o panorama atual das perÍcias em trabalho-saÚde...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO O PANORAMA ATUAL DAS PERÍCIAS EM TRABALHO-SAÚDE NO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DAS PERÍCIAS EM SAÚDE DO TRABALHADOR CAMPINAS 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAO

BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO

O PANORAMA ATUAL DAS PERCIAS EM

TRABALHO-SADE NO BRASIL: A

CONSTRUO DAS PERCIAS EM SADE DO

TRABALHADOR

CAMPINAS

2018

BRUNO CHAPADEIRO RIBEIRO

O PANORAMA ATUAL DAS PERCIAS EM

TRABALHO-SADE NO BRASIL: A

CONSTRUO DAS PERCIAS EM SADE DO

TRABALHADOR

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Ps-Graduao em

Educao da Faculdade de Educao

da Universidade Estadual de

Campinas para obteno do ttulo de

Doutor em Educao, na rea de

concentrao de Educao.

Supervisor/Orientador: Prof. Dr. Jos Roberto Montes Heloani (UNICAMP)

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE VERSO

FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO

, E

ORIENTADA PELO PROF. DR.

CAMPINAS

2018

Agncia(s) de fomento e n(s) de processo(s): CAPES, 88881.131832/2016-01

Ficha catalogrfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca da Faculdade de Educao

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Ribeiro, Bruno Chapadeiro, 1986-

R354p RibO panorama atual das percias em trabalho-sade no Brasil : a construo

das percias em sade do trabalhador / Bruno Chapadeiro Ribeiro. Campinas,

SP : [s.n.], 2018.

RibOrientador: Jos Roberto Montes Heloani.

RibTese (doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de

Educao.

Rib1. Sade e trabalho. 2. Pericia medica. 3. Medicina do trabalho. 4. Doenas

profissionais. 5. Psicologia do trabalho. I. Heloani, Jos Roberto Montes, 1956-.

II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo.

Informaes para Biblioteca Digital

Ttulo em outro idioma: The current panorama of expertise in health-work in Brazil : the

construction of the expertises in the Worker's Health field

Palavras-chave em ingls:

Occupational Health

Medical expertise

Occupational medicine

Occupational diseases

Organizational Psychology (Work Environment)

rea de concentrao: Educao

Titulao: Doutor em Educao

Banca examinadora:

Jos Roberto Montes Heloani [Orientador]

Ren Mendes

Leonardo Vieira Wandelli

Maria Elizabeth Antunes Lima

Joo Silvestre da Silva Jnior

Data de defesa: 20-02-2018

Programa de Ps-Graduao: Educao

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAO

TESE DE DOUTORADO

O PANORAMA ATUAL DAS PERCIAS EM

TRABALHO-SADE NO BRASIL: A

CONSTRUO DAS PERCIAS EM SADE DO

TRABALHADOR

Autor : Bruno Chapadeiro Ribeiro

COMISSO JULGADORA:

Jos Roberto Montes Heloani (orientador)

Ren Mendes

Leonardo Vieira Wandelli

Maria Elizabeth Antunes Lima

Joo Silvestre da Silva Jnior

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comisso Examinadora, consta no processo de vida acadmica do aluno.

2018

Carolina,

que em seus olhos fundos, guarda tanto amor.

O amor de todo esse mundo.

e Edmundo Chapadeiro [in memoriam].

Agradecimentos

Agradeo primeiramente a Deus pelo dom da vida e da busca pela cincia, verdade

e justia que me deu. Foi atravs de seu Filho que Ele nos ensinou que nunca devemos

nos acomodar com o que incomoda.

CAPES por permitir o desenvolvimento de grande parte deste trabalho e

Universidade Estadual de Campinas por estes quatro anos em que passei em suas

dependncias e que me proporcionaram esclarecimento crtico, conscincia social de

classe e a certeza de que uma universidade pblica de qualidade, laica, e acessvel a todos

ainda um dos mais importantes baluartes desse pas.

Aos meus pais, Paulo e Eliana, que com muito esforo estiveram sempre moral,

fisicamente, economicamente e psicologicamente comigo em todos os passos que trilhei

na vida. No me deixando nunca faltar nada para que eu chegasse at aqui. Fosse no

ambiente acadmico ou fora dele. E que me ensinaram todos os valores de honestidade e

justia social. Valores estes os quais carrego em mim e que espero multiplica-los to

sabiamente quanto me foram transmitidos. Ao meu irmo Lucas, que sempre fora um

norte em minha vida, algum a quem nunca deixo de consultar a cada passo que dou em

minha vida. Exemplo de garra e de se batalhar muito por tudo o que se almeja, mesmo

que haja pedras no caminho, sempre com sua fiel parceira de igual carter, minha cunhada

Daniela. E a Hanna, Vida, Pablito e Winnie por trazerem imensas alegrias essa famlia.

Carolina, que adjetiva de forma superlativa o significado da palavra

companheira, e por traduzir em convivncia e persistncia, o verdadeiro significado de

lealdade e amor ao se fazer corpo disposto, porto seguro de minhas angstias e aflies

em momentos de desertos, energia cintica quando me encontrava esttico e eco

reverberante de qual fosse a frequncia transmitida por minhas vitrias e conquistas.

Aos meus avs paternos Maria e Alar Ribeiro pela imensa falta que fazem em

minha vida, porm que sou capaz de sentir em minha alma o orgulho que devem estar

sentindo do neto nesse momento. Onde quer que estejam.

Aos meus avs maternos Lucy e Edmundo Chapadeiro, onde, de uma herdei o

amor pela arte e do outro o gosto pela cincia. Esferas to distintas e ao mesmo tempo to

prximas que visei um perfeito casamento entre ambas. Tal como a unio dos dois.

Janir, Snia, Tatiana e Helquias pelas oraes e por agora serem minha segunda

famlia. E minha tia Cibele por sempre me apoiar querendo-me passar o basto da

psicologia acadmica da famlia.

s minhas afilhadas, Alice e Marina, a quem espero contribuir para lhes legar um

mundo minimamente justo.

Aos meus amigos(as)-irmos(s) Ricardo, Edgard, Denis, Gustavo, Bruna, Joana

e Caio e meus primos Henrique e Thaty, e Guilherme e Juliana, por sua amizade

duradoura, infinita e alm. Cada um me fez um pouco do que hoje sou. So meus nimus

e nimas que me moldam e me completam.

Lilian, Dbora, Julhia, Mariana, Maiara, Pedrinho e Poti por todo afeto e

acolhimento emocional e estrutural recebido na cidade de Campinas. Uma pesquisa se

faz tambm pelas condies que temos de faz-la e estas me deram slidas bases para tal.

Materiais e afetivas.

Rafael, Diego, Luiz Arthur e Ruben, meus Ministros-Layas, e Paula, Nadayca,

Juliana, Larissa, Ana Paula, Caio, Genaro, Ana Carolina, Ana Maria, Kimie, Patrick e

Emmanuel, companheiros(as) de doutorado-sanduche em Paris que singularizaram tal

experincia, tornando-a nica, e, no mnimo, inesquecvel.

Vanessa e sua linda famlia, que to bem me acolheram na Frana sempre que

precisei, bem como os casais Fabi e Henrique, Viviane e Fbio e Monyk e Victor.

To the Dream Team: Akhil, Hassan, Catteya, Monica, Ali, Ins, Fouad, Julia,

Nana, Seray, Emma, Lacina, Anna, Xudong and Martin by the common feeling of

strangers far from home that united us beyond linguistic and cultural barriers.

Ao Ivan, pela beno mais especial que j recebi em toda minha vida.

Agradeo especialmente ao meu orientador, o professor Roberto Heloani por

acreditar e abraar meu objetivo de pesquisa, conferindo-me total confiana e liberdade

na conduo e execuo da mesma, sendo sempre um farol-guia pronto a me iluminar

intelectualmente quando no enxergava horizontes.

Aos professores Ren Mendes, Leonardo Vieira Wandelli, Maria Elizabeth

Antunes Lima e Joo Silvestre da Silva Jnior por se disporem a sair de seus lares e tomar

a estrada para rumarem comigo em minha banca de defesa deste doutorado.

Giovanni Alves, Vera Navarro, Ricardo Antunes, Maria Maeno, Edith

Seligmann-Silva, Eliana Pintor, Renata Paparelli, Margarida Barreto, Marisol Watanabe,

Edvnia Loureno, Liliana Lima, Maria Helena Frem, Francisco Lacaz, Antnio

Rebouas, Grijalbo Coutinho, Cludia Nogueira, Marcia Bernardo Hespanhol, Lusa

Bustillo, Marcos Sabino, Erika Nakagawa dentre tantos(as) outros(as) que, alm de serem

fonte de inspirao cientfica, foram sempre grandes colegas nessa jornada abrindo-me

portas para que esta pesquisa se realizasse.

Ao prof. Michael Lwy por gentilmente receber-me na Frana para que pudesse

realizar o doutorado-sanduche, bem como o prof. Christian Herv. E principalmente

Ana Maria Peanha, que, alm de presentear-me com sua amizade, fizeste de minha

trajetria cientfica em terras francesas as mais proveitosas e frutferas possveis.

Aos colegas de NETSS aqui representados nas figuras dos mestres Evaldo Piolli

e Selma Venco pelas frequentes discusses e apoios a cerca de minha pesquisa.

Fundacentro, CERESTs Araraquara, Diadema, Piracicaba, Campinas, So

Bernardo do Campo, So Paulo (Central, Leste e Moca), USP, Unesp, Unifesp, INSS,

Justia do Trabalho, Sindicatos e todas as demais instituies brasileiras e francesas, em

especial a EHESS, Paris V e CGT, que incorporam os entrevistados e colaboradores dessa

pesquisa que, de relato em relato, auxiliaram-me a construir e solidificar estre trabalho.

Aos demais pesquisadores das reas do trabalho, da sade e da educao que se

fizeram presentes em minha caminhada, bem como a todos os trabalhadores que pude

acompanhar de perto seus processos contnuos de sade-doena no trabalho e a forma

com que resistem.

Um homem se humilha se castram seu sonho. Seu sonho sua vida, e vida

trabalho. E sem o seu trabalho, o homem no tem honra. E sem a sua honra,

se morre, se mata. No d pra ser feliz, no d pra ser feliz

(Um homem tambm chora Gonzaguinha)

As cabeas levantadas, mquinas paradas, dia de pescar. Pois quem toca o

trem pra frente, tambm de repente pode o trem parar [...] gente que conhece

e prensa a brasa da fornalha, o guincho do esmeril. Gente que carrega a

tralha, ai, essa tralha imensa chamada Brasil!

(Linha de Montagem Chico Buarque)

[...] de pronto o Doutor falou pro meu pai: Meus parabns Seo Joo, parece

que seu filho agora endireitou! E meu pai: Ele nunca foi torto. Pintou um

clima de urubu com mandioca entre ns. O doutor pisou no rabo, eu pensei.

Ele ainda perguntou: E o comunismo dele? Est quarando na beira do rio

entre as capivaras, o pai respondeu. O doutor se levantou da mesa e saiu

com seu andar de vespa magoada.

(Um doutor - Manoel de Barros)

[...] porque doente o trabalho e ele quem deve ser curado para que as

doenas dos trabalhadores sejam evitadas

(Luigi Devoto, mdico italiano, considerado um dos fundadores da moderna

Medicina do Trabalho).

No culpa de nossos doutores se os servios mdicos da comunidade,

como so prestados atualmente, constituem-se em absurdos homicidas.

Que qualquer nao s e equilibrada, tendo observado

que se pode assegurar o po desenvolvendo nos padeiros

um interesse pecunirio em oferece-lo,

possa prosseguir oferecendo aos cirurgies um interesse pecunirio no

cortar a algum uma perna,

o suficiente para que se considere desesperante a humanidade poltica.

Mas exatamente isso que temos feito.

Quanto mais espantosa a mutilao, mais o mutilador ganha.

Quem cuida de uma unha do p encravada,

recebe poucos xelins: quem corta seu estmago

recebe centenas de guinus,

menos quando opera um pobre para adquirir prtica.

Vozes escandalizadas murmuram que as operaes so necessrias.

Pode ser. Pode tambm ser necessrio enforcar um homem ou demolir uma casa.

Mas ns evitamos ser o carrasco ou o demolidor, juzes nessa questo.

Se o fizssemos, nenhum pescoo estaria mais seguro,

nenhuma casa seria mais estvel

(The Doctors Dilemma George Bernard Shaw)

Eu, Daniel Blake, sou um cidado, nada mais, nada menos.

(Daniel Blake, personagem do filme I, Daniel Blake de Ken Loach)

O mdico no aprende a ser perito na faculdade, mas sim depois, na

prtica. Nas percias do INSS a gente deixa de ser aliado do paciente e

torna-se uma barreira para ele.

(Perito do INSS aposentado)

RESUMO

O presente estudo sobre as percias em trabalho-sade, visou conjugar uma anlise

diacrnica, de forma que nos preocupamos com a gnese e o desenvolvimento deste

campo no bojo das prxis em trabalho-sade no Brasil; com uma anlise sincrnica,

pensando sua estrutura e funo dentro do que cunhamos, sistema jurdico-sanitrio, na

contribuio da organizao da esfera da superestrutura na sociabilidade do capital.

Assim, ancoramo-nos a todo tempo no mtodo dialtico para conhecermos a realidade

concreta desse sistema pericial em trabalho-sade em seu dinamismo e nas inter-relaes.

Por pesquisarmos um objeto vivo, mutvel e em constante transformao que jaz merc

das transformaes poltico-econmicas do pas, no se configura sobremaneira

porquanto empreitada simplificada. Inclusive, o prprio percurso da pesquisa, bem como

a formao enquanto intelectual do pesquisador alteraram-se bastante no decorrer da

mesma. A princpio, pensou-se em estudar somente os laudos psicolgicos produzidos

pelos peritos na esfera da Justia do Trabalho. Entretanto, ao refletirmos que um

instrumento, ou o produto de um trabalho no fala por si, mas sim que este a sntese de

uma gama de determinaes e contradies sistmicas, optamos por ampliar o escopo

com vistas compreenso do funcionamento deste mundo das percias em trabalho-

sade, ampliando inclusive o universo dos laudos para os que tratassem das demais

doenas no descartando que em todas h tambm o sofrimento psquico de quem as

experiencia. Assim, foram analisados no somente os laudos periciais, como tambm

demais documentos e leis que abarcam o universo das percias em trabalho-sade, bem

como o trabalho desse profissional com suas potencialidades e limites, e do

funcionamento orgnico deste sistema a partir da imerso nas esferas institucionais

ligadas a esse fazer e da aproximao a pessoas que nelas transitam. Trazemos tambm

dados que pudemos colher a partir de estgio doutoral no exterior, no caso, a Frana, para,

numa breve comparao com um pas de economia dita mais avanada, como tambm

com vasta produo de estudos cientficos sobre a temtica em questo, empreendermos

uma breve anlise comparativa entre as formas pericias encontradas nos dois pases, sem

perder de vista as diferentes formaes sociais e econmicas que separam ambos. Os

resultados encontrados sugerem que o sistema pericial tal como o encontramos no mundo

real e concreto no Brasil no funciona ou ao menos no se presta a quem deveria, no caso,

os trabalhadores brasileiros(as) que prosseguem em suas duras jornadas pela sade no

trabalho.

Palavras-chave: Trabalho; sade; adoecimento; percias; nexo causal

ABSTRACT

The present study on expertises in work-health aims at combining a diachronic analysis,

so that we are concerned with the genesis and development of this field inside of work-

health practices in Brazil; with a synchronic analysis, thinking its structure and function

within what we called, legal-sanitary system, in the contribution of the organization of

the sphere of superstructure in the sociability of capital. Thus, we are anchored at all times

in the dialectical method to know the concrete reality of this expert system in work-health

in its dynamism and interrelations. By researching a living and mutable object, in ever-

changing, that lies at the mercy of the country's political-economic transformations, it is

not a simplified task. In fact, the research course itself, as well as the researcher's

intellectual forming, have changed considerably during the course of the research. At

first, it was thought to study only the psychological reports produced by experts in the

field of Labor Justice. However, when we reflect that an instrument, or the product of a

work does not speak for itself, but rather that this is the synthesis of a range of

determinations and systemic contradictions, we chose to broaden the scope with a view

to understanding the functioning of this "world" of expertises in work-health, extending

including the universe of reports to those who deal with other diseases, not ruling out that

in all there is also the psychic suffering of those experiences. Thus, we analyzed not only

the expert reports, but also other documents and laws that cover the universe of expertises

in work-health, as well as the work of this professional with its potentialities and limits,

and the organic functioning of this system from immersion in the institutional spheres

connected with this work, and the approximation of the people who pass through them.

We also bring data that we could collect from a doctoral internship abroad, in this case,

the France, in a brief comparison with a country with a so-called more advanced

economy, as well as with a vast scientific studies on the subject in question, making one

comparative analysis between the different forms in expertises in work-health found in

the two countries, without losing sight of the different social and economic formations

that separate the two. The results suggest that the system of expertises in work-health as

we find it in the real and concrete world in Brazil does not work or at least does not lend

itself to who should, in this case, Brazilian workers who continue in their hard journey

searching for the health at work.

Keywords: Work; health; disease; expertises; causal nexus

RESUM

La prsente tude sur les expertises en travail-sant vise combiner une analyse

diachronique, de sorte que nous nous intressons la gense et au dveloppement de ce

domaine dans les pratiques de sant au travail au Brsil ; et une analyse synchronique, en

pensant sa structure et sa fonction au sein de ce que nous avons appel systme

juridique-sanitaire en la contribution de l'organisation de la sphre de la superstructure

dans la sociabilit du capital. Ainsi, nous sommes ancrs dans la mthode dialectique

pour connatre la ralit concrte de ce systme d'expertises en travail-sant dans son

dynamisme et ses interrelations. En mne une recherche consacre un objet vivant et

mouvant, en constant transformation, soumis des transformations politico-conomiques

du pays, ce qui n'est pas une tche simplifie. En fait, tout au long de la recherche, la

formation intellectuelle du chercheur a ont considrablement chang. Au dbut, on

pensait tudier uniquement les rapports psychologiques produits par des experts dans le

domaine de la justice du travail. Cependant, quand nous rflchissons qu'un instrument,

ou le produit d'un travail, ne parle pas par lui-mme, mais plutt que c'est la synthse

d'une gamme de dterminations et de contradictions systmiques, nous avons choisi

d'largir le champ pour comprendre le fonctionnement de ce monde d'expertises en

travail-sant, amplifie mme la dimension des rapports diverses qui s'occupent d'autres

maladies, sans nier que dans ces maladies il y ait aussi souffrance psychique dans ces

expriences. Ainsi, nous avons analys non seulement les rapports d'expertises, mais aussi

d'autres documents et lois qui englobent l'univers d'expertises en travail-sant, ainsi que

le travail de ce professionnel avec ses potentialits et ses limites. Et le fonctionnement

organique de ce systme partir d'immersion dans les sphres institutionnelles lies ce

travail, et nous rapprochement des personnes qui les traversent. Nous apportons

galement des donnes qui ont t collecter lors d'un stage doctoral en France, pour

raliser une brve comparaison avec un pays conomiquement plus dvelopp o il y

a des vastes tudes scientifiques sur le sujet en question, en faisant une analyse

comparative entre les diffrentes formes d'expertises en travail-sant trouves dans les

deux pays, sans perdre de vue les diffrentes formations sociales et conomiques qui les

sparent. Les rsultats suggrent que le systme d'expertise en travail-sant que nous

trouvons dans le monde rel et concret au Brsil ne fonctionne pas ou du moins ne se

prte pas ce quil devrait. Dans ce cas, les travailleurs brsiliens continuent leur difficile

voyage la recherche de la sant au travail.

Mots-cls : Travail; sant; maladies; expertises; lien de causalit

SUMRIO

APRESENTAO ....................................................................................................... 13

INTRODUO.............................................................................................................11

CAPTULO 1. SOBRE O SISTEMA JURDICO-SANITRIO

SUPERESTRUTURAL ................................................................................................ 29

CAPTULO 2. RESGASTE HISTRICO DO CAMPO PERICIAL NO BRASIL

........................................................................................................................................ 37 2.1 Surgimento e institucionalizao do campo pericial no Brasil: Do Imprio Primeira Repblica

..................................................................................................................................................................... 38

2.2 A experincia estatal jurdico-legislativa do servio sanitrio paulista em trabalho-sade ........ 41

2.3 A consolidao do campo pericial pela Medicina Legal .................................................................. 47

2.4 "Entre Cila & Carbdis": o taylorismo-fordismo caboclo e o campo pericial do comeo do sculo

XX ............................................................................................................................................................... 53

2.5 O campo da Sade do Trabalhador influencia a prtica pericial .................................................. 63

2.6 A aurora da acumulao flexvel tupiniquim e a consolidao do poder pericial mdico ........... 68

2.7 A Caixa de Pandora est aberta. E agora? ....................................................................................... 80

CAPTULO 3. FORMAS PERICIAIS EM TRABALHO-SADE ......................... 85

3.1. Os diferentes corpus: afinal, de que percias estamos falando? ........................ 85

3.2 Percias Administrativas: objetos e processos prprios ...................................... 90

3.3 Percias Securitrias: da Medicina do Seguro s Previdncias Privadas .......... 96

3.4 Percias Previdencirias: preceitos, objetos e finalidades ................................. 103 3.4.1 O primado da tcnica e o arbtrio livre: o modelo peritocntrico ............................................. 124

3.4.2 Mdico Perito ou Sherlock Holmes? ............................................................................................ 132

3.4.3 O SABI e a autonomia do(a) perito(a) mdico(a) ....................................................................... 142

3.4.4 Subjetividade Inautntica e alienao do outro: fraudes, simulaes e corrupes ................ 145

3.4.5 O binmio capacidade/incapacidade e o dano laboral: Baremos x CIF ................................... 152

3.4.6 O NTEP e as Diretrizes de Apoio Deciso Mdico Pericial em Transtornos Mentais ......... 168

3.4.7 A judicializao previdenciria e a (famigerada) reforma da Previdncia .............................. 180

3.5 Percias Judiciais: conceitos, campos e atuao ................................................. 190 3.5.1 O Perito Judicial: habilitao, requisitos para a nomeao, deveres, atribuies e a tica

profissional............................................................................................................................................... 203

3.5.2 O Perito Judicial e a prova tcnica ............................................................................................... 219

3.5.3 Remunerao do trabalho pericial ............................................................................................... 231

3.5.4 O laudo pericial judicial: conceitos, metodologias, requisitos formais e de contedo ............. 238

3.5.5 A figura dos assistentes tcnicos e do contraditrio na prova pericial ..................................... 246

3.5.6 Perito Mdico ou Perito Tcnico: quem ento pode ser Perito Judicial? ................................. 256

3.5.7 Percias Judiciais em Sade Mental Relacionada ao Trabalho (SMRT) .................................. 262

3.6 Percias no Ministrio Pblico do Trabalho: aes coletivas, prevenes e a

vigilncia fiscalizadora ............................................................................................... 275

CAPTULO 4. VASCULHANDO A CAIXA-PRETA DAS PERCIAS ............... 281 4.1 A problemtica do nexo causal ........................................................................................................ 281

4.2 Percia: produto e processo de trabalho ......................................................................................... 298

4.3 O perito e a organizao da cultura ................................................................................................ 317

4.4 Medicina do Trabalho ou do Capital? ............................................................................................ 331

4.5 Ser ou no ser perito? Eis a questo................................................................................................ 334

CONCLUSES ........................................................................................................... 344

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................... 359

GLOSSRIO...............................................................................................................389

13

APRESENTAO

No existe uma estrada real para a cincia, e somente aqueles que no temem

a fadiga de galgar suas trilhas escarpadas tm chance de atingir seus cumes

luminosos (MARX, 2013, p. 186).

Defender uma tese de doutoramento em uma Faculdade de Educao quando sua

formao inicial se d na Psicologia somado a um Mestrado em Cincias Sociais e

dedicando-se ao exame e anlise de processos pertinentes ao campo da Medicina e do

Direito, no das tarefas mais fceis.

Contudo, a ideia e vontade de pesquisar as percias em trabalho-sade se deu

justamente por observar uma profcua atuao interdisciplinar quando ns, ainda no

mestrado, tivemos o privilgio de fazer parte de uma reunio cientfica na sede da

FUNDACENTRO em So Paulo-SP no dia 30 de maio de 2011 que contou com

profissionais da psicologia, da sociologia, da medicina, do direito, da educao e da

terapia ocupacional, todos esses vinculados de alguma forma academia, a servios

pblicos de sade e, a rgos representativos de classe de trabalhadores. Nela, foi

discutido a questo das percias em trabalho-sade e a problemtica em se evidenciar o

nexo causal dos adoecimentos relacionados ao trabalho. Desta reunio, emerge como

proposta, infelizmente nunca concretizada, a organizao de um livro que contra

argumentasse a produo existente a cerca das simulaes nas percias mdicas em

trabalho-sade.

Mesmo voltado a outro objeto de pesquisa poca do mestrado, viemos flertando

desde ento com esse tema que tanto nos chama a ateno e que nos pareceu deveras

preocupante aos olhos de nossas referncias bibliogrficas agora, providas de corpos e

rostos para ns a partir da reunio descrita acima. Porque esse tema tanto os afligia? O

que haveria nesse mundo das percias em trabalho-sade que incomodaria tanto queles

que, assim como ns, pensam o campo da sade do trabalhador como um espao de lutas

e resistncias rumo uma emancipao possvel pela via jurdico-sanitria? E acima de

tudo: se fosse possvel a ns conhecermos, compreendermos e interpretarmos esse

mundo de perto, poderamos tambm sermos capazes de transform-lo?

Presunes parte, eis que aps tanto elucubrar sobre o tema em questo,

ingressamos no doutorado na Faculdade de Educao da UNICAMP em 2014 sob

orientao do professor (e agora amigo) Dr. Roberto Heloani a fim de nos debruarmos

e imergirmos no referido mundo das percias em trabalho-sade. As inquietudes iniciais

14

partiram de tentarmos entender: De quais percias em trabalho-sade estamos falando?

Em que esferas institucionais as encontramos? Quais suas potencialidades e limites em

cada uma? Como se apresentam no concreto real? Como funcionam? Cumprem a que se

prezam? E a quem servem? Convm a quem servem? Poderiam ser de outra forma?

Eis que ento o presente trabalho justifica-se por vislumbrar, partilhando da viso

em comum da fatdica reunio do dia 30 de maio de 2011, a existncia de dificuldades

enfrentadas pelos trabalhadores brasileiros na obteno do nexo causal entre seus

problemas de sade e suas condies de trabalho mediante subsuno a processos

periciais em trabalho-sade. O fardo de se entrar em terrenos profissionais os quais sua

formao inicial lhe impe abismos epistemolgicos e terico-prticos justamente

manter o foco de uma pesquisa acadmica preocupada com a transformao social:

preocupar-nos com os porqus enquanto ainda buscamos compreender os o qu e

como de forma retardatria.

Demoramos a compreender que finalmente o lugar do qual falamos: (1) parte do

olhar da Psicologia, principalmente da Psicologia Social do Trabalho, ou seja, de nossa

formao inicial, em que temos intrnseca uma herana de exerccio constante da escuta

apurada e analtica voltada para a compreenso do desgaste no trabalho; (2) abrange uma

concepo sociolgica oriunda eminentemente da Sociologia do Trabalho que considera

a historicidade dos processos sociais e dos conceitos, as condies socioeconmicas de

produo dos fenmenos e as contradies sociais inerentes sociabilidade do capital;

(3) compreende sade e doena enquanto um processo dinmico e contraditrio

resultante da confluncia (com ou sem coerncia) das polticas econmicas e sociais, das

transformaes do meio ambiente e ambiente de trabalho que tem nos pressupostos da

Medicina Social Latino Americana um modelo de investigao que afirma sua

historicidade e busca compreender a multiplicidade de suas determinaes; (4) visa

tutela jurdica da sade dos trabalhadores porquanto direito inalienvel prprio da viso

do Direito do Trabalho crtico e; (5) entende Educao enquanto processo social com

vistas emancipao do trabalho estranhado inerente forma social do capital.

Todavia, nos pretendemos a todo tempo partir da aparncia visando alcanar a

essncia. Ou seja, tivemos no horizonte, a essncia das percias em trabalho-sade,

capturando sua estrutura e dinmica por meio de procedimentos analticos e, operando a

sua sntese, pudemos reproduzi-las no plano do pensamento. Ao pesquisa-las atravs dos

mtodos adotados, tambm pudemos reproduzi-las, no plano ideal, a essncia do que

investigamos.

15

Compreendemos ento, que nosso papel de sujeito-pesquisador essencialmente

ativo apreender no a aparncia ou a forma dada desse mundo das percias em trabalho-

sade, mas a sua essncia, a sua estrutura e a sua dinmica, mais exatamente para

entende-lo enquanto um processo. Desse modo, tivemos que ser capazes de apreendermos

um mximo de conhecimentos oriundos das cincias que atravessam tal mundo, critic-

los, revis-los e ainda por cima sermos dotados de imaginao e criatividade sociolgica.

Como dissemos, um papel fundamental, porm uma tarefa igualmente herclea.

Por isso, o estudo aqui presente sobre as percias em trabalho-sade, visou

conjugar uma anlise diacrnica, de forma que nos preocupamos com a gnese e o

desenvolvimento deste campo no bojo das prxis em trabalho-sade no Brasil, com uma

anlise sincrnica, pensando sua estrutura e funo no que cunhamos, sistema jurdico-

sanitrio, na contribuio da organizao da esfera da superestrutura na sociabilidade do

capital.

Assim, ancoramo-nos a todo tempo no mtodo dialtico para conhecermos a

realidade concreta desse sistema pericial em trabalho-sade em seu dinamismo e nas

inter-relaes. Novamente, enfatizamos que, pesquisar um objeto vivo, mutvel e em

constante transformao que jaz merc das transformaes politicas do pas no se

configura sobremaneira porquanto empreitada simplificada. At o fechamento das

ltimas linhas textuais deste trabalho estvamos ainda descobrindo fatos novos que de

hora para outra, alteravam os entremeios do mesmo.

Inclusive, o prprio percurso da pesquisa, bem como a formao enquanto

intelectual do pesquisador alteraram-se bastante no decorrer da mesma. A princpio,

pensvamos em estudar somente os laudos psicolgicos produzidos pelos peritos na

esfera da Justia do Trabalho. Entretanto, ao refletirmos que um instrumento, ou o

produto de um trabalho no fala por si, mas sim que este a sntese de uma gama de

determinaes e contradies sistmicas, optamos por ampliar o escopo com vistas

compreenso do funcionamento deste mundo das percias em trabalho-sade.

Pretensiosamente chegamos a pensar em desenvolver um instrumento tal como os da

epidemiologia que auxiliasse na verificao do nexo causal entre adoecimentos-trabalho.

Projeto este que se dar a posteriori num ps-doutorado ou em nossa vida acadmica.

Contudo, esperamos com esse trabalho que este no se limite estante do

orientador, mas sim, que tal como foi idealizado, cumpra seu papel social, que seja, no

mnimo, trazer tona a discusso sobre as percias em trabalho-sade por uma perspectiva

crtica.

16

INTRODUO

A anatomia do ser humano uma chave para a anatomia do macaco. Por

outro lado, os indcios de formas superiores nas espcies animais inferiores

s podem ser compreendidos quando a prpria forma superior j conhecida

(MARX, 2011a, p. 84).

Nesta nossa pesquisa de doutoramento buscamos investigar as mltiplas

determinaes que tangem o campo das percias em trabalho-sade. A estrutura e a

dinmica deste objeto de pesquisa, ou seja, seu processo, fizeram com que adotssemos

uma perspectiva de no operarmos com definies, mas sim, quanto mais avanamos com

a pesquisa, mais descobrimos determinaes, as mais simples, porm carregadas das

relaes e das dimenses que objetivamente possuem e devem adquirir para reproduzir

as mltiplas determinaes1 que constituem o concreto real. Esse concreto no

pensamento, que se refere ao conhecimento propriamente dito, constitui um todo novo

que resulta do processo da inter-relao entre o objeto a ser pesquisado em construo e

o sujeito-pesquisador igualmente em construo.

Tais determinaes esto postas no nvel da universalidade. Na imediaticidade do

real, elas mostram-se como singularidades mas o conhecimento deste concreto real

opera-se envolvendo universalidade, singularidade e particularidade. Ora, quando Marx

(2011a, p. 84) nos diz que a anatomia do ser humano uma chave para a anatomia do

macaco elucida didaticamente todo o mtodo investigativo presente nesse trabalho de

forma que precisamente parte do pressuposto que, somente quando uma forma mais

complexa se desenvolve e conhecida, que se pode compreender inteiramente o menos

complexo.

Pautados ento no mtodo dialtico, este trabalho caminhou da fase mais

desenvolvida de cada forma pericial em trabalho-sade investigada no sentido de ento

analisar sua gnese e, depois da anlise dessa gnese, retornar ao ponto de partida, isto ,

fase mais evoluda, agora compreendida de forma ainda mais concreta, iluminada pela

1 Quando falamos de sntese de mltiplas determinaes, nos referimos ao entendimento de Snchez

Gamboa (2012, p. 152-153) quanto construo do objeto determinado pelos contextos, quer dizer, pelas

condies materiais e histricas que permitem sua existncia e sua manifestao como fenmeno. Na

realizao desse processo, caminhamos do emprico concreto (todo sincrtico) ao abstrato (categorias

diversas de anlises) e deste concreto ao pensamento [...] a dialtica inclui a dinmica do caminho de volta,

do todo s partes e das partes ao todo. D-se ao contexto uma nfase fundamental, pois os fenmenos

dependem dos contextos de produo, que determinam sua existncia, e dos contextos de interpretao, que

determinam seu conhecimento.

17

anlise histrica, criticizada e pela funo social do pesquisador. Inclusive, temos em

nosso horizonte que tal anlise, apoiada na dialtica entre o lgico e o histrico, s se

realizar de forma verdadeiramente esclarecedora do objeto investigado se for apoiada

numa perspectiva crtica, isto , se for realizada a crtica daquilo que esteja sendo tomado

como a forma mais desenvolvida.

Assim, coube-nos aqui nas prximas linhas apresentar as diferentes formas

pericias em trabalho-sade2 tal como dissemos, no movimento do concreto real. Nosso

recorte metodolgico focou nas formas que julgamos "mais avanadas" ou mais

desenvolvidas do fazer pericial em trabalho-sade - e que de certa forma perpassam as

demais -, quais sejam, as percias de cunho previdencirios e as da esfera jurdica

trabalhista. A partir ento destes modelos superiores e complexos que estruturam todo um

campo especfico em seus mbitos, depreendemos numa anlise na qual visou-se a

obteno da chave da compreenso dos demais modelos periciais em trabalho-sade aqui

tambm ilustrados. Bem como de suas funes, processos e determinaes.

Nesse intenso movimento dialtico de efetiva anlise diacrnica e sincrnica

destes campos periciais em trabalho-sade especificados, tambm buscamos absorver de

que forma eles, bem como os demais, aproximam-se e distanciam-se dos pressupostos do

campo da Sade do Trabalhador3 e, portanto, de qual viso e em que conceito ideolgico

de sade ancoram sua prxis durante os atos periciais sistmicos em si, baseando assim,

suas convices, fazeres e consequentes influncias no desenvolvimento perene do

campo tal como o encontramos no universo do real. E que cumprem funo determinada

material e historicamente na organizao do trabalho na sociedade do capital.

Ou seja, partindo de uma anlise histrica crtica, sempre contrapondo o ideal e o

material, o prescrito e o real, o que encontramos na literatura e o que nos dizem os atores

sociais envolvidos, a anlise documental empreendida, bem como nossa imerso prtico-

vivencial nos campos destacados, objetivou a elucidao da estrutura e dinmica e,

portanto, do processo, do campo pericial trabalho-sade4 em nosso pas de modo a

2 Enunciamos como formas pericias em trabalho-sade por se tratar de mtodos de se efetuar as percias

que no necessariamente ancoram-se nos postulados terico-metodolgicos do campo da sade do

trabalhador, mesmo sendo realizadas processualmente no interior deste. 3 Em nosso Glossrio no incio deste trabalho expomos nosso entendimento sobre os pressupostos que

embasam o campo da Sade do Trabalhador. Compreendemos a Sade do Trabalhador tanto como campo

epistemo-metodolgico com seus conceitos prprios sobre o processo sade-doena relacionado ao

trabalho, como tambm enquanto rea, ou seja, espao poltico-social em que as definies do campo so

efetivadas ou deturpadas imprimindo a marca do trabalho real na atividade prtica cotidiana. 4 Tambm nos ateremos ao longo do texto, mais aos adoecimentos relacionados ao trabalho e menos aos

acidentes de trabalho tpicos, por considerarmos o primeiro de maior dificuldade quanto a identificao do

nexo de causalidade com o trabalho.

18

compreendermos sua gnese e desenvolvimento durante todo um processo social e

histrico, para da especificarmos seus limites e enxergarmos suas possibilidades de

transformao.

Nota-se que muitos pesquisadores em nossa rea de estudos anunciam a

importncia do mtodo dialtico e manifestam sua inteno em utiliz-lo, mas, no trajeto

da investigao, desenvolvem anlises que em nada diferem dos modelos positivistas ou

funcionalistas de se fazer pesquisa. Talvez em muitos momentos tenhamos feito o mesmo,

pois como dito anteriormente, o trajeto da pesquisa tambm o de maturao do

pesquisador.

De toda forma, buscou-se na maior parte do tempo e com o maior rigor possvel,

durante esta nossa longa imerso no campo pericial em trabalho-sade, disseminar nos

escritos a seguir toda a trajetria, formas e mtodos de pesquisa utilizados nesse trabalho.

Ou seja, o exerccio foi o de nos distanciarmos dos formatos positivistas de tese

acadmica em que primeiramente todo um arcabouo terico apresentado para somente

ao final ser apresentada a anlise do objeto que se pesquisa. Assim, nosso levantamento

bibliogrfico sobre o tema, observao participante nos ambientes onde estas ocorrem,

anlise de documentos pertinentes ao sistema pericial em trabalho-sade, bem como as

falas dos(as) entrevistados(as) e nossa experincia pesquisando o tema a partir de estgio

doutoral no exterior, estaro pulverizadas e sintetizadas dialeticamente nas linhas que

se seguem deste estudo buscando apontar para um panorama da finalidade e das etapas

do sistema pericial em trabalho-sade e se, no horizonte, estas vem efetivando o nexo

causal trabalho-adoecimento compreendendo os determinantes sociais do processo sade-

doena.

Desse modo, o presente trabalho visou s seguintes etapas metodolgicas para a

sua execuo:

A) Anlise bibliogrfica

Nesse quesito, nossos principais objetivos foram:

a) analisar o estado da arte da literatura que est sendo utilizada em trabalhos

que abrangem o campo das percias em trabalho-sade a inclusos teses e dissertaes,

trabalhos apresentados e publicados em anais de congressos e outros encontros

cientficos, artigos publicados em revistas ou peridicos e livros da rea da Medicina do

Trabalho; do Direito do Trabalho; da Psicologia Social do Trabalho; da Sociologia do

19

Trabalho; da Sade do Trabalhador; da Medicina Preventiva e Social; da Psiquiatria

Ocupacional e da Psiquiatria Social; da Economia Poltica Crtica; da Sade Pblica e da

Sade Coletiva; da Ergonomia; da Epidemiologia Social e, claro; das Percias Mdicas e

Medicina Legal;

b) delimitar o perodo de tempo em que estas obras foram publicadas. Para a

anlise histrica, buscou-se obras que datam da gnese do campo pericial no Brasil. J

para a compreenso do desenvolvimento, da estrutura e dinmica dos modelos atuais,

demos preferncia s publicaes dos dias presentes, posteriores a determinados marcos

histricos que alteram as diretrizes do fazer pericial em trabalho-sade, tais como: (1) a

Lei n 13.467/2017 da reforma trabalhista e a Lei n 13.429/2017 que amplia a

terceirizao; (2) a Lei n 13.341/2016 em que o Ministrio do Trabalho e Previdncia

Social (MTPS) extinto, de forma que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)

passa a vincular-se ao Ministrio do Desenvolvimento Social e Agrrio (MDAS)5 e a

Previdncia Social se torna uma Secretaria do Ministrio da Fazenda; (3) o PL n

257/2016 que precariza o servio pblico nos estados; (4) a PEC n 241/2016 que limita

os gastos pblicos em 20 anos; (5) a Portaria n 152/2016 e a Instruo Normativa

INSS/PRES n 90/2017 que consolidam a chamada alta programada, pela qual o perito

estima uma provvel data de recuperao do trabalhador e, assim, fixa o prazo de

trmino do benefcio previdencirio, dispensando a realizao de nova percia e cabendo

ao trabalhador, que no se sinta apto a retornar ao trabalho, o agendamento de um novo

exame pericial; (6) a deciso do Conselho Nacional de Previdncia Social de 17 de

novembro de 2016 pela qual o INSS dispensa as empresas de comunicar os acidentes de

trajeto e os acidentes de trabalho que no impliquem afastamento superior a 15 dias67; (6)

a reviso dos benefcios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), previsto

pela Medida Provisria n 739/2016 que convoca desde agosto de 2016, mais de 730 mil

trabalhadores que recebiam o auxlio-doena para a reviso do benefcio como medida de

se passar um pente-fino nos benefcios concedidos aos segurados pelo Instituto; (7) a PEC

287/2016 sobre a Reforma da Previdncia; (8) os Decretos n 8.691/16 e 8.725/16 que

5 Atualmente renomeado para Ministrio do Desenvolvimento Social (MDS) a partir da Lei n 13.502, de

1 de novembro de 2017. 6 CNPS: Conselho aprova alteraes no clculo do Fator Acidentrio de Preveno. Disponvel em:

http://www.previdencia.gov.br/2016/11/cnps-conselho-aprova-alteracoes-no-calculo-do-fator-acidentario-

de-prevencao/. Acesso em 9 dez. 2016. 7 A medida tem impacto direto sobre o clculo do Fator Acidentrio Previdencirio (FAP) pois, diminuindo

o nmero de notificaes de acidentes, reduz-se tambm a contribuio empresarial ao FAP que hoje

representa 1% a 3% da folha de pagamento (VARGAS, 2017)

http://www.previdencia.gov.br/2016/11/cnps-conselho-aprova-alteracoes-no-calculo-do-fator-acidentario-de-prevencao/http://www.previdencia.gov.br/2016/11/cnps-conselho-aprova-alteracoes-no-calculo-do-fator-acidentario-de-prevencao/

20

abarcam as percias previdencirias; (9) a MP n 808/17, a Resoluo n 233/16 e o

CPC/15 que envolvem as percias judiciais; (10) a aprovao da Lei do Ato Mdico n

12.842/13; (11) o Projeto de Lei 7.200/2010 que prope a ampliao da participao de

outros profissionais da sade na percia do INSS; (12) a incluso do NTEP a partir da

Instruo Normativa n 31 INSS/PRES de 10 de setembro de 2008; (13) a criao da

Diretoria de Sade do Trabalhador (DIRSAT) da Previdncia Social em 2007; (14) a

instituio da carreira de perito mdico no INSS enquanto cargo pblico a partir da Lei

n. 10.876/2004; (15) a implementao do SABI em 2003 no sistema informacional do

INSS; (16) 0 lanamento do Manual Tcnico de Percia Mdica em 2002 pelo INSS;

(17) a publicao do Anexo II a partir do Decreto n 3.048/99 que insere a Lista das

Doenas Relacionadas ao Trabalho no mbito da Previdncia Social; (18) a Lei Orgnica

da Seguridade Social de n 8.212/91; (19) a Lei Orgnica da Sade n 8.080/90 e, por fim;

(20) a promulgao da Constituio Federal de 1988 (que projeta uma nova abordagem

de sade pblica sob tutela estatal), at os dias atuais.

c) verificar a frequncia na citao de autor(es), livro(s), revista(s), editora(s),

encontro(s) cientfico(s), o que dar uma indicao de fontes de informao de prestgio

onde pode-se pesquisar trabalhos e publicar artigos.

d) ser um referencial bibliogrfico para o meio acadmico e pessoas interessadas

nestes assuntos.

B) Anlise documental

a) Reunio, organizao e anlise de leis, emendas constitucionais, portarias,

decretos, normativas, medidas provisrias, regulamentos, peties, smulas, orientaes

jurisprudenciais, acrdos e documentos outros que abordem a regulamentao e

diretrizes do sistema pericial em trabalho-sade utilizando dos critrios do item b) da

Anlise Bibliogrfica.

b) Utilizao, verificao e anlise de laudos periciais e seus devidos quesitos,

bem como do contexto de seus referidos processos, sentenas judiciais e votos oriundos

de recursos ordinrios em 2 instncia, produzidos em decorrncia das esferas

previdencirias e judicirias reunidos por geolocalidade.

21

Em posse dos documentos necessrios para a pesquisa, na etapa subsequente,

procedemos na leitura, anlise e formulao das categorias que foram formuladas a

posteriori e no a priori. Foram analisados:

- 10 (dez) laudos periciais previdencirios oriundos de agncia do INSS de

Curitiba-PR datados de 2008 a 2014 e 3 (trs) de agncia do INSS em Diadema-SP de

mesmo segurado compreendendo as respectivas datas de exames periciais: 21/11/2016,

10/03/2017 e 04/05/2017;

- 2 (dois) laudos periciais trabalhistas advindos da 2 Vara Trabalhista de

Dourados-MS sendo um de setembro e outro de dezembro de 2014; 1 (um) proveniente

da 6 Vara do Trabalho de Belo Horizonte-MG confeccionado em abril de 2015; 10 (dez)

procedentes da 77 Vara do Trabalho de So Paulo-SP produzidos entre outubro de 2013

fevereiro de 2014, e; 7 (sete) oriundos da 2, 4 e 17 Varas do Trabalho de Curitiba-PR,

da 6 Vara Federal da Seo Judiciria do Paran, da 1 e 2 Vara do Trabalho de So Jos

dos Pinhais-PR e da 2 Vara do Trabalho de Araucria-PR compreendendo os anos de

2003 a 2010 e totalizando, assim, 20 (vinte) laudos periciais trabalhistas;

- 5 (cinco) relatrios de assistentes tcnicos, todos da parte do trabalhador, ligados

a um escritrio de advocacia de Curitiba-PR contestando algumas das percias

encontradas na mesma regio e analisadas por ns conforme descrito acima;

- 2 (dois) laudos periciais derivados de Aes Civis Pblicas (ACPs) do Ministrio

Pblico do Trabalho (MPT), um executado pela 12 Vara do Trabalho de Manaus-AM

em fevereiro de 2014 e outro na 2 Vara do Trabalho de Toledo-PR em abril de 2014;

- 57 (cinquenta e sete) votos de Desembargadores, compreendendo os anos de

2012 a 2015, sobre processos alvo de recursos em 2 instncia no Tribunal Regional do

Trabalho da 15 regio em que as percias em trabalho-sade constam sintetizadas no

corpo do texto;

- 2 (dois) PPRAs e 3 (trs) PCMSOs da mesma empresa do ramo de construo

civil, datados de 2006 a 2009 e que integravam processo referente a um dos laudos

encontrados na regio de Curitiba-PR e;

- 1 (um) Inqurito Civil encaminhado pela Procuradoria Regional do Trabalho da

15 Regio no qual o Cerest-Araraquara realizou percia das condies de trabalho-sade

de um hospital pblico estadual de sua jurisdio em que acompanhamos de 20 de

fevereiro de 2015 ao arquivamento do mesmo em 16 de fevereiro de 2016.

22

C) Entrevistas Abertas (no estruturadas)

Procedemos com o formato de entrevistas em que o pesquisador tem o mnimo de

participao. Foram formuladas questes disparadoras procedendo da escuta do que o

entrevistado teria a narrar. Nossa interveno sempre que possvel foi mnima. Os

entrevistados quem conduziam sua narrativa e apenas os interrompamos para esclarecer

ou aprofundar algum aspecto que considerssemos fundamental para saneamento da

questo.

Realizamos 18 entrevistas com mdicos peritos previdencirios, 13 com peritos

judiciais, 25 com interlocutores qualificados, 2 peritos do MPT e com 7 trabalhadores

para que os mesmos pudessem nos dar, atravs de suas experincias prticas, o panorama

atual do nosso campo de estudos e quais vem sendo as formas de se identificar e vincular

determinados adoecimentos como derivados do trabalho. As entrevistas foram realizadas

entre maro de 2016 a dezembro de 2017. A todos foi apresentado o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para participao da pesquisa.

Os critrios de incluso dos entrevistados pautaram-se: no caso dos peritos, tanto

previdencirios quanto judicirios, na prpria natureza do trabalho dos mesmos em se

tratando do exame de casos ligados ao binmio trabalho-adoecimento e de suas

vinculaes institucionais com o INSS e/ou Justia do Trabalho; em se tratando dos

interlocutores qualificados, foram entrevistados pesquisadores, docentes, ou

trabalhadores do servio pblico de sade com reconhecido savoir-faire no campo da

Sade do Trabalhador e que tangenciam e vivenciam de alguma forma a questo das

percias em trabalho-sade; quanto aos trabalhadores foram selecionados aqueles que

vivenciaram situaes periciais (nas esferas previdencirias e/ou judicirias) em algum

momento de suas jornadas laborais. Todos os nossos entrevistados foram encaminhados

a ns por indicao de pessoas ligadas de alguma forma questo das percias em

trabalho-sade, conquanto os prprios entrevistados indicavam outros em igual situao

e/ou que se encaixassem em nossos critrios de incluso.

Os critrios de excluso dos participantes de nossa pesquisa relacionam-se queles

peritos que, ou no realizassem percias em trabalho-sade, mas sim mdico-legais,

contbeis, cveis, criminais, qumicas e ambientais ou; dentro da esfera das percias em

trabalho-sade, lidassem apenas com percias administrativas estatais, securitrias

privadas, de periculosidade e insalubridade. Quanto aos interlocutores qualificados,

foram excludos da pesquisa aqueles que to somente lidassem com o tema trabalho ou

23

com o campo da sade ou com a esfera do Direito que no o trabalhista, e no com a

interconexo destes. Sobre os trabalhadores, foram excludos os que, pudessem estar

ligados a liames trabalhistas, porm que no foram necessrias percias em trabalho-

sade, ou ento os que somente tenham passado por percias administrativas estatais e/ou

securitrias privadas em se tratando de trabalho-sade.

As entrevistas com os peritos previdencirios se deram ou em seus postos de

trabalho (seja no INSS e/ou outros), ou consultrios particulares ou ainda por Skype para

os que se encontravam fora do Estado de So Paulo. Com os peritos judicirios, as

entrevistas foram realizadas em seus escritrios particulares, em rgos pblicos (como

universidades e servios de sade), espaos aleatrios (como cafs e restaurantes) ou

tambm por Skype para aqueles que no se encontravam no Estado de So Paulo. Os

interlocutores qualificados foram todos entrevistados em seus espaos de trabalho, seja

na esfera pblica e/ou privada presencial ou virtualmente (nos casos dos que se

encontravam nos demais estados brasileiros que no SP). J os trabalhadores foram todos

entrevistados no mbito dos servios pblicos de sade a exceo de um, em que a mesma

foi realizada em consultrio particular do pesquisador.

D) Grupos Focais

Nos utilizamos da tcnica de pesquisa qualitativa denominada Grupo Focal de

forma a organizarmos e conduzirmos uma discusso com grupos de trabalhadores, sobre

questes ligadas s percias em trabalho-sade. A partir da interao entre os participantes

que possuam em comum, j terem, ao menos uma vez em sua vida laboral, experienciado

uma situao de percia em trabalho-sade seja no mbito do INSS quanto da Justia

Trabalhista, tivemos como objetivo compreender o que essas pessoas pensam e como se

sentem a respeito do nosso tema de pesquisa, bem como, de criarmos um espao de

confiana mtua para que os mesmos pudessem relatar e elaborar suas experincias de

vivncia em situaes periciais.

Foram realizados 2 (dois) grupos focais nas dependncias do Cerest-Diadema no

ms de dezembro de 2017 com 5 (cinco) trabalhadores num grupo e 4 (quatro)

trabalhadores noutro. Os ramos de atividade compreendiam operadores de mquinas de

diferentes setores, trabalhadores da construo civil, da indstria qumica, auxiliares de

servios gerais, do setor de frigorficos e do ramo da metalurgia e siderurgia.

24

Os critrios de incluso para participao nos grupos focais se deram pela

permanncia de atendimento dos trabalhadores no servio de ateno sade do

trabalhador do Cerest-Diadema ao passo que os critrios de excluso basearam-se ou nos

trabalhadores com afastamentos inferiores a 15 dias e, portanto, em que rgo

previdencirio no foi acionado nenhuma vez em sua trajetria laboral ou ento naqueles

em que no se situassem imbricados em lides trabalhistas que envolvessem casos de

adoecimentos relacionados ao trabalho.

E) Observao Participante

Em se tratando de estabelecer uma adequada participao nossa dentro dos grupos

observados, fomos levados a compartilhar os papis e os hbitos dos peritos para estarmos

em condio de observar fatos, situaes e comportamentos que no ocorreriam ou que

seriam alterados na presena de estranhos. A ideia foi uma imerso completa no cotidiano

da cultura e do sistema pericial em trabalho-sade de modo que pudssemos compreend-

la de perto. Desse modo, buscamos conviver de perto com os peritos, os interlocutores

qualificados e trabalhadores de forma que o processo de observao participante foi

realizado nas agncias do INSS, instncias jurdicas, acompanhamento de percias (tanto

previdencirias quanto trabalhistas), atendimentos trabalhadores adoecidos em servios

pblicos de sade e etc. Nossa experincia direta com o modo de caminhar a vida

cotidiana de nossos sujeitos de pesquisa, sejam eles indivduos ou grupos, foi capaz de

nos revelar na sua significao mais profunda, aes, sentimentos, atitudes, episdios, e,

principalmente, modus operandi.

F) Anlise Comparativa

A partir de nossa aprovao no Edital n19/2016 do Programa de Doutorado

Sanduche no Exterior em que nos foi concedida uma bolsa de estudos por 4 (quatro)

meses8 pudemos realizar breve imerso no sistema pericial em trabalho-sade francs no

8 O plano original previa 12 (doze) meses de estgio doutoral no exterior e foi tentado desde nosso ingresso

no Doutorado em 2014. Aps sucessivos cortes no oramento federal da Educao e consequentes

25

perodo de maro a junho de 2017. Nosso estgio doutoral na cole des Hautes tudes

em Science Sociales (EHESS/CNRS) em Paris sob orientao do prof. Michael Lwy nos

possibilitou tambm intercmbio com: (a) o Laboratrio de tica Mdica e Medicina

Legal (EA 4569) vinculado Universit Paris V Ren-Descartes; (b) com a

Confdration Gnrale du Travail (CGT), principal central sindical francesa e a; (c)

Association pour la Prise em Charge des Maladies Eliminables (APCME) um servio

pblico de ateno e cuidado Sade do Trabalhador em Port-de-Bouc, prximo a

Marseille.

Alm da observao participante em nos locais descritos, foram feitas revises

sistemticas sobre publicaes pertinentes a nosso tema de pesquisa que nos alargaram o

conhecimento da realidade francesa de investigao e as teorias desenvolvidas ou

aprimoradas pelos pesquisadores do pas. A partir de tais revises sistemticas visamos

buscar uma maior aproximao com o contexto dos trabalhadores bem como polticas

pblicas e tutelas jurdicas no mbito trabalho-sade por l existentes. Tal feito se deu

tanto atravs da literatura especializada na rea, quanto na participao em eventos,

expedies de campo como tambm devido a anlise documental de cdigos, leis,

jurisdies, laudos periciais, sentenas, recursos e documentos outros ligados a nosso

objeto de pesquisa.

Tambm foram realizadas entrevistas abertas (no estruturadas) com sujeitos

igualmente ligados ao objeto desta pesquisa, a saber, as percias em trabalho-sade.

Assim, pudemos entrevistar: (1) dois docentes universitrios franceses, sendo o primeiro

socilogo da cole des Hautes tudes em Science Sociales (EHESS/CNRS), e o segundo,

um mdico presidente da Sociedade Francesa e Francfona de tica Mdica (SFFEM) e

da Academia Internacional tica, Medicina e Polticas Pblicas (IAMEPH); (2) um

sindicalista francs e coordenador em trabalho-sade da Confdration Gnrale du

Travail (CGT); (3) um economista francs, idealizador do SIC (Systme d'Information

Concret) e diretor da Association pour la Prise em Charge des Maladies Eliminables

(APCME) um servio pblico de ateno e cuidado sade do trabalhador em Port-de-

Bouc, na regio de Bouches-du-Rhne, prximo Marseille; (4) um mdico do trabalho

francs perito em instncias relativas seguridade social e tambm judiciais; (5) uma

advogada francesa, mestranda em tica Mdica e Medicina Legal na Paris V Ren

Descartes; (6) um psiclogo francs perito judicial; (7) uma psicloga italiana

anulaes e suspenses de editais de doutorado-sanduche de rgos tais como Capes (PDSE suspenso de

maio/2015 a julho/2016), CNPq (SWE Edital 209567/2015-5) e acordo Capes/Cofecube (Edital n 16/2015)

26

ergonomista e professora universitria aposentada da Universit Degli Studi di Torino, e

uma das idealizadoras do Movimento Operrio Italiano (MOI); (8) um mdico do trabalho

italiano de um hospital pblico de Milo (ITA); (9) um mdico italiano ergonomista da

Clnica Del Lavoro Luigi Devoto da Universit Degli Studi di Milano (ITA) e; (10) um

coordenador e motorista de transportes privados, responsvel por procedimentos

administrativos quanto a trabalhadores acidentados e adoecidos na empresa em que atua.

Os critrios de incluso/excluso utilizados nessa etapa da pesquisa, seguiu os

mesmos parmetros estabelecidos para as entrevistas com sujeitos brasileiros.

Por meio dos relatos ouvidos, revises bibliogrficas, documentos analisados e

experincias vividas em nosso estgio doutoral, decorremos num breve estudo

comparativo da realidade francesa com a brasileira que melhor ser descrito nas

concluses deste trabalho.

Enfim, o empreendimento potencial desta pesquisa visou, como dissemos, numa

anlise do sistema pericial brasileiro em trabalho-sade focando em seu processo, gnese,

estrutura e em suas formas consideradas por ns mais desenvolvidas, quais sejam, as

percias previdencirias e judiciais. Para tal, a confeccionamos da seguinte forma:

No captulo 1 empreendemos numa anlise macroeconmica, social, histrica e

poltica em se compreender de que forma o ethos jurdico e o ethos mdico-sanitrio,

clivados pelo campo da cincia, esto subsumidos ao capital na gerao de valor. Ou seja,

como as bases materiais e condies existenciais de nossa sociedade, regidas pelo modo

de produo capitalista, determinam os preceitos jurdico-sanitrios normativos inerentes

a uma sociabilidade de tipo burguesa. Em outras palavras, visamos enunciar de que modo

as percias em trabalho-sade, uma vez institucionalizadas e mediadas pelo Estado,

cumprem um importante papel no processo sade-doena no seio da sociedade, de

manuteno da ordem hegemnica vigente que assegura os interesses da classe

dominante.

No captulo 2 depreendemos num esforo minucioso e ao mesmo tempo

cuidadoso de anlise bibliogrfica e documental para se esboar uma gnese e

desenvolvimento do campo pericial em trabalho-sade no Brasil. Buscou-se no

andamento deste exame detalhado, compreender as metamorfoses do referido campo que

o faz apresentar-se no formato em que se conjuga em nosso pas nos tempos atuais.

Separamos tal genealogia em contextos de momentos sociais e histricos importantes do

desenrolar processual do capitalismo brasileiro e as lutas econmico-polticas e jurdico-

27

legislativas travadas no mago do desenvolvimento e consolidao do campo da sade

do trabalhador.

Tendo feita nossa contextualizao terica e histrica, no extenso e denso captulo

3 objetivamos delinear, no apenas descrevendo a realidade nua e crua, mas sim

empreendendo numa anlise sociolgica desta realidade das diferentes formas periciais

em trabalho-sade encontradas no contexto brasileiro. Cada qual com suas formas de ser

particularistas a partir da conjuntura em que se inserem, resguardam cognaes entre si

seja pelas finalidades a serem atingidas, seja pela forma metodolgica e processual que

se do, seja, principalmente, pelos modos transversais como se atravessam. Contudo,

nossa anlise mais obsequiosa e detalhada neste captulo se debruou nos modelos

periciais em trabalho-sade que consideramos as formas mais desenvolvidas neste

campo, quais sejam, as percias previdencirias e judiciais.

No decorrer do captulo 4, vasculhamos a j aberta caixa-preta das percias. A lida

nesse ponto foi a de, - tal qual Marx parte da anlise da Mercadoria para dela se

compreender todo o sistema do Capital sintetizado nesse objeto fetichizado que em sua

essncia materializa o trabalho abstrato e obscurece as contradies prprias da lei

econmica do movimento da sociedade moderna ao assumir a forma do valor e de uma

relao entre coisas -, partir do produto final de um processo pericial em trabalho-sade,

a saber, o laudo pericial e em seu cerne, um confinamento de compreenses a cerca do

nexo causal entre adoecimento-trabalho, bem como, de um entendimento sobre o

processo sade-doena como um todo. Ento, a partir da mercadoria, o laudo pericial,

produzido em decorrncia do processo de trabalho perito9 tenta-se levantar o papel e

identidade deste profissional e de seu fazer na organizao da cultura e manuteno

hegemnica da esfera jurdico-sanitria inserida no domnio da superestrutura no seio da

sociabilidade do capital.

Por fim, nas concluses objetiva-se levantar hipteses a possveis trabalhos

futuros sobre a temtica em questo, porm exigindo de ns pesquisadores, imaginao

sociolgica para se criarem conceitos e categorias que contribuam com a discusso de

superao dos atuais modelos periciais em trabalho-sade de forma que, estas possam vir

a ser processadas a partir de um olhar que abarque a experincia da classe trabalhadora

no que concerne o processo sade-doena e seus determinantes sociais, como elemento

central na preveno, promoo e assistncia de sua sade. Nas linhas finais deste estudo

9 Sem entrarmos a fundo no mrito da questo se este um trabalho produtivo ou improdutivo na discusso

marxista (1978), contudo, sem tambm ignorar por completo a mesma.

28

busca-se a superao das afirmaes e negaes intrnsecas a temtica pesquisada, no

ensaio de se prevalecer uma sntese de nosso entendimento sobre o universo da mesma,

tomando como substncia, os aportes terico-epistmicos e os materiais e mtodos

empricos levantados, - e devidamente apresentados e aprovisionados nos captulos

antecedentes -, no transcurso do trabalho. Somente tendo no horizonte, o ponto de vista

da totalidade, que nos permitido enxergar, por intercesso da dialtica, alm da

aparncia das coisas, ou seja, os processos e inter-relaes de que se compem a

realidade concreta do objeto examinado.

Por tratar-se de um trabalho com escassa literatura especializada que parta de uma

viso crtica e dialtica sobre o objeto analisado, como tambm, no universo da

bibliografia existente sobre o tema pouco se encontra de materiais que ensejem uma

linguagem que permita a apropriao multidisciplinar que o tema carece, que tivemos

tambm a preocupao de inserir um glossrio nos prembulos desse estudo para que o

mesmo possa ser, sempre que possvel, compreendido e criticado com vistas a atravessar

os muitos sujeitos que alcanar. Sejam eles vinculados academia, a servios de sade

ou provenientes de organizaes coletivas de trabalhadores e trabalhadoras e seus

mltiplos saberes tcitos e/ou cientficos. Ele abarca compreenses das reas do saber

pertinentes a esse estudo com a Psicologia, a Medicina, o Direito, as Cincias Sociais, a

Educao dentre outras cincias sociais e humanas.

Desse modo, o glossrio foi elaborado tanto a partir de definies oficiais sobre

os termos, siglas, conceitos, teorias e abreviaes institucionais consubstanciados no

corpo deste trabalho, quanto abrange nosso entendimento terico-poltico sobre os

mesmos. Assim, todas as vezes em que o leitor se deparar ao longo do texto com os termos

dispostos e aventados previamente no glossrio, podero ter uma compreenso da

acepo que denotamos a estes no presente estudo. A menos que, no contexto em que fora

empregado, referencie-se a significados outros que se ape de forma a serem devidamente

elucidados.

29

CAPTULO 1. SOBRE O SISTEMA JURDICO-SANITRIO

SUPERESTRUTURAL

"Sobre as diferentes formas da propriedade, sobre as condies sociais da

existncia, se eleva toda uma superestrutura de sentimentos, iluses, modos de

pensar e vises da vida distintos e configurados de modo peculiar. Toda a

classe os cria e molda a partir do seu fundamento material e a partir das

relaes sociais correspondentes." (MARX, 2011b, p. 60).

Na produo social da prpria existncia, os homens entram em relaes

determinadas, necessrias, independentes de sua vontade; essas relaes de produo

correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas foras produtivas

materiais. A totalidade dessas relaes de produo constitui a estrutura econmica da

sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e poltica e qual

correspondem formas sociais determinadas de conscincia. O modo de produo da vida

material condiciona o processo de vida social, poltica e intelectual10 (MARX, 2008, p.

47).

Logo, a superestrutura no autnoma, no aparece por gerao espontnea no

seio de uma sociedade, mas sim, tem fundamento nas relaes sociais de produo de

determinado momento histrico11. precisamente porque uma superestrutura se faz

necessria ordem do capital para organizar e estabilizar a sociedade que a estrutura

econmica conforma as instituies que a ela melhor se adequam, dentre elas, objetos de

nossa ateno, o ethos jurdico e o ethos mdico, saberes prticos que em determinado

momento histrico so clivados pelo campo da cincia: a justia (Direito) e a sade

(Medicina). Ambos igualmente atravessados pela materialidade histrica.

Ento, temos que a propriedade privada e a diviso social do trabalho, por

exemplo, so a forma jurdica de controle econmico das relaes de produo dentro da

10"Se a prpria produo material no for concebida em sua forma histrica especfica, impossvel

compreender o que especfico produo espiritual que a ela corresponde e a influncia recproca de uma

sobre a outra." (MARX, 2013, p. 305). 11 "(...) necessrio voltar a estudar toda a histria, devem examinar-se em todos os detalhes as condies

de existncia das diversas formaes sociais antes de procurar deduzir delas as ideias polticas, jurdicas,

estticas, filosficas, religiosas, etc. que lhe correspondem (MARX & ENGELS, 2010, p. 107).

30

sociedade do capital12 e, enquanto ideologia, tm papel ativo na sociedade13. Da mesma

forma, a "cincia dos corpos", a sade, que tambm cumpre uma funo na sociedade do

capital calcada no discurso baseado na invocao da biopoltica como meio de validao

da verdade por meio de um pragmatismo tecnicista que visa classificar o que "normal"

e o que "patolgico" regulando assim as trocas mercantis e garantindo

governamentalidade.

Canguilhem (1998, p. 13) admite que sade no um mero conceito cientfico,

mas sim vulgar (no significando trivial, mas sim algo comum a todos os homens) e

filosfico, quer dizer que o corpo vivo a sade singular existente que expressa a

qualidade da energia que constituem como deve-se viver sob imposio de direitos, por

isso, a ausncia de escolha a certa exposio em relao a um determinado ambiente faz

de sua sade tanto um estado quanto uma ordem.

Ou seja, para o autor (1998, p. 23-24), o corpo um produto desde a sua atividade

de insero em um ambiente social e historicamente determinado, quanto um estilo de

vida escolhido ou imposto, que o auxilia a moldar seu fentipo, isto , mudando sua

estrutura morfolgica e comeando a singularizar suas capacidades. neste terreno frtil

que algum discurso oportuno e obtm justificao. Como por exemplo o da higiene,

disciplina mdica tradicional que, traveste-se de uma ambio scio-poltico sanitarista

de regulao da vida dos indivduos atravs da determinao de uma norma para ento,

aplicar-se a reger uma populao.

Esta norma de acordo com Canguilhem (2000, p. 218) justamente aquilo que

fixa o dito "normal" a partir de uma deciso normativa que uma classe, detentora dos

meios de produo e definidora dos modos de reproduo social institui como sendo a

funo das normas sociais com o uso que ela prpria faz das normas cujo contedo

determina. A noo de normalidade ento no deixa, como o prprio nome indica, de

remeter normas concebidas e formuladas previamente. Por exemplo, a definio de

normas higinicas supe o interesse que se d - do ponto de vista poltico - sade das

populaes considerada estatisticamente, salubridade das condies de vida, extenso

uniforme dos tratamentos preventivos e curativos elaborados pela Medicina.

12 As formas jurdicas em que essas transaes econmicas aparecem como atos de vontade dos

participantes, como expresses de sua vontade comum e como contratos cuja execuo pode ser imposta

parte individual por meio do Estado no podem, como simples formas, determinar esse contedo. Elas

apenas o expressam. Esse contedo justo contanto que corresponda ao modo de produo, que lhe seja

adequado (MARX, 1985, p. 256). 13 Aquilo que realmente ideologia, por isso, somente podemos identificar pela sua ao social, por suas

funes na sociedade (LUKCS, 1981, p. 20).

31

Ou seja, a ideia de sade pblica para o autor (1998, p. 27) questionvel. Para

ele, salubridade seria um termo mais adequado pois o que vem a ser pblico, publicado,

muitas vezes a doena. O doente quem pede ajuda, chama a ateno; dependente. O

homem e a mulher saudveis que silenciosamente se adaptam s suas tarefas, que vivem

suas verdades de existncia em relativa liberdade de suas escolhas, esto presentes numa

sociedade que os ignora. Sade no , portanto apenas a vida no silncio dos rgos, mas

tambm a vida na discrio das relaes sociais.

Foucault (2011, p. 305) vai contestar a norma hegemnica de sade ao salientar

que uma medicina operria por exemplo, no a medicina burguesa, to claro como a

medicina das crianas no deve ser a dos adultos. Para o autor, a Medicina tambm define

no somente o que normal e o que patolgico, mas, por fim, o que lcito ou ilcito,

criminal ou no criminal, o que abuso ou no; e que, a utilizao das expertises mdicas

na justia por exemplo tambm uma das funes dessa cincia legitimada como um

sistema de saber com equilbrio e coerncia prprios e tambm dispostos em grau de

universalidade que aparentam ser inquestionveis (FOUCAULT, 2011, p. 306).

O Direito por sua vez, no atua somente quando esta "normalidade" ameaada

pois o prprio entendimento de "normal" desta sociedade s se configura como tal

tambm pela legitimao jurdica. Logo, a "normalidade", pode ser problematizada, j

que decorre no de uma ordem supramundana, mas da prxis concreta dos prprio

homens; nada tem ela, pois, em comum com a neutralidade, nada tem, tambm, de natural,

transcendente.

Nesse exame das relaes intrnsecas (e esprias) entra as dogmticas sanitrias

(a Medicina) e as dogmticas jurdicas (o Direito) v-se que h doutrinas e hermenuticas

que so elementos importantes de cada ethos profissional. Contudo, observa-se que em

determinado momento histrico por desenvolverem-se no seio da economia de uma

determinada sociedade, de forma que a inteno normativa guarda relaes com os

interesses desta economia, passam a consistir na escolha e na determinao da matria,

da forma e das dimenses de um objeto cujas caractersticas sejam, a por diante,

obrigaes de fabricao de uma norma conforme. Em outras palavras, criam o

entendimento hegemnico que se tem do processo sade-doena nas esferas da produo

e da reproduo social14.

14 fcil compreender como, por meio de sua ligao com a economia, a atividade tcnica e sua

normalizao, estabelecem relao com a ordem jurdica. (CANGUILHEM, 2000, p. 220)

32

Entendermos o desenvolvimento das foras produtivas em virtude do sistema de

antagonismo de classes nos d a clara noo de que esta forma que as cincias jurdicas e

sanitrias adquirem na sociedade burguesa no tpica de todas as formas de sociedade.

Nesse sentido, o contedo de classe de ambos deve ser desvelado como um processo e

no como determinao universal e a-histrica. Ou seja, na sociedade do capital que

encontramos, em essncia, um Direito e uma Medicina de classe, da classe dominante15.

E justamente para dominar, a classe dominante no pode jamais apresentar a sua

ideologia como sendo a sua ideologia, mas ela deve lutar para que esta ideologia seja

sempre entendida como a verdade, de forma a disfarar que a norma seja artifcio,

manipulao e interpretao para de fato transmitir tal verdade ideolgica travestida de

realidade. Nesse sentido que a esfera jurdico-sanitria na superestrutura nos parece

possuir uma autonomia relativa, uma "vida prpria", visto que as relaes de produo

existentes so representadas e legitimadas de uma forma abstrata e codificada, que, por

sua vez, estimula a iluso ideolgica de que so totalmente autnomas estrutura

econmica e dissociados das particularidades conflitivas da sociedade burguesa.

Ento, para serem socialmente "aceitas", as cincias jurdicas e da sade tornam-

se os instrumentos fetichizados necessrios capazes de subsumir o trabalhador16, - dotado

de valores individuais -, ao capital, numa categoria geral e niveladora no sentido de

adequao da conduta/comportamento deste aos imperativos normativos. Trata-se da

relao indissocivel entre a manipulao e a imposio do cotidiano alienado que visa

to somente assegurar a reproduo das normas da sociedade do capital e garantir que a

"normalidade" (a norma do capital) tenha um padro e se mantenha.

De acordo com Wandelli (2016), a natureza deste poder manipulatrio na

sociedade do capital essencialmente biopoltica. O conflito de subsuno do trabalho

vivo fora de trabalho pelo capital, muito alm de uma mera troca de fora de trabalho

por salrio, se desenvolve como uma guerra sobre os corpos. Essa necessidade de

disciplinar os corpos e normatizar as populaes segundo as vontades do capital no s

atende as necessidades da produo, mas tambm de governamentalidade.

15 Por mais diferenciados que sejam os contedos jurdicos na sua gnese e na sua vida concreta, a forma

jurdica [e sanitria] adquire homogeneidade prpria somente no curso da histria; quanto mais a vida social

se faz social, tanto mais ntida se torna tal homogeneidade (LUKCS, 1981, p. 94). 16 As lutas pela sade se desenvolvem parcial e incialmente no terreno imposto pela legislao, ou seja, o

da segurana e higiene do trabalho (LAURELL & NORIEGA, 1989, p. 120).

33

Dessa forma, o aparato jurdico-sanitrio superestrutural se apresenta desta forma

fetichizada e com vistas a dominar todos os campos da vida social. Se perdermos a

dimenso ontolgica que nos auxilia na desmistificao do significado das cincias da

sade e jurdicas em nossa sociedade, tenderemos a reduzir o processo de

desenvolvimento do ser social a um complexo jurdico e biomdico com fins em si

mesmo. Ou seja, de recair numa anlise reducionista da questo. Esquecemo-nos que sob

a abrangncia do Direito e da Medicina, permanece a estrutura econmica sobre a qual

ergue-se o complexo social total e que mediado pela forma na qual os indivduos de

uma classe dominante fazem valer seus interesses econmicos e ideolgicos e que resume

toda a sociedade burguesa: O Estado.

Conforme salientam Marx e Engels (2002, p. 74), na medida em que "todas as

instituies comuns passam pela mediao do Estado e recebem uma forma poltica", ou

seja, ao mesmo tempo em que apontam indissociabilidade das relaes de produo e da

reproduo da sociedade, enfatizam que esta forma se pretende autnoma por sua prpria

configurao dependente e que ganha vida prpria, tal como uma forma-mercadoria

fetichizada. Eis o carter dialtico do papel do Estado na sociedade burguesa. Deve-se ao

Estado, portanto, a regulamentao e mediao necessria para que o aparato jurdico-

sanitrio permanea em sua suposta e, aparentemente evidente neutralidade, como se a

imposio de uma forma normal de andamento da sociedade correspondesse um

benefcio universalista de toda ela.

Precisamente ento a crtica materialista viso jurdico-sanitria nos revela a

natureza especificamente burguesa das cincias da sade e jurdicas, como formas sociais

relacionadas intrinsicamente com o processo de trocas mercantis e o processo de

valorizao do capital17. Uma vez que, as cincias da sade e jurdicas aparecem como

algo natural, como reguladores da vida comum na sociedade burguesa tornando-se partes

essenciais do instrumental do Estado para dirigir a vida cotidiana dos homens e mulheres

com base na manipulao capitalista, eles atuam sobre formas estranhadas de se viver a

vida corroborando-as. Assim, no s se relacionam com o modo de produo capitalista

17 Tal compreenso nos faz inclusive pensar a categoria de sujeito de direito, que exprime homens e

mulheres que circulam no mercado como mercadorias, ou melhor, como proprietrios to somente de sua

fora de trabalho e que se oferecem a si mesmo no mercado. Desse modo, o Direito e a Medicina pem

homens e mulheres em termos de propriedade que se alienam de si prprios dispondo-se de si justamente

porque inculca-se a ideia de liberdade e igualdade. Ora, se no fossem livres, e a liberdade essa disposio

de si como mercadoria nas leis do capital, no fariam jus essa categoria de sujeito de direito com papis

j desenhados na ordem do capital.

34

e sua forma abstrata de sociabilidade pautada no fetiche das mercadorias, mas tambm se

configuram por meio desta manipulao como dimenses autnomas, evidentes e naturais

e, portanto, alienadas, quando justamente desenvolvem-se no bojo da esfera da

reproduo social.

Se Lukcs (1988) assim define a pessoa humana - o animal tornado homem

atravs do trabalho - como um ser que d respostas, pois ento, para responder, deve ser

antes indagado. Deste modo temos que a sociabilidade humana por meio do trabalho

provoca o homem e s o faz justamente por este estar inserido num meio ambiente social

de trabalho prprio do momento social e histrico eivado de contradies. Ou seja, se a

norma vem pr-concebida de maneira unilateral, do "mundo exterior" de forma alienada,

mediada por um ente essencial (o Estado) que arbitra os vrios resultados da prxis

humana estabelecendo o que "normal" e o que "patolgico", cabe pessoa humana

responder a ela, mesmo que tambm de forma estranhada, pois tanto as perguntas quanto

as respostas j so previamente estabelecidas nesse contexto no tendo sido formuladas

por si. Cabe ento, dar respostas radicais no sentido de ir alm da coisa que o provoca,

revelando seu carter real.

Mutatis mutandi, quanto mais esta concepo burguesa jurdico-sanitria ento se

pretende exata e precisa, colocando-se como reflexo neutro, universal e a-histrico da

sociedade, mais sua autonomia relativa, que dialeticamente se manifesta no fato de se

conceber como autnoma, se torna contraditria e fetichista. Advoga de um carter

sistemtico e fechado, porm atuando sobre relaes sociais concretas e em constante

transformao. por isso que a classe trabalhadora em sua luta contra a classe burguesa

permanece dando respostas e formulando suas reivindicaes de igualdade dentro de um

campo pr-estabelecido de justia e de sade numa apenas aparente recusa deste campo

jurdico-sanitarista que se faz poltico. A rigor, a classe trabalhadora ainda exprime os

seus interesses dentro do enquadramento jurdico-sanitrio de tipo burgus por meio

apenas da busca de uma alterao na ordem vigente com reivindicaes de igualdade

imersas numa forma social rgida e desigual em sua essncia.

Tal legalizao da luta de classes significa que as formas de luta da classe

trabalhadora s so legalmente reconhecidas, seja no campo jurdico18 ou sanitrio, se

observam os limites que a ideologia poltico-econmica estabelece. Num claro exemplo

de suposta garantia de igualdade de direitos sem se alterar a lgica econmica de

18 E o direito como campo na construo de legalidades.

35

produo/reproduo social de uma sociedade de classes, uma greve s se transforma em

direito de greve se os trabalhadores aceitam os termos que a ela emprestam licitude: a

greve no pode desorganizar a produo colocando em risco o processo do capital,

questionando, portanto, a dominao burguesa dos meios de produo19.

Do mesmo modo, a Constituio Federal brasileira de 1988 traz em seu artigo 196

que A sade direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas sociais

e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros agravos e ao acesso

universal e igualitrio s aes e servios para a promoo, proteo e recuperao.

Ou seja, o estabelecimento do que e como um dado ser considerado "sade" no

reproduz o conhecimento objetivo do ser-em-si do processo social, mas, ao contrrio, a

vontade do Estado acerca do que, como, e sob qual contexto e condies deve ou no

ocorrer. O entendimento de sade limita-se ao impacto do meio ambiente de trabalho

sobre os trabalhadores pela tica biopsquica, ou seja, de forma individualizada,

fragmentada, e desconexa da compreenso enquanto um processo social historicamente

determinado onde, de fato, doena alienao e sade emancipao20.

Entretanto, tal sistema jurdico-sanitrio no ir desaparecer quando as classes

desaparecerem, pois, o mesmo comporta tambm alguns aspectos cuja natureza

independe da existncia de classes sociais e das relaes que entre elas se travam sendo

ele um elemento fundamental nos assuntos humanos e que apenas foi apropriado e

deformado para assegurar os interesses da classe dominante. Sendo assim, a necessidade

de tal sistema somente desaparecer numa sociedade v