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ano II número 3 ISSN - 2175-2907 casa em revista + São Paulo, dezembro de 2010 Artigos indicam a perspectiva de Cultura da Paz na mediação de conflitos com adolescentes Juventude e Cultura da Paz Entrevistas: Mizne e Penido mostram a importância de projetos sociais e da justiça restaurativa Notas: Fundação CASA: 51 unidades no processo de descentralização Casa aberta: “Jovens Poetas” fazem recital na Casa das Rosas

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ano IInúmero 3

ISSN - 2175-2907 casaem revista

+

São Paulo, dezembro de 2010

Artigos indicam a perspectiva de Cultura da Paz na mediação de conflitos com adolescentes

Juventude e Cultura da Paz

Entrevistas: Mizne e Penido mostram a importância de projetos sociais e da justiça restaurativa

Notas: Fundação CASA: 51 unidades no processo de descentralização

Casa aberta: “Jovens Poetas” fazem recital na Casa das Rosas

2 | casa em revista | dez.10

sumário

dez.10

04

14Denis Mizne

Dr. Egberto de Almeida Penido

Entrevista

Entrevista

24 Leoberto Brancher

28 Marlova Jovchelovitch Noleto

34 Guilherme Assis de Almeida & Maria Isabel Lopes da Cunha Soares

40 Lia Regina Castaldi Sampaio & Adolfo Braga Neto

44 Petronella Maria Boonen

48 Viviane Fernanda dos Santos

515354

Décio Perroni Ribeiro Filho & Geisa Rodrigues Gomes

ArtigoS

rESEnhA

notAS

dez.10 | casa em revista | 3

cartaao leitor

Crônica de uma morte anunciada

É preciso reler o estatuto da criança

e do adolescente, preocupando-se menos com a socioeducação e mais com a efetivação de direitos.

editado no renascer da democracia brasileira, o estatuto da Criança e do Adolescente (eCA) chega aos 20 anos. Nasceu para quebrar paradigmas, ao transformar crianças e adolescentes de meros objetos de intervenção do estado em sujeitos de direito, vistos como prio-ridade absoluta nas políticas públicas.

No campo da apuração dos atos infra-cionais, os adolescentes obtiveram o di-reito ao devido processo legal. A privação de liberdade passou a ser excepcional – úl-tima medida a ser adotada como resposta do estado à prática de um crime.

das FeBeNS então existentes, foi co-brada uma transformação, com a subs-tituição dos grandes complexos por unidades pequenas, com atendimento individualizado e respeitoso – educati-vo, não repressor.

em São Paulo, desde 1999 houve a descentralização do atendimento em unidades menores, sendo construídas 47 apenas nos últimos cinco anos. Ho-je, 57% dos jovens da Fundação CASA (Fundação Centro de Atendimento So-

cioeducativo ao Adolescente) cumprem medida de internação, próximos de sua família, fora da capital, em comparação aos 18% de 2005. As taxas de reincidên-cia caíram de 29% para 12,8%.

Mesmo com essa melhora, houve, de 2008 para 2010, um aumento vertigino-so nas internações, verificado também em outros estados.

de uma média mensal de 5.400 inter-nos, saltamos, em São Paulo, para 6.600, sem que houvesse igual aumento na apreensão de adolescentes e no núme-ro de crimes graves por eles cometidos.

Tenho a sensação de que, se construís-semos mais 50 unidades, todas ficariam cheias. Qual a saída?

Arrisco dizer: apostar e investir pesa-damente na prevenção.

É preciso reler o eCA, preocupando-se menos com a socioeducação e mais com a garantia e efetivação de direitos.

Toda vez que vejo a história de um interno é como se estivesse relendo “Crônica de uma Morte Anunciada”, de Gabriel García Márquez. Como no romance, a trajetória de vida do nosso adolescente-padrão nos permitiria di-zer, desde muito antes de chegar à CA-SA, que ele para cá viria.

desinteressou-se pela escola, agrediu a professora, acabou excluído da escola e do grupo e recebido de braços abertos pelo crime, onde se sentiu alguém so-cialmente. Passou a consumir drogas e a vendê-las. Ganhou dinheiro e garo-tas, foi pego pela polícia e internado. Tal qual a morte de Santiago, o início da tra-ma antecipava o final.

É preciso agir para diminuir as inter-nações e deter a entrada do jovem no cri-me – com políticas sociais, atendimen-to psicológico e educacional eficiente –, tornando-o protagonista de sua história, incentivando-o a buscar alternativas de

resolução de seus conflitos.Precisamos trabalhar com a cultura da

paz e com alternativas que passem lon-ge da privação de liberdade, muito mais custosa financeira e emocionalmente.

Ironicamente, tenho dois amigos que, na adolescência, destruíram o vaso sa-nitário de suas escolas usando bombas. Hoje, são pais de família íntegros. Fos-sem jovens e pobres nos dias de hoje, se-riam internados, um no Rio de Janeiro, outro em São Paulo! É hora de parar de criminalizar condutas típicas de adoles-centes. e, por favor, não me crucifiquem pelo que escrevo.

Apenas apelo para que todos nós faça-mos diferente. Vamos evitar a morte de Santiago, reescrevendo sua história.

este artigo de minha autoria foi origi-nalmente publicado na seção Tendên-cias e debates, do jornal Folha de S. Pau-lo, em 13 de julho deste ano, por conta do 20º aniversário do eCA. O objetivo do artigo foi promover uma reflexão sobre o excesso de internações e a criminaliza-ção de condutas típicas dos adolescen-tes. Mais uma vez torno ao tema nesta edição de CASA em Revista. Neste tercei-ro número, vamos abordar a importân-cia da Cultura de Paz como instrumento de transformação. espero que os textos, reportagens e reflexões aqui contidos ajudem de alguma forma a proteger os inúmeros Santiagos que temos no País

Aos da CASA e demais, boa leitura!

{texto: Berenice Giannella*}

* Mestre em Direito Processual Penal pela USP e presidente

da Fundação CASA (Fundação Centro de Atendimento

Socioeducativo ao Adolescente).

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eNtreVista sociedade civil

DeNis mizNe

Para o instituto sou da Paz, a irracionalidade e a descrença ainda são os principais obstáculos às ações de prevenção e combate ao problema. a hora é de se repensar conceitos e ações.

A era da razão contra a violência

{texto: Rosemary dos Santos}

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O advogado denis Mizne virou um ator social na luta pela cul-tura de paz ainda jovem. era

presidente do Centro Acadêmico Onze de Agosto, da Faculdade de direito do Largo de São Francisco (USP), quando leu uma pesquisa que demonstrava que 90% dos jovens entre 15 e 24 anos mor-riam por arma de fogo. era 1997. A má notícia não passou batida. Poderia ter ficado esquecida, como normalmente acontece com os inúmeros casos brasi-leiros de violência, mas acabou dando origem ao Instituto Sou da Paz, uma das ONGs mais respeitadas em projetos de tecnologia social voltados à prevenção em áreas degradadas.

A partir daí, o trabalho não parou. de projetos de criação de centros de convi-vência a programas de estímulo à inte-gração da polícia com a comunidade, passando pelo fomento às políticas de desarmamento, o Sou da Paz atua para reverter o conceito da indústria do medo e da banalização da violência no cotidia-no. Para o fundador e atual diretor exe-cutivo do instituto, é hora de se repensar tudo no combate às causas do problema. Os primeiros inimigos nesta missão, diz, são a descrença e a impotência. “O se-gundo é a irracionalidade a qual as pes-soas usam para lidar com a violência”, disse Mizne à CASA em Revista.

Uma das saídas é saber lidar com o medo, aposta Mizne. “A violência ven-cerá quanto mais pessoas mostrarem seu medo através da elevação dos mu-ros, blindagens”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

CASA em Revista - Como começou sua preocupação com as questões que envolvem a violência e a busca pela paz?

Denis Mizne – Quando era presiden-te do Centro Acadêmico Onze de Agos-to, da Faculdade de direito do Largo de São Francisco, em 1997, tive acesso a uma grande pesquisa que saiu no mes-

mo ano sobre a violência em São Paulo, e lá apareceu que os jovens entre 15 e 24 anos eram os que mais matavam e mais morriam na cidade e que, dentre estes jo-vens, 90% dos casos possuíam arma de fogo. Isso nos chamou muito a atenção. Porque era a nossa geração que estava se matando. entre nós, havia um revól-ver. e dissemos: “vamos fazer o seguinte: por que não começamos um movimen-to para discutir a questão da segurança pública, da violência?”. Mas, não como tradicionalmente os movimentos da so-ciedade civil vinham fazendo de só rei-vindicar mais violência, pena de morte, prisão perpétua, polícia mais violenta, prender até... Não! em vez de irmos por esse caminho, vamos criar uma reivin-dicação que fale de um tema importan-te, específico, que era a questão das ar-mas. Até então ninguém havia falado. Foi o primeiro movimento da socieda-de civil no Brasil sobre o desarmamen-to, que não só falava sobre ter menos ar-mas em circulação, mas que discutia um pouco o que chamávamos de desarma-

mento dos espíritos. Como é que iremos enfrentar a violência? É “cada um por si” ou é um desafio coletivo? Vamos, cada vez mais, murar, trancar, armar, blin-dar? Ou participar da vida em sociedade, trabalhar junto, valorizar a diversidade, apostar que há solução, que há saída. Mas, depende do nosso comportamen-to, da maneira de reagir à violência, ou de como você espera que seja feito pela sociedade. então, em 1997, tivemos a idéia de fazer uma campanha, começar alguma coisa e acabou se transforman-do na campanha “Sou da Paz”. A campa-nha explodiu e, daí pra frente, não con-segui mais escapar desse tema.

CASA em Revista – Há dez anos vo-cês trabalham com a prevenção da violência no Brasil. Fale um pouco sobre esse trabalho?

Mizne – Começamos com a campa-nha na qual o foco era o ser da paz, isto é, o desarmamento, isso lá em 1997. em 1999, dissemos: “Vamos dar continuida-de fundando uma organização não go-vernamental, o “Instituto Sou da Paz”, que trabalhe não só com a conscienti-zação, com o tema do desarmamento, mas contribua de alguma forma com a prevenção da violência lidando com os vários aspectos da questão. Partimos do princípio de que a violência é um fator, um fenômeno multicausal. Há diver-sas causas e fatores que contribuem. Para desenvolver um bom trabalho de prevenção da violência é preciso atacar cada um desses fatores, trabalhar com cada uma dessas vertentes. O segundo princípio que usamos fortemente foi fazer várias coisas nos mesmos territó-rios para começarmos a ter resultados, começarmos a mexer um pouco na si-tuação da violência de um determinado local. Iniciamos... e até hoje!

CASA em Revista – E como é o tra-balho?

Mizne – em seis áreas, com duas es-tratégias: de um lado as campanhas,

... homicídio é uma epidemia no Brasil e é a principal causa de morte entre jo-vens com arma de fogo; mata mais que qualquer doença...

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mobilizações, tanto da opinião pública quanto do estado. Isso é, trabalhar des-de a conscientização sobre a questão da violência, do desarmamento, da po-lícia e do envolvimento do jovem com crime etc., mas também trabalhar com os deputados, com os ministérios, com as secretarias, ajudando a desenvolver políticas públicas, dando subsídios pa-ra que as políticas e as leis sejam boas. O segundo lado é o que chamamos de intervenção nas comunidades, atuando nos locais mais afetados pela violência, desenvolvendo projetos que possam dar subsídios para essas políticas. dizem que é importante que o governo invis-ta em prevenção à violência nas escolas. Mas como vamos saber disso? Indo às es-colas e trabalhando dentro delas, apren-dendo a fazer. Falando para as pessoas que não é só o governo, mas é importan-te que você também faça de acordo com tais e tais princípios, porque isto aqui dá certo, isto aqui dá errado, e assim por diante. Hoje, temos projetos nas áreas de desarmamento, de valorização de boas práticas policiais através de um prêmio para a polícia chamado de “polícia cida-dã”, de adolescência e juventude. este último, com projetos de prevenção que procuram estimular a resolução de con-flitos e que dão outras oportunidades para os envolvidos, mas que não seja pe-la violência. Há uma disputa clara entre lideranças e muitas referências das co-munidades estão no crime. Precisamos gerar outras lideranças, outras referên-cias, uma preocupação com o coletivo e tudo o mais. A gestão local da segurança é um trabalho com os municípios, aju-dando as cidades a planejarem suas in-tervenções de prevenção da violência e promoção da convivência, fazendo um diagnóstico, montando um plano e implementando-o. Temos um trabalho com a promoção da cultura de paz que tem como foco as campanhas, mobiliza-ções, estratégias como um contraponto contra a cultura da violência. e por fim temos – esta é a mais nova área do “Ins-

tituto Sou da Paz” – a Justiça Criminal, isto é, como podemos tornar o sistema mais eficiente? Até agora trabalháva-mos com os outros lados, desde a pre-venção até a polícia, mas, e aí, acontece o quê? Sabemos que boa parte do proble-ma está na falta de boas políticas nessa área, então passamos a trabalhar tam-bém, a partir deste ano, com este siste-ma. enfim, a ideia é de se trabalhar nas várias fases do problema com iniciati-vas, campanhas, projetos, ações perma-nentes etc. que possam encontrar cami-nhos para solucioná-lo.

CASA em Revista – Fale um pouco sobre os projetos relacionados à Cul-tura de Paz em especial do projeto “Paz em Cena”.

Mizne – “Paz em Cena” é o primeiro projeto da área de cultura de paz. Mui-

ta gente no Brasil, infelizmente, ainda associa a cultura de paz a algo utópico. “Ah! Cultura de paz é sair todo mundo de branco, abraçar árvores, acender incen-so...”. Mas nós não achamos que seja isso. É claro que podemos buscar o caminho que quisermos para obter paz, mas acha-mos que a cultura de paz é algo que pode ser comunicado de muitas formas e que deve ser tratado como prioridade. Boa parte do que se identifica como um dos principais problemas da criminalidade é uma cultura de violência. As pessoas ba-nalizaram, aceitaram resolver seus pro-blemas por meio da violência. Por exem-plo, o vizinho está ouvindo musica alta, vou lá e resolvo na porrada, no tiro. essa aceitação da violência como meio de re-solver os problemas parte de uma cultu-ra de violência que permite que isso seja feito. Precisamos mexer nisso! A idéia do “Paz em Cena”, de maneira muito con-creta, é trabalhar – atualmente com 30 jovens do Grajaú – a partir de uma lin-guagem artística que é a do teatro. eles construíram um trabalho com uma série de situações de violência que vivenciam. Nós vamos, ao mesmo tempo, desnor-malizando essas situações e trabalhan-do-as. Como podemos passar os princí-pios da cultura de paz para a linguagem deles, através do teatro, para outras pes-soas que vivem realidades semelhantes? durante o projeto eles aprendem a mon-tar uma peça de teatro, escrever um tex-to, encenar – tal como atores – mas, ao mesmo tempo, eles estão aprendendo tudo sobre cultura de paz. dessa junção, chamada de “Bola da Vez”, que estreou dia 30 de abril, no CeU Casa Blanca, veio a ideia de que esse grupo aprendesse os princípios e desenvolvesse a peça, levan-do não só isso para suas vidas, mas pa-ra outros lugares da periferia, com uma linguagem capaz de trabalhar a cultura de paz com a cara deles, com o rosto da juventude de periferia do país. A ideia é essa: ajudar na tradução dos princípios que, às vezes, estão muito longe das coi-sas concretas do cotidiano.

... o discurso do medo precisa ser vencido pela sua ineficiência, porque não funciona e só traz mais medo...

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CASA em Revista – Estes projetos es-tão localizados em quais territórios?

Mizne – Temos hoje projetos em 15 cidades do Brasil. Aqui em São Paulo, onde está a maior parte, temos o que chamamos de intervenção, que atuam nas comunidades do Jardim Ângela, Grajaú, Campo Limpo, Brasilândia, Ja-çanã e Lajeado. estamos entrando tam-bém em outras áreas da zona leste. No interior, temos em Itaquaquecetuba, Su-zano e Itatiba. em vários estados, sem-pre em parceria com alguém do local, es-tamos formando gestores para a preven-ção da violência. Contamos com a rede “desarma Brasil” que trabalha a questão do desarmamento em 21 estados. em São Paulo e Rio de Janeiro, em sistema de parceria, concedemos o “Prêmio Polí-cia Cidadã”. Já estamos discutindo para levar ao Rio Grande do Sul. Perceba que temos uma abrangência nacional. Não são sedes do instituto. São redes, são par-ceiros locais que realizam a ação conos-co. Mas, quando possível, procuramos concentrar mais projetos num mesmo território. No Jardim Ângela, bairro da capital de São Paulo, nós concentramos todos os projetos, tornando-se um case de sucesso no universo de combate à violência. Hoje a grande concentração está no bairro da Brasilândia.

CASA em Revista – Fale um pou-co mais sobre o projeto das “Praças de Paz”.

Mizne – Temos um projeto em parce-ria com a empresa SulAmérica chamada de “Praça SulAmérica”, no qual identi-ficamos que um dos principais proble-mas na vida do jovem, do adolescente de periferia, é a falta de espaços públicos para suas atividades de esporte, cultura e lazer, poder conviver com sua família, com seus amigos. O que se tem nas pe-riferias são, muitas vezes, três, quatro casas, um boteco... e mais o quê? Come-çamos a ver alguma infraestrutura, os CeUs, as escolas abrindo nos fins de se-mana, mas, no geral, temos áreas super-

populosas, com falta de espaços públicos para que as comunidades possam aprovei-tar e se desenvolver. Através do projeto “Praça da Paz”, procuramos áreas abandona-das que, normalmente, são espaços vazios, como córregos que foram canalizados, espaços que já foram praças ou terrenos baldios. Chegamos nesses locais e procura-mos a comunidade, batemos de porta em porta, vamos à capela, conversamos com o responsável pela associação de moradores, vamos ao boteco. Perguntamos se há uma galera que usa aquele espaço, mesmo estando abandonado, se alguém joga bo-la, basquete... Identificamos esse grupo e perguntamos: “Vocês querem melhorar este lugar aqui?”. então, explicamos que somos do “Instituto Sou da Paz”. Através da parceria com a SulAmérica, obtivemos os recursos para as reformas. Aí podería-mos ir até o local, construirmos uma praça linda, colocarmos um campo de futebol, uma quadra, etc. Mas era isso, necessariamente, o que a comunidade queria? Chega tudo como presente, como algo feito de fora, entregue... Ninguém dá valor, aquilo acaba sendo abandonado porque não respeitou a comunidade e tornou-se um mau investimento. Para que isto não ocorra, sentamos com a comunidade e dizemos o seguinte: “Vamos construir juntos um projeto para cá. O que sonham em ter aqui?” Levamos os arquitetos, os engenheiros, montamos uma maquete. Se percebemos que o dinheiro que temos não será suficiente, convocamos uma assembléia com a comunidade que esteve envolvida desde o começo. Paralelamente vamos formando jovens que aprenderão a administrar aquele espaço, que será sem muros, sem gra-des: é aberto, é uma praça pública. Novamente entramos com os princípios da cul-tura de paz. Assim são as Praças da Paz. Há uma programação, onde não pode ocor-rer que os que forem jogar bola sejam somente os mais fortes. Não é decido na força. Não pode! Tem que ser através do diálogo. Se ocorrer um show, será só de rap? Só de funk? Sertanejo? Não, vamos trabalhar a diversidade. Vamos usar as praças à noite? Tem iluminação? Assim as pessoas aprenderão a reivindicar seus direitos: aprender a ir à subprefeitura e solicitar iluminação, limpeza da praça... Mas que direitos eles têm para poder exigir? Quais oportunidades têm de patrocínio, de financiamento para aquela praça? Passamos quatro anos desenvolvendo isso na comunidade e de-pois saímos, porque é uma lógica de sustentabilidade, para que as pessoas aprendam a administrar sozinhas. É muito bacana! É o exercício de aprender a recuperar a ci-dade, conviver com o espaço público, a conviver em paz.

CASA em Revista – Qual a sua percepção sobre a origem da violência?Mizne – Há algumas coisas que sabemos e outras não. Antigamente se dizia:

“Ah, violência! Tem pessoa que nasce má, tem gente que nasce boa...”. Bobagem!

... através da divulgação mostramos que a comunidade sabe superar os problemas...

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Não existe um gene da violência. ela tem relação com uma situação social-mente construída por uma série de ca-racterísticas, que tem a ver com o de-senvolvimento pessoal e com a comu-nidade em que se está inserido, com os valores recebidos, com os valores ad-quiridos, com as oportunidades, para o bem ou para o mal, mas essa é uma com-binação de fatores. Outra frase ouvida é de que “pobreza traz violência”. Não é verdade! A maioria das pessoas que são pobres não é criminosa, assim como os ricos; os locais mais violentos do mun-do não são, automaticamente, os mais pobres. Se assim fosse, no Brasil, seria no interior, no sertão do Maranhão ou o interiorzão do Piauí, mas onde estão? estão nas grandes cidades. Percebemos que associada à violência está a gran-de desigualdade. então, não é pobreza, mas é desigualdade; uns têm muito, ou-tros nada, e eles estão convivendo lado a lado. É uma falta de presença do esta-do quando se tem uma série de proble-mas normalmente ligados à localização, ao crescimento das cidades. Nós temos um monte de pessoas morando juntas, não tem ninguém resolvendo conflitos, a justiça é completamente inacessível, o estado praticamente inexiste e quan-do chega, “chega mal”. Começamos a ter uma cultura de violência quando se tem uma aceitação da solução dos pro-blemas de maneira violenta, e há coisas que potencializam e ajudam a aumentar os conflitos. No momento que se tem ál-cool, drogas e armas, transforma aquilo que era conflito em tragédia, e a manei-ra de lidar com isso pode diminuir o ci-clo ou aumentá-lo. Hoje estamos vendo uma experiência muito interessante na Fundação CASA: uma nova maneira de lidar. Se olharmos para o sistema pri-sional dos adultos, olharmos para a tra-dição de lidar com o problema e como aquelas pessoas caíram no crime... O in-centivo para que elas continuem é enor-me, não é mesmo? Acho que é esse ciclo mal resolvido que começa com valores, mas que passa pela questão cultural, da cultura da violência, da ausência do es-

tado, do acesso a fatores que potencia-lizam a violência e da maneira como a gente lida com o conflito depois que ele ocorre. essa equação toda ajudará muito a determinar se o local ou se uma pessoa será mais ou menos violenta.

CASA em Revista – Hoje, que difi-culdades você apontaria para a im-plementação e aceitação por parte da sociedade dessa ação em prol de uma cultura de paz?

Mizne – A primeira dificuldade é a desconfiança. As pessoas olham para a violência e se sentem impotentes. di-zem: “Pô, a cada 15 minutos há um assas-sinato no Brasil, todo dia, 200 carros são roubados em São Paulo, não sei quan-tas pessoas são furtadas, não sei quan-tas sequestradas”. O cara olha para isso tudo e fala: “Nossa, isso aqui é poderoso demais, a violência é poderosa demais, e eu, quem sou eu? eu sou impotente diante de tudo isso”. Os primeiros ini-migos são a descrença e a impotência. O segundo é a irracionalidade que as pes-soas usam para lidar com a violência. É engraçado quando se tem um problema de saúde pública, ficamos discutindo: “Olha! Precisa vacinar contra a gripe A, precisa fazer vacina!”. Se vacinarem um ano ou dois anos e a gripe subir, dirão as-sim: “Não, espera aí, está errado, vamos

parar de vacinar”. Agora, se vacinarmos e a gripe cair, terá outro dizendo: “Não vou tomar a vacina!” Mas a grande maio-ria dirá: “Poxa! Isso aí funciona e vou va-cinar meu filho!”. Foi dessa forma que erradicamos uma série de doenças.

CASA em Revista – E a violência é uma questão de saúde?

Mizne – Por que estou fazendo esse paralelo? Porque o homicídio é uma epi-demia no Brasil, e é a principal causa de morte entre jovens com arma de fogo. Mata mais que qualquer doença. Como lido com isso? Quais são as causas? em vez de lidar com a perspectiva da saúde pública, preferimos tentar evitar que es-sas mortes aconteçam. No Congresso, quando acontece um crime, concluem que é necessário aumentar a pena e au-mentam. O crime reincide... É preciso aumentar a pena... e assim sucessiva-mente. Ninguém diz: “espera aí, já ten-tamos esse remédio duas, três, quatro ve-zes, daqui a pouco matamos o doente de tanto remédio errado!”. esse não é o pro-blema no Brasil, não é o tamanho da pe-na, não é o quanto a polícia mata, é a falta de investimento coerente na prevenção. Acho que essa irracionalidade da violên-cia mexe com o medo, as pessoas têm tremenda dificuldade em dar um basta. A violência está mais concentrada em alguns bairros, é preciso investir mais nesses bairros. Se fizermos uma pesqui-sa e perguntarmos, seja qual for o bairro: “A senhora acha que prisão funciona?” Grosso modo responderão: “Não, é uma escola do crime, a universidade, a pós-graduação da bandidagem...”. então fa-zemos uma nova pergunta: “Aquele ca-ra ‘bateu’ uma carteira, o que você acha que deve acontecer com ele? prende, põe na cadeia! Mas você acabou de dizer que lá não funciona...”. As pessoas entram nessa contradição, têm mais medo da polícia do que de bandido, porque ela é violenta. e se perguntarmos: “Como acha que a polícia tem que ser?”. “Tem que chegar descendo o cacete!”, vão di-zer. está vendo? Não percebemos essa contradição. Temos de superar o medo,

... sabemos que a maioria dos jovens, obviamente, não é criminosa. Porque se assim fosse a elite já estaria dizimada...

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a impotência, e começarmos a ser mais racionais, a acreditar que a sociedade po-de vencer como está vencendo. Há uma série de situações que estão mudando e melhorando no Brasil. Começamos a en-tender que a questão da cultura de paz, da superação da violência não só é pos-sível, como é urgente! Costuma-se dizer que existem pessoas ingênuas com rela-ção à cultura de paz. Ingênuo é apostar na cultura da guerra como se tem feito nos últimos anos, e se tem perdido. Pre-cisamos melhorar.

CASA em Revista – Há propostas apresentadas pelo instituto para li-dar com a indústria do medo?

Mizne – O antropólogo Luiz eduar-do Soares é uma das pessoas mais res-peitadas na questão da segurança. diz ele que a violência é desigual, mal distri-buída, mas o medo é democrático. Todo mundo tem medo no país, não importa o bairro. Logo após os ataques do PCC, o datafolha fez uma pesquisa em São Pau-lo e no Nordeste com o mesmo núme-ro de pessoas perguntando se temiam um novo ataque do grupo. Tudo ocor-reu na capital. Mas, a mídia, não sei por que, quis entrevistar pessoas do interior de Alagoas sobre o mesmo assunto. As pessoas de lá também estavam com me-do do que aconteceria em suas casas. e lá, onde nunca ocorreu nada. O entre-vistado estava com medo tanto quanto nós, que aqui estávamos. A indústria do medo tem duas dimensões. No cam-po da racionalidade, a violência vence-rá quanto mais pessoas mostrarem seu medo através da elevação dos muros, de blindagens. Assim será pior, mais medo você sentirá. e está dando errado. de-monstro isso da seguinte forma: quan-do se ergue um bairro com um monte de condomínios, ele é mais perigoso do que um bairro de uso misto na cidade – todo urbanista sabe disto! No livro de Tereza Caldeira, “Cidade de Muros”, conta-se que quando o bairro de Alphaville, de alto padrão imobiliário, na cidade de Ba-rueri, foi lançado, em 1976, os terrenos não valiam nada. Como atraíram novos

moradores para lá? Usando o discurso: “fuja do medo e da insegurança de São Paulo”. em 1976, qual eram os crimes aqui na cidade? As pessoas andavam na rua tranquilamente! Mas, o discurso foi poderoso ao dizer que aqui em São Pau-lo existiam muitos crimes. As pessoas foram morar lá no meio do nada, longe pra caramba, pagando uma fortuna para fugirem da “questão São Paulo”.

CASA em Revista – E como vencer o discurso do medo?

Mizne – Acho que precisamos ter a clareza de que o discurso do medo preci-sa ser vencido pela sua ineficiência, por-que não funciona e só traz mais medo. Uma hora você vai perder nessa luta do individual, da segurança privada. Nun-ca se ganha. O criminoso ganha sempre. Colocou alarme na sua casa, o bandido

aprende a cortá-lo; colocou portão, au-mentou o muro, ele aprende a pulá-lo; faça o que quiser: o outro lado aprenderá a lidar com isso. Há também a dimensão cultural, quando começamos a discutir em que sociedade se quer viver. É isso que ensinaremos para os nossos filhos? Viver o dia inteiro com medo, sem olhar pra ninguém, não falar com estranhos, voltar para casa, não andar na rua, não brincar com o coleguinha, entrar no car-ro, trancar a porta, subir o vidro, é isso? As pessoas acreditam que isso é qualida-de de vida? Hoje construímos a escola, o mercado, o shopping, dentro do con-domínio! Que maravilha, né!? Que coi-sa linda! encontrar seis pessoas em sua vida inteira, todas iguaiszinhas a você, É isso que você quer? Nunca sairá do con-domínio porque, se o fizer, sempre mor-rerá de medo. Acredito que precisamos trazer essas discussões. Quem sabe, se chamarmos as pessoas a fazerem essas reflexões, elas pensem diferente.

CASA em Revista – A Justiça Restau-rativa vem sendo aplicada no Brasil desde 2005. Ela lida com as consequên-cias do ocorrido, ou seja, do ato cometi-do, reparando os danos causados e res-taurando as relações. Qual a sua opi-nião sobre esse paradigma de justiça?

Mizne – É uma discussão muito in-teressante. Vemos muitos casos emble-máticos. A situação que se teve antes do crime ser cometido não voltará, mas, se pudéssemos reparar isso de alguma ma-neira... Hoje, o que oferecemos para es-sa situação? Colocar na cadeia e jogar a chave fora. É o que as pessoas esperam, mas não é suficiente. O que precisamos é dar uma oportunidade para as pessoas superarem o trauma. Não é não punir, mas é muito melhor do que punir, por-que, além da punição, dá-se oportunida-de de superar o trauma que fica e não vai embora. Acho que todo tipo de experi-ência da justiça que aproxima daquilo que é relevante para a vida das pessoas é uma ótima oportunidade, é uma ótima experiência. Infelizmente, a justiça ho-je é muito distante da vida das pessoas

... estamos na fase da prevenção da violência para uma cultura de paz em escala através das políticas públicas...

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no Brasil e, nos raros casos que algum problema é resolvido pela justiça, a maneira como ela é feita, a distância que se coloca o magistrado, o linguajar, o traje... É uma coisa tão anacrônica, tão fora do que deveria ser, que só afasta as pessoas. É até falta de respeito. Mas o que confere respeito é a eficiência, a legitimidade. Já, quando se tem mediadores de conflitos que trazem a experiência de lideranças comunitárias, alcançamos uma maior eficiência do que na justiça comum. O cara está lá, todo mundo conhece, ele toma as decisões que são corretas, são justas, bacanas... Agora, por outro lado, o cara tem que traduzir o que é dito, o advogado faz uma pergunta, o juiz tem que verter para tornar tudo mais empolado possível, passa para o escrivão que torna mais difícil ainda, mas pra que isso? O que se espera disso? então, quanto mais a justiça dialogar com as pessoas - não se colocando como ente superior - será um verdadeiro acesso a ela. Funcionará! Acredito muito, não só nos princípios da Justiça Restaurativa, mas no simbolismo que carrega que é o de estabelecer diálo-gos, de trazer as coisas para o campo do real e superar aquilo que realmente importa. Quanto mais apostarmos nisto, mais sucesso teremos.

CASA em Revista – Como você encara a realidade brasileira nesse diálogo pela paz?

Mizne – O Brasil é, sem dúvida, um país de referência na convivência multiétnica e multicultural. Claro que temos uma série de problemas de preconceitos no Brasil, mas não temos conflitos como em outros países e até em democracias importantes, como é o caso dos estados Unidos. Isso sem falar dos países que estão realmente dominados por guerras civis, disputas. Mas aqui temos o problema do impacto que gera a violên-cia. Quando juntamos todos esses instrumentos: falta de compromisso do estado, de-sigualdade, acesso fácil a armas e drogas... O Brasil, sozinho, tem hoje 3% da população mundial e 13% dos mortos mundiais, sendo que essa estatística se dá comparando-se com os países que estão em guerra. A violência armada no Brasil – estudo feito pela UNeSCO com 27 países em guerras – matou mais do que todos, “perdemos” somente para a Guerra de Independência de Angola, que teve mais mortos proporcionalmente do que a violência urbana. Fazia parte do estudo o conflito de Israel-Palestina, a Guerra do Iraque... Isso é, temos o lado bacana de mostrar os resultados, mas também há o la-do de que convivemos com problemas de violência bastante sérios, temos que pensar bem. O Brasil está ganhando muito espaço internacionalmente, e isso é muito bom, é uma conquista muito importante, mas, é muito importante que seja uma conquista associada à paz. Queremos dar para o mundo exemplos que sejam propagados.

CASA em Revista – Em sua opi-nião, nós brasileiros estamos ama-durecendo nossa consciência para uma cultura de paz?

Mizne – estamos começando, ama-durecendo... Sou um otimista convic-to, sempre acho que as coisas estão me-lhorando e os dados demonstram que gradativamente as pessoas começam a se questionar de coisas que eram ób-vias há 10, 15 anos. Até a visão de como lidar com a violência. As pessoas estão começando a desconfiar que isso não deu certo, começando a desconfiar de que responder violência com violên-cia não é a melhor saída, começando a entender que existem erros, que a falta de punição tem que ser discutida, que a maneira com que a sociedade se relacio-na tem que ser discutida. Acredito que estamos caminhando e percebo que a cultura de paz está entrando. Há mui-ta experiência em como aproximar do currículo escolar, dentro da polícia, a discussão sobre direitos humanos. es-tamos longe do ideal? Claro! Bem longe! Mas acredito que estamos mais perto do que estávamos ontem e mais perto estaremos amanhã. Tem que ser esse o nosso pensamento. entender que todos são sujeitos de direitos, que direitos hu-manos é uma virtude para todos, que o estado tem de respeitar as pessoas, que a lei tem de ser justa e assim por diante... Tudo dialoga com uma cultura de paz! Acho que o país caminha nessa direção, e que até os governantes em vários es-tados estão tendo posturas importantes ao repensarem como funciona sua po-lícia, seu sistema prisional, suas políti-cas públicas, sua estratégia de segurança pública. Percebo que estamos numa boa fase e que o prognóstico é positivo.

CASA em Revista – E o Governo? Como você vê sua participação em prol de uma educação para a paz?

Mizne – Isso precisa fazer parte dos currículos, precisa ser levado a sério. Quando discutimos nutrição, qualida-

... cultura de paz não é acessório, tem de estar presente no cotidiano...

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de da merenda, a prática de atividades físicas, se a criança aprende melhor por-tuguês, matemática, a habilidade de conviver em paz, valorizar a diversida-de, aprender a lidar com conflitos atra-vés do diálogo... Tudo isto tem que ser aprendido. e onde é que aprenderei? No estado! ele tem papel fundamental por-que é quem implementa a imensa maio-ria das políticas públicas, é ele que tem a legitimidade e os recursos para tal.

Casa em Revista – Como você vê a relação de poder e violência dentro desse contexto?

Mizne –Tem muita relação! Infeliz-mente violência é poder em alguns lu-gares. O poder se coloca pela violência. Quem é o cara mais bacana da comuni-dade? Quem é o menino que “pega” todas as gatinhas? Na adolescência, sair com a menina mais bonita da escola é ser o tal. O cara que “sai” na briga, que “sai” na por-rada, que é o machão, que é o violento... A mídia só mostra o modelo da violência. Podemos fazer um paralelo com o filme “Cidade de deus”. O herói é o “zé Peque-no” (o traficante) e todos se lembram da cena em que o “dadinho” vira homem e fala: “dadinho é o caralho, meu nome é zé Pequeno”. Foi o grande momento do filme. Mas, na verdade, o herói era o “Busca-pé”, um menino que morava na favela, nas mesmas condições que ele, mas trabalhava como fotógrafo de um jornal. e quem saia na foto central da ca-pa? O “zé Pequeno”. Que recado o filme passa, então? Quero criar zés pequenos ou busca-pés na sociedade? Criaremos outros zés pequenos toda vez que eles forem para a capa dos jornais. Roubou, matou... Capa do jornal! Nem precisa-mos dizer qual é o modelo que valori-zamos, quais são os referenciais. e não é só no Brasil. No mundo inteiro o adoles-cente procura referências para ser aceito pelo grupo. O grupo diz o que é certo ou errado. Precisamos construir uma lógi-ca de poder de forma que seja distribuído de outra maneira; isso vai desde o admi-

nistrador público até ONGs. encontra-mos – mais no Rio de Janeiro do que aqui em São Paulo – acordos com o tráfico de drogas. O poder público se sujeita a fazer acordos aumentando o poder daquele que é violento, passa a reconhecer o cri-me organizado, dando-lhe poder para se manifestar violentamente. Mas, quando passamos a fazer o contrario, estaremos a um passo de associar as coisas de uma maneira distinta. Isso vai desde a ponta até Brasília.

CASA em Revista – É indiscutível a diversidade cultural no Brasil. Em sua opinião, isso contribui para a paz?

Mizne – Com certeza! Só que preci-samos levar isso a sério, precisamos en-tender que a diversidade cultural é um benefício; fala-se muito em tolerância. ela é o passo um. O que precisamos é abraçar a causa da diversidade. Preci-samos olhar e não falar assim: “Pô..., na classe do meu filho tem uma criança ne-gra! Ah, mais eu tolero superbem!” Não! Não tem que tolerar! Temos que dizer assim: “Que legal! Será melhor para ele, aprenderá mais!” Ou, ao contrário, se to-da classe é de negros e tem um branco, ou se tem meninos e meninas, ou se tem homossexuais. É difícil porque as pes-soas temem tudo que é diferente delas, fomos criados para conviver com que é parecido conosco. Vemos as melhores universidades do mundo que há déca-das falam que uma classe boa é aquela que há porcentagens de japoneses, chi-

neses, negros, brancos, mulheres, ho-mens, interioranos, metropolitanos, ju-deus, coreanos, católicos... Olha-se para a história e percebemos que isto dá boas classes, porque o debate acontecerá e o legal é que o aprendizado se dará não só dentro da escola, da universidade, será no ambiente de trabalho e aonde for. O aprendizado será maior quanto mais di-versos forem os conhecimentos. Quan-do vamos trabalhar numa comunidade não pensamos que temos todas as res-postas só porque eu sou do “Instituto Sou da Paz”, uma organização grande, importante, com pessoas com boa for-mação, mas a comunidade também não possui todas as respostas. Tem que ha-ver diálogo. A comunidade tem alguns conhecimentos, nós também temos e vamos trocar e usar o melhor de cada um. Acho que isso vale para tudo na vi-da. O Brasil deveria usar mais sua diver-sidade cultural, aproveitá-la mais.

CASA em Revista – Como o “Ins-tituto Sou da Paz” vem agindo junto às comunidades para despertar e tra-balhar sobre esse tema tão complexo como o da segurança pública?

Mizne – A polícia é importante na prevenção do crime. Podemos amá-la ou odiá-la, só que não existe sociedade democrática sem ela. Se o estado tem regras é porque tem alguém que as faça cumprir. Se forem descumpridas, o que vai acontecer? A partir do momento em que a polícia existe, temos de parar com essa discussão se gostamos ou odiamos. Temos de transformar a polícia numa instituição mais eficiente e democrática possível. Por trás do nosso pensamento, em 2003, falávamos que, ao invés de só jogar pedra no que ocorre de errado na polícia, que tal criarmos um prêmio pa-ra reconhecer aquilo que está certo? Te-mos 130 mil policiais no estado de São Paulo. desse total há um porcentual que faz coisas erradas: é violento, corrupto, incompetente, etc. Mas tem outra por-centagem enorme que ganha os mes-

... nossa visão de paz é de conquista da paz, não é de pacificação...

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mos salários, tem os mesmos problemas na carreira... e que estão fazendo coisas boas. É igual à história do “zé Pequeno”... Não há visibilidade para isso, mas sim para o policial corrupto, violento, o ca-bo de diadema que dava tapa na cara dos cidadãos. Os oficiais que estão fazendo a coisa certa, quem sabe quem são? então pensamos: vamos começar a dar um pas-so em direção à polícia e ver a resposta. Criamos o Prêmio Polícia Cidadã, que passou a identificar e premiar as boas práticas policiais, e que acabou com eles mesmos escrevendo e contando para nós o quê e como fizeram, os resultados que obtiveram. Após a avaliação, a ação é premiada com um valor de seis mil re-ais ou uma bolsa integral de estudos pa-ra ele ou alguém da família cursar uma faculdade. Já premiamos 200 policiais, em quatro edições do prêmio aqui em São Paulo e uma no Rio de Janeiro. A ce-rimônia de premiação ocorre na Sala São Paulo, com a presença do governador, se-cretários e artistas. Gostamos da polícia que trabalha com a comunidade, ouve as pessoas, é inteligente, que usa bem as fer-ramentas da perícia, que respeita a lei e dá resultado. É isso que queremos!

CASA em Revista – E como inte-grar melhor a polícia com a comuni-dade?

Mizne – Havia certa tensão entre a comunidade e a polícia. então propuse-mos como uma das primeiras atividades a de montar um pequeno campeonato de futebol entre times da comunidade “Sou da Paz” e da polícia. de repente, to-dos juntos! Temos de quebrar o precon-ceito, olhar quem está por detrás da far-da, do quepe. Também eles têm de olhar quem está por detrás do bermudão, do gorro. Temos outro exemplo bacana: no Jardim Ângela, quando os policiais che-garam, tínhamos um pessoal de nosso projeto grafitando, mas eles pensaram que eram pichadores e rolou o maior es-tresse. Chamamos todos para conversar e resolver. Os meninos estavam putos

com a polícia. então me lembrei que já tínhamos premiado um policial daque-la região e que ele seria nossa ponte. ele compareceu e ouviu as reivindicações. Passada uma semana, os meninos grafi-teiros foram convidados pelos policiais a grafitar a base comunitária do bairro e ficou muito bonito. Parecia mentira, mas foi um marco. Víamos meninos e policiais conversando, interagindo, dis-cutindo sobre como segurar os sprays, e policiais, sobre a força no dedo para dis-parar o gatilho da arma. Trocaram mui-ta ideia. Talvez eles nunca fizessem isso! Tudo isso vale a pena porque o resultado é surpreendente. É lamentável que a po-lícia não reconheça institucionalmen-te que há um problema de aproximação com a população jovem de periferia. No ano passado, 10 milhões de pessoas no estado de São Paulo foram paradas pe-la polícia, mas, desse montante, apenas uma parcela mínima tinha algum pro-blema. Com o restante deveria ter ocor-rido um diálogo ao invés da famosa in-terpelação: mão na cabeça! Afasta as per-nas! Revista e assim por diante.

CASA em Revista – Em sua opinião qual é o grande instrumento para es-tabelecer uma Cultura de Paz?

Mizne – Creio que não há um grande instrumento, mas são vários. O exemplo de como me comporto e o que passo à frente. depois vêm os instrumentos das políticas públicas educacionais, a mí-dia, as referências, os exemplos das pes-soas que têm visibilidade e que podem

ser as lideranças comunitárias, um po-lítico, um ator, quem quer que seja. São vários níveis e instrumentos distintos.

CASA em Revista – Como implan-tar Cultura de Paz onde reina violên-cia?

Mizne – A violência não choca mais. Temos uma capacidade de banalizar uma série de comportamentos violen-tos e a apatia torna-se inevitável. O pri-meiro passo é não achar normal. Não é normal gritar com seu filho o dia in-teiro. Não é normal! Não estou dizendo com isso que seu filho será um crimi-noso porque grita com ele. Violência e crime são coisas diferentes: crime é um pedaço, a violência está espalhada na nossa sociedade. É o professor que gri-ta, o chefe... Não pode ser normal! Será sempre essa dificuldade: precisamos não aceitar. Morar num lugar onde ve-jo um cadáver todo dia, o policial que dá tapa na cara, o traficante mandou assas-sinar, não é normal! É preciso fazer essa reflexão, buscar alternativas para a reso-lução do problema, ensinar a lidar de ou-tro modo, por meio das escolas, famílias, mídia. deve haver uma questão social que está legitimando isso, mas preciso tirar essa legitimação! Preciso oferecer outro caminho. Não posso aceitar! es-tamos discutindo, por exemplo, com a Federação Paulista de Futebol sobre in-cidentes que ocorrem, porque temos de fazer as torcidas refletirem.

CASA em Revista – Você acredita que a Fundação CASA, por meio do atendimento socioeducativo, pode sensibilizar os adolescentes a viven-ciarem a cultura de paz?

Mizne – A Fundação CASA deve ter um papel central. O adolescente em con-flito com a lei, que chega à Fundação, faz parte de um público, obviamente, que terá de ser trabalhado, porque assim evi-taremos talvez que sua “carreira” crimi-nosa prossiga. Temos de gerar uma mu-dança nessa trajetória com oportunida-

... cultura de paz tem de ser um ponto nevrálgico da formação do nosso sistema de valores...

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des para a vida: aprendendo um trabalho, uma profissão. Mas temos também de incutir valores. de onde eles vêm? Virão dos conteúdos e atitudes levados para den-tro da instituição. Se aceitarmos a violência como algo normal dentro da punição ao adolescente, só posso esperar que isso aconteça lá fora. Se, ao contrário, mostrarmos as novas políticas, que somos capazes de construir uma relação de valorização com esses indivíduos, entendendo o que lhes aconteceu, mostrando-lhes outro cami-nho, eles também levarão isso para fora. Talvez, até, desnormalizem a violência que carregam dentro de si. essa bifurcação é central! Vejo que a Fundação CASA tomou uma decisão política importante quando desativou as grandes unidades, também na maneira como o adolescente é tratado, desde a entrada até a saída, o acompanha-mento que ele recebe, as entidades que participam do cumprimento das medidas socioeducativas, etc. Ressaltamos que no processo de formação deve ocorrer essa discussão. Percebo que isso está dando resultado pela queda do índice de reincidên-cia – um ótimo indicador –, quanto mais for nessa direção, melhor será.

CASA em Revista – Como avalia o trabalho da Fundação CASA na contri-

buição para o decréscimo do índice? Mizne – Farei uma avaliação de fora por não trabalharmos, diretamente, com

a Fundação CASA, mas já adianto que vemos, majoritariamente, como positivo. Positivo no sentido das unidades menores, no redesenho, na valorização ao ofere-cer outros repertórios culturais e educacionais aos adolescentes, individualização do instrumental. Claro que sempre nos preocupamos quando vemos denúncias sobre torturas, violências, casos que poderiam ser menos frequentes. Temos cons-ciência de que é um processo, mas que continua sendo inaceitável quando ocorre. O impacto das boas ações vem com a queda da reincidência e da violência nas co-munidades em São Paulo. Vimos o fenômeno da diminuição da criminalidade em São Paulo. em dez anos, tivemos quase 80% de queda no número de homicídios: é um dado muito forte! Isso nos mostra que todo mundo tem seu papel. Mas, tentar achar um herói está errado! Se a violência não tem uma causa, a sua queda também não terá; é uma combinação que, nessa equação, passa pelo controle de armas – algo fundamental –, passa pela melhora e profissionalização da polícia, e tem também um trabalho grande de prevenção feito pelas ONGs e governos. Há dez, 15 anos, não tínhamos organizações focadas na juventude, na prevenção à violência, não tínha-mos governos olhando para isso. Não tínhamos prefeituras que dissessem: “Poxa! eu tenho uma responsabilidade também, vou me aproximar do problema”. Hoje está mudando. Temos um segundo ponto importante: a extinta FeBeM parecia um problema insolúvel na cidade. Lembro-me quando o governador Mario Covas virou e disse: “eu vou administrar isso!” Imagino que, enquanto homem público, ele não se conformava que não fosse possível – eram à época sete mil internos – que isso pudesse ser resolvido. Tentaram várias táticas: “Fecha! Abre! divulga! Não di-vulga! desce o cassete!”. Até que alguém disse: “Vamos mudar o modelo!”. Mas, não só disse, como conseguiu implementar. Muitos quiseram mudar o modelo e só con-seguiram uma soma de gestões. Negociações não são fáceis: os municípios que não

cedem terreno, dizendo que nada tem a ver com o problema, o preconceito que existe sobre a antiga FeBeM (rebelião e fuga a toda hora!), dificuldades com os funcionários. São questões ultradelica-das. Não podemos perder o rumo. O es-forço nas transformações tem de conti-nuar para gerarmos uma nova visão de que é possível, mas que ainda tem desa-fios a serem superados. Tudo pode ser feito para consolidar uma metodologia que respeite os direitos e trabalhe com a questão dos adolescentes, dando opor-tunidades diferentes com um verdadei-ro processo de ressocialização – trazer o adolescente de volta ao convívio, em uma relação melhor com a sociedade. Não é nada fácil porque nosso sistema punitivo é muito antigo, mas acredito que estão numa boa direção.

CASA em Revista – A cultura de paz propõe uma nova visão para hu-manidade. Tendo como base a trans-disciplinaridade, você crê que já al-cançamos essa visão ou é uma idéia que ainda não se tornou realidade?

Mizne – Mahatma Gandhi dizia que não há caminho para a paz. A paz é o ca-minho. Já chegamos lá? Nunca chega-remos lá. Vamos construir caminhan-do. A paz é o caminho e tem tudo a ver com aquilo que discutimos durante to-da a entrevista: é o comportamento, o exemplo, o que repercute, o que se acei-ta ou não, o caminho que se oferece ou não; o importante é o compromisso em chegar lá. dalai Lama diz que só existem dois dias em que não podemos mudar o mundo: ontem e amanhã. Nossa es-colha tem de ser pelo hoje. As duas fra-ses têm o mesmo sentido: emergência e possibilidade de um processo. Não que-ro jogar a discussão para uma má uto-pia, uma utopia no sentido de seguir a preferência de, no fim das contas, viver numa sociedade pautada pela violência ou pautada pela paz! A pergunta sobre quando chegaremos depende da respos-ta de cada um nessa direção.

a violência vencerá quanto mais pessoas mostrarem seu medo através da elevação dos muros, blindagens..

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eNtreVista Justiça restaurativa

A arte do encontro na Justiça

como o Poder Judiciário pode

usar o diálogo como forma de

reduzir as punições e melhorar os

resultados nas mediações de

conflitos

{texto: Rosemary dos Santos}

egberto De almeiDa PeNiDo, juiz de Direito

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A Justiça Restaurativa é ar-te do encontro. Uma sim-ples frase que resume um

tema complexo e caro ao juiz Eg-berto de Almeida Penido. Coorde-nador do projeto de JR no âmbito da Vara Especial da Infância e da Juventude da Capital de São Pau-lo, Penido é uma das principais referências brasileiras no uso da mediação e restauração para a re-solução de conflitos que, antes, so-mente eram resolvidos nas barras dos tribunais. Com o doutor Eg-berto, como é carinhosamente re-conhecido, as barras são barreiras a serem superadas. “A dinâmica de punição retira o poder que as pes-soas têm de transformar conflitos e aprender com eles”, diz o magis-trado, em entrevista à CASA em Revista. A aposta do juiz, que im-plantou pessoalmente um círculo restaurativo na favela de Heliópo-lis, é fazer com que vítimas e agres-sores tenham uma visão abran-gente das causas e consequências dos conflitos que vivenciam. Tu-do, ao fim e ao cabo, em busca de uma Cultura de Paz. A seguir, os principais trechos da entrevista.

CASA em Revista – A Justiça Res-taurativa lida com as consequências do ocorrido, ou seja, do ato cometi-do, reparando os danos causados e restaurando as relações feridas. Fale sobre esse paradigma de justiça?

Egberto de Almeida Penido – Pri-meiro, acho importante falar da noção de Justiça Restaurativa (JR) e de alguns princípios que são contemplados em sua prática. A JR recoloca a justiça como um valor construído de modo ativo na relação com o outro. É na relação que a justiça se faz, como uma experiência vi-va. ela possibilita ações de reequilíbrio

social, onde as necessidades de todos os envolvidos podem ser concomitantemente atendidas – sem exclusão. Além disso, faz com que, de modo efetivo, as consequên-cias do ato ofensivo sejam defrontadas e trabalhadas (reparadas e ressignificadas) não só por quem ocasionou o dano diretamente e indiretamente, mas, também, por todos que foram direta e indiretamente atingidos por tal ação. A noção de responsa-bilidade coletiva é central. Seu objetivo é possibilitar e facilitar o desenvolvimento de uma ação coletiva consciente e criativa acerca do valor que se encontra na norma que foi rompida. As consequências são vistas da forma mais ampla e não só de ma-neira linear (a noção de interdependência perpassa todo este processo). A JR busca que cada envolvido e/ou afetado pela ofensa tenha a consciência das causas pesso-ais, familiares, comunitárias, sociais e institucionais que contribuíram para aquela situação. ela constrói um processo transformativo em todas essas esferas.

CASA em Revista – Ou seja, busca-se uma visão mais sistêmica?

Egberto – No processo de resolução de conflitos, através das práticas res-taurativas, busca-se esse grau de cons-ciência e essa qualidade de ação. Na JR, busca-se migrar da responsabilidade individualizada para a coletiva. Se uma ação teve uma consequência X, qual é a responsabilidade da pessoa que agiu? Sem dúvida, a pessoa que praticou aque-la ação fez uma escolha que gerou uma lesão, sendo responsável. Outra pessoa submetida às mesmas circunstâncias talvez não agisse assim. Talvez fizesse uma escolha diferente. A cada momen-to estamos fazendo escolhas (inclusive a opção pela paz, é uma escolha – uma escolha permanente que fazemos a ca-da momento: é como respirar!). Fazemos escolhas o tempo todo. então, sobre ca-da ação ou omissão somos responsáveis. Se uma pessoa agride ou furta – agora estou falando especificamente sobre transgressões – de quem é a responsa-bilidade? Sem dúvida nenhuma, é da pessoa que agiu assim. Mas como fica a responsabilidade da família, da comu-nidade, da escola e dos agentes públicos, por exemplo? ela não existe? Claro que existe. Qual foi o motivo ou a motivação daquela ação? Qual a responsabilidade de todos? Todos têm uma corresponsa-bilidade. A JR lança luz sobre as corres-ponsabilidades e, por meio de um feixe de ações de resolução de conflito, olha tanto para as causas como para as con-

...a dinâmica de punição retira o poder que as pessoas têm de transformar conflitos e aprender com eles..

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sequências do ato cometido; olha tanto para a responsabilidade individual, co-mo para a coletiva e, também, para as es-truturas institucionais que reforçam si-tuações de conflito e violência. Ao assim proceder, aumenta a probabilidade dos envolvidos terem consciência da justiça como um valor; aumenta-se a probabi-lidade de eles entenderem na prática a necessidade da prevenção, restauração e responsabilização.

CASA em Revista – O Senhor po-deria ser mais concreto. O que seria uma prática restaurativa?

Egberto – É um encontro entre quem causou uma ofensa com aquele que so-freu a ofensa, ou seja, um encontro da vítima e do réu/ofensor; ou do autor do ato com o receptor do ato, baseado no diálogo. O diálogo (a comunicação) é central. Mas não é só um encontro de vítima e do réu. Inclui-se neste encon-tro também as pessoas indiretamente atingidas. Por exemplo, se uma moça foi assaltada no dia em que recebeu seus vencimentos e ela mora com uma irmã que não trabalha, consequentemente, sua irmã também sofrerá as consequên-cias daquele ato. A irmã também pode estar achando que este nosso belo país

não tem mais jeito. ela quer mais que a pessoa que praticou esse ato seja presa e sofra. Algumas vezes, até que ele morra! ela está fragilizada; enredada em um ci-clo espiral negativo de percepção da re-alidade, que retroalimenta um circuito de violência. ela que foi indiretamen-te atingida, também deve participar da prática restaurativa. Além das pessoas indiretamente atingidas, no encontro do círculo restaurativo também são cha-madas para estarem presentes algumas pessoas que eventualmente possam dar apoio à vítima e ao réu. devemos ter em vista que todos estão muito fragilizados! A vítima está fragilizada! O ofensor está fragilizado! A comunidade está fragili-zada, assustada!

CASA em Revista – Como fazer com que todos participem desse pro-cesso?

Egberto – Todos estes atores são con-vidados a estarem juntos e a olharem em conjunto para as causas, consequências e valores do conflito. São chamadas pes-soas da comunidade que possam contri-buir para o entendimento da situação e/ou reparação dos danos. Se esse proces-so for bem-conduzido, ao final, todos saem da posição de fragilidade; há um

empoderamento. Ampliam-se as possi-bilidades de envolvimento e responsa-bilização. A dinâmica de punição retira o poder que as pessoas têm de transfor-mar conflitos e aprender com eles. Não é uma mediação simples entre vítima e ofensor! A JR trabalha fora da lógica da punição. Há uma crença que a puni-ção inibe uma nova prática lesiva; uma crença que ela desestimula a reincidên-cia e a prática de outros – os quais, ao verem a punição a que foi submetido o ofensor, ficam com medo de sofrerem também e, assim, inibidos de agirem do mesmo modo. essa é a lógica neste siste-ma de dor! Lida-se com a violência por meio da violência. Temos visto que isso, em verdade, retroalimenta o circuito de violência. A violência é um fenômeno extremamente complexo, não dá para reduzi-lo. Se o meio que você utiliza é violento, o resultado invariavelmente o será. Mahatma Gandhi - um dos grandes avatares da Cultura de Paz - já mostrava isso, por meio da reflexão e da ação.

CASA em Revista – Quais são as li-nhas de ação no âmbito da JR?

Egberto – Na Capital, além da linha de resolução de conflitos, a proposta se estrutura em mais duas outras linhas de

...Lida-se com a violência por meio da violência. Temos visto que isso, em verdade, retroalimenta o circuito de violência...

Egberto Penido durante entrevista a CASA em Revista

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ações que estão no mesmo pé de impor-tância que a resolução/transformação de conflitos. São elas: mudanças insti-tucionais e trabalho de rede. Para que se consiga mudar uma cultura que nos en-sina a responder com violência desen-contros relacionais, além da aprendiza-gem dos procedimentos restaurativos por parte de facilitadores, considero im-portante a implementação de mudan-ças institucionais no local onde a práti-ca restaurativa esteja sendo implemen-tada, por parte de pessoas que recebem capacitação específica para essa finali-dade, as quais denominamos de agentes de mudança. esses atores lidam com as resistências inerentes em um proces-so de mudança, discutem e repensam a necessidade de se rever atitudes e com-portamentos enraizados nas diferentes culturas institucionais. Além disso, nu-ma terceira linha de atuação simultânea às outras duas, é também fundamental a criação e o fortalecimento das Redes de Apoio locais; ou seja, da articulação entre entidades de atendimento aos di-reitos das crianças e adolescentes, para as quais serão encaminhados os casos dos círculos restaurativos, sempre que o conflito tiver sido causado pela falta de atendimento aos direitos e necessidades básicas do cidadão e da cidadã. Mas an-tes de falar destas duas outras linhas de ação que são implementadas concomi-tantemente, gostaria de mencionar al-guns aspectos da linha da resolução de conflitos.

CASA em Revista – Quais são os mais importantes?

Egberto – Antes pontuei que a práti-ca restaurativa se constitui em um en-contro. Poeticamente, Leoberto Bran-cher (coordenador do Núcleo de estu-dos em Justiça Restaurativa da escola Superior da Magistratura do Rio Gran-de do Sul) chamou a JR de “uma arte do encontro”. Ora, como na arte, é necessá-rio habilidade; é necessário técnica. Não basta boa vontade. É necessário exerci-

tar e exercitar; sobremaneira, porque não aprendemos a agir de outra forma; não aprendemos a lidar com a violência sem sermos violentos. desde pequeni-ninho, a nossa educação, nossa cultura, mídia, instituições nos ensinam a lidar com a violência através de violência. Ocorre que isso não significa que nós não saibamos fazer de modo diferente. Hoje em dia, isso está escancarado, pois existem inúmeras práticas que mos-tram que é possível sim lidar com a vio-lência sem retroalimentá-la. Ocorre que, para aprender a mudar esse paradigma punitivo, muita prática é necessária. estar engajado em uma prática de Cul-tura de Paz não tem nada de passivo. É algo extremamente ativo. Significa que quem se engajar no caminho da Cultura de Paz deve se preparar para dormir pou-quíssimo, porque estará o tempo inteiro sendo demandado e principalmente se autotrabalhando. eu entendo que não tem como entrar nesse caminho sem se transformar. Naturalmente, para você colocar em prática e avançar, você tem de se conhecer cada vez mais. Além dis-so, é necessário atuar sobre as institui-ções. É um trabalho muito árduo que requer determinação, persistência, co-ragem e automotivação. deve-se cuidar para não desanimar no caminho, sobre-maneira quando surgirem contramovi-mentos às ações de implementação do projeto. e esses contramovimentos sem-pre surgem.

CASA em Revista – Quando a Jus-tiça Restaurativa foi inserida no Bra-sil? E como ela vem sendo discutida?

Egberto – em diversos países do mundo, a JR começa mais ou menos no final da década de 1960, começo da década de 1970, através de um conjun-to de ações que basicamente surgem da insatisfação do sistema retribuitivo e punitivo que até então predominava. esses movimentos buscavam mostrar que a forma de responder à violência através de punição não estava sendo

satisfatória, não estava inibindo e nem desestimulando outras práticas, não estava trazendo responsabilidade efe-tiva à pessoa. Assim, vamos supor que alguém ocasionou uma ofensa ou dano a outra pessoa e ao final de um proces-so cumpriu uma medida de prestação de serviço à comunidade. Ora, tal pes-soa entende que ao cumprir essa pres-tação está tudo resolvido. Que ela está “zerada”. Contudo, qual foi a efetiva res-ponsabilização dessa pessoa? Qual foi a ação que ela fez para a vítima? Além destas insatisfações diversas, outras se apresentaram. entre elas a existência de um sistema punitivo complexo e custo-so; um sistema em que a lógica de reso-lução de conflito se dá por meio da rela-ção entre estado e réu; a vitima - que é central nessa situação - fica totalmente à margem. ela (vítima) é vista como um mero meio de prova para se estabelecer a culpa do réu. A vítima não é ouvida em suas necessidades; nas necessidades que surgiram a partir do momento em que sofreu a ofensa. Se não tomarmos cuida-do, a vítima não só ficará a margem de todo processo de resolução de conflito, mas, ainda, será submetida a uma se-gunda violência. Por exemplo, às vezes temos uma “pilha” de processos, uma se-quência “pesada” de audiências, e temos de dar em cada processo uma resposta objetiva, com dez/vinte audiências por dia. A vítima comparece e fala para além das perguntas objetivas (ou seja, conta a sua história); mas o juiz para e fala: “mi-nha senhora, é isso ou aquilo? eu quero apenas que responda ao que perguntei”. Pronto: “coisificamos” a vítima.

CASA em Revista – Na JR, a vítima passa a ser prioridade?

Egberto – A JR traz a vítima para uma centralidade que sempre foi seu lugar. ela é convidada para estar no centro do processo de resolução de conflitos. Na verdade, a JR devolve à ela e à comuni-dade um poder que sempre foram deles, que é o de resolverem por si só os seus

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problemas; de resgatarem essa autorida-de. A justiça tem de ser uma experiência vivida por todos. Valores são apreendi-dos; eles não são ensinados. Temos de vi-venciar a experiência de justiça, senão, daqui a pouco, estaremos no processo de vitimização e/ou retroalimentação do circuito de violência. É no encontro e no diálogo que esse processo se faz. Houve um momento histórico, que te-ve a sua razão de ser, caracterizado pela constituição dos estados. era necessário ter uma centralidade de poder, para que esse fosse forte o suficiente para se con-trapor a uma situação de violência; pa-ra se contrapor às vendetas que coloca-vam em risco a sobrevivência de peque-nas comunidades. Assim, através de um “pacto social”, foi outorgado ao estado o monopólio legitimo do uso da força; significa que o estado tem esse monopó-lio, tem a legitimidade do uso da força. este estado de coisas foi sendo tempe-rado através de todas as conquistas que levaram ao estado democrático de di-reito, com todas suas garantias. Mais re-centemente, começou um movimento de resgate que visa devolver a autorida-de, o poder, a quem sempre pertenceu: a comunidade. Na verdade, não é necessá-rio devolver isso, pois esse poder não foi perdido. É necessário apenas abrir espa-ço para que ele aflore novamente, para que a própria comunidade dê conta de seus conflitos.

CASA em Revista – Quais as eta-pas a serem observadas no círculo restaurativo?

Egberto – Na dinâmica restaurativa, tem sido muito eficaz e transformador quando colocamos a pessoa em conta-do com as consequências das próprias ações. Isso é extremamente transforma-dor! Não é fácil ter coragem de olhar de frente para aquilo que você fez e trouxe dano. Nós sabemos que também olhar as causas que fizeram com que a pessoas agissem da forma como agiram também não é fácil; olhar a desestrutura familiar,

nossas carências, nossos medos, a nossa “sombra”, é dificílimo. A JR não propõe um processo terapêutico - é importante esta ressalva. ela tem um foco no confli-to e em como lidar com ele. esse é outro ponto importante: na JR temos de ter um espaço acolhedor que permita que cada um venha com a sua verdade e este-ja seguro. As práticas restaurativas são, em primeiro lugar, um processo orde-nado. Aqui na capital de São Paulo, nós preparamos esse encontro com muito cuidado - isso é fundamental. Quem vai participar; em que momento ocorrerá; qual o foco; quais serão os compromis-sos de respeito durante o círculo restau-rativo? durante o círculo, há passos or-denados para serem seguidos: quem fala primeiro; como o outro “devolve” o que ouviu; em que momento a comunidade fala; em que momento o acordo é inves-

tigado, etc. O perdão, a desculpa, não é o objetivo. Pode ocorrer? Sim, pode. Mui-tas vezes, é uma consequência natural, mas não é o objetivo. Além disso, nin-guém participa do círculo restaurativo obrigado. A voluntariedade é essencial.

CASA em Revista – Não é terapêu-tico, mas trabalha com um conceito próximo do autoconhecimento...

Egberto – A função do círculo num primeiro momento é conectar a pessoa com ela mesma, principalmente a víti-ma, e também o ofensor. Só depois que a pessoa está conectada consigo é que se busca conectá-lo com o outro. Para is-so, a estratégia é tirar a energia do julga-mento (é não julgar o outro) e colocar a energia na consciência, na investigação e na criatividade. entender o que está ocorrendo, para, só depois, construir o acordo. Outro equívoco de alguns é en-tender que a JR é uma justiça mais light, mais soft; pelo contrário, em verdade é uma justiça muito mais heavy, muita mais hard. Olhar para a consequência do que você fez, olhar para as causas de sua eventual desestrutura familiar; fa-zer no coletivo, como já dito, não é fácil! É extremamente transformador, mas não é fácil! Algumas pessoas até pedem para interromper a dinâmica do círculo porque não dão conta da carga emocio-nal dessa situação. É legítimo interrom-per esse processo. Aí, o melhor a fazer é pagar uma cesta básica, prestação de ser-viços à comunidade. Não que seja fácil também fazer uma prestação de servi-ços ou uma liberdade assistida. Alguns fazem essa escolha. Neste ponto, ressal-to apenas que não tem nada de “passar a mão na cabeça do outro”. Há muita firmeza, ordenação e seriedade das prá-ticas restaurativas nesse processo. Os encontros têm três etapas. Um pré-en-contro para o círculo restaurativo, on-de se define o conflito que será tratado e se explica como o procedimento será desenvolvido. O próprio encontro, que têm passos a serem observados, como

...é um trabalho muito árduo, que requer determinação, persistência, coragem e automotivação...

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já disse. e o pós-círculo, onde os envol-vidos verificam se o acordo combinado no círculo restaurativo foi cumprido ou lidam com o descumprimento. Nesse processo todo, sabemos o quanto a co-municação é uma variável importante em termos de violência. Geralmente o que se fala não é o que geralmente o ou-tro entende. É preciso checar o que cada um entendeu para ir limpando os ruí-dos. Tem-se um fluxo de “vai e volta”, até que cada qual entenda o seu sentimen-to, a sua necessidade e a do outro.

CASA em Revista – Voltando um pouco, fale mais sobre a Justiça Res-taurativa no Brasil?

Egberto – No Brasil, a JR iniciou-se institucionalmente em 2005, com uma iniciativa do Ministério da Justiça, atra-vés da Secretaria da Reforma do Judici-ário, que firmou uma parceria com o Programa das Nações Unidas para o de-senvolvimento (PNUd). Foi estrutura-do um projeto denominado “Implemen-tando Práticas Restaurativas no Sistema Judiciário Brasileiro” que desencadeou três projetos pilotos: um em São Caeta-

no do Sul (na área da infância e juventude, durante a fase de conhecimento do pro-cesso); outro em Porto Alegre, também no campo da infância e juventude, focado inicialmente na fase de execução de medidas socioeducativas (hoje está muito mais ampliado); e um terceiro em Brasília, com adultos, em delitos de menor potencial ofensivo. É interessante notar que normalmente no mundo o movimento de JR inicia-se da comunidade para instituições. No Brasil esse movimento foi diferente: veio da instituição para a comunidade. A partir de suas implementações, os referi-dos projetos ganharam autonomia, com características próprias de expansão, e hoje sofrem modificações e expansões.

CASA em Revista – O senhor poderia falar deste movimento em São Paulo? Em quais cidades e/ou Estados a Justiça Restaurativa vem sendo aplicada?

Egberto – Aqui em São Paulo, depois de 2005 (em São Caetano do Sul), em 2006, começa uma iniciativa junto com a Secretaria estadual da educação, através da Fun-dação para o desenvolvimento da educação (Fde) e da Coordenadoria de ensino da Grande São Paulo (COGeSP), junto com o poder judiciário (com a aprovação do Conselho Superior de Magistratura), Ministério Público (MP) e defensoria Pública. em 2006, inicia-se na Capital (na região de Heliópolis) e em Guarulhos, envolvendo dez escolas estaduais de ensino médio, para trabalhar situações de atos infracionais referidos a conflitos de menor potencial ofensivo. Já em Porto Alegre desde o co-meço se trabalhou com situações envolvendo atos infracionais referidos de maior potencial ofensivo também. Temos também ações em São Caetano do Sul, em São José dos Campos e Campinas. em Santos, Barueri e Presidente Prudente, o projeto está sendo elaborado, preservando a produção de conhecimento até então gestada pelas práticas anteriores, no entanto, cuidando para que se incorpore à proposta às necessidades e especificidades de cada local. No Brasil, além de São Paulo, outro referencial de práticas sustentáveis e exitosas é o Rio Grande do Sul. Atualmente, a proposta de JR está se expandindo para Rio de Janeiro, Brasília, Maranhão, Pará, Mi-nas Gerais, Pernambuco. Há uma expansão ocorrendo.

...a Justiça Restaurativa não propõe um processo terapêutico - é importante essa ressalva - ela tem um foco no conflito, em como lidar com ele...

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CASA em Revista – E na área da In-fância e Juventude?

Egberto – É importante ressaltar tam-bém que em São Paulo está começando uma iniciativa junto com o departa-mento de execução da Infância e Juven-tude (deIJ) bem pequenina, mas muito promissora: lá, foi autorizado o início de práticas restaurativas em quatro casos em curso nas execuções de medida em meio aberto nos Núcleos de Proteção de Campo Limpo. A partir dos resultados desses casos, se verificará a possibilida-de ou não de uma ampliação. Ainda é um projeto piloto. O referencial de apli-cação da JR nas execuções das medidas socioeducativas é Porto Alegre. A JR pre-pondera na área da infância e juventude. Primeiro porque o estatuto da Criança e Adolescente (eCA) permite a sua im-plementação através do instituto da re-missão. em segundo, porque há um ca-samento total entre o eCA e a JR, na me-dida em que se trabalha com medidas socioeducativas e elas têm um aspecto pedagógico interdisciplinar e sistêmico.

CASA em Revista – Quais as con-

tribuições que a Justiça Restaura-tiva pode trazer para reinserção do adolescente na sociedade?

Egberto – Através das práticas res-taurativas trabalhamos todo o proces-so de não estigmatização do adolescen-te, além de se buscar o envolvimento da família, comunidade e das institui-ções. Assim, a JR contribui muito para a reinserção do adolescente na comuni-dade, no seu meio familiar, na preven-ção e no empoderamento do mesmo. ele passa por uma experiência que é ex-tremamente transformadora. Uma ex-periência que, se bem feita, lhe permite perceber que algumas escolhas têm con-sequências, as quais sequer imaginava.

CASA em Revista – O senhor pode nos dar um caso concreto?

Egberto – Falando de um exemplo concreto: explodiu uma bomba numa

fez com que a bomba se afastasse ainda mais do lugar que queriam e se aproxi-masse do pátio. Não era o lugar certo! Um terceiro veio e chutou de novo, só que ela em vez de ir para a direção cer-ta foi mais para o pátio e explodiu. Al-guns pequenos fragmentos da bomba acertaram a perna de três alunas da es-cola. Com o barulho saíram os professo-res da sala de aula, ocorreu aquele “auê” que nós já conhecemos. Os alunos já es-tavam para serem suspensos, já havia a intenção de transferi-los compulsoria-mente, mas houve um círculo restaura-tivo envolvendo os garotos, os pais, os outros alunos, as mães, o coordenador pedagógico e o Conselho Tutelar. No “frigir dos ovos”, depois de muita pre-paração - esse círculo foi feito no CT do Ipiranga - como resultado, entre outros acertos que foram feitos, aventou-se que eles passariam um ou dois dias frequen-tando um curso de prevenção de aciden-tes no corpo de bombeiros da região. Os meninos se engajaram tanto que até fo-ram chamados para serem os guardiões de questões de segurança lá na escola, entre os intervalos de aula. durante um ano, não houve nenhum outro caso de bomba naquela escola. Além disso, as meninas atingidas, junto com os alu-nos, acabaram reativando um jornalzi-nho da escola. Tivemos todo um proces-so de inclusão, resgate, protagonismo, conscientização, engajamento e partici-pação. enfim, as práticas restaurativas visam esse fluxo.

CASA em Revista – Quais são os re-quisitos para se chegar ao círculo res-taurativo?

Egberto – Primeiro, a pessoa tem de querer, ninguém vem obrigado, ainda que chegue meio com o pé atrás; segun-do, ninguém vai para círculo restaura-tivo se não assumir minimamente que praticou o ato. Aqui não importa se não assumir integralmente; mas se disser que não o praticou, não serão ouvidas

...a função do círculo num primeiro momento é conectar a pessoa com ela mesma, principalmente a vítima e, também, o ofensor...

escola pública em Heliópolis; algo mui-to comum de ocorrer. A bomba foi colo-cada por três alunos com divergências com a diretoria da escola. Fizeram um pequeno artefato e jogaram perto do prédio da administração; só que a bom-ba ao ser jogada caiu em um lugar que eles não queriam; mas já estava aces-sa. então um deles deu um chute que

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testemunhas para saber se fez ou não. Aí, então, segue-se pelo processo tradi-cional. A pessoa precisa perceber mini-mamente a importância de ter a cons-ciência de sua ação. dessa forma, a pes-soa necessita assumir a prática do ato, mesmo que venha com aquela estraté-gia de neutralização que nós já conhe-cemos: “peguei o estojo dela, mas ela é muito rica e não sentiria falta”, “não foi estojo, foram só quatro lápis”, ou ainda: “mas ela estava me devendo, assim pe-guei”, “ah! não dei um soco nele, foi só um cutucão, um esbarrão”. enfim, seja qual for o motivo, se ele assumir mini-mamente o que fez, o círculo restaurati-vo pode ser encaminhado.

CASA em Revista – Para que tipo de delito a JR serve? Só para os mais leves?

Egberto – Aqui em São Paulo, traba-lhamos apenas com crimes de menor potencial ofensivo. Já em São Caetano do Sul e Porto Alegre, temos casos de roubo e outros casos mais graves, mas em São Paulo/Capital, nós optamos, es-trategicamente, por começar com cri-mes de menor potencial ofensivo.

CASA em Revista – O senhor já acompanhou algum caso da Funda-ção CASA?

Egberto – Aqui em São Paulo, não ocorreu ainda, mas está em estudo a possibilidade de implementar dentro da Fundação CASA. Há outro caso em Gua-rulhos que é muito pontual. Também me parece que agora está começando alguma coisa em Campinas, mas ainda em estudo. A doutora Berenice Gianella (presidente da Fundação CASA) ainda está estudando como fazer isso. É um grande desafio dentro da Fundação.

CASA em Revista – Como o senhor vê a participação do Governo em prol da Justiça Restaurativa?

Egberto – O governo tem de partici-par das redes de proteção de garantia

dos direitos da criança e do adolescente na área da infância e juventude. Agora, o que temos feito é capacitar e não ficar esperando pelo governo. Claro que a co-munidade deve reivindicar dele o que é de sua responsabilidade. Mas, indepen-dente disto, deve-se se agir. Por exemplo, no caso da escola: ela tem de ser a prota-gonista na articulação da rede; ser uma efetiva referência para a comunidade. Na lógica da JR o poder nunca está no outro, se o outro não vier, não se deixará

de fazer o que deve ser feito. Lógico que não deixamos de reivindicar os direitos de cada um, mas, concomitantemente, busca-se permanentemente, de forma criativa, o que deve ser feito, busca-se ar-ticulação de rede neste sentido. depen-dendo de cada localidade, muda aquele que assumirá inicialmente a implemen-tação dessas ações. O importante é que alguém assuma inicialmente. O judici-ário, mesmo quando assume a iniciati-va, continua com a sua função institu-cional jurisdicional, assim como o MP, a defensoria, etc. Contudo, essas ações interdisciplinares, interdependentes e em rede demandam efetivas reuniões. É muito trabalho! Realmente a imple-mentação de um projeto desse porte re-

quer uma ressignificação da atuação de todos os profissionais que estão envol-vidos. Há muito tempo não dá mais pa-ra o juiz ficar no gabinete. Um promotor também não. e necessária outra atuação do delegado, do MP, do subprefeito, e por aí afora. então, o fundamental é que haja a participação de todos.

CASA em Revista – Qual é a sua per-

cepção sobre a origem da violência? Egberto – A questão da violência

tem vários aspectos. O conflito é da vi-da, é fundamental e necessário. ele é um grande motor de criação da comunida-de, da sociedade, de nós todos. A partir dele temos a oportunidade de aumen-tar nossa consciência, lidar com o outro de uma forma empática, vivenciar a di-versidade, traçando ações em conjunto. Hoje em dia, não se tem mais a figura do herói que irá resolver tudo. É no coleti-vo! Todos juntos! Não é um poder sobre o outro. Não é um poder de dominação, mas o poder junto com o outro. esta é a essência do poder de libertação. É algo que cada vez mais temos experimenta-do. A questão da violência é cultural. Nós temos aspectos internos que neces-sitam ser olhados de frente. Há o que po-demos chamar – usando uma expressão junguiana – da sombra; aspectos que estão ocultos, que estão ali sem termos conhecimento/consciência, e muitas vezes se manifestam de forma desastra-da (desastrada porque geram violência, dano, etc.).

A questão da violência passa pela grande inconsciência geral de um pro-cesso de uma sociedade de dominação, que acaba sendo extremamente ma-terialista e consumista, que acaba nos alienando em nossa própria essência – essência essa totalmente amorosa. A questão da violência passa por uma questão cultural de não termos exerci-tado nosso olhar sobre a realidade, nos-sa capacidade de observação das coisas. Precisamos alongar esses músculos de percepção! Temos de resgatar essa arte

...Justiça Restaurativa e a Cultura de Paz são movimentos inevitáveis...

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de encontros, observar como percebe-mos nossos sentimentos, o que nós real-mente queremos. Não temos exercitado nossa capacidade de entender as nossas reais necessidades, ficamos baseados em necessidades artificiais, consumis-tas e materialistas, e não nas verdadeiras necessidades que são universais: as mi-nhas necessidades de amor, de perten-cimento a um grupo (existe aqui, como também na China), todos nós as temos, são universais, mas isso fica muito sola-pado. A questão da violência se instau-ra então de uma cultura que cria um véu de equívocos, de ilusões materia-listas, que nos desvirtuam daquilo que é essencial ao ser humano: a capacidade amorosa. Acho que o fruto da violência passa muito por essa falta de exercício de consciência, de quem nós somos real-mente. essa capacidade amorosa requer uma prática, inclusive uma prática espi-ritual – não religiosa – mas, de espiritua-lidade. Perguntaram ao dalai Lama qual é a melhor religião. ele respondeu que é aquela que nos torna melhores, mais amorosos, mais cuidadosos, etc., e res-saltou que essa religião está fora de nós, está no dia a dia, está fora dos templos. Os templos somos nós, não é mesmo? Nesta fase, extremamente materialista da humanidade, nos distanciamos, nos alienamos muito dessa essência. Junto disso, temos toda uma dinâmica institu-cional que acaba retroalimentando es-sa lógica de punição, gerando punição, concentração de riqueza, má compreen-são, etc. É assim que entendo a questão da violência.

CASA em Revista – Quais dificulda-des na busca por uma Cultura de Paz?

Egberto – Primeiro tenho de reco-nhecer, particularmente, que o judici-ário paulista tem sido muito aberto a essas ações. Tenho de reconhecer que, junto com a iniciativa da Secretaria da Reforma do Judiciário e a escola Paulis-ta de Magistratura, o apoio institucional tem sido muito grande. Naturalmente

temos a nossa instituição, que é hierár-quica, trabalhando dentro do paradig-ma retribuitivo. Temos de avançar com isso com muito cuidado! Temos de expe-rimentar aquilo que funciona, perceber o que não funciona; estamos tateando ainda. Temos uma ordenação, um em-basamento filosófico, um caminho per-corrido aqui e no mundo todo, mas te-mos de ir com muita cautela. Há contra-movimentos como em qualquer outra instituição. Temos críticas pertinentes. Temos vários aspectos a ponderar e esta-

mos entrando com cautela e avançando, acho até que rápido, porque a demanda é grande. Sou muito otimista. Acho que daqui a 50 anos conseguiremos que es-sa cultura da não violência esteja pre-dominando no direito, e quando olhar-mos para trás falaremos: “Nossa! É assim que fazíamos justiça?! Que coisa! Olha! É assim que educávamos as pessoas?!”. A Secretaria estadual da educação tam-bém já deu um passo muito importante na figura do professor mediador. Para a Fundação CASA, se abrir para essas ini-ciativas, é muito positivo. Os contramo-vimentos internos que existem fazem com que reflitamos. Que as críticas ve-nham com firmeza, com questionamen-to. Que bom que venham! Há sim todo um movimento de lei e ordem. Há pes-

soas equivocadas – pelo meu ponto de vista – que entendem que quanto maior a pena, mais se inibe as ofensas. enfim, todo esse movimento vem de encontro e não ao encontro do que estamos fazen-do. Por outro lado, cada vez mais temos pessoas comprometidas, aplicando is-to na prática, a Cultura de Paz, criando uma massa crítica nesse sentido. É im-portante termos firmeza, despertar e aprofundar a nossa consciência, contri-buindo para que cada vez mais pessoas tenham também com esse grau de cons-ciência.

CASA em Revista – Como o senhor encara a realidade brasileira nesse diálogo pela paz?

Egberto – Nós temos de cuidar da paz interna, a nossa paz. Começa por aí: a nossa contribuição! É conosco! Se tiver-mos condições de aprender a lidar com conflitos... essa é a grande contribuição para tudo! O Brasil tem um grande po-tencial de criatividade, de tradições nati-vas, indígenas e tudo isto me mostra que é possível, que há abertura institucional para que isso aconteça. Claro que preci-samos ter ações institucionais, mas com foco, para que cada um cuide de sua paz interna. Precisamos falar do lugar em que vivemos, não falar da teoria, mas da prática. Não tem mais aquela de só ler e sair falando. Ou se coloca em prática ou não funciona... Vivenciando tudo isso, você perceberá que reverbera natural-mente a sua luz, será como um vagalu-me. Leve a sua luz de vagalume para to-dos, que isso, naturalmente, se expandi-rá. Se estiver no escuro, não o critique, mas traga a luz, traga a paz, traga a sua forma de fazer melhor e a coloque em prática, mostrando como se faz.

CASA em Revista – Como o senhor vê a relação de poder e violência den-tro desse contexto?

Egberto – A relação de violência tem a ver um pouco com aquele eixo da mu-dança institucional. As instituições têm

“...Para a Fundação CASA, se abrir para essas iniciativas, é muito positivo...”

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estruturas ocultas que retroalimentam a violência; que nem percebemos. Mas toda essa sobrecarga é alienante: núme-ro de processos, número de audiências... Se bobear, fica-se nisso e não se conse-gue romper o círculo vicioso, não se consegue inovar. É muito pessoal o mo-do de se lidar com esse contexto. existe toda uma sinergia entre violência insti-tucional e individual, sem abrir mão das escolhas e das responsabilidades indivi-duais, mas sem deixar de jogar luz nas questões institucionais.

CASA em Revista – Como a Justiça Restaurativa vem dialogando com outros países?

Egberto – está espalhada pratica-mente em todo mundo. O Brasil tem se tornado uma referência de JR também. estamos criando um modelo próprio, se é que chegaremos ao modelo único. Por causa da diversidade e peculiarida-de de cada contexto, temos referenciais fortíssimos da JR no Canadá, Inglater-ra, estados Unidos e Brasil. Já partici-pamos de seminários internacionais e, recentemente, estivemos em Lima, no Peru, no I Congresso sobre JR Infanto Juvenil. Levamos uma delegação de ju-ízes para a Nova zelândia , que é o berço da JR. Hoje, já há um intercâmbio mui-to grande com outros países, mas tudo ainda é muito pouco, é frágil! Por incrí-vel que pareça, tudo está engatinhando. Ainda hoje, as iniciativas estão focadas na pessoa X ou Y: se ela sair da função, não há quem a substitua. estamos ainda mudando as instituições para criar esse encaixamento. Cada vez mais, criamos isso, mas nesse momento, digo que a JR e a Cultura de Paz são movimentos ine-vitáveis. Se isso levará dez ou cinquen-ta anos para ser uma realidade cultural, depende da nossa capacidade de criação e da eficácia em enraizar o mais rápido possível, porque as demandas de urgên-cia são muito grandes.

CASA em Revista – O senhor acre-

dita que a Fundação CASA, por meio de sua políticas, pode sensibilizar os adolescentes para vivenciarem a Cultura de Paz? Como?

Egberto – A Fundação CASA tem um grande desafio para implantação desse projeto por conta de sua estrutura, tra-dição e estigma que existe em torno de-la. A doutora Berenice Giannella tem muita consciência nesse sentido e está com o pé no chão. ela entrou em contato com várias pessoas que já implantaram a JR, teve contato com o pessoal de Por-

to Alegre, que já implementou na Fun-dação de Atendimento Socioeducativo (FASe), contato com palestrantes inter-nacionais, e tudo com muita cautela. É, sem dúvida, um grande desafio: mudar essa instituição. Pelo que sei, o projeto ainda está em fase de discussão, devem ocorrer discussões públicas, mas, em princípio, ocorrerá nas relações de con-flitos que existem entre adolescentes na própria instituição e, eventualmente, do adolescente na fase de execução da me-dida socioeducativa. O eixo de mudan-ça institucional é fundamental. No meu ponto de vista, o caso de implementação da JR na Fundação CASA, deve ser prepa-

...vivenciando tudo isso, você perceberá que reverbera naturalmente a sua luz, será como um vagalume...

rado com muita cautela, e isso tem de ser conversado com o deIJ (departamento das execuções da Infância e Juventude), em sintonia com o Tribunal de Justiça, a Corregedoria, o MP e a defensoria, pa-ra que todos juntos possam trazer suas contribuições, porque é uma ação inte-rinstitucional. A doutora Berenice está começando a dialogar com essas insti-tuições para viabilizar a implantação. Já tivemos experiências muito positivas, já tivemos movimentos mais avançados que retrocederam. entendemos que es-sas idas e vindas são fundamentais, mas acho que é assim: a Fundação CASA ga-nharia muito com a implantação da JR. É mais um instrumento como tantos ou-tros que podem contribuir para que ela consiga, cada vez mais, o grau de exce-lência que busca atingir.

CASA em Revista – Aponte quais os resultados atingidos pela Justiça Restaurativa desde o seu surgimento no Brasil, especificamente no Estado de São Paulo?

Egberto – O índice de acordo é muito alto. É muito difícil avaliar um projeto que apresenta muitos resultados indi-retos. Temos o cumprimento do acor-do. Mas o que mudou na vida daquela pessoa, da instituição? Como ocorreu o cumprimento do acordo? O que foi feito em decorrência de um conflito es-pecífico? O que diminuiu em termos de violência? É difícil avaliar. Mas, em ter-mos específicos, o grau de acordo é mui-to grande, próximo dos 90%. destes 85 a 90% de cumprimento dos mesmos e mais de 92% no grau de satisfação da pessoa envolvida. Cada vez mais pesso-as fazendo ações correlatas de Cultura de Paz junto ao projeto. Pensando, discu-tindo... Tudo isso vai reverberando em outras práticas. eu avalio tudo como muito positivo.

CASA em Revista – Uma palavra que resume a Justiça Restaurativa?

Egberto – encontro.

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artigo tÉcNico Juventude e cultura da Paz

Até então tudo bem. O rapaz de 17 anos, família humilde, solíci-to, afável e participativo, convi-

via com rara integração comunitária: era do corpo de baile do Centro de Tradições Gaúchas, CTG, frequentava um terreiro de umbanda, jogava futebol, mantinha bons vínculos familiares. Mas caiu em tenta-ção. A principal não foi querer o que não tinha, mas mostrar a outros jovens da Vi-la que também era macho. Porque, afinal, viver tão integradinho, incluindo religião e apresentações artísticas, não dava prova alguma de virilidade. Segundo os códigos da juventude local, roubar sim é que dava status. Arranjou arma e coragem e se lan-çou na aventura de tirar o carro de um ca-sal. Logo perseguido, preso, condenado, internado. Olhando de dentro do proces-so judicial, mais um roubo à mão armada. Mas uma lista com mais de 100 assinaturas em seu apoio, juntada aos autos do proces-so de execução da medida socioeducativa, pedia um segundo olhar para o caso.

Já era 2006 e agora tínhamos uma fer-ramenta que ajudava as pessoas a falar em outro contexto que não no inquisi-tivo ambiente da audiência judicial. O

{autor: Leoberto Brancher, juiz de direito}

Justiça Restaurativa, Cultura de Paz e Medidas Socioeducativas Reincidência zero

Nota de rodapé

1 - MCCOLD, Paul. Prática de Justiça Restaurativa: o estado desse campo.

Apostila do projeto Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de

Justiça Brasileiro – Ministério da Justiça (material traduzido para uso interno dos

projetos pilotos).

Círculo Familiar foi uma adaptação dos Círculos Restaurativos para aplicação de práticas restaurativas com adoles-centes em cumprimento de medidas socioeducativas. Nesse encontro, sem participação da vítima principal, o ado-lescente vai enfrentar cara a cara as con-sequências do seu ato, segundo o ponto de vista das pessoas do seu relaciona-mento afetivo e comunitário, que ex-pressam como se sentiram afetadas pe-los fatos. Segue-se à mesma a estrutura e os passos do procedimento restaurativo que, em síntese, devem contemplar1: (A) Reconhecimento da injustiça (fatos discuti-dos); (B) Compartilhamento e compreensão dos efeitos prejudiciais (sentimentos expres-sados); (C) Acordo sobre termos de repara-ção (reparação concordada); (D) Atingir compreensão sobre o comportamento futuro (reforma implementada).

Realizado com a participação da famí-lia, amigos e representantes da rede co-munitária (CTG, terreiro, Associação de Moradores), o círculo proporcionou ao jo-vem a oportunidade de reencontrar-se e reintegrar-se com o coletivo das suas pes-soas queridas, ver sua conduta espelhada nos olhos deles, lembrar-se de quem sem-pre foi e reafirmar a sua verdadeira iden-tidade, abalada pelo episódio. Passados alguns anos, ele comenta a experiência:

“O que me vem neste momento é: quem vai olhar além de um ato infracional come-tido por um adolescente? Creio eu que a JR tem esse dom, e é essa responsabilidade que me deixa admirado por esse trabalho. Como

tratar de um adolescente com respeito, com interesse pelo seu ato, para tentar entender a sua atitude em algum momento difícil de sua vida? A JR me respeitou, levou o meu ca-so a fundo e me entendeu. A grande verda-de é que a outra justiça não entende ou não sabe que ninguém nasce ladrão, homicida, etc. Se houvesse mais JRs, muitos adolescen-tes já teriam achado o verdadeiro caminho e compreendido que tudo é uma fase em nossa vida. Boa ou ruim, é só uma fase.” (A.R.A., 22 anos, ex-interno da FASe).

O índice de reincidência, no caso, foi zero.

Justiça de Guerra e Cultura de Paz

Uma das primeiras perguntas que quem vê de fora – principalmente a im-prensa – costuma fazer sobre a Justiça Restaurativa (JR) é se ela reduz a reinci-dência. Falsa questão, à qual podemos, ao final, responder que talvez sim, mas que os fatores determinantes da reinci-dência são tão complexos que não é com isso que estamos preocupados agora.

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A propósito, um monitoramento fei-to nos primeiros três anos de aplicação de JR em Porto Alegre2 confirmou uma redução de 23% na reincidência3 daque-les que participaram dos círculos, com-parados com um grupo de controle. Mas resultados podem ter sua importância relativizada dentro de um processo de aprendizagem institucional eminen-temente qualitativo e do qual resulta enorme satisfação para as pessoas. Na mesma pesquisa, 90% dos infratores e 95% das vítimas relataram estar satis-feitas após o procedimento, embora ape-nas 16,8% das vítimas tenham aceitado o convite para participar. Mas a diferen-ça não está nos números. está na quali-dade da experiência.

E o que muda nessa experiência?

• Primeiro, vamos tomar em conside-ração que existe uma experiência. Por-que, ao longo de pelo menos os últimos três séculos, juristas discutem os malefí-cios do sistema penal, via de regra, sem que suas críticas venham acompanha-das da proposição de saídas. Problema-

Notas de rodapé

2 - AGUINSKY, Beatriz. PROJETO JUSTIÇA PARA O SÉCULO 21:

Relatório final de atividades SEDH - Ano 2007. NUPEDH - FSS/PUC-RS.

3 - Por razões práticas, o monitoramento não considerou o

conceito técnico-jurídico de reincidência, que implica em nova infração posterior a uma condenação

transitada em julgado, mas o conceito de reiteração estabelecido pelo ECA,

mais aberto e por consequencia muito mais rigoroso, que abrange qualquer

ingresso ou reingresso no sistema de justiça, independentemente das

soluções adotadas. Se adotado o conceito jurídico, esse índice seria com certeza muito mais favorável.

Nota de rodapé

4 - ZHER, Howard. Pequeno Livro da

Justiça Restaurativa, Ed. Palas Athena,

SP, no prelo.

tiza-se tudo, soluciona-se nada. Já em matéria de Justiça Restaurativa os conceitos nascem da crítica, mas não ficam agarrados a ela, pois logo vão transformar-se em procedimentos práticos.

• Segundo, vamos tomar em consideração que existe uma personagem invisível no sistema, exatamente aquela que suporta a dor e os prejuízos da infração. A Justiça Res-taurativa ocupa-se da escuta das necessidades da vítima, cujo lugar no processo penal fora relegado ao de mera testemunha de acusação. Repaginar a justiça criminal a partir do lugar ocupado pela vítima não é apenas uma questão de justiça para com os direitos humanos de quem foi prejudicado pela infração, mas também permite respostas de concretude sem comparação às abstrações jurídicas e aos clichês morais em torno dos quais costuma mover-se a retórica culpabilizante da justiça tradicional.

• Terceiro, temos um deslocamento do foco da infração à lei para a violação de pessoas e relacionamentos, que inova o sentido de responsabilidade. Na responsa-bilidade penal, essencialmente passiva, responder pelo ato implica submeter-se ao sofrimento do castigo. Já a responsabilização restaurativa implica assumir compro-missos positivos com relação às consequências da infração: sempre há algo a ser fei-to para restaurar o laço social rompido. A reparação do dano toma o lugar da sanção aflitiva. esse é um efeito decisivo da JR com relação ao infrator: a ativação do sentido de responsabilidade. essa visão reconhece e respeita a autonomia do infrator (im-plícito: autonomia de algum modo exercitada no que se refere à prática da infração) e promove seu empoderamento (implícito: se você mostrou ter o poder de assaltar, certamente há de ter coragem para assumir o plano restaurativo). Nos implícitos, o amálgama da inovação: a mesma força que moveu o crime é acolhida, celebrada em sua legitimidade universal (quem não legitimaria autonomia e empoderamento?), e então convidada a expressar-se mediante um novo plano estratégico, agora, ao contrário de antes, legítimo.

• Quarto, nós teremos o envolvimento da comunidade, que é chamada a interagir num processo de facilitação do encontro, compartilhando percepções e responsa-bilidades. A infração é um fenômeno complexo, impenetrável às práticas da justiça tradicional, limitada pela polarização da relação adversarial entre infrator/vítima, em que a culpa é essencialmente subjetiva e, portanto, focada no indivíduo. A JR permite abordar os múltiplos fatores causais do ato, assim como a diversidade das consequências que dele emergem com relação a diferentes sujeitos atingidos, inclu-sive o próprio infrator. A multiplicidade de causas e consequências implica, natu-ralmente, no reconhecimento do concurso de múltiplos atores e, portanto, induz a uma dinâmica de corresponsabilização.

Para o Prof. Howard zher4, para quem podemos mudar as lentes pelas quais olha-mos (e, consequentemente, o modo pelo qual fazemos) a justiça, esse conjunto de mudanças pode ser sintetizado nas perguntas fundamentais que costumam ser fei-tas perante um e outro sistema:

A JUSTIÇA RETRIBUTIVA A JUSTIÇA RESTAURATIVA

pergunta: passará a perguntar: Que lei foi violada? Quem foi prejudicado?

Quem foi o culpado? Quais as suas necessidades?

O que ele merece? Quem deverá satisfazer?

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Não apenas o encontro entre envolvidos – faceta mais em-blemática das práticas restaurativas – mas, sobretudo, o foco nas consequências da infração, nas necessidades das pessoas prejudicadas e na reparação dos danos representam a chave para a releitura do sistema rumo a um processo de transfor-mação cultural sem precedentes.

Como nos desafia a perceber david Adams: “A transforma-ção da sociedade de uma cultura da guerra para uma cultura de paz é talvez mais radical e abrangente que qualquer mudança anterior da história humana5. Por maior que seja o nosso esforço em con-trário, temos que admitir que as práticas de justiça que vigo-ram nos nossos fóruns, presídios e entidades de internação são herdeiras de uma cultura persecutória e punitiva, que tende a promover experiências negativas relacionadas à confronta-ção, perseguição, exclusão, hostilidade, rivalidade, ressenti-mento, mentira. emoções perturbadoras, causadoras de mais sofrimento, enfim. Típicos traços de uma cultura de guerra. O desafio é desarticular o funcionamento já automatizado e inercial dessas dinâmicas através de uma reflexão crítica con-sistente e de estratégias operacionais capazes de introduzir dinâmicas pacificadoras baseadas em valores humanos posi-tivos como respeito, honestidade, compreensão, empodera-mento. e, sobretudo, promover alteridade e responsabilidade, valores estruturantes da ética restaurativa.

O quadro a seguir sintetiza alguns elementos críticos em torno dos quais operam esses diferentes modos de fazer jus-tiça, e em torno dos quais devemos centrar nossas reflexões e projetos de mudança:

JUSTIÇA TRADICIONAL JUSTIÇA RESTAURATIVACulpa ResponsabilidadePerseguição encontroImposição diálogoexpiação ArrependimentoCastigo Reparação do danoCoerção Coesão

Justiça Juvenil RestaurativaAo longo das três últimas décadas – período que corresponde

ao seu surgimento e difusão pelo mundo – a Justiça Restaurati-va tem encontrado na Justiça Juvenil o terreno mais propício ao seu desenvolvimento. Isso é devido à maior facilidade com

que vítimas e sociedade se dispõem a tratar com indulgência os infratores mais jovens e também à flexibilidade das legislações – que permitem dispensar o processo judicial ou substituir as medidas aplicadas por outras, a qualquer tempo. Além de ser tra-dicional, no setor, a atuação interprofissional. Mas esse contexto circunstancial representa um risco e uma oportunidade. Porque a flexibilização do marco jurídico, a atitude compassiva e a abor-dagem interdisciplinar tanto podem abrir um espaço fértil para a democratização das práticas da justiça como podem reabrir espaço para as confusões conceituais, desmandos e arbitrarie-dades das práticas discricionárias remanescentes da cultura de controle e tutela legada pela tradição menorista.

Como precaução contra esses riscos, antes de se avançar na novidade Restaurativa, é preciso consolidar nossa compreen-são a respeito da natureza da jurisdição socioeducativa, reco-nhecendo seu conteúdo potencialmente aflitivo e, portanto, penal. do contrário, podemos colocar em risco uma das mais importantes conquistas representadas pela Convenção da ONU sobre os direitos da Criança: as garantias oferecidas para a prevenção dos excessos e das violações inerentes ao exercício

Nota de rodapé

6 - MCCOLD, Paul; WACHTEL, Ted. Uma teoria de Justiça Restaurativa.

In: CONGRESSO MUNDIAL DE CRIMINOLOGIA, 13., 2003, Rio de Janeiro. [Anais...]. Disponível em:

<http://www.reajustice.org/

Reunião de um Circulo Restaurativo no Rio Grande do Sul (RS)

Nota de rodapé

5 - ADAMS, David. História dos primórdios da cultura da paz: memórias pessoais. 2003.

Disponível em www.comitepaz.org.br.

dez.10 | casa em revista | 27

da força coercitiva do estado na sua função de controle social. Segundo Paul McCold e Ted Wachtel6, um sistema de controle se estrutura em torno de dois vetores, formando “Janelas de disciplina Social”. Cada janela define o grau de organização e estabilidade de uma comunidade segundo a interação de dois “continuums”, representados graficamente como eixos de um sistema de coordenadas, que os autores designam por “con-trole” (disciplina, limites) e “apoio” (encorajamento, susten-tação). da combinação entre essas forças, esquematicamen-te reduzidas a quatro quadrantes, emergem contextos sociais marcados por quatro formas de disciplina social: negligente, punitiva, permissiva e restaurativa.

Assim, se uma comunidade exerce baixo controle e ofere-ce baixo apoio, o resultado será uma disciplina social negligen-te. Numa disciplina negligente, “NADA é feito com o infrator.” Quando se exerce alto controle e oferece baixo apoio, o resul-tado será uma disciplina social punitiva. Numa disciplina pu-nitiva, “Faz-se de tudo AO (para o) infrator”. Quando, ao contrá-rio, se exerce baixo controle, mas se oferece alto apoio, tem-se uma disciplina social permissiva. Numa disciplina permissi-va, “Faz-se de tudo PELO infrator”. Quando, porém, ocorre um equilíbrio entre ambos os vetores e se exerce alto nível de con-trole ao mesmo tempo em que se oferece alto nível de apoio, o resultado será uma disciplina social restaurativa. Numa disci-plina restaurativa, “Tudo é feito COM o infrator”.

Ao insistir excessivamente na prioridade ao eixo “apoio”, ou seja, nos objetivos predominantemente pedagógicos, as-sistenciais ou terapêuticos da medida socioeducativa, muitas vezes, nos descuidamos de que ela contém um elemento cen-tral, representado pela força coercitiva do estado. O impasse entre assumir a realidade dos efeitos perversos da operação do monopólio da violência estatal, representado pela imposi-ção das sanções de natureza penal (sempre constritivas, ainda

que travestidas por denominações diversas), tem sido a maior dificuldade e motivo dos grandes desastres na gestão desse sis-tema – principalmente na área da privação da liberdade: que-rer afirmar apenas uma dessas componentes, abstraindo ou ocultando a atuação inexorável da outra, é como fazer voar um pássaro com uma asa só.

É compreensível que, diante de todas as mazelas produzidas pelo sistema penal dos adultos, muitos prefiram nem sequer falar nesse componente relacionado ao vetor “controle”. A in-tenção, em si benéfica, é evitar os efeitos perversos da visão punitiva. Mas a explicitação desse vetor será saudável, pois sua operação consciente permitirá contrapor a ele os freios e contrapesos das garantias legais. Porque é exatamente da sua ocultação que se abrem as frestas para as mais perversas e irre-fletidas arbitrariedades.

O desafio desse avanço reside em explorar formas de exer-cer força (ou seja, exercer controle), sem que ela se deteriore, abusivamente, em violência. Se a força for exercida de forma vertical e impositiva, há de cercar-se dos mecanismos proces-suais garantistas. Mas o exercício de uma força que não seja potencial ou materialmente violenta também é possível, e ocorre na medida em que seja possível substituir o exercício do controle por coerção por mecanismos capazes de promo-ver maior coesão social. essa é a força que as práticas restaura-tivas desencadeiam, são elas que podem fundamentar um no-vo princípio de autoridade e, com ele, uma nova perspectiva de esperança para o sistema de Justiça Juvenil.

Tirando o capuzUm dos primeiros círculos restaurativos realizados em Por-

to Alegre tratava de lesões corporais praticadas por um ado-lescente, que desde a infância vivia abrigado, contra uma edu-cadora da instituição. depois de começar o encontro, numa postura de resistência, sempre com a cabeça abaixada e envol-ta pelo capuz, ele se descontraiu e conseguiu participar. e lá pelas tantas comentou: “eu não queria falar porque achei que ia ser como sempre, porque as técnicas só me chamam para falar de mim. Mas hoje a reunião não foi para falar de mim, foi para falar comigo.” A expressão foi um presente, uma chave. Porque mudar o nosso “falar sobre”, para o “falar com” signifi-ca mudar a postura vertical, impositiva, típica de um sistema coercitivo, para uma postura horizontal, dialógica, capaz de promover maior coesão social, sem abrir mão do princípio de autoridade e sem prejuízo das suas funções interditórias, tão indispensáveis para a estabilidade social quanto para o desen-volvimento emocional dos sujeitos.

Uma mudança que nos desafia e que pode ser uma das maio-res contribuições da Justiça Restaurativa na construção da Cultura de Paz.

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artigo tÉcNico

Sessenta anos depois do conflito que levou à fundação das Nações Unidas e da Organização das Na-

ções Unidas para a educação, a Ciência e a Cultura (UNeSCO), o mundo se en-contra novamente em posição de trans-formar a cultura de violência, que é pre-dominante, em cultura de paz. Hoje, o desafio consiste em encontrar os meios de mudar definitivamente atitudes, va-lores e comportamentos, a fim de pro-mover a paz, a justiça social, a seguran-ça e a solução não violenta de conflitos.

Para alcançarmos a cultura de paz, é necessário que exista cooperação, em todos os níveis e países, e coordenação entre organizações internacionais com competência e recursos indispensáveis que possam ajudar os indivíduos a aju-darem a si mesmos.

esse movimento multidimensional re-quer o apoio ativo e a participação contí-nua de uma rede sólida de indivíduos e de organizações, governamentais e não go-vernamentais, que atuem em prol da paz.

A guerra fria chegou ao fim, mas ainda subsistem na atualidade conflitos arma-dos, lutas civis, que sacrificam vidas hu-manas em mais de 40 países. Outras fon-tes de tensão têm sua origem na deterio-ração do meio ambiente, no excesso de população, na competição por recursos de água doce em vias de esgotamento, na

A construção da cultura de paz

{autora: Marlova Jovchelovitch Noleto *}

desnutrição e na flagrante desigualdade econômica e social entre os países, fruto da concentração de renda e de modelos econômicos excludentes.

Substituir a secular cultura de guerra por uma cultura de paz requer um esfor-ço educativo prolongado para modifi-car as reações à adversidade e construir um desenvolvimento sustentável que possa suprimir as causas de conflito.

No campo do desenvolvimento eco-nômico, é preciso passar da economia competitiva de mercado e de um mode-lo excludente e concentrador de renda para um modelo de desenvolvimento mútuo e sustentável, sem o qual é im-possível alcançar uma paz duradoura.

É preciso revisar o conceito de se ado-tar modelos de desenvolvimento de ou-tros países, a fim de se respeitar cada pa-ís, suas tradições e diversidade, incorpo-rando uma dimensão humana social e de participação que, necessariamente, deve significar democracia.

e falar em cultura de paz é falar dos va-lores essenciais à vida democrática. Va-lores como igualdade, respeito aos di-reitos humanos, respeito à diversidade cultural, justiça, liberdade, tolerância, diálogo, reconciliação, solidariedade, desenvolvimento e justiça social.

Nas palavras de Irina Bokova, direto-ra-geral da UNeSCO:

Juventude e cultura da Paz

“tenho a convicção de que todos estamos naturalmente ligados por nossa condição de seres humanos. Que todos temos os mesmos sonhos de prosperidade e felicidade. E todos sabemos muito bem que esses sonhos só se po-dem realizar em um clima de paz. A diver-sidade cultural e o diálogo entre as culturas contribuem para o surgimento de um novo humanismo, no qual se reconciliam o univer-sal e o local, e mediante o qual reaprendemos a construir o mundo... Respeito aos direitos fundamentais, à dignidade de cada ser hu-mano, à diversidade, de uma humanidade solidária e responsável... esta é a mensagem da UNESCO, cuja função consiste em dar um novo impulso à solidariedade, congre-gando e despertando consciências.”

Na busca e disseminação da paz, a UNeSCO parte do princípio de que a violência persiste com uma nova fa-ce. Apesar de as formas tradicionais de conflito e guerra terem diminuído, os orçamentos para segurança da maioria dos países permanecem elevados, es-pecialmente para o desenvolvimento de armamentos inteligentes de alta tec-nologia, enquanto que os orçamentos destinados a políticas e programas de desenvolvimento social são constante-mente reduzidos.

em face desse inaceitável estado dos fatos, devemos nos mobilizar em favor da paz e da não violência, as quais de-

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vem tornar-se realidade cotidiana para todos. O preâmbulo da Constituição da UNeSCO já indica claramente por onde devemos começar: “Como as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é na mente dos homens que as defesas da paz devem ser construídas”.

Tal pensamento é fundado em uma análise acurada dos processos pelos quais a paz e a guerra podem ser alcan-çadas e refere-se ao ideal democrático de “que a paz baseada exclusivamente nos arranjos políticos e econômicos dos governos não seria uma paz que pudes-se assegurar o apoio sincero, unânime e duradouro dos povos do mundo, e que a paz, para que perdure, deve, por esse motivo, ser fundada sobre a solidarie-dade moral e intelectual da humanida-de”. A UNeSCO assim entende e, mes-mo trabalhando em uma variedade de campos de atuação, tem como missão exclusiva a construção da paz. e, em 1995, os estados-membros da UNeSCO decidiram que a organização deveria canalizar todos os seus esforços e sua energia em direção à cultura de paz. diz sua Constituição:

“O propósito da Organização é con-tribuir para a paz e a segurança, promo-vendo cooperação entre as nações por meio da educação, da ciência e da cultu-ra, visando favorecer o respeito univer-sal à justiça, ao estado de direito e aos di-reitos humanos e liberdades fundamen-tais afirmados aos povos do mundo”.

A cultura de paz está intrinsecamen-te relacionada à prevenção e à resolução não violenta dos conflitos. É uma cultu-ra baseada em tolerância, solidariedade e compartilhamento em base cotidiana, uma cultura que respeita todos os direi-tos individuais, que assegura e susten-ta a liberdade de opinião e que se empe-nha em prevenir conflitos, resolvendo-os em suas fontes, que englobam novas ameaças não militares para a paz e para a segurança, como a exclusão, a pobre-za extrema e a degradação ambiental. A cultura de paz procura resolver os pro-blemas por meio do diálogo, da negocia-ção e da mediação, de forma a tornar a guerra e a violência inviáveis.

Mas como fazer da cultura de paz uma realidade concreta e duradoura? Como fortalecer a consciência sobre a urgência

de se promover a transição de uma cul-tura de guerra para uma cultura da paz? Como encontrar os caminhos e meios para alterar os valores, atitudes, crenças e comportamentos do tempo presente?

No mundo interativo, tudo é uma questão de conscientização, mobiliza-ção, educação, prevenção e informa-ção de todos os níveis sociais em todos os países. A elaboração e o estabeleci-mento de uma cultura de paz requerem profunda participação de todos, tendo como pano de fundo de qualquer mobi-lização a tolerância, a democracia e os direitos humanos, em outras palavras, a observância desses direitos e o respeito pelo próximo – valores “sagrados” para a cultura de paz. em todo esse processo, cabe aos cidadãos organizarem-se e as-sumirem sua parcela de responsabili-dade, participando inteiramente no de-senvolvimento de suas sociedades; aos países cabe a cooperação multilateral; e às organizações internacionais, a coor-denação de suas diferentes ações.

A cultura de paz é uma iniciativa de longo prazo que deve levar em conta os contextos histórico, político, econômi-

Atividades comunitárias e respeito aos direitos fundamentais: caminhos para a cultura de paz

30 | casa em revista | dez.10

co, social e cultural de cada ser humano e sociedade. É necessário aprendê-la, de-senvolvê-la e colocá-la em prática no dia a dia familiar, regional ou nacional. É um processo que, sem dúvida, tem um come-ço, mas, nunca pode ter um fim. A paz não é um processo constante, cotidiano, passivo. A humanidade deve esforçar-se para promovê-la e administrá-la.

Para a UNeSCO, paz não é meramente ausência de guerra, e, por assim enten-der, promove esforços em favor da paz, caracterizando-se fundamentalmente por uma incessante luta pela democra-tização dos conhecimentos produzi-dos pela humanidade. O seu campo de abrangência, compreendendo as áreas de educação; educação para a Saúde; Ciência, Meio Ambiente e Tecnologia; Cultura; desenvolvimento Social, di-reitos Humanos e Combate à discri-minação Racial; Inclusão digital e Ju-ventude, indica que por intermédio da generalização do conhecimento a hu-manidade poderá atingir padrões de convivência humana e de solidarieda-de. esta concepção e perspectiva estão na origem dos atos constitutivos da Or-ganização, datados de 1946, logo após a Segunda Guerra Mundial.

essa missão não poderia ser cumprida sem que se colocasse como pressupos-to orientador da política dos estados-membros que integram a Organização a universalização do acesso de todos ao conhecimento disponível.

desse modo, quando a UNeSCO in-veste hoje em uma cultura de paz, a ân-cora dessa busca é a educação como um direito intimamente relacionado com a conquista da paz. É também por in-termédio da educação que se formam mentalidades mais democráticas. A de-claração Universal dos direitos Huma-nos, assinada em 1948, em seu artigo 26, estabelece que toda pessoa tem direito à educação, cujo objetivo é o pleno desen-volvimento da personalidade. Tal direi-to colabora para o fortalecimento do res-peito ao conjunto de diversos direitos humanos e das liberdades fundamen-tais. A educação voltada para a cultura de paz inclui a promoção da compre-ensão, da tolerância, da solidariedade e do respeito às identidades nacionais,

raciais, religiosas, por gênero e geração, entre outras, enfatizando a importância da diversidade cultural.

A UNeSCO esteve sempre atenta a essa orientação, procurando, de forma contínua, marcar suas políticas educa-tivas pelo respeito ao ser humano. Fun-damentam essa postura a enorme desi-gualdade entre as nações, os elevados índices de violência e a persistência de diferentes formas de desigualdades so-ciais e discriminação. A idéia de demo-cratização de conhecimentos defendida pela UNeSCO está vinculada à emanci-pação das pessoas e ao desenvolvimento sustentável dos diferentes povos e cul-turas em todo o mundo.

É impossível falar em construção de uma cultura de paz sem se falar também em educação. No sentido mais amplo do termo, a educação é o componente cru-cial da cultura de paz: uma educação que torne cada cidadão sensível ao outro e que imponha um senso de responsabilidade com respeito aos direitos e às liberdades.

Um de nossos desafios consiste em re-pensar a educação e a cultura para este século, apontando que ambas podem dar respostas à inquietação pela univer-salização e democratização do conhe-cimento. Para dar resposta à esperança que todos temos de uma nova educação para este milênio, a Comissão presidida por J. delors1 ressalta que a educação deve ser organizada com base em qua-tro princípios pilares do conhecimento que são, respectivamente, Aprender a Conhecer, Aprender a Viver Juntos, Aprender a Fazer e Aprender a Ser. esses caminhos, propostos pelo Relató-rio delors, a rigor, possuem um imbrica-mento lógico, de forma que não é possí-vel pensá-los isoladamente. Na prática, eles interagem, são interdependentes e se fundamentam numa concepção de totalidade dialética do sujeito. Os pila-res do conhecimento foram caracteri-zados pelo Relatório delors da seguinte forma (delors, 1998: 90):

Aprender a Conhecer: trata-se da-quele tipo de aprendizagem objetiva, sobretudo o domínio dos instrumen-tos do conhecimento. Como o conhe-cimento é múltiplo e evolui em ritmo incessante, torna-se cada vez mais inú-

til tentar conhecer tudo. Além disso, os tempos presentes demandam uma cul-tura geral, cuja aquisição poderá ser faci-litada pela apropriação de uma metodo-logia do aprender. Como disse Laurent Schwartz2, um espírito verdadeiramente formado, hoje em dia, tem necessidade de uma cultura geral vasta e da possibi-lidade de trabalhar em profundidade de-terminado número de assuntos. deve-se, do princípio ao fim do ensino, cultivar simultaneamente essas duas tendências. daí a importância dos primeiros anos da educação que, se bem-sucedidos, podem transmitir às pessoas a força e as bases que façam com que continuem a apren-der ao longo de toda a vida.

Aprender a Fazer: aprender a conhe-cer e aprender a fazer são, em larga me-dida, indissociáveis. O aprender a fazer está mais ligado à educação profissio-nal. Todavia, devido às transformações que se operam no mundo do trabalho, o aprender a fazer não pode continuar a ter o mesmo significado de preparar uma determinada pessoa para uma ta-refa específica. O avanço tecnológico es-tá modificando as qualificações. As ta-refas puramente físicas estão sendo gra-dualmente substituídas por tarefas de produção mais intelectuais, mais men-

Notas de rodapé

1 - A Comissão Internacional de Educação para o século XXI,

presidida por Jacques Delors, foi formalmente estabelecida no início de 1993 com o objetivo

de refletir sobre os desafios que a educação enfrentaria nos anos subsequentes. Produziu o chamado Relatório Delors, com

sugestões e recomendações que serviriam como uma

agenda para políticas públicas, atingindo autoridades nos níveis mais elevados. DELORS, J. et al.

(Org.). Educação: um tesouro a descobrir. 8ª ed. São Paulo:

UNESCO, Cortez, 2003.

2 - SCHWARTZ, L. L’enseignement Scientifique. Paris: Flamarion, 1993. Apud

DELORS, J. (2003) Op. cit. p. 91.

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tais, como o comando de máquinas, por exemplo. À medida que as máquinas se tornam mais “inteligentes”, o trabalho se “desmaterializa”. Além da competên-cia técnica e profissional, a disposição para o trabalho em equipe, o gosto pe-lo risco e a capacidade de tomar iniciati-vas constituem fatores importantes no mundo do trabalho. Acrescente-se ain-da que a criação do futuro exige uma po-livalência para que o desenvolvimento da capacidade de aprender seja vital.

Aprender a Viver Juntos: trata-se de um dos maiores desafios da educação para o século XXI. Como diz o Relatório delors, a história humana sempre foi conflituosa. Há, no entanto, elementos novos que acentuam o perigo e deixam à vista o extraordinário potencial de au-todestruição criado pela humanidade no decorrer do século XX. Será possível conceber uma educação capaz de evitar os conflitos ou de resolvê-los de manei-ra pacífica, desenvolvendo o conheci-mento dos outros, das suas culturas, da sua espiritualidade? Observem o qua-dro atual de violência na escola. Como combatê-la? A tarefa é árdua, diz o rela-tório, porque os seres humanos tendem a supervalorizar suas qualidades e as do grupo a que pertencem e a alimentar preconceitos desfavoráveis em relação aos outros. da mesma forma, o clima de elevada competição que se apoderou dos países agrava a tensão entre os mais favorecidos e os pobres. A própria edu-cação para a competitividade tem con-tribuído para aumentar esse clima de tensão em razão de uma má interpreta-ção da idéia de emulação. Para reduzir o risco, a educação deve utilizar duas vias complementares: a descoberta progres-siva do outro e o seu reconhecimento e a participação em projetos comuns (edu-cação para a solidariedade).

Aprender a Ser: o Relatório delors não apenas reafirma uma das principais linhas e princípios do Relatório Faure3 como amplia a importância desse pos-tulado. Todo ser humano deve ser pre-parado para a autonomia intelectual e para uma visão crítica da vida, de modo a poder formular seus próprios juízos de valor, desenvolver a capacidade de dis-cernimento e de como agir em diferen-

tes circunstâncias da vida. A educação precisa fornecer a todos forças e refe-rências intelectuais que lhes permitam conhecer o mundo que os rodeia e agir como atores responsáveis e justos. Pa-ra tanto, é imprescindível uma concep-ção de desenvolvimento humano que tenha por objetivo a realização plena das pessoas, do nascimento até a mor-te, definindo-se como um processo dia-lético que começa pelo conhecimento de si mesmo para se abrir, em seguida, à relação com o outro. Nesse sentido, a educação é, antes de tudo, uma viagem interior, cujas etapas correspondem às da maturação contínua da personalida-de. É urgente que essa concepção de edu-cação seja trabalhada por todos, pela es-cola, pela família e pela sociedade civil, que, juntos, disponham-se a explorar e a descobrir as ricas potencialidades que se escondem em todas as pessoas.

Com base nesses quatro pilares, pode-mos pensar numa educação que efetiva-mente contribua para a construção de uma cultura de paz. Além deles, o plura-lismo cultural é outra força diretriz para a paz e a solidariedade internacionais. A paz não pressupõe de forma alguma ho-mogeneidade. ela deve estar baseada no pluralismo e no desenvolvimento sus-tentável. de acordo com essa aborda-gem positiva da diversidade cultural, a sociedade civil (ONGs, círculos econô-micos, redes de associações e comunida-des) deve agir tendo em mente que cada país e cada sociedade devem planejar su-as estratégias de acordo com suas carac-terísticas específicas.

O Movimento Mundial pela Cultura de Paz deve então ser “uma grande alian-ça de movimentos existentes”, um pro-cesso que unifique todos aqueles que já trabalharam e que estão trabalhando a favor dessa transformação fundamental de nossas sociedades. O objetivo é per-mitir que toda pessoa ou organização contribua para esse processo de trans-formação de uma cultura de violência para uma cultura de paz, em termos de valores, atitudes e comportamento in-dividual, bem como em termos de estru-turas e funcionamentos institucionais.

em cada país, em cada cidade, em cada bairro, a cultura de paz pode ser institu-

ída de diferentes maneiras, trabalhando para erradicar as profundas causas cul-turais da violência e da guerra, tais co-mo a pobreza, a exclusão, a ignorância ou a exploração.

Os diversos grupos e organizações so-ciais, ao trabalharem ao nível local e em domínios específicos (como a proteção ambiental ou a promoção da diversida-de cultural), nem sempre têm consciên-cia de que estão ajudando a estabelecer a cultura de paz em escala global. Fazen-do parte do movimento mundial, estes grupos evitam o isolamento e ganham maior reconhecimento de suas ações, o que estimula outros indivíduos a se jun-tarem a eles.

O Programa da Cultura de Paz da UNeSCO, criado no ano 2000, está vol-tado não apenas para a prevenção das guerras, que, no Brasil, estão distantes de nosso cotidiano. Mas, se pensamos em “guerras anônimas”, travadas na vio-lência, somos umas das maiores vítimas do planeta. No caso brasileiro, a cultura de paz se aplica à prevenção e ao comba-te a todo tipo de violência, exploração, crueldade, desigualdade e opressão. A UNeSCO vem trabalhando para a supe-ração desse quadro.

exemplo da atuação da organização nesse sentido é o Programa Abrindo es-paços: educação e Cultura para a Paz. No ano 2000, no conjunto de ações co-memorativas ao Ano Internacional para uma Cultura de Paz, a UNeSCO lançou o Programa Abrindo espaços, propondo uma estratégia de inclusão social com a abertura das escolas públicas nos fins de semana para a prática de atividades de esporte, arte, cultura e lazer, numa pers-pectiva de disseminação de uma cultura de paz e não violência e de promoção da cidadania e do desenvolvimento huma-no e social de adolescentes, jovens e suas comunidades, sobretudo aqueles em si-tuação de vulnerabilidade social.

Nota de rodapé

3 - Relatório coordenado por Edgar

Faure em 1972.

32 | casa em revista | dez.10

O Programa Abrindo espaços nasceu na UNeSCO como uma resposta aos da-dos de pesquisa sobre a juventude bra-sileira que indicavam os jovens, entre os grupos sociais, como os mais vulne-ráveis, apresentando taxas elevadas de evasão escolar, desemprego, subempre-go, com um aumento significativo de crimes violentos, praticados por ou con-tra jovens, nas duas últimas décadas, es-pecialmente durante os fins de semana.

Ao mesmo tempo em que se focaliza a educação, que procura ter suas refe-rências no Relatório delors, o programa tem como alvo a disseminação de valo-res como igualdade, respeito aos direi-tos humanos, respeito à diversidade cul-tural, tolerância, diálogo, reconciliação e solidariedade; o combate à exclusão social; o incentivo à participação cul-tural; o cuidado com o meio ambiente, entre outros, contribuindo tanto para a diminuição da violência e da vulnerabi-lidade socioeconômica como para a pro-moção da cultura de paz e do desenvol-vimento social.

O programa tem como focos o jovem, a escola e a comunidade. A natureza do tra-balho é educativa e transformadora, pre-tendendo modificar as relações jovem-es-cola, jovem-jovem e jovem-comunidade, oferecendo-lhes novas oportunidades de inclusão sociocultural. Além de integrar jovens e comunidades, a oferta de ativida-des esportivas, artísticas e culturais ajuda na socialização e contribui para a recons-trução da cidadania.

O programa cristaliza um dos elemen-tos definidores da vida social: a partici-pação. Os jovens manifestam vontade por estabelecer uma relação mais próxi-ma com a escola de perfil mais atuante e presente em suas vidas, expressando o desejo de serem sujeitos desse processo.

Outra idéia que norteou a concepção do programa é o envolvimento das co-munidades locais. Hoje, reconhece-se amplamente o papel imprescindível desempenhado por agentes da socieda-de civil4 no nível local .

O Programa Abrindo espaços tam-bém beneficia crianças e adultos, ofe-recendo alternativas de lazer, diversão e participação em diferentes atividades, nos fins de semana, e tem se constituído

em um espaço alternativo para atrair os jovens, colaborando para a reversão do quadro de violência e a construção de espaços de cidadania, baseando-se, tam-bém, em experiências bem-sucedidas nos estados Unidos, França, espanha e em outros países onde o trabalho com jovens nas dimensões artística, cultural e esportiva tem-se constituído em for-ma alternativa ao envolvimento em si-tuações de violências.

No Abrindo espaços, a escola é reco-nhecida como lócus potencialmente privilegiado para o investimento em um processo de mudança de atitude e de comportamento dos jovens expos-tos, ativa ou passivamente, à violência (Abramovay et al, 2001). Parte-se do pressuposto de que a instituição esco-lar deve ser detentora de representativi-dade e respeitabilidade perante jovens e comunidades pela possibilidade de se constituir em espaço de referência e per-tencimento, tendo em vista a posição so-cial que ocupa como núcleo organizado legítimo; pelo fato de ser local de acesso a todos os membros da comunidade, in-dependente de estarem formalmente a ela vinculados; pela condição potencial que tem de se configurar como via in-formal de aproximação entre juventu-de, família e comunidade.

O programa é operacionalizado com a abertura de escolas nos fins de sema-na (sábados e domingos) para a realiza-ção de oficinas e ações diversas, selecio-nadas a partir de consulta à juventude local e mapeamento prévio de talentos nas escolas e nas comunidades.

As oficinas são ministradas por vo-luntários, professores, supervisores, membros da comunidade, ONGs parcei-ras do programa, evidenciando a vonta-de coletiva de mudança da realidade em que estão inseridos.

A importância das iniciativas do pro-grama deve-se ao fato de se acreditar que a solução para os problemas de exclusão social e de violência que os jovens en-frentam passa também por criar espaços privilegiados para exercício e desenvol-vimento de lideranças juvenis por meio da participação e da cooperação institu-cional para tal exercício, via disposição de recursos e conhecimentos vários, sem

imposição de saberes e hierarquias.Por meio de iniciativas dessa natureza

e, em particular, pela definição do pro-grama como política pública é possível influenciar outras políticas e contribuir para mudanças positivas, tanto nas vá-rias juventudes como na escola.

Avaliações realizadas pela UNeSCO e pelos parceiros do Programa Abrindo espaços comprovaram o seu êxito, que, entre outros, apresenta resultados con-sideráveis no que se refere à redução de índices de violência com a participação de adolescentes e jovens, os maiores en-volvidos como agentes e vítimas em si-tuações de violência. As avaliações con-firmam a eficácia do Programa Abrin-do espaços enquanto política pública que contempla a juventude, cumprin-do com o papel inovador e difusor de uma cultura de paz e promovendo uma transformação da prática pedagógica.

Com o Abrindo espaços, a UNeSCO e seus parceiros estão colaborando de forma estratégica para a definição e im-plementação de políticas públicas que contribuam para melhorar a qualidade de vida dos jovens e suas comunidades, especialmente os jovens mais afetados pela exclusão e expostos a situações de vulnerabilidade social.

em 2004, o Governo Federal, por meio do Ministério da educação, em parceria com a UNeSCO, instituiu, em âmbi-to nacional, o Programa escola Aberta: educação, Cultura, esporte e Trabalho para a Juventude, pautado no conceito

Nota de rodapé

4 - Pesquisas realizadas por distintas instituições,

como, por exemplo, o Banco Interamericano de

Desenvolvimento, mostram que os programas realizados

com maior sucesso são geralmente aqueles

administrados em nível local, envolvendo parceiros

de todos os setores da sociedade, como empresas,

instituições públicas, organizações comunitárias, polícias e sistema judiciário.

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Referências Bibliográficas

1 - ABRAMOVAY, M. et al. Escolas de paz. Brasília:

UNESCO, Governo do Estado do Rio de Janeiro / Secretaria de Estado de

Educação, Universidade do Rio de Janeiro, 2001.

2 - DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir.

Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional

sobre Educação para o Século XXI. Brasília:

UNESCO, MEC, Ed. Cortez, 1998.

3 - NOLETO, Marlova Jovchelovitch. Abrindo

Espaços: Educação e Cultura para a Paz. Brasília:

UNESCO, 2004. 3ª ed.

4 - SANTOS, B. de S. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2000.

5 - WERTHEIN, J.; CUNHA, C. da. Fundamentos da

nova educação. Brasília: UNESCO, 2000.

e na metodologia do Programa Abrindo espaços: educação e Cultura para a Paz, lançado pela UNeSCO no ano de 2000, durante a comemoração do Ano Inter-nacional da Cultura de Paz.

O Abrindo espaços tornou-se então, uma referência para a criação do escola Aberta, transformando assim, o progra-ma em política pública.

A principal estratégia do Programa escola Aberta é a abertura das escolas públicas nos fins de semana, para que os jovens e suas comunidades possam par-ticipar de atividades de educação, cultu-ra, esporte, lazer e formação inicial para o trabalho.

A escola foi escolhida por ser muitas vezes o único equipamento público pre-sente na comunidade, além de ser um lu-gar privilegiado para a formação e socia-lização dos jovens. Além disso, a magni-tude do seu aparato institucional – mais de 200 mil escolas espalhadas pelo país e pelo menos uma secretaria de educação em cada município permitiria a capila-ridade e a institucionalização do progra-ma. Além disso, se quer dar novo signifi-cado ao papel da escola como escola-fun-ção e não apenas escola-endereço.

Por meio das ações e atividades desen-volvidas durante o fim de semana, espe-ra-se ampliar o diálogo entre o jovem, a escola e a comunidade. A idéia é trans-formar a escola em espaço de trocas e de encontros. Uma escola capaz de incor-porar as demandas do segmento jovem, suas expressões artísticas e culturais e de fortalecer a participação juvenil na pró-pria escola e na comunidade. espera-se também que o desenvolvimento do Pro-grama escola Aberta possa questionar e sugerir novas práticas à escola regular.

É preciso lembrar que a abertura dos portões para a comunidade nos fins de semana “quebra o muro” do isolamento institucional. O jovem e sua comunida-de sentem-se valorizados à medida que demandas locais são atendidas e que as expressões juvenis são fortalecidas. Isso possibilita maior integração entre esco-la e comunidade e favorece a descoberta de novas formas de relação capazes de gerar o sentimento de pertencimento tão necessário para o exercício do prota-gonismo juvenil.

O desenho do Programa escola Aber-ta parte de estratégias que permitem sua replicação. Flexibilidade, autonomia e gestão local possibilitam que estados, municípios e escolas possam adequá-lo às necessidades e aos recursos locais. Trata-se de um programa único, orien-tado por uma metodologia de referên-cia comum, mas há que se ressaltar a flexibilidade para adequá-lo à realida-de local. essa flexibilidade está expressa nas oficinas, no estabelecimento de par-cerias e na formação das equipes, por exemplo.

Ao longo desses anos, todos os proje-tos desenvolvidos no âmbito do Abrin-do espaços tornaram-se referências im-portantes para subsidiar a formulação de políticas públicas, voltadas à juven-tude, para os governos locais e estaduais e para as escolas e comunidades envol-vidas. As avaliações do programa mos-tram a sua viabilidade, a sua ampla acei-tação pelas secretarias de educação, es-colas e comunidades.

Alguns resultados são comuns a to-das as experiências, tanto do Abrin-do espaços quanto do escola Aberta, como a melhoria no clima interno da escola entre alunos e entre alunos e professores; a redução da violência intraescolar, sobretudo em relação ao patrimônio da escola; o estreitamento das relações entre a escola e a comuni-dade. Considera-se que esses elemen-tos, em seu conjunto, refletem positi-vamente na motivação e desempenho de alunos e professores.

Hoje, com quase duas mil escolas, o Pro-grama escola Aberta é uma iniciativa de sucesso. Os resultados já alcançados refor-çam a convicção da UNeSCO de que esse programa deve ser considerado prioritá-rio e referência para a construção de uma cultura de paz, para estabelecimento de parâmetros de qualificação da escola e pa-ra a promoção do desenvolvimento hu-mano e social, sobretudo, nos países e re-giões em desenvolvimento.

É este o desafio a que nos lançamos: construir em nossa sociedade uma cul-tura de paz com cada cidadão fazendo sua parte, por menor que seja. Trabalhar na educação, na construção solidária de uma nova sociedade mais igual e justa,

* Coordenadora de

Ciências Humanas e Sociais da

UNESCO no Brasil

em que respeito aos direitos humanos e à diversidade se traduzam concreta-mente na vida de cada cidadão, onde ha-ja espaço para a pluralidade e a vida pos-sa ser vivida sem violência. A UNeSCO acredita que é possível e convida a todos a se engajarem nesse desafio.

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O tema do acesso à justiça foi abordado de forma indireta na Constituição de 1988, que es-

tabeleceu no art. V, inciso LXII1 , a as-sistência jurídica integral e gratuita. Todavia é importante ter claro que a assistência jurídica não se reduz a assis-tência judiciária, sendo a primeira mais ampla do que a segunda. A respeito des-sa questão esclarece-nos Barbosa Morei-ra (1992; p. 130):

“A grande novidade trazida pela Carta de 1988 consiste em que, para ambas as or-dens de providências, o campo de atuação já não se delimita em função do atributo “judi-ciário”, mas passa a compreender tudo aqui-lo que seja “jurídico”. “A mudança do adjeti-vo qualificador da “assistência”, reforçada pelo acréscimo de “integral”, importa notá-vel ampliação do universo que se cobrir.”

Ao refletirmos a respeito da assistên-cia jurídica, é importante deixar claro de que forma de assistência estamos nos referindo. em nossa perspectiva par-timos do princípio empírico e teórico que o outro há de ser reconhecido como um igual, um parceiro no caminho da existência. Nesse sentido “conhecer os seus direitos” é uma primeira etapa de fundamental importância para a cons-

artigo tÉcNico

ACESSO À JUSTIÇA, PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E CULTURA DE PAZ NO ESPAÇO DOS CICs (Centros de Integração da Cidadania)

{autores: Guilherme Assis de Almeida* e Maria Isabel Lopes da Cunha Soares**}

tituição do espaço de reconhecimento. O aparentemente simples processo

de conhecimento dos direitos é algo que se coloca como um desafio constan-te e cotidiano que requer um trabalho de elaboração de material e práticas de informação que possibilite ao cidadão ou cidadã a real compreensão dos seus direitos e a melhor forma de atuação para garanti-los. Raciocinando a con-trario sensu, o não conhecimento de seus direitos ou da forma mais adequa-da de exigi-los implica para o cidadão a perda da capacidade de reconhecer a si próprio como sujeito em igualdade de condições com seus iguais no âmbito de sua comunidade. É o que nos escla-rece Axel Honneth (1992, 2ªed., 2009, p. 216-217):

“(...) Por isso, a particularidade nas for-mas de desrespeito, como as existentes na privação de direitos ou na exclusão social, não representa somente a limitação violen-ta da autonomia pessoal, mas também sua associação com o sentimento de não possuir o status de um parceiro da interação com igual valor, moralmente em pé de igualdade, pa-ra o indivíduo, a denegação de pretensões jurídicas socialmente vigentes significa ser

Nota de rodapé

1 - O Estado prestará aos que comprovarem insuficiência de

recursos assistência jurídica integral e gratuita.

Juventude e cultura da Paz

dez.10 | casa em revista | 35

lesado na expectativa intersubjetiva de ser reconhecido como sujeito capaz de formar ju-ízo moral; nesse sentido, de maneira típica, vai de par com a experiência da privação de direitos uma perda de autorrespeito, ou seja, uma perda da capacidade de se referir a si mesmo como parceiro em pé de igualdade na interação com todos os próximos (...)”

Portanto o trabalho de informação e orientação jurídica tem de ser pensado na sua real complexidade, já que pode funcionar como a efetivação do direi-to de acesso à justiça ou o contrário, a sua denegação. Importante observar que o processo de orientação e informa-ção jurídica deve ser visto como a eta-pa inicial de acesso à justiça que deverá ser complementada por meio de méto-dos de educação em direitos humanos. A conjugação da educação em direitos humanos com o acesso à justiça forma uma política pública inovadora, ema-nadora de uma cultura de paz.

A partir de agora passamos a apresen-tar o trabalho dos CICs (Centros de In-tegração da Cidadania), que têm como missão institucional “Promover o exercí-cio da Cidadania por meio da participação popular e garantir formas alternativas de acesso à Justiça” 2.

O trabalho dos Centros de Integração da Cidadania

Um pouco da história:O Centro de Integração da Cidadania

(CIC) nasceu como parte do programa da campanha de Mario Covas ao gover-no do estado de São Paulo, em 1990. Na-quela época, alguns desembargadores, juízes, advogados e promotores aceita-ram o convite de uma líder comunitária da Cidade Kamel, a sra. Lurdinha, para conversar com a comunidade local e colher as percepções que a população daquela área de alta vulnerabilidade

36 | casa em revista | dez.10

social tinha a respeito da justiça, do es-tado (de sua ausência, mais especifica-mente!) e da segurança pública.

A grande conclusão a que esse grupo chegou, e dentre eles estavam grandes juristas como José Afonso da Silva, Al-berto da Silva Franco, Ranulfo de Melo Freire, ercílio Cruz Sampaio, Antônio Cezar Peluso, atual presidente do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, entre tantos outros, foi de que o acesso à jus-tiça para a população da periferia era um ideal distante, algo desconhecido; e mais, os direitos preconizados na en-tão recém-promulgada Constituição Cidadã de 1988 eram meras palavras vazias, incompreensíveis pela popula-ção vulnerável.

Além desse diagnóstico, havia tam-bém a percepção de que nos locais de maior vulnerabilidade social, a ausência do estado era substituída por instâncias ilegais das facções criminosas e da vio-lência. era preciso pensar num modelo de atuação do estado que fosse integra-do, com a presença de vários órgãos pú-blicos, representando principalmente o Poder executivo e o Poder Judiciário.

em 1994, com a vitória de Mario Co-vas, o projeto voltou a ter espaço no ce-nário político e na agenda do governo. O então secretário da Justiça, Belisário dos Santos Júnior, encampou o projeto e assumiu a implantação dos postos fi-xos do CIC como espaços públicos que garantiriam a presença do executivo, por meio de suas secretarias, e do Ju-diciário, com um juiz e todo o aparato de um juizado especial. Nessa mesma ocasião, foram incorporados ao proje-to o Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton daunt, responsável pela emissão de cédula de identidade, os pos-tos de atendimento da CdHU – Compa-nhia do desenvolvimento Habitacio-nal Urbano, e do PROCON.

Outro marco importante para o CIC foi a publicação no diário Oficial do es-tado de São Paulo, em agosto de 2001, do decreto 46.000, que criou e organi-

zou a Coordenadoria de Integração da Cidadania – CIC, da Secretaria da Justi-ça e da defesa da Cidadania, e instituiu o CIC como um programa de estado.

Hoje, decorridos quase 15 anos da ins-talação do primeiro posto, na região do Itaim Paulista, extremo leste da Capital, o CIC conta com mais cinco postos no município de São Paulo, três na região metropolitana – Guarulhos, Ferraz de Vasconcelos e Francisco Morato, e um no interior, no bairro Vida Nova, locali-zado na região periférica de Campinas.

Apesar desse lapso temporal e das mudanças ocorridas na primeira déca-da do século XXI, o programa CIC man-tém-se como política pública de cons-tante inovação ao continuar oferecen-do à população de áreas vulneráveis do estado de São Paulo a oportunidade de ter suas demandas resolvidas e, na im-possibilidade de atendimento àquela demanda específica, o seu pronto enca-minhamento às esferas competentes. e tudo isso ocorre no CIC de forma a inte-grar diferentes prestadores de serviços e representantes dos diferentes poderes, promovendo o acesso à justiça de forma global, com a presença de juizados espe-ciais, de defensores públicos, promoto-res, técnicos do PROCON, prestadores de serviços públicos entre outros.

É importante ressaltar que nos dias de hoje o CIC não se destaca apenas pela oferta desses serviços e dessa integração, mas sim pelo trabalho que vem se intensi-ficando, desde 2007, na área de educação em direitos humanos, articulação comu-nitária, empoderamento local e promo-ção da cidadania e da cultura de paz.

No Planejamento estratégico Qua-drienal 2007-2010, a equipe de coorde-nação do CIC definiu quatro objetivos estratégicos que norteiam as ações do programa. dentre eles, destacamos as ações prioritárias:

• Promover o acesso à justiça: pro-mover a mediação de conflitos como for-ma alternativa de acesso à justiça e como instrumento da promoção de cultura de

paz; garantir e qualificar o atendimento jurídico gratuito ao cidadão por meio da defensoria Pública estadual; implantar atendimento integrado da polícia comu-nitária nos postos fixos do CIC;

• Assegurar serviços públicos de qualidade: firmar parceria com a Se-cretaria de Gestão Pública para criar pa-drão de qualidade para o CIC; ampliar a área de prestação de serviços por meio dos projetos volantes: “Minijornadas da Cidadania”, “Jornadas da Cidadania” e “educação para a Cidadania;

• Articular e fortalecer redes e ações comunitárias: qualificar a atua-ção dos Conselhos Locais de Integração da Cidadania; fortalecer e qualificar a atuação das redes locais e ações comu-nitárias; estimular a participação soli-dária da comunidade para a promoção de ações de desenvolvimento local;

• Promover e disseminar a Educa-ção para a Cidadania e para os Direi-tos Humanos: promover seminários e debates sobre temas relacionados aos direitos Humanos; promover cursos de capacitação em direitos e cidadania pa-ra lideranças comunitárias e cidadãos em todas as unidades do CIC.

Atendendo ao planejamento estraté-gico quadrienal, a mediação de confli-tos opera justamente no objetivo nor-teador da promoção de acesso à justiça, conjugado com a promoção da cultura de paz.

Nota de rodapé

2 - Missão estabelecida pelo Planejamento

Estratégico Quadrienal de 2007- 2010 do

Programa CIC.

dez.10 | casa em revista | 37

A Mediação Comunitária de Conflitos nos CICs

A Mediação é um processo dialógi-co de solução de conflitos, no qual du-as pessoas em litígio são convidadas a procurar uma alternativa pacífica para a solução de seus conflitos. Com o auxí-lio de um facilitador imparcial, capaci-tado nas técnicas de mediação, ambos os lados têm a oportunidade de inves-tigar seus verdadeiros interesses dian-te do conflito e alcançar soluções possí-veis, baseadas em suas demandas e ex-pectativas futuras.

diferentemente da via judicial, a me-

diação dá aos que vivem o conflito a oportunidade de solucioná-lo por meio do diálogo, procurando alternativas que contemplem as necessidades de to-dos. Além disso, a mediação depende de um ato de vontade, isto é, só é realizada caso as partes estejam dispostas ao diá-logo, o que aumenta as chances de re-sultados positivos.

em regiões de alta vulnerabilidade so-cial, onde o poder público tem dificul-dades em fazer-se presente, acentua-se a incapacidade da justiça formal em lidar com conflitos. em muitos casos, insigni-ficantes conflitos intersubjetivos podem

resultar em casos de violência. Como explica Watanabe (2007)3 , “quando os conflitos sociais ficam sem solução, sur-ge uma litigiosidade contida, fenômeno extremamente perigoso para a estabili-dade social, pois mostra claramente um tecido social esgarçado, que não protege

Nota de rodapé

3 - Kazuo Watanabe, presidente do CEBEPEJ, no Programa

Cidadania para Todos (Canal Universitário, dezembro de 2007).

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mais o cidadão e propicia que os confli-tos sejam facilmente desvirtuados para situações de violência”.

Tendo em vista o cenário social onde as unidades do CIC estão localizadas e o trabalho de articulação desenvolvido pelo CIC, é necessário que o foco do tra-balho seja voltado para a comunidade. Assim o projeto de Mediação do CIC é voltado à mediação comunitária, en-tendida aqui como mediação de confli-tos realizada por mediadores voluntá-rios pertencentes à própria comunida-de, capazes de compartilhar identidade (valores, linguagem, código de condu-ta) com os mediados, compreender suas motivações e interesses. Pertencendo a comunidade, o mediador tem maior ca-pacidade para facilitar o diálogo entre as partes e auxiliá-las a desenvolver so-luções criativas para o conflito, levando em conta sua realidade local.

Estado da Arte da Mediação de Conflitos nos postos fixos do CIC

A promoção da mediação como ins-trumento para a resolução pacífica de conflitos existe nas unidades do CIC desde 2003 por meio dos núcleos de me-diação estabelecidos nos postos fixos do CIC. Ao longo dos últimos anos, diversos cursos de capacitação foram ministra-dos, coordenados pela Assessoria de de-fesa da Cidadania (AdC)4 . A partir destes cursos de capacitação, os participantes foram convidados a atuar de maneira vo-luntária nas equipes de mediação exis-tentes no CIC. Por um tempo, a coorde-nação dos trabalhos desenvolvidos por essas equipes era feita pela AdC. entre-tanto, tais ações não foram suficientes para a consolidação de um projeto de política pública. Atualmente, as equipes de mediação, formadas exclusivamente por voluntários, atuam sob a coordena-

ção da Coordenadoria do CIC.

A Cultura de PazO tema da cultura de paz não é a pre-

ocupação central do trabalho dos CICs, mas é a planta que germina das semen-tes que foram cultivadas. dito de ou-tro modo, a paz não é o que se almeja a priori, mas é o resultado de um trabalho social que escolhe, de forma criteriosa, seus princípios de atuação. e afinal que princípios são esses?

O princípio fundamental que dá o norte para o trabalho dos CICs é a não violência. A não violência é uma for-ma de agir que reconhece a dignidade inerente a todos os seres humanos. Nes-se sentido, uma pessoa, seja quem for, quando entra em uma das unidades do CIC, será tratada como pessoa e recebe-rá de seus funcionários e colaboradores atenção para tentar encaminhar o seu

dez.10 | casa em revista | 39

Nota de rodapé

4 - Até o ano de 2008, a promoção da mediação de conflitos estava sob

responsabilidade da Assessoria de Defesa da

Cidadania, departamento diretamente ligado ao

Gabinete do Secretário. Com o objetivo de fortalecer

as ações de mediação nos postos do CIC, a Mediação de

Conflitos foi incorporada às atribuições da Coordenadoria

de Integração da Cidadania.

Referências Bibliográficas

1 - BARBOSA MOREIRA, João Carlos. O Direito à

Assistência Jurídica: Evolução no Ordenamento Brasileiro de Nosso

Tempo. Revista de Processo nº 67, p. 124 a134, 1992.

2 - CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet,

Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,1978 /1988.

3 - HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. A Gramática

Moral dos Conflitos Sociais. Tradução: Luiz Repa. São Paulo:

Editora 34, 2009.

4 - SAMPAIO, Lia Castaldi e BRAGA NETO, Adolfo. O que é Mediação de Conflitos, São Paulo, Ed. Brasiliense, 2007.

5 - COSTA, Carlos. Posto Avançado de Cidadania – Um

Novo Modelo de Justiça. Revista Diálogos e Debates da Escola

Paulista da Magistratura, p. 38 a 46, dezembro de 2000.

6 - Planejamento Estratégico Quadrienal do Centro de Integração da Cidadania,

2007/2010, Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do

Governo de São Paulo.

problema. Se o problema será solucio-nado é algo que não se pode garantir. Já a forma de recepção que visa o reco-nhecimento é assegurada pelo exercí-cio constante de práticas não violentas.

As formas alternativas de solução de conflitos acontecendo simultaneamen-te com as atividades de educação em di-reitos humanos oferecem ambiente propício para que a pessoa se reconhe-ça como sujeito de direito, etapa inicial e imprescindível do acesso à justiça. É a partir de processo de reconhecimento que a pessoa transforma-se em cidadão e é capaz, de forma pacífica e não vio-lenta, demandar seus direitos. As polí-ticas públicas de promoção da cidada-nia e dos direitos humanos precisam ter claro que a transformação da mera pes-soa em sujeito de direito é algo constru-ído e não um dado. Assim, é necessário criar espaços de educação em direitos humanos conjugados com espaços de acesso à justiça, capazes de propiciar à pessoa a experiência de descobrir-se ci-dadã, ao ser capaz de realizar uma ação para garantia ou conhecimento de um direito. É exatamente esse trabalho a missão dos CICs.

devemos ter consciência que esse é um trabalho quase invisível, mas de fundamental importância, pois mostra um caminho pacífico para que a pessoa possa resolver, como cidadã em socie-dade, os conflitos que venham a surgir em sua vida. Nunca é demais lembrar que a grande maioria dos homicídios tem como causa principal os conflitos intersubjetivos, vale dizer: os conflitos de vizinhança, a violência doméstica, a briga de trânsito, a discussão no bar.

A criação, manutenção e administra-ção dos CICs é um desafio à criatividade de todos que neles trabalham, a fim de oferecer à sociedade um espaço de reco-nhecimento propiciador de justiça, pro-motor de direitos humanos e por con-sequência emanador de uma cotidiana cultura de paz.

As boas práticas, dificuldades e lições

aprendidas nos CICs formam um co-nhecimento que pode ser compartilha-do e enriquecido pelas mais diversas ex-periências da comunidade internacio-nal. Nesse sentido, assiste razão a Bryan Garth e Mauro Capelleti ao afirmarem:

“O enfoque do acesso à Justiça tem um número imenso de implicações. Poder-se-ia dizer que ele exige nada mais nada me-nos que o estudo crítico e reforma de todo o aparelho judicial. Obviamente, qualquer projeto comparativo, mesmo que se benefi-cie do montante de contribuições com que conta o Projeto de Florença, não pode no presente estágio da pesquisa nesse campo fazer muito mais do que oferecer uma vista geral. Apesar disso, algumas idéias e ten-dências básicas podem ser distinguidas, e a sua discussão permitirá mostrar as reali-zações e potencial – bem como alguns dos perigos e limitações – desse esforço criativo mundial.”{CAPPELETTI, Mauro e GAR-TH, Bryant, p.75}.

* Professor Doutor do

Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito

da USP e assessor técnico de gabinete da Secretaria

de Justiça e Defesa da Cidadania.

** Advogada, formada em Direito

pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/

SP, e Coordenadora Estadual do Programa Centro de Integração da Cidadania da Secretaria da Justiça

e da Defesa da Cidadania do Governo do Estado de São Paulo.

40 | casa em revista | dez.10

A expressão “mediar conflitos” sig-nifica, em seu sentido mais am-plo, atender a pessoas. Mediar

parte das dificuldades e limitações mo-mentâneas das pessoas, seja física ou ju-ridicamente, como um terceiro poderá auxiliar na facilitação de sua gestão, re-solução ou transformação. Com isso, o eixo de referência do ato de mediar con-flitos difere de outros métodos, como o de aconselhar, que significa dar orienta-ções pessoais àqueles que solicitam. O mesmo raciocínio serve para o de asses-sorar, que nada mais é do que disponi-bilizar informações para que as pessoas saibam como melhor agir. Ou mesmo o conciliar, que é atender o conflito para por fim a eventual demanda.

Ao contrário do que muitos acredi-tam, a mediação de conflitos não visa pura e simplesmente o acordo, busca sim atingir a satisfação das motivações das pessoas traduzidas, entre outras, em seus interesses, expectativas, preocu-pações, desejos, valores e necessidades nele envolvidas. em outras palavras, mediação é um método de resolução de conflitos em que um terceiro, inde-pendente e imparcialmente, coordena reuniões conjuntas ou separadas com as pessoas envolvidas no conflito. O ob-jetivo desse terceiro, o mediador, entre outros, é o de estimular o diálogo coo-perativo entre elas para que alcancem a solução. esse método proporciona mo-mentos de criatividade para que as pes-soas possam analisar qual seria a me-lhor opção face à relação existente, gera-

artigo tÉcNico

Cultura de Paz e a Mediação de Conflitos com Adolescentes {autores: Lia Regina Castaldi Sampaio*

e Adolfo Braga Neto**}

dora do conflito. Com a sua utilização, se constroem ambientes cooperativos que resultam na pacificação das pessoas que dela fazem uso. Por isso, a Resolução nº 40/34 de 29 de novembro de 1985 da Assembléia Geral da ONU já apontava naquela época ser a mediação um dos métodos mais eficazes para se alcançar a cultura da paz.

diversos autores afirmam que as ori-gens da mediação de conflitos remon-tam a tempos antigos. Confúcio em sua época, por volta do ano 700 a.C., já pre-gava que a melhor forma de resolução de questões conflituosas entre as pes-soas era pela mediação de conflitos. Na verdade, a mediação sempre esteve pre-sente em todas as civilizações. Além da China antiga, povos como o judaico, o árabe, o anglo-saxão, entre outros, sem-pre tiveram a figura de uma pessoa que auxiliava as demais a melhor se enten-derem. Cabe lembrar, entretanto, que a partir da década de setenta no século passado, experiências empíricas até en-tão desenvolvidas passaram a ser obser-vadas e estudadas pela escola de direito da Universidade de Harvard, no âmbito de seu Projeto de Negociação. Foi dado início, com isso, ao processo histórico de tornar a mediação de conflitos uma te-oria, com estruturação de mecanismos, técnicas e estratégias para sua institu-cionalização como método de resolu-ção de conflitos voltada para os tempos atuais. Na sequência da criação do pri-meiro modelo, iniciou-se o movimento mundial pela implantação da media-

Juventude e cultura da Paz

ção em diversos países, indistintamen-te, nos cinco continentes. Hoje a práti-ca desse método para gestão, resolução e transformação de conflitos se desen-volve a passos largos e rápidos do Japão à Colômbia, da dinamarca à Argentina, enfim em todos os cantões do mundo. desnecessário seria afirmar que tal mo-vimento não é somente destinado ao auxílio de pessoas envolvidas em con-flitos, como alternativa ao modelo tra-dicional de resolução, mas, sobretudo, uma opção de escolha do método mais adequado para tanto.

A mediação parte de uma atitude hu-milde do mediador. Os principais pro-tagonistas do processo são as próprias pessoas envolvidas no conflito. elas são as mais indicadas para solucionar su-as questões, pois sabem o que é melhor para elas, mas, pelo momento de muita competição originado pelo conflito, es-te saber não pode ser devidamente utili-zado. A mediação está estruturada em uma base de auxilio para que as pessoas transponham as barreiras individuais, parciais e limitadoras, para o coletivo inclusivo, ou seja, a evoluírem do eu ex-clusivista e restrito para o nós ampliado. Nesse sentido, promove o reenquadra-mento da visão individualista em que as pessoas se encontram, focando somente seu passado e se autoculpando pelo ad-vento do conflito. A intervenção media-dora deve primar por privilegiar que as pessoas abandonem o eu singular e ru-mem para o nós no sentido plural. Sem isso, não existirá cooperação e muito

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menos a promoção da reflexão sobre su-as inter-relações. A cooperação, concei-to associado à mediação de conflitos, em oposição à imposição, promove a possi-bilidade de se debater a realidade e a si-tuação especial do conflito, este sendo entendido a partir de sua manifestação como briga ou agressividade, chegan-do à sua origem e motivação real, que se encontra em sua estrutura subjacente. Com isso, o cidadão deixa de ser mero expectador no processo, passando a ser o principal protagonista e correspon-sável pela construção da solução ou so-luções. Resgata, com isso, o respeito e a responsabilidade gerados na inter-rela-ção e também nos compromissos assu-midos ao longo do processo e, no futuro, após a construção da solução.

Costuma-se dizer que a mediação é pro-cesso célere. Às pessoas cabe determinar o tempo que necessitarão para a resolução de seus conflitos, de acordo com suas dis-ponibilidades, possibilidades e interesses, pois elas são a razão da existência da ativi-dade. Nesse sentido, o procedimento tem no mínimo cinco reuniões entre o me-diador e os envolvidos no conflito. Além disso, convém mencionar que o instituto decorre da constatação de que fórmulas tradicionais formais de resolução de con-trovérsias não mais satisfazem o cidadão, que cada vez mais se envolve em confli-tos de distintas naturezas e formas, diante

da complexidade das inúmeras inter-re-lações existentes nos tempos pós-moder-nos, e necessita de soluções ágeis, eficien-tes e mais adequadas para seus conflitos.

É sabido também que se pode fazer uso da mediação de conflitos em diver-sos âmbitos. Costuma-se afirmar que é eficaz na resolução de qualquer tipo de conflito onde existam vínculos ou laços entre duas ou mais pessoas. Conduz a bons resultados em conflitos familia-res (casais, pais e filhos, irmãos, primos, tios, sobrinhos, etc.), empresariais (con-tratos de diversas espécies, societário, etc.), cíveis (obrigações, marcas, paten-tes, etc.), trabalhistas (empresa e empre-gados; entidades profissionais e entida-des patronais; entidades profissionais e empresas, etc.), profissionais (profis-sional de uma área e profissional ori-ginário de outra área), organizacionais (questões entre departamentos de uma mesma empresa, entre profissionais de uma mesma empresa), internacionais (entre estados, organismos internacio-nais, bloco econômicos, etc.), escolares (alunos e escola; escola e pais, etc.), meio ambiente (entidades públicas e empre-sas; ambientalistas e entidades públicas, etc.) e comunitário (moradores de um mesmo bairro, rua ou quarteirão, gru-pos, etc.). enfim, convém repetir e mar-car, em todas as esferas que envolvam uma relação no passado com vínculos e

continuada ou não no futuro entre pes-soas físicas, bem como pessoas jurídicas.

Nesse sentido, a mediação de confli-tos pode ser utilizada também no âm-bito das relações entre adolescentes, en-tre eles e adultos, familiares ou mesmo em comunidade e escolas, incluindo-se também as situações em que muitas ve-zes eles se envolvam, enquadrados na legislação como infracionais. A propó-sito desse tema, no Brasil já existem ex-periências exitosas de seu emprego em alguns estados, tanto no âmbito extraju-dicial, quanto no judicial e administrati-vo. Antes de oferecer comentários sobre esse tipo específico de mediação, que ca-da vez mais amplia seu uso no País e re-quer qualificação específica na área, se faz fundamental lembrar alguns aspec-tos relevantes que envolvem esse mo-mento tão especial na vida das pessoas que é a adolescência. Momento marca-do por uma transição da fase da infância para a adulta, impregnada, portanto de grandes mudanças no indivíduo desde suas características físicas, comporta-mentais e, claro, psíquicas, que repercu-tem na sua própria identidade ainda em formação.

Cabe lembrar que o adolescente não é mais aquele ser indefeso que necessita de proteção e acompanhamento perma-nente em seu dia a dia. Ao mesmo tem-po não chega a ser um adulto que sabe

Adolescentes da Fundação CASA em atividade cultural no Museu de Arte Moderna (MAM)

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trilhar seu próprio caminho sem a devi-da proteção, acompanhamento e assis-tência. em outras palavras, a adolescên-cia significa a passagem da infância pa-ra a fase adulta, envolvendo o abandono da dependência para assumir a possibi-lidade da independência. A pessoa é vis-ta como criança e cobrada como adulto ou vice-versa. donald Winnicott, em seus estudos, afirma que a adolescência precisa de tempo e oportunidade de se preparar para assumir as responsabili-dades do adulto. Por isso, necessita mais do que nunca do apoio e da contribuição familiar e social para que se possa aten-der às necessidades próprias de sua con-dição: estudar, praticar esportes, desco-brir suas capacidades para decidir em que e como desenvolvê-las, enfim rela-cionar-se com outros, com o mundo e consigo mesmo.

Na verdade, a adolescência constitui-se no momento que requer atenção pa-ra as constantes modificações que estão ocorrendo, que muitas vezes levam os indivíduos a adotarem atitudes imatu-ras e incompreendidas pelos adultos, que por sua vez as criticam e desrespei-tam, promovendo o desconforto inter-no que gerará mais e mais conflitos e

dificuldades nas suas inter-relações. No Brasil, o estatuto da Criança e do Adoles-cente dá absoluta prioridade à efetivação dos direitos à vida, à saúde, à alimenta-ção, à educação, ao esporte, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária como dever da família, da sociedade em geral e do poder público, tanto para a criança quanto para o adolescente. e a mediação de conflitos tem se apresenta-do nos últimos anos como uma resposta adequada às garantias desses direitos de maneira não impositiva por intermédio do diálogo e da reflexão entre todos os envolvidos nos conflitos em que os ado-lescentes sejam uma ou mais partes.

Assim, na linha do que sustenta Juan Carlos Vezzulla, pode-se fazer uso da me-diação em qualquer questão conflituosa que envolva o adolescente pelo fato de promover de forma ampla reflexões so-bre os impulsionadores de suas atitudes e ações, assim como das demais pessoas envolvidas em suas questões. Nesse sen-tido, é possível seu uso entre os próprios adolescentes, nas relações que envol-vam a família, diversos graus de paren-tesco, amizade, escola e vizinhança. da mesma maneira é possível seu uso tam-bém em questões entre adolescentes e

adultos que participam do sistema esco-lar, assim como nas comunidades onde desfrutam do mesmo convívio. Ambas podem ser consideradas mediações ex-trajudiciais com adolescentes.

Ademais, fundamental se faz citar as experiências ligadas ao poder judiciário no País, onde a mediação de conflitos tem sido empregada quando o adoles-cente se envolve com a lei em situações configuradas como atos infracionais. Nelas se constatam algumas particu-laridades em função do ambiente e das pessoas que dela participam, por isso poder-se-ia chamá-las de mediação ju-dicial com adolescentes. e, por último, quando ele praticou o algum ato, tenha recebido medidas socioeducativas em razão do referido ato e se encontre den-tro de uma unidade em cumprimento da medida socioeducativa. Nesses âm-bitos, é possível além do emprego da mediação como método de resolução de conflitos de maneira instituída, o emprego de seus princípios e técnicas para gestão pacífica dos conflitos entre os integrantes do sistema, em especial os adolescentes.

A mediação de conflitos em todas as esferas acima citadas permitirá que os adolescentes possam externar suas difi-culdades, realidades, expectativas, frus-trações e sentimentos. Ao proporcionar tudo isso e muito mais, se promove a possibilidade de serem escutados por muitas pessoas direta ou indiretamente envolvidas com eles, e, ao mesmo tem-po, eles próprios escutem e compreen-dam outros membros da família, escola ou comunidade, e se expressem com o objetivo de se autoidentificarem em su-as respectivas imagens e papéis, a fim de se adaptarem às novas motivações, além das contidas no ato infracional.

As experiências brasileiras relativas a questões que envolvam conflitos entre adolescentes, e entre eles e adultos, no âmbito familiar, escolar ou comunitá-rio, hoje, estão mais conectadas aos pro-gramas de mediação de conflitos desen-volvidos nas famílias, escolas ou comu-nidades. Naqueles âmbitos, os conflitos constituem itens importantes dos refe-ridos programas, sendo objeto de reso-lução direta ou indireta.Acesso à cultura: mecanismo para transformar conflitos

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No âmbito judicial, iniciativas mui-tas vezes isoladas e pontuais, ligadas a adolescentes autores de ato infracional, têm sido desenvolvidas em Varas de Infância e Juventude. dois bons exem-plos são o da Vara de Infância e Juven-tude de Guarulhos, em São Paulo, e de Joinville, em Santa Catarina. Nestas se aplica a mediação entre vítima e adoles-cente, de forma produtiva, interessante e eficaz. Nelas, o objetivo fundamental da mediação entre vítima e ofensor é que o ofensor tenha a possibilidade de escutar o sofrimento da vítima, de reco-nhecer a transcendência de seus atos. e ambos, ao mesmo tempo, vítima e ofen-sor, possam constatar que são vítimas da agressão de um sistema impositivo, de dependência. Com isso se privilegiam aspectos subjetivos importantes como os relacionais e emocionais envolvidos no ato infracional, sem se esquecer do lado objetivo com o fato e o formalismo exigido pela lei.

No âmbito das unidades socioeducati-vas, cabe enfatizar o caráter flexível que a mediação pode ensejar, pois é possível o uso de seus princípios sem necessaria-mente estar se aplicando o método pro-priamente dito. Assim, poderá também ser utilizada de maneira eficiente quan-do seus norteadores e técnicas forem usados para qualificação do atendimen-to ao adolescente. Ou seja, as unidades socioeducativas não necessitam pos-suir mediadores para utilização da fer-ramenta; basta fazer uso de seus novos paradigmas e técnicas, que certamente resultarão num ambiente mais acolhe-dor aos adolescentes e aos integrantes dos sistemas, trazendo com isso a possi-bilidade de se promover a pacificação e a cultura da paz. Por isso, nada obsta que agentes de medidas socioeducativas, co-ordenadores ou mesmo diretores das unidades se apropriarem das técnicas de mediação para melhor atender aos adolescentes, a fim de refletirem sobre as ações em curso, e o mesmo por parte dos adolescentes, no sentido de propor-cionarem ações mediadoras em seu co-tidiano, e com isso pacificar as relações inclusive entre os próprios adolescen-tes. A iniciativa foi implementada no ano passado no estado de Minas Gerais

e tem proporcionado resultados até en-tão inimagináveis nas diversas relações entre agentes, coordenadores, demais integrantes do sistema e adolescentes.

À luz dos comentários apresentados, cabe afirmar que a mediação de confli-tos proporciona ao adolescente, sua fa-mília, amigos, vizinhos, colegas de esco-la, vítima e comunidade, a possibilidade de reorganização da dinâmica existente entre eles, a efetiva responsabilização, bem como o resgate da inter-relação por intermédio da comunicação mais ade-quada a todos os anseios, para o desen-volvimento de um mundo mais justo, mais solidário e pacífico. Ademais, a mediação de conflitos em toda sua ple-nitude quer como método, quer como parâmetro, não deixa de ser uma contri-buição eficiente para a pacificação das questões ligadas a um momento impor-tante e transitório na vida de qualquer pessoa. Com ela muito se avança na construção da cultura da paz.

Referências Bibliográficas

1 - BRAGA NETO, Adolfo. “Reflexões sobre a

Conciliação e a Mediação de Conflitos”. As Grandes

Transformações do Processo Civil Brasileiro – Homenagem

ao Professor Kazuo Watanabe. Coordenação

Carlos Alberto Salles. Editora Quartier Latin. São Paulo,

Brasil, 2009

2 - FOLGER, J. P. y BARUCH BUSH, R. A. “La Promesa de

la Mediación”. Ediciones Granica S.A. Buenos Aires,

Argentina, 2001.

3 - SAMPAIO, Lia Regina Castaldi e Braga Neto, Adolfo.

“O que é Mediação deConflitos”. Coleção Primeiros

Passos. Editora Brasiliense. São Paulo, Brasil.

2007.

4 - SOARES, Marines. Mediación. Conduccion de

disputas, comunicación y técnicas. Editora Paidós. 2ª

Ed. Buenos Aires, Argentina. 2001.

5 - VEZZULLA, Juan Carlos. “A mediação de conflitos com

adolescentes autores de ato infracional”. Editora Habitus.

Florianópolis, Brasil. 2006.

6 - WARAT, Luis Alberto. “O ofício do mediador”. Editora

Habitus. Florianópolis, Brasil. 2001.

*Mediadora, conciliadora,

advogada, psicóloga, presidente da Associação

Interação Rede Social e vice-presidente de mediação do Conselho de Administração do Instituto de Mediação e

Arbitragem do Brasil - IMAB.

**Mediador, árbitro, advogado,

consultor do PNUD, ONU e Banco Mundial e

presidente do Conselho de Administração do Instituto de

Mediação e Arbitragem do Brasil – IMAB.

Ambos são autores do livro “O que é Mediação de Conflitos” - Coleção

Primeiros Passos - Editora Brasiliense, 2007.

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artigo tÉcNico

Faz alguns anos que o CdHeP está formando educadores sociais de sete Núcleos de Proteção Psicosso-

cial especial (NPPe) das subprefeituras de Campo Limpo e M’Boi Mirim. esta-mos nos baseando no processo da escola de Perdão e Reconciliação idealizada por Leonel Narvaez de Bogotá, Colômbia.

esse processo é um convite para, num primeiro momento, reconhecer que todos somos violentos, ainda que de formas diferentes. Todos precisa-mos elaborar a raiva, a dor e a culpa em relação a essa verdade. Ao mesmo tem-po, todos necessitamos de perdão, pois cada uma de nossas ações é sempre carregada de irreversibilidade além de

Sobre o desenvolvimento do conflito e a possibilidade de restaurar o justo{autora: Petronella Maria Boonen*}

Juventude e cultura da Paz

uma dose de imprevisibilidade. A condição humana nos obriga a espe-

rar o infinitamente improvável, sem poder livrar-nos das consequências irreversíveis que uma ação possa desencadear. Seguin-do o raciocino de H. AReNT (2008), a única solução possível para a irreversibilidade é a faculdade de perdoar, assim como a solu-ção para a imprevisibilidade, da caótica in-certeza do futuro, é a faculdade de prome-ter e cumprir promessas.

Considero essas afirmações também em relação a jovens que entram em con-flito com a lei. Também eles são convi-dados a se perdoarem e a fazer alguma promessa para se obrigarem a manter certos valores necessários para o conví-vio em nossa sociedade.

Simultaneamente, nossa sociedade, por sua vez, terá de cumprir algumas promessas que o direito e a lei garantem em tese, mas que na prática muitas vezes não são aplicados. e aqui já aponto um primeiro descompasso que precisa ser tratado: quando o jovem fere a lei e o di-reito de outro, ele é réu em processo cri-minal; quando os direitos humanos bási-cos não são cumpridos, não há acusado.

Perdão e promessa são também tare-fas para os educadores dos Núcleos de Proteção Psicossocial especial – NPPe, assim como para todos os que estamos enredados, definitivamente, na condi-ção humana. Viver juntos pede respei-tar o outro como a si mesmo. Pede-se re-conhecer que esse outro tem igualmen-te direito, assim como eu tenho de, para ou a.... Obrigatoriamente, no estado de

direito, quando quero que sejam reco-nhecidos meus direitos, tenho que reco-nhecer a outra face desta moeda - os di-reitos do outro.

Ao longo das diversas edições de cur-sos, sempre percebi que a noção da Jus-tiça Restaurativa, uma noção fundante desse processo educacional, era e conti-nua sendo nova para a maioria dos edu-cadores, e que os intrigava muito. Inicial-mente confusos, pouco a pouco permi-tiram que esta noção questionasse seus pontos de vista e sua prática pedagógica.

Para entender o conflito ou o crime, é muito importante que saibamos os fatos, entendamos as causas e compre-endamos os sentidos que estão em sua raiz. Assim nossa intervenção pode ser mais acertada.

Neste artigo gostaria de apresentar uma ferramenta de análise do conflito e colocá-la no bojo das práticas restaurati-vas para favorecer a reflexão dos educa-dores. Para mim, os NPPes são espaços que receberam, do poder público, a in-cumbência de organizar ou, de certa for-ma, de se ocupar da transgressão, tanto aquela das promessas não cumpridas do estado como a das regras afrontadas pe-lo jovem. Quero mostrar como a análise do conflito pode ajudar a mapear a situ-ação de vulnerabilidade social dentro de seu processo histórico, o que por sua vez nos convida a fazer perguntas: será que o ato criminoso pode ser analisado desconectado de outros atos que o pre-cederam? Olhando para o contexto, será justo individualizar a responsabilidade

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Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo

ou culpa em cima do jovem agressor? É justo infringir-lhe uma pena, sem res-ponsabilizar outros atores que contri-buíram para esse contexto, seja por ação ou omissão? e por fim, será possível os educadores aproveitarem o ato crimino-so para restaurar a condição de igualda-de cidadã do jovem, capaz de instaurar o direito e restaurar o justo?

A Justiça Restaurativa Faz quarenta anos que as noções de

medição e posteriormente de Justiça Restaurativa (JR) forçaram o próprio direito a repensar-se, não mais como sendo universal e abstrato, com regras iguais, aplicáveis a todas as circunstân-cias, mas como respostas através de prá-ticas e contextos singulares, históricos, sociais e econômicos. Tornou-se neces-sário pensar o direito não como suces-são de imposições de sofrimentos que mantém o ofensor preso a uma situação passada. A questão da perspectiva tem-poral é fundamental na JR. Seu olhar é centrado no presente, visando o futuro, a nova possibilidade, e não no passado, onde se situa o ato do crime que, na an-tiga e ainda atual visão, precisa ser re-tribuído a partir da lei. No que se refere ao poder, essa percepção passa de uma visão vertical daquilo que é justo para a horizontal e pluralista daquilo que pode ser considerado justo pelos envolvidos em um caso ou conflito. dá abertura pa-ra a inclusão de valores singulares que ajudam a indicar possíveis causas subja-centes ao mesmo.

O foco da atenção na JR é colocado sobre o prejuízo na relação entre os en-volvidos, mais do que no dano sofrido. Assim, o conflito é visto como indício daquilo que pode ser modificado na re-lação. Por fim, ultrapassando o direito liberal e indo além do interpessoal, a JR aponta para a percepção social dos problemas colocados na situação con-flituosa (MeLO, 2005). este último fun-damento me parece extremamente im-portante no caso brasileiro onde, em muitas situações, há conflitos e crimes exatamente pela não implantação de di-reitos humanos por parte do estado.

Um dos objetivos da Justiça Restaurati-va é a restauração das relações e também

dos danos, principalmente da vitima. Mesmo que o jovem atendido no NPPe seja agressor, possivelmente, em alguma situação ele é vítima também. Suspeito, portanto, que a tarefa de muitos educado-res seja restaurar o agressor-vítima.

O desenvolvimento destrutivo do conflito

Sabemos que os conflitos aparecem naturalmente entre pessoas, pois cada uma tem uma visão, expectativa e ex-periência própria. O especialista em de-senvolvimento e transformação de con-flitos, John Paul Lederach, observou que os conflitos em geral seguem uma dinâ-mica comum, determinada e previsível quando não se consegue intervir favo-ravelmente visando sua transformação. Lederach desenha cinco níveis de confli-to que acho válido esboçar para compre-endermos essa dinâmica interpessoal.

Começam como desacordos entre pessoas ou grupos. Quando consegui-mos nos expressar em um diálogo aber-to, expondo nossas discordâncias e ne-cessidades, os problemas não chegam a constituir conflitos. Quando nos centra-mos no assunto e em suas causas, a ques-tão pode ser resolvida por meio dessa re-lação aberta.

No segundo nível, o antagonismo pes-soal, em vez de se concentrar no assun-to em questão, em soluções, começa-se a prestar mais atenção na outra pessoa, em suas fraquezas, em seu caráter e in-tenções e a avaliá-la negativamente. Pa-ra transformar um conflito no qual re-conhecemos antagonismos pessoais, é importante, primeiramente, que as pes-soas falem de seus sentimentos. Somen-te depois é possível nos concentrarmos de novo no assunto original. Quando conseguimos nos expressar com liber-dade, nossos espíritos estão mais tran-qüilos, é muito mais fácil chegar-se a um acordo.

O terceiro nível é a multiplicação dos assuntos. A confiança, que começou a se deteriorar no nível anterior, continua a se deteriorar e o contato direto entre as pessoas diminui. Quanto menos conta-to, mais nossa comunicação se estressa e os mal-entendidos aumentam. Com as relações cada vez mais deterioradas, mencionamos aquilo que incomodou, o que a outra pessoa nos fez, pode ter si-do há muito tempo atrás, mas que nun-ca foi expresso. Também generalizamos, extraímos e afirmamos as grandes dife-renças entre nós e os outros. O conflito sai do controle. A escuta ativa é a habili-

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dade que mais nos ajuda quando o con-flito chegou a esse nível. Também é mui-to importante que as pessoas expressem seus sentimentos machucados. Frequen-temente, os sentimentos são tão fortes e os assuntos tão confusos que é necessá-rio pedir colaboração de um terceiro pa-ra ajudar-nos a falar e a escutar mutua-mente, e mais tarde, a identificar os as-suntos que originaram o problema.

Com o tempo o conflito chega à trian-gulação. Começamos a procurar novos aliados, pessoas ou grupos para a ques-tão que no princípio, envolvia somen-te duas pessoas. Queremos validar nos-sa perspectiva e aumentar nosso poder frente ao oponente. O que era um con-flito simples e interpessoal, agora en-volve muitas pessoas e até pode dividir grupos inteiros. Nesse estágio, nossa li-gação direta com a outra parte é míni-ma e quase nos esquecemos do assunto que originou o conflito. Nosso objetivo começa a parecer mais com uma busca de vingança. Quando percebemos que a outra parte nos ataca, sentimos vonta-de de lhe devolver com um pouco mais. de fato, nos concentramos mais em an-tecipar e responder aos ataques do que em solucionar o conflito. O conflito al-cançou vida própria. Como ajudar? Pro-curemos aproximar-nos do outro com bastante cuidado e humildade. Pela di-nâmica da triangulação, a questão agora é muito mais complexa e envolve muito mais pessoas em seu processo de trans-formação. Consequentemente, se gasta mais tempo e se apresentam muito mais oportunidades para a confusão.

O último nível, a polarização total, é o mais complicado. O que em algum momento era um desacordo entre dois começou a dividir grupos ou comunida-des inteiras, deixando pouco espaço pa-ra quem não queira se aliar. O objetivo dos envolvidos é desfazerem-se do ou-tro, o que torna uma intervenção muito difícil. O mais indicado é pedir ajuda de alguém com formação e experiência na transformação de conflitos agudos.

A curva do conflito – um estudo de caso

A partir da análise de Lederach, per-cebemos a estreita ligação entre inten-

sidade e duração do conflito assim que elaboramos a “curva do conflito”. Fazendo estudos de casos com alguns educadores, fomos desenhando o desenvolvimento de conflitos a partir da história de vida de alguns jovens em conflito com a lei.

Muitas vezes se percebe que a transgressão ou crime que levou o jovem a entrar no sistema judicial é apenas um fato que se soma a uma longa história de conflitos, negli-gências e crimes. Quero retratar o caso do João, que nasceu como fruto de uma breve relação entre dois adolescentes de quinze anos. desde a mais terna infância, João pe-de para conhecer seu pai. Sua mãe, Maria, ainda muito jovem, vai ao encontro do pai, que não quer contato nem com a mãe nem com João. Maria mora com sua mãe numa pequena casa de dois cômodos e praticamente está impedida de sair de casa, pois a avó está psiquicamente enferma. ela vive da assistência de vizinhos e de um ou outro trabalho como diarista. Quando João tem dez anos, muito introvertido, quase não sai de casa, Maria mais uma vez procura o pai e tenta negociar uma pensão que poderia ajudar no sustento da família. Outra vez o pedido é negado. Quando João tem 15 anos, Maria é vítima de atropelamento e vem a falecer. João continua morando com sua avó.

Aos 17 anos, João é surpreendido pela polícia quando estava praticando um as-salto à mão armada. Após um período de internação, o jovem é encaminhado para o NPPe.

Quando inserirmos esses fatos na curva do conflito, composta pelas linhas de in-tensidade e tempo, a tendência ascendente da curva se evidencia. A curva ideal seria a que ao longo do tempo volta ao mais próximo à zero, sempre subindo e descendo. Certamente na vida de João existem conflitos que têm essa curva ideal. Contudo, quando esboçamos os grandes acontecimentos de sua vida, a intensidade é acumu-lativa e ascendente.

Parece que a tarefa dos educadores dos NPPes é a transformação dessa situação. Como fazer para descer essa linha? Com a breve descrição acima, além do crime, percebem-se muitos problemas sociais que dizem respeito a direitos humanos: mo-radia, assistência de saúde, salário capaz de garantir uma vida digna.

Após identificarem o desejo de João conhecer seu pai, os educadores fazem de tudo para estabelecer esse laço, o que conseguem após o pai tomar conhecimento da situa-ção do filho. Também notam sua satisfação por receber atenção de tantas pessoas que se empenham para trazer a curva de conflito de sua vida de volta a níveis toleráveis. Considero um nível de conflito tolerável quando os próprios envolvidos conseguem administrá-lo.

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Nesse estudo de caso, constatamos que a intensidade do conflito teve de chegar a um topo para que a reivindi-cação de João, ter contato com seu pai, fosse ouvida. Parece que essa necessida-de permeava sua vida e, apenas após a entrada no sistema judicial, foi efetiva-mente levada a sério. Certamente não é possível justificar, no sentido de legiti-mar ou desculpar, o ato de João. Mas o ato consegue ter outro sentido quando desenhamos a curva do conflito e identi-ficamos a/as necessidade/s de João.

O processo de restauração psicos-social

A curva do conflito apresenta grafi-camente o enredo e o acúmulo de con-flitos não resolvidos ao longo da histó-ria. Trabalhamos com a reconstrução da verdade para compreendermos os acon-tecimentos, num certo nível de profun-didade, a partir de três ângulos: os fatos, a partir da pergunta o que aconteceu? O sentido, a partir do por que aconteceu? A motivação mais profunda para apro-ximar-nos da necessidade do agressor é indagada a partir do para quê?

Após essa contextualização, é neces-sário um trabalho para o próprio João compreender o sentido da “punição” que eu entendo ser um processo de res-ponsabilização, pois, caso isso não acon-teça, a punição imposta, ao invés de ser integrativa, constitui-se em mais um dano que reforça a desintegração psí-quica ou social do jovem. A punição po-de converter-se em um potencial provo-cador de violência ou constituir-se num processo de desenvolvimento favorável de responsabilização através de um in-sight que ajuda na identificação de su-as motivações. esse caminho necessita de um tempo prolongado para alcançar mudanças estruturais mais profundas, ainda que uma abordagem mais super-ficial, com poucos encontros, possa de-sencadear certa elaboração do conflito.

Após a contextualização das verdades e responsabilização, é necessário focar as questões a serem restauradas. Todos são chamados à restauração, também o poder público, caso tenha falhado em sua contribuição para a instituição da cidadania plena dos envolvidos. Trata-

se de ultrapassar o direito liberal, abor-dando as questões em sua dimensão social, através da identificação das ne-cessidades nas quais transparecem as condições de vida, os desejos, as paixões, as faltas de sentido e os sentidos equívo-cos, a falta de percepção do outro, dos limites da ação, a inadequação das res-postas, a falta de cidadania e a possibi-lidade de encontro de uma expressão mais adequada daquilo que se pretende viver além de seus direitos básicos. Nes-se sentido, a JR é um espaço que permi-te a elaboração do vivido para chegar-se a uma composição equilibrada sobre os termos em que podemos viver; chegar-se a uma efetiva construção do que é justiça, fazendo com que as responsabi-lidades sejam assumidas e novas possi-bilidades sejam vislumbras. (cf.: MeLO, 2005. p.63).

No caso de João, identificamos uma gama de necessidades subjacentes a seu ato criminoso. esse caso nos parece pos-sível de ser abordado através de proce-dimentos restaurativos que chamem os envolvidos a assumirem sua responsa-bilidade. O objetivo é trazer a curva do conflito da vítima e do agressor de vol-ta a um nível aceitável de intensidade. No caso do João isso significa voltar a ser sujeito responsável de sua vida. Os edu-cadores têm a tarefa de ajudá-lo nesse processo. Ainda que no Brasil a Justiça Restaurativa não seja um procedimen-to costumeiro, uma vez que não existem caminhos para a conexão com as víti-mas, os educadores poderiam abrir pos-sibilidade para que o contexto do agres-sor-vítima possa ser restaurado em suas relações e em seus direitos. Creio que a análise do conflito ao longo da história possa ser uma ferramenta válida para criar contextos capazes de instaurar o direito e restaurar o justo.

Referências Bibliográficas

1 - ARENDT, Hannah. A condição humana.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008

2 - LEDERACH, John Paul. Building Peace. Sustainable

Reconciliation in Divided Societies.

Washington D.C., 1997.

3 - MELO, Eduardo Rezende. Justiça restaurativa e seus

desafios histórico-culturais: Um ensaio crítico sobre os

fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em

contraposição à justiça retributiva. In: BASTOS, Márcio Thomaz; LOPES,

Carlos e RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (Orgs.).

Justiça Restaurativa: Coletânea de Artigos.

Brasília: MJ e PNUD, 2005.

*Educadora do Centro

de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo

Limpo, doutoranda em Educação na USP.

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Intrigada com os meios dos quais dispomos para operacio-nalizar as discussões referentes à incompletude institucio-nal e corresponsabilização de diferentes segmentos dos po-

deres públicos e da sociedade no processo de reinserção social de adolescentes autores de atos infracionais, assim como na prevenção e atenção aos focos de violência que os levam a tais práticas, este breve artigo traz a importância do espaço público e do bem comum para o combate à violência.

No plano geográfico, o entendimento desse espaço tem co-mo referência a cidade da modernidade, nascida com a ciência do urbanismo, que trouxe a efemeridade e a velocidade das criações modernas, produzindo uma forma singular do uso

{autora: Viviane Fernanda dos Santos*}

artigo tÉcNico

Espaços urbanos e subjetividade - um olhar sobre a violência

Juventude e cultura da Paz

Proteger contra a violência requer a reinvenção de vínculos

do tempo e do espaço. No plano da subjetividade, Foucault (1979) é referência ao descrever a rede de relações e de ciências que levam a modernidade a colocar o homem como objeto de conhecimento, tornando-se cada vez mais problemático.

Nesse crescente processo de individualização, as pessoas dei-xam de atentar para as suas relações e implicações com os ou-tros – o que caracteriza a política – para voltarem-se cada vez mais para si mesmas, acarretando na perda do que havia de co-mum entre os homens, em função de um mundo cada vez mais privado e utilitarista.

Para Costa (1994), ao tomar a modernização como etique-ta, importa o culto à tecnologia, ser ‘liberado’ sexualmente,

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adotar o consumo ostentatório, cons-truir identidades pela filiação a grupos particularizados por marcas e guetifica-ções, fazer do sucesso na mídia sinôni-mo de autorrealização, e da publicidade o meio de discussões culturais, ou seja, uma ideologia antipolítica na constru-ção da ética. esse apoliticismo atual é entendido pelo autor como ausência de virtudes públicas e privadas. Para o que chama de virtudes, Costa recorre a Fou-cault, que as descreve como ‘práticas de ascese’ - o que os indivíduos podem fa-zer para escolher o que querem ou não fazer. dentre o que os indivíduos podem fazer para escolher – tomar uma decisão – está o exercício do pensamento.

Portanto, o fenômeno urbano e sua no-va forma de sociabilidade – o individua-lismo, fruto da velocidade das coisas e dos acontecimentos na ‘era da informação’ – não mais considera a importância da ex-periência como passagem que nos afeta e nos transforma, produzindo mudanças, como destaca Larrosa (2001)1.

A rigidez dos relacionamentos tam-bém vai se traduzindo nos espaços, onde os territórios também são demarcados contra a possibilidade de atravessamen-tos que produzam outros sentidos. A ri-gidez das ‘vitrines’ impostas nos espaços também ratifica a manutenção de algu-ma ordem, higiene ou controle. A mo-da, a ciência, a etiqueta, a informação, o que é pronto e sutilmente imposto, massificado, demandam as virtudes – as práticas de ascese – por quê; para quê; quando; como; onde... A ousadia da cria-ção diante de adversidades, trazida por meio do pensamento, da arte, da cultura e da história que a fundamenta. Ousadia essa que não busca ratificar individua-lismos, como a prática do ‘jeitinho’ bra-sileiro, ação fundamentada em interes-ses pessoais, justificadas pelas desigual-dades sociais e jurídicas que perpassam o País e que só fazem endossar as peque-nas corrupções diárias em detrimento das causas coletivas.

Na teia discursiva entre cidade e pro-cesso civilizatório, dado pelo projeto da modernidade, as relações entre o públi-co e o privado se transformam. Nesse sentido, Pechman (2004) destaca que, pela via latina, é pela cidade que se civi-

liza. Pelo viés grego, o nome pólis (cida-de), está relacionado à política, enquan-to arte de negociação e de convívio. Para Baptista (2003), a cidade é um lugar de combates urbanos e território de cria-ção, citando Holston (1996) para defi-nir a cidade como zona de guerra con-temporânea, que compreende não só o terror dos esquadrões da morte e das gangues, mas também o terror das for-talezas corporativas e dos enclaves su-burbanos, também formas insurgentes do social, subvertendo as proclamadas igualdades e princípios universais de ci-dadania nacional.

dessa articulação entre a leitura das ci-dades e seus efeitos de subjetivação, gal-gamos para a violência urbana. Conside-rando que o acesso aos códigos sociais é o vetor para a condição mínima de subjeti-vação; quando isso é negado, a transgres-são é a forma de entrada na sociedade como seres de ação. Aí, o conceito de res-peito e necessidade de reconhecimento individual encontra abrigo em leis não escritas de um determinado grupo.

Pensamos, então, na reinvenção de si, na recriação de modos de existências diante das práticas que nos são impos-tas, tomando como imperativo a im-portância de diferenciá-la de sua forma continuamente individualista que não produz transformações e não visa à cole-tividade, derivadas do ‘jeitinho brasilei-ro’. Ainda que justificáveis, diante da ta-manha perversidade do rompimento do pacto social, pensamos no papel do espa-ço urbano na transformação no e do mo-do de existência, objetivando a abertura de possibilidades de recriações inventi-vas de si e de viver que abranjam o cole-tivo e defendam a ética do bem comum.

Pechman (2004), articulando a obra de Rubem Fonseca com o de Hannah Arendt, destaca que, se para Rubem Fonseca viver na cidade deve ser uma arte, uma estética, no sentido de uma ética que tem como tarefa precípua a educação para a vida comum, onde o diálogo é a única possibilidade de trans-cendentalidade, o ser violento é sempre alguém tangido do vínculo com a pólis, que reconstrói seus códigos pelo avesso e se prepara para assaltá-la. Já Hannah Arendt, denuncia o sentimento de sem

sentido em que mergulha a sociedade, que perde a capacidade de pensar e exer-cer a crítica, perda a partir da qual a iden-tidade de seus cidadãos desfalece de sen-so. Portanto, tanto para Rubem Fonseca quanto para Hannah Arendt, a cidade é o lugar do convívio.

Assim, de acordo com Pechman (op. cit), para se compreender o problema da violência urbana é preciso compre-ender como a cidade vai perdendo seu sentido enquanto esfera pública. Quan-to menos a cidade exprime seu poder ur-bano (pacto urbano pela sociedade) que se estrutura pela ação coletiva, mais ela deixa de fazer sentido como referência de convivialidade, gerando violência.

Portanto, o poder da cidade é produzir relações, obrigar negociações, publicizar e politizar toda forma de convívio, de se constituir uma esfera pública que seja ponto de partida de toda experiência so-cial, de toda invenção social e de moda-lidades inesperadas de convivência. Po-rém, a cidade não contém mais as condi-ções de negociação dos valores mínimos necessários à convivência. Já não há mais negociação, há silenciamento pela impo-sição da violência. A redução da conflitu-alidade política aumenta a criminalida-de. A potencialização dos interesses indi-viduais gera a violência, que nada tem a ver com o afrontamento político:

Nota de rodapé

1 - Para Larrosa, “uma sociedade constituída sob o signo da

informação é uma sociedade onde a “experiência é impossível”, já

que a experiência requer um gesto de interrupção, um gesto quase

impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, e escutar

mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se

nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a

vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a

delicadeza, (...) cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência, dar-se tempo e espaço”. (LARROSA,

2001, p. 4)

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despolitização e criminalidade caminham juntas, contra o laço social, esvaziando o po-der da cidade de impor sociabilidade frente aos interesses particulares. Não há mais con-vergências entre estratégias coletivas e indi-viduais, onde a multiplicidade de interesses e desejos encontre acolhimento no exercício de lutas políticas. (PeCHMAN, 2004)

Com a precarização do pertencimen-to ao coletivo, houve forte impacto sobre a capacidade de oferecer significados ao social. Nessas direções, Ortega (2000), destaca que o enfraquecimento da cida-de se deve ao desejo de conforto e segu-rança que remete para a sociabilidade do mesmo e para a família, excluindo o mundo ‘inóspito’ e ‘estranho’, o que ope-ra uma perversão fundamental no signi-ficado de político, vinculando segurança com despolitização e risco com política.

Para Haroche (1998), a não observân-cia das convenções sociais é sintoma de que uma transformação profunda na re-lação com a autoridade e mesmo com os outros homens se operou, indicando que a natureza do vínculo público se trans-formou e que toda uma tradição fundada na precedência do social tende a se diluir diante das novas percepções da forma de se pensar o vínculo social. descoletiviza-da, a cidade se torna lugar de “estratégias particulares de conquistas narcísicas, vi-sando mais valias de segurança, conforto e aquisição”. dessa maneira, “proteger a cidade contra a violência requer a rein-venção de vínculos, resgatar a confiança no espaço público, fazer da cidade um lu-gar de relações onde o político ressurja” (PeCHMAN, 2004).

e se o espaço urbano é incumbido de conter e propiciar o pacto urbano, en-quanto um lugar de negociações e de en-frentamentos políticos, por meio de seus diversos segmentos, a perda de seu po-tencial transformador também se deve aos olhares aprisionados e aprisionantes que furtam a existência de pessoas:

Quando não se é visto e se vê, o mundo oferece o horizonte, mas furta a presença, aquela presença verdadeira que depende da interação, da troca, do reconhecimento, da relação humana (...). excluídos, tornamo-nos voyeurs. O voyeur é aquele que, olhando de

fora, parece estar roubando o que não lhe per-tence (...). Não ser visto significa não partici-par, não fazer parte, estar fora, tornar-se estra-nho. (ATHAYde; MV BILL; SOAReS, 2005).

Assim, se a construção de uma iden-tidade é um processo social e interati-vo do qual participa uma coletividade e que se dá no âmbito de uma cultura e no contexto de um determinado momento histórico, o sujeito que não é visto im-põe-se a nós e exige que o tratemos com um sujeito, ainda que sob a égide da in-timidação pela violência. Ao recuperar a visibilidade, recompõe-se como sujei-to, se reafirma e se reconstrói, colocan-do em marcha um movimento de for-mação de si e de autocriação.

Portanto, se para “proteger a cidade contra a violência requer a reinvenção de vínculos, resgatar a confiança no es-paço público, fazer da cidade um lugar de relações onde o político ressurja” (Pe-chman, 2004), imprescindíveis são os mais variados e complementares pro-cessos de resgate da atitude crítica e da ética pelo bem comum que fundamen-tam o ser ‘político’ no espaço público.

Nessa empreitada, todos somos respon-sáveis pelo investimento do potencial criador de pensar e repensar as práticas e realidades existentes e desmontá-las para recombiná-las, de modo a expandir e po-tencializar a vida. Capacitar adolescentes e famílias a traçar novos caminhos, utili-zar recursos, abrir novas possibilidades de relações e de subjetivação, transfor-madoras e criadoras de uma nova estéti-ca da existência – enquanto estilo de vida permeada pela ética do bem comum – é a nossa missão, assim como é da educação, dos espaços e das políticas públicas, da fa-mília e de toda a sociedade.

Referências Bibliográficas

1 - ATHAYDE, C.; Mv BILL; SOARES, L. E. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Objetiva. 2005.

2 - BAPTISTA, L. A. Combates urbanos: a cidade como território

de criação. Palestra proferida no XII Encontro Nacional

da ABRAPSO. Porto Alegre. Outubro de 2003.

3 - COSTA, J. F. A ética e o espelho da cultura. Rio de

Janeiro: Rocco. 1994.

4 - ______ . O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro:

Garamond. 2004.

5 - FOUCAULT, M. Microfísica do poder. (Org.) Roberto Machado.

Rio de Janeiro: Graal. 1979.

6 - HAROCHE, C. Da palavra ao gesto. São Paulo: Papirus. 1998.

7 - HOLSTON, J. Espaços de cidadania insurgente. Revista do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro. Nº 24,

1996.

8 - LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber

experiência. Palestra proferida no 13º COLE – Congresso de

Leitura do Brasil. Unicamp. Julho de 2001.

9 - ORTEGA, F. Para uma política da amizade. Arendt, Derrida,

Foucault. 2ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2000.

10 - PECHMAN, R. M. Quando Hannah Arendt vai à cidade e

encontra com Rubem Fonseca ou da cidade, da violëncia e da

política. 2004. UFRJ. (texto)

*Psicóloga, mestre em Psicologia

Social pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, atualmente

exercendo funções de Assistente de Direção da Divisão Regional Sudoeste

– Fundação CASA.

artigo tÉcNico

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artigo tÉcNico

O Paradigma da Restauratividade e Contexto Socioeducativo: Uma possibilidade de Atuação{autores: Décio Perroni Ribeiro Filho* e Geisa Rodrigues Gomes**}

O conflito existe desde os pri-mórdios da humanidade, pois é inerente ao caráter interna-

cional da vida humana. Surge quando as diferenças nas relações, sejam elas entre vizinhos; pais e filhos; casais; na comunidade, são vistas como in-compatíveis. e conflitos acontecem na Fundação CASA, inclusive pela na-tureza compulsória de sua finalidade, exigindo dos educadores um trabalho essencialmente relacional.

A atuação do socioeducador está li-gada a sua historia de vida, religião, sentimentos, percepções, crenças e valores, e talvez pelo cunho relacio-nal dessa função, não temos institui-ções, nem mesmo universitárias, que formem socioeducadores. Assim, os conflitos podem surgir na interação de socioeducadores com adolescentes ou entre socioeducadores de uma equipe.

Os métodos alternativos em reso-lução de conflitos têm um diferencial qualitativo frente às práticas tradicio-nais, pois consideram tais diferenças e as manejam numa perspectiva criati-va e colaborativa na construção de so-luções compartilhadas para o conflito. Talvez também por isso, e por se confi-gurar como uma interessante estratégia no alcance de um processo efetivamen-te responsabilizatório e de prevenção da reincidência, temos visto grande in-teresse por parte dos servidores na im-plantação de Procedimentos Restaura-tivos na Fundação CASA. Todavia, sua implantação não é uma tarefa fácil.

A essência do Procedimento Restau-rativo é entender o fenômeno da vio-lência, juntamente com os envolvidos, promover ações no sentido de ressarcir os receptores do ato violento e de mini-mizar a probabilidade de reincidência do autor, por empatia, e não por dissu-asão. A efetividade das práticas restau-rativas se deve, portanto, a um novo paradigma em resolução de conflitos, através do qual se discorre um olhar diferenciado para o fenômeno violen-to, onde as necessidades do receptor do ato devem ser atendidas, e o autor do ato visto em seu potencial em respon-sabilizar-se. Isto favorece a efetiva re-flexão sobre os atos cometidos, a busca espontânea por sua reparação e a iden-tificação de necessidades não atendi-das que favoreceram a prática delitiva, para que sejam supridas e previna-se a reincidência.

esse procedimento é composto por encontros denominados Círculos Res-taurativos, os quais se organizam em três etapas: Pré-círculo, Círculo e Pós-círculo. No Pré-círculo é realizado o encontro individual com o receptor, com o autor do ato e com os integran-tes da comunidade, tendo como obje-tivo preparar os envolvidos para o en-contro conjunto, definir o assunto do Círculo e quais serão os participantes. No Círculo as experiências dos envol-vidos são compartilhadas e são estabe-lecidos os acordos. O Pós-círculo tem a finalidade de acompanhar o desdo-bramento do Círculo e, se o caso, des-

tina-se à criação de novas alternativas para a que os acordos possam ser efe-tivados. Os encontros entre receptor, autor e integrantes da comunidade são organizados por um Facilitador de Prá-ticas Restaurativas, sendo que as pes-soas atingidas direta ou indiretamente pela prática violenta ocupam o centro do processo.

A implantação de um projeto de Jus-tiça Restaurativa requer, portanto, a incorporação de valores e princípios do paradigma da restauratividade, tan-to para a criação de condições necessá-rias ao seu acolhimento e sustentação, através da promoção de transforma-ções na cultura institucional, quan-to para a execução do procedimento, através da formação dos socioeduca-dores. A adesão dos gestores ao projeto de Justiça Restaurativa é também fun-damental, uma vez que serão respon-sáveis pela viabilização de condições estruturais e organizacionais impres-cindíveis ao funcionamento do proce-dimento. É por esse motivo que é ne-cessária a institucionalização do pro-jeto de Justiça Restaurativa a partir de uma gestão central, tendo como um de seus eixos a formação da comunidade institucional.

A intencionalidade da implanta-ção da Justiça Restaurativa na Funda-ção CASA tem sido pensada há mui-to, mas o preparo prévio que deman-da implantação de um projeto dessa complexidade tem levado mais tem-po do que o previsto. A construção

Juventude e cultura da Paz

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*Graduado em Psicologia e Superintendente de Saúde

da Fundação CASA.

**Graduada em Psicologia,

especialista em Mediação de Conflitos e Maternidade

e Paternidade, Analista Técnica/Psicóloga da

Fundação CASA.

Notas de rodapé

1 - Dominic Barter: especialista em Justiça Restaurativa. CNV Brasil/Centro Internacional de

Comunicação Não Violenta.

2 - Daniel Issler: juiz da Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos, responsável

pela implantação da Justiça Restaurativa na referida

Comarca.

3 - Eduardo Rezende Melo: juiz da Vara da Infância e da

Juventude da Comarca de São Caetano do Sul, responsável pela implantação da Justiça

Restaurativa na referida Comarca.

4 - Egberto de Almeida Penido: juiz assessor da Presidência

da Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça, atualmente

juiz do VEIJ São Paulo/SP e coordenador do “Projeto de

Justiça Restaurativa” nas Varas Especiais da Infância e da

Juventude da Capital/SP (Região de Heliópolis).

5 - Monica Mumme: coordenadora de projetos do CECIP, especialista em Mudanças Educacionais.

6 - Vania Curi Yazbek: terapeuta e mediadora especializada

na capacitação de práticas de resolução de conflito.

do caminho para sua implantação é fundamentada no diálogo contínuo com especialistas nesse procedimen-to: Dominic Barter1, Dr. Daniel Issler2, Dr. Eduardo Resende Melo3, Dr. Egber-to de Almeida Penido4, Monica Mumme5 e Vânia Curi Yazbek6. As reflexões fei-tas não se encerraram e mobilizaram a abertura para novos diálogos e arti-culações, num enfoque restaurativo, com os demais atores do Sistema de Garantia de direitos da Criança e do Adolescente, e com isso há ainda mui-to trabalho à frente. Contudo, preva-lece o otimismo de que a implantação e a incorporação dos princípios e va-lores da Justiça Restaurativa possam

se constituir como formação de socio-educadores, visando disponibilizar novas possibilidades de intervenção para a transformação de diferenças e conflitos em oportunidade para am-pliar e enriquecer as perspectivas de solução. Acreditamos na Justiça Res-taurativa como uma alternativa ino-vadora no trabalho socioeducativo, em que os socioeducadores auxiliem os jovens no exercício da cidadania em espaços protegidos, onde limite e apoio sejam equilibradamente ofere-cidos, favorecendo que esse aprendi-zado possa ser multiplicado e prota-gonizado de dentro para fora dos mu-ros da instituição.

A essência do Procedimento Restaurativo é a empatia, não a dissuasão - Teatro

dez.10 | casa em revista | 53

reseNha

A paz constitui-se em uma aspira-ção humana das mais fundamen-tais e difundidas em épocas e lu-

gares diferentes. Sua importância central pode ser avaliada por seu uso como sau-dação em línguas como o hebraico e ára-be: shalom, salam, servindo de apresenta-ção, como desejo primário da convivência humana. Mesmo nos períodos mais tur-bulentos, o desejo da paz foi manifestado, como atesta o Salmo 34:14, repetido pela primeira epístola de Pedro (3:11): “busque a paz e siga-a”. São muitos séculos entre o Antigo e o Novo Testamento, com tantas guerras e conflitos nesse meio tempo, mas a ânsia permanecia relevante.

No entanto, embora a paz tenha sido de-sejada tanto, não mereceu a mesma aten-ção por parte de estudiosos, que trataram da guerra muito mais do que da paz. em parte isso se explica pelo predomínio dos conflitos no decorrer dos séculos, mas re-vela, também, algo sobre as dificuldades de se tratar de um tema como esse. demé-trio Magnoli já havia organizado a obra História das Guerras (São Paulo, Contex-to, 2006) e aceitou o desafio de organizar a História da Paz, congregando uma equi-pe de grandes intelectuais como o filósofo Roberto Romano, os historiadores José Ri-vair Macedo e Flávio de Campos, o econo-mista Gilson Schwartz, o jurista Celso La-fer, o embaixador Marcos de Azambuja, o deputado Fernando Gabeira e o jornalista William Waack, para citar apenas alguns deles. dentre as múltiplas possibilidades, o volume foi estruturado a partir de gran-des acordos de paz ou de cooperação pa-cífica, desde os concílios medievais até o Protocolo de Kyoto (1997).

A Paz, do interlúdio de conflitos à aspiração humana universalResenha do livro História da Paz1

{por: Pedro Paulo A. Funari*}

Alguns momentos, nessa trajetória se-cular em busca da paz, são de particular relevância e perenidade: a declaração Universal dos direitos Humanos, ado-tada pela Assembléia Geral da ONU em 1948. Vivemos sob o influxo dessa ordem jurídica supranacional, que deu origem à legislação de diferentes países, estados e municípios, e que trouxe, no decorrer de décadas sucessivas, uma série de con-sequências positivas. Celso Lafer conclui seu estudo com uma bela mensagem do humanista Guicciardini: “entre os seres humanos, em geral, a esperança pode mais do que o medo”. Outras conquis-tas foram mais localizadas, mas não me-nos importantes para o mundo, como o Tratado de Roma (1957), que deu origem ao que hoje é a União européia. Foi por meio desse acordo que séculos de guerras na europa (e daí para o resto do mundo) foram substituídos pela cooperação pací-fica, como narra Marcos Azambuja.

Alguns acordos de paz marcaram a his-tória de continentes inteiros, como no caso do Tratado de Tordesilhas, de 1494, estudado por Flávio de Campos, pois vi-vemos, ainda hoje, mais de cinco séculos depois, a contraposição pacífica entre as culturas ibéricas, dos países hispano-ame-ricanos, e a brasileira, de matriz portugue-sa. Os poucos conflitos entre espanhóis e portugueses, tanto na europa como no continente americano, resultam de um acordo de paz. Já em outros casos, como no Congresso de Viena (1814-15), a paz foi menos duradoura e menos generalizada, mas foi importante para a constituição de um mercado mundial que está conosco até hoje, como lembra demétrio Magnoli.

Não há, portanto, uma mensagem úni-ca advinda das tentativas de convivên-cia pacífica. A história da humanidade, contudo, vista à luz de sua luta pela paz, adquire contornos próprios. A paz não é, nem nunca foi, apenas a ausência da guer-ra, ou o resultado de uma violência, como a imposição de um vencedor ao vencido. O escritor romano Tácito (56-117 d.C.) dizia dessa paz marota que “fazem um deserto e a chama de paz” (ubi solitudi-nem faciunt, pacem apellant). A paz dos cemitérios, baseada na iniquidade, não é a única possível, como nos mostra es-se volume. Ao contrário, o sentido mais profundo e duradouro do anseio pela paz está representado por aqueles acordos e tratados que permitiram a convivência e o respeito à diversidade humana.

*Professor titular do

Departamento de História, pesquisador do NEPAM e

coordenador do Centro de Estudos

Avançados da Unicamp, www.gr.unicamp.br/ceav.

Nota de rodapé

1 - Organizado por Demétrio Magnoli

(São Paulo, Editora Contexto, 2008, 450 p., ISBN 9788572443968).

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Notas

V OLIMPíADA REúNE 1.300 ADOLESCENTES EM SP

Maior evento desportivo voltado a jovens em medidas socioeducati-vas, a V Olimpíada da CASA reuniu cerca de 1.300 adolescentes de todo o estado de São Paulo no complexo desportivo do Ibirapuera. O evento aconteceu entre 9 e 12 de dezembro, com a presença de personalidades do esporte, como Raí (Gol de Letra) e Magic Paula, e do mundo cultural, como o rapper dexter. As unidades Rio Pardo (Ribeirão Preto) e Chiqui-nha Gonzaga (Capital) venceram no quadro de medalhas nas categorias masculino e feminino, respectivamente.

CORTELLA FECHA CICLO DE PALESTRAS NA CASA

Com a participação do filósofo Mário Sérgio Cor-tella, a escola para a Formação e Capacitação Profis-sional da Fundação CASA encerrou em novembro o ciclo de palestras de 2010. doutor em educação pela PUC-SP, Cortella falou para um grupo de 90 funcio-nários da CASA. O ciclo, que teve o tema Juventude e educação, aconteceu entre março e novembro, com a participação de seis professores convidados. da PUC, Ana Maria Saul (que abordou a Pedagogia Freiriana) e Ivani Fazenda (Interdisciplinaridade). Antônio Car-los Fester abordou educação e direitos Humanos e Terezinha Rios, Ética e educação. Maria Isabel Noro-nha, que é conselheira nacional da Câmara de educa-ção Básica, falou sobre educação para o Século XXI. O objetivo do ciclo é debater e refletir, com os funcioná-rios da Fundação, temas que envolvem a adolescência e medidas socioeducativas.

FAÇA PARTE DA REDE DE COLABORADORES

A escola para a Formação e Capacitação Profissional (eFCP) da Fundação CASA abre espaço para funcionários e parceiros externos atuarem como formadores e capacitadores.

O objetivo é formar um banco de dados com informações de profissionais que possam colaborar com conhecimentos sobre a temática do adolescente e outros temas afins (Adolescente, Medidas Socioeducativas, Família, direitos Humanos, Violência, educação Trabalho, Saúde, Comunicação, etc.), possibilitando a contribuição na formação dos profissionais que atuam na execução das medidas socioeducativas ao adolescente em conflito com a lei no estado de São Paulo.

Para se cadastrar, basta entrar no site da Fundação CASA, no link eFCP. www.casa.sp.gov.br

ORALIDADE E MEMÓRIAS

O Projeto Oralidade e Memórias, elaborado pelo Centro de Pesquisa e documentação da eFCP, foi apresen-tado no 1º Simpósio de História Oral e Memória: Memória da zona Leste de São Paulo, organizado pelo Gru-po de estudos e Pesquisa em História Oral e Memória (GePHOM), da escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. O trabalho foi apresentado pelas funcionárias Ana Cristina Canto Lo-pes Bastos, coordenadora do CPdoc, e Liana de Paula, assistente de direção da eFCP, em junho de 2010. O objeti-vo do projeto é resgatar a memória da Fundação CASA e preservar o acervo de documentos da instituição.

51 UNIDADES, COM A DESCENTRALIZAÇÃOA Fundação CASA chegou, em novembro, à marca de 51 unidades

construídas dentro do processo de descentralização do atendimento so-cioeducativo do Governo do estado de São Paulo. No dia 24, foi entregue uma unidade de atendimento inicial e internação provisória, com 24 va-gas, em Sorocaba. A casa é gerida em parceria com a Pastoral do Menor.

IASES TEM ESCOLA COM MODELO PAULISTAO Instituto de Atendimento Sócio educativo do espírito Santo (Iases) inaugurou em setembro sua escola de Formação

para Profissionais de Atendimento Socioeducativo. O conceito da escola foi inspirado na eFCP da Fundação CASA. “É muito gratificante, para nós, paulistas, ver que o trabalho de capacitação e formação realizado pela CASA está ajudando outros estados”, afirmou Monica Braga, diretora da eFCP, que deu a aula inaugural na unidade, em Vitória.

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exPeDieNte

ESCOLA PARA FORMAÇÃO E CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL DA FUNDAÇÃO CASA-SPAvenida Celso Garcia, 2.593 - Belenzinho - CEP 03063-000 São Paulo - SP - Tel.: (11) 2618-3498E-mail: [email protected] - Site: www.casa.sp.gov.br

CASA EM REVISTA é uma publicação semestral da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA-SP), objetivando a interlocução com o meio acadêmico e científico, propiciando discussões relacionadas à adolescência e às medidas socioeducativas. É uma publicação científica indexada no Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia pelo Número Internacional Normalizado para Publicações Seriadas (International Standard Serial Number).

ISSN – 2175-2907

casaem revista

ParticiPe

A casa em revista está aberta a colaborações e sugestões de adolescentes, funcionários, acadêmicos e leitores em geral. Se você quiser participar dos próximos números, com sugestões de pautas, temas e resenhas, basta optar por uma das seções abaixo.

casa abertaEste é o espaço para textos não acadêmicos, poemas, crônicas, contos, composições e manifestações artísticas em geral. O espaço é aberto aos servidores da Fundação CASA e adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e também àqueles que já passaram pela instituição.

reseNhas em reVistaO Conselho Editorial de CASA em Revista está aberto à publicação de resenhas sobre livros que tratem da temática da adolescência e das medidas socioeducativas.

cartas As páginas de CASA em Revista também estão abertas às cartas dos leitores. Opiniões, críticas e sugestões sobre o conteúdo publicado sempre serão bem-vindas.

como eNViarPara participar de uma das seções acima, basta enviar um e-mail para [email protected]. As contribuições podem, ainda, ser entregues pessoalmente na Avenida Celso Garcia, 2.593, Belenzinho, São Paulo-SP, aos cuidados do Centro de Pesquisa e Documentação (CPDoc) da Escola para Formação e Capacitação Profissional (EFCP) da Fundação CASA.

Uma CASA de páginas abertas

Alberto GoldmanGovernador do Estado de São Paulo

Ricardo Dias LemeSecretário da Justiça e da Defesa da Cidadania

Berenice Maria GiannellaPresidente da Fundação CASA

Monica Moreira de Oliveira Braga CukierkornAssessora da Presidência e Diretora da Escola para Formação e Capacitação Profissional da Fundação CASA

Lucas Tavares Assessor de Comunicação Social da Fundação CASA

CONSELHO EDITORIAL

Monica M. de Oliveira Braga Cukierkorn (Presidente)Adilson Fernandes de SouzaAna Cristina do Canto Lopes BastosAna Lúcia Pastore SchritzmeyerLiana de PaulaMarcio Alexandre MasellaMarcos Cezar de FreitasMoysés Kuhlmann Jr.Roseli GouvêaSalvador Antonio Mireles Sandoval

EQUIPE EDITORIAL - Edição EspecialAna Cristina do Canto Lopes BastosDaniela Cardoso LourençoÉrico Raoni Santos da SilvaLucas TavaresRosemary dos Santos

PROJETO GRÁFICOKleber Bonjoan

DIAGRAMAÇÃO E REvISÃOCentral Business

ILUSTRAÇÕESOs desenhos e ilustrações desta revista foram produzidos por adolescentes da Fundação CASA durante oficinas de arte e cultura.

FOTOSEliel Nascimento ju rodrigues

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

TIRAGEM 8.000 exemplares

IMPRESSÃOAtivaonline Editora e Serviços Gráficos Ltda.

casa aberta

Sem TítuloPor “Arte e Vício”

Há muito e muito tempo, a vida evoluiu num certa planeta produzindo muita organização social, porém há muitas vidas envolvidas e pessoas passando sufoco, com dificuldades financeiras, sem viver dignamente, e crianças passando fome, sem ser conhecidas pelas pessoas que tem condições financeiras superiores a essas pessoas que, na maioria, são analfabetas, sem estudo, sendo insultadas de incógnitas, sem serventia. Eu me pergunto: cadê a igualdade da humanidade, que sofre sem saber que é humana e tem um grande valor em viver dignamente? Será que elas têm oportunidade de viver sem ser humilhadas?A vida nos ensina quebrando a nossa cara, cai e levanta, se limpe e erga a cabeça, esquecendo o passado e vivendo o presente. Quem sabe o dia de amanhã será o futuro gratificante para seu objetivo de vida?Os deputados permitem a execução daqueles que são falhos e não vêm que eles são humanos, de carne e osso, como se eles nunca tivessem errado e nunca fossem errar nessa vida que vivemos hoje em dia, com muita dificuldade e precisando um do outro. Mas é diferente, com muita desavença entre filhos, matando mãe e pai, vice-versa, por algo sem valor, que é a droga, entorpecentes e a farra com o amigo, sem dar importância para o futuro.Dando o que os deputados querem ver, que é nós sem nada e eles lá em cima controlando tudo, sem colaborar passando um pouco de conhecimento, sendo ambicioso e egoísta, pelo cargo com um salário de milhões.

Prazeres e Direitos em poesiasA unidade Paulista (Capital) vem desenvolvendo Oficina de Leitura. O trabalho é organizado

em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura, a POIESIS - Organização Social de Cultura e o Projeto PraLer – Prazeres da Leitura. Tudo começou com o Agente Educacional Rivaldo

dos Santos que estimulou o prazer da leitura entre os adolescentes e acabou levando-os a produzir a coletânea “Jovens Poetas”, que teve em 7 de junho uma tarde de recital e autógrafos na Casa das Rosas.

Cara ou Coroa?Por “Monge”

Hoje eu acordei pensando no amorE também parei para refletir no ódioQuando amamos alguém sentimos dorE o inimigo derrotado nos leva ao pódioQue coisa esquisita nossa vidaTodos querem ser felizAprendemos com a recaídaMas nunca chegamos a um ponto “x”Meu Deus, o que será que eu fizPara viver em um mundo tão cruel?O planeta parece uma meretrizAtrás do cifrão feito de papelOdeio o seu ódio Ame o seu amorProcure um sentimento sólidoO abstrato é um terrorDeus nos deu muita sabedoriaQue usamos para o malFizemos quilombos, guetos, periferiasE a pequena alta classe socialA areia, a pedra e o cimento se transformam em concreto Ferro e aço, em cadeados e gradesPara receber quem comete o incorreto Exilando-o da sociedadeComo já dizia uma voz sábia da favelaPor que morrer pela pazSe os que ficam provocam guerra?Então? E você?Já fez sua escolha?Ou “x” ou é bolinhaÉ cara ou coroa

Expressando meu PensamentoPor “O Vendedor de Sonhos”

Violência vemde violento,pensamento que estou tendo nesse momento.

O Sonho da Liberdade Por “O Vendedor de Sonhos”

Liberdade,um sonho da irmandade,que luta no momentopela preciosa igualdade,que todos temos vontadede viver em liberdade.