o papel do leitor na obra híbrida crônica de uma morte anunciada

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O papel do leitor na obra híbrida Crônica de uma morte anunciada 1 Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas Artigos da seção livre PPG-LET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 05 N. 01 – jan/jun 2009 O papel do leitor na obra híbrida Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez Eliane Galvão Ferreira * Resumo: Este texto tem por objetivo apresentar uma possibilidade de leitura da obra Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, na qual se considera o papel do leitor e da linguagem, concebida como produção lingüística híbrida, formada pela junção dos discursos literário, jornalístico e forense. Para a consecução do objetivo, pretende-se apresentar uma reflexão fundamentada pela estética da recepção acerca do que propicia o prazer na leitura e de quais elementos determinam o papel do leitor implícito. Palavras-chave: linguagem híbrida; estética da recepção; leitor. Abstract: This paper aims to present an opportunity to read the work Chronic of a death foretold, of Gabriel García Márquez, which considers the role of the reader and language, designed as a hybrid language production, formed by the junction of speeches literacy, journalistic and forensic. To achieve the goal, it is intended to present a reasoned reflection by the aesthetics of receipt on what provides the pleasure in reading and what factors determine the role of the reader implied. Keywords: hybrid language; aesthetics of receipt; reader. 1 Introdução Crônica de uma morte anunciada, escrita, em 1981, por Gabriel García Márquez, configura-se sob a forma de um romance que, em linguagem jornalística própria da crônica, busca reconstituir de forma detalhada, por meio do relato em primeira pessoa, o assassinato do personagem Santiago Nasar, de 21 anos. Trata-se de uma narrativa concisa e envolvente, que surpreende o leitor pelo modo como é descrito um crime ocorrido na presença de todos, embora seja, tantas vezes, anunciado, em um pequeno povoado do Caribe colombiano. A obra de García Márquez insere-se no gênero romanesco de produção contemporânea latino-americana que, assim como os romances pós-modernos, conforme Menton (1993, p.154), permite ampliar os critérios de avaliação crítica dessa produção. Nessas obras, os autores têm como meta principal questionar os conceitos inter-relacionados que se associaram ao humanismo liberal: certeza, autoridade, totalização, continuidade, fechamento, hierarquia e homogeneidade. Nesse processo, García Márquez questiona o próprio fazer ficcional, interpenetrando os discursos jornalístico e jurídico. * Professora Mestra e Doutoranda pela UNESP, campus de Assis. Ministra aulas de língua portuguesa, redação forense e de redação publicitária nos curso de Jornalismo, Direito e Publicidade da FEMA.

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O Papel do Leitor na Obra Híbrida Crônica de Uma morte Anunciada

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  • O papel do leitor na obra hbrida Crnica de uma morte anunciada 1

    Revista eletrnica de crtica e teoria de literaturas

    Artigos da seo livre PPG-LET-UFRGS Porto Alegre Vol. 05 N. 01 jan/jun 2009

    O papel do leitor na obra hbrida Crnica de uma morte anunciada, de Gabriel Garca Mrquez

    Eliane Galvo Ferreira*

    Resumo: Este texto tem por objetivo apresentar uma possibilidade de leitura da obra Crnica de uma morte anunciada, de Gabriel Garca Mrquez, na qual se considera o papel do leitor e da linguagem, concebida como produo lingstica hbrida, formada pela juno dos discursos literrio, jornalstico e forense. Para a consecuo do objetivo, pretende-se apresentar uma reflexo fundamentada pela esttica da recepo acerca do que propicia o prazer na leitura e de quais elementos determinam o papel do leitor implcito.

    Palavras-chave: linguagem hbrida; esttica da recepo; leitor.

    Abstract: This paper aims to present an opportunity to read the work Chronic of a death foretold, of Gabriel Garca Mrquez, which considers the role of the reader and language, designed as a hybrid language production, formed by the junction of speeches literacy, journalistic and forensic. To achieve the goal, it is intended to present a reasoned reflection by the aesthetics of receipt on what provides the pleasure in reading and what factors determine the role of the reader implied.

    Keywords: hybrid language; aesthetics of receipt; reader.

    1 Introduo

    Crnica de uma morte anunciada, escrita, em 1981, por Gabriel Garca Mrquez, configura-se sob a forma de um romance que, em linguagem jornalstica prpria da crnica, busca reconstituir de forma detalhada, por meio do relato em primeira pessoa, o assassinato do personagem Santiago Nasar, de 21 anos. Trata-se de uma narrativa concisa e envolvente, que surpreende o leitor pelo modo como descrito um crime ocorrido na presena de todos, embora seja, tantas vezes, anunciado, em um pequeno povoado do Caribe colombiano.

    A obra de Garca Mrquez insere-se no gnero romanesco de produo contempornea latino-americana que, assim como os romances ps-modernos, conforme Menton (1993, p.154), permite ampliar os critrios de avaliao crtica dessa produo. Nessas obras, os autores tm como meta principal questionar os conceitos inter-relacionados que se associaram ao humanismo liberal: certeza, autoridade, totalizao, continuidade, fechamento, hierarquia e homogeneidade. Nesse processo, Garca Mrquez questiona o prprio fazer ficcional, interpenetrando os discursos jornalstico e jurdico.

    * Professora Mestra e Doutoranda pela UNESP, campus de Assis. Ministra aulas de lngua portuguesa, redao

    forense e de redao publicitria nos curso de Jornalismo, Direito e Publicidade da FEMA.

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    Trata-se de um romance que apresenta uma narrativa autoconsciente, que exige tanto o distanciamento, quanto o envolvimento do leitor. Desse modo, apresenta-se como um romance popular que, ao mesmo tempo em que intensamente auto-reflexivo, de maneira paradoxal, tambm se apropria de acontecimentos e personagens histricos, misturando fico a dados biogrficos do escritor. O universo do romance de Gabriel Garca Mrquez no se limita, ento, ao mundo da fico, uma vez que se combina com a realidade referencial. O autor narra fatos que, segundo Olga Martnez Das (2007, p.6), realmente aconteceram em um povoado onde morou e que envolveram amigos e pessoas de sua famlia. Justifica-se, ento, que essa obra seja considerada, entre os romances de Garca Mrquez, a mais realista.

    Para a consecuo do objetivo de apresentar uma possibilidade de leitura de Crnica de uma morte anunciada, opta-se neste texto pelo caminho da dialogia, a partir da hiptese de que somente pela leitura plurissignificativa pode-se compreender o dilogo entre textos diversos de diferentes autores, que se instaura no interior da obra e que a define.

    2 Fundamentao Terica

    Norteia esta anlise a concepo, conforme Regina Zilberman (1984, p.133-134), de que uma obra, por ser uma unidade concomitantemente composicional e dialgica, portadora de um fenmeno literrio, que circula do plano ficcional ao ideolgico a partir de sua estrutura, independentemente da sociedade que o produz ou que reflete. Para tanto, busca-se compreender como se organizam os discursos na narrativa.

    De acordo com Cyana Leahy-Dios (2000, p.27), um dos benefcios potenciais da literatura a ampliao do sentido das mltiplas possibilidades de vida no leitor. Ela lhe d uma chance de viver dilemas morais. Nesse sentido, constri-se, neste texto, a hiptese de que o contato com o romance ps-moderno permite ao leitor a ampliao de sua viso de mundo, pois ele v a realidade sob novos prismas, refaz o real. Isto porque, segundo Diana Luz Pessoa de Barros (1999, p.7), os discursos literrios, por serem dotados de ambivalncia intertextual interna e por proporcionarem multiplicidade de vozes e de leituras, permitem a substituio da verdade nica pelo dilogo de verdades textuais, contextuais e histricas. Assim, o leitor reconsidera, por meio do dilogo com textos diversos de diferentes autores, a verdade nica que possui, ou melhor, que lhe transmitiram.

    Neste artigo, parte-se do pressuposto de que a literatura condicionada, primordialmente, tanto em seu carter artstico, quanto em sua historicidade, pela relao dialgica entre obra e leitor. Essa relao decorre da estrutura do texto, da presena de vazios

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    que solicitam do leitor um papel na composio literria: o de organizador e de revitalizador da narrativa. Esse papel s pode ser exercido quando o leitor preenche os vazios do texto, por meio do ato de concretizao, em um processo comunicativo, no qual o leitor recebe o sentido do texto ao constitu-lo. Estes vazios presentes no texto indicam os locais de entrada do leitor no universo ficcional. Assim, o texto supe, necessariamente, um recebedor incumbido do preenchimento desses vazios. O texto possui, ento, uma estrutura de apelo que invoca a participao de um indivduo na feitura e no acabamento: seu leitor implcito (ISER, 1999, p.107). As reflexes sobre esse leitor e sua projeo na obra de Mrquez justificam-se, pois, por meio delas, pode-se apreender o processo comunicativo presente na obra. Esse processo merece ser considerado, pois de acordo com Iser (1999, p.10), uma obra s atraente para o leitor quando lhe permite estabelecer uma comunicao.

    3 A narrativa e suas estratgias de seduo

    O romance de Garca Mrquez se inicia em ultimas rs. Assim, o assassinato j se consumou, e cabe ao leitor acompanhar o narrador que, de forma tensa e gradativa, por meio da interpenetrao de testemunhos diversos e desencontrados, narra como e por que Santiago foi morto, em uma segunda-feira de fevereiro, h 27 anos. A estratgia narrativa prende o leitor at o final da leitura. Por meio dela, o narrador afirma que voltara ao abandonado povoado em que vivera, com o objetivo de tentar recompor, o espelho quebrado da memria (GARCA MRQUEZ , 2006, p.13). Entretanto, como o prprio ttulo da obra atesta, a hiptese do narrador incide sobre o fato de que Santiago, seu amigo de infncia e de juventude, fora vtima de uma morte muito anunciada no povoado e, ainda, de um critrio de honra distorcido. Para o narrador, Santiago se deixara matar ou por que se atordoara com os avisos desencontrados da populao, ou por descuido da inocncia. Seu relato inicia-se com a abordagem dos sonhos de Santiago, no dia anterior sua morte, e do carter de prenncio deles. Mesmo assim, tanto ele, quanto sua me, Plcida Linero, famosa como intrprete de sonhos, os ignoraram. O narrador define de forma objetiva e concisa seu amigo Santiago Nasar: rfo de pai, rabe, herdeiro de uma fazenda, solteiro, noivo e residente de uma bela casa que dividia com sua me. Embora sejam sucintas suas descries, elas no coincidem com as das demais personagens, justamente por isso, permitem ao leitor tanto imaginar Santiago, sua origem social, seus laos de parentesco e seus vnculos com o poder, quanto desconfiar das avaliaes subjetivas do narrador em relao ao protagonista. Dessa forma, a

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    narrativa convoca o leitor a realizar dedues por si mesmo e a no aderir s opinies das personagens.

    No mesmo dia do assassinato, o povoado agitava-se com a chegada de um navio que traria um bispo para abenoar a populao. Santiago no dormira bem na noite anterior, pois, como todos, festejara at tarde o casamento arranjado de ngela Vicrio com o milionrio Bayardo San Romn. Aps o trmino da festa, prosseguira com a farra, junto de amigos, inclusive do narrador, em um prostbulo. Desse modo, dormira apenas uma hora antes de se levantar para ir ao porto celebrar a chegada do bispo. Uma hora aps a partida do navio, do qual o bispo sequer descera, abenoando a distncia o povoado, os irmos gmeos Pedro e Pablo Vicrio, de 24 anos, perseguiram Santiago e o esfaquearam inmeras vezes porta de sua casa, que estava fechada com um ferrolho, porque sua me, na tentativa de proteg-lo, imaginando-o em casa, trancara-na. O crime cometido pelos gmeos deu-se em defesa da honra de sua irm. Essa performance, aguardada pelo povoado e aceita, socialmente, como justa, ocorreu porque Bayardo, na madrugada do casamento, devolvera ngela aos pais, alegando que no era virgem. A moa, prima do narrador, aps ter sido surrada por sua rigorosa e religiosa me, cujo nome refora sua caracterizao, Pura Vicrio, confessara aos irmos o autor da desonra: Santiago.

    O narrador prossegue seu relato afirmando de forma preconceituosa que essa revelao nunca convencera ele e muitos no povoado, pois ngela e Santiago pertenciam a mundos diversos. Ele era rico, bem posicionado; ela, inexpressiva e pobre. Assim, supunham que ela acobertava algum. Entretanto, ao juiz, ela reafirmou a sua verso. A narrativa encaminha-se para seu desfecho, com o narrador viajando e encontrando sua prima 23 anos aps o crime, j como moradora de outro povoado, Guajira, abrasado pelo sol do Caribe, onde sua me resolvera enterr-la em vida (GARCA MRQUEZ, 2006, p.130). Nessa ocasio, ele reafirma a pergunta crucial, a que ela responde o mesmo que dissera ao juiz. Mas ngela relata, ento, uma novidade ao narrador, afirma que, aps a partida de Bayardo do vilarejo, descobrira que ele era seu verdadeiro amor. Essa constatao confirmou-se quando ela, acompanhando sua me ao hospital de Riohacha para um exame de vista, avistou-o sem que ele a percebesse. Aps esse encontro, durante 17 anos, lhe enviara cartas de toda espcie: de splica, de amor, de ofensa etc., implorando que voltasse. Ele voltou, porque tambm a amava e, finalmente, estavam juntos. Quatro anos depois desse encontro com a prima, o narrador retorna ao vilarejo em que crescera e descreve os tristes destinos de morte, prostituio, solido, abandono e loucura, reservados a cada morador que, na ocasio, testemunhou, mesmo sem ser chamado para isso, na nsia de esconder o fato de que poderia

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    ter impedido o crime. Em sua defesa, eles argumentavam que ningum pode interferir quando se trata de crime para defender a honra. O discurso da me do narrador, contrrio ao consensual no povoado, sintetiza a narrativa, pois ela afirma que: A honra o amor (GARCA MRQUEZ , 2006, p.144).

    O livro possui cinco captulos que apresentam, de forma equilibrada, a distribuio da narrativa. Esses captulos completam-se e, pela trama narrativa do suspense, mantm a ateno de quem l. Embora a obra no possua prefcio que a apresente, a sua abordagem do tema da morte anunciada, ou seja, do crime passional, coerente e atraente para o leitor que estabelece um jogo, por meio da leitura, acompanhando a hiptese do narrador, enquanto preenche os vazios instaurados em busca de pistas que evidenciem a tese. O final surpreendente, pois revela que o objetivo do personagem narrador no era provar sua hiptese de que a morte j estava prevista e, apesar disso, ningum fizera nada, era, antes, apaziguar a prpria inquietude a respeito do conceito de honra. Essa tranqilidade s obtida, quando ele se recorda do discurso de sua me que o remete ao fato de que, afinal, ngela e Bayardo ficaram juntos. Assim, o que importa mesmo o amor.

    A organizao geral da obra favorece a leitura, pois seu projeto grfico editorial bem-sucedido. Ela apresenta, em seu jogo com o leitor, uma estratgia de manuteno do tom jornalstico e jurdico, e tambm humorstico, com fins de assegurar a atmosfera de tenso e de contradio entre os discursos das testemunhas oculares:

    As muitas pessoas que encontrou [Santiago] desde que saiu de casa s 6h05 at que foi retalhado como um porco, uma hora depois, lembravam-se dele um pouco sonolento mas de bom humor, e com todos comentou de um modo casual que era um dia muito bonito. Ningum estava certo se ele se referia ao estado do tempo. Muitos coincidiam na lembrana de que era uma manh radiante com uma brisa de mar que chegava atravs dos bananais, (...). A maioria porm, estava de acordo em que era um tempo fnebre, de cu sombrio e baixo e um denso cheiro de guas paradas, e que no instante da desgraa estava caindo uma chuvinha mida (...). (GARCA MRQUEZ, 2006, p.10)

    As informaes que aparecem no verso da abertura, listando as obras do autor; na capa do livro, onde se l: Prmio Nobel de Literatura; no verso da folha de rosto, sob a forma de biografia: mestre do realismo fantstico latino-americano, completam-se e agregam valor simblico obra, assegurando as vendas e endossando a competncia de Gabriel Garca Mrquez para a produo literria.

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    4 O jogo com o leitor

    Crnica de uma morte anunciada dialoga com contextos culturais do leitor. Por meio de seu intertexto, instiga-o a estabelecer, na leitura, relaes com textos literrios diversos que remetem s prprias obras de Mrquez, com suas obsesses pela honra e pela morte, aos labirintos de Borges e de Umberto Eco entre outros, inclusive aos textos jurdicos: O advogado sustentou a tese do homicdio em legtima defesa da honra, admitida pelo tribunal da conscincia, e os gmeos declararam ao final do julgamento que voltariam a fazer mil vezes o que fizeram pelos mesmos motivos (GARCA MRQUEZ, 2006, p.73); e jornalsticos: Poncho Lanao, a esposa e cinco filhos no sabiam de nada do que acabava de ocorrer a 20 passos de sua porta. Ouvimos a gritaria, disse-me a mulher, (...) (GARCA MRQUEZ, 2006, p.176). Seu jogo discursivo propicia o questionamento ao leitor que, enquanto observa os relatos sobre a tragdia, percebe que a obsesso do narrador sobre o assunto advm de suas angstias relacionadas questo da honra. Logo, pela abordagem da temtica, a obra contribui para o desenvolvimento da percepo de mundo, para a reflexo sobre a realidade, sobre si mesmo e sobre o outro. Pelo emprego do intertexto, da linguagem e do jogo discursivo, ela favorece a ampliao das referncias estticas, culturais e ticas do leitor.

    A opo do autor pela tcnica discursiva prpria da crnica sinaliza para o leitor o anseio do narrador de descrever e recolher tanto suas reminiscncias, quanto as das testemunhas oculares do assassinato da forma mais objetiva e racional possvel, sendo apassagem do tempo o elemento construtor do enredo, assim percebida desde o incio do romance: No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se s 5h30m da manh (...) (GARCA MRQUEZ, 2006, p.9). A objetividade na narrativa vem assinalada pelo emprego sistemtico dos horrios exatos em que ocorreram as aes relacionadas ao crime. Embora a nfase na estrutura desse romance recaia na irreversibilidade da passagem do tempo, concebido em sua noo mitolgica como devorador, justamente esse transcorrer temporal permite ao leitor observar que h uma srie de contradies nos depoimentos referentes ao dia do crime, mais especificamente, quanto ao tempo atmosfrico. Nesse caso, a idia vaga a respeito do tempo sugere a presena da perspectiva dialgica inserida na narrativa, em que diferentes vozes ou percepes se opem ao descrever o fatdico dia.

    Outra caracterstica prpria da crnica que aparece o emprego da linguagem objetiva, concisa e simples nos trechos relativos ao crime, desde sua premeditao at a consumao, episdio no qual o enredo estrutura. O estilo objetivo tambm aparece em

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    diversos episdios que marcam a progressividade do tempo como, por exemplo, quando Cristo Bedoya, amigo de Santiago Nasar, declara ao narrador que, procurando Santiago em sua casa para verificar se ele estava a salvo, vai at seu quarto e observa que o seu relgio esquecido sobre o criado-mudo marcava 6h58m (GARCA MRQUEZ, 2006, p.157). Assim, h na narrativa uma cronologia bem marcada em episdios que, apoiados no tempo cronolgico, estruturam-se para que se feche o ciclo do tempo entre a acusao de desonra, a premeditao, a divulgao e o crime.

    O livro atraente, pois mantm, pelo seu jogo discursivo, a ateno do leitor at o final da leitura, ainda, pelo exerccio de deduo que o instiga a realizar, convida-o participao criativa e reflexiva. A obra no busca conduzir a opinio do leitor, tambm no lhe oferece um comportamento ideal a seguir, antes lhe permite a reviso de valores e de conceitos prvios. Assim, explora recursos expressivos no tratamento dado ao tema e este relevante para a formao humana. A abordagem do tema dinmica, consistente e escapa de simplificaes nas representaes, tambm repleta de lacunas que solicitam a interao na leitura. Pode-se deduzir, ento, que a preocupao esttica centra-se na manuteno da coerncia no emprego da linguagem que se revela desautomatizada pela interpenetrao de tipos diferentes de discurso: o literrio, o jurdico e o jornalstico. Desse modo, o livro propicia uma experincia significativa ao leitor quanto aos usos literrios da lngua e configurao discursiva.

    A natureza da obra comunicativa, pois solicita, por meio de lacunas, que o leitor realize a concretude em busca do sentido do que, embora no seja enunciado, est pressuposto. A cena em que o narrador reflete sobre a conduta da maioria das pessoas do povoado exemplifica bem esse aspecto:

    Mas a maioria dos que puderam fazer alguma coisa para impedir o crime e, apesar de tudo, no o fizeram, consolou-se com invocar o preconceito de que as questes de honra so lugares sagrados aos quais s os donos do drama tm acesso (GARCA MRQUEZ, 2006, p.144).

    Trata-se de uma obra que estabelece uma pardia com os romances detetivescos, pois logo no primeiro captulo sabe-se quem so os assassinos de Santiago. O que a identifica com a produo ps-moderna o fato de que, como romance detetivesco parodstico, recria a vida no povoado latino-americano e os conflitos entre os valores relacionados honra e vingana, aproximando-se dos contos de Borges, da obra O nome da rosa, de Umberto Eco, entre outros. O dilogo entre a obra de Mrquez e os textos narrativos ps-modernos

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    evidencia-se tambm no uso de vrias tcnicas de metafico, da simbologia e da metfora do labirinto.

    5 O absurdo como fora criadora

    A narrativa reconstri a atmosfera medieval do julgamento pblico ao qual o povo assiste, organizando-se na praa como para um espetculo. Desse modo, o assassinato de Santiago ocorre vista de todos e com o consentimento inclusive das autoridades locais e do representante da Igreja, no caso da religio catlica. Pela construo da trama, Garca Mrquez critica impiedosamente os conceitos associados honra, virgindade e ao casamento. A obra explora, ento, o absurdo como fora criadora da literatura, pois produz a indignao que no elimina a reflexo, no paralisa a efervescncia de idias.

    Em sua temtica, a obra recusa a viso de que o consenso social detm a verdade, por meio da afirmao de que tanto os discursos historicamente situados, quanto a fico so discursos, construtos humanos, sistemas de significao, e a partir dessa identidade que obtm sua principal pretenso verdade. Desse modo, configura-se, tambm como construto humano, a representao de um processo jurdico e de um julgamento baseado em valores sociais. Questiona-se ento na obra os valores socialmente institudos, s vezes ligados ingenuidade e simplicidade de saberes de pessoas simples e humildes, habitantes de pequenos povoados, cujos hbitos e crenas, como o poder do destino, o sentimento de fatalidade, a idia de desigualdades e o valor da honra, possuem um terreno frtil para se desenvolver. A simplicidade do universo e a rusticidade no modo de vida dos gmeos Vicrio lhes fizeram acreditar que a eles se impunha o dever de lavar a honra da irm; essa era a sua lei, porque era tambm a lei do lugar em que viviam: Naquele momento, reconfortava-os a iluso de haver cumprido com a sua lei (...) (GARCA MRQUEZ, 2006, p.117).

    Para Seymour Menton (1993, p.154), o romancista latino-americano se considera muitas vezes a conscincia de sua nao, com a responsabilidade de denunciar os abusos e formular uma nova ordem social. Para atingir esse objetivo, Garca Mrquez constri sua obra, como representao de um crime, sem eleger um nico protagonista, antes todo um povoado, permitindo, assim, ao leitor uma reflexo acerca dos culpados pelo crime, se eles seriam apenas os gmeos Vicrio ou como conclui o narrador: todos. A representao na trama de diferentes concepes e vises e a abundncia de disfarces projetam uma viso dialgica da realidade, conforme Menton (1993, p.59), em termos borgeanos: o leitor no

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    pode decidir quem o heri e quem o traidor. No caso da narrativa de Mrquez, sequer o narrador confivel em seus julgamentos.

    A representao da mulher na narrativa aparece de forma paradoxal frente a costumes nos quais preponderam valores de um mundo masculino, como o caso do dever de lavar a honra com sangue. Por meio das personagens femininas, o autor apresenta questionamentos sobre tais conceitos. Desse modo, algumas mulheres mostram-se indignadas com os valores machistas: a me do narrador e Clotilde Armenta, dona da leiteria, lugar em que as pessoas do povoado se reuniam. Estas mulheres so detentoras de um poder: organizar a vida familiar e perceber as contradies existentes em um mundo que se mostra masculino. Entretanto, no mesmo povoado h mulheres como Prudncia Cotes, noiva de Pablo Vicrio, e sua me, bem como a matriarca da famlia Vicrio que esperam dos gmeos uma atitude digna de homem, ou seja, atitude de vingana.

    Tambm h mulheres pertencentes a classes desprestigiadas que, embora se conformem com seus destinos, ou seja, submeterem-se sexualmente aos caprichos dos homens poderosos, no perdema oportunidade de se vingarem. Como exemplo disso, pode-se notar o comportamento da empregada de Santiago, omitindo-se em dizer-lhe que corre risco de vida. Dessa forma, o povoado representa um espao primitivo, uma vez que inmeras passagens demonstram que o conhecimento provm de um processo cognitivo ligado ao emprico, a saberes que nascem de vivncias e de experincias cotidianas. Justifica-se que componham esse espao social as supersties e os sonhos, montando, assim, um quadro de uma viso de mundo mtica com lendas e pressgios que se misturam f religiosa e a dogmas fundamentados em rituais e em hierarquias.

    O tempo na diegese ulterior, tudo j aconteceu quando est sendo narrado. A narrativa linear, entretanto o narrador intencionalmente recua e avana a narrao para alm das performances, para, assim, evidenciar a sua reviso de valores e ampliao de conhecimento de mundo. Na constituio da obra, prevalece a preocupao com a manuteno do princpio de plausibilidade na organizao da trama e na sucesso de eventos associados morte de Santiago. Assim, o relato se inicia s 5h30 da manh em que Santiago seria morto e prossegue at 7h05 quando finalmente morreu. Alguns elementos do romance, como o assassinato, foram determinados pelo fato histrico, mas outros pertencem exclusivamente ao ficcional, inteno do autor. Segundo Eco, a resposta ps-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado, como no pode ser realmente destrudo porque sua destruio conduz ao silncio, precisa ser reavaliado: mas com ironia, e no com inocncia (ECO, 1985, p.56).

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    A obra se apropria do procedimento bsico da tragdia, tanto nas imagens, quanto na linguagem e no tema. Entretanto, realiza a conteno da atmosfera trgica por meio da carnavalizao, quando h o rebaixamento de tudo que elevado para o plano material e corporal. Assim, ela faz referncia, pelos sonhos de Santiago e pelos smbolos associados a esse personagem, ambigidade do mundo, onde tudo aparece com duplo sentido. Como h uma ridicularizao dos tipos sociais e polticos, e de alguns costumes, por meio do exagero, a obra se aproxima da tragicomdia de costumes.

    Em sua estruturao, o romance explora diversos temas; entretanto, todos eles culminam na reflexo acerca da honra e dos valores socialmente constitudos. Como no se chega concluso definitiva alguma, porque as opinies so diversas, a obra tematiza o vazio. De fato, o nico que sobreviveu tragdia. Esse vazio que comea a ser preenchido, no por uma verso que se ope oficial, mas, sim, por muitas verses, ou melhor, por uma verso

    que vai mudando com o passar do tempo, segundo quem a v. De acordo com Thoms Eloy Martnez (1996, p.2), para o romancista ps-moderno, escrever no se opor aos absolutos, mesmo porque eles no se sustentam. Logo, escrever desvendar a nica verdade possvel: a de que no h uma verdade nica. Desse modo, a obra permite ao leitor refletir sobre o conceito de cultura, enquanto contrato social. Como o romance todo problematiza certezas, a estruturao do discurso narrativo d-se por meio da tomada de depoimentos. Essa estrutura coloca em evidncia os conflitos entre diferentes percepes da realidade, fatos e crenas, verdade e iluso. A estruturao de uma trama unificada e estruturada em uma narrao descentralizada, com seu ponto de vista oscilante e permeado de digresses, permite ao leitor uma ampliao dos seus conceitos de imaginrio, de realismo e de histria.

    6 A subverso como elemento atraente

    Crnica de uma morte anunciada explora os arqutipos literrios, subvertendo os conceitos habituais do leitor. Desse modo, o povoado aparece sem centro nem periferia, representando a imagem do labirinto, que substitui a noo convencionalmente organizada que se costuma ter com relao a esse tipo de localidade. O labirinto como estrutura arquetpica conduz o homem ao interior de si mesmo, ao seu inconsciente. Esse interior s pode ser atingido pela conscincia, depois de longos desvios ou de uma intensa concentrao, at esta intuio final em que tudo se simplifica por uma espcie de iluminao. Quanto mais difcil a viagem, quanto mais numerosos e rduos os obstculos, mais o adepto se transforma e, no curso desta iniciao itinerante, adquire um novo ser. Conforme Joseph Campbell (2000,

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    p.41-43), a procura sempre motivada por uma deficincia simblica, e aquilo que revelado sempre estivera presente no corao do heri ou do grupo herico. Assim, a incurso pelo povoado na narrativa, inclusive pelos meandros das reminiscncias das personagens, representa o desejo do narrador de obteno de um saber que lhe conferia a revelao: o poder. Entretanto, esse saber paradoxal, marcado pela ausncia se sntese, ou seja, pela deteco de que no h consenso quanto aos valores e julgamentos sociais.

    Outros arqutipos explorados na obra so os da rvore, do pssaro e do nmero cinco. Todos associados, conforme Chevalier e Gheerbrant (1999) dualidade expressa entre vida e morte. Entretanto, na narrativa, aparecem no com significado nico; antes, mvel, alterado de acordo com cada relato das personagens fornecido ao narrador. Os sonhos recorrentes de Santiago com rvores, interpretados erroneamente como positivos, remetem proximidade da morte. Contudo, as rvores tambm flicas esto associadas ao personagem, evocando seu perfil machista e dominador, percebido por uma das mulheres que sexualmente oprime. O prprio Santiago ora descrito por essa mulher como gavio carniceiro (GARCA MRQUEZ, 2006, p.28), ora, quando se sente confuso com a situao sua volta, descrito por um dos homens com os quais convive, como um passarinho molhado (GARCA MRQUEZ, 2006, p.168-169). Dessa forma, sua caracterizao expressa a dualidade de vises entre homens e mulheres em um povoado tipicamente machista. O nmero cinco, por sua vez, marca, na narrativa, a quantidade de horas que ngela ficou em seu lar de casada (GARCA MRQUEZ, 2006, p.128) antes de ser devolvida famlia. Tambm representa, entre os golpes que Santiago recebera, o nmero dos que poderiam ser considerados fatais. O narrador alerta para o fato de que cinco horas antes do assassinato, Santiago estivera bebendo e festejando com seus algozes, os gmeos Vicrio. Finalmente, o livro de Mrquez possui cinco captulos.

    A obra atraente para o leitor no s pela presena dos arqutipos que esto em seu imaginrio, mas tambm pela presena de elementos prprios da aventura detetivesca, como a morte e o risco, ainda pelos elementos da narrativa cavalheiresca medieval. A morte d narrativa de aventura, concomitantemente, uma carga de atrao e de repulso, tanto para a personagem, quanto para o leitor. Na configurao espacial, o risco de morte aparece representado pelas inmeras passagens de Santiago pelo povoado. Na obra, a comunicao com o leitor d-se tambm no plano discursivo por meio da intertextualidade que substitui o relacionamento entre autor e texto, e entre leitor e texto, situando o locus do sentido textual dentro da histria do prprio discurso. A comunicao ocorre ainda por meio da presena de vazios intencionais que geram expectativa e tenso. O suspense explora o medo e o desejo de

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    saber do leitor. Assim, o leitor no consegue parar de ler enquanto no v resolvida a situao em suspenso.

    Como romance ps-moderno, a obra procura oferecer uma apresentao literria dialtica que perturba os leitores, forando-os a examinar seus prprios valores e crenas, em vez de satisfaz-los ou mostrar-lhes complacncia. A obra objetiva produzir, pela intriga, tenso, diverso e questionamento. Para a consecuo desse objetivo, opta pela pardia que funciona para distanciar e, ao mesmo tempo, envolver o leitor numa atividade hermenutica de participao. Por meio dessa atividade, o passado apresentado criticamente na obra em relao com o presente. As questes referentes sexualidade, desigualdade, responsabilidade social, cincia, religio, e relao da honra com a vingana, so todas levantadas e dirigidas ao leitor moderno e s convenes sociais e literrias do contexto histrico da obra. Pode-se observar que, em sua relao com o leitor, o romance contemporneo no ideolgico, no procura, por meio do veculo da fico, persuadir seu leitor quanto correo de uma forma especfica de interpretar o mundo. Antes, faz com que seu leitor questione suas prprias interpretaes e, por implicao, as interpretaes dos outros, apresentando-lhe pela polifonia inmeros discursos.

    7 O discurso dialgico

    Quanto ao discurso, a obra contm no mnimo trs grandes registros: o histrico-literrio, o teolgico-filosfico e o popular-cultural, equiparando assim as trs reas em que se situam as obras do prprio autor. Todos eles so marcados pela ironia e pelo jogo; entretanto, essas caractersticas no implicam, necessariamente, a excluso da seriedade e do objetivo. O discurso na obra, caracterizado pela ambigidade e pela ironia, envolve o leitor que o est decodificando no processo de gerao de sentidos, por intermdio da ambigidade e da polissemia. Ainda, esse discurso marcado pelo paradoxo, pois est fundado sobre a contradio que atua no sentido de subverter os discursos dominantes, mas depende deles para sua prpria existncia fsica: aquilo que j foi dito. Assim, o discurso se caracteriza pelo repensar sobre o valor da honra e da vingana, da vida e da morte, do certo e do errado, da multiplicidade e do provisrio, retomando o smbolo da rvore, do pssaro e do nmero cinco.

    Todos os elementos temticos, religio, lei, julgamento, f, saber e poder so questionados de forma ambivalente com questionamentos contemporneos que demonstram conhecimento terico do autor e com questionamentos que seguem a linha de raciocnio medieval. O que a obra faz explicitamente lanar dvidas sobre a prpria possibilidade de

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    qualquer slida garantia de sentido, qualquer que seja sua localizao no discurso, realiza ento a prpria metalinguagem, por meio de dois movimentos simultneos, reinsere os contextos da pea processual, como a tomada de depoimentos, a confisso dos irmos Vicrio, a sentena do juiz, como sendo significantes, e at determinantes, mas, ao faz-lo, problematiza toda a noo de conhecimento jurdico, de justia e de lei. Para tanto, utiliza-se da objetividade e preciso do discurso jornalstico, enquanto o desautoriza pelo emprego da ironia, da preterio e das hiprboles com fins humorsticos e crticos. O discurso apresenta-se, desse modo, como antropofgico: desafia os discursos dos quais se apropria, ao mesmo tempo em que aproveita deles tudo o que significativo. Existe, ento, na obra, uma deliberada contaminao do processo jurdico pelos elementos discursivos situacionais, contestando, assim, os pressupostos implcitos das afirmaes jurdicas: objetividade, neutralidade, impessoalidade e transparncia da representao. Quanto referncia presente no discurso do romance, ela atua no sentido de demolir o que os crticos gostam de denominar falcia referencial. Segundo Eco (1985), h negao e afirmao da referncia, ou seja, deseja-se o prprio referente histrico ao mesmo tempo em que se quer elimin-lo.

    O narrador configura-se como homodiegtico, de primeiro nvel, de acordo com Grard Genette (196-?). Esse narrador aproxima-se de um jornalista. Assim, ele se apresenta como o que retoma os depoimentos mesmo que, s vezes, discorde deles ou no os compreenda. Na obra, ele assume uma postura tambm dbia, pois, embora reveja alguns de seus conceitos, outros lhe escapam completamente. Dessa forma, ao narrador no so conferidas a oniscincia, nem a onipresena da terceira pessoa. Ainda, o seu ponto de vista declaradamente limitado, provisrio e pessoal.

    Como o narrador no o conhecedor transcendental e controlador, ele relativiza seu lugar no relato, cedendo espao a outros narradores to autorizados quanto ele pela narrativa. O discurso desse narrador caracteriza-se pelo paradoxo, pela preterio e pela hiprbole. Desse modo, ele nega no discurso o que na verdade se afirma no enunciado. O discurso do narrador enfraquece os pressupostos ideolgicos que esto por trs daquilo que tem sido aceito como universal e trans-histrico em nossa cultura: a noo humanista do Homem como um sujeito coerente e contnuo. O narrador, enquanto personagem, caracteriza-se por comportamentos paradoxais: muitas vezes, entra em conflito com o que as pessoas do povoado acreditam, desejando ser o traidor; outras, com o que as mulheres pensam a respeito de Santiago. Contudo, o narrador, ao apresentar na histria o que conhece e buscar nos depoimentos de outras personagens os elementos que desconhece, deixa claro que tambm no lhe foi permitido saber tudo, que h segredos no revelados e que o conhecimento destes

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    pertence somente personagem ngela. A posio do narrador estratgica na narrativa, pois corrobora com a inteno do autor de jogar com as incertezas, construindo-as atravs da multiplicidade de pontos de vista, ou seja, das intervises de personagens, segundo Marileda Ins de Borba (2007, p.74).

    A relativizao do papel do narrador que confere voz s demais personagens na reconstituio da histria uma caracterstica basilar da perspectiva dialgica do texto. Assim, a obra no apresenta uma postura ideolgica nica e autoritria, qual seja a oposio entre o certo e o errado. Em sntese, o prprio romance questiona os fatores que conduzem idia de certo e de errado, e isso se mostra atravs da intriga criada a partir do tema de um crime em defesa da honra e na apresentao das diferentes percepes das personagens sobre os fatos. Pode-se concluir, ento, que o autor explora a idia de que alguns costumes, crenas, preconceitos e o individualismo podem prevalecer, muitas vezes, sobre sentimentos como solidariedade, amor, entre outros, e que, dessa forma, confundem criando uma inverso de valores a ponto de se tornarem mais relevantes ao homem do que sua prpria vida.

    8 Entre fico e histria

    Na obra, a eleio das personagens expressa a dialogia entre fico e histria. Assim, algumas so criaes do autor; outras, figuras histricas e outras, prprias de lendas e crnicas medievais. Mesmo as que encontram referentes histricos, caracterizam-se por serem mticas, definidas de forma incompleta ou obscura pela histria e, justamente por isso, atraentes para o leitor. o caso de Santiago que, embora tenha nome diverso ao do amigo de Garca Mrquez, Cayetano Gentile Chimento, jovem vtima de assassinato em sua prpria porta, em Sucre, pelos irmos de uma antiga e ressentida namorada, por ter desrespeitado suas prendas virginais (apud FUKS, 2007, p.29-31), possui destino semelhante; da me do narrador com nome homnimo ao da me de Garca Mrquez; do pedido de casamento que o narrador fizera na festa de ngela jovem personagem Mercedes Barcha de nome homnimo ao da esposa de Garca Mrquez. H, ainda, outras referncias intertextuais a elementos lendrios, como lenda de Isolda e do rei Marcos na eminncia de descobrir na noite de npcias que a jovem no era virgem, tratando da problemtica de valores culturalmente aceitos. Dessa forma, os questionamentos sobre como a cultura representa o sujeito, como esse sujeito faz parte dos processos sociais de diferenciao, excluso, incorporao e regra, que fazem da representao o ato de fundamentao da cultura, so dirigidos ao leitor. Desse modo, mesmo na composio das personagens, a obra caracteriza-se pelo dilogo intertextual, que Barthes

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    definiu como intertexto, ou seja, como a impossibilidade de viver fora do texto infinito, fazendo da intertextualidade a prpria condio da textualidade (apud HUTCHEON, 1991, p.167). A obra estabelece, ento, dilogos com textos de Borges, do prprio Mrquez, de Eco e outros, e com as histrias presentes nas crnicas medievais e nos testemunhos dados em juzo.

    No plano da linguagem, pode-se observar o recurso aos elementos estilsticos, tais como a metfora, a metonmia, a hiprbole, a ironia e a preterio. H tambm a estilizao oral e o aproveitamento de provrbios e de casos. A linguagem caracteriza-se pela representao plstica na constituio de cenas, conferindo ao leitor, por meio de metforas e de sinestesias, suspense e possibilidade de visualizao dos cenrios. Muitas das descries plsticas das aes das personagens, como na cena em que o narrador recolhe pedaos do processo no alagado Palcio da Justia de Riohacha, 20 anos depois do crime, remetem a um intertexto:

    Eu mesmo procurei, muitas vezes com gua at os tornozelos, naquele tanque de causas perdidas, e s um acaso me permitiu resgatar, depois de cinco anos de buscas, umas 322 folhas salteadas das mais de 500 que devia ter o sumrio (GARCA MRQUEZ, 2006, p.146).

    No caso dessa cena, h uma referncia pardia intertextual da metafico historiogrfica: embora o passado exista, este s pode ser conhecido de forma limitada e fragmentria, a partir de seus textos, de seus vestgios, sejam literrios ou histricos. Os recursos estilsticos e metaficcionais na obra permitem que ela se torne polissmica, atingindo o efeito potico, a comear pelo prprio ttulo. Assim, a obra permite leituras sempre diversas, sem nunca se esgotar completamente. Justifica-se, ento, o objetivo desse artigo em apresentar uma dessas possibilidades de leitura.

    Pode-se concluir, portanto, que a obra se define pela mistura entre o auto-reflexivo e o ideolgico, permitindo uma fuso daquilo que se costuma manter separado no pensamento humanista. Crnica de uma morte anunciada ensina que a linguagem pode ter muitos usos e abusos. Conforme se representa na obra, as coisas importantes esto alm das palavras, mas ainda so intensamente reais, e at mais reais por no serem articuladas ou nomeadas.

    Os paradoxos ps-modernos revelam e questionam as normas predominantes, e podem faz-lo porque encarnam os dois processos. Eles ensinam, de acordo com Hutcheon (1991, p.289), que a representao no pode ser evitada, mas pode ser estudada a fim de demonstrar como legitima certos tipos de conhecimento e, portanto, de poder. Assim, confirma-se a

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    hiptese inicial deste artigo de que o leitor, ao ler o romance ps-moderno, pode rever seus conceitos prvios e por conseqncia ampliar sua viso de mundo.

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