dos anos 1970, e conforme artistas locais e André Mure1, « nada havia em Lyon para a arte contemporânea2». Posteriormente, críticos de arte muito lutaram para impor a ideia de criar um espaço que lhe fosse dedicado. Nasceu assim em 1976 o Espace Lyonnais d’Art Contemporain (ELAC), constituído como um setor do Museu Saint Pierre, cujos responsáveis acolheram o nascimento sem grande entusiasmo e, conforme alguns, até mesmo com certa « resistência ». Mas o impulso foi dado e se afirmou em 1982 com a criação da Bienal das Artes de Rua, a qual se transformou a partir de outubro de 1983 em manifestação anual com o nome de « Outubro das Artes ». No mesmo ano se constituía o Museu de Arte Contemporânea, sempre ligado ao Museu Saint Pierre, dirigido por Thierry Raspail (o novo Museu de Arte Contemporânea foi inaugurado em 1995). « Outubro das Artes » se repetiu até 1988, mantido pela ideia de oferecer um tempo de valorização dos artistas locais e internacionais em paralelo à FIAC (Feira

100

1 Vice prefeito encar-regado da pasta da en-tre 1977 e 1989

2 Trechos de uma con-versa entre o autor e André Mure, 2001.

Abdelhafid Hammouche

Page 96: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Internacional de Arte Contemporânea) que ocorria no mesmo período em Paris. Este « acoplamento » visava propor uma passagem por Lyon aos visitantes da FIAC e consagrar o mês de outubro como o da « estação das artes ». Tal manifestação se passa em muitos locais e sua temporalidade, sobretudo no que se refere à pontualidade (bienal e depois anual) equivale a um « foco de luz » sobre « a arte em elaboração ». Esta pesquisa do « fora dos muros » e da quase-imediaticidade (para não dizer a contemporaneidade) caracteriza sem dúvida em parte a « manifestação » e a renovação parcial da « instituição » quando o fenômeno cultural se desenvolve de tal maneira.

A Bienal de Arte Contemporânea de Lyon, criada em 1991, sucedeu à Bienal de Paris, idealizada em 1959, por André Malraux. Sua décima edição, a última realizada, da quarta-feira 16 de setembro de 2009 ao domingo 3 de janeiro de 2010, investiu em diversos espaços « da cidade »: em La Sucrière, no Museu de Arte Contemporânea, na Cidade Universitária, na Fundação Bullukian e no armazém Bichat sobre o tema « O espetáculo do cotidiano », escolhido pelo chinês Hou Hanru, curador da exposição. Cerca de sessenta artistas vindos dos quatro cantos do mundo estavam presentes e segmentaram o tema em fatias à moda napolitana, facilmente encontradas e identificadas graças às cores sobre os planos de exposição e nos espaços3. O desejo dos organizadores é de suscitar o « encontro » com « a criação mundial, tal como as obras de arte vão ao encontro do público, onde ele estiver : em um mercado, uma piscina, um centro de arte, uma delegacia de polícia... » Trata-se de conceber « uma janela aberta para o território local » a fim de manter « a visibilidade da obra contemporânea e sua apropriação « em toda parte e por todos » com exposições organizadas em parceria com o Mac de Lyon, a artoteca da MLIS (Casa do Livro, da Imagem e do Som de Villeurbanne) e o espaço de artes plásticas de Vénissieux ». Várias operações, cujo título exprime a filosofia, acompanham esta iniciativa: desde « a magia das coisas ou a reinvenção do cotidiano », onde « artistas sublimam objetos, situações e ambientes cotidianos em novas visões estéticas » até « O elogio da deriva » inspirado em uma prática situacionista em Paris nos anos 1950 e 1960 ou « Um outro mundo é possível » que retoma um slogan altermundialista e « trata da invenção de novas ordens e sistemas sociais» ou mesmo « Vivamos juntos » que funciona como um fórum aberto de diálogo e de intercâmbio no Museu de Arte Contemporânea, enquanto a « Sucrière » acolhe três pérolas da Bienal : « A Magia das Coisas », « o Elogio da Deriva » e « um Outro Mundo é Possível ».

A Bienal da Dança é um outro importante evento da vida de Lyon. Sua 14a. edição ocorreu de 9 de setembro a 2 de outubro de 2010. Desde 1984, ano

101

3 Os trechos foram extraídos da apresen-tação da Bienal cf. http://www.mediapart.fr/club/blog/philippe--leger/220909/lyon--inventive-enjouee-fa-cile-vivre. Acesso em março 2011.

A Arte a serviço da cidade?

Page 97: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

de sua criação, esta bienal tornou-se um pólo de atração de vários grupos de dança amadores locais bem como o suporte de um trabalho de inserção social importante, inovador e original. Com esta edição – a última sob a direção artística de Guy Darmet – « o Défilé se permite sonhar com uma sociedade mais solidária e cria novas utopias », conforme a apresentação feita pela mídia4. Trata-se de abordar « a construção de um mundo melhor, a questão da convivência, com a expressão de seus desejos ». Manifestação popular, a Bienal da Dança se fundamenta sobre a ideia de reunir bailarinos amadores de todas as idades, vindos dos bairros e de municípios da comunidade urbana. O desfile dos vinte e cinco grupos coreográficos põe 200.000 pessoas nas ruas, segundo seus promotores que lembram ser o desfile uma das manifestações internacionais de dança contemporânea mais importantes no mundo.

Há também a festa das « Luzes » que dá destaque à cidade de Lyon, originando-se numa distante referência religiosa. De fato, no século XIX, a Igreja Católica Romana, que se contrapunha ao liberalismo da « Europa das Luzes », procurava meios espetaculares para se opor à continuidade da Contra-Reforma do século XVI. É nesta perspectiva, de « despertar a fé », que foi erguida na colina de Fourvière uma basílica, dedicada à Virgem Maria, « mulher trajada de luz ». Desde 1999, Lyon « recuperou » esta « tradição » com fins turísticos e comerciais. A colina de Fourvière, desde então, está associada a espetáculos promovidos pela municipalidade para a festa das « luzes », no dia 8 de dezembro, ocasião em que « várias procissões religiosas sulcam a colina em homenagem à Virgem, e jogos de luz, grandiosos e supreendentes, valorizam os locais históricos». Esta « Festa das Luzes » recebe cada vez mais espectadores (mais de 3 milhões em 2008) e prepara cenografias cada vez mais ambiciosas.

Para colocar em perspectiva esta política cultural e sua grandiosa extensão, é preciso sem dúvida destacar que o papel das cidades, desde o século XIX e ainda mais fortemente a partir dos anos 1970, não parou de se afirmar. Os equipamentos culturais chamados de proximidade oferecem desde então tanto uma forma de satisfazer as demandas dos públicos socialmente inclinados a práticas e consumos culturais quanto uma mostra diretamente ligada à identidade das cidades. Em alguns aspectos a oferta e a demanda são condicionadas pela história local e suas características mais marcantes. Assim, algumas festividades, como as « iluminações » já evocadas por suas luzes e efeitos de iluminação recentemente aprimorados, se caracterizam por formatos religiosos em Lyon, uma cidade com visíveis referências católicas.

Dessa forma, a cidade se oferece, em suas ruas e manifestações, como um espaço para instituir uma outra relação com a festa e sobretudo uma

102

4 http://rhone-alpes-- a u v e r g n e . f r a n -c e 3 . f r / e m i s s i o n s /partenariats/14eme--biennale-de-la-dan-se -55597779.html . Acesso maoço 2011.

Abdelhafid Hammouche

Page 98: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

outra relação de alteridade com populações ainda hoje relativamente desconsideradas. A rua permanece um lugar de tumulto e de desordem potenciais, condicionada pela relação com o desconhecido. É um outro espaço, onde permanentemente o comum que liga seus usuários se revela frágil e em constante construção. Mas o que se depreende dessas manifestações é que a rua se torna palco e tempo organizados para a comunidade, para cristalizar pontualmente o elo entre desconhecidos. O « baroud » ou os festejos do dia nem sempre permitem adivinhar o necessário trabalho de vários meses nem a construção de uma linguagem comum que isso impõe. É o que se pode ver no desfile que precede e abre a Bienal da Dança de Lyon, a qual oferece um conjunto de espetáculos, sobretudo na Maison de la Danse. Esse desfile mostra a vontade de « atrair » a periferia para o centro da cidade e se traduz por um conjunto de ações rumo às cidades e aos equipamentos da cidade para mobilizar os públicos desses territórios ditos sensíveis5.

« Façam a festa », foi aliás a palavra de ordem do catálogo do primeiro desfile da Bienal da Dança de Lyon, o que em 1996 implica 16 grupos vindos de Lyon e de seus arredores. Serão em torno de 20 no segundo em 1998 e quase 30 no de 2000 (DUJARDIN, 2000). E a questão é realmente de ver como, vindos de Beaujolais, de Vénissieux e de outros lugares, eles conjugarão língua singular e língua comum. Fazem, essas pessoas daqui vindas de todos os lugares, figuração ou representação? O primeiro desfile, consagrado ao Brasil, foi aberto e fechado por grupos de brasileiros. Em 2000 havia apenas un grupo de chineses para o desfile consagrado à « rota da seda ».

Conclusão

Evidentemente, com relação às manifestações pontuais, surge a questão de seu status : momento especial que, como o carnaval, autoriza o que normalmente está proscrito ? Ilustração de uma política cultural local? Ou mais amplamente, reflexo de dinâmicas sociais complexas ? A preparação prática do desfile e sua realização tornam-se momentos de improvisação que se enquadram pelo tema e a perspectiva do desfile em um processo de criação e de ajustes, os quais revelam um processo de apropriação ou de interação entre animadores e amadores vindos da periferia e de Lyon. Esta dinâmica de retoques, de dificuldades, pode ser lida como a expressão de uma « comunalização », ou seja, uma comunidade simultaneamente efêmera, inacabada e desejada. A própria estruturação da preparação do desfile que abre a Bienal mostra que há um pouco de tudo isso. O desfile assumiu uma dimensão incontestável e adquiriu inclusive renome internacional, podendo-se então pensar que ele responde à necessidade da

103

5 O subúrbio e o centro da cidade se definem bem mutuamente. O subúrbio engloba as cidades da aglomera-ção, que formam uma « coroa » ao redor da ci-dade « grande ». Esta atração, esta conver-gência para Lyon, par-ticipam da confirmação do papel de liderança que a cidade quer ter. A periferia significa também distância tanto espacial quanto social sobretudo pela referên-cia mais ou menos im-plícita à « degradação » (das edificações, dos espaços, da vida social com delinquência ...)9 Equipamentos de pe-queno porte, geralmen-te destinados ao públi-co dos próprios bairros.

A Arte a serviço da cidade?

Page 99: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

cidade de se afirmar com um local artístico de « alta qualidade ». Mas os temas adotados – « Aquarela do Brasil », « O mediterrâneo » e « As rotas da seda » – atestam igualmente uma pretensão de retrabalhar a questão da alteridade. Eles se prestam a uma tentativa de valorizar as recomposições culturais, o que se reflete em grande parte igualmente nos temas das bienais de arte contemporânea de Lyon ( Os exotismos em 2000).

Esta vontade de « se abrir » para o mundo e de ancorar Lyon em uma dimensão de « cruzamento » por meio de sua história e de sua geografia se acompanha de uma vontade de «criar a cidade »10. Os termos e os temas escolhidos se reafirmam, de alguma forma, e entram em ressonância com a alteridade, indo além dos significados unicamente urbanísticos e institucionais (os da Courly, a comunidade urbana de Lyon ou da Grande Lyon, com seus cinquenta e cinco municípios).

Enfim, a relação que se instaura com a cidade reflete certamente as relações de força que atravessam a associação dos indivíduos e dos grupos, mas decorre igualmente da estratégia da cidade no âmbito cultural que tende a querer afirmar sua identidade no plano internacional. A política cultural local é bem construída com fontes de financiamento cruzadas que permitem ver que toda política local se inscreve num quadro nacional, mas pode-se pensar que a construção europeia e a aceleração dos intercâmbios internacionais enfraquecem as identidades nacionais e oferecem uma oportunidade de afirmação da identidade local. Nesse sentido, a política cultural poderia ser pensada como um conjunto de ações participantes da « globalização » do local, ou seja, que contribui para dar a parcela de simbólico ao local para que este seja um « todo » e que concorre assim a uma redefinição da relação local-nacional.

104

RESUMÉ: Cette contribution reprend les termes du séminaire « Interfaces : art, ville et subjectivités contemporaines » en essayant de caractériser la ville en général puis en analysant, à partir de quelques exemples puisés dans l’histoire récente de Lyon en France, la place que prend l’art dans l’espace urbain. L’exemple de cette ville montre comment s’affiche une volonté «d’ouvrir» sur le monde tout en cherchant à faire agglomération. La relation qui s’instaure avec la ville reflète certes les rapports de force qui traversent l’association des individus et des groupes mais découle également de la stratégie de la ville dans le domaine culturel qui tend à vouloir affirmer une identité sur le plan international. La politique culturelle locale se construit bien avec des sources de financement croisées qui donnent à voir que toute politique locale s’inscrit dans un cadre national mais on peut penser que la construction européenne et l’accélération des échanges internationaux affaiblissent les identités nationales et offrent une opportunité d’affirmation de l’identité locale. En ce sens, la politique culturelle pourrait être pensée comme un ensemble d’actions participant à la « globalisation » du local, c’est-à-dire contribuant à donner la part de symbolique au local pour que celui-ci soit un « tout» et concourant ainsi à une redéfinition de la relation local-national.

Mots-clés ville, politique culturelle, subjectivité, art, sociétés contemporaines.

ArtigoRecebido: 22/03/2011Aprovado: 09/05/2011

Abdelhafid Hammouche

Page 100: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Referências

DUJARDIN, Philippe (Org.) Quand la ville danse - la naissance d’un défilé, Editions Lyonnaises d’Art et d’Histoire, 2000.

HANNERZ, Ulf. Explorer la ville: éléments d’anthropologie urbaine. Col. Sens Commun. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983.

SHORTER E. Naissance de la famille moderne, Paris, Seuil, 1977.

YOUNG M., WILLMOTT P. Le village dans la ville. Paris, Centre G. Pompidou CCI, 1983.

105A Arte a serviço da cidade?

Page 101: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

107(*) José da Silva Ribeiro - CEMRI/Laboratório de Antropologia Visual Universidade Aberta. @ - [email protected]

Cultural hybridization: migrants sonority in Latin America

José da Silva Ribeiro *

Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

Palavras-chave: hibridação; hibridismo; mestiçagem; crioulização; sonoridades migrantes.

RESUMO: Embora sejam muitos os objetos possíveis do processo de hibridação cultural ou mestiçagem, ou “crioulização”. Elegi, para este trabalho, como objeto da hibridação cultural as sonoridades migrantes. Para a reflexão proposta tentarei definir os conceitos que giram em torno do encontro entre culturas, os objetos de hibridação e situações, contextos e locais em que esta acontece. Talvez devesse utilizar preferencialmente o conceito de mestiçagem em vez de hibridação ou hibridismo. Estou de acordo com os autores que consideram que a dimensão temporal é o que distingue a mestiçagem de outras formas de união, como o hibridismo, o misto, a mistura, que podem ser apreendidos estaticamente. A mestiçagem é mais sonora que visual, mais musical que pictórica, mais narrativa que descritiva. Parece-me pois necessária uma revisão dos termos e conceitos e a reflexão teórica e sua aplicação no objeto e situações abordadas nesta comunicação.

ntrodução

Embora sejam muitos os objetos possíveis do processo de hibridação cultural ou mestiçagem, ou “crioulização”. Elegi, para este trabalho, como objeto da hibridação cultural as sonoridades migrantes na América Latina. O que

I

O que se assemelha não é forçoso que se reúna e o que se reú-ne não é forçoso que se assemelhe.

O devir nunca se adivinha: esta é a dinâmica, vibrante e frágil da mestiçagem. (Laplantine e Nouss)

Page 102: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

108 José da Silva Ribeiro

entender pois por sonoridades migrantes? Quais as razões desta escolha? Como se reconfiguram na América Latina ou na circularidade Cultural Euro-Afro-Brasileira ou Euro-Afro-Atlântica? Para a reflexão proposta tentarei definir os conceitos que giram em torno do encontro entre culturas, de objetos de hibridação, de situações, contextos e locais em que acontece. Estamos certos, como afirmam Laplantine e Nouss, que, em todas as formas de estar no mundo e todas as formas de expressão, “a mistura nada tem de circunstancial, de contingente, de acidental. A condição humana é o encontro, nascimento de algo diferente que não estava contido nos termos em presença. Não é, pois necessário reivindicar a miscigenação, fazer a defesa da mestiçagem como se estivéssemos confrontados com uma alternativa, porque ela não é senão o reconhecimento da pluralidade do ser e do devir” (2009:71). No entanto, raramente a mestiçagem e o hibridismo foram pensadas como tal. A reflexão sobre este fenómeno raramente existiu nas sociedades não ocidentais e no ocidente foi sistematicamente ocultado. Urge pois o pensamento mestiço sobre objetos e contextos precisos. Escolhemos as sonoridades para esta reflexão como sequência de trabalhos e da pesquisa anteriormente realizados em Portugal, em França e na América Latina, mas também porque talvez a arte mais mestiça seja a música, a mestiçagem mais auditiva que visual mais polifónica que dualista ou monista (Laplantine e Nouss). O cinema e o pós-cinema estiveram sempre presentes nesta reflexão, como representação dos fenómenos enunciados mas também por ser uma arte mestiça (colagem e a montagem) e como arte migrante (muitos cineastas migram ou migraram para os lugares ou sociedades em que é possível fazer cinema) e o fenómeno migrante bem como as sonoridades migrantes desse processo de mediação (como memória e como representação). O pensamento mestiço é um pensamento de mediação, de participação de transformação “dirigido para um horizonte imprevisível que permite restituir toda a dignidade ao futuro” (2009:84). Se esta reflexão vem na sequência de trabalhos anteriores ela é também o início de um percurso e, portanto, um índice para investigação futura de que esta comunicação é início e abertura para perspectivar a análise comparativa.

Sonoridades Migrantes

Poderemos encontrar o processo ou fenómeno da hibridação cultural em toda a parte e nos diversos domínios da cultura – nas religiões sincréticas, nas filosofias ecléticas, na culinária, nas artes, na arquitetura, na literatura ou mesmo na ciência. Até a ciência é policêntrica e contaminada pelo subjetivismo, pela reflexividade.

Escolhemos como objeto desta abordagem as sonoridades migrantes. O que entender por sonoridades migrantes? Não pretendemos apenas abordar a

Page 103: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

109Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

música mas um objeto mais amplo: as sonoridades. Sonoridades das vozes, da fala, do acento e do ritmo linguístico, dos rumores, das orações, das sonoridades dos lugares vividos, dos instrumentos, do canto, dos reportórios, do grito de êxtase ou de dor, do silêncio.

Pretendemos abordar as Sonoridades em contexto. Inscritas em processo sociais e culturais.

[…] para nós, a música (e as sonoridades) não pode(m) mais ser consideradas como fenómeno inerte dentro da cultura, prática segunda, ou produto derivado: ela é socialmente decisiva e psicologicamente ativa. Não é só indispensável à festa, ao ritual, à possessão, à caça e a tantas atividades humanas: pode construir categorias de pensamento e de ação. Não contente em acompanhar a possessão, fornece-lhe o enquadramento sonoro e gestual; do ritual, não é simples acessório, mas um dos atributos principais; nas manifestações coletivas reunindo músicos e público, indica o conteúdo da ação comum; e quando alcança o domínio religioso, não o faz como cenário ou simples suporte sonoro da devoção, mas como essência do ato devocional, encarnando o divino […]: divino do qual se pode pensar que é tanto mais sensível às sonoridades humanas, quanto é ele mesmo de natureza sonora.” (p.14). “Música, antropologia: a conjunção necessária (LORTAT-JACOB, E OLSEN, 2004: 7-26).

As sonoridades têm um papel importante em todas as sociedades e culturas, ainda que de forma diferenciada em cada uma delas, é imperativo que os antropólogos estejam abertos a este facto e à sua emergência tanto nas sociedades “tradicionais” quanto nas complexas, na “antropologia em casa”, “na moderna cidade ocidental” (FINNEGAM, 2002) ou nos movimentos das populações – os migrantes, os povos nómadas, as diásporas. As sonoridades viajam com os povos: a voz, a fala, canto, os reportórios, as orações, o grito, o protesto e o silêncio, e no encontro continuamente se misturam e/ou permanecem em tensão.

Algum de nós poderia imaginar Paris e os bal musette animados com uma gaita ou por uma gaita-de-foles. Pois é verdade. La cabrette (gaita de foles) foi durante muito tempo o instrumento que animou os bistrots (bares) parisienses. La cabrette (gaita de foles) foi trazida para a cidade por migrantes internos Auvergnats que distribuíam carvão e água quente1 até que um instrumento inventado por um austríaco foi introduzido nos bals musettes por emigrantes

1 Georges Bras-sens - Chanson pour l’auvergnat - http://www.you tube . com/watch?v =R4YTPe-Nobjo

Page 104: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

italianos. Este instrumento impor-se-á rapidamente e fez durante muito tempo dançar, durante a primeira metade do século XX, milhares de pares parisienses. O acordeão, la musette2, tornou-se quase um ícone sonoro da identidade parisiense. Muitas outras histórias semelhantes se poderiam contar em cada um de nossos países (BEAURENAUT, 1993).

Procuramos incluir no conceito de sonoridades migrantes não apenas os migrantes atuais, processo migratório propriamente dito como fenómeno de todos os tempos e lugares e os encontros que daí advieram, mas também uma outra forma de transferência massiva de mão-de-obra o tráfico atlântico de escravos3 e a colonização. As razões desta escolha radicam na similitude entre estes dois processos sócio-históricos diferenciados. Os migrantes partem por sua livre iniciativa (são livres), no entanto, os constrangimentos são semelhantes aos dos escravos: crescimento demográfico, as carências locais decorrentes de conflitos e de catástrofes naturais, a pobreza nos locais de origem dos imigrantes; crescimento dos recursos financeiros (capital financeiro) nos países ou regiões receptoras, e as mudanças tecnológicas decorrentes da adoção de novas tecnologias e de novos processos ou sistemas.

Aquando da escravatura na era do tráfico afro-atlântico, áfrica sofria de “secas e conflitos afins - ou as guerras empreendidas por fatores locais – ocasionalmente criavam refugiados cuja esperança de vida se tomava tão precária que podiam ser comprados pelos europeus por muito menos que o valor da mão-de-obra das pessoas que ali sobreviveriam… Nas terras ao sul do Congo, conhecidas desde então por Angola, eram propensas a secas prolongadas e, ao longo da década de 1570, entraram num período de grave estiagem, instabilidade política e guerras - (crises económicas temporárias ou a crises ecológicas….)” (MILLER:1997). O aumento do capital decorre da exploração mineira (ouro e prata) e múltiplos fatores levaram países europeus (Holanda, Alemanha, Itália) a, após a exploração mineira em África e nas Américas, centrar investimentos na produção açucareira (fábrica rural). A implantação da monocultura da cana do açúcar e o desenvolvimento tecnológico a nível dos transportes (barcos negreiros) e dos engenhos, a inovadora adaptação dos engenhos a novas e mais eficazes energias – engenho hidráulico, iniciada na Ilha da Madeira e já usado na moagem dos cereais, e dos engenhos de alta eficiência, com três cilindros - o verdadeiro “engenho” do Brasil, tomou-se uma importante contribuição à consolidação do açúcar e da escravidão no nordeste brasileiro (MILLER:1997).

Porquê escravos africanos. Os colonos brasileiros voltaram-se, inicialmente, para a mão-de-obra indígena capturada localmente ou comprada aos caçadores de escravos paulistas, os bandeirantes, que se fixaram no sudoeste.

110 José da Silva Ribeiro

2 Sous le ciel de paris - Edith Piaf - http://www.youtube.com/wa-tch ?v=72JCf18LGfc e Paris Musette http://www.harmattantv.com/video_pop.php?url_v i d e o = h t t p : / / v o d .harmattantv.com/vide-os/_uploads/extraits/paris-musette.divx (ou http://www.myskreen.com/ programmes/ jean+pierre +beaure-naut). 3 Há muita divergên-cia entre os historiado-res, alguns chegaram a projetar 50 milhões, mas R. Curtin (in The Atlantic slave trade: A census, 1969) estima entre 9 a 10 milhões, a metade deles da África Ocidental, sendo que o apogeu do tráfico ocor-reu entre 1750 a 1820, quando os traficantes carregaram em média uns 60 mil por ano. O tráfico foi o principal responsável pelo vazio demográfico que aco-meteu a África no sé-culo XIX.

Page 105: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Como escravos, os índios eram notoriamente difíceis de controlar e inclinados a desertar para as suas conhecidas florestas que os rodeavam. Embora trabalhassem muito pouco, sofressem cruelmente e morressem devido ao contacto com as doenças europeias4, os índios (ameríndios), ofereciam uma vantagem crucial neste período inicial: o fato de serem adquiridos por uma pequena fração dos custos da mão-de-obra africana. Igualmente relevante para o processo em curso foi o fato de poderem ser trocados por mercadorias, ou simplesmente capturados, em vez de exigirem um dispêndio em moeda, como o exigiam os africanos vendidos pelos comerciantes europeus. O baixo custo dos indígenas, por conseguinte, compensou as severas desvantagens dos escravos africanos. A hipótese de fomentar a imigração não se tornava possível: os imigrantes provenientes da Península Ibérica não existiam em número suficiente, os de Inglaterra e de outras regiões europeias surgiam apenas em momentos de recessão económica. Se se tivesse, porém, optado pela imigração elevado número de migrantes europeus deslocados para os lugares da produção (Américas) diminuía o mercado europeu de consumo de produtos provenientes do Novo Mundo e seriam elevados os custos de pagamentos de salários e outros incentivos aos colonos livres.

A mão-de-obra africana era então a possível. Os africanos escravizados, como propriedade que eram, adquiriram um valor monetário e, como tal, representavam garantia financeira adicional nas fronteiras da economia atlântica. África não estava incluída no padrão monetário de ouro e prata da Europa e da Ásia. Adaptação dos escravos às novas situações de trabalho e resistência às doenças e epidemias (epidemiologia) constituíam uma vantagem em relação aos ameríndios. Ao contrário dos ameríndios, os negros já estavam adaptados à agricultura e pastorícia. Portugueses e espanhóis consideravam-nos melhores trabalhadores – um africano poderia fazer o trabalho de quatro a oito ameríndios e respondiam melhor aos requisitos sanitários. A Igreja católica tinha também uma proteção militante em relação aos ameríndios (MARQUES, 2004: 45).

Acresce a estes fatores o fato de muitos dos escravos virem de África cristianizados e se integrarem com suas práticas religiosas e dinâmicas sociais em rituais cristãos – cultos dos santos e de Nossa Senhora do Rosário, integração na procissão do Corpus-Christi, etc. A organização de rituais, como a congada, coroação de reis cria simultaneamente um processo de integração e de identificação. Uma tensão entre os elementos da cultura africana e da cultura europeia e o consequente processo de mestiçagem e de práticas religiosas sincréticas. A conversão do rei do congo5 em finais do século XV e a consequente cristianização do reino, prevalece, não obstante os conflitos internos, na etnia Bantu entre os escravos africanos.

4 Segundo alguns au-tores tratou-se de uma das maiores catástrofes demográficas da histó-ria de 70 ou 80 milhões de habitantes existen-tes no sec. XV, as Amé-ricas baixaram para cerca de 8 milhões no século XVII (Marques, 2004:44). 5 O réu do Congo, mani Congo, foi bapti-zado, tomando o nome do rei de Portugal D. João I e os outros fidal-gos, nomes de fidalgos da “Casa d’El-Rei de Portugal”, seguindo na linha analógica predo-minante desde o come-ço das relações entre os dois povos (Vainfas e Souza, 2004).

111Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

Page 106: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Finalmente após a abolição da escravatura sucedeu-se uma imigração massiva da Europa para as Américas e, mais tarde, são migrantes africanos que procuram aqueles mesmos destinos. Dá-se então o encontro entre os dois grupos. Os descendentes de escravos e os migrantes de origem africana e de origem europeia. O encontro destes grupos é também encontro em torno das sonoridades migrantes e entre sonoridades migrantes que se misturam.

Os cabo-verdianos na Argentina são um exemplo deste encontro. A presença africana na Argentina decorrente de duas vagas – a da escravatura que se verifica a partir do início do século XVIII (música daí decorrente - candombe) e a imigração, sobretudo cabo-verdiana, que se inicia em finais do século XIX (mornas e outras formas de expressão musical da comunidade cabo-verdiana). A imigração dos cabo-verdianos para a Argentina inicia-se em finais do século XIX. Adquire relevância nos anos 1920 com a presença de pequenos grupos. Os períodos de maior afluência verificam-se entre 1927 e 1933 e depois de 1946. Quase sempre estes períodos coincidem com dois fatores: os períodos de fomes cíclicas em Cabo Verde e as facilidades de aceitação de imigrantes na Argentina (MAFFIA, 1986). No Censo de 1980 a comunidade cabo-verdiana na República Argentina tem cerca de 8.000 residentes e atualmente estima-se que a população total seja de cerca de 12.000 a 15.000. Destes só cerca de 300 são originários de Cabo Verde. Os restantes nasceram na Argentina. Em Cabo Verde o discurso da crioulização e da influência europeia foi mantido pelas elites culturais e literárias. Após a independência a componente africana ganha relevo, mas tende a perdê-lo após as mudanças políticas de 1989 e 1991. Na diáspora, onde por vezes persistem os símbolos da 1ª fase, o debate entre as duas correntes permanece nas opções políticas e nos discursos locais, mas a componente africana parece dominante. Também na expressão e nas escolhas musicais prevalece a aproximação das duas componentes da cultura cabo-verdiana. No entanto, na Unión Caboverdeana de Socorros Mútuos de Dock Sud - Argentina, como noutros espaços migratórios (Portugal, Holanda, EUA), parecem claras as contaminações por uma “africanidade global” (ALMEIDA, 2005) manifestas nas estratégias de adesão dos dirigentes a redes relacionadas com a cultura negra. É sobretudo a negritude, marcas raciais, que são referidas na identificação com outros negros provenientes de outros processos históricos e nas estratégias de relação com os movimentos da globalização da africanidade.

São pois diversos os contextos em que estudo os processos de hibridação cultural no âmbito das sonoridades migrante:

1. Em primeiro lugar no âmbito das sonoridades urbanas. Sonoridades parisienses, pela paixão que sempre nos liga a Paris mas também

112 José da Silva Ribeiro

Page 107: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

pela abordagem desta problemática no cinema sistematizada no documentário Paris Musette (1993) de Jean-Pierre Beaurenaut. Atualmente centramos a investigação nas sonoridades migrantes no Porto e na base de dados sobre Imagens e sonoridades das migrações6 e na cooperação com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul iniciada no VI Seminário Internacional imagens da Cultura / Cultura das imagens com realização do Workshop Paisagens sonoras urbanas, sonoridades das migrações, imagens sonoras da cultura coordenado por Viviane Vedana, BIEV da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil e Migel Alonso, Universitat Rovira i Virgili, Tarragona, Espanha.

2. Da mesma época, desde 1995, a reconstituição de um ritual cabo-verdiano Colá S. Jon, na periferia urbana de Lisboa. Hoje largamente representado no cinema: Onde os tambores se inventam e Colá S. Jon Oh que sabe (1995) de José da Silva Ribeiro, Fados (2007) de Carlos Saura, Ilha da Cova da Moura7 (2010) Rui Simões. Este trabalho teve continuidade em Cabo Verde e na Argentina (RIBEIRO E MAFFIA, 2007).

3. Interculturalidade Afro-Atlantica – Projeto iniciado em 2000 sobre a Cultura Bantu na América Latina (Brasil, Cuba, Argentina e Uruguay). Base de dados – Interculturalida aafro-atlântica8 (RIBEIRO, 2008).

4. O fado, a morna e a música brasileira são objeto do nosso interesse e da nossa investigação porque referências incontornáveis de mestiçagem sonora e musical.

H i b r i d a ç ã o , m e s t i ç a g e m , c r i o u l i z a ç ã o (problematização do conceito)

São muitos os termos utilizados na abordagem da relação ou interação entre culturas. Termos que revelam as dificuldades dessa abordagem e os múltiplos pontos de vista a partir dos quais podem ser abordados. Peter Burke refere cinco metáforas.

Na metáfora económica refere termos como imitação, apropriação, empréstimo, trocas culturais, transferência, acomodação e negociação. Nos termos, existem múltiplas e distintas dinâmicas culturais uma mais passiva da imitação, empréstimo, transferência, acomodação outra mais ativa, apropriação, acomodação negociação e trocas culturais; uma predominante recetora – apropriação, acomodação, outra emissora – empréstimo, transferência.

113Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

6 http://ism.itacapro-ject.com

7 Ilha da Cova da Moura http://www.you tube . com/wa tch?v=U58U6m GJOmk 8 http://afro.itacapro-ject.com

Page 108: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

A metáfora zoológica ou biológica os termos usados pelo autor são mistura (miscelânea, mixórdia), sincretismo, hibridismo. No discurso da cultura atual, o termo “bricolage” tornou-se equivalente de hibridismo. O híbrido é puro por definição, esclarece Andrés Galera (comunicação pessoal): a combinação pode dar a ideia de impureza, por o híbrido não ser A nem B. Porém o facto de ser AB faz dele um novo tipo, original e puro. É que o hibridismo diz respeito aos fenómenos da reprodução dos seres vivos, o que é muito diferente da infinita reprodução mecânica das imagens de que fala Walter Benjamin. Peter Burke considera o termo hibridismo um termo escorregadio, ambíguo, ao mesmo tempo literal e metafórico, descritivo e explicativo e consequentemente ele próprio híbrido mas demasiado botânico, isto é, estuda a cultura como se tratasse da natureza. Focaliza um resultado, um produto, um ser autónomo exterior aos seus agentes falta-lhe a dimensão temporal que o distingue da mestiçagem (LAPLANTINE E NOUSS, 2002). Sincretismo parece remeter para algo que exclui o agente individual. Mistura (miscelânea, mixórdia) soa a mecânico e por vezes a desprezível ou de pouca importância.

As metáforas, metalúrgica e a culinária usam os termos de caldeira de culturas, ensopado cultural ou caldo de culturas. Ambas se problematizam em termos de produto – liga metálica ou cozinhado em que sobressai a ideia que as diferenças (biológicas étnicas e culturais) no encontro tendem a esbater-se com o tempo, dando origem, por fusão entre os membros que compõem a população, a uma nova sociedade. O termo mais técnico de aculturação, cunhado pelos antropólogos em finais do sec XIX baseia-se na ideia que a cultura dominada acaba por adotar os padrões da cultura dominante. Fernando Ortiz desenvolve a ideia de reciprocidade no encontro entre culturas criando o termo transculturação. Assim a influência não é apenas da cultura dominante mas recíproca – a cultura dominada tem um papel importante na interação entre culturas.

A metáfora linguística aponta para os conceitos de tradução cultural e crioulização. Para Peter Burke é a noção mais útil e menos enganosa. O termo, utilizado inicialmente pelos antropólogos - Malinowski e Evans Pritchard e mais tarde por historiadores da cultura e da arte, tem a vantagem de remeter para o trabalho pelo tradutor, isto é, pelos indivíduos ou grupos para a compreensão / apropriação / subjetivação / interiorização do que é estranho, estrangeiro, exterior. O conceito remete para relativismo cultural e para as dificuldades ou impossibilidade da tradução – tradutor-traidor, traduttore-traditore. Outro termo no âmbito da metáfora linguística é a crioulização, isto é, quando duas ou mais línguas baseadas nas suas afinidades e convergências uma vez em contacto tendem a convergir e a criar uma terceira

114 José da Silva Ribeiro

Page 109: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

que frequentemente adota a maior parte do vocabulário de uma das línguas e por vezes a estrutura ou a sintaxe da outra. O antropólogo sueco Hannerz descreve culturas crioulas como aquelas que tiveram tempo de se aproximar de certo grau de coerência e podem juntar as coisas de novas maneiras. Isto pode dar origem a estudos de convergência cultural. Convergência cultural e cultura da convergência nas dinâmicas culturais, nas linguagens (das sonoridades como arte e como linguagem) e nos media – convergência de modo em que se tornam imprecisas as fronteiras entre os media.

Concluímos que existem muitos termos aplicáveis ao estudo das interações culturais. Para Perter Burke precisamos de todos ou de vários uma vez que uns enfatizam os agentes e ação humanas (apropriação, tradução, etc.) outros, as modificações de que os agentes não têm consciência (hibridação, crioulização, etc.).

Laplantine e Nouss optam por um único termo – mestiçagem, e apresentam-na como algo inerente à condição humana mas raramente pensada como tal, sugerem um amplo programa de pesquisa – pensamento de separação, pensamento analítico de decomposição e identificação dos elementos em presença e pensamento de fusão – pensamento sintético visando a (re)composição a reconciliação dos elementos em presença – no encontro entre culturas e nas linguagens, e o histórico e devir do conceito e dos processos de mestiçagem.

A mestiçagem não deixa porém de ser constatada como condição humana e expressão cultural e artística mas também como receio do impuro, da dissolução das fronteiras e da identidade da perda de fronteiras e marcas bem definidas. “A condição humana (a linguagem, a história, o ser no mundo) é encontro, nascimento de algo diferente que não estava contido nos termos em presença. Não é, pois, necessário reivindicar a miscigenação, fazer a defesa da mestiçagem como se estivéssemos confrontados com uma alternativa, porque ela não é senão o reconhecimento da pluralidade do ser no seu devir”. No entanto paradoxalmente, a mestiçagem raras vezes foi pensada como tal. O pensamento mestiço é um pensamento minoritário. Ele nunca existiu, por assim dizer, nas sociedades não ocidentais e foi sistematicamente ocultado no Ocidente durante um período bastante longo… Visto a anti-mestiçagem ser, em geral, a regra (a regra, a lei, a norma, o paradigma), é esta que convém examinar primeiro, nas suas duas ver¬tentes opostas, embora tão fictícias uma quanto outra, e que, paradoxalmente, se encontram no essencial: o pensamento da separação, pensamento analítico da decomposição em elementos, mas também da pureza que vai dar lugar a tan¬tas ficções identitárias; o pensamento da fusão, neste caso um pensamento sintético que visa a reconciliação dos contrários e está também muitas vezes na origem de numerosos totali-tarismos” (LAPLANTINE E NOUSS, 2002:72).

115Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

Page 110: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

A primeira dimensão da mestiçagem que ressalta e se torna evidente é visual e espacial como o verificamos na cor da pele dos humanos, na pintura ou na arquitetura ou noutras artes visuais. Esta dimensão é quantificável. Possível identificar seus elementos constituintes e verificar suas fronteiras. Laplantine e Nouss consideram que “para nos libertarmos dessas fronteiras e dar-lhe toda a amplitude conceptual que lhe é devida, é necessário passar do espacial ao temporal, ou seja, ao qualitativo, ao incerto, ao que flui e escapa… A dimensão temporal é o que distingue a mestiçagem das outras formas de união, como o misto ou o híbrido, que podem ser apreendidos estaticamente. Porque não é um estado mas sim uma condição, uma tensão irredutível, a mestiçagem está sempre em movimento, alter¬nadamente animada pelos seus diferentes com¬ponentes. A sua temporalidade é a do devir, constante alteração nunca consumada, uma força que avança, veículo das mudanças inces¬santes que fazem o homem e a realidade. É por isso que se podemos identificá-la ao longo da História, é-nos impossível erigir monumentos à mestiçagem. O devir não é o terceiro tempo de uma valsa cronológica que, conjugando memória e encon¬tro, se substituiria à tríade passado-presente-futuro. O devir, que os percorre a todos, nunca está fixo nem fixado, é imprevisível e irreversí¬vel. Por outro lado, se está virada para o futuro, a mestiçagem não pode contar com ele nem conjeturar resultados: um encontro pode não ter amanhã. O que se assemelha não é forçoso que se reúna e o que se reúne não é necessário que se assemelhe. O devir nunca se adivinha: esta é a dinâmica, vibrante e frágil, da mestiçagem” (LAPLANTINE E NOUSS, 2002: 117-119). As sonoridades como artes do tempo e as sonoridades migrantes como resultantes de processo históricos que se dilatam no tempo são pois objeto e situação privilegiada para o estudo da miscigenação ou para o hibridismo, se pretendermos utilizar o termo mais frequentemente utilizado na literatura anglo-americana. A dificuldade da análise decorre precisamente do facto da dissolução das fronteiras, da dificuldade de identificar os elementos constituintes da cultura e da expressão do encontro. Daí o facto de a abordagem desta temática estar frequentemente envolvida em controvérsias científicas como recentemente verificamos em relação ao Fado (NERY, 2010).

Sonoridades na América Latina – circularidade cultural

Os contextos, locais e situações em que abordei estes encontros em que as sonoridades migrantes ganham relevo são muito diversificados. Têm, no entanto, muitas características comuns que permitem estudos comparativos. Uma destas características é o acontecerem sempre em situações de desigualdade económica, social e política: desigualdades entre a situação de

116 José da Silva Ribeiro

Page 111: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

migrante e dos autóctones e perante o trabalho, habitação e as instituições do país de acolhimento. Este, o caso de Paris em relação aos migrantes internos mas especialmente em relação aos migrantes estrangeiros (aos italianos em Paris Musette) em relação aos migrantes portugueses em muitos dos filmes apresentados na base de dados Imagens e sonoridades das migrações9. Não há neste caso um histórico de encontros anteriores ao processo migratório como verificamos nas situações pós-coloniais que abaixo referimos.

Na situação do encontro e das interações culturais na Cova da Moura, no âmbito de realização do ritual Colá S. Jon há um histórico colonial que configura este ritual como um encontro entre culturas em Cabo Verde – africana e europeia. A sua realização em Portugal constitui uma espécie de circularidade cultural. O mesmo acontece quando imigrantes brasileiros comemoram no Porto a independência no Brasil com a dança do S. Gonçalo e outras músicas e danças que partiram de Portugal, se reconfiguraram nos novos contextos da cultura brasileira e regressam ao local de origem como novas realizações. Neste processo há ainda outras variantes. As sonoridades migrantes são apresentadas espontaneamente ou controladas, integradas em processo sociais que também lhes imprimem configurações específicas: 1) são integradas em projetos comerciais – animação de bares, discotecas e outros espaços públicos, projetos educativos – reconstituição nas escolas das práticas culturais dos países de origem por agentes externos (animadores, mediadores, etc.), 2) integradas em projetos de animação sociocultural ou mesmo de criação de identidade e imagem institucional das organizações que as promovem – associações culturais, empresas dos mais diversos ramos de atividade económica – restaurantes, bares, agências de viagem, turismo, 3) em processos de criação artística de músicos que compõem a partir das referências (locais?).

A situação específica dos cabo-verdianos na Argentina caracteriza-se por uma série de fatores específicos. O primeiro é o facto de a imigração se fazer em dois contextos sócio-políticos diferentes: os primeiros imigrantes argentinos partem para a argentina como portugueses e após a descolonização em 1975 como cabo-verdianos; os cabo-verdianos, agora de nacionalidade argentina, permanecem divididos entre os que se afirmam anteriormente portugueses (evocando o cumprimento do serviço militar obrigatório e a fidelidade ao juramento à pátria e à bandeira portuguesa), os que mantendo a fidelidade à nova nação africana afirmando-se cidadãos de Cabo Verde e para além desta fidelidade cabo-verdiana se afirmam por uma “africanidade global” e desenvolvem estratégias de adesão a redes internacionais relacionadas com a cultura negra/africana. Neste caso são sobretudo a negritude e as marcas

117Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

9 http://ism.itacapro-ject.com

Page 112: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

raciais as referidas na identificação com outros negros provenientes de outros processos históricos e nas estratégias de relação com os movimentos da globalização da africanidade.

No caso específico da Interculturalidade Afro-Atlântica o encontro entre culturas é realizado em situação extrema de desigualdade – relação entre o colono e o escravo, num contexto instável de administração colonial e de transformações profundas nos sistema económico. A situação é ainda mais complexa pela introdução do cristianismo neste processo. Com efeito trata-se do estudo realizado de práticas culturais em que se inscreve o culto dos santos e de Nossa Senhora do Rosário – a congada, moçambiques, candombe (refiro apenas as guardas estudadas).

É neste contexto que se inscreve o trecho musical Senhora Rainha, recolhido por Katia Teixeira junto de José Geraldo Alves (rei Congo do estado de Minas Gerais) e interpretado pelos dois. Como canção ligada ao congado prevalece o imaginário do marinheiro e Rainha. Talvez a rainha evocada no congado, rainha Congo e mesmo a patrona do congado Nossa Senhora do Rosário. A canção em Portugal tem o título Oh Laurindinha vem à janela10, inscreve-se no cancioneiro popular e refere uma mulher e um homem que parte para a Guerra, não evoca pois nem o mar, nem a Rainha sempre presente na congada. O contexto social de uso da canção é muito diversificado. Inicialmente remetida para eventuais canções de amor que acompanham as partidas de soldados que partiam para a guerra.

Senhora RaínhaVenha na janelaVenha ver marinheiro Que la vai para a guerra

Ó laurindinhaVem à janelaVer o teu amorAi ai ai que ele vai para a guerra

Se ele vai para a guerraDeixai-o irEle é rapaz novoAi ai ai ele torna a vir

Ele torna a virSe Deus quiserAinda vem a tempoAi ai ai de arranjar mulher

118 José da Silva Ribeiro

10 Laurindinha, Dul-ce Pontes - http://w w w . y o u t u b e .c o m / w a t c h ? v = 7 1 vh8Dr5aUA&feature =related

Page 113: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

O outro contexto ou situação abordada é o das músicas urbanas e mais precisamente o fado, a morna, a música brasileira, o tango. Todas se caracterizam por ser músicas mestiças.

A administração colonial em Cabo Verde e os intelectuais cabo-verdianos privilegiaram a morna mais que outras formas de expressão musical cabo-verdiana. Trata-se do género musical que se aproximava mais da canção portuguesa e brasileira, nomeadamente do fado, e, como tal, justificava melhor uma política multirracial. É consensual que a morna é originária da Ilha da Boavista (1780/1850), como afirma o músico e musicólogo Vasco Martins “pelo menos uma espécie de proto-morna, com possíveis influências do «doce lundum chorado», vindo de Portugal e da «modinha» do Brasil”. Passou, depois, às outras ilhas “na Ilha Brava a terra em que os homens casam com o mar, como no poema de Pierre Loti, a dulcíssima estância da saudade, mercê da vida aventureira e trágica do seu povo a morna fixou os olhos no mar e no espaço azul, e adquiriu essa linha sentimental, essa doçura harmoniosa que caracteriza as canções bravenses. Elevou-se de riso a pranto, e finou, amorosamente, pelo portuguesíssimo diapasão da saudade” (Eugénio Tavares). Foi o próprio Eugénio Tavares, como afirma Vasco Martins, um dos primeiros compositores a “catalisar” as heranças da morna primordial da Boavista, onde provavelmente nasceu e as influências do ultra-romantismo português e do fado. Eugénio compunha as suas mornas numa guitarra portuguesa, era um apaixonado pela poesia camoniana e da época. A influência do fado é notória, sem evasivas. Mas a sua personalidade de cabo-verdiano e as forças “mestiças” desta pequena civilização fizeram, é claro, que as influências se tornassem num estilo característico de morna. Talvez tenha sido Eugénio Tavares o primeiro compositor a ter um estilo de morna próprio e de continuidade, solidificando a “morna bravense” que influenciaria todas as ilhas, inclusive a ilha da Boavista. É, no entanto, em S. Vicente (1910/1950) que se tinha tornado um porto cosmopolita com a presença das companhias inglesas e o movimento do porto que a morna “evoluiu com os músicos Luís Rendall, Muchim d’Monte, Miguel Patáda, músicos virtuosos da «escola brasileira» (1910/1950). B.Léza, o mais representativo, compôs melodias com o suporte harmónico dos «meios-tons» (acordes de passagem ou modulativos entre acordes principais). As influências directas da canção brasileira e do tango, então muito na moda, foram decisivas para o amadurecimento estético da Morna” (MARTINS, 2008). Vasco Martins descreve outras fases de desenvolvimento da morna, nomeadamente a “electrificação da música de Cabo-Verde, incluindo a Morna” nos anos 1960 e 1970; o nascimento de uma “nova Morna” inspirada na «canção internacional» (bolero, canção americana - Nat King Cole, Frank Sinatra, por exemplo - canção francesa, canção espanhola, etc.) nos anos

119Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

Page 114: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

de 1980 (Dany Mariano, Ney Fernandes, Jorge Humberto, Tito Paris, Betu, Antero Simas e muitos outros) e o advento atual de estilos muito pessoais, específicos de cada artista o que pressupõe a maturidade da Morna.

O fado tem origens comuns às da morna. Nasceu num cenário extremamente complexo que se situa nos confins das culturas africanas e ibérica (o lundu bantu e o fandango andaluz, (ele próprio originário do flamenco). Legado de heranças múltiplas na Lisboa do século XIX, o fado foi dançado no Rio de Janeiro11, é reinventado em Lisboa a partir dos anos de 1830 como fado cantado (Nery, 2004 e 2010). Objeto de apaixonados debates ideológicos e de múltiplas controversas em relação à sua origem, transforma uma vasta constelação de influências afro-brasileiras, vê serem-lhe sucessivamente atribuídas “origens árabe, mourisca, cigana e Occitânia, o que tem o mérito de chamar a nossa atenção para o facto de que se ele não é puramente português, é porque Portugal apenas existe enquanto exterior a si mesmo. Por último, a arte do fado (que significa destino), é a expressão do sentimento da saudade, esse sentimento mestiço que significa sofrer do prazer passado e, ao mesmo tempo, ter prazer no sofrimento de hoje. Uma espécie de blues dos povos latinos, o fado é um lamento voluptuoso que/canta a dor entre duas margens, não cessando de ir e vir sobre a terra e o mar, o céu e a terra, o sonho e a realidade, o infinito do amor e a aceitação do desamor que tem por nome destino (gente da minha terra12)” (LAPLANTINE E NOUSS, 2002:108).

Lapalantine e Nouss apontam como processo de mestiçagem na música popular a música brasileira “um exemplo chega-nos quando ouvimos cantar a brasileira Maria Bethânia. O tempo sincopado parece decididamente africano, a originalidade instrumental lembra as flautas amazónicas e a melodia recorda-nos o fado português. Os três elementos estão bem presentes, mas metamorfosearam-se completa¬mente ao contactarem uns com os outros” (LAPALANTINE E NOUSS, 2002: 107-108). O mesmo me parece em muita da música brasileira ou nas interpretações mestiças que músicas de um e outro lado do atlântico sai dadas por sonoridades (acento, ritmo, expressão) – Foi por vontade de Deus13 ou música brasileira…

Como afirmamos acima as influências da canção brasileira e o tango foram decisivas para o amadurecimento estético da Morna” (Martins). As marcas da presença africana são relevantes na cultura Argentina – Tango e o Candombe. Não deixam porém de surgir hipóteses, de que os negros contribuíram, sobretudo através do candombe, de maneira decisiva para a génese do tango (tango: bailar em Congo). O tango, de raízes suburbanas, tem também uma “história negra” que se relaciona com os ritmos afroargentinos, um “segredo” (uma história intencionalmente ignorada) desvelado pelo

120 José da Silva Ribeiro

11 Considerado no diário de Carl Schli-chthorst “uma dança de negros tão imoral e no entanto tão encan-tadora” ou no dizer de Johann-Friedrich Von Weech “uma dança imitada dos africanos no qual os dançarinos cantam”. Rui Nery sintetiza assim os di-versos aspetos do fado dançado no Brasil “as melodias cantadas são “muito livres” (Frey-cinet), e apesar de o caráter da dança ser de “elegância”, “energia” e “ligeireza” o conato pode ser “de carácter verdadeiramente poé-tico” (almeida) (Nery, 2004). 12 Gente da moi-nha terra - http://www.you tube .com/w a t c h ? v = Te O h P R _0x8E 13 Estanha forma de vida, Amália - http://www.you tube .com/w a t c h ? v = u F g c t U RyGp4; Estanha forma de vida, Caetano Ve-loso - http://www.you-tube.com/watch?v=q--w2jf W4PeQ.

Page 115: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

antropólogo Norberto Pablo Círio. “Apesar de sempre existir esse rumor sobre a presença negra no tango, esse assunto nunca foi bem estudado e compreendido”, explica ele, promotor da exposição “Historia negra del tango”, que recentemente (de 23 de Abril a 21 de Maio de 2010) se realizou em Buenos Aires no Museo Casa14 Carlos Gardel.

Pablo Círio afirma

Si hay una piedra en el zapato de la construcción de la identidad argentina es la insoslayable participación de los negros en la génesis de nuestra (hoy) música nacional, el tango. Así, con diversa suerte algunos trabajos científicos y otros no tanto, intentaron obliterar todo aquel lastre. Omitiendo voluntariamente despreciaron la propia voz de los negros, tanto la de su frondosa hemerografía, con 16 periódicos durante el período tratado que aún practican su versión de la historia, llegando así al pálido (valga el adjetivo) dictamen de que tangos de negros” (p. 4). También se advierte el uso sesgado y, por ende, tendencioso, de la bibliografía. Por ejemplo, al dar cuenta del proceso gestacional de la milonga citan al clásico libro de Lynch, pero prescinden de su afirmación de que las consecuentes con tal objetivo, validaron -todo aquello que podría limitar su plan, como la de los afrodescendientes música y poseen “No hay mucho que decir de lo mismo fue creada por los compadritos porteños “como una burla á los bailes que dan los negros en sus sitios. Lleva el mismo movimiento de los tamboriles de los candombes”. También hubieran ahorrado lamentaciones respecto a la escasez de fuentes sobre la antigua coreografía del tango de haber citado el conocido artículo del diario Crítica publicado en 1913, “El tango, su evolución y su historia”, que alguien firmó con el seudónimo Viejo tanguero. Entre otros aspectos, contiene una minuciosa descripción de cómo los negros bailaban el tango antes de que comenzara a ser de pareja enlazada (CÍRIO, 2007: 151-152).

Parece pois certo que o Tango, elevado recentemente a património imaterial da humanidade, é resultado de encontro entre culturas que se verificou na argentina, periferia de Buenos Aires, nos finais do século XIX, deriva de formas musicais de imigrantes italianos e espanhóis, dos crioulos

121Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

14 Museo Casa Carlos Gardel - http://www.museocasacarlosgar-del.buenosaires.gob.ar/

Page 116: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

descendentes dos conquistadores espanhóis que já habitavam os pampas e do “Candombe” africano. Há indícios de influência da “Habanera” cubana e do “Tango Andaluz”. O Tango nasceu como expressão das populações pobres, oriundas de todas aquelas origens, que se misturavam nos subúrbios da crescente Buenos Aires.

Também o Candombe do Uruguai, recentemente tornado património imaterial da humanidade como prática comunitária - O camdombe e seu espaço sócio-cultural: uma prática comunitária15 , é uma prática mestiça. Embora considerado como sobrevivência do acervo ancestral africano da raiz Bantú, trazido pelos negros chegados ao Rio de la Plata e remetendo genericamente para todos os bailes de negros é sinónimo de dança negra, e evocação do ritual da raça negra. O espírito musical conta dos lamentos dos escravos desafortunados, que contra a própria vontade foram levados para a América do Sul, para serem vendidos e submetidos a humilhações e duras tarefas. Eram almas sofridas, sob inconsolável nostalgia da terra natal. Na época da colónia, os africanos recém-chegados chamavam seus tambores de tangó, e também usavam tangó para denominar o lugar onde realizavam suas danças candomberas. Com a palavra tangó designava-se o lugar, o instrumento e a dança dos negros. O Candombe tem configurações específicas em Montevideo em que se tornou uma prática comunitária com afinidades com o Carnaval e a festa de Reis como em Cuba, na Argentina em que se torna prática musical fechada Shimmy Club, na Casa Suiza, ou no Brasil, Candombe na Comunidade do Açude ou noutras Comunidades (grupos ou famílias) em Minas Gerais, em que é caracterizado como prática mais ancestral que outras Guardas (Congados, Moçambiques, Caboclinhos, Catopês, Marujada, Vilão e Cavalhada) mas também ele integrado em práticas atuais do culto do Rosário e dos processos de adivinhação e cura que lhe estão frequentemente associados.

Conclusão

A mestiçagem, melhor que hibridação, reflete o processo e o devir de incessantes mudanças resultantes do encontro entre culturas e entre pessoas. A sua dimensão primordial é mais temporal que estática, mais das artes do tempo que do espaço, mais da ordem da história ou da narrativa que da descrição, mais sonora ou musical que visual, embora esta se nos revele de imediato como colagem ou montagem. O estudo da mestiçagem envolve três componentes fundamentais – a desconstrução, separação ou análise dos elementos em presença, a síntese, construção e produção, junção, combinação ou reconfiguração dos elementos que remete para uma prática criativa e as dinâmicas do devir, “o terceiro tempo de uma valsa cronológica que, conjugando memória e encontro, se substituem à tríade passado-presente-

122 José da Silva Ribeiro

15 El candombe y su espacio sociocul-tural: una práctica comunitária -http://www.you tube . com/watch?v=0BPks0 _IztU e http://www.unes-co.org/culture/ich /index.php?RL=00182

Page 117: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

futuro” e por isso “o devir nunca se adivinha: esta é a dinâmica, vibrante e frágil da mestiçagem” (LAPALANTINE E NOUSS, 2002: 118-119).

Na América Latina, o processo de mestiçagem ou de hibridação cultural, segundo Cancili, decorre da inexistência de uma política reguladora ancorada nos princípios da modernidade e se caracteriza como o processo sócio-cultural em que estruturas ou práticas, que existiam em formas separadas, combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Esse hibridismo, desencadeador de combinatórias e sínteses imprevistas, marcou o século XX nas mais diferentes áreas, possibilitando desdobramentos, produtividade e poder criativo distintos das mesclas interculturais já existentes na América Latina. Embora as elites intelectuais e artísticas tivessem condicionado de modo muito diversificado a difusão da cultura indígena e colonial junto da população, a mestiçagem interclassista decorrente desses inter-relacionamento teria, segundo Canclini, gerado formações híbridas em todos os estratos sociais latino-americanos (1995, p.70-1) e em todos os modos de expressão. Não serão estas também as dinâmicas culturais das periferias urbanas em que se juntam os migrantes provenientes de múltiplos lugares à procura de oportunidades numa sociedade pós-colonial?

RESUMÉ: Although the quantity of objects that are eligible to go through the process of cultural hybridization or miscegenation or “creolization” is big, I chose, for this study, migrating sonorities as the object of cultural hybridization. For the sake of the proposed reflection, I will attempt to define the concepts involved in the encounter among cultures, in the objects of hybridization and situations, in the contexts and places where hybridization occurs. Maybe I had better use, preferably, the concept of miscegenation rather than that of hybridization or hybridity. I agree with the authors who claim that it is the temporal dimension that distinguishes miscegenation from other forms of union such as hybridity, that which is mixed, mixture, which can be apprehended statically. Miscegenation is more sound-related than visual, more musical than pictorial, more narrative than descriptive. It seems to me, hence, that it is necessary to do a review of the terms and concepts and carry out both a theoretical reflection as well as implement its application on the object and the situations dealt with in this paper.

Mots-clés: hybridization; hybridity; miscegenation; creolization; migrating sonorities.

ArtigoRecebido: 27/04/2011Aprovado: 17/05/2011

Referências

ALMEIDA, Miguel Vale de (2005) “Crioulização e Fantasmagoria”, Anuário Antropológico, 33 – 49.

AUBERT, Laurent (2005) Musiques Migrantes, Genève: Musée d’Ethnograhie de Genève.

AUGÉ, Marc (2007) Por una antropologia de la mobilidad, Barcelona: Gedisa

BEAURENAUT, Jean-Pierre (1993) Paris musette, Zarafa Films.

123Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

Page 118: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

BENJAMIN, Walter (1992), «A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica» In: Sobre a Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa: Relógio d’Água.

BHABHA, Homi (1998) K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG.

BURKE, Peter (2003) Hibridismo Cultural, São Leopoldo: Editora Unisinos,

CANCLINI, Néstor García. (1995) Culturas híbridas: estrategias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Sudamericana.

CIRIO, NORBERTO PABLO, “La música afroargentina a través de la documentación iconográfica”, Bogotá D. C., 2007, Universidad Nacional de Colombia, núm. 13, 37 fotos, pp. 127-155.

FINNEGAN, Ruth (2002) “Por qué estudiar la música? Reflexiones de una antropóloga desde el campo” Revista Transcultural de Música, nº 6.

HANNERZ, Ulf (1998), «Transnacional Research» in H. Russell Bernard (ed.), Handbook of Methods in Cultural Anthropology: 235-256.

KIEFFER, Anna Maria (2004) Cancioneiro da Imigração, Sonopress-Rimo e Com Fonográfica, Lda.

LAPLANTINE, François e Nouss, Alexis (2002) A mestiçagem, Lisboa: Instituto Piaget

LORTAT-JACOB, Bernard e OLSEN, Miriam Rovsing “Musique, anthropologie : la conjonction nécessaire” in Musique et anthropologie. L’Homme, 171-172. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2004.

MAFFIA, Marta M. (1986) “La inmigración caboverdeana hacia la Argentina. Análisis de una alternativa”, en Trabalhos de Antropología e Etnología, Vol 25. Sociedade Portuguesa de Antropología e Etnología. Porto, Portugal.

MARQUES, João Pedro (2004) Portugal e a escravatura dos africanos, Lisboa: ICS.

MARTINS, Vasco (2008) A Morna - a evolução (breves apontamentos) - http://sintoniacaboverdiiana.blogspot.com/

MILLER, Joseph C. (1997) “O atlântico escravista açúcar, escravos e engenhos”, Afro-Asia, 19/20, pp 9-36.

124 José da Silva Ribeiro

Page 119: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

NERY, Rui Vieira (2004) “Para uma História do fado” 100 Anos de Fado, CD1, Lisboa: Público.

NERY, Rui Vieira (2010) “Fado Maior e Menor”, JL, 2 de Agosto.

ONFRAY, Michel (2009) Teoria da Viagem, Porto Alegre L&PM Editores.

ORTIZ, F. (1951) Los bailes y o teatro de los negros en el Folklore de Cuba, La Habana: Editorial de Letras Cubanas.

PAIS, José Machado, Brito, Joaquim Pais e all (2004) Sonoridades Luso-afro-brasileiras, Lisboa:ICS.

RIBEIRO, José da Silva (2007) “Palo Monte, um rito Congo em Cuba”, I/C, Revista Científica de Información y Comunicación (ISSN: 1696-2508), Nº 4, 2007, 48-59 Universidade de Sevilha.

RIBEIRO, José da Silva (2008) “Culturalidade Afro-Atlântica na coroação de reis congo” in Sieber, Cornélia e all Diferencia mi notitaria en latiniamérica, Hildesheim: OLMS.

RIBEIRO, José da Silva (2009) “Musica e Sonoridades Migrantes na América Latina” in Rocha-Trindade, Maria Beatriz, Migrações, permanências e diversidades, Porto: Edições Afrontamento. Pp 321-346.

RIBEIRO, José da Silva e MAFFIA, Marta (2007) “Entre o candombe e a morna, identidade e conflito dos migrantes cabo-verdianos na Argentina”, actas e comunicação apresentada à VII Reunião de Antropologia do Mercosul, Porto Alegre - Rio Grande do Sul – Brasil 23 a 26 de Julho.

SARDINHA, José Alberto (2010) “Triste Fado”, JL, 21 de Agosto.

SARDINHA, José Alberto (2010) A Origem do Fado, Vila Verde: Tradisom.

VAINFAS, Ronaldo e SOUZA Marina de Mello (2004) “Catolização e poder no tempo do tráfico: o reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII” em Tempo

WEBER, Max (1995) Os Fundamentos racionais e sociológicos da música, São Paulo: EDUSP.

125Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

Page 120: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Filmografia

BEAURENAUT, Jean-Pierre (1993) Paris Musette documentário, 58m.

RIBEIRO, José da Silva (1995) Colá S. Jon oh que Sabe, documentário, 25 m.

RIBEIRO, José da Silva (1995) Onde os tambores se inventam, documentário, 45m.

SAURA, Carlos (2007) Fados, documentário, 85m.

SIMÕES, Rui (2010) Ilha da Cova da Moura, documentário, 81m.

Anexo

Decisão da Unesco acerca do Candombe - Decision 4.COM 13.74

The Committee (…) decides that [this element\] satisfies the criteria for inscription on the Urgent Safeguarding List, as follows:

• R1: The candombe is a source of pride and a symbol of the identity of communities of African descent in Montevideo, embraced by younger generations and favouring group cohesion, while expressing the communities’ needs and feelings with regard to their ancestors;

• R2: Inscription of the element on the Representative List would provide an important impetus to the visibility of intangible cultural heritage, creativity and dialogue between the diverse communities concerned, while strengthening its resistance to certain negative tendencies;

• R3: Both the State and the communities have elaborated safeguarding measures and are committed to strengthening the candombe’s viability through inventory making, education and intergenerational transmission, as well as awareness-raising activities;

• R4: The element has been nominated with the involvement, throughout the entire process, of the relevant communities, including organizations, transmitting bodies and individuals, and they have given their free, prior and informed consent in writing;

• R5: The element is inscribed in the inventory of traditional feast days in Uruguay, maintained by the Comisión del Patrimonio Cultural de la Nación.

126 José da Silva Ribeiro

Page 121: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Decisão da Unesco acerca do Tango (Decision 4.COM 13.01)

The Committee (…) decides that [this element\] satisfies the criteria for inscription on the Urgent Safeguarding List, as follows:

• R1: The Tango is a musical genre that includes dance, music, poetry and singing, and is considered one of the main manifestations of identity for the inhabitants of the Río de la Plata region;

• R2: Inscription of the element on the Representative List would contribute to visibility of intangible cultural heritage and a deeper understanding of the Tango as a regional expression resulting from the fusion of several cultures;

• R3: The two nominating States have presented a number of joint and individual safeguarding measures for the element by which the communities and the authorities commit to the creation of specialized training and documentation centres, as well as the establishment of an orchestra, museums and preservation trusts;

• R4: The nomination of the element benefitted from the continuous participation of the Uruguayan and Argentinian communities through meetings, seminars, interviews and workshops, and community representatives have signed documents to mark their free, prior and informed consent;

• R5: The element is included in the inventories of intangible cultural heritage that are being elaborated in Uruguay and Argentina.

127Hibridação Cultural: sonoridades migrantes na América Latina

Page 122: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

129(*) Lilian Amaral é artista audiovisual e diretora do programa Museu Aberto: a cidade como museu e o museu como prática artística. Mestrado e Doutorado em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Pesquisadora junto ao GIIP – Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergências Arte, Ciência e Tecnologia, IA-Unesp/ CNPq. @ - [email protected]

Inter-territorialities: paths, cartographies and imaginaries

Lilian Amaral *

Interterritorialidades: passagens, cartografias e imaginários

Palavras-chave: arte pública con-temporânea, al-teridade cultural, documentário, in-terterritorialidade, imaginário.

RESUMO: Se no paradigma etnográfico, como indica Hal Foster, o lugar da transformação artística e política estará sempre fora “no campo do outro cultural”, consideramos que os diálogos, negociações e transações com a alteridade cultural – tais como orientação sexual, religiosa e política – são desafios que se colocam no momento que se sai a campo. Alguns destes aspectos impulsionam a sustentalbilidade da arte pública contemporânea e seu redimensionamento. Estética relacional e interterritorialidade estão na base deste debate que apresenta uma cartografia da arte contemporânea e esfera pública brasileira a partir da análise e inserção na Rede Nacional de Artes Visuais da FUNARTE.

Os processos são os devires, e estes não se julgam pelo resultado que os findaria, mas pela qualidade de seus cursos e pela potência de sua

continuação[...].

Gilles DeleuzeConversações

A presente discussão propõe analisar o lugar da arte no âmbito da esfera pública contemporânea a partir da diluição e do deslocamento do objeto para o campo da experiência estética, tendo o tempo

se convertido em matéria artística. Transitar entre a autonomia e a instrumentalização parece ser um dos dilemas enfrentados pela arte que incide em dinâmicas sociais, prática contemporânea derivada da arte pública e suas recentes hibridizações, como “novo gênero de arte pública”, “arte contextual”, “estética relacional”, entre outras reconfigurações.

Page 123: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

130 Lilian Amaral

Tais questões podem iluminar um debate sobre as práticas críticas como campos de ação processuais e colaborativos apontando para renovadas formas de comunicação, apropriação e pertencimento. Objetiva-se investigar os modos de fazer artísticos compartilhados em rede, os processos de transformação no território deles decorrentes e implicações políticas no tecido social. O atual confronto com a modernidade, a quebra de fronteiras entre suportes, linguagens e áreas do conhecimento, além da aproximação entre camadas da cultura, permite que a arte engendre lugares de novas experimentações estéticas, acopladas às tensões sociais existentes no entorno do artista.

Se a relação entre arte e estética sempre acompanhou a produção artística, atualmente, a reunião entre elas pode se configurar como uma dimensão básica do fazer artístico. Nessas circunstâncias abertas surgem determinados projetos que aprofundam a compreensão da expansão de limites tensionados pela arte contemporânea no tecido social, propositores de espaços de encontros entre arte e vida, estética e política e entre artista e sociedade.

Transitar entre territórios converteu-se em condição humana contemporânea marcada pela mobilidade, deslocamento, fluxo e aceleração. Territórios entendidos como contextos definem os lugares de existência. Territórios culturais, étnicos, religiosos parecem definir melhor a noção contemporânea de lugar.

Diálogos cada vez mais intensos vêm configurando uma nova cartografia cognitiva caracterizada por colaborações entre diferentes territórios e domínios, colocando em evidência as possibilidades de compartilhamento de estratégias pautadas pela complementaridade, interrelacionamento e reciprocidade entre campos: a História da Arte, a Estética, a Teoria Cinematográfica, os Estudos Culturais, a Teoria dos Meios, a Arte/Educação, a Cultura Visual, os Estudos de Gênero, entre outros. Que lugares, num mundo marcado pelo nomadismo, impermanência e simultaneidade as manifestações artísticas podem ocupar?

Hoje debatemos com muita insistência e clarividência o lugar da arte – fora do museu, no cotidiano – e mais ainda, a própria instituição “museu” se vê pressionada a conquistar um lugar no cotidiano urbano na era do espetáculo, ora confundindo-se, ora competindo com shopping centers. A informação e a comunicação que caracterizam a cidade contemporânea vem se tornando cada vez mais, agudamente critica para transcender a sociedade de consumo.Tudo está para ser visto, consumido, refletido, assumido ou descartado. (AMARAL & BARBOSA, 1998)

Interterritorialidade - Passagens, Cartografias e Imaginários1, integra, a um só tempo, reflexão teórica e prática artística acerca de uma das modalidades

Page 124: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

131Interterritorialidades: passagens, cartografias e imaginários

de arte contemporânea que mais têm se destacado nos debates em circuitos artísticos e culturais atuais: arte pública expandida no campo da esfera social, apontando mutações e tendências nacionais e internacionais.

Articula-se numa perspectiva interdisciplinar de reflexão/ação, contribuindo para provocar e atritar os contornos e interstícios do pensamento e da prática artiístico-crítica, criando dispositivos de interlocução, mediação, atuação e difusão da arte em rede 2, no contexto da vida cotidiana, tecendo arquiteturas de relações, do local ao global.

Incorpora as tensões, fluxos e mediações ocorridas nas fronteiras entre espaço público e privado, entre ética e estética, entre individual e coletivo, entre memória e imaginário, tendo a potência, fraturas e interrupções da cidade de Vitória como lugar de experiência, atuação crítica e criativa. Convoca artistas e não-artistas, coletivos interdisciplinares e a população para interagir, por meio de pensamentos, ações e atitudes simbólicas nos espaços públicos, re-significando a experiência urbana cotidiana.

Os significados de uma obra ou ação artística são construídos no encontro entre a subjetividade daquele que a propõe e a subjetividade de cada um daqueles que ativamente a tomaram para si. No entanto, no momento em que a proposição começa a tomar forma e o momento em que é ativada, por um e por outro sujeito, deve haver um desejo de alcance público. Quando se decide apresentar publicamente o resultado ou o processo de um pensamento é porque se acredita que ele pode ser pertinente para outros. E não somente para aqueles com quem sabidamente nos entendemos e freqüentemente nos encontramos, mas também para outros com quem compartilhamos coisas que talvez ainda não tenham nome.

Interterritorialidades - Fronteiras Líquidas. Passagens, Cartografias e Imaginários, configura-se como laboratório transdisciplinar em processo e propõe considerar que tanto os métodos de análise contemporâneos das disciplinas urbanas quanto o que poderia ser visto como um de seus resultados projetuais, a cidade-espetáculo, se distanciam cada vez mais da experiência urbana, da própria vivência ou prática da cidade. Ser errante poderia ser um instrumento desta experiência urbana, uma ferramenta subjetiva e singular, ou seja, o contrário de um método ou de um diagnóstico tradicional. A errância urbana seria uma apologia da experiência da cidade, um tipo de ação que poderia ser praticada por qualquer um. Um dispositivo para ampliação da percepção.

Os praticantes das cidades atualizam os projetos urbanos, e o próprio urbanismo, através da prática dos espaços urbanos. Os urbanistas indicam

1 Interterritorialidades – Fronteiras Líquidas. Passagens, Cartogra-fias e Imaginários. la-boratório processual articulado ao 8o. salão Bienal do Mar, minis-trado por esta autora em Setembro de 2008 na cidade de Vitória, ES. 2 www.pocs.org. www.casadamemoria.word-press.com. Interterri-torialidades integra o projeto em processo em nível de doutoramen-to “Litmites Difusos. Arte e Esfera Pública Contemporânea. Mu-seu Aberto: A cidade como museu e o museu como prática artística”, na ECA/USP. Articula--se ao POCS – Project for Open and Closed Space Sculpture As-sociation/Barcelona. POCS realiza desde 2003 o projeto de Arte Urbana, efêmera, 24 Horas: uma Línea en la Ciudad, simultane-amente em Barcelona/ES, Quilmes e La Pla-ta/Argentina, Medelin/Colômbia, Foggia/Itá-lia, São Paulo-Parana-piacaba-Brasília-Rio Branco/Brasil [2007]. Museu Aberto é re-presentante brasileiro do POCS e em 2008 apresentaou mostra de processos como etapa do doutoramento na Universidade Complu-tense/Madrid, no Mu-seu da Cidade de Bar-celona e Vic, Espanha.

Page 125: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

usos possíveis para o espaço projetado, mas são aqueles que o experimentam no cotidiano que os atualizam. São diferentes ações, apropriações ou improvisações mediadas pelo pensamento crítico apontado pela Arte Pública Relacional Contemporânea que podem propor extrapolar a circunscrição das experiências nos espaços convencionados ao consumo privado da arte em direção aos espaços da vida, das experiências no espaço público pelos habitantes, passantes ou errantes que reinventam tais espaços em seu cotidiano.

Enquanto o urbanismo busca a orientação através de mapas e planos, a preocupação do errante estaria mais na desorientação, sobretudo em deixar seus condicionamentos urbanos, uma vez que toda a educação do urbanismo está voltada para a questão do se orientar, ou seja, o contrário mesmo do “se perder”.

Em seguida, pode-se notar a lentidão dos errantes, o tipo de movimento qualificado dos homens lentos, que negam, ou lhes é negado, o ritmo veloz imposto pela contemporaneidade.

E por fim, a própria corporeidade destes, e, sobretudo, a relação, ou contaminação, entre seu próprio corpo físico e o corpo da cidade que se dá através da ação de errar pela cidade. A contaminação corporal leva a uma incorporação, ou seja, uma ação imanente ligada à materialidade física, corporal, que contrasta com uma pretensa busca contemporânea do virtual, imaterial, incorporal.

132

Laboratório processual Interterritorialidades – Fronteiras Líquidas. Passagens, Cartografias e

Imaginários. 8º. Salão Bienal do Mar, Vitória, SMC, Setembro, 2008.

Lilian Amaral

Page 126: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

As três propriedades mais recorrentes das errâncias – se perder, lentidão, corporeidade - estão intimamente relacionadas, e remetem a própria ação, ou seja, a prática ou experiência do espaço urbano. O errante urbano se relaciona com a cidade, a experimenta, e este ato de se relacionar com a cidade implica nesta corporeidade própria, advinda da relação entre seu próprio corpo físico e o corpo urbano que se dá no momento da desterritorialização lenta da errância.

Para resumir pode-se dizer que o errante faz seu elogio à experiência principalmente através da desterritorialização do ato de se perder, da qualidade lenta de seu movimento e da determinação de sua corporeidade. As três propriedades poderiam ser consideradas como resistências ou críticas ao pensamento hegemônico contemporâneo do urbanismo que ainda busca uma certa orientação (principalmente através do excesso de informação), rapidez (ou aceleração) e, sobretudo, uma redução da experiência e presença física (através das novas tecnologias de comunicação e transporte).

Apesar da íntíma relação entre essas propriedades da errância, talvez seja a relação corporal com a cidade, na experiência da incorporação, que mostre de forma mais clara e crítica, o cotidiano contemporâneo cada vez mais desencarnado e espetacular. Diante da atual espetacularização das cidades que se tornam cada dia mais cenográficas, a experiência corporal das cidades, ou seja, sua prática ou experiência poderia ser considerada como

133

Práticas urbanas: o caminhar e a percepção como práticas estéticas. Corporeidade: experimentação do corpo no espaço. Percurso analítico na cidade. Visualidade e visibilidade.

Interterritorialidades: passagens, cartografias e imaginários

Page 127: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

um antídoto a essa espetacularização. O que chamo de espetacularização das cidades contemporâneas - que também pode ser chamado de cidade-espetáculo (no sentido debordiano) - está diretamente relacionado a uma diminuição da participação, mas também da própria experiência urbana enquanto prática cotidiana, estética ou artística.

A redução da ação urbana pelo espetáculo leva a uma perda da corporeidade, os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços desencarnados. Os espaços públicos contemporâneos, cada vez mais privatizados ou não apropriados, nos levam a repensar as relações entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão, o que abre possibilidades tanto para uma crítica da atual espetacularização urbana quanto para uma pesquisa de outros caminhos pelos errantes urbanos, que passariam a ser os maiores críticos do espetáculo urbano.

Ao se observar mais de perto a história crítica do urbanismo, a história marginal, é possível se perceber um outro caminho, que critica a espetacularização desde seus primórdios. Nesta pista, as principais questões são as diferentes formas de ação e participação, na cidade mas também as relações corporais, através das experiências efetivas dos espaços urbanos. As relações sensoriais com a cidade que passam pelas experiências corporais destes espaços, em suas diferentes temporalidades, seriam o oposto da imagem da cidade-logotipo. Os cenários ou espaços espetacularizados, desencarnados, seriam propícios somente para os simples espectadores.

Os praticantes da cidade, como os errantes urbanos, realmente experimentam os espaços quando os percorrem, e assim lhes dão corpo, e vida, pela simples ação de percorrê-los. Uma experiência corporal, sensorial, não pode ser reduzida a um simples espetáculo, a uma simples imagem ou logotipo. A cidade deixa de ser um simples cenário no momento em que ela é vivida, experimentada. Ela ganha corpo a partir do momento em que ela é praticada, se torna “outro” corpo. Para o errante urbano sua relação com a cidade seria da ordem da incorporação. Seria precisamente desta relação entre o corpo do cidadão e deste outro corpo urbano que poderia surgir uma outra forma de apreensão da cidade, uma outra forma de ação, através da experiência da errância – desorientada, lenta e incorporada - a ser realizada pelo urbanista errante, que se inspiraria de outros errantes urbanos e, em particular, das experiências realizadas pelos escritores e artistas errantes.

Arte colaborativa, memória e identidade

Configuradas no âmbito da experimentação de práticas artísticas contemporâneas que investigam os imaginários urbanos a partir das

134 Lilian Amaral

Page 128: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

fronteiras e potências entre linguagens, meios e contextos, têm como base processos colaborativos com perspectivas de apropriação, pertencimento e ressignificação do patrimônio material e imaterial urbano, implicando em perspectivas de transformações no tecido social. Encontram na arte pública expandida e na estética relacional sua plataforma de operações.

Tais processos fundam-se na concepção ampliada da Arte como Experiência, tendo os lugares como territórios para criações coletivas que envolvem artistas e não-artistas, estimulando a documentação e apropriação crítica e criativa de tais espaços e tempos compartilhados.

A memória é um fenômeno construído social e individualmente, sujeito a constantes transformações, que estabelece estreita ligação com o sentimento de identidade, o qual deve ser entendido como a imagem que um indivíduo ou grupo faz de si, para si e para os outros.

Trabalhos artísticos pautados pela utilização dos meios fotográficos, videográficos, resultando em projeções em espaços urbanos reapropriados, produções que investigam referências na história oral, em álbuns de família, compõe arqueologias do agora. Inscrevem-se neste conjunto, projetos que articulam espaços da memória, espaço arquitetônico e espaço da experiência.

Arqueologias da Memória: micro-historias no tempo e no espaço

A memória é um fenômeno construído social e individualmente, sujeito a constantes transformações, estabelece estreita ligação com o sentimento de identidade, o qual deve ser entendido como a imagem que um indivíduo ou grupo faz de si, para si e para os outros.

Se na Renascença uma das questões centrais era o espaço, na Modernidade o tempo passa a ser uma categoria fundamental na expressão das vanguardas. Já na Contemporaneidade é a relação espaço-temporal que constitui um dos vetores centrais das problemáticas artísticas. O tempo é abordado em suas diferentes dimensões sobrepondo-se ao espaço: tempo interno, tempo externo, tempo-distância configuram a sua relativização compreendendo diversos deslocamentos, impasses e limites entre a ciência e a ficção, tornando-se cada vez mais difícil romper a fissura criada entre tempo real e tempo virtual.

Considerando que a tecnologia permite a composição de imensos arquivos que operam a memória numa fração de segundos, temos limitação de armazenamento da mesma quantidade de memória, somos apagamento.

135Interterritorialidades: passagens, cartografias e imaginários

Page 129: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Dominamos o pensamento associativo e articulador. Nossa memória é capaz de selecionar uma “duração” ou “prolongamento” de memória, resgatando imagens. Se “ïmaginar” é produzir imagens e essas resgatam percepções já vividas, identifica-se um movimento pendular do sujeito: a percepção pode gerar ação. Entre o sujeito e o mundo uma interioridade opera certas aberturas onde vida e espontaneidade fluem através das imagens. É nesse limite que vive o homem contemporâneo e é também nesse limite que a arte tem operado.

O mundo contemporâneo caracteriza-se por transformações aceleradas da noção relacionada ao tempo, ao espaço e à individualidade. Todas elas abrigam a figura do excesso, característico da supermodernidade. O “lugar antropológico” passa a ser definido como aquele que é vivido para quem vive lá, e também para aqueles que vêm de fora e tentam interpretá-lo. Tal lugar opõe-se ao que se denomina “lugares da memória”, os quais suscitam a nostalgia, a recordação.

O etnólogo em exercício é aquele que se encontra em algum lugar [seu aqui do momento]. A pesquisa antropológica trata, no presente, da questão do outro. Ela o trata no presente, o que basta para distingui-la da história. Enquanto no “lugar antropológico” seu habitante “não faz a história, mas vive na história” (práticas socioculturais do presente), nos “lugares da memória” apreende-se “a imagem do que não somos mais”, pois seu significado está na memória, no passado. Outra noção de tempo presente articula-se com o conceito de história de Walter Benjamim. Em tal conceito, o passado ainda tem algo a dizer, e o presente contém o passado que não foi redimido.

Olgária Matos vê a imagem localizada a meio caminho entre o sensível e o inteligível. É a “imaterialidade material” (MATOS, 1991:17) que remete a uma força fora do comum, excedente a si mesma e referida a uma efetualidade mágica [imagem no sentido de reprodução, de representação]. A aproximação do filme documentário com aquilo que se vive ou viveu é o que leva à afirmação de que é nas representações que esse gênero de filme faz, que o diferencia da ficção, e não na sua construção como texto porque ambos são textos. Essa diferenciação é importante, mas, com os recursos disponíveis atualmente, o documentarista/historiador/artista/ ”artógrafo” (IRWIN, 2008) pode alterar de tal modo a imagem, recriar situAÇÕES, que o documentário final não será mais uma representação do mundo vivido, e sim algo que diz respeito ao mundo imaginado. De que outro modo pode um “passado”, por definição constituído de eventos, processos, estruturas, etc. não mais perceptíveis, ser representado em qualquer consciência ou discurso, a não ser de modo “imaginário”?

136 Lilian Amaral

Page 130: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

O limite entre Cultura e Identidade, esfera Pública e Privada são as questões demarcadas por trabalhos que entendem a cidade e o corpo como território cultural, tendo como foco diferentes escalas de ocupação da cidade e das ruas. Aborda paisagens em movimento como elementos desagregadores da imagem, tempo, espaço e memórias. Se, como indica Hal Foster, no paradigma etnográfico o lugar da transformação artística e política será sempre fora, “no campo do outro cultural” (FOSTER, 2001), consideramos que os diálogos, negociações e transações com a alteridade cultural são desafios que se apresentam quando se sai a campo. Aqui identificam-se propostas que apontam o redimensionamento do que nos aproxima e nos distancia uns dos outros. Estes trabalhos investigam como as psicologias privadas afetam o espaço público, entendendo a Arte como subversão da Cultura para criar um campo de ação onde os significados das coisas sejam sempre revistos.

A história audiovisual tem forte relação com a história escrita. As palavras faladas, ao serem transcritas, transformam-se em palavras-escritas. Logo, constituem-se em meio idôneo de reconstrução da história. Na História Oral em vídeo, a palavra reaparece, com importância vital também, só que a palavra filmada, colada à imagem, quando editada, é colada a outras linguagens, o que resulta em novos tipos de história que os meios audiovisuais podem oferecer, uma História que corre paralela à história escrita. Algumas obras emblemáticas permitem esboçar os contornos de uma tipologia da pós-produção: a forma como enredo ou, quando os enredos se tornam formas (BOURRIAUD, 2009).

Ver, conforme Marilena Chauí, é pensar por meio da linguagem. Ver, ainda segundo a autora, leva as pessoas ao mundo exterior, enquanto ouvir leva-as ao mundo interior (CHAUÍ, 1988). Na História Oral em vídeo, ver e ouvir são diferentes faces de uma mesma moeda. A expressão história visual guarda certa impropriedade porque a narrativa fílmica evoca outras narrativas ou linguagens para além da imagem, tais como a verbal, a escrita, a sonora e a gestual. Se a denominação de história visual é inadequada ou não, o que importa é que a história que surge do suporte vídeo é diferente da história que decorre apenas da linguagem escrita. No embate entre a história escrita e a história audiovisual há certa desconfiança, incompreensão ou recusa em aceitar os meios audiovisuais no processo de recriação histórica, pois advém da pluralidade e diversidade metodológica.

Corporeidade, Percurso e Composição Urbana

Investidos de uma nova atitude estético-crítica pautada numa maior proximidade entre arte e política, identifica-se conjunto significativo de

137Interterritorialidades: passagens, cartografias e imaginários

Page 131: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

propostas que evidenciam, por meio de inter[in]venções, percursos e composições urbanas, “a concepção da arte calcada no enraizamento das práticas sociais coletivas, indicando uma relação produtiva entre arte e gestão do espaço público (...) resultando em invenções criativas para formas do habitar” (VELOSO, 2004-5: 113).

Apresentam uma visão dialógica de espaço da arte, vida cotidiana, corpo e lugar, acreditando firmemente que é possível construir e reconstruir outros tipos de cidades, reais e imaginárias.

138 Lilian Amaral

Page 132: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

As representações da cidade, fixas ou fluídas, dimensionam características ao mesmo tempo sociais e semióticas. Enquanto sociais são representações que surgem na cidade e demarcam sua inserção na história do espaço urbano. Enquanto semióticas, são informações/ações que se processam pela cidade que lhes é suporte. Considerando-se que estas informações/ações são fluídas e velozes, correspondem aos fluxos que inspiram e patrocinam ações na simultaneidade espaço/temporal que caracteriza os processos eletrônicos da comunicação e são responsáveis pelo diálogo e tensão entre cidades distantes ou próximas no tempo e no espaço ou entre lugares de uma só cidade.

Hábito e experiência representam-se visualmente, porém a natureza da imagem produzida tem ontologias diversas que permitem falar em visualidade para designar a imagem que se insinua na constatação receptiva do visual físico e concreto das marcas fixas que referenciam a cidade e a identificam e visibilidade, que corresponde à elaboração perceptiva e reflexiva das marcas visuais que ultrapassam o recorte icônico para ser flagrada em indícios.

Do espetáculo à experiência da cidade passa-se às diferenças entre visualidade e visibilidade, passa-se da cidade ao lugar, e de uma semiótica visual da cidade a uma semiótica do lugar invisível. Opera-se uma distinção entre visualidade e visibilidade, entre recepção e percepção, entre comunicação e informação, entre padrão e dinâmica de valores culturais. Em todas essas diferenças se produzem metamorfoses do olhar.

A visibilidade do lugar como criadora de sentidos e significados da cidade e na cidade nos leva a rever conceitos de espaço próximo ou distante, local ou global e, parece, um rejeita o outro e se podem anular como diferença. Em cada lugar processam-se conexões entre lugares próximos ou distantes, vizinhos ou longínquos, em cada lugar confrontam-se diversidades, diferença e identidades.

139

Composições Urbanas: realização das ocupações efêmeras em espaços públicos, como parte do Laboratório Interterritorialidades – Fronteiras Líquidas. Lilian Amaral, 8o. Salão Bienal do Mar, Vitória, Setembro, 2008.

Interterritorialidades: passagens, cartografias e imaginários

Page 133: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

A percepção do lugar não depende da forma na cidade, mas do olhar do leitor capaz de superar o hábito e perceber as diferenças: um olhar que se debruça sobre a cidade para perceber suas dimensões e sentidos que estabelecem o lugar como fronteira entre a cidade e o sujeito atento. Para esboçar uma conclusão, ainda que processual, evocamos as idéias de Lucrecia Ferrara (FERRARA, 2003) que aponta ser essa a base epistemológica da visibilidade da cidade pelo lugar, porque se a visualidade da cidade está nas formas que a constroem, a visibilidade está na possibilidade do sujeito debruçar-se sobre a cidade, seu objeto de conhecimento para, ao produzi-la cognitivamente, produzir-se e perceber-se como leitor, criador e cidadão.

RESUMÉ: If in the etnographic paradigm, as Hal Foster indicates, the place of artistic and political transformation will always be outside “in the field of the cultural other”, we consider that the dialogues, negotiations and transactions with cultural alterity – such as sexual, religious and politic orientation - are challenges that are posed at the very moment one goes out into the field. Some of those aspects put forward the sustainability of contemporary public art and the redimensioning. Relational aesthetics and Interterritoriality concepts are in the basis of this debate that presents an contemporary cartography of brazilian art and public sphere based on an analysis and insertions in the National FUNARTE´s Visual Art Net.

Mots-clés contemporary public art, cultural alterity, documentary, interterritoriality, imaginary.

140

ArtigoRecebido: 16/03/2011Aprovado: 12/05/2011

Referências

AMARAL, Lilian; BARBOSA, Ana Mae [orgs]. Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: Editora Senac São Paulo : Edições SESC SP, 2008.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006.

¬¬¬______. Pós-Produção. Como a Arte reprograma o Mundo Contemporâneo.São Paulo: Martins, 2009.

CHAUI, Marilena. “Janela da Alma, Espelho do Mundo”, in NOVAES, Adauto [Org]. O Olhar. SP: Companhia das Letras, 1988.

DELEUZE, Gilles. Conversações. SP: Editora 34, 1992.

FERRARA, Lucrecia D’Alessio. Lugar na Cidade: Conhecimento e diálogo. In: SOUZA, Maria Adélia de.[org.].Território Brasileira: Usos e Abusos. Campinas, Editora TERRITORIAL, 2003.

FOSTER, Hal. The Return of the Real: the Avant-Gard at the End of the Century. Massachusetts Institute of Tecnology, 1996, 1999.

Lilian Amaral

Page 134: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

IRWIN, Rita. ”A/r/tografia: Uma Mestiçagem Metonímica”, in BARBOSA, Ana Mae e AMARAL, Lilian [Orgs.]. InterTerritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Edições , São Paulo, 2008.

MATOS, Olgária C. F. “Imagens Sem Objetos”, in NOVAES, Adauto [Org]. RedeImaginária: televisão e democracia. SP: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, 1991.

VELOSO, Mariza. Rede Nacional de Artes Visuais. Rio de Janeiro: FUNARTE / Ministério da Cultura, 2004/2005.

141Interterritorialidades: passagens, cartografias e imaginários

Page 135: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

143(*) Kadma Marques Rodrigues é Professora Adjunta e membro do Colegiado do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Mídias Audiovisuais (LAMIA), ligado ao Grupo de Pesquisa em Gestão Pública e Desenvolvimento Urbano (GPDU/MAPPS). Orientadora científica no Núcleo de Pesquisa em Artes Visuais (NPAV) do Museu de Arte @ - [email protected] Gerciane Maria da Costa Oliveira é Professora do curso de Pedagogia na Faculdade de Educação de Itapipoca - FACEDI/UECEA. @ - [email protected]

Antonio Bandeira: The invention of the city as a landscape form

Kadma Marques Rodrigues *Gerciane Maria da Costa Oliveira*

Antônio Bandeira: da invenção da cidade como forma-paisagem

Palavras-chave: pintura, cidade, paisagem urbana, forma-paisagem.

RESUMO: O objetivo deste artigo é contribuir, a partir da perspectiva forjada pela Sociologia da Arte, para a compreensão da relação que se estabelece, ao longo de três décadas de produção artística, entre a cidade tomada como tema e o lirismo abstrato das pinturas de Antônio Bandeira (1922-1967). Por meio de um olhar guiado por categorias sociológicas de análise, o pesquisador apreende e dá a ver um lento processo de transmutação formal, cujo fundamento encontra-se nas diversas posições ocupadas pelo pintor ao longo de sua trajetória de vida. Por um lado, tal processo aponta a depuração da cidade aos olhos do artista, o qual converte a representação da paisagem urbana em forma-paisagem; e por outro, evoca a emergência de um estilo próprio, marcado pela a abstração crescente da cidade – de conteúdo artístico recorrente, ela se transformou em afirmação da forma-paisagem, configurada como imagem-síntese das cidades vividas simultaneamente por Bandeira – Fortaleza, Rio de Janeiro e Paris.

ntrodução

A tarefa de articular o conjunto de reflexões contidas neste artigo impôs imediatamente um desafio: qual a contribuição que a perspectiva forjada pela Sociologia da Arte pode trazer à compreensão da relação entre a cidade como tema e o lirismo abstrato das pinturas de Antônio Bandeira (1922-1967)?

Talvez, o melhor seja lançar mão da seguinte questão: como é possível aos artistas, a exemplo de Bandeira, produzir formas e estilos absolutamente próprios, partindo de uma matriz cultural, comum, coletiva? De fato, este é

I

Page 136: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

144 Kadma Marques RodriguesGerciane Maria da Costa Oliveira

um dos “problemas” fundamentais para a Sociologia que toma a arte como “objeto”, pois faz com que esse campo de estudos oscile sempre entre dois polos: problematizar a arte como fenômeno coletivo, como sistema cultural ou pensar a arte como expressão de uma singularidade absoluta, fruto do percurso individual de cada artista.

Mais do que uma explicação que ligue a atividade artística de Antônio Bandeira a seu contexto sócio histórico, este texto pretende ser um exercício de interpretação capaz de trilhar uma via alternativa entre tais pólos. Contradizendo certa tradição sociológica que se dedica a evidenciar, de maneira quase mecânica, a relação entre arte e sociedade, partilho a postura daqueles que consideram o modo particular com que as obras de arte, ao mesmo tempo, conformam e são conformadas por realidades sociais.

Os artistas, como os políticos, os religiosos, os intelectuais, entre tantos outros agentes sociais, elaboram sua própria percepção da vida em sociedade a partir de sua inserção em universos sociais particulares, autônomos, que possuem regras próprias. No caso dos artistas, eles filtram sua relação com o mundo social a partir de um domínio próprio – aquele dado pelo campo artístico.

É preciso dizer que a autonomia do campo da arte, como àquela presente em outros domínios, é relativa e histórica. De fato, todos os campos são permanentemente atravessados pela influência de outras esferas de ação social, sendo sua força inversamente proporcional à criação de estruturas e valores que reforcem a lógica própria de cada domínio restrito.

No Ocidente, o processo de autonomização da arte parece ter andado de par com o movimento geral de valorização do indivíduo característico da moderna sociedade capitalista. No que concerne ao universo artístico, este se revestiu de uma forte dinâmica de singularização, ao celebrar continuamente tanto a unicidade do artista e de seu estilo materializado em um produto artístico, quanto sua apropriação individualizada pelo encontro pausado e silencioso entre público e obra. Perante tal tendência cabe à Sociologia compreender como a particularidade que demarca a existência de todo indivíduo (que sendo um ponto no espaço social, é antes de tudo um ponto de vista), emerge com especial força no domínio da arte.

Em Fortaleza, Bandeira participou de maneira breve, mas intensa, do processo de afirmação de autonomia desse campo, tendo sido rapidamente incorporado à dinâmica da produção artística na capital cearense dos anos 40. Hoje, o distanciamento temporal nos permite uma melhor compreensão das implicações e desdobramentos de sua presença naquele contexto.

Page 137: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

145Antônio Bandeira: da invenção da cidade como forma-paisagem

Tal compreensão tem como base dois pontos de apoio intrinsecamente articulados: sua participação na estruturação do campo da arte (mediante contribuição na criação de entidades artísticas e salões de pintura); e na invenção coletiva de crenças e valores fundamentais ao processo de autonomização desse campo.

Em um primeiro momento deste texto será tratada a estruturação do domínio da arte em Fortaleza; em seguida, a invenção de valores será abordada respectivamente a partir da criação de uma arte de viver (BOURDIEU, 1996) ou um estilo de vida próprio, capazes de distinguir socialmente os artistas dos demais agentes sociais; bem como, a invenção de um olhar cultivado, familiarizado com apropriações artísticas de obras que se afirmam antes por sua forma, do que por um conteúdo substantivo.

As estruturas de uma autonomia

Na década de 40, quando Antônio Bandeira passou a integrar o contexto artístico local, deparou-se com um cenário em que os pintores cearenses já haviam acumulado saberes que subsidiavam sua insurreição (respeitosa) contra os referenciais acadêmicos deixados pela Missão Francesa de 1816.

Essa pintura, via de regra intelectualizada, convencional e fria, difundiu-se no Brasil por meio do ensino oficial, influenciando os artistas nacionais por todo um século. Mesmo quando, a partir da segunda metade do século XIX, configuraram-se na Europa movimentos tais como o Realismo, o Impressionismo, o Pós-Impressionismo e o Expressionismo, a pintura brasileira caracterizava-se ainda e predominantemente pela afirmação do ideário neoclássico que bem expressava “... os sentimentos monárquicos de hierarquia social... da aristocracia agrária...” (CAVALCANTI, 1966: 184)

Em Fortaleza, tal legado havia sido incorporado, na passagem do século, por pintores como Antônio Rodrigues (A. RORIZ, 1867-?), José de Paula Barros e Raimundo Ramos (RAMOS COTOCO, 1871-1916), recebendo posteriormente a contribuição original de Raimundo Cela (1890-1954), Vicente Leite (1900-1941), José Rangel (1895-1969), Gerson Faria (1889-1943) e outros.

Na década de 30, a chamada jovem guarda artística local respirara (em certo descompasso) a areação do campo provocada pela Semana de Arte Moderna de 22, que desencadearia na capital cearense a formação, nos anos 40, da dita fase renovadora da pintura cearense. (FIRMEZA, 1983)

Page 138: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Herdeiro da luta daqueles “bravos” que, antes dele, desejaram viver de arte no Ceará, Bandeira uniu-se a Mário Barata (1914-1983), Barrica (1913-1993), Inimá de Paula (1918-1999) e outros para, em junho de 1941, integrar a diretoria da primeira instituição que reuniu os pintores em Fortaleza, o Centro Cultural de Belas Artes (CCBA). A criação desta entidade aponta a urgência vivida por aqueles pintores em afirmar coletivamente o que havia de específico em seu ofício frente às possibilidades de outras formas de visualidade concorrentes, tais como, a fotografia, a arquitetura, a publicidade e o cinema. E tal espaço de luta somente poderia ser assegurado pelo coletivo dos artistas da época.

Em setembro daquele mesmo ano, Bandeira estreou timidamente no I Salão de Pintura, realizado por esta entidade. No ano seguinte, participou da segunda edição deste mesmo Salão, bem como, em 1943, do I Salão de Abril (organizado então pela União Estadual dos Estudantes)1.

Ao homenagear Raimundo Cela, Vicente Leite e Gerson Faria, o III Salão de Pintura, promovido pelo CCBA em 1944, recebeu ampla divulgação na imprensa local sendo a última atividade promovida por esta entidade. Este Salão, o primeiro a conferir prêmios, atribuiu o primeiro lugar (medalha de ouro) ao óleo Cena de Botequim, do “novato” Antônio Bandeira. Mário Baratta obteve um segundo lugar e João Maria Siqueira recebeu a premiação em desenho. (Novis, 1996)

Tendo sucedido o CCBA, a Sociedade Cearense de Artes Plásticas – SCAP realizou, naquele mesmo ano, sua primeira exposição intitulada Pintura de Guerra, contando com obras de Antônio Bandeira. Em março de 1945, Bandeira partiu a bordo do Itaquicé rumo ao Rio de Janeiro, deixando a capital cearense juntamente com Jean-Pierre Chabloz (1910-1984) e outros artistas cearenses.

Menos de três meses depois de ter chegado ao Rio, Bandeira apresentou dezesseis obras na Exposição Cearense, na Galeria Askanasy, junto com Inimá, Raimundo Feitosa e Jean-Pierre Chabloz, sob patrocínio do Clube Cearense e da Associação de Cultura Franco-Brasileira do Rio de Janeiro, por influência de Chabloz e de Raymond Warnier, o adido cultural da Embaixada Francesa... (NOVIS, 1996: 14)

Bandeira e Chabloz partilhavam da mesma orientação em relação ao campo artístico – a atuação sobre este último devia se dar a partir de um ponto externo, seja em

1 Somente três anos depois, em 1946, For-taleza presenciará o II Salão de Abril, então sob os cuidados da en-tidade que substituirá o CCBA – a SCAP (So-ciedade Cearense de Artes Plásticas).

146 Kadma Marques RodriguesGerciane Maria da Costa Oliveira

Page 139: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

relação à pintura como área, seja em relação a um percurso profissional individual que se constrói. Tal orientação encontrou força em precedentes abertos pelas trajetórias de Raimundo Cela e Vicente Leite, celebrados em Fortaleza graças à formação e atuação artística no Rio de Janeiro.

Esta identificação foi fundamental para criação do fluxo inicial que levou Bandeira a percorrer Fortaleza-Rio de Janeiro-Paris. Assim, depois de integrar uma exposição coletiva, em outubro de 1945, ao lado de Inimá de Paula, Aldemir Martins, Iberê Camargo e outros, Bandeira participou do 51º Salão Nacional de Belas Artes, enquanto preparava-se “... para embarcar para Paris onde deveria cumprir dois anos de bolsa de estudos concedida pelo governo francês com o incentivo, mais uma vez, do adido cultural da embaixada no Rio.” (NOVIS, 1996: 16)

Os primeiros anos passados na Paris do segundo pós-guerra (1946-1950) foram decisivos para que sua produção figurativa de tendência expressionista se desprendesse gradativamente do objeto representado até se converter em abstração lírica.

Enquanto Bandeira cumpria bolsa de estudos na Academia Nacional de Belas Artes de Paris, em Fortaleza, a SCAP assumiu e manteve por vários anos a realização do Salão de Abril. A segunda edição deste Salão, em 1946, e mesmo as primeiras edições subsequentes revelaram um número considerável de artistas que inscreviam retratos e paisagens com títulos cuja literalidade denunciava o valor conferido ao tema dos quadros.

Nesse sentido, o IV Salão, em 1948, representa uma transição, pois a tendência à abstração transparece em alguns dos títulos que ladeiam obras plenamente figurativas. É o caso dos trabalhos de Claudionor Braga (Composição nº 1, Composição nº 2, Composição nº 3); de R. Garcia (Guache nº 1, Guache nº 2, Guache nº 3, Guache nº 4, Guache nº 5); de Carmélio Cruz (Aquarela nº 1, Aquarela nº 2); e de Aldemir Martins (Composição nº 1, Composição nº 2).

Transição à abstração mais evidente e curiosa ainda quando se apresentam títulos que designavam motivos tradicionalmente figurativos e estes eram seguidos por um procedimento serial, a exemplo dos seguintes quadros: Carnaubal nº 1; Carnaubal nº 2 (de Álvaro Gurgel); Natureza morta nº 1, Natureza morta nº 2 (de F. Matos); Natureza morta nº 1 e nº 2 (de Anquises Ipirajá); Noturno nº 1 e nº 2 e Marinha nº 1 e nº 2 (de Jonas Mesquita).

O VI Salão de Abril (1950) contou com certo número de paisagens e retratos, mas também com a participação de artistas que integrarão, a partir de 1951,

147Antônio Bandeira: da invenção da cidade como forma-paisagem

Page 140: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

o chamado Grupo dos Independentes2 – aqueles cuja pesquisa estética aproximava-os da formalização abstrata.

Em comemoração ao dia do município de Fortaleza, foi instalado em 1953 o IX Salão de Abril mediante mudança na organização da mostra. A classificação das obras entre Divisão Geral e Divisão Moderna, denunciava as dificuldades da tarefa imposta à comissão julgadora diante de obras cuja proposta plástica sofria respectivamente influência de tendências figurativas e/ou abstratas. Era preciso então separá-las, criando dois grandes agrupamentos mais ou menos homogêneos.

Se no Salão de Abril de 1953, a Divisão Geral concentrava a maior parte das obras inscritas, três anos depois, verifica-se o oposto. Sete artistas expuseram sob a rubrica Divisão Geral e onze eram os que se filiavam à Divisão Moderna, a qual congregava artistas que participaram em mais de uma manifestação artística: pintura, arte gráfica, escultura, arquitetura e arte decorativa.

Por sua vez, o Salão de 1958, o último organizado pela SCAP, abandonou tal categorização, ao que parece em função do total predomínio da chamada “arte moderna”. Naturalizados, os títulos seriados proliferaram. Paisagem, Desenho, Pintura, Composição, Xilogravura, Marinha, indicavam o papel quase ilustrativo de títulos seguidos de 1, 2, 3... os quais particularizavam obras que se diferenciavam umas das outras em função do número-série que recebiam.

Assim, se dentre os pintores cearenses cujo percurso e obra afirmam a tela como espaço plástico moderno, calcado sobre uma racionalidade pictórica que filtra valores culturais de modo mais simbólico do que representativo, seria possível citar vários, mas dentre estes se sobressai Antônio Bandeira. Seu trabalho é emblemático da inversão formal que dá base à elaboração da chamada ‘arte moderna’, a qual requisita o olhar “puro” e seu correlato manifesto, a postura silenciosa, como modo privilegiado de apropriação de pinturas.

Sem dúvida, um segundo período vivido por Bandeira na França (1954-1959), coincidirá com a expansão sem precedentes da abstração em pintura nos anos 50, bem como com a consolidação na imprensa da atividade do crítico de arte e a formação de um mercado artístico internacional.

Nesse contexto, a elaboração discursiva que afirma o reconhecimento artístico centrado na figura do criador, antes que na obra, tornou-se símbolo de uma modernidade artística para a qual convergiram a posição dos artistas e aquela dos críticos, corresponsáveis pela elaboração de uma arte de viver

2 O Grupo dos Inde-pendentes assinou e publicou um manifesto em dezembro de 1951, sendo composto por: João Maria Siqueira, Bandeira, Mário Barat-ta, Barrica, Ottni So-ares, Jonas Mesquita, Goebel Weyne, Floria-no Teixeira, Hermóge-nes Gomes da Silva, Jairo Martins Bastos e Zenon Barreto.

148 Kadma Marques RodriguesGerciane Maria da Costa Oliveira

Page 141: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

cujos contornos coincidiam com os prazeres da vida boêmia vivenciados de modo geral pelos artistas.

Seguiu-se que a experiência itinerante de Antônio Bandeira entre Rio de Janeiro e Fortaleza deu lugar, entre 1964 e 1967, a uma última permanência em solo francês, período este que assinala a difusão de um estilo abstrato plenamente definido.

De certo modo, a ligação entre a participação de Bandeira na criação de entidades artísticas e salões de pintura como marcos que referenciaram a atividade artística local e o processo de autonomização do campo da arte em Fortaleza, é quase uma evidência. Porém, há formas mais sutis de elaboração dessa autonomia. A criação de valores que singularizaram a experiência estética do artista e do público concorreu para a afirmação do campo artístico tão decisivamente quanto os movimentos coletivos de organização dos pintores junto a entidades representativas.

Sob a forma da criação de uma arte de viver e de um estilo pictórico próprio, Bandeira ajudou a lançar novas bases para a autonomização do campo, mediante a singularização social: 1) do par artista/obra, a partir da vivência nos ateliês; bem como, 2) da experiência estética do público de pintura, manifesta pelo olhar atento e concentrado exigido por obras modernas. É à compreensão do papel assumido por Bandeira nesse processo que me dedico a seguir.

A arte de viver um mundo denso de formas abstratas

Em Fortaleza, a sensibilidade social a certas ‘paisagens’ foi atestada em épocas não tão distantes. De maneira mais evidente, os pintores cearenses ‘descobriam’ a beleza de paisagens idílicas, harmoniosas, a partir do final do século XIX. Na capital e no interior do estado, era então uma prática comum a pintura mural, a qual preenchia as paredes de casas comerciais e de residências do segmento social economicamente mais favorecido.

Nas primeiras décadas do século XX, três paisagistas podiam ser apontados como exemplo: Gerson Faria, Vicente Leite e Raimundo Cela. O primeiro atuava na produção de paisagens para cenários; Leite, na década de 20, seguia os cânones da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, dedicando-se, sobretudo, à representação da paisagem cearense e carioca; Cela, na década de 30, realizou obras acadêmicas que tinham como tema tipos físicos (jangadeiro, vaqueiro) e paisagens locais.

149Antônio Bandeira: da invenção da cidade como forma-paisagem

Page 142: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Nesse contexto, os ateliês, coletivos, talvez mais que os individuais, desempenharam papel fundamental na construção da organicidade do movimento de renovação em pintura. Eram, a um só tempo, locus de tradição e subversão; lugar de permuta, no âmbito de um universo específico; de revelação de afinidades e oposições; de esclarecimento mútuo e de reprodução da crença numa unidade dentro da diversidade representada pelo campo da arte.

(Por volta de 1943) os inquietos artistas deixaram de frequentar o andar térreo do edifício Colônia Paraense, sede do Centro Cultural de Belas Artes, preferindo uma pequena sala do velho edifício Indiana, onde funcionava o ateliê Artis, que reunia pintores, escultores, escritores, músicos e jornalistas, sob a batuta de Mário Baratta e João Siqueira. (NOVIS, 1996: 10)

A partir de 1944, a turma da SCAP dedicava-se à prática do desenho e a pintura de retratos e naturezas-mortas no ateliê coletivo, bem como seguia o ideal da pintura ao ar livre, nos fins de semana.

Os integrantes da SCAP ostentavam uma postura desbravadora, ‘inventando’ paisagens, ‘descobrindo’ lugares, nas seções de pintura ao ar livre. A exposição destes trabalhos feitos em campo alimentava a percepção artística e provocava uma reação diversa a paisagens conhecidas por todos. Assim, o Poço da Draga, o riacho de Jacarecanga, o Morro do Moinho e outros, ganharam um novo estatuto, o de “objetos estéticos” dignos do olhar do artista que a um só tempo via e fazia ver.

Na capital cearense, esse gênero, até então voltado para elementos campestres, converteu-se pouco a pouco em paisagem urbana. Nesse sentido, as pinturas produzidas a partir da percepção do Morro do Moinho são emblemáticas, pois revelam um lugar explorado de modo recorrente pelos pintores em Fortaleza, desde o início do século. Tais obras ilustram não só a referida conversão, mas também uma progressiva passagem – da paisagem-representação à forma-paisagem, na década de 50.

O tema ‘escondido’ que se ausenta paulatinamente da representação colorida do quadro manifesta, sobretudo o fato-pintura, sem álibi ilusório de qualquer tema. O fato-pintura é: o nascimento conjunto da paisagem e da pintura propriamente dita... O ‘tema’ do quadro passa a ser a pintura ela mesma, e particularmente, o elo que a cor e

150 Kadma Marques RodriguesGerciane Maria da Costa Oliveira

Page 143: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

a forma introduzem entre os objetos: simples disposição de ‘coisas da natureza’, em um enquadramento escolhido pelo pintor. (CAUQUELIN, 2004)

Uma dentre as versões do Morro do Moinho, pintada por Antônio Bandeira em 1942, é particularmente ilustrativa das transformações pelas quais passou a produção pictórica cearense.

Diferindo sobremaneira das regras acadêmicas de representação que orientavam a manufatura das paisagens pintadas até então, o Morro do Moinho “criado” por Bandeira aparece como uma cena alongada e opressiva, preenchida por casebres que parecem disputar lugar na tela. Eles ladeiam uma rua estreita onde um grupo de pessoas se acha comprimido pelo ambiente delineado em pincelas largas. Apenas a fina faixa de céu azul que se estende sobre fisionomias indefinidas se oferece como espaço de respiração mais fluida.

O que estava em curso nesta tela não era certamente o desafio da representação, da verossimilhança, da apreensão da dimensão plausível do mundo material, mas os primeiros passos na elaboração de um fato-pintura, portador de uma lógica própria, fundada pelo filtro de valores formais, plásticos.

Se nos primórdios deste gênero, a paisagem renascentista inaugurou uma percepção visual capaz de enfatizar a ligação daquilo que sabemos e do que vemos: a pintura moderna – representada aqui pela produção de Bandeira – realizou mais completamente esta proposta dando a ver não objetos, mas elos entre os objetos, um conjunto, uma composição, cuja dinâmica aponta uma progressiva afirmação da pintura como jogo de formas. (CAUQUELIN, 2004)

Segundo Bourdieu (1996: 334) as categorias históricas da percepção artística exigidas por este modo de pintar – que tem como correlato, o olhar puro do pintor, mas também de seu público – é feita para ser olhada em si mesma e por si mesma, enquanto pintura, enquanto jogo de formas, de valores e de cores, isto é, independentemente a qualquer referência a significações transcendentes – (sendo) o resultado de um processo de depuração.

Embora o quadro de Bandeira ainda contenha referência a significações transcendentes (por exemplo, a realidade social adversa representada pelo Morro do Moinho), o elo entre cores e formas é um elemento fundamental na apropriação dessa obra, pois é por meio desses recursos que essa obra “significa”.

Segundo Cauquelin (2004), este tipo de imagem pictórica segue uma tendência que culmina na dissolução do conteúdo das obras e de seus títulos, os quais assinalam a conversão da pintura-representação em fato-pintura.

151Antônio Bandeira: da invenção da cidade como forma-paisagem

Page 144: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

A proposta plástica de Bandeira caracteriza-se assim por um processo no qual a representação expressiva de imagens que povoavam seu universo perceptivo converteu-se em um percurso de formalização pictórica da paisagem urbana. Este movimento se delineou mais claramente a partir do final dos anos 40, até a criação de obras que atingiram um alto nível de abstração nas décadas seguintes.

De fato, nos anos 50, suas obras revelam menos a definição de lugares específicos, reconhecíveis e nomináveis, do que os elos que unem espaços urbanos diversos – Fortaleza, Rio de Janeiro e Paris – compondo um espaço plástico que marca a transição entre uma cidade da incerteza (invenção crítica) para uma cidade do desejo (invenção utópica).3 (VASCONCELOS, 1998)

Desse modo, a criação dessa paisagem urbana por meio de um abstracionismo lírico original objetiva-se socialmente por um contexto sócio histórico, mas também por seu percurso profissional e de vida, cujos elos, ao mesmo tempo, fortalecem e são fortalecidos por uma lógica própria ao campo da arte.

Se considerarmos no âmbito da produção artística de Bandeira àquela que se voltou de modo recorrente sobre o tema “cidades”, encontraremos elementos para problematizar um estilo que se desenvolveu não só mediante o diálogo criativo com a conjunção de diferentes tipos de material (óleos sobre tela, guaches, gravuras, desenhos e murais), mas também, por afinidade formal, com outros estilos.

Portanto, no que se refere a sua elaboração, é preciso não esquecer a presença próxima ou distante do trabalho desenvolvido por artistas que, nos anos 50, representavam centros de produção artística na dinâmica de internacionalização do abstracionismo em pintura – Wols, na Europa, e Pollock, na América do Norte.

Sem que se coloque como necessidade um paralelo formal que distinga a obra de Bandeira dessas produções contemporâneas, cito possíveis ascendências estilísticas com o único objetivo de ligar a dimensão contextual dessa análise à realidade mesma (formal e temática) das obras em questão.

Nesse sentido, “cidade” parece ser um tema propício à análise proposta por possibilitar, a um só tempo, uma visão retrospectiva e prospectiva da obra de Bandeira. São quase três décadas de trabalho artístico que separam cronologicamente e ligam formalmente a Fortaleza figurada como Morro do Moinho, em 42, às cidades abstratas das décadas de 50 e 60.

3 Tout ce que je rêve se passe dans une grande et très belle ville in-connue avec ses vastes faubourgs et les rues, je n’ose pas la dessi-ner. - Palavras de Wols, amigo de Bandeira nos primeiros anos passa-dos em Paris. Esta frase foi incluída no catálogo da mostra de Bandeira, em Fortaleza (galeria do IBEU, 1951).

152 Kadma Marques RodriguesGerciane Maria da Costa Oliveira

Page 145: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Sobre sua obra podemos dizer, de maneira geral, que ela transparece uma mistura de desenho e pintura, bem como, de poesia e de grafismo. Sua produção artística desde o começo mostrava forte expressividade, sendo que em Bandeira a “pintura” impôs sua força na composição que organizava o impacto do gesto e de outros procedimentos picturais.

Bandeira deu forma concreta a seu universo por meio da distribuição de cores, manchas, traços, pinceladas largas, respingos, drippings, mas também, toques de espátula, tramas reticulares de rabiscos escuros. Com efeito, suas obras tornaram-se verdadeiros poemas visuais, difundidas em um fluxo favorável à dinâmica de internacionalização da abstração. (VASCONCELOS, 1998)

Sua permanência na França de 1946 a 50 foi vivida como tempos de formação artística. Este período proporcionou uma mudança significativa em seu trabalho: os incontáveis relevos, que dominaram sua obra a partir de 1948, testemunham seu contato com o movimento de contraposição à racionalidade representada pela abstração geométrica de Piet Mondrian e alinham-no à produção gestual de Pollock.

A utilização criativa de diversas técnicas tomou, naquele momento, o lugar de elemento central de exploração formal. De fato, a cidade tornou-se uma presença quase física por meio do movimento e das camadas de cores integradas ao quadro.

Em Bandeira, a cidade traduzia um contexto marcado por muitas particularidades: a cidade da infância e do sonho, do desejo; da comunicação utilitária e urbana, que representava um meio de segregação e integração social cotidiano. Seu desafio perante esse “objeto” era então o de substituir o objeto cidade pela forma cidade, de provocar sua decomposição usual em nome de sua conversão em elementos plásticos: volume, cor, linhas, contraste sombra/luz, os quais lhe possibilitavam inserir na realidade sínteses de todas as cidades por ele vividas… Segundo essa percepção poética, que ultrapassa a percepção comum, a cidade deixaria de ser percebida/pensada/sentida simplesmente por seu conteúdo a fim de assumir importância por sua forma, segundo um alargamento da paisagem urbana, concebida como cidade moderna.

Podemos dizer que, a partir desse momento, a produção artística de Antônio Bandeira converteu-se em um crescente movimento de abstração ou de depuração da forma cidade. De forma concreta, ela se tornou presença em negativo… Hoje, quer seja o jogo de justaposições de camadas de tintas sobre uma diversidade de suportes quer sejam perfis que se multiplicam, eles nos lembram da cidade, convertida em gestos, respingos em um silencioso movimento de cores…

153Antônio Bandeira: da invenção da cidade como forma-paisagem

Page 146: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Em meados dos anos 50 podemos perceber o definitivo domínio da forma-cidade sobre a cidade tomada como objeto. Além disso, tornou-se mais presente o jogo sutil que provoca uma dinâmica de vai-e-vem entre a transparência (que tem o papel de revelar as coisas) e a superposição de formas (que usualmente funciona ao inverso). É a forma-cidade, mas também o objeto-cidade, que é reapresentado como esta realização humana capaz de ao mesmo tempo colocar em evidência e transformar simbolicamente a realidade.

Podemos dizer ainda que este percurso artístico revela outra conversão progressiva: ele vai da construção vigorosa de composições expressionistas, à maturidade do gesto que permite camadas de tinta colorida escorrer espontaneamente sobre uma superfície, conduzida simplesmente pela força da gravidade…

A guisa de conclusão...

Esta breve análise formal, aliada a um conjunto de elementos sócio histórico relativo à gênese do campo artístico (criação de um estilo de vida e instituições fundamentais a esse domínio), não pretendia compor uma reflexão exaustiva acerca do percurso artístico de Antônio Bandeira. Antes, tinha por objetivo explicitar uma interpretação possível, certamente parcial e relativa (a uma determinada sociologia da arte).

A tentativa de apreender conceitualmente as implicações sociais ligadas ao conjunto de sua produção plástica abstrata revela um pintor que, mesmo fora de Fortaleza, se fez forte presença no processo de autonomização do campo artístico local. De fato, a obra de Bandeira foi fundamental à sofisticação do olhar cultivado do público de pintura, na Fortaleza da primeira metade do século XX, adequando-o a uma experiência estética bem particular, caracterizada pelo olhar puro do artista moderno.

A formação deste olhar puro, hoje tão familiar àqueles que apreciam as artes plásticas, evidencia a criação de uma disposição perceptiva que somente se afirmou ao longo de várias gerações, sendo sua manifestação mais recorrente marcada pelo olhar concentrado e a postura silenciosa do público (cultivado) de pinturas. É no silêncio ‘irrefletido’ desse público que reencontramos o silencioso movimento das cores criado por Bandeira, cujas categorias estéticas advêm de uma dinâmica visual pautada por elementos que afirmam, sobretudo, a realidade da obra.

Nesse contexto, a compreensão sociológica da formação do olhar puro, exigido pela “pureza” da forma abstrata em pintura, enfatiza esta apropriação como

154Kadma Marques Rodrigues

Gerciane Maria da Costa Oliveira

Page 147: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

uma atividade baseada em operações cognitivas que empregam um modo de conhecimento que não é o da teoria e do conceito... configurando-se como apreensão da maneira, forma, estilo criado pelo artista. (BOURDIEU, 1996)

Dito de outra maneira: a difusão da atitude silenciosa como comportamento predominante do público de pintura em momentos de exposição de arte, corporifica duas vias básicas para a afirmação da autonomia do campo artístico – a da distinção social do artista e aquela da configuração de obras que veiculassem um espaço plástico moderno (como predominância do modo de fazer, da forma sobre o conteúdo).

A depuração característica da aventura pictórica moderna exerceu, portanto, um “efeito de singularização” sobre artista e obra, mas também sobre seu elemento complementar – o público de pintura.

A pintura moderna realizou essa volta reflexiva sobre si mesma, sobre sua especificidade (ou seja, seu modo de formar), que provoca, digamos assim, uma sobreposição de “camadas semânticas” que exigem do público cultivado uma apropriação intensa que dê conta dessa forma de cumulatividade.

Nesse contexto, o encontro pausado e silencioso do público frente a paisagens abstratas, deixa de consistir, para a Sociologia da arte, uma relação essencialmente obscura entre o olhar cultivado e o mundo social. Ao contrário, desse espaço emergem tanto a especial força que ganha a singularidade de artistas como Antônio Bandeira, como os elementos contextuais que impregnam a originalidade de sua obra/percurso de vida, graças à consideração do desenvolvimento de uma lógica própria ao campo da arte.

Para concluir, creio que o trabalho de Bandeira comprova sua capacidade de olhar o mundo de uma maneira diversa, a qual se afirma como uma perspectiva particular do espaço social, delineada a partir de um domínio social específico – o campo artístico. Ele demonstra a capacidade artística, elaborada ao longo de várias gerações, de converter os objetos mais banais em “objetos novos”, incitando os demais seres humanos a redescobrir a realidade a partir de novas bases. Esta maneira de olhar o mundo, de se reaproximar da realidade de uma maneira mais poética, mais sensível, permanece no âmago de toda criação artística moderna que, à semelhança da obra de Bandeira, ganha o estatuto de obra de arte. RESUMÉ: The objective of this article is to contibute to a forged perspective by Sociology of Art, to understand the relation which has been stablished for the last 3 decades of art production between the theme city and the abstract lyricism of Antônio Bandeira paintings (1922-1967). Through an oriented view by the sociological categories of analysis, the researcher grasps and conducts

Mots-clés painting, city, urban lanscape, landscape-form .

155Antônio Bandeira: da invenção da cidade como forma-paisagem

ArtigoRecebido: 16/03/2011Aprovado: 12/05/2011

Page 148: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Referências

BOURDIEU, Pierre e DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.

________________. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras: 1996.

CAUQUELIN, Anne. L’invention du paysage. Paris: PUF, 2004.

FIRMEZA, Nilo de Brito (Estrigas). A fase renovadora da pintura cearense. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1983.

HEINICH, Nathalie. Sociologia da Arte. Bauru, SP: Edusc, 2008.

NOVIS, Vera. Bandeira um raro. Rio de Janeiro: Salamandra, 1996.

RODRIGUES, Kadma M. Barrica: o gesto que entrelaça história e vida. São Paulo: Annablume; Fortaleza: SECULT, 2002.

____________________. As cores do silêncio: habitus silencioso e apropriação de pintura em Fortaleza (1924-1958). Fortaleza: Expressão Gráfica/SECULT, 2011.

VASCONCELOS, Regina Ilka Vieira. Cidades em abstrato – pintura de Antônio Bandeira (1950-1965). Dissertação de Mestrado em História, 1998.

a slow formal process of transmutation whose fundament is anchored on the many positions occupied by the paintor along his life path.On one hand, such process points to a clearense of the city by the eyes of the artist, which converts the representation of the urban landscape in landscape-form; On the other hand, it points out the emergency of an own style, marked by the growing abstraction of cities - of an artistical recurrent content, it has been transformed into a landscape form affirmation, set as image-synthesis on the cities where Bandeira has already lived in - Fortaleza, Rio de Janeiro and Paris.

156 Kadma Marques RodriguesGerciane Maria da Costa Oliveira

Page 149: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

157(*) Santiago Olmo es curador independiente y critico de arte. Curador de la XXXI Bienal de Pontevedra - Utrópicos. Vive y trabaja en Madrid. (España)

For what it’s worth the biannuals?

Santiago Olmo*

¿Para qué sirven las bienales?

Palavras-chave: bienal; arte; sociedade.

RESUMO: Tomando em consideração a crise do modelo bienal, que converteu as bienais em eventos restritos às férias, aborda-se a possibilidade de uma transformação ou mudança de modelo. A partir da experiência concreta na organização da XXXI Bienal de Pontevedra (Espanha), que com o título Utrópicos abordou o âmbito cultural da América Central e do Caribe, o autor do texto, Santiago Olmo, curador da bienal, levanta possíveis soluções. A importância da conexão da bienal com a educação e formação, salientando tanto aspectos informativos como de investigação, é um dos elementos essenciais. A conexão com o contexto, a ativação de redes de colaboração e a consciência de que existem públicos e não apenas um tipo de público, ajuda a compreender os desafios que enfrentam os grandes eventos. A renovação do modelo bienal implica revisar a função que atualmente tem a arte na sociedade. Um dos mecanismos ensaiados em Pontevedra é a utilização do formato exposição para por em diálogo as obras e os artistas. Deste modo, pode evitar-se a marginalização dos efeitos colaterais enquanto se reivindica a utilidade e o serviço público que oferece a bienal como mecanismo para compreender a complexidade do mundo atual.

Tomando en consideración la crisis del modelo bienal, que ha convertido a las bienales en eventos cercanos a las ferias, se aborda la posibilidad de una transformación o cambio de modelo.

A partir de la experiencia concreta en la organización de la XXXI Bienal de Pontevedra (España), que con el título de Utrópicos abordó el ámbito cultural de Centroamérica y el Caribe, el autor del texto, Santiago Olmo, curador de la bienal, plantea posibles soluciones.

Page 150: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

158 Santiago Olmo

La importancia de la conexión de la bienal con la educación y la formación, subrayando tanto aspectos divulgativos como de investigación, es uno de los elementos esenciales. La conexión con el contexto, la activación de redes de colaboración y la conciencia de que existen públicos y no un solo tipo de público, ayudan a comprender los retos a los que se enfrentan los grandes eventos.

La renovación del modelo bienal implica revisar la función que tiene el arte actualmente en la sociedad. Uno de los mecanismos ensayados en Pontevedra es la utilización del formato exposición para poner en diálogo las obras y los artistas.

De este modo pueden evitarse la marginalización de los eventos colaterales mientras se reivindica la utilidad y el servicio público qe ofrece la bienal como mecanismo para comprender la complejidad del mundo actual.

La crisis del modelo bienal

En 2005, el diseñador y curador español Andrés Mengs, publica y envía por correo una postal en la que retoma las disparatadas palabras de un representante político vasco en la rueda de prensa de Manifesta 51 , celebrada en 2004 en San Sebastián: “Exigimos bienales todos los años”.

La postal cae como una bomba de profundidad en un momento en el que la bienal, como forma expositiva, vive uno de sus momentos más eufóricos y dorados.

El impacto de la frase tuvo y tiene un sentido brutalmente crítico que, en la situación actual, merece algo más que una reflexión y obliga a repensar cuál es el modelo más adecuado para potenciar la distribución artística en un momento en que la crisis económica mundial se alimenta con la psicología del miedo.

Robert Storr cita, en su conferencia Las bienales ¿foro para el arte o salón global?2 (2007), un total de 110 Bienales en todo el mundo, lo que significa que cada año se celebra un promedio de 55 bienales.

Las bienales se han expandido y difundido porque constituyen un elemento de dinamización cultural y social. Una ciudad se pone en el mapa a través de una bienal ya que promueve una rápida adquisición de protagonismo mediático.

Cualquier operación en favor de la transformación de la imagen de una ciudad y en su trasmisión mediática resulta siempre más fácil y eficaz mediante una

1 Manifesta es una bie-nal europea itinerante cuyos objetivos han sido estrechar vínculos entre los países que componen la Unión Eu-ropea. Impulsada por la fundación Manifesta con sede en Rotterdam, se celebró en esta ciu-dad en 1996, en Lu-xembourg en 1998, en Ljubljana en 2000, en Frankfurt en 2002, en San Sebastián en 2004, en 2006 fue cancelada debiéndose celebrar en Nicosia, por problemas políticos, en 2008 en Trentino-Süd Tyrol, en 2010 en Murcia y en 2012 tendrá lugar en Limbourg. www.mani-festa.org

2 Conferencia pronun-ciada en la Fundación ICO en Madrid el 30 de marzo 2005. www.fundacionico.es

Page 151: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

159¿Para qué sirven las bienales?

Bienal que a partir de un plan general urbanístico que suele despertar en la sociedad la sospecha de intereses ocultos y de tipo especulativo. Obviando las farragosas discusiones urbanísticas y concursos de planes generales, una bienal constituye un primer paso de “lavado o blanqueo de cara”. La fase ejecutiva de la transformación efectiva suele llegar a través de unos juegos olímpicos, unos mundiales de fútbol o cualquier acontecimiento deportivo internacional de relieve, desde las regatas a la fórmula 1.

Las bienales, en tanto que transmisoras de arte, ayudan a comprender desde otros parámetros, los retos que la transformación del uso de los espacios públicos impone. Es precisamente la mirada crítica del arte laque actúa como sismógrafo social y permite vislumbrar hacia donde deben dirigirse ciertas líneas de actuación. En especial, aquellas líneas más conflictivas que pueden entrar en colisión con el cuerpo social: la intervención artística, atenúa el choque en un primer momento y es, incluso, capaz de moderar las tendencias radicales (liberales) del mercado urbanístico. En cierto modo el arte suele proponer una visión reformista, si aceptamos la metáfora política. En el arte contemporáneo funciona una línea activista (frecuentemente captada por las bienales) que opera a través de sus intervenciones de forma terapéutica en la ciudad, restañando las heridas urbanas, subrayando los valores de la cultura popular e indicando como estos valores deben resguardarse al tiempo que denuncia la urgencia de resolver problemas como la insalubridad o la degradación, quizás no tanto como para elevar sino para dignificar el nivel de vida.

Sin embargo el efecto de transformación producido por las bienales en estas líneas de actuación es frágil si no se mantiene una acción continuada y, a menudo, la acción queda limitada al corto plazo. Con el paso del tiempo estos efectos transformadores se diluyen.

El modelo de Bienal ha ido acercándose al formato de “Salon” francés del siglo XIX, asumiendo cada vez más los mecanismos de una feria comercial, mediante la intervención y participación de galerías y coleccionistas. Algo inevitable en la línea dominante de economía de la privatización que, sin duda, dinamiza por un lado pero, por otro, domestica, reduciendo y limitando la capacidad de transformación efectiva y afecta de manera decisiva a la conexión con los públicos y el contexto social.

En estos últimos años el modelo aparece agotado o con síntomas de estar en crisis (también como la economía, por una cierta actitud especulativa). La precariedad, sin embargo, no reside tanto en la reducción de los presupuestos económicos disponibles, como en las ideas y en los procedimientos, en la ausencia de discursos efectivos que conecten con la ciudadanía, más allá de los meros efectos mediáticos.

Page 152: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Las bienales en los últimos años 2000 han recogido y aupado trabajos muy espectaculares pero también muy costosos. Su naturaleza efímera hace que los recursos se dilapiden sin que quede un poso o una huella para la ciudad y para la ciudadanía. Las bienales han propiciado un circuito de nombres y artistas que tiene un inmediato reflejo en el ranking del mercado.

En un video del artista cubano Lázaro Saavedra una anécdota banal se hace ácida crítica. En una fiesta (de artistas), un personaje de aspecto interesante, sentado en un sillón. Llega otro y se sienta enfrente con intención de establecer un diálogo:

“hola, has participado en la Bienal de Venecia?”“No”“Has participado en documenta?”“No”“Has expuesto en el MoMA?”“No”“Ah, bueno, adiós”.

Recientemente un amigo artista relataba un desayuno en Witte de With, uno de los centros de arte más prestigiosos de Europa, en el que un grupo de artistas invitados a la exposición comentaban en qué bienales había participado cada uno. Una conversación que iba organizando un ranking tácitamente aceptado, no tanto por el interés de las obras, como por el número de invitaciones que había recibido cada uno.

De hecho, el mainstream de los últimos años se ha construido, en cierta manera, a través de las invitaciones a bienales. De este modo se han ido formando difusos lobbies que mantienen un circuito de nombres. Romper con todo eso es, no solo necesario, sino también saludable para empezar a mirar las obras de otra manera y, sin duda, para cuestionar la espectacularización del arte que es sinónimo de entretenimiento y ocio en el mejor de los casos y, en el peor, se podría definir como el túnel de la bruja o arte de Luna Park.

Sin duda, una de las primeras señales de alarma fue dada por la 28 Bienal de São Paulo, comisariada por Ivo Mesquita en 2008. Su decisión fue prescindir de la exhibición de obras en la Bienal y generar un silencio visual que permitiera una reflexión, centrarse en la redefinición de un modelo que permitiera volver a tomar arranque. Algo más de un mes antes de la inauguración de la Bienal prevista para el 26 de octubre, los días 15 y 16 de septiembre, se celebra en Sotheby’s de Londres, la subasta en la que el tiburón en formol de Damien Hirst es adquirido en 12 millones de dólares por un auténtico tiburón de los negocios, Steven Cohen, el mismo día en el que Lehman Brothers anuncia su quiebra. Todo un símbolo de lo que estaba ocurriendo.

160 Santiago Olmo

Page 153: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

La crisis estaba servida e Ivo Mesquita se adelantaba a los acontecimientos.La bienal fue fuertemente criticada a pesar de que constituyó una operación teórica impecable con la que consiguió generar reflexión entre artistas y curadores, implicar al público y optimizar recursos.

Por ejemplo, el catálogo de la exposición estaba formado por nueve entregas de un periódico gratuito distribuido en la ciudad (con una entrega cada semana de bienal) incluyendo noticias, intervenciones, relatos, cómics, juegos de palabras cruzadas, etc. Una vez concluida la bienal cualquier persona podía disponer del catalogo. Se propicia la participación del público a través de eventos.

La Bienal do Mercosul, en 2007 y 2009, emite otras señales, al subrayar la importancia de las visitas guiadas y los proyectos educativos, liderados y dirigidos por los artistas. No es casual que sea en Brasil donde las alarmas salten antes. El dinamismo y la conciencia crítica de la escena brasileña avalan este tipo de decisiones, aunque hay que considerar que en la Bienal de Mercosul 2007 el comisario es Gabriel Pérez Barreiro, español con dilatada experiencia en Estados Unidos y América Latina, y en la siguiente edición de 2009 la comisaria, Victoria Noorthorn, es argentina.

En Porto Alegre los proyectos educativos se empiezan a desarrollar en colegios de la ciudad un año antes de que comience la bienal. Los alumnos desarrollan trabajos a partir de los temas de la bienal y allí son expuestos. El propósito en Porto Alegre es generar la participación de los públicos y estrechar el vínculo con el contexto, así como transformar la bienal en una herramienta que sea útil y prolongue en el tiempo sus efectos.

Pontevedra Utrópica

Partiendo de estas premisas el encargo para asumir la dirección de la Bienal de Pontevedra se convierte en un reto que debía tener en cuenta la situación de crisis y quiebra del modelo bienal. Se trataba pues de pensar en un formato adaptado a las necesidades y especificidades del contexto local. A través de la conexión con las posibilidades que ofrecía lo local había que buscar soluciones que transformaran la bienal en algo útil, conectado con el contexto, recuperando, en lo posible, una vitalidad capaz de incidir en el entorno.

La Bienal de Pontevedra tiene un formato pequeño, a escala con la ciudad (80.000 habitantes, aunque su entorno inmediato costero engloba una conurbación de algo más de 600.000 habitantes) y en relación a un presupuesto muy ajustado para este tipo de eventos, fijado en 300.000€

161¿Para qué sirven las bienales?

Page 154: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

que, con diversas aportaciones de entidades colaboradoras, se aproxima a los 500.000€3 .

La Bienal de Pontevedra fue creada en 1967, desde la Diputación Provincial de Pontevedra , con el formato clásico de evento artístico competitivo, en convocatoria abierta, con una sección nacional y otra internacional que, al desarrollarse en los meses de verano, tenía una función de dinamizadora en relación con el turismo. Pontevedra se encuentra situada en el centro de las Rías Bajas, la zona costera gallega de mayor actividad marisquera. Aunque capital de la provincia, no es su motor económico y tampoco su mayor núcleo de población, que está situado a unos 25 km. al sur, en Vigo, uno de los puertos más dinámicos y activos de la península Ibérica.

La Bienal es para Pontevedra un importante activo cultural, y propició hace algunos años que la Facultad de Bellas Artes de la Universidad de Vigo, se instale en la ciudad, junto a otras facultades como Ciencias Sociales o Ciencias de la Educación, en el proceso de descentralización y ampliación de la universidad de Vigo.

La Bienal ha pasado por diversas etapas de decadencia, recuperación y revitalización. Su organización (a través de la Diputación) se ha mantenido ligada al Museo Provincial de Pontevedra que posee una relevante colección artística y antropológica, repartida entre varios edificios.

Para la XXXI edición que se celebra en 2010 centrada en Centroamérica y el Caribe, al contrario de lo que había ocurrido en los últimos años, la figura del comisario general y del curador artístico recae en la misma persona.

Cuando a finales de 2009 se iniciaron los trabajos de organización, fue prioritario poner en marcha un equipo, una web y una oficina, pues no había una infraestructura estable. En otras ediciones el propio museo ponía en marcha el proyecto. En esta ocasión apenas hubo colaboración salvo la cesión de espacios.

El núcleo del equipo de organización estuvo formado por Tamara Díaz-Bringas, responsable de coordinación y curadora adjunta, y Begoña Mateos Badía, responsable de producción. Virginia Pérez-Ratton, desempeña una asesoría curatorial y Teorética, la fundación que dirigió hasta su muerte, fue una pieza inestimable en la coordinación. Se trata de un equipo muy exiguo, en los mínimos, que trabajó a contrarreloj.

Las líneas programáticas del proyecto llevaron al título, Utrópicos, que condensa la visión dinámica de una región compleja y fragmentada, que es

162 Santiago Olmo

3 Han participado de manera decisiva en la financiación de la Bie-nal la Xunta de Galicia (gobierno autónomo de Galicia), el programa cultural Xacobeo (con motivo del Año Santo Compostelano), AECID (Agencia Española de Cooperación Interna-cional y Desarrollo) y Autoridad Portuaria de Vilagarcía de Arousa.

4 En la organización territorial española, la Diputación es una ins-titución de ámbito pro-vincial, y se ocupa de la gestión de intereses económico-administra-tivos de una provincia coordinando la acción de los diversos ayunta-mientos del territorio.

Page 155: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

presentada como un espacio de intensa producción cultural en direcciones muy diversas. La tensión de la idea de utopía en el trópico viene a subrayar la manera imaginativa y novedosa en la que la creación artística y literaria, cinematográfica y de pensamiento, que se ha desarrollado en el siglo XX en esta región del mundo, ha propuesto una mirada crítica y un compromiso con la realidad.

La XXXI Bienal de Pontevedra se ha planteado fundamentalmente desde dos puntos de partida teóricos:

1.- Crisis del modelo bienal. La crisis se ha manifestado esencialmente como una conversión de las bienales en repertorios internacionales de tendencias y en vitrinas de últimas novedades de moda. Ante estos síntomas de degradación y trivialización se imponía una reflexión sobre las quiebras del modelo y una exploración sobre los mecanismos que permitieran tanto una expansión de los dispositivos expositivos en relación directa con el contexto social y cultural de la ciudad, como su conversión en un espacio de conocimiento y archivo sobre un tema concreto.

2.- Conversión del dispositivo bienal en una investigación que potencia una visibilización articulada. En el fondo esta idea tiende a alejar a la bienal de la feria para acercarla a un modelo riguroso tipo documenta.

Utilizando un esquema temático, en el caso de Utrópicos el ámbito artístico y cultural de Centroamérica y el Caribe, la intención era transformar la bienal en un espacio de investigación que permitiera una presentación articulada del tema, trabajando en la selección de obras y artistas desde la pertinencia, estableciendo un esquema de montaje de diálogo y relaciones entre obras que abriera hacia una comprensión no solo de cuestiones artísticas sino también de problemáticas sociales, políticas y culturales, generando un espacio de visibilidad para la región.

La exposición como modelo de articulación

El diálogo con el contexto cultural local ha constituido otra de las prioridades de la Bienal, en esta búsqueda de nuevo modelo.

En anteriores ediciones la mirada internacional tendía a dialogar con la escena local, pero de una manera en la que se soslayaba la pertinencia sobre la importancia ocasional de obras y artistas. Así ocurre frecuentemente en

163¿Para qué sirven las bienales?

Page 156: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

muchas bienales. Quizás debido a que la bienal suele ser entendida más como un dispositivo neutro, como un espacio de exhibición de novedades, que como un proyecto de investigación y dialógico respecto a temas e ideas. En Pontevedra salvo excepciones, la presencia de artistas españoles o gallegos en las diversas ediciones priorizaba el reflejo de las tendencias y los posicionamientos más actuales.

En Utrópicos una idea central fue establecer una mirada de diálogo entre Galicia y Centroamérica y el Caribe, no solo desde la actualidad, sino también desde el pasado y la historia que ofrecía además el soporte de la colección histórica del museo. Por todo ello y para mejor articular lo expositivo la estructura de la bienal consistió en establecer secciones de trabajo que se reflejaran en el formato de exposiciones. Exposiciones que fueran entendidas como fragmentos, micro-exposiciones que abordaran temas, que pudieran ser leídas como capítulos de un recorrido, pero también de manera independiente, y que mantuvieran un rigor argumental de coherencia temática y a la vez de puesta en relieve, de visibilización.

La reivindicación del mecanismo exposición dentro del dispositivo bienal, permitía renovar y revitalizar a esta última, mediante el mantenimiento de un fuerte discurso argumental.

Considerando que Centroamérica y el Caribe son regiones que actualmente no poseen demasiada visibilidad internacional como contextos, sino que su conocimiento se apoya por lo general en figuras individuales que han alcanzado relevancia en la escena internacional, el dispositivo exposición permitía poner de relieve lo colectivo, y facilitaba una mejor comprensión de las ideas que subyacen en las obras así como de los procesos de producción.

Por otro lado y de una manera muy singular, el Caribe ha sido exhibido en los últimos años incidiendo en aspectos ligados a los ámbitos de la cultura popular y subrayando elementos de carácter religioso. El planteamiento temático de las exposiciones de la bienal, aunque puede aludir ocasionalmente a estos aspectos, pretendió mostrar fundamentalmente una imagen que conecta con una dimensión de modernidad y de compromiso con la realidad.

Una decisión muy importante fue la de integrar en la Bienal exposiciones ya realizadas y producidas en Centroamérica y que estuvieran disponibles para viajar. De este modo lo que se pretendía subrayar era, no solo otra mirada curatorial y un discurso capaz de producir exposiciones con equivalentes estándares de calidad, también la idea era presentar una exposición como una obra, que reflejaba una escena local profesional y seria. Esto fue posible con

164 Santiago Olmo

Page 157: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

Migraciones - Mirando al sur, una muestra curada por la crítica y curadora independiente guatemalteca Rosina Cazali, que reunía diversas instalaciones, proyecciones y obras que giran entorno a la idea de migración en el interior del istmo. La exposición, financiada por la red de centros culturales de España de la Agencia Española de Cooperación Internacional, concluyó su itinerancia por diversos países de América Latina en Pontevedra y permitió a la Bienal poder contar con esta institución como colaborador y partner.

El formato exposición permitió intervenir en el interior de las colecciones arqueológicas del museo, instaladas en un pazo del siglo XVIII, insertando algunas piezas contemporáneas con referencias formales y críticas a la historia en la presentación del acervo que mantiene en el tipo de vitrinas e iluminación un aspecto antiguo y anacrónico. El museo ofreció un decorado y contexto perfectos para Fricciones, una pequeña exposición con trabajos del artista colombiano Nadin Ospina en los que se funden elementos propios de la cultura popular globalizada norteamericana, como Bugs Bunny o Mickey Mouse, en reproducciones de vasijas o joyas de tipo precolombino de las culturas mesoamericanas del área de Costa Rica, o ciertas piezas del artista gallego Olmo Blanco, en las que aparecen objetos cotidianos actuales decorados con motivos arqueológicos.

De este modo el visitante a la Bienal podía enlazar su visita con las colecciones históricas del museo, y al revés, el visitante interesado en el acervo histórico era invitado a conectar con el presente y ampliar su visita al núcleo de la Bienal en el nuevo edificio.

Como apertura de la Bienal, en el interior del nuevo edificio del museo, la exposición titulada Ida y vuelta proponía un acercamiento a Centroamérica y el Caribe a través de artistas gallegos que se vieron obligados a emigrar y exiliarse tras la guerra civil (1936-1939) en países de América Latina absorbiendo elementos locales en su arte, utilizando numerosas obras pertenecientes al acervo del museo. Temas como la herencia africana aparecen como un hilo conductor en esa ida y vuelta constante. El resto de exposiciones se articulan como capítulos: el aguacero, la siesta el cañaveral, el tabaco que se apropia de un verso del poeta cubano Virgilio Piñera, aborda la interrelación del trabajo, la economía de la plantación, los problemas sociales y políticos, la violencia de las maras y la violencia política, el turismo, las revoluciones y la guerrilla, el tratado de libre comercio; Migraciones - Mirando al Sur como exposición invitada; Archivacción un dispositivo realizado por la artista gallega Carme Nogueira, en forma de escenario y aula en cuyos bancos corridos se han encastrado pantallas de ordenador, para visualizar una selección de performances de artistas de toda la región,

165¿Para qué sirven las bienales?

Page 158: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

subrayando la dimensión socio-política de esta práctica; Tras-misiones, una selección de proyectos formativos y educativos fundados por artistas en Centroamérica y el Caribe, que ofrecen una mirada distinta al panorama de la región, conectando con la experiencia de las Misiones Pedagógicas de la II República española durante los años 30.

Dentro de esta constelación de exposiciones se inserta un centro de documentación, que debe ser considerado como una sección expositiva más, aunque con algunas especificidades. El centro de documentación se presenta como una biblioteca que reúne literatura, ensayo y catálogos de arte; un archivo de producciones videográficas, diversos puestos de conexión web a sites y proyectos de la región y una discoteca de producciones musicales. El visitante puede disponer de ellos a la carta, en un espacio habilitado en forma de biblioteca-sala de estar. Es un espacio para ser utilizado como una herramienta de estudio, para quien desee conocer más y más allá de la propia exposición. Está concebido para el público curioso pero sobre todo para profesionales que deseen profundizar en el tema.

Su carácter expositivo se basa en el modo efectivo de ofrecer conocimiento de obras y contenidos audiovisuales que no están expuestos en otras secciones expositivas, pero que podrían estarlo desde otras perspectivas o discursos: tiende a privilegiar la inclusión frente a la selección, sin pretender ni mucho menos la totalidad.

Un dato interesante es que aunque los documentos y libros puestos a disposición del público no estaban protegidos por detectores magnéticos, no hubo que lamentar ninguna sustracción.

Esta estructura de exposiciones permitía poder romper con el concepto de lo colateral, que en muchas bienales relega a los márgenes por ejemplo al discurso teórico y al cine, convirtiendo las “actividades colaterales” en espacios de reflexión que ayudan a leer lo artístico.

El cine, que en los últimos años ha sido un medio de gran influencia y relevancia para el arte, se ha convertido en esta bienal en un espacio complementario de lectura para la región centroamericana y el Caribe a través de un ciclo (proyectado alternativamente en Vigo y en Pontevedra) que se planteaba como si fuera una exposición. Fueron seleccionados documentales tan relevantes para la actualidad sociopolítica como Quien dijo miedo: Honduras de un golpe de Katia Lara sobre el golpe de estado en Honduras, que se estrenó en Europa en la Bienal; Wet Back de Arturo Torres sobre el drama de la emigración centroamericana a lo largo de México y en

166 Santiago Olmo

Page 159: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

dirección a los Estados Unidos o La vida loca de Christian Poveda, sobre la violencia de las maras (gangs, bandas delictivas) en El Salvador. También fueron proyectados largos de ficción como Lo que soñó Sebastián, dirigido por el escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa, autor de la novela y del guión; Gasolina del también guatemalteco Julio Hernández o Camino de la costarricense Ishtar Yasin.

Las dos publicaciones de la Bienal constituyeron una parte esencial del proyecto. Se editó un primer volumen Utrópicos Roteiro/Guía/Guide, con la descripción pormenorizada de los contenidos y estructurado al modo de una guía, en edición trilingüe gallego, español e inglés. Un segundo volumen Utrópicos Contexto/Context reunía una selección de textos teóricos sobre los diversos temas abordados en el plano expositivo, manteniendo la lengua original gallego y español en el mismo plano con traducción al inglés.

El primero se sitúa en estrecha relación con el tono divulgativo de los textos de sala, y el segundo con el tono reflexivo del centro de documentación. Lamentablemente los libros no fueron puestos a la venta y tampoco distribuidos como estaba previsto y no han llegado suficientemente al público.

No obstante es posible descargar gratuitamente las publicaciones en pdf desde la web de la bienal: www.bienal.depo.es

La Facultad de Bellas Artes y el Laboratorio de Mediación

En otro orden de cosas se plantean como prioridades, aspectos cada vez más importantes y esenciales: potenciar dispositivos educativos y pedagógicos que faciliten el acceso y comprensión de las prácticas artísticas contemporáneas, desarrollar proyectos de intervención urbana en el espacio público que propicien la apertura de un debate sobre los usos de lo público como redundar en su transformación, y establecer una red de colaboraciones con instituciones culturales de la ciudad y de la provincia que convirtiera a la Bienal en un soporte de integración y conexión.

Hasta 2008 la Bienal de Pontevedra se había desarrollado únicamente en la ciudad de Pontevedra y en recintos cerrados, con planteamientos expositivos convencionales. En esta edición gracias a una política de integración la bienal amplió su radio de acción a Vigo, Santiago de Compostela y Vilagarcía de Arousa.

Entre tanto en Pontevedra se ampliaron las sedes, integrando a la Fundación RAC, impulsada por el arquitecto y coleccionista Carlos Rosón, que presentó

167¿Para qué sirven las bienales?

Page 160: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

dentro del programa de la Bienal una exposición de la artista cubana Tania Bruguera; mientras que en las salas de la Facultad de Bellas Artes y la Escola Superior de Restauración y Conservación de Bens Culturais de Galicia, se exhibieron proyectos artísticos conectados con la formación y la educación.

Uno de los logros más destacables de la Bienal fue la colaboración y la integración de la Facultad de Bellas Artes en las actividades, ya que nunca antes había habido una participación activa, explorándose las posibilidades de campo de prácticas que ofrece un formato bienal, más allá de las habituales colaboraciones asistenciales en el montaje.

Su acción se desarrolló básicamente en dos planos, en la producción de contenidos en el ámbito pedagógico y de mediación y en el plano participativo y expositivo.

Por una parte los alumnos de 4º curso dirigidos por la profesora Paloma Cabello, desarrollaron proyectos de difusión, mediación y educación, para la bienal desde una perspectiva artística y como trabajo de fin de curso. Todos los proyectos se englobaron en el Laboratorio de Mediación. Los proyectos incluyeron cuentacuentos y visitas guiadas, acciones de difusión en las calles y plazas de la ciudad con lecturas de textos literarios y poemas, proyección de videos documentales y entrevistas a artistas participantes en la bienal previamente realizados o talleres para niños. Numerosas actividades se complementaban con un servicio de café (centroamericano) gratuito. La mayoría de los trabajos fueron realizados en grupo y tuvieron una gran aceptación. Por ejemplo uno de los proyectos, titulado Son las 5, las 9 en Managua, consistió en la preparación de un desayuno centroamericano, con la ayuda de una escuela de hostelería y restauración, coincidiendo con el horario de apertura de la bienal.

Por otro lado se propuso lanzar una convocatoria abierta a todos los alumnos y profesores de la Facultad para la realización de proyectos que serían presentados y expuestos en una de las salas del museo dentro de la programación de la bienal. El tema de la convocatoria fue el racismo, y para ello se reutilizó el lema “Todos somos negros”, extraído de un artículo de la constitución de Haití de 1804 y lanzado por la red de Conceptualismos del Sur en internet en 2008.

No se pretendía con la convocatoria exponer obras, sino transformar el museo en un espacio de discusión, de presentación y de debate, que la sala se renovara cada cierto tiempo, que el público participara con las obras y que se sintiera interpelado por el problema del racismo. En este caso concreto

168 Santiago Olmo

Page 161: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

se buscaba minimizar al máximo el sentido de la exposición y subrayar la condición inacabada o inconclusa del proyecto como punto de partida para un debate y la interacción con el público desde los procesos. Cada tres semanas se organizaba una apertura-presentación de manera que la sala cambiaba de aspecto y de contenido.

Cada uno de los profesores participó como coordinador de un grupo y algunos también como artistas. La sala se convirtió en un lugar de encuentro y de experimentación. Algunos participantes realizaron sus obras en el museo, trasladando temporalmente su estudio a la sala y trabajando durante las horas de apertura, en contacto con el público. Para la clausura de la bienal, “la sala de la facultad” acogió una performance.

La bienal convirtió el museo en un espacio abierto y de experimentación para el público, y un espacio de trabajo para la facultad. Las conferencias fueron presentadas en los espacios expositivos, en aquellos entornos que tenían que ver con las temáticas tratadas. Las presentaciones de los artistas invitados tuvieron lugar en aulas de la Facultad de Bellas Artes y el ciclo de debates titulado Subidos de tono asumió el formato de un seminario, contando con la participación de los artistas invitados, así como la asistencia de alumnos y profesores de Bellas Artes.

Dentro de la sección de mediación, un aspecto muy relevante en la Bienal fue la participación del colectivo de arte sonoro gallego Escoitar.org que realizó una radio podcast insertada en la web de la bienal con presentaciones y entrevistas de los artistas participantes y un servicio de audioguías planteado como proyecto artístico, en el que los artistas explicaban sus propias obras.

El espacio público

Vilagarcía de Arousa, es un puerto comercial situado a 25 km. al norte de Pontevedra. Allí se realizaron diversas intervenciones en el espacio urbano en la zona portuaria, por parte de artistas gallegos y de la región centroamericana y caribeña con el objetivo de alterar y potenciar las posibilidades del entorno portuario, aunque sin penetrar en una dimensión de activismo, ya que los espacios no contenían problemáticas de tipo social, pero sí de articulación del paisaje urbano.

Las intervenciones en el espacio público suelen funcionar como propuestas abiertas en las que lo imprevisto desempeña un papel decisivo. En Vilagarcía los artistas se dirigieron hacia la resignificación de un entorno en proceso de degradación, mostrando, eso sí, nuevas posibilidades de uso. Por ejemplo,

169¿Para qué sirven las bienales?

Page 162: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

las naves industriales que fueron intervenidas en sus fachadas por Federico Herrero (Costa Rica) y Nano 4814 (Galicia) inicialmente estaban destinadas a ser demolidas para dejar espacio a la construcción de un centro comercial. Sin embargo a partir del debate suscitado en la ciudad, se barajó la posibilidad que pudieran ser reconvertidas en equipamiento social y cultural, destinado a la creación de talleres para artistas o en espacios para actividades formativas.

Era la primera vez que en la Bienal de Pontevedra se procedía a realizar intervenciones en el espacio urbano y el hecho de que por primera vez la bienal saliera de la ciudad de Pontevedra generó muchas expectativas. Mientras que muchos quedaron defraudados por el carácter de las intervenciones, ya que en lugar de esculturas se encontraron con contenedores industriales pintados, murales que remitían al graffiti o una pista de skate realizada por Chemi Rosado, otros muchos, especialmente jóvenes, se ratificaron en sus gustos y preferencias.

Una bienal se dirige a “públicos” no a un único y abstracto “público”. Los retos de una bienal son también los de equilibrar a sus “públicos”.

Conclusiones

Utrópicos con sus éxitos y sus fracasos ha sido un proyecto experimental. La posibilidad de trabajar con una temática cultural tan precisa ha sido sin duda una de las claves de los éxitos, y la ausencia de un mayor lapso de tiempo de preparación una de las causas de sus fracasos.

No obstante uno de los aspectos más significativos de la experiencia es la constatación de que el modelo no es garantía de un mayor éxito o de un fracaso. Pero sin duda la consolidación de un determinado modelo afectará no solo a las formas de trabajar en el campo del arte, también influirá en el modo en que el arte sea entendido: conectado con el ocio o vinculado a la educación, y en este último caso el arte aparece como un servicio cultural público que conecta con lo simbólico. Una bienal sirve en definitiva como una herramienta o una estructura que permite un acercamiento a la complejidad de lo real, desde lo simbólico. Una bienal acaba siendo una estructura de mediación y de formación. En relación a la ciudad, su función tiene más que ver con la activación de la cultura que con la proyección de una imagen mediática.

En Utrópicos las diversas operaciones de romper moldes, fueron constantes y tuvieron el efecto de resignificar lugares y situaciones. Ciertamente tuvieron el efecto de acercar la Bienal a la facultad, a los artistas y al público en general, conectando con unos públicos y desconectando con otros, pero también la

170 Santiago Olmo

Page 163: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 17 - Janeiro/Junho - 2011

ArtigoRecebido: 25/05/2011Aprovado: 22/06/2011

RESUMÉ: Considering the crisis at biennial model, which has been converted into events restricted to vacation time, this article discusses the possibility of a transformation or a change of its model. From a real experience on organizing the XXXI Biennial of Pontevedra (Spain), entitled Útropicos, which discussed the cultural scope of Central America and Caribbean, the author of the text - Santiago Olmo (curator of the biennial) points possible solutions. The importance of connecting the biennial with education and formation, stressing both information and investigation aspects is one of the quite essential elements of the discussion. The connection with the context, the activation of collaborative networks and the consciousness of the existence of audiences, and not only one single type of audience, help us to understand the challenges that these kinds of big events face. The renovation of the biennial model involves a reniewing of the current art in society. One of the mechanisms pointed by Pontevedra is using the exhibition format to start a dialogue between them. Therefore the marginalization of the collateral effects could be avoided while the utility and public service offered by biennials as a mechanism to understand the complexity of the current world is demanded.

distanciaron de la propia institución que la impulsó y del museo que la acogió en sus sede, probablemente más centrados en claves tradicionales. Aunque las cifras de visitantes suelen ser engañosas y a menudo no representativas de la calidad de un evento, la Bienal obtuvo un total de 41.000 visitantes (se incluyen los participantes en las diversas actividades y en las diversas sedes). Esta cifra es muy abultada si la comparamos con la de la anterior edición de 2008, que alcanzó los 5.000 visitantes. Sin embargo resulta más significativo el reflejo de la bienal y sus actividades en el ámbito mediático, tanto en el general como en el especializado. A pesar de tener una deficiente campaña de comunicación, el dossier de prensa alcanza las 250 páginas, fue elogiosamente cubierta por la prensa general y especializada y solo tuvo dos críticas negativas en diarios provinciales.

Aunque una bienal puede hacerse en un año, las bienales son cada dos años. Mots-clés biennial; arte; society.

171¿Para qué sirven las bienales?

Referências

OBRIST, Hans Ulrich. Uma breve história da curadoria. São Paulo: BEI, 2010.

O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Coleção A)

RAMOS, Alexandre Dias (Org.). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre, RS: Zouk, 2010.

THORNTON, Sarah. Seven Days in the Art World. New York: W. W. Norton & Company, 2008.

Page 164: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

THOMPSON, John. El tiburon de 12 millones de dolares: la curiosa economia del arte contemporâneo y las casas de subastas. Barcelona: Ariel, 2009.

Documentos:

55ª Bienal de Veneza. STORR, Robert. Conferência: La Bienal: ¿Foro de Arte o salón global? Madri: Fundação ICO, 2006.

29ª. Bienal de São Paulo. Catálogo: Apresentação – texto de Ivo Mesquita.

XXXI Bienal de Pontevedra: Utropicos / Roteiro Utropicos / Contexto – Pontevedra, 2010.

VIII e IX Bienal do Mercosul (catálogos).

Doumenta X, Catherine David. Hatje Cantz 1999.

Documenta XI, Okwoui Enwezor, Hatje Cantz, 2003.

Documenta XI, Plataforma 03. Creolization. Hatje Cantz, 2003.

172 Santiago Olmo

Page 165: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 15 - Janeiro/Junho - 2010

173(*) Hermano Machado Ferreira Lima é Graduado em Sociologia e Política pela Uni-versidade Federal de Pernambuco e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor Adjunto da Universidade Estadual do Ceará do curso de Ciências Sociais e do Mestrado Acadêmico de Políticas Públicas e Sociedade

Hermano Machado Ferreira Lima*

Inicialmente elaborado como dissertação apresentada e defendida junto ao Mestrado em História da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, esse livro, agora lançado em edição de luxo pela Fundação Demócrito Rocha, reaparece em oportuno momento.

Aqueles que vivemos ou visitamos Fortaleza sentimos e algumas vezes percebemos o quanto de problemas e dificuldades passa a cidade. Discute-se a morosidade do trânsito, a criminalidade urbana, os aglomerados residenciais dispersos pela periferia. Culpam-se o poder público, a ausência de autoridade, falta de policiamento, pouca presença da Prefeitura ou lentidão em equacionar determinados problemas, etc. Apontam-se soluções, muitas delas mais próximas dos devaneios imaginativos.

Talvez pudéssemos dizer que esse cenário emerge devido a fatores inerentes ao exercício da discussão propiciada por impulsos democráticos. No entanto, o nível maior ou menor de profundidade com que essa realidade será compreendida, dependerá, em boa medida, de como se vier a encontrar as verdadeiras causas desses problemas. Para tanto, faz-se necessário debruçar-se sobre o passado da urbe reconstruir suas raízes, sua genealogia, como nos ensina Michel Foucault.

Por essas razões e em função desse contexto que reputamos oportuna a reedição do livro de Sebastião Rogério sob o sugestivo título Fortaleza Belle Éporque. Dividido em Partes, cada uma delas tratando de um aspecto

PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque – reforma urbana e controle social ( 1860 – 1930) Edições Demócrito Rocha, 4ª edição – 2010.

Resenha

ArtigoRecebido: 06/05/2011Aprovado: 12/05/2011

Page 166: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

174

do desenvolvimento do capital alencarina, sempre fixando-se ao resgate histórico, o mais remotamente possível. Tendo com parâmetro temporal o período entre os anos de 1860 a 1930, os mesmos são percorridos não como engessamento dos tempos abordados, muito ao contrário, balisaram o nível investigativo ora retrocedendo, ora adiantando-se mas sempre de forma parcimoniosa e necessariamente esclarecedor.

O que de início cativa e chama atenção do leitor é a abrangência com que o período é estudado, levando em consideração a política, a vida social, a moda, as “figuras” populares, o linguajar e, por que não mencionar, certos traços de suposta teorização cientificista.

Segundo o autor, o marco distintivo da época em estudo assenta-se em dois pressupostos: de um lado, a higienização (entendida como combate a doenças, limpeza urbana, saneamento básico); de outro, o aformosamento da cidade (construção de equipamentos tais como os teatros Majistic e José de Alencar, pavimentação de ruas, ajardimento de praças). Num sentido e noutro, promove-se o deslocamento dos hospitais e do cemitério para a parte desabitada a oeste, de tal maneira que eles não viessem a contaminar os ares, com seus fluídos infectados por germes morbígenos, reafirmando a preocupação higienizadora e embelezadora da cidade.

Valendo-se das idéias de Foucault quanto à constituição da medicina social, o professor Sebastião Ponte consegue estabelecer um saudável e instigante relacionamento entre teoria e empiria, fazendo ver o quanto as preocupações médico-higiênicas perpação o entrelaçamento entre a biopolítica e o biopoder. Não será demais recordar que à época de sua investigação o autor dispunha de muitos poucos textos em que Foucault apresenta sua teoria acerca dessa relação entre política e regulação das populações. Atualmente, com as publicações dos “Cursos” ministrados no Colège de France dispõe-se de muito mais material e consequentemente de uma melhor compreensão dos conceitos foucaultianos. No entanto, o espírito arguto e meticuloso do nosso autor permitiu-lhe abordar e, sobretudo fazer uso de forma muito apropriada da teoria de Michel Foucault.

Não poderíamos deixar de mencionar o cuidado gráfico com que a Fundação Demócrito Rocha esmerou-se em apresentar essa nova edição, ressaltando o planejamento e execução gráfica. Chama atenção as ilustrações que, apesar de já presentes em edições anteriores ganharam nova roupagem e suas inserções encaixaram-se melhor ao texto.

Page 167: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

O público e o privado - Nº 15 - Janeiro/Junho - 2010

Como diz, na apresentação, o professor José Borzacchiello: “Fortaleza Belle Époque é um sucesso”.

O que é reafirmado por Eduardo Diatahy enquanto prefaciador: “este é um livro de boa história social”.

175

Page 168: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

Instruções Gerais

1. A Revista está estruturada em 4 seções: editorial, artigos, temas livres e resenhas. O Editorial é de responsabilidade do editor e/ou organizador(es). Os Artigos devem ser inéditos, resultado de pesquisas empíricas e/ou de estudos conceituais acerca de assunto da edição temática, relacionado ao campo das políticas públicas. Em Temas livres são reservados assuntos diversos, em sintonia com a linha editorial do Periódico. Resenhas são textos concisos comentando publicações recentes de interesse de O Público e o privado.

2. Enviar à Revista os originais em arquivo eletrônico para o endereço [email protected], formatados em processadores de texto compatíveis com o sistema Windows ou Macintosh, identificando autores (nome completo, titulação), instituições a que pertencem, endereço para correspondência e endereço eletrônico.

3. A aprovação dos textos será efetuada mediante o exame do Conselho Editorial e de pareceristas ad hoc levando-se em conta a adequação à linha editorial da Revista, bem como o conteúdo e relevância das contribuições.

4. Os artigos publicados na Revista devem ser encaminhados com autorização dos respectivos autores, passando, após aprovação, a serem de propriedade da Revista, ficando proibida a reprodução total ou parcial, em qualquer meio de divulgação, sem a autorização prévia deste Periódico.

5. Conceitos e opiniões expressos nos diversos artigos, assim como exatidão, fonte das citações e revisão ortográfica,

177

O público e o privado

SUBMISSÃO DE ARTIGOS

são de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es).

6. Questões éticas relativas a pesquisas com seres humanos, se for o caso, devem ser acompanhadas da informação de autorização do Comitê de Ética, conforme a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (MS) e de acordo com as diretrizes da Declaração de Helsinque da Associação Médica Mundial.

Formato do artigo

1. São aceitos textos em português, espanhol, inglês e francês. Textos em português, espanhol e francês devem apresentar títulos, resumos e palavras-chave na língua original e em inglês. Artigos em inglês devem conter títulos, resumos e palavras-chave na língua original e em português.

2. O artigo deve apresentar no máximo 40.000 caracteres (sem espaço), incluindo notas e referências, digitados em espaço duplo, na fonte Times New Roman, corpo 12, margens de 2,5 cm, em processador Word ou em outro compatível.

3. O texto pode ser estruturado (não obrigatoriamente) observando-se as seguintes partes: Introdução, Metodologia, Resultados, Discussão e Conclusões. Tais seções devem apresentar títulos e eventualmente subtítulos.

4. O título do artigo deve dar uma idéia precisa do conteúdo do trabalho e ser o mais curto possível.

5. O Resumo deve ser auto-contido, devendo sumariar objetivos, métodos de pesquisa, orientação teórica, resultados e conclusões do trabalho, não excedendo o

Page 169: O público e o privado - Portal da UECEuece.br/politicasuece/dmdocuments/o_publico_e_o_privado... · 2011-09-30 · é possivel perceber uma influencia da situação nacional de condições

178

1.5 Artigo em formato eletrônico:

CARROLL, Lewis. Alice´s Adventures in Wonderland [online]. Texinfo ed. 2.1. Dortmund, Germany: WindSpiel, Nov. 1994. [cited 10 February 1995]. Available from : http://www.germany.eu.net/books/carroll/alice.html. ISBN 0681006447.

1.6. Tese acadêmica:

DINIZ, Arthur J. A. Direito internacional público e o estado moderno. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 1975. (Tese de Doutorado).

Outros Elementos do Texto

1. Quadros, gráficos, tabelas, mapas e fotografias devem se integrar ao arquivo do texto, devendo estar em formato eletrônico, devidamente legendados. A legenda deve ser centralizada, numerada e deve conter, se necessário, referência imediata, fonte ou autoria. Aqueles elementos gráficos não incorporados ao texto em formato eletrônico não poderão ser processados e o artigo será devolvido a (os) seu(s) autor(es).

2. As legendas de quadros, gráficos, tabelas, mapas e fotografias devem obedecer às normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

3. Deve ser inserida uma linha em branco entre o quadro, gráfico, tabela, mapa e fotografia e o texto procedente.

4. Não deve ser deixada uma tabela ou figura sozinha numa página onde ainda há espaço remanescente de pelo menos cinco linhas de texto.

5. Fontes matemáticas ou outras fontes diferentes das utilizadas nos estilos descritos acima deverão ser integradas ao texto e cópias dos arquivos dessas fontes deverão ser fornecidas juntamente com o arquivo do texto original.

tamanho de 1.200 caracteres (sem espaço). O resumo deve ser seguido por uma lista de 2 a 5 palavras-chave, importantes para a indexação do artigo. O abstract deve ser uma versão em inglês do resumo em português, com o mesmo limite de tamanho, acompanhado de key words.

6. Devem ser evitadas linhas órfãs (linha única em um parágrafo ou no início ou fim de página). Para ênfase no corpo do texto deve ser utilizado, preferencialmente, o tipo itálico.

7. As Resenhas devem contemplar informes breves sobre livros publicados nos últimos 2 anos, em no máximo 2.500 caracteres (sem espaço).

Referências Bibliográficas

1.Recomenda-se o sistema autor-ano para citações bibliográficas. As referências, listadas em folha separada ao final do texto, devem ser em ordem alfabética, por autor. Deverão conter nome do(s) autor(es), título, local (cidade) da publicação, editora e data, conforme os exemplos abaixo listados:

1.1. Livro:

FURTADO, Celso. A formação econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1984.

1.2.Coletânia:

CAROSO, Carlos (org.). Cultura, tecnologias em saúde e medicina: perspectiva antropológica. Salvador: EDUFBA, 2008.

1.3. Artigo em coletânea:

POCHMANN, M. Desempregados do Brasil. In: ANTUNES, Ricardo. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006.

1.4. Artigo em periódico:

DUARTE, Luiz F. D. Pessoa e dor no Ocidente. Horizontes Antropológicos, Ano 4, n. 9, outubro de 1998.