o ornitorrinco_francisco de oliveira

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  • 8/2/2019 O Ornitorrinco_Francisco de Oliveira

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    O Ornitorrinco*

    Francisco de Oliveira

    Ornitorrinco s.m.(Do gr. ornis, ornithos. ave +Rhynkhos. bico.) Ornithorhynchusanatinus.Mamfero monotremo, da subclasse dos

    prototrios, adaptado vida aqutica. Alcana40cm de comprimento, tem bico crneo,semelhante ao bico de pato, ps espalmadose rabo chato. ovparo.Ocorre na Austrlia ena Tasmnia. (Famlia dos ornitorrinqudeos).

    Encicl. O ornitorrinco vive em lagos e rios, nasmargem dos quais escava tocas que se abremdentro dgua. Os filhotes alimentam-selambendo o leite que escorre nos plos peitoraisda me, pois esta no apresenta mamas. O macho

    tem um esporo venenoso nas patas posteriores.Este animal conserva certas caractersticasreptilianas, principalmente uma homeotermiaimperfeita. GrandeEnciclpediaLarousseCultural.vol.18, Ofa-Per, So Paulo, NovaCultural, 1998.

    De Darwin a Prebisch/Furtado

    A teoria do subdesenvolvimento, nica elaborao original alternativa teoria

    do crescimento de origem clssica, Smith e Ricardo, no , decididamente,

    uma teoria evolucionista. Sabe-se que o evolucionismo influiu praticamenteem todos os campos cientficos, inclusive em Marx, que nutria grande

    admirao pelo cientista ingls que moldou um dos mais importantes

    paradigmas cientficos de todos os tempos, cuja predominncia hoje quase

    absoluta. Mas tanto Marx quanto os tericos do subdesenvolvimento no eram

    evolucionistas. O primeiro porque sua teoria trabalha com rupturas, com a

    trade tese-anttese-sntese, e o motor da histria so os intersses concretos

    das classes, vale dizer a conscincia, mesmo imperfeita, dos sujeitos

    constitutivos: os homens fazem a histria... O evolucionismo no comporta

    * Foi na defesa de tese de doutoramento de Caico, amigo dos tempos sombrios, conhecido socialmente como CarlosEduardo Fernandez da Silveira, de cuja banca honrosamente fazia parte no Instituto de Economia da Universidade deCampinas em 19/out/2001 que, de repente, deu-me um estalo: a sociedade e economia que ele descrevia, em seusimpasses e combinaes exdrxulas, s podia ser um ornitorrinco. Devo-lhe mais essa, Caico.

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    conscincia, mas uma seleo natural pela eliminao dos menos aptos,

    dentro do acaso. J os cepalinos foram influenciados por Weber e nas

    margens tambm por Marx cujo paradigma o da singularidade, que no

    uma seleo mas uma ao com sentido: no se cogita, weberianamente, deuma finalidade que no evolucionismo aparece como sendo a da reproduo

    da espcie.

    O subdesenvolvimento assim, no se inscrevia numa cadeia de evoluo que

    comeava no mundo primitivo at alcanar, atravs de estgios sucessivos, o

    pleno desenvolvimento. Antes, tratou-se de uma singularidade histrica, a

    forma do desenvolvimento capitalista nas ex-colnias transformadas emperiferia, cuja funo histrica esteve em fornecer elementos para a

    acumulao de capital no centro. Essa relao, que permaneceu apesar de

    intensas transformaes, a impediu, precisamente de evoluir para estgios

    superiores da acumulao capitalista, vale dizer, para igualar-se ao centro

    dinmico, conquanto lhe injetou reiteradamente elementos de atualizao. O

    marxismo, dispondo do mais formidvel arsenal de crtica economia

    clssica, tem uma teoria do desenvolvimento capitalista na prpria teoria da

    acumulao de capital, mas falhou em especificar-lhe as formas histricas

    concretas, sobretudo em relao periferia. Quando o tentou, obteve alguns

    dos grandes resultados de carter mais geral, com a "via prussiana e a

    revoluo passiva. Mas por muito tempo, um evolucionismo marxista

    esteve em larga voga, o que resultou numa raqutica teoria sobre a periferia

    capitalista, dentro das etapas de Stlin, do comunismo primitivo pr-classes ao

    comunismo ps-classes. No caso latinoamericano esse etapismo levou a

    equvocos de estratgia poltica, e a teoria do subdesenvolvimento era

    considerada reformista e aliada do imperialismo norteamericano.

    O subdesenvolvimento poderia se inscrever como um caso da revoluo

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    passiva, que a opo interpretativa de Carlos Nelson Coutinho e Luis Jorge

    Werneck Vianna1, mas de qualquer modo falta-lhes, para se igualar

    teorizao do subdesenvolvimento, as especficas condies latinoamericanas,

    vale dizer, o estatuto de ex-colnias, que lhe d especificidade poltica, e oestatuto rebaixado da questo da fora de trabalho, escravismo e

    encomiendas, que lhe confere especificidade social . Florestan Fernandes

    aproximou-se de uma interpretao na mesma linha em A Revoluo

    Burguesa no Brasil, mas deve-se reconhecer sua dvida para com a

    originalidade cepalina-furtadiana. Todos, de alguma forma, incluindo-se

    Furtado, so devedores, na interpretao do Brasil, dos clssicos dos anos

    trinta, que se esmeraram em marcar a originalidade da colnia, da

    sociabilidade forjada pela summa da herana ibrica com as condies da

    explorao colonial fundada no escravismo.

    Como singularidade e no elo na cadeia do desenvolvimento, e pela

    conscincia, o subdesenvolvimento no era, exatamente, uma evoluo

    truncada, mas uma produo da dependncia pela conjuno de lugar na

    diviso internacional do trabalho capitalista e articulao dos intersses

    internos. Por isso mesmo, havia uma abertura a partir da luta interna das

    classes, articulada com uma mudana na diviso internacional do trabalho

    capitalista. Algo que, no Brasil, ganhou contornos desde a Revoluo de 1930

    e adquiriu consistncia com a chamada industrializao por substituio de

    importaes. Celso Furtado, em FormaoEconmicadoBrasil, fornece a

    chave dessa conjuno: crise mundial de Trinta e revoluo interna, umaespcie de 18 de Brumrio brasileiro, em que a industrializao surge como

    1 Ver Luis Jorge Werneck Vianna . A Revoluo Passiva. Rio de Janeiro, Revan, 1997. Carlos NelsonCoutinho entende que Caio Prado Jr. j havia construdo uma espcie de via especfica para o capitalismo, queseria, afinal, o subdesenvolvimento, mas os desdobramentos posteriores do prprio Caio o fizeram ancorarnuma teoria do colonialismo.. Ver, de Carlos Nelson, Uma via no-clssica para o capitalismo in Maria daConceio DIncao, (org.) Histria e Ideal. Ensaios sobre Caio Prado Jr. So Paulo, Unesp/Brasiliense, 1989

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    projeto de dominao por outras formas da diviso social do trabalho, mesmo

    s custas do derrocamento da burguesia cafeicultora do seu lugar central O

    termo sub-desenvolvimento no neutro: ele revela, pelo prefixo sub, que a

    formao perifrica assim constituda tinha lugar numa diviso internacionaldo trabalho capitalista, portanto hierarquizada, sem o que o prprio conceito

    no faria sentido. Mas no etapista tanto no sentido estalinista quanto

    evolucionista.

    ACrtica RazoDualista tenta apanhar esses caminhos cruzados: como

    crtica ela pertence ao campo marxista, e como especificidade, ao campo

    cepalino. Embora arroubos do tempo tenham inscrito nela invectivas contra os

    cepalinos, eu j me penintenciei desses equvocos, a forma tsca de ajudar a

    introduzir novos elementos na construo da especificidade da forma

    brasileira do subdesenvolvimento. Uma espcie de dvida do vcio virtude.

    Ela cepalina e marxista no sentido de mostrar como a articulao das formas

    econmicas subdesenvolvidas inclua a poltica, no como externalidade, mas

    como estruturante: Furtado havia tratado disso quando interpretou a resoluo

    da crise de superproduo de caf nos anos da grande crise de 30, mas depois

    abandonou essa grande abertura, e o 18deBrumrio j havia ensinado aos

    marxistas que a poltica no externa aos movimentos de classe, isto , a

    classe se faz na luta de classes, mas eles tambm desaprenderam a lio.

    Retomei essas duas perspectivas para tentar entender como e porque

    lideranas como Vargas e suas criaturas, o PTB - Partido Trabalhista

    Brasileiro e o Partido Social-Democrtico, o lendrio PSD, haviam presidido aindustrializao brasileira, arrancando especificamente de bases rurais: o

    moderno, a indstria, alimentando-se do atrasado, a economia de subsistncia.

    Trs pontos receberam ateno, para completar a forma especfica do

    subdesenvolvimento brasileiro. O primeiro deles dizia respeito funo da

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    agricultura de subsistncia para a acumulao interna de capital. Aqui, a

    Cepal, Prebisch e Furtado2, haviam empacado com a tese do setor atrasado

    como obstculo ao desenvolvimento, tese alis que esteve muito em moda na

    teorizao contempornea, como a de Arthur Lewis sobre a formao dosalrio em condies de excesso de mo-de-obra. Tal tese no encontrava

    sustentao histrica, posto que a economia brasileira experimentou uma taxa

    secular de crescimento desde o sculo XIX, que no encontra paralelo em

    qualquer outra economia capitalista no mundo.3 E os estudos sobre o caf

    mostraram que o modo inicial de sua expanso utilizou a agricultura de

    subsistncia dos colonos, intercalada com o caf, para prover-lhes o sustento,

    o que depois era incorporado pela cultura do caf. Benfeitorias como

    acumulao primitiva. Alis, o prprio Furtado, ao estudar as culturas de

    subsistncia tanto no Nordeste quanto em Minas, viu sua funo na

    formao do fundo de acumulao e na expanso dos mercados a partir de So

    Paulo. Sustentei, ento, que a agricultura atrasada financiava a agricultura

    moderna e a industrializao.

    Alis, o nascimento do moderno sistema bancrio brasileiro, que teve em

    Minas um de seus principais pontos de emergncia, mostrava essa relao

    entre as formas de subsistncia e o setor mais avanado do capital, tema alis

    presente em Marx nAsGuerrasCivisnaFrana. Apontei, ento, que as

    culturas de subsistncia tanto ajudavam a baixar o custo de reproduo da

    fora de trabalho nas cidades, o que facilitava a acumulao de capital

    industrial, quanto produzia um excedente no-reinvertvel nela mesma, que seescoava para financiar a acumulao urbana. Um trabalho de Francisco S Jr.,

    2 De Furtado, o clssico Formao Econmica do Brasil 25ed. So Paulo, Cia. Editora Nacional, 1995, deRal Prebisch, o no menos famoso na verdade seminal relatrio da Cepal, El desarrollo econmico de laAmrica Latina y algunos de sus principales problemas.In Adolfo Gurrieri, La obra de Prebisch en la Cepal.Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1982.3 Angus Madison, Monitoring the World Economy. 1820-1992, OECD, Paris. 1995

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    que apareceu mesma poca, explorava esse insight para as especficas

    condies da agricultura de subsistncia do Nordeste. Consegui public-lo na

    Estudos Cebrap4, mas nunca mais meu xar Chico voltou ao assunto, e o seu

    clssico estudo no voltou a ser frequentado. E Chico mesmo desapareceu,com sua figura de andarilho quase Conselheiro, logo le um carioca da gema,

    da velha cpa dos S, desde Estcio, que foi colonizador antes de ser estao

    do melhor samba carioca.

    Esse conjunto de imbricaes entre agricultura de subsistncia, sistema

    bancrio, financiamento da acumulao industrial e barateamento da

    reproduo da fora de trabalho nas cidades constitua o fulcro do processo de

    expanso capitalista, que havia deixado de ser percebido pela teorizao

    cepalino-furtadiana, em que pese seu elevado teor heurstico. Tive que entrar

    em forte discordncia com as teorias do atraso na agricultura como fator

    impeditivo, com a do inchao das cidades como marginalidade, com a da

    incompatibilidade da legislao do salrio-mnimo com a acumulao de

    capital, o que no quer dizer que as considerasse fundamentos slidos para a

    expanso capitalista; ao contrrio, sua debilidade residia e reside ainda

    precisamente na m distribuio de renda que estrutura, que constituir srio

    empecilho para a futura acumulao.

    Da derivou uma explicao para o papel do exrcito de reserva nas cidades,

    ocupado em atividades informais, que para a maior parte dos tericos era

    apenas consumidor de excedente ou simplesmente lumpen, e para mim fazia

    parte tambm dos expedientes de rebaixamento do custo de reproduo dafora de trabalho urbana. O caso da autoconstruo e dos mutires passou a

    ser explicativo do paradoxo de que os pobres, incluindo necessariamente os

    operrios, so proprietrios de suas residncias se que se pode chamar

    4 Ver Francisco S Jr. O desenvolvimento da agricultura nordestina e a funo das atividades desubsistncia, in Estudos Cebrap n. 3, jan 1973, So Paulo, Editora Brasileira de Cincias,1973

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    assim o horror das favelas com o que reduzem o custo monetrio de sua

    prpria reproduo.5

    Nada disso uma adaptao darwinista s condies rurais e urbanas do

    processo da expanso capitalista no Brasil, nem estratgias desobrevivncia, para uma certa antropologia, mas basicamente as formas

    irresolutas da questo da terra e do estatuto da fora de trabalho, a

    subordinao da nova classe social urbana, o proletariado, ao Estado, e o

    transformismo brasileiro, forma da modernizao conservadora, ou de uma

    revoluo produtiva sem revoluo burguesa. Ao rejeitar o dualismo cepalino,

    acentuava-se que o especfico da revoluo produtiva sem revoluo burguesa

    era o carter produtivo do atraso como condmino da expanso capitalista.

    O subdesenvolvimento viria a ser, portanto, a forma da exceo permanente

    do sistema capitalista na sua periferia. Como disse Walter Benjamin, os

    oprimidos sabem do que se trata. O subdesenvolvimento finalmente a

    exceo sobre os oprimidos: o mutiro a autoconstruo como exceo da

    cidade, o trabalho informal como exceo da mercadoria, o patrimonialismo

    como exceo da concorrncia entre os capitais, a coero estatal como

    exceo da acumulao privada, keynesianismo avantlalettre. De resto, esta

    ltima caracterstica tambm est presente nos capitalismos tardios6. O

    carter internacional do subdesenvolvimento, na exceo, se reafirma com a

    coero estatal, utilizada no apenas nos capitalismos tardios mas de forma

    reiterada e estruturante no ps-depresso de Trinta.

    5 Aqui, o acaso tambm ajudou: ensinava Sociologia na nvel Faculdade de Arquitetura e Urbanismo deSantos, junto com Sergio Ferro, rigor formal e paixo, e o inesquecvel Rodrigo Lefvre, o danarino dasSandlias de Prata que a madrasta levou , e eles realizavam junto com outros professores , uma pesquisa sobrehabitao. Ali constatava-se que a grande maioria dos favelados era proprietria de seus barracos: a incgnitafoi resolvida com a revelao de que a construo da propriedade era feita em mutires, tal comoimemorialmente se fazia no campo. A, me caiu a ficha.6 Ver Jos Luis Fiori (org.) Estados e Moedas no Desenvolvimento das Naes. Coleo Zero Esquerda .Petrpolis, Ed. Vozes, 1999, especialmente a segunda parte Os Capitalismos Tardios E Sua ProjeoGlobal.

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    A singularidade do subdesenvolvimento poderia ser resolvida no-

    evolucionisticamente a partir de suas prprias contradies, condio que a

    vontade das classes soubesse aproveitar a riqueza da iniquidade de ser

    periferia. A insero na diviso internacional do trabalho capitalista, reiteradopor cada ciclo de modernizao, propiciaria os meios tcnicos modernos,

    capazes de fazer queimar etapas, como os perodos Vargas e Kubistchek

    mostraram. O crescimento da organizo dos trabalhadores poderia levar

    liquidao da alta explorao propiciada pelo custo rebaixado da fora de

    trabalho. A reforma agrria poderia liquidar tanto com a fonte fornecedora do

    exrcito de reserva das cidades, quanto com o poder patrimonialista. Mas

    faltou o outro lado, isto , que o projeto emancipador fsse compartilhado pela

    burguesia nacional, o que no se deu. Ao contrrio, esta voltou as costas

    aliana com as classes subordinadas, ela mesma j bastante enfraquecida pela

    invaso de seu reduto de poder de classe pela crescente internacionalizao da

    propriedade industrial, sobretudo nos ramos novssimos.7 O golpe de estado de

    1964, contemporneo dos outros na maioria dos paises latinoamericanos,

    derrotou a possibilidade aberta.

    A longa ditadura militar de 1964 a 1984 prosseguiu, agora nitidamente, com a

    via prussiana: fortssima represso poltica, mo de ferro sobre os

    sindicatos, coero estatal no mais alto grau, aumentando o grau de presena

    de empresas estatais numa proporo que nenhum nacionalista do perodo

    anterior havia sonhado, abertura ao capital estrangeiro, industrializao a

    marcha forada a expresso de Antonio Barros de Castro - , e nenhumesforo para liquidar com o patrimonialismo nem resolver o agudo problema

    7 Deste ponto de vista, o livro de Fernando Henrique Cardoso, Empresrio Industrial e DesenvolvimentoEconmico, So Paulo, Difel, 1964, reconhecia que a burguesia industrial nacional preferia a aliana com ocapital internacional. Trata-se talvez do que de melhor o ex-socilogo , hoje ex-presidente e eterno candidatoao Planalto, produziu academicamente. Roberto Schwarz sustenta a tese de que Cardoso na presidnciaimplementou exatamente suas concluses neste livro, j que a burguesia nacional j havia renunciado a um

    projeto nacional; ele enveredou decididamente para integrar o pas na globalizao.

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    do financiamento interno da expanso do capital, que j havia se mostrado

    como o calcanhar de Aquiles da anterior configurao de foras. O

    endividamento externo apareceu ento como a soluo e por esse lado abriu

    as portas financeirizao da economia e das contas do Estado brasileiro, queficou patente no ltimo governo militar da ditadura, sob o mesmo czar das

    finanas que havia imperado no perodo do milagre brasileiro que, talvez

    por ter Antonio no nome fosse considerado milagreiro. Revelou-se um enorme

    farsante.

    Sob o signo de Darwin: O Ornitorrinco

    Como o ornitorrinco? Altamente urbanizado, pouca fora de trabalho e

    populao no campo, dunque nenhum resduo pr-capitalista; ao contrrio, um

    forte agrobusiness. Um setor industrial da Segunda Revoluo industrial

    completo, avanando, tatibitate, pela terceira revoluo, a molecular-digital ou

    informtica. Uma estrutura de servios muito diversificada numa ponta,

    quando ligados aos estratos de altas rendas, a rigor, mais ostensivamente

    perdulrio que sofisticado; noutra, extremamente primitivo, ligado exatamente

    ao consumo dos estratos pobres. Um sistema bancrio ainda atrofiado, embora

    acapare uma alta parte do PIB - % -, quando se o compara

    internacionalmente. Em termos da PEA ocupada, fraca e declinante

    participao da PEA rural, fora de trabalho industrial que chegou ao auge na

    dcada de setenta do sculo passado, mas decrescente tambm, e exploso

    continuada do emprego nos servios. Mas esta a descrio de um animalcuja evoluo seguiu todos os passos da famlia! Como primata ele j

    quase homosapiens !

    Parece dispr de conscincia, pois democratizou-se h j quase trs dcadas.

    Falta-lhe, ainda, produzir conhecimento, cincia e tcnica: basicamente segue

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    copiando, mas a decifrao do genoma da xylellafastidiosa8 mostra que pode

    no estar muito longe de certos avanos fundamentais no campo da

    biogentica; espera-se apenas que no resolva autoclonar-se, perpetuando o

    ornitorrinco. Onde que est falhando a evoluo ? Na circulaosangunea: a alta proporo da dvida externa sobre o PIB demonstra que sem

    o dinheiro externo, a economia no se move. um adiantamento formidvel:

    em 2001 o total da dvida externa sobre o PIB alcanou alarmantes 41% e o

    mero servio dela, juros sobre o PIB, 9,1 % . H poucas economias

    capitalistas assim; talvez os Estados Unidos acusem uma proporo to

    grande, com uma diferena radical: o sangue, o dlar, que circula

    internacionalmente e volta ao USA seu prprio sangue, j que o pas

    emissor. Desse ponto de vista, a evoluo regrediu: no se trata mais do

    subdesenvolvimento, mas de algo parecido apenas com a situao pr-crise de

    30, quando o servio da dvida , vale dizer, o pagamento dos juros mais as

    amortizaes do principal, comiam toda a receita de exportao !9 Mas h uma

    diferena fundamental: se no pr-30 as exportaes de caf eram toda a

    economia brasileira, agora trata-se de uma economia industrial, voltando-se,

    no entanto, mesma situao de subordinao financeira.10 Essa dependncia

    financeira externa cria, tambm, uma dvida financeira interna igualmente

    espantosa, como a poltica capaz de enxugar a liquidez interna produzida

    exatamente pelo ingresso de capitais especulativos. Mas tambm um

    8 Mariluce Moura, O novo produto brasileiro. Pesquisa n 55, Julho de 2000. Fapesp.S.Paulo,2000

    9 Ver Anibal Vilanova Vilella e Wilzon Suzigan, Crescimento da Economia e Poltica Econmica 1889-1930.Ipea, Rio; no meu artigo A Emergncia do Modo de Produo de Mercadorias: uma interpretaoterica da economia da Repblica Velha no Brasil, dei relevo pesquisa de Vilella e Suzigan, para definir ocarter violentssimo da crise. In Boris Fausto, Histria da Civlizao Brasileira. O Brasil Republicano. III.Cap. VII. So Paulo, Difel,197410 Nestes dias, do ltimo trimestre de 2002 at maro de 2003, os emprstimos externos que financiam asexportaes brasileiras secaram, devido conjuno de uma srie de fatores polticos e econmicos, e o dlardeu uma disparada indo at a estratosfera, com uma desvalorizao do real da ordem 30%. Passada aturbulncia poltica, voltaram os financiamentos externos e o dlar despencou na mesma proporo. Adependncia financeira dramtica e praticamente irreversvel, e de uma volatilidade espantosa..

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    adiantamento sobre a produo futura, de modo que somando-se dvida

    interna e externa chega-se concluso de que para produzir um PIB anual

    preciso endividar-se na mesma proporo. Esta a reiterao da

    financeirizao da economia.No passado, no subdesenvolvimento, o informal poderia ser uma situao

    passageira, a transio para a formalizao completa das relaes salariais, o

    que chegou a mostrar-se nos ltimos anos da dcada de setenta11; na minha

    prpria interpretao, tratava-se de uma forma que combinava uma

    acumulao insuficiente com o privilegiamento da acumulao propriamente

    industrial. Em termos tericos, tratava-se de uma forma aqum do valor, isto

    , utilizava-se a prpria mo-de-obra criada pelo movimento em direo s

    cidades e no de uma reserva pr-capitalista para prover de servios as

    cidades que se industrializavam.

    Avassalada pela terceira revoluo industrial, ou molecular-digital, em

    combinao com o movimento da mundializao do capital, a produtividade

    do trabalho d um salto mortal em direo plenitude do trabalho abstrato.

    Em sua dupla constituio, as formas concretas e a essncia abstrata, o

    consumo das foras de trabalho vivas encontrava obstculos , a porosidade

    entre o tempo de trabalho total e o tempo de trabalho da produo. Todo o

    crescimento da produtividade do trabalho a luta do capital para encurtar a

    distncia entre essas duas grandezas. Teoricamente, trata-se de transformar

    todo o tempo de trabalho em trabalho no-pago; parece coisa de feitiaria, e

    o fetiche em sua mxima expresso. Aqui, quase se fundem mais-valiaabsoluta e relativa: absoluta porque o capital usa o trabalhador quando

    necessita dele, relativa porque isso possvel somente devido enorme

    produtividade. A contradio: a jornada da mais-valia relativa deveria ser de

    11 Ver Elson Luciano SilvaPires, Metamorfoses e Regulao: O Mercado de Trabalho do Brasil nos AnosOitenta. Tese de doutoramento. Departamento de Sociologia, FFLCH-USP, So Paulo, 1995

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    diminuio do trabalho no-pago, mas o seu contrrio. Ento, graas

    produtividade do trabalho, desaparecem os tempos de no-trabalho: todo o

    tempo de trabalho tempo de produo. Os servios so o lugar da diviso

    social do trabalho onde essa ruptura j aparece com clareza. Cria-se umaespcie de trabalho abstrato virtual. As formas exticas desse trabalho

    abstrato virtual esto ali onde o trabalho aparece como diverso,

    entretenimento, comunidade entre trabalhadores e consumidores: nos

    shoppings centers. Mas na informao que reside o trabalho abstrato virtual.

    O trabalho mais pesado, mais primitivo, tambm lugar do trabalho abstrato

    virtual. Sua forma, uma fantasmagoria, um no-lugar, um no-tempo, que

    igual a tempo total. Pense-se em algum em sua casa, acessando sua conta

    bancria pelo seu computador, fazendo o trabalho que antes cabia a um

    bancrio: de que trabalho se trata ? Porisso, conceitos como formal e informal

    j no tm fora explicativa. O subdesenvolvimento pareceria ser uma

    evoluo s avessas: as classes dominantes, inseridas numa diviso do

    trabalho que opunha produtores de matrias-primas a produtores de bens de

    capital, optavam por uma forma da diviso de trabalho interna que preservasse

    a dominao: conscincia e no acaso. Ficava aberta a porta da

    transformao.

    Hoje, o ornitorrinco perdeu a capacidade de escolha, de seleo, e porisso

    uma evoluo truncada: como sugere a literatura da economia da tecnologia, o

    progresso tcnico incremental; tal literatura evolucionista,

    neoschumpeteriana.12 Sendo incremental, ele depende fundamentalmente daacumulao cientfico-tecnolgica anterior. Enquanto o progresso tcnico da

    Segunda Revoluo Industrial permitia saltar frente, operando por rupturas

    12 Ver para essa interessantissima discusso, a tese de Carlos Eduardo Fernandez da Silva, o Caico,Desenvolvimento tecnolgico no Brasil: Autonomia e dependncia num pas industrializado perifrico.Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

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    sem prvia acumulao tcnico-cientfica, por se tratar de conhecimento

    difuso e universal, o novo conhecimento tcnico-cientfico est trancado nas

    patentes, e no est disponvel nas prateleiras do supermercado das inovaes.

    E ele descartvel, efmero, como sugere Derrida, apud Laymert Garcia dosSantos.13 Essa combinao de descartabilidade, efemeridade e progresso

    incremental corta o passo s economias e sociedades que permanecem na

    rabeira do conhecimento tcnico-cientfico. Assim, a decifrao do genoma da

    xilella fastidiosa tem tudo para ser apenas um ornamento, a exibio

    orgulhosa da capacidade dos pesquisadores brasileiros, de um nicho muito

    especial, mas no a regra da produo do conhecimento.

    A revoluo molecular-digital anula a fronteira entre cincia e tecnologia: as

    duas so trabalhadas agora num mesmo processo, numa mesma unidade

    terico-metodolgica. Faz-se cincia fazendo tecnologia e vice-versa. Isto

    implica em que no h produtos tecnolgicos disponveis , parte, que possam

    ser utilizados sem a cincia que os produziu. E o inverso: no se pode fazer

    conhecimento cientfico sem a tecnologia adequada: a fabricao das bombas

    atmica e de hidrognio e as correspondentes produes de energia nuclear- a

    de fuso ainda no lograda completamente - j indicavam essa anulao, essa

    ultrapassagem. A revoluo molecular-digital deleta para usar um termo

    informtico definitivamente essa barreira. O que sobra como produtos

    tecnolgicos so apenas bens de consumo.

    Do ponto de vista da acumulao de capital, isto tem fundas consequncias. A

    primeira e mais bvia que os paises ou sistemas capitalistas subnacionaisperifricos podem apenas copiar o descartvel, mas no copiar a matriz da

    unidade tcnico-cientfica. Uma espcie de eterna corrida contra o relgio. A

    13 Laymert Garcia dos Santos, Biotecnologia, biodiversidade: passagem para o molecular global. Relatriode pesquisa subprojeto 9. Projeto temtico Fapesp Cidadania e Democracia: as rupturas no pensamento da

    poltica. So Paulo. Cenedic, FFLCH-USP, 2002

    13

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    segunda, menos bvia, que a acumulao que se realiza em termos de cpia

    do descartvel, tambm entra em obsolescncia acelerada, e nada sobra dela,

    ao contrrio da acumulao baseada na Segunda Revoluo Industrial. Isto

    exige um esforo de investimento sempre alm do limite das foras internas deacumulao, o que reitera os mecanismos de dependncia financeira externa.

    Mas o resultado fica sempre aqum do esforo: as taxas de acumulao,

    medidas pelo coeficiente da inverso sobre o PIB, so declinantes, e

    declinantes tambm as taxas de crescimento14. Em termos bastante utilizados

    pelos cepalinos, a relao produto-capital se deteriora: para obter cada vez

    menos produto, faz-se necessrio cada vez mais capital.15 E a contradio se

    agudiza porque a mundializao introduz aumento da produtividade do

    trabalho sem acumulao de capital, justamente pelo carter divisivel da

    forma tcnica molecular-digital, do que resulta a permanncia da m

    distribuio da renda: exemplificando mais uma vez, os vendedores de

    refrigerantes s portas dos estdios viram sua produtividade aumentada graas

    aojustintime dos fabricantes e distribuidores de bebidas, mas para realizar o

    valor de tais mercadorias, a forma do trabalho dos vendedores a mais

    primitiva. Combinam-se, pois, acumulao molecular-digital com o puro uso

    da fora de trabalho.

    A superao da descartabilidade/efemeridade imporia um esforo descomunal

    14 Perry Anderson trabalha essa contradio, para mostrar como apesar de todas as reformas neoliberais, astaxas de investimento e de crescimento do PIB jamais recuperaram o vigor do perodo 1950-1970 nos pasescentrais. Ver. Balano do Neoliberalismo in Emir Sader (org.) Ps-Neoliberalismo - As polticas Sociais e o

    Estado Democrtico. So Paulo/Rio, Paz e Terra, 199515 Nos dias de hoje, est em discusso a possibilidade do Brasil produzir sua prpria televiso digital, oucopiar o que est disponvel internacionalmente. Uma terceira opo, variante da primeira, seria entrar numconsrcio cientfico-tecnolgico com a China. A posio do Ministro da Fazenda, o hoje controvertidoAntonio Palocci, de que no vale a pena, pois exigiria bilhes de reais de investimento para um retorno

    precrio, dadas as reduzidas dimenses do mercado brasileiro, e o fato de que, no sistema de patentes e sob avigilncia da Organizao Mundial do Comrcio, pensar em exportao da televiso digital brasileira umaquimera, perigosa para o hoje ministro Palocci. Tal dilema j havia aparecido no caso da televiso a cores,que foi resolvida mediante a adoo dos padres Palm-M e o NSPC, isto , cpias descartveis. No houveesforo cientfico-tecnolgico nacional para criar um padro original, mas apenas adaptao .

    14

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    de pesquisa cientfico-tecnolgica, aumentando-se o coeficiente de P&D ou

    C&T sobre o PIB em algumas vezes, para saltar frente da produo

    cientfico-tecnolgica. Ainda segundo Carlos Fernandez da Silveira o

    responsvel pelo ornitorrinco o coeficiente brasileiro para 1997 era demeros 1,5%. A acumulao de capital para realizar um salto dessas propores

    significaria elevar muito o coeficiente de inverso sobre o PIB em perodo

    longo ,a partir da base atual, que era de quase 18% em 1999, e sobretudo

    mudar o mix da inverso, com maior proporo de C&D.16 Em alguns

    perodos da histria, diversos subsistemas econmicos nacionais realizaram tal

    faanha, s custas de uma enorme represso poltica, de uma economia de

    monge franciscano, com total irrelevncia da produo de bens de consumo.

    Foi o caso japons, por exemplo, que de tanto sua populao acostumar-se a

    poupar, o Japo dispe hoje de uma enorme poupana que no se transforma

    em investimento; mesmo o consumo de todos os gadgets eletrnicos cuja

    produo j foi deslocada at para a China no consegue gastar a renda dos

    nipes ; o segundo foi o caso da Unio Sovitica, em que a produo de bens

    de consumo foi totalmente desprezada, gerando a incapacidade da agricultura

    sovitica que, nos ltimos anos do regime socialista , j significava fome. No

    caso sovitico, a forma tcnica da acumulao de capital da Segunda

    Revoluo Industrial permitiu o extraordinrio avano ocorrido mas, por sua

    indivisibilidade, no permitiu sua utilizao na produo de bens-salrio:

    equipamento para siderurgia no produz pes.17 O paradoxo que a

    acumulao de capital nas formas da Segunda Revoluo Industrial podia

    16 Dados extrados de Revista BNDES, Rio de Janeiro, vol.8, no. 15, jun 200117 Na discusso terica dos anos cinquenta, o modelo adotado pela ento Unio Sovitica parecia lhe darvantagem, como teorizou Nicholas Kaldor, pois os bens de capital puxavam a economia; mas no se prestou adevida ateno terica s indivisibilidades das formas tcnicas da Segunda Revoluo Industrial, quefinalmente constituiu-se no gargalo da experincia sovitica. Na equao keynesiana, P = C + S ou I, e nocaso sovitico o modelo das indstrias pesadas no tinha como no penalizar o consumo, embora produzisseum crescimento global espantoso na poca dos Planos Quinquenais..

    15

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    avanar utilizando o conhecimento tcnico-cientfico disponvel, mas elas as

    formas eram indivisiveis; na revoluo molecular-digital, as formas so

    divisveis, mas o conhecimento tcnico-cientfico indivisvel na unidade C

    & D.No parece ser o caso do Brasil, onde nos melhores anos kubistchekianos

    chegou-se aos 22% de investimento sobre o PIB; a ditadura militar, para

    elevar o coeficiente de investimento se financiou externamente gerando a

    enorme dvida , que se transformou em fator de coero do crescimento e de

    subordinao financeira internacional. Como a acumulao incremental tem

    que realizar-se permanentemente, no havendo um dayafterquando j no se

    precisaria de altas taxas de investimento, no parece algo mo para um pas

    que acaba de criar um programa de Fome Zero pelas mui prosaicas e terrveis

    razes de uma distribuio de renda incomensuravelmente desigualitria.

    Aterrisando na periferia, o efeito desse espantoso aumento da produtividade

    do trabalho, desse trabalho abstrato virtual, no pode ser menos que

    devastador. Aproveitando a enorme reserva criada pela prpria

    industrializao, como informal, a acumulao molecular-digital no

    necessitou desfazer drasticamente as formas concreto-abstratas do trabalho,

    seno em seus reduzidos nichos fordistas. Realiza, ento, o trabalho de

    extrao de mais-valia sem nenhuma resistncia, sem nenhuma das

    porosidades que entravavam a completa explorao.

    A tendncia formalizao das relaes salariais estancou nos anos oitenta, e

    expandiu-se o que ainda impropriamente chamado de trabalho informal.Entroncando com a chamada reestruturao produtiva, assiste-se ao que Castel

    chama a desfiliao, isto , desconstruo da relao salarial.18 Que se d

    em todos os nveis e setores. Terceirizao, precarizao, flexibilizao,

    18 Robert Castel, As Metamorfoses da Questo Social: Uma Crnica do Salrio. Coleo Zero Esquerda.Petrpolis, Vozes, 1998.

    16

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    desemprego s taxas de quase 30% na Grande So Paulo e 25% em Salvador,

    e no to contraditoriamente como se pensa, ocupao e no mais emprego

    : grupos de jovens nos cruzamentos vendendo qualquer coisa e lavando-

    sujando vidros de carros, ambulantes por todos os lugares os leitos dastradicionais e bancrias e banqueiras ruas Quinze e Ba Vista em So Paulo

    transformaram-se em tapetes de quinquilharias -, o entorno do formoso e

    iluminadssimo Teatro Municipal de So Paulo no mais formoso que o

    Municipal do Rio, anote-se exibe o teatro de uma sociedade derrotada, um

    bazar multiforme onde a cpia pobre do bem de consumo de alto nvel

    horrivelmente kitsch, milhares de vendedores de coca-cola, guaran, cerveja,

    gua mineral, nas portas dos estdios duas vezes por semana. Pasmemos

    teoricamente: trata-se de trabalho abstrato virtual. Polticas piedosas tentam

    treinar e qualificar essa mo-de-obra, num trabalho de Ssifo, jogando

    gua em cesto, acreditando que o velho e bom trabalho com carteira voltar

    quando o ciclo de negcios se reativar. 19. Ser o contrrio: quando se reativar,

    e isto ocorrer de forma intermitente, sem sustentabilidade prevsivel, ento

    em cada novo perodo de crescimento o trabalho abstrato virtual se instalar

    mais fundamente.

    O ornitorrinco uma das sociedades capitalistas mais desigualitrias, mais

    mesmo que as economias mais pobres da frica que, a rigor, no podem ser

    tomadas como economias capitalistas, apesar de ter experimentado as taxas de

    crescimento mais expressivas em perodo longo20 - sou tentado a dizer com a

    elegncia francesa, etpour cause . As determinaes mais evidentes dessacontradio residem na combinao do estatuto rebaixado da fora de trabalho

    com dependncia externa. A primeira sustentou uma forma de acumulao

    19 Em todos os cursos dessas requalificaes, treinam-se trabalhadores em informtica, o ai Jesus donovo trabalhador polivalente: no h nada to trgico, pois ensina-se a prpria matriz da descartabilidade.20 Ver Angus Madison, op. cit.

    17

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    que financiou a expanso, isto , o subdesenvolvimento, conforme

    interpretado na CrticaRazoDualista, mas combinando-se com a segunda

    produziu um mercado interno apto apenas a consumir cpias, dando como

    resultado uma reiterao no-virtuosa.Com a revoluo molecular-digital como forma tcnica principal da

    acumulao de capital, o fatiamento digital do mercado pode prosseguir sem

    que d lugar a crises de realizao, derivadas de uma superacumulao; estas

    ocorrem apenas quando a espantosa concentrao de renda se desacelera; do

    ponto de vista do consumo popular, apesar das crticas bem intencionadas, no

    se chega a crises de realizao: o fatiamento digital capaz de descer aos

    infernos da m distribuio da renda. Crises de superacumulao podem

    ocorrer to somente como problemas da concorrncia oligopolstica , como

    hoje com as telecomunicaes, depois das grandes privatizaes. Para ganhar

    ofiletmignon das telecomunicaes, as gigantes mundiais da telecomunicao

    lanaram-se a uma concorrncia predatria, instalando sistemas de telefonia

    mvel e rebaixando o preo dos telefones celulares e aumentando as

    importaes mas logo se depararam com o obstculo da distribuio da

    renda das camadas mais pobres. Todas as formas dos produtos da revoluo

    molecular-digital podem chegar at os estratos mais baixos de renda, como

    bens de consumo durveis: as florestas de antenas, inclusive parablicas, sobre

    os barracos das favelas sua melhor ilustrao. Falta dizer, ao modo

    frankfurtiano, que essa capacidade de levar o consumo at os setores mais

    pobres da sociedade, ela mesma o mais poderoso narctico social. CelsoFurtado j havia advertido para isso, mas a meu ver ps o acento na

    importao de padres de consumo predatrios, ao invs de ver na

    distribuio de renda o motor determinante.21Seu ltimo pequeno grande livro

    21 Ver Celso Furtado, Subdesenvolvimento e estagnao na Amrica Latina. Rio de Janeiro, CivilizaoBrasileira, 1966 e Anlise do Modelo Brasileiro. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1972..

    18

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    corrigiu para melhor sua advertncia.22

    A organizao dos trabalhadores poderia operar a transformao da estrutura

    desigualitria da distribuio da renda, tal como ocorreu nos subsistemas

    nacionais europeus do Welfare State. A expanso das relaes assalariadasseria o vetor por onde ganharia materialidade a organizao, o que de fato

    ocorreu precariamente at os anos setenta. J a crise do golpe militar de 1964

    anunciava que as organizaes de trabalhadores j no eram simples correias

    de transmisso da dominao chamada populista pela literatura

    sociolgica-poltica.23 A ecloso dos grandes movimentos sindicais nos anos

    setenta, de que resultou , em grande medida, o Partido dos Trabalhadores,

    parecia indicar um caminho europeu24; medindo-se as propores do salrio

    e do lucro na renda nacional, a diviso funcional da renda, anotava-se uma

    melhoria na distribuio, e a vocao de universalizador das demandas do

    mundo do trabalho que passou a ser exercida pelos sindicatos autnticos

    ABC, petroleiros, bancrios parecia ter tudo para expandir a relao salarial

    e seus correlatos, na Seguridade Social e nas formas do salrio indireto. As

    empresas estatais adiantaram-se sob esse aspecto importa no esquecer que

    os petroleiros eram uma categoria tambm de funcionrios pblicos inserida

    na produo de mercadorias de que resultaram os grandes fundos de penso.

    Esse movimento deteve-se nos anos oitenta e entrou em franca regresso a

    22 Celso Furtado. Em busca de novo modelo - reflexes sobre a crise contempornea. So Paulo, Paz e Terra,2002.23 J est se impondo a reviso dessa literatura, que tomou o populismo como formas quase-fascistas na

    Amrica Latina. Ver Alexandre Fortes, Trabalhismo e Populismo: Novos Contornos de um Velho Debate.Indito; Jorge Ferreira (org.) O populismo e sua histria. Debate e Crtica. Rio de Janeiro, CivilizaoBrasileira, 200124 Havia ali uma contradio: o movimento sindicalista que foi chamado autntico por oposio aos

    pelgos sados das intervenes da ditadura nos grandes sindicatos, caso clssico dos Metalrgicos de SoPaulo - praticavam um sindicalismo americana, com negociaes que se centravam nas empresas e depoisse espraiavam , justamente porque eram empregados das grandes multinacionais, sobretudo no setorautomotivo que sempre liderou So Bernardo. A ditadura e a crise do milagre brasileiro, com a crise dadvida externa e a incapacidade das montadoras jogarem os reajustes de preos dos automveis para a dvidaexterna, levou o sindicalismo com vocao americana para mais perto do modelo europeu.

    19

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    partir dali. As foras do trabalho j no tm fora social, erosionada pela

    reestruturao produtiva e pelo trabalho abstrato-virtual e fora poltica,

    posto que dificilmente tais mudanas na base tcnico-material da produo

    deixariam de repercutir na formao da classe. Embora na linha thompsonianatrabalhador no seja apenas um lugar na produo, inegavelmente h que

    concordar com Perry Anderson: sem esse lugar, ningum trabalhador,

    operrio. A representao de classe perdeu sua base e o poder poltico a partir

    dela estiolou-se. Nas especficas condies brasileiras, tal perda tem um

    enorme significado: no est vista a ruptura com a longa via passiva

    brasileira, mas j no mais o subdesenvolvimento.

    A estrutura de classes tambm foi truncada ou modificada: as capas mais altas

    do antigo proletariado converteram-se, em parte, no que Robert Reich chamou

    de analistas simblicos25: so administradores de fundos de previdncia

    complementar, oriundos das antigas empresas estatais , dos quais o mais

    poderoso o Previ, dos funcionrios do Banco do Brasil, ainda estatal; fazem

    parte de conselhos de administrao, como o do BNDES, a ttulo de

    representantes dos trabalhadores. A ltima florao do Welfare brasileiro, que

    se organizou basicamente nas estatais, produziu tais fundos, e a Constituio

    de 1988 instituiu o FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador que o maior

    financiador de capital de longo prazo no pas, justamente operando no

    BNDES.26 Tal simulacro produziu o que Robert Kurz chamou de sujeitos

    monetrios27: trabalhadores que ascendem a essas funes28 esto

    25 Ver Robert Reich, The Work of Nations, New York, Vintage Books, 1992.26 Em 1998/99, a mdia dos recursos do FAT no passivo total do BNDES foi de 37% e ao longo da dcada,elevou-se de 2% em 1989 para 40% em 1999, mostrando a dependncia do banco estatal de desenvolvimentodos recursos de propriedade dos trabalhadores com carteira.Fonte: Relatrio de Atividades do BNDES de1994 a 1999. Por sua vez, a participao dos desembolsos do BNDES na Formao Bruta de Capital Fixo,vale dizer na inverso total, flutuou entre 3,25% em 1990 para 6,26% em 1998 e 5,93 % em 1999..Fontes:Revista BNDES, Rio de Janeiro, Vol. 8,. N. 15, Jun 200127 Robert Kurz, Os ltimos Combates. Coleo Zero Esquerda, Petrpolis, Vozes, 199928 Ficou notvel na safra ps-eleies presidenciais de 2002, o aniversrio do senhor Delbio Soares,tesoureiro da campanha presidencial de Luiz Incio Lula da Silva e antigo tesoureiro da CUT: a imprensa

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    preocupados com a rentabilidade de tais fundos, que ao mesmo tempo

    financiam a reestruturao produtiva que produz desemprego. Sindicatos de

    trabalhadores do setor privado tambm j esto organizando seus prprios

    fundos de previdncia complementar, na esteira daqueles das estatais.Ironicamente, foi assim que a Fora Sindical conquistou o sindicato da ento

    Siderrgica Nacional, que era ligado CUT, formando um clube de

    investimento para financiar a privatizao da empresa; ningum perguntou

    depois o que aconteceu com as aes dos trabalhadores, que ou viraram p ou

    foram aambarcadas pelo grupo Vicunha, que controla a Siderrgica. isso

    que explica recentes convergncias pragmticas entre o PT e o PSDB, o

    aparente paradoxo de que o governo de Lula realiza o programa de FHC,

    radicalizando-o: no se trata de equvoco, mas de uma verdadeira nova classe

    social, que se estrutura sobre , de um lado, tcnicos e intelectuais doubls de

    banqueiros, ncleo duro do PSDB , e operrios transformados em operadores

    de fundos de previdncia, ncleo duro do PT29. A identidade dos dois casos

    reside no contrle do acesso aos fundos pblicos, no conhecimento do mapa

    da mina30.

    A questo da formao dessa nova classe no capitalismo globalizado na

    periferia embora Reich teorize principalmente sobre os fenmenos no centro

    contou entre 15 e 18 jatinhos e outras pequenas aeronaves, que aterrisaram na fazenda em que Delbiofestejava seu aniversrio. No se sabia que trabalhadores possuem avies e tantos...29 O Conselho da FRB-Par, holding que controla a Varig, ofereceu trs assentos a petistas no referidoconselho, entre eles Gilmar Carneiro que, por acaso, membro do Conselho de Administrao do BNDES,

    banco estatal que financiar a reestruturao do setor de aviao civil, do qual a Varig a principal e muitofalida empresa. Kurz, uma vez mais, tem razo. Est na hora de reler Milovan Djilas, ANovaClasse, em

    que ele pensa a partir exatamente do contrle do aparato produtivo estatal pela burocracia dos regimessoidisantsocialistas do Leste europeu: tal contrle conferia estatuto de classe, posto que combinava o podereconmico com o poder poltico no partido nico.30 No caso extremo da Rssia ps-sovitica, esse conhecimento transformou-se em verdadeira pirataria, masos casos argentino e brasileiro diferem apenas em grau. Os economistas de FHC transformados em banqueirosso hoje, legio.. A privatizao na Argentina sob Carlos Sal Menem parece sada das histrias dogangsterismo de Chicago. Ser que o fato desta cidade norteamericana sediar a escola de economia maisortodoxa tem algo a ver ? O relato de Horacio Vebitsky a respeito devastador, a comear pelo ttulo de seulivro, Robo para la Corona: los fructos prohibidos del rbol de la corrupcin. Buenos aires, Planeta Bolsillo,1996.

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    dinmico do sistema deve ser mais perscrutada. De fato, tanto h um novo

    lugar da nova classe no sistema, sobretudo no sistema financeiro e suas

    mediaes estatais, o que satisfaz um critrio de classe de extrao marxista,

    quanto h uma nova experincia de classe, nos termos de Thompson: o casoda comemorao do aniversrio de ex-tesoureiro da CUT mostra que essa

    experincia lhe exclusiva, e no pode ser estendida aos trabalhadores em

    geral; de fato j no so mais trabalhadores. Seria os novos pubs , lugar de

    frequentao da nova classe. Se nessa frequentao ela se mistura com as

    burguesias e seus executivos, isto no deve levar a confund-los: seu lugar na

    produo o contrle do acesso ao fundo pblico, que no o lugar da

    burguesia. Em termos gramscianos tambm a nova classe satisfaz as

    exigncias tericas: ela se forma exatamente num novo consenso sobre Estado

    e mercado, e por ltimo, a luta de classes que faz a classe: vale dizer, seu

    movimento se d na apropriao de parcelas importantes do fundo pblico, e

    sua especificidade se marca exatamente aqui: no se trata de apropriar os

    lucros do setor privado, mas o lugar onde se forma parte desse lucro, vale

    dizer o fundo pblico. Uma dmarche de inspirao weberiana veria a nova

    classe como se formando numa ao com sentido racional, que , em ltima

    anlise, a forma de sua conscincia.31

    Olhando de outro ngulo, o ornitorrinco apresenta a peculiariedade de que os

    principais fundos de inverso e investimento so propriedades de

    trabalhadores. o socialismo, exclamaria algum que ressuscitasse das

    31 A literatura que referencia essas indicaes bastante conhecida: Karl Marx, Perry Anderson, Edward J.Thompson, Antonio Gramsci, Max Weber . Trabalhei essa questo em Medusa ou as Classes Mdias e aConsolidao Democrtica, in Guillermo ODonnell e Fbio W. Reis (orgs.) A Democracia no Brasil:dilemas e perspectivas. So Paulo, Vrtice, 1988, onde as considerava parte importante das classes mdias emsua funo de experts da medida. Creio que esse insightse aparenta com o de analistas simblicos doReich, mas hoje acrescento funo ou lugar da classe como agente da medida, o contrle do acesso ao fundo

    pblico. J relembrei linhas acima Milovan Djilas, mas creio sua nova classe se diferenciava pelacombinao de contrle do aparato produtivo com partido nico, o que no o caso dessa medusa

    perifrica..

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    primeiras dcadas do sculo XX. Mas ao contrrio das esperanas de Juarez

    Guimares, o ornitorrinco est privado do momento tico-poltico32, pela

    combinao da permanente acelerao da estrutura material de produo e

    propriedade dos fundos de acumulao. A hegemonia, na frmulagramsciana, elabora-se na superestrutura, e nas suas especficas condies, o

    ornitorrinco no tem conscincia, mas apenas replicao superestrutural: seu

    terico antecipatrio foi Ridley Scott, com Blade Runner.

    O ornitorrinco isso: no h possibilidade de permanecer como

    subdesenvolvido, e aproveitar as brechas que a Segunda Revoluo Industrial

    propiciava; no h possibilidade de avanar, no sentido da acumulao digital-

    molecular: as bases internas da acumulao so insuficientes, esto aqum das

    necessidades para uma ruptura desse porte. Restam apenas as acumulaes

    primitivas, tal como as privatizaes propiciaram: mas agora com o domnio

    do capital financeiro, elas so apenas transferncias de patrimnio, no so ,

    propriamente falando, acumulao. O ornitorrinco est condenado a

    submeter tudo voragem da financeirizao, uma espcie de buraco negro:

    agora ser a previdncia social, mas isso o privar exatamente de redistribuir a

    renda e criar um novo mercado que sentaria as bases para a acumulao

    digital-molecular. O ornitorrinco capitalista uma acumulao truncada e uma

    sociedade desigualitria sem remisso. Vivam Marx e Darwin: a periferia

    capitalista finalmente os uniu. Marx que esperava tanto a aprovao de

    Darwin, que no teve tempo para lrOCapital. No foi aqui , nas Galpagos,

    que Darwin teve o seu estalo de Vieira ?

    32 Juarez Guimares identificou uma crise do neoliberalismo no Brasil, no seu A crise do paradigmaneoliberal e o enigma de 2002, So Paulo em Perspectiva, n. 15, vol. 4, So Paulo, Fundao Seade, 2001,que lhe serviu para interpretar a eleio de Luiz Incio Lula da Silva como um momento tico-polticorepublicano de refundao da sociedade, uma espcie de antpoda do momento maquiaveliano. Talinterpretao se deu em seminrio na Fundao Getlio Vargas em 9/12/2002, no II Seminrio Internacionalsobre Democracia Participativa, promovido pela Prefeitura Municipal de So Paulo. ..

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