o engenhoso fidalgo manuel botelho de oliveira

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REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 178 E LEITORES DE BOTELHO scrita no apogeu da propagação da poesia seiscentista italiana e espanhola, mas publica- da em 1705, quando já se consolidava a rea- ção ao estilo agudo e engenhoso, Música do Parnaso, de Manuel Botelho de Oliveira, apropria-se deliberadamente do código poético instaurado por Camões, Marino e Gôngora, entre outros. Não obstante, o poeta produz impressão de novidade, o que decorre não só da assimilação intrínseca daquele universo poé- tico, mas sobretudo da ciência do idioma, o que, por si só, garantiria êxito às pulsações de seu livro. Botelho de Oliveira, portanto, não será lido como poeta original nem como inoperante imitador, mas como emulador da tradição em que se inscreve. Esse é o primeiro pressu- posto para a leitura do poeta baiano e também para sua O engenhoso fidalgo Manuel Botelho de Oliveira IVAN TEIXEIRA Como todo texto, este também pos- sui sua história. O estímulo mais re- moto partiu de conversa com Antô- nio Medina Rodrigues, pelos corre- dores de uma escola em 1973, quando o velho colega e amigo ex- pressou seu contagiante entusiasmo pela mestria de um verso de Botelho de Oliveira. Agora, em final e início de milênio, tive oportunidade de repetir três vezes o mesmo curso sobre o poeta a alunos de graduação no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunica- ções e Artes da Universidade de São Paulo. Muitos dentre eles contribuí- ram com discussões e hipóteses interpretativas, dos quais destaco, a título de homenagem exemplar, Tâmis Peixoto Parron e Renato Domith Godinho. Depois de pronto, os co- legas Paulo Giovani e Luciana Gama apresentaram sugestões. Finalmen- te, João Adolfo Hansen, ex-orientador e atual amigo, propôs ajuste terminológico ao texto, que muito contribuiu para o acabamento com que o apresento agora. Agradeço também a Murilo Marx e Maria Itá- lia Cousim, diretor e bibliotecária do IEB, pela prontidão com que auxili- aram na obtenção de fotos da pri- meira edição de Música do Parnaso, fraternalmente executadas pelo prof. Atílio Avancini, do CJE-ECA.

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Page 1: O engenhoso fidalgo Manuel Botelho de Oliveira

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001178

ELEITORES DE BOTELHO

scrita no apogeu da propagação da poesia

seiscentista italiana e espanhola, mas publica-

da em 1705, quando já se consolidava a rea-

ção ao estilo agudo e engenhoso, Música do

Parnaso, de Manuel Botelho de Oliveira, apropria-se

deliberadamente do código poético instaurado por

Camões, Marino e Gôngora, entre outros. Não obstante,

o poeta produz impressão de novidade, o que decorre

não só da assimilação intrínseca daquele universo poé-

tico, mas sobretudo da ciência do idioma, o que, por si

só, garantiria êxito às pulsações de seu livro. Botelho de

Oliveira, portanto, não será lido como poeta original

nem como inoperante imitador, mas como emulador da

tradição em que se inscreve. Esse é o primeiro pressu-

posto para a leitura do poeta baiano e também para sua

O engenhosofidalgo

Manuel Botelhode OliveiraIVA

N T

EIXE

IRA

Como todo texto, este também pos-sui sua história. O estímulo mais re-moto partiu de conversa com Antô-nio Medina Rodrigues, pelos corre-dores de uma escola em 1973,quando o velho colega e amigo ex-pressou seu contagiante entusiasmopela mestria de um verso de Botelhode Oliveira. Agora, em final e iníciode milênio, tive oportunidade derepetir três vezes o mesmo curso sobreo poeta a alunos de graduação noDepartamento de Jornalismo eEditoração da Escola de Comunica-ções e Artes da Universidade de SãoPaulo. Muitos dentre eles contribuí-ram com discussões e hipótesesinterpretativas, dos quais destaco, atítulo de homenagem exemplar,Tâmis Peixoto Parron e Renato DomithGodinho. Depois de pronto, os co-legas Paulo Giovani e Luciana Gamaapresentaram sugestões. Finalmen-te, João Adolfo Hansen, ex-orientadore atual amigo, propôs ajusteterminológico ao texto, que muitocontribuiu para o acabamento comque o apresento agora. Agradeçotambém a Murilo Marx e Maria Itá-lia Cousim, diretor e bibliotecária doIEB, pela prontidão com que auxili-aram na obtenção de fotos da pri-meira edição de Música do Parnaso,fraternalmente executadas pelo prof.Atílio Avancini, do CJE-ECA.

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classificação, tomando-o, evidentemente, como um dos

momentos mais extraordinários de toda a poesia prati-

cada no Brasil, cujo desenvolvimento, aliás, seria im-

pensável sem o sistema de tópicas e técnicas apreendi-

das na Europa. Veja-se um fragmento do soneto VII da

primeira parte de Música do Parnaso, como exemplo

preliminar da eficácia de seu texto:

IVAN TEIXEIRAé professor de LiteraturaBrasileira do Departamentode Jornalismo e Editoraçãoda ECA-USP e integrante docorpo docente da primeiraturma do Curso deHumanidades daUniversidade de São Paulo,sob coordenação de RenatoJanine Ribeiro. É autor de,entre outros, MecenatoPombalino e PoesiaNeoclássica (Edusp).

“A serpe, que adornando várias cores,

Com passos mais oblíquos que serenos,

Entre belos jardins, prados amenos,

É maio errante de torcidas flores”.

Ao descrever a serpente por meio da primavera, o

autor põe em prática a poética da obliqüidade metafó-

rica, o que se nota também no valor positivo atribuído

à sinuosidade – e não à placidez – dos movimentos do

animal, que, mais adiante no poema, funciona como

parte de surpreendente símile com o coração do poeta,

entendido sempre como persona elocutória. Embora se

percebam com muito relevo a agilidade sintática, a in-

sinuação sonora e o soberbo cromatismo da estrofe,

tudo nela existe como suporte para exercício da metá-

fora, que se articula coerentemente com os demais pro-

cedimentos do texto. É sempre assim em Música do

Parnaso. Ao primeiro contato com seus poemas, perce-

be-se que o autor era obcecado pela concentração se-

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Oliveira (1), que até hoje só foi reeditadana íntegra uma vez, graças ao trabalho deAntenor Nascentes, junto ao Instituto Na-cional do Livro, em 1953. Antes disso, em1929 (?), Afrânio Peixoto editara apenasos poemas em português do volume, pelaAcademia Brasileira de Letras.

Atualmente, Manuel Botelho de Olivei-ra continua recebendo o desapreço dos crí-ticos: quer mediante condenação explícita,quer mediante sumárias apreciações, quenão revelam leitura específica, emboraapresentem uma ou outra sugestão interes-sante. As grandes exceções encontram-seem dois estudiosos preocupados com a in-vestigação estilística do fenômeno literá-rio, Eugênio Gomes e Péricles Eugênio daSilva Ramos, responsáveis por análises enotas capazes de desencadear a necessáriareavaliação do poeta, que, aliás, já se achaem pleno andamento, como se pode notarpelos recentes trabalhos de Carmelina Al-meida, Leopoldo M. Bernucci e EnriqueRodrigues-Moura (2). Todavia, em marçode 1998, a Editora Humanitas, responsávelpor livros destinados ao circuito interno daFaculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da Universidade de São Paulo,editou o volume Iniciação à Literatura Bra-sileira: Resumo para Iniciantes, do prof.Antonio Candido, no qual se lê o seguintejuízo crítico, citado aqui a partir de sua ter-ceira edição (1999, p. 26):

“A esse espírito entre devoto e cortesão sevincula um escritor de certo interesse, Ma-nuel Botelho de Oliveira, exemplo típicodo falseamento a que chegou o espíritobarroco nos seus aspectos menores, quan-do a argúcia virou pedantismo e a sutilezaum mero exibicionismo, dando a impres-são de que a palavra rodava em falso, àprocura de nada”.

Essa opinião, exposta com invejávelcompetência de escritor, decorre da con-vicção de que a poesia seiscentista contri-bui para o mau gosto do leitor e para seuafastamento da realidade imediata dos fe-nômenos dignos de imitação artística, que,basicamente, seriam a emoção pessoal, os

mântica, pelo equívoco dos vocábulos e pelaexploração das potencialidades sensoriaise intelectuais da imagem. Em certo senti-do, pode-se afirmar que a obra cristalizauma investigação artística da apreensão sen-sível do mundo, por reiterar à exaustão orisco de dizer as coisas pelo avesso delasmesmas. A doutrina da imagem implícitaem Botelho integra um conjunto de técni-cas que, aplicadas ao poema, constituemsingular modalidade de conhecimento domundo, cuja dispersão se unifica por meioda invenção sensorial das coisas. Partilhada concepção de poesia como imitação etrabalho de arte, em que paciência e estudoconvergem para o desenvolvimento de as-suntos tradicionais que independem da psi-cologia do poeta. Não é sem causa que, emmais de uma ocasião, João Cabral de MeloNeto declarou apreço pela consciênciaartesanal de Botelho de Oliveira, lamen-tando o ostracismo de seu livro.

Todavia, esses aspectos todos, sufici-entes para nobilitar qualquer poeta em qual-quer literatura, levaram a crítica tradicio-nal brasileira, de pressupostos romântico-nacionalistas, a desprestigiar a poesia deBotelho de Oliveira, sob pretexto de quelhe faltam singularidade expressiva e inte-gração com a realidade do país. Intérpretescomo Cônego Fernandes Pinheiro, SílvioRomero, José Veríssimo e Ronald de Car-valho consideram-na fria, cerebral, mecâ-nica, artificial e ridícula. Seu estilo e maté-ria são interpretados como conseqüênciada frivolidade do espírito barroco. Herdei-ros do Iluminismo português, que se opôsà poesia seiscentista por entendê-la comoresultado da hegemonia espanhola sobrePortugal, esses críticos odeiam a poesialuso-brasileira do período, especialmenteem sua variante gongórica e, portanto, maissensorial e vistosa. Pela perspectiva deles,a poesia seiscentista portuguesa não passa-ria de encarnação da decadência política edo mau gosto literário dominante no país,completamente entregue aos exageros daimaginação desmedida, manifesta no cultodo trocadilho e da metáfora desproposita-da. Essa visão acabou por determinar o des-tino editorial da obra capital de Botelho de

1 Além de Música do Parnaso,Botelho de Oliveira deixou iné-dito Lyra Sacra, editado porHeitor Martins (São Paulo,Conselho Estadual de Cultura,1971).

2 Cf. bibliografia no final do pre-sente ensaio.

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embates da vida em sociedade e a relaçãodo indivíduo com os valores responsáveispela formação da nacionalidade. Trata-sede concepção que privilegia a função for-madora da literatura, vendo nela principal-mente os aspectos utilitários, que acabampor se confundir com a noção de valor ar-tístico. Botelho, ao contrário, dava priori-dade ao prazer com as formas sutis de jogointelectual, que, embora também visasse àeducação da pessoa, não era concebido nostermos do século XIX, época em que seconsolidou a concepção de literatura comoexpressão de verdades psíquicas e comocaptação da essência nacional. Ocorre queBotelho não escreveu para a posteridade, esim para o seu tempo, procurando na co-municação com os contemporâneos a ra-zão social de sua produção. Isso nos obrigaa procurar em Música do Parnaso, nãoapenas uma possível identidade com o nos-so tempo, mas sobretudo a diferença com onosso e a identidade com o dele, porque dapercepção dessa diferença e dessa identi-dade é que nasce a integração do leitor coma história, necessariamente impregnadapelas desiguais configurações dos tempose das sociedades.

Para fundamentar a exclusão dos poe-tas seiscentistas de seu Curso de LiteraturaPortuguesa e Brasileira (Maranhão, 1867),Francisco Sotero dos Reis escreve:

“Apreciar escrito de autores, que não sónão estão no caso de servir de modelo aosque se propõem o estudo das boas letras,mas cujo mau gosto deve ser evitado comcuidado, seria perder tempo e trabalho inu-tilmente, quando não resultasse daí perigoa algumas inteligências que começam adesenvolver-se, e podem por isso mesmodeixar-se iludir com os falsos brilhantes queneles flamejam como fogo fátuo. Ainda bemque as poesias dos seiscentistas, cuja liçãoé prejudicial ao bom gosto, já se vão tor-nando mui raras no Brasil”.

Aqui, o primado da função formadorada poesia como fundamento do juízo esté-tico mal consegue disfarçar o projeto ideo-lógico de proibir no passado o que não in-

teressa ao presente. Muito comum nacrítica oitocentista, essa perspectiva acabapor constituir um cânone restritivo e exclu-dente, em que domina o argumento evolu-cionista de que a história só existe comojustificativa do presente. As raízes do juízode Sotero dos Reis, a cuja tradição se filiaAntonio Candido, são bem conhecidas.Origina-se na própria reação do séculoXVIII ao Seiscentismo, quando se tratoude acusar o absurdo de suas formas comomaneira de alicerçar um conjunto de prefe-rências estilísticas apropriadas ao ideárioda Ilustração, que, em favor da univocidade,instituiria como ideal artístico a clareza, asimplicidade e o equilíbrio. A partir daí, oestilo engenhoso passou a se caracterizarcomo obscuro, alambicado, excessivo emonstruoso. Desconsiderando o aspectoestratégico de programa da mentalidadeiluminista, a crítica romântica adotou essavisão como preceito absoluto e desenvolveuverdadeiro horror às obliqüidades do estiloagudo, por interpretá-lo como estagnaçãodo progresso do espírito humano. Desdeentão, os românticos fundaram seus crité-rios estéticos no binômio biografismo + na-cionalismo, de particular vitalidade na críti-ca brasileira subseqüente. No século XX,Mário de Andrade acolheu o princípio, pro-pagando a idéia de que era preciso evitarGôngora. Enquanto isso, Garcia Lorca eDámaso Alonso, integrantes do primeiromodernismo espanhol, cuidavam de restau-rar o autor de Soledades; um, em dimensãopoética; outro, em dimensão ensaística.

POESIA ACADÊMICA

Botelho de Oliveira tinha 69 anos quan-do editou o livro de sua vida. Isso nos fazsupor que, antes de serem impressos emLisboa por Miguel Manescal, seus textostiveram circulação manuscrita e oral, con-forme o padrão dominante na sociedadeseiscentista da Bahia, regida por regras decomunicação das comunidades sem im-prensa, nas quais a leitura pública se impu-nha como forma corrente de veiculação depoesia, bem como de outras modalidades

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de escrituras. Essa condição histórica de-terminou a criação de centros especializa-dos em que as pessoas se reuniam com opropósito de partilhar da socialização dacultura. Sabe-se que a primeira agremiaçãosistemática desse tipo no Brasil foi a Aca-demia Brasílica dos Esquecidos, inaugura-da em 1724 na cidade de Salvador. Antesdela, houve inúmeras associações em Por-tugal, à imitação das quais os letrados daBahia deviam se reunir em encontros me-nos formais e menos sistemáticos para lei-tura e crítica dos trabalhos, o que, por si só,já conferia o estatuto de difusão sistêmicado fenômeno poético, sempre, é claro, con-forme as regras do período. Essa é, em sín-tese, a poética da cultura das academias dotempo de Botelho de Oliveira, cuja confi-guração estilística coincide com a poesia

aguda e engenhosa do Seiscentismo, cha-mada barroca a partir do século XIX (3).

Francisco Leitão Ferreira, no primeirovolume de sua Nova Arte de Conceitos(1718), livro que traduz e adapta o ideáriopoético de Emanuele Tesauro e BaltazarGracián para o português, expõe os precei-tos segundo os quais os acadêmicos de seutempo deveriam se reunir, assim comodefender os propósitos, os objetivos e osassuntos das academias, tendo por princí-pio geral a imitação dos jogos olímpicos daAntigüidade, em que os atletas aprimora-vam o domínio sobre o corpo como formade integração social. Emulando osdesportistas da Grécia antiga, os acadêmi-cos seiscentistas e setecentistas buscavamo exercício, já não do corpo, mas do espí-rito, aprimorando sua perspicácia em pe-

À esquerda, página de rosto da Biblioteca Lusitana (tomo III), de Diogo Barbosa Machado,1752, em que saíram os primeiros dados biográficos sobre Manuel Botelho de Oliveira.À direita, verbete sobre Manuel Botelho de Oliveira no 3o tomo da Biblioteca Lusitana (1752),de Diogo Barbosa Machado, de onde se extraíram os primeiros informes sobre o poeta

3 Como se verá adiante, Botelhode Oliveira celebrou, em 1697,a morte do Pe. Antônio Vieira ea de seu irmão Bernardo VieiraRavasco; em 1699, celebrou ada rainha D. Maria Sofia Isabel,esposa de D. Pedro II e mãe dofuturo D. João V. Custa crer quetais poemas, publicados apenasem 1705, na primeira ediçãode Música do Parnaso, não te-nham sido divulgados por meiode leitura pública em exéquiasou em outra espécie de solenida-de fúnebre, como era costumeentão. Em ambiente de socieda-de escribal, necessariamente nãose concebia o poema para pu-blicação impressa, mas para so-cialização pelos meios disponí-veis. Da mesma forma, o manus-crito não era entendido comoestágio intermediário entre o pre-sente e o futuro, mas como con-dição definitiva e suficiente paraa difusão do texto no presente.Marcelo Moreira demonstra essapremissa em sua tese de douto-rado sobre o estatuto bibliográfi-co do corpus atribuído a Gre-gório de Matos.

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netrar na identidade dos assuntos e sua ver-satilidade em associar as semelhanças e asdiferenças obtidas. Leitão Ferreira tambémcompara as academias com os circos, comas escolas e com os teatros, porque seusintegrantes deveriam imbuir-se do espíritode aprendizado, de encenação, de compe-tição e de entretenimento. Conclui-se daíque a poesia não decorria daquele momen-to quase religioso de recolhimento e de auto-investigação consagrado pelos românticos,mas sim de situação pública, em que sediscutiam os princípios gerais da composi-ção poética, a partir de assuntos objetivose comuns a todos, por meio dos quais cadaum se empenhava em dar o melhor de seuengenho e de sua técnica.

Na mesma lição, o retor fala dos con-ceitos e dos assuntos acadêmicos, detendo-se na explicação dos processos segundo osquais aqueles são extraídos destes. O as-sunto acadêmico é definido como uma bre-ve proposição acerca de objeto bem deli-mitado, da qual se deduza alguma reflexãoou conclusão provável ou necessária. A poe-sia prevista pelo código acadêmico, de queBotelho é exímio usuário, resulta de opera-ções lógicas do espírito dialético, aindaquando entrem em jogo os acidentes sen-soriais dos objetos. Apresentada a proposi-ção, cabia ao poeta estabelecer as devidasconexões entre seu sujeito e seu predicado,associá-los a um terceiro elemento estra-nho a ela e, por ilação, extrair conclusãonova, sutil e maravilhosa, a que se chama-va propriamente conceito. Sempre tradu-zindo Tesauro, Leitão Ferreira divide oassunto acadêmico em simples e comple-xo. O primeiro contém um único objeto; osegundo, um objeto central intimamenteassociado a uma circunstância ou a outroobjeto. Ao assunto simples chama tambémestéril; ao complexo, fértil. Assim, a pro-posta de um cravo como assunto de poemaseria estéril; mas passaria a fértil se fosseadicionada a circunstância de o cravo estarna boca de uma ninfa, o que dividiria a aten-ção do entendimento entre cravo e ninfa.Depois dessas noções, o retor portuguêsconcentra-se na enumeração analítica dasregras de fertilização do assunto estéril, as

primeiras das quais consistem no paraleloe na contraposição, de onde resulta a práti-ca da metáfora e da antítese como elemen-tos definidores da elocução acadêmica, queé também a chave do discurso poético pra-ticado por Botelho de Oliveira.

O autor seleciona assunto estéril paraefetuar agudeza em seu desenvolvimento,aplicando a ele imagens alheias ao univer-so primeiro de seu significado. Decorre daía dominante metafórica e antitética no es-tilo de Botelho de Oliveira, que sempre es-creve por paralelos ou contrapostos, con-forme se pode exemplificar com o soneto“Ponderação do Rosto e Olhos de Anarda”:

“Quando vejo de Anarda o rosto amado,Vejo ao Céu e ao jardim ser parecido;Porque, no assombro do primor luzido,Tem o Sol em seus olhos duplicado.

Nas faces considero equivocadoDe açucenas e rosas o vestido;Porque se vê, nas faces reduzido,Todo o Império de Flora venerado.

Nos olhos e nas faces mais galharda,Ao Céu prefere, quando inflama os raios;E prefere ao jardim, se as flores guarda:

Enfim, dando ao jardim e ao Céu desmaios,O Céu ostenta um Sol; dous sóis Anarda;Um Maio o jardim logra; ela, dous Maios”.

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Em rigor, o poema desenvolve o assun-to estéril do rosto de Anarda. Por operaçãodialética do engenho, esse se multiplica emrosto e olhos, que, por sua vez, amplifi-cam-se, por associação com o céu e com aterra. Assim, a matéria inicial do rosto tor-na-se complexa no retrato, porque o poetao compara com o céu e com o jardim (ter-ra), a partir do que se apresentam os porme-nores argumentativos: assim como o céutem sol, Anarda tem olhos; da mesma for-ma que o jardim tem flores, ela tem cores.Evidentemente, a novidade dessa sutilezaconsiste no contraposto do perto com o dis-tante, do alto com o baixo, associados emjardim e céu, que permitem a sobreposiçãode flores e faces, sol e olhos. O discursopoético preconizado pela Academiaseiscentista deveria, pois, evidenciar a uni-dade de matérias diversas, estabelecendoconexões metafóricas nem sempre acessí-veis aos olhos do vulgo. Essa é uma dasrazões pelas quais os preceptores aproxi-mavam o poeta dos anjos, pois eram estesque, em primeira instância, incumbiam-sede revelar aos homens a maravilha de Deus.Em favor do prodígio, a poesia de tradiçãoengenhosa consagrou essas imagens, comas quais Botelho, pela reatualização de pro-cedimentos da instituição retórica, operacom versatilidade, produzindo vivo efeitocromático, sem deixar de insinuar que abeleza particular da amada decorre da in-tervenção do céu para fecundação da terra,como a dizer que a beleza floresce da har-monia entre pólos contrastantes. No final,contra a expectativa do leitor inexperto, opoeta introduz uma diferença importante,que não desfaz a fusão dos opostos; antes aconfirma, revelando que, embora resultan-te da interação do céu com a terra, Anardasupera a ambos no sortilégio da beleza,porque os reproduz duplicadamente. Eis aío conceito ou a reflexão aguda que se extraido assunto proposto, momento em que oelogio confirma a particularidade, que, nãoobstante, é legitimada como decorrênciade idéia geral. Por outro lado, como pro-cesso de singularização engenhosa da be-leza, o poema opera sistematicamente porequívoco de termos, que se equivalem em

contínuas imagens de oposição especular,desde o sol e as flores – que, apesar dasdiferenças, refletem-se no rosto de Anarda– até o eco da rima final, proveniente dareverberação sonoro-visual entre des-maios e dous maios.

METÁFORA, AGUDEZA E ENGENHO

O Conde Emanuele Tesauro definemetáfora como a mais aguda e engenhosaconquista do entendimento humano, nãosó porque aproxima propriedades distantesdas tópicas propostas, como também por-que explica um conceito por meio de outromuito diverso. Penetrando nas coisas dainvenção, o poeta extrai delas as mais re-cônditas noções para as associar com ou-tras pertencentes a gêneros e espécies dife-rentes. Como se vê, a metáfora seiscentistafunda-se no princípio da analogia engenho-sa, pois, desencadeando associações impre-vistas no juízo, promove a semelhança entreassuntos distintos. Partilhando de convic-ções de seu tempo, é evidente que a metá-fora de Botelho de Oliveira prefere o pa-drão da agudeza, segundo o qual deve serapreciada. Francisco Leitão Ferreira, aoadaptar para o português idéias de Tesauro,faz questão de preservar as propriedadespreconizadas por Aristóteles na metáfora,afirmando que deve conter clareza, novi-dade e brevidade. Por isso, acha apreciávelchamar águia ao girassol; ou pensamentodo campo, ao veado. No primeiro caso, une-se à beleza da flor a altivez da ave, aproxi-mando o reino vegetal ao animal, sem dei-xar de associar os olhos do pássaro com aesfericidade da planta, que, de certa forma,paira, como ave, acima das demais floresdo jardim. No segundo, associa-se a rapi-dez do animal com a velocidade do pensa-mento. Como se vê, os exemplos forneci-dos por Leitão Ferreira baseiam-se no prin-cípio da analogia engenhosa, pois unem,em linguagem, elementos díspares na na-tureza, o que decorre de operação fantásti-ca do entendimento.

Francisco José Freire, em sua Arte Poéti-

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ca ou Regras da Verdadeira Poesia (1748),ao esboçar uma teoria adequada à Ilustra-ção portuguesa – e, portanto, contrária aoestilo engenhoso do Seiscentismo –, não vêcom bons olhos metáforas desse tipo, semcontudo condená-las completamente. To-davia, considera inaceitáveis as operaçõesque, associando em poesia elementos des-conexos na natureza, chegam ao extremode projetar seus termos para o supostomundo da realidade empírica, tal como seobserva no exemplo em que, tendo o pastoruma chama amorosa no peito, oferece-apara que companheiros acendam nela suastochas. Algo semelhante se observa nadécima “Sono Pouco Permanente”, deBotelho de Oliveira:

do traduzir em termos teóricos os motivosda recusa. Contentam-se com o argumentode mau gosto e frivolidade, quando, emrigor, o que não aceitam é a ficcionalizaçãoextremada do discurso poético. Querem-nocomo projeção psicológica ou tradução deposições práticas. Mas, em que consiste, pelaperspectiva do presente ensaio, aficcionalização do discurso poético nessepoema? Primeiro, o poeta – sempre entendi-do como persona elocutória – alegoriza oempenho do sono em minimizar seu sofri-mento amoroso; depois, metaforiza a pre-sença de Anarda em farol, por associaçãocom a luz de seus olhos. Até aí, a razãoiluminista aceitaria o andamento do poema,embora talvez não o recomendasse. O quenão aceitaria nem recomendaria, antes con-denaria como operação indesejável do juízo,é a metáfora do farol de Anarda clarear o dia,desfazendo a noite e obrigando o sono a serefugiar em sua caverna sem luz.

Sobre a agudeza e o engenho, o que diza preceptiva seiscentista? Como se sabe,Baltasar Gracián escreveu toda uma artepara estimular e facilitar a conquista dessaspropriedades essenciais ao discurso poéti-co do tempo. Todavia, é ainda no CondeEmanuele Tesauro que se encontra a me-lhor sistematização da matéria, em cujo IlCannocchiale Aristotélico (1654) a agude-za é definida como resultado do engenhoaplicado às palavras, o que leva o autor aconsiderá-la vestígio da divindade no espí-rito humano. A agudeza não se deixa defi-nir em termos absolutos, podendo assumiras mais variadas formas, desde a metáfora,o paradoxo, o equívoco sonoro até osilogismo sutil. Todavia, não se manifestasomente no discurso verbal, mas tambémna pintura, na escultura e até nas açõeshumanas. A agudeza pode se compor desimples palavras engenhosas, isto é, pala-vras metafóricas ou figuradas; de proposi-ções engenhosas, como as sentenças figu-radas e sutis; e de argumentos engenhososou conceitos inesperados e surpreenden-tes. Em sentido amplo, a agudeza será sem-pre o vivo resultado de operação do enten-dimento, que, em vez de se ater aos termospróprios dos conceitos, os apreende e os

“Quando, Anarda, o sono brandoQuer suspender meus tormentos,Condenando os sentimentos,Os desvelos embargando;Dura pouco, porque quandoCuido que em belo arrebolEstou vendo teu farol,Foge o sono à cova fria;Porque lhe amanhece o dia,Porque lhe aparece o Sol”.

Fundados em pressupostos neoclássicosde Francisco José Freire, os críticos român-ticos e seus seguidores no século XX rejei-tam composições dessa espécie, sem contu-

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traduz por meio de nomes, frases ou ele-mentos fantásticos, evitando a expressãocomum em favor de expressões peregri-nas, adjetivo com que Leitão Ferreira ca-racteriza as novidades bizarras de vocábu-los distantes da esfera das coisas a que sereferem. No madrigal “Anarda Vendo-se aum Espelho”, Botelho de Oliveira forneceágil exemplo de agudeza, obtida por meiode jogo entre espelhos: o espelho real, emque Anarda se reflete; e o metafórico, quereproduz o espelho apresentado como real:

uma breve cena, uma concisa alegoria daluz, cuja reduplicação decorre do juízo dosespelhos, que se animam no poema por de-liberarem sobre a própria ação. Por fim, asobreposição de acidentes figurados con-duz a décima ao entimema urbano ou silo-gismo engenhoso, considerado pela retóri-ca seiscentista como a agudeza perfeita, por-que parte de premissas metafóricas e con-duz a conclusões maravilhosas, processoem que a fantasia opera sobre a realidade,como se observa no fato de o espelho me-tafórico reproduzir o espelho dado comoreal e iluminar o dia, fenômeno que tam-bém se observa na décima “Sono PoucoPermanente”.

Apresentado pela preceptiva seiscen-tista como causa eficiente da agudeza, oengenho é a força com que o entendimentoou juízo acha, recolhe, penetra, une ou se-para as propriedades dos conceitos, estabe-lecendo, portanto, relações de semelhançaou de diferença. Embora considerado vir-tude natural do entendimento, o engenhodeixa-se assessorar por ramificações de suapotência, tais como a perspicácia, a destre-za e a argúcia, sujeitas ao aprimoramentopor exercício. Enquanto atributo do enten-dimento, cabe ao engenho analisar, emsúbito ato de intelecção, os componentesda realidade, procedendo conforme as dezcategorias ou predicamentos de Aristóteles,que são: substância, quantidade, qualida-de, relação, ação, paixão, lugar, modo,duração e hábito. Caso um poeta consideremetaforicamente a rosa, como o faz Botelhode Oliveira em texto analisado mais adian-te no presente ensaio, ela constituirá a subs-tância temática do poema; ao passo que seutamanho, sua cor, seu perfume, sua hierar-quia entre as flores comporão os acidentestemáticos segundo os quais se forma a idéiade rosa. Conclui-se daí que a substância,sendo insensível – pois é essência –, só setorna acessível por meio de acidentes, quese deixam perceber pelos sentidos huma-nos. Assim, o engenho poético será o res-ponsável pela organização sensível domundo, dispondo-o por meio de tropos,figuras, silogismos e outras formas demanifestação da agudeza.

“Anarda, que se apuraComo espelho gentil da fermosura,Num espelho se via,Dando dobrada luz ao claro dia;De sorte que com próvido conselhoRetrata-se um espelho noutro espelho”.

Cícero afirma que a agudeza é o gestoda frase, querendo dizer com isso que elaatribui visibilidade à abstração do concei-to. É o que se observa na situação instaura-da pelo poema: Anarda emite luz; o espe-lho reflete luz; logo, quando se coloca dian-te do espelho, ela dobra a luz do dia. Alémdisso, observa-se: o espelho ilumina; Anar-da também ilumina; logo, ela é espelho. Aargumentação do poema não é apresentadaapenas como hipótese discursiva, mas comoencenação da situação responsável pelosequívocos e espelhamentos, o que aproximao poema da metáfora de hipotipose, queconsiste em pôr diante dos olhos o objeto deque se fala. Com isso, o madrigal compõe

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ESTRUTURA MUSICAL

Manuel Botelho de Oliveira não se li-mitou a escrever em português; entregou-se também a poemas em espanhol, em ita-liano e latim. Longe de indicar exibicio-nismo, o plurilingüismo de seu livro decor-re antes do repertório coletivo da época eda concepção de poesia do autor, que, alémde se inscrever na prática dos poemas, podeser abstraída de passagens da dedicatória edo prólogo do volume. Fiéis à sua funçãode degrau ao argumento da obra, esses tex-tos contêm uma pequena teoria poética,apresentada ora explícita ora implicitamen-te (4). O poeta partilhava de um código for-mado pelos procedimentos consagrados natradição dos grandes poetas, de Homero eVirgílio até Marino, Gôngora e Camões.Independentemente das línguas, Botelhofiava-se no costume criado pela história dacomposição verbal, subordinada à institui-ção retórica e que ele aplica em seu livro.Essa história milenar, ele a traça em poucaslinhas na dedicatória do volume: tendo nas-cido na Grécia, a poesia passou para Roma;depois, espalhou-se em língua vulgar pelaItália, chegando à Espanha e a Portugal.Caberia a ele dar continuidade ao percurso,implantando-a e difundindo-a nas incultasterras do Brasil, já então em processo decivilização pela economia do açúcar.

Tal visão sistêmica da poesia – que hojese diria estrutural, fundada em procedimen-tos cristalizados, fórmulas reiteradas e tó-picas consagradas – prende-se à tradição

aristotélica, segundo a qual a poética eraentendida como espécie de capítulo da re-tórica. Praticava-se a poesia como modali-dade verbal de imitação, cadenciada pelamétrica e especialmente ornada por tropose figuras, que falam pelo poeta. Como ésabido, esse é o sistema internacional queorientou a comunicação artística entre oshomens até mais ou menos a RevoluçãoFrancesa. Vivendo antes da invenção do eupsicológico e quando ainda não existiam asliberdades e as ideologias burguesas,Botelho de Oliveira não podia, portanto,pensar em autenticidade expressiva nem nomito da singularidade nacionalista. Nãoobstante, isso foi causa de ser classificadocomo artificial e inoperante pela interpre-tação do período colonial maquinada pelosfigurões do Instituto Histórico e Geográfi-co Brasileiro, que, como se sabe, inventouum Brasil-Colônia à imagem e semelhançade Pedro II. Nesse particular, deve-se con-siderar, ainda, que a crítica romântica leu opoemeto “À Ilha de Maré” como exceçãonativista ou prenúncio de nacionalismobrasileiro, desconsiderando que o elogioda parte não passava de apologia do tododo Império Português.

Conforme a perspectiva que procurarecriar as condições de produção e de re-cepção do texto artístico, é importante terem mente que Música do Parnaso se apro-pria de certas constantes da atividade mu-sical, disseminada em vários setores dacultura portuguesa durante o reinado de D.João IV (1640-56), rei dominado por espe-cial predileção pela música. Não foi à toaque o poeta definiu a poesia como modali-dade de canto, o que se reflete não só notítulo da obra (Música Entoada por Ma-nuel Botelho de Oliveira), mas também nadivisão do volume em quatro coros de ri-mas, correspondendo cada qual a um dosidiomas adotados. No soneto de aberturaao cancioneiro de Anarda – um dos maiscoesos, sistemáticos e belos conjuntos depoemas de amor da literatura brasileira –, opoeta pondera que a amada, apesar de cru-el, acha-se em condições de conceder cul-tas flores a seu discurso (poético) e confe-rir doce harmonia à sua música (poética):

4 Em Delicioso Jardim da Retóri-ca, Bartolomeu Alcáçar enten-de a dedicatória como mani-festação do gênero exornativode discurso, tomado como si-nônimo de deliberativo ouepidítico, por meio do qual oorador louva ou vitupera amatéria de sua invenção. As-sim, pelos preceitos retóricos,a dedicatória de um livro deveexaltar aquele que, com a au-toridade de sua posição nahierarquia do Estado, protegea obra contra a malícia dosmaus leitores. Botelho de Oli-veira dedica seu livro a DomNuno Álvares Pereira de Melo,Duque de Cadaval. Membroda primeira nobreza de Portu-gal, Nuno Álvares nasceu em1638 e morreu em 1727 (compouca variação, esse é tam-bém o tempo de vida deBotelho), tendo servido a qua-tro monarcas portugueses: D.João IV, D. Afonso VI, D. PedroII e D. João V. Nesse sentido éque, como elemento integran-te da disposição de Música deParnaso, essa dedicatória deveser entendida como degraupara seu argumento, do qualse destaca aqui a breve doutri-na sobre poesia e sua história.

D. NunoÁlvares Pereirade Melo

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“Invoco agora Anarda lastimadoDo venturoso, esquivo sentimento:Que quem motiva as ânsias do tormento,É bem que explique as queixas do cuidado.

Melhor Musa será no verso amado,Dando para favor do sábio intento,Por Hipocrene, o lagrimoso alento;E por louro, o cabelo venerado.

Se a gentil fermosura em seus primoresToda ornada de flores se avalia,Se tem como harmonia seus candores;

Bem pode dar agora Anarda impiaA meu rude discurso cultas flores;A meu plectro feliz, doce harmonia”.

Portanto, logo no primeiro poema dolivro, o poeta reitera o sentido do título daobra, explicitando o propósito de fundirpoesia e música, por meio do cultivo dasflores eloqüentes, expressão com que osseiscentistas designavam os tropos e as fi-guras do discurso poético, os quais tantopodiam ornar a linha da frase quanto adensaro significado do verso ou torná-lo melodio-so. Mas tais pormenores não aproximamtanto a estrutura do livro do discurso musi-

cal quanto revelam o valor da agudeza nospressupostos elocutivos do poeta, que ex-trai os componentes básicos do livro daconstituição da própria musa, não obstanteela seja invenção do mesmo livro. Aindaaqui a ficcionalização da metáfora instaurao reflexo especular como fundamento dodiscurso engenhoso de Botelho, que nãoentende Anarda senão como projeção daidéia de poesia, de beleza e de perfeição.

LIRISMO AMOROSO

Os coros de rimas em português e emespanhol (os demais ocupam pouco espaçono livro) subdividem-se em poemas dedi-cados a Anarda, de pura idealização petrar-quista (exaltação da beleza absoluta); e emversos relacionados à vida social da Mo-narquia (exaltação dos modelos dignos deimitação). Ambas as modalidades são poe-mas líricos, no sentido clássico de celebra-ção de noções abstratas em sua manifesta-ção particular.

No primeiro caso, celebram-se o amor,a beleza, o recato, a prudência da amada ea abnegação do amante diante de sua

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inacessibilidade. A apreciação desses poe-mas pressupõe a clara noção de que não setrata de poesia amorosa no sentido român-tico, em que o indivíduo simula ou supõeviver uma paixão, construindo a emotivi-dade como parte imprescindível do enun-ciado poético. Trata-se, ao contrário, depoemas celebrativos, em que a encenaçãodo elogio integra um todo conceitual, emque cada parte apresenta aspecto ou dife-rente prisma de um gênero retórico do dis-curso, jamais esquecido pelo poeta e do qualsempre deve se lembrar o leitor. Assim, acrueldade e a indiferença de Anarda nadamais são, conforme se insinuou anterior-mente, do que particularização da perfei-ção das idéias platônicas, completamenteinacessíveis ao sentido dos homens. Suaproverbial indiferença não passa de alego-ria pedagógica, no sentido de impor a con-templação mística das formas essenciais econdenar os impulsos sensoriais, dualidadede que decorre o reiterado desencontro dopoeta com a musa, visto que este só sabeabordá-la pela encenação encantatória daaparência. O eu lírico a ambiciona e a cor-teja em termos sensoriais. Por isso, ela seesquiva, como a luz do sol, que se podesentir mas nunca tocar. Sendo pura inteli-gibilidade, representa o eterno feminino,em sua multiplicidade de aspectos e cores:atormenta os sentidos, mas se protege coma intangibilidade das formas essenciais.Imitando Gôngora, Botelho encena situa-ções humildes, em que figura Anarda es-condida atrás de uma árvore, mirando-seem espelho, passeando de barco, jogandocartas, etc. Todavia, o poeta trata tais situa-ções como sublimes, de onde a crítica ro-mântica, desconsiderando a tradiçãogongórica, extraiu o argumento da supos-ta vacuidade temática de Música doParnaso. Mas o contraposto entre a in-venção do assunto e as formas de suaelocução em nada prejudica o retrato damusa, plenamente resguardada pelo idea-lismo petrarquista, que é, antes, realçadopela oposição entre a abstração da belezae a particularização sensível das situações,como se observa no início do romance“Anarda Colhendo Neve”:

“Colhe a neve a bela Anarda,E nos peitos incendidosContra delitos de fogoArma de neve castigos.

Na brancura, na tibiezaTem dous triunfos unidos;Vence a neve à mesma neve,Vence o frio ao mesmo frio.

Congela-se e se derrete;De sorte que em branco estiloA um desdém se há congeladoA dous sóis se há derretido”.

Na poesia aguda de Botelho não há as-suntos banais, porque a dialética do enge-nho transforma a matéria humilde em temafértil, que tanto mais enriquece o poemaquanto mais possibilita o prazer com asformas sensíveis do idioma, encarnadas so-bretudo nas sutilezas dos paralelos e doscontrapostos. Na primeira estrofe do exem-plo, Anarda, identificando-se com a neve,não só pela brancura mas também pela frie-za, combate o incêndio amoroso do desejoalheio com o gelo do desdém, operaçãometafórica de que resulta o conceito enge-nhoso. Na segunda estrofe, o conceito de-corre da agudeza de, ainda no processometafórico, o termo próprio superar a qua-lidade do termo ideal, isto é, Anarda, sendo

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comparada com a neve, supera a próprianeve, não só em brancura mas também emfrieza. Na última estrofe, a novidade sutilconsiste na descoberta de acidentes contra-postos no mesmo sujeito, pois Anarda, porser fria e possuir olhos brilhantes, tanto podecongelar quanto derreter a neve.

Via de regra, a celebração de Anardadá-se por meio do constante paralelo de suabeleza com o brilho do sol e com o coloridodas flores (rosa, lírio, açucena, cravo, jas-mim), reiteração que se multiplica em con-tínuas variações e reiterados espelha-mentos. Mas se a beleza imita o brilho dosol, do raio, da estrela, do diamante e docristal, o contraposto entre fogo e frio é aimagem preferida da perseverança do poe-ta e da indiferença da musa, cuja crueldadealegórica se manifesta nos menores índi-ces dos encantos que a cercam, conformese pode observar na décima “Eco deAnarda”:

Se, no romance anterior, o poeta explo-ra o contraposto entre invenção e elocução,nesta décima, procede de maneira inversa,simulando identidade entre a invenção e aelocução da matéria, procedimento de queresulta engenhosa construção poética, emque se reiteram vocábulos ou variações devocábulos, com o propósito de promover arepresentação de um eco por meio da re-verberação das palavras. Esse eco, no poe-ma, reflete as negativas de Anarda, semdeixar de refletir também as súplicas amo-rosas do poeta: ele chama Anarda; ela res-ponde Arda. Nos cinco primeiros versos, arepetição anafórica da preposição suportamodalidade mais sutil de retomada, queconsiste no uso de uma espécie de varianteda anadiplose, que repete no início do ver-so a última palavra do anterior. Aqui, parapromover a deformação do revérbero, nãose repete o mesmo vocábulo no início doverso seguinte, como seria em perfeitaanadiplose; mas se retoma, no meio, a ma-triz cognata do vocábulo anterior, pois pri-meiro surgem desvelados, constantes, cas-tigados, amantes, chorados; depois, as for-mas principais desvelos, constâncias, etc.,como a sugerir que de Anarda emanam asmatrizes da condição do poeta, existindo neleapenas como deformações perturbadoras.

ROSA METAFÍSICA

Mesmo considerando o prestígio de “ÀIlha de Maré”, cujo interesse é enorme,talvez o mais representativo poema deBotelho de Oliveira seja “À Rosa”, conjun-to de doze oitavas em que se celebra a be-leza de Anarda, por meio do contínuo para-lelo com essa flor, que, depois de nascerpor elevada conjuração de astros, conver-te-se metaforicamente em sol (3a estrofe),em deusa (4a estrofe), em ave (5a estrofe),em amante (6a estrofe) e em lua (7a estrofe).A confluência reiterada dos tropos preten-de personificar a beleza absoluta de Anarda,para cujo perfil contribuem inúmeros ou-tros acessórios retóricos, resultando o poe-ma em poderosa sugestão orquestral, em

“Entre males desvelados,Entre desvelos constantes,Entre constâncias amantes,Entre amores castigados,Entre castigos chorados,E choros que o peito guarda,Chamo sempre a bela Anarda;E logo a meu mal, fiel,Eco de Anarda cruelSó responde ao peito que Arda”.

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que a variada harmonia das cores se mesclacom o inconstante encadeamento de meta-morfoses semânticas e reverberações so-noras. Poucas vezes um poeta brasileiro de-monstrou tão elevado domínio técnico so-bre o verso. Não obstante, o poema excedea absurda hipótese de exercício mecânicode retórica, atingindo a condição de autên-tica poesia engenhosa, em que, variante damatriz gongórica, convergem a agudeza ra-cional da construção e o equívoco insinu-ante dos sentidos. Depois de edificar a ma-ravilha da rosa, o poema, a partir da oitavaestrofe, introduz o lamento do carpe diem,segundo o qual a brevidade do encanto deveconduzir ao gozo do mesmo encanto, pois,assim como o sol, a rosa e Anarda não bri-lham mais que um instante, tópica desen-volvida também no célebre soneto da tradi-ção gregoriana “Nasce o sol e não dura maisque um dia”. Como tudo em Música doParnaso, as oitavas de “À Rosa” partilhamdo princípio de que o poema deve ocultarsua agudeza, no sentido de torná-la objetode procura atenta e igualmente aguda, talcomo se observa em sua primeira estrofe,

“Inundações floridas de AmaltéiaProdigamente Clóri derramavaE, líquida em rocio, a sombra feia;No fraudulento Bruto, o Sol brilhava:Quando entre tanta flor que Abril semeia,Fidalgamente a Rosa se adornava,Ostentando por garbo repetidoDe ouro o toucado; de âmbar, o vestido”.

A pontuação que o ensaio propõe paraa oitava resulta, em si mesma, de hipóteseinterpretativa, tomando-a como cronografiaou perífrase cronológica, por entender quealude a determinado momento na evoluçãodo tempo, o que necessariamente envolvereferência à posição dos astros. A agudeza,no caso, consiste em aludir à primaveracomo inundações de flores da ninfaAmaltéia, derramadas sobre a terra por meiode sua auxiliar Clóri, que também derramaa noite (sombra feia) convertida em orva-lho (rocio). É aguda também a relação delíquida com sombra feia, que se deve to-mar como predicativo de objeto direto, enão como adjunto adnominal. A perífrasefraudulento Bruto está em lugar de touro,chamado daquela maneira por ter servidode instrumento ardiloso a Júpiter no raptode Europa; mais precisamente, a perífrasedesigna constelação de touro, em cujo

cujo significado depende de paciente ope-ração de associações entre elementos dis-tantes um do outro:

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âmbito deve estar o sol para que ocorra aprimavera. Assim, a oitava pode ser resu-mida pela idéia de que era primavera, quan-do a rosa nascia e ostentava seus encantoscoloridos, matizada pelas irradiações do sol,que lhe acrescentavam tons de ouro e demel ao vermelho das pétalas e ao verde dasfolhas. Há inúmeras cronografias dessas emOs Lusíadas, de onde Góngora extraiu osoberbo início das Soledades. Todavia, épossível precisar um pouco mais a fonte deBotelho, que deve ter sido a estrofe 72 doCanto II do poema camoniano, cujos qua-tro primeiros versos são os seguintes:

“Era no tempo alegre, quando entravaNo roubador de Europa a Luz Febéia,Quando um e outro corno lhe aquentava,E Flora derramava o de Amaltéia”.

Como é sabido, a poética antiga consi-dera duas espécies de imitação: a livre e aservil. Tomada em sentido aristotélico, aprimeira prescinde de modelo, pois parteda própria sugestão dos afetos, ainda quepara isso o poeta deva obedecer ao artifíciodos gêneros e das normas. Embora apre-sentado pelos preceptistas como modo su-perior de invenção, esse processo não pas-sa de hipótese que jamais se realiza, poisconsta que até Homero se fundou em dis-cursos míticos, históricos e poéticos pree-xistentes. Assim, na prática, a chamadaimitação servil, cuja designação não pos-sui conotação pejorativa, explica-se unica-mente porque o autor que a realiza se deixaorientar por um discurso específico edeliberadamente escolhido, podendo o re-sultado ficar aquém, à altura ou acima domodelo. Servis propriamente ditos seriamapenas os textos que, demasiado presos aooriginal imitado, não adquirem feição pró-pria, de onde Francisco Leitão Ferreiraconclui que há autores que possuem umacorrente no pé, e não o pé corrente. Osdemais casos de imitação servil classifi-cam-se todos como emulação, desejável einevitável, no sentido de o autor necessa-riamente ter de achar uma obra como estí-mulo para a invenção pessoal.

O mais consagrado exemplo de emula-

ção vitoriosa são Os Lusíadas, em cujafatura, acredita-se, Camões superou o mo-delo de A Eneida. Já não se pode dizer omesmo de Botelho de Oliveira com relaçãoà estrofe em questão, mas não pareceráexagero admitir que, longe de imitaçãoescrava, praticou emulação singular e efi-caz. Além disso, deve-se levar em contaque a estrofe mistura o registro camonianocom o de Góngora, o que a caracteriza comodecorrência de apropriação do estilo asiá-tico (artificioso, perifrástico, alusivo), porcujas regras deve ser lida. Essa questão éessencial para a leitura de Manuel Botelhode Oliveira, pois, em sua época, entendia-se por bom poeta aquele que fosse capaz dedar vida à imitação da obra tomada comomodelo, observando tanto a generalidadequanto a particularidade dela. A idéia degeneralidade incluía os aspectos associa-dos ao gênero e à tradição normativa daobra; e a de particularidade, os componen-tes pessoais do estilo e das idéias aplicadospelo autor àquela obra em particular. Logo,não há por que condenar um autor que pro-duz por tal critério, que era, enfim, o únicocorrente na Europa nesse tempo. Assim, aose apropriar de padrões e tópicas de um dosmaiores períodos da poesia européia,Botelho de Oliveira acabou por produzirum livro de grande interesse no processode implantação da língua poética no Brasil,em que as oitavas de “À Rosa” se destacampor sua singular qualidade.

Evidentemente, a leitura desse poemadeverá contar com o exame da presença darosa como metáfora de beleza e efemeridadena tópica do carpe diem, combinação quesurge e ressurge em inúmeros poetasseiscentistas da Europa em geral e de Por-tugal em particular. Apenas para esboçaruma mínima relação dessa série, lembre-sedo célebre fragmento dedicado ao assuntono poema Adone de Giambattista Marino,aliás muito bem traduzido entre nós porAugusto de Campos. Na Fênix Renascida,há espantosa quantidade de poemas queincorporam essa metáfora, sendo que D.Simão Cardoso empenhou-se na composi-ção de um cancioneiro completo, comdezesseis sonetos e um madrigal, intitula-

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do Roseira Poética, cuja abertura se com-põe, tal como o poema de Botelho de Oli-veira, de doze oitavas camonianas, tambémem estilo gongórico (tomo II, pp. 242-62,1717). Jerônimo Bahia seguiu o mesmopadrão e a mesma extensão em suas oitavas“A Uma Rosa” (tomo IV, pp. 34-8, 1721).Merece especial destaque a glosa anônimaao soneto de Góngora “Vana Rosa” (“Ayernasciste, y moriràs mañana”), cujas oita-vas terminam, todas, pela repetição de umdos versos do soneto (tomo III, pp. 268-73,1718). Há ainda o conhecidíssimo e sem-pre magnífico soneto atribuído a Gregóriode Matos “É a vaidade, Fábio, nesta vidaRosa”, com a mesma elocução aguda eengenhosa que se percebe nas demais com-posições da série. O próprio FranciscoLeitão Ferreira não deixou de estampar,com propósito didático, uma dissertaçãosobre os encantos da rosa no primeiro vo-lume da Nova Arte de Conceitos (1718, pp.298-310), o que, por fim, ratifica a circula-ção da tópica no Seiscentismo europeu.

Tal recorrência em nada diminui a ne-cessidade de atenção ao encanto das oita-vas de Botelho de Oliveira, da mesma for-ma que a semelhança entre as diversas ca-tedrais góticas da assim chamada BaixaIdade Média não dispensa a apreciação decada uma em particular; assim como, tam-bém, a vertiginosa reincidência, digamos,do arquétipo da madona com o menino nahistória da arte não torna a pintura sacraeuropéia menos digna de interesse entre osséculos XIII e XVI. De qualquer modo, asimilitude entre tais poemas deve, hoje, serentendida pelos termos da época, quandoFrancisco Leitão Ferreira chegou a compa-rar o poeta à abelha, que, extraindo o néctarde várias flores, forma o próprio mel (NovaArte de Conceitos, vol. I, 1718, pp. 179 e183-4):

“Assim como a abelha não tece o doce favodo suco de quaisquer flores, mas procura opasto das mais fragrantes; da mesma sorte,o bom imitador não se deve servir, para suaimitação, de quaisquer figuras, frases e con-ceitos, mas, lendo e observando os escritosde melhor nota no gênero de obra que fizer,

imitará o mais singular, sutil e engenhosodeles, reduzindo a tais regras a sua imita-ção, que não pareça que trasladou ou tradu-ziu, senão que, competindo com o imitado,o igualou ou o excedeu”.

Com esse critério por guia, vale a penaesboçar um exercício de comparação paraapreciar o espantoso domínio dos poetassobre os procedimentos da língua poéticade então, tomando Góngora e Marino comoautoridades. Por enquanto, o presente en-saio propõe apenas o exame da décimaestrofe de Botelho de Oliveira, em compa-ração com a correspondente de JerônimoBahia:

“Se abre a Rosa pomposo nascimento,Se bebe a Rosa nacarada morte,Se foi Sol no purpúreo luzimento,Também se iguala Sol na breve sorte:Se o Sol nasce e padece o fim violento,Nasce a Rosa e padece o golpe forte;De sorte que, por morta e por luzente,No Ocaso ocaso tem; no Oriente, oriente”.

*

“Púrpura mostra, ostenta brilhadoraLuzido centro em círculo rosado,Do radiante Sol, da roxa AuroraRetrato lindo, singular traslado:Ele no seu brilhante centro mora,Ela mora em seu círculo encarnado,Trazendo assi, com duplicado adorno,Um Sol em meio e uma Aurora em torno”.

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Cada uma das estrofes ocupa a mesmaposição na argumentação do tema davanitas. No entanto, elas apresentam varie-dade. É o que ensina Horácio na Arte Poé-tica, quando recomenda que, em lugar deinventar novos caracteres, o poeta deve li-mitar-se aos consagrados pelo costume,porque, além de evitar a dificuldade, teráassim garantida a compreensão da audiên-cia, que, diante da identidade, poderá con-fortavelmente admirar a novidade de suavariação. Trata-se, portanto, de preservar aestrutura por meio da liberdade de seuselementos, em procedimento tão matemá-tico quanto musical.

A exemplo de Marino, ambos os poetascomparam a rosa com o sol e com a aurora,tal como o fazem também Simão Cardosoe o Anônimo da glosa de Góngora, referi-dos acima. Todavia, enquanto JerônimoBahia limita-se a relacionar o brilho e a cordos três elementos, Botelho de Oliveira lhesadiciona a idéia de efemeridade, em sucin-ta superposição de aspectos: tal como o sol,que surge com luz forte e se põe com luzdifusa, a rosa nasce em pompa e morre emnácar. Por esses termos, é possível traduzira antanáclase final da seguinte maneira: talcomo o sol ao surgir (Oriente), a rosa ga-nha brilho ao nascer (oriente); tal como osol ao se pôr (Ocidente), a rosa perde obrilho ao morrer (ocidente). Além desseadmirável jogo de cor e sentido, o versomantém estreita correlação com o antece-dente: a rosa tem oriente porque nasce; arosa tem ocaso porque morre. Mas a corre-lação não pára aí; antes, retroage em cadeiaaté o início: Oriente está para luzente, queestá para luzimento, que está para sol nas-ce, que está para pomposo nascimento;assim como Ocaso está para morta, queestá para golpe forte, que está para fim vio-lento, que está para breve sorte, que estápara nacarada morte. Como se vê, a estro-fe é circular, já que seu sentido só se revelapor meio da releitura, que impõe nova lei-tura, sugerindo uma vez mais o breve ereiterado circuito do sol e da rosa, por meiodo qual o poeta demonstra para Anarda aforça do tempo sobre os homens.

Como se viu acima, Simão Cardoso,

Jerônimo Bahia e Botelho de Oliveiraestruturaram seus poemas em doze oitavascamonianas, sendo certo que o Anônimoda glosa de Góngora, determinado pelopropósito de multiplicar por oito os versosde um soneto, teve de adicionar duas estro-fes àquele número. Qual seria o motivo dauniformidade de tal procedimento? Umaresposta possível acha-se em Serão Políti-co, Abuso Emendado (1723), de Felix daCastanheira Turacem, mais conhecido porFrei Lucas de Santa Catarina, um dos pri-meiros autores portugueses a recusar, pormodo engenhoso, a poesia gongórica, que,além de ridícula, ele considera culta. Lê-seno livro a afirmação de que os antigos pin-tavam o sol coroado por doze raios, sendoque nem todos fecundavam a terra, senãoaqueles correspondentes aos meses da pri-mavera e do outono. Por aí se vê que onúmero doze possui função aguda nessespoemas, pois o carpe diem, além de elogioà beleza ou convite amoroso, é sempre alertasobre a passagem do tempo, conforme sevê na penúltima oitava do poema de Botelhode Oliveira, que corresponde à ascensão doinverno da beleza:

“Se, Anarda, vibras na beleza ingrataRaios de esquiva, de fermosa raios,Adverte, adverte, que um rigor maltrataAdulação de Abris, primor de Maios:Ouve na flor, que desenganos trata,As mudas vozes dos gentis desmaios;Atente enfim teu néscio desvarioQue a fermosura é flor; o tempo, Estio”.

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Se o poema começou em Abril, o que seratifica pela presença metonímica dessevocábulo no quinto verso de sua primeiraestrofe (transcrita anteriormente), nesta dé-cima primeira só poderíamos estar em ple-no domínio dos meses frios, visto que aúltima menciona dezembro em seu versofinal, imediatamente antes de repetir Abril,com que se encerra o texto e onde o solrecomeça o ciclo do ano, em sua eternareinvenção do tempo. Pelo calendário dasflores, o mundo começa em abril; por isso,os efeitos de dezembro, janeiro, fevereiro emarço insinuam-se no poema a partir daoitava estrofe, quando tem início o alertasobre a precariedade da beleza, que se es-vai com a chegada do vazio gelado dosmeses em que o sol inexiste como elemen-to fecundante:

finais glosam a tópica estóica de que o ho-mem é cadáver adiado, que, eco da poesiaaguda européia, também surge e ressurgena Fênix Renascida e no Postilhão de Apolo,vindo se aclimatar genialmente no poema“A D. Sebastião, Rei de Portugal”, emMensagem, de Fernando Pessoa. O poemafigura sua própria poética, como se vê noverso final, que revela o jogo alegórico dasignificação cromática, associando coral aesplendor; e ouro, a declínio. Além disso,aí, a justaposição de contrapostos, que,apenas insinuada no início, intensifica-secom o andamento da estrofe e patenteia-seno final como essência do paradoxo da vida– a idéia de o fim está no começo.

Conforme a teologia seiscentista, tudoé efeito e signo de Deus; o mundo é umenorme conjunto de metáforas da luz divi-na, que ordena tudo como espelho de suaperfeição. Alegorias do absoluto, as coisastêm sentido em si mesmas como coisas,mas também são indicadoras da Verdadeque as causa e que elas representam. O tex-to seiscentista imita a hierarquia desseenigmático mundo de sinais e, ao repro-duzir em sua trama a natureza alegóricadas coisas, constitui-se como alegoria dealegoria. Por essa razão, a rosa de Botelho,nascendo do sol, torna-se pássaro, lua,estrela, de novo sol, esmeralda, rubi –porque tudo se relaciona na lógica unitá-ria da grande metáfora de Deus. Por isso,Anarda deve aprender a interpretar as coi-sas como manifestação da ordem cósmi-ca: é o que dizem os versos quinto e sexto,ao insistirem em que ela ouça as mudasvozes da flor, que fala (trata) de desenga-nos. Da mesma maneira, a formosura e otempo figuram também a efemeridade e adestruição: flor e estio, respectivamente.Logo, a metáfora aguda da poesia seis-centista indicia também o espelhamentode um mundo cujo sentido só se realizaplenamente em sua Causa.

A estrofe final, que termina por Dezem-bro e recomeça por Abril, tenta persuadirAnarda sobre a harmonia das coisas, quepressupõe a corrupção da carne em favorda alma que aspira ao Todo, movido peloeterno jogo de auto-espelhamento:

“Mas ai, quão brevemente se asseguraA flor purpúrea no primor luzido!Que não logre isenções a fermosura!Que a morte de ua flor rompa o vestido!Oh da Rosa gentil mortal ventura!Que logo morta está, quando há nascido,Sendo o toucado do infeliz tesouroEm berço de coral sepulcro de ouro”.

Se os dois primeiros versos da estrofelamentam a brevidade da beleza, os doisseguintes impõem a aceitação da mobili-dade das coisas: que a formosura, portanto,não aspire a privilégios em Khrónos e queo desfalecimento da rosa desfaça o enganoda aparência (vestido)! Os quatro versos

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“Não queiras, não, perder, com cego engano,Dessas flores que logras a riqueza;Vê pois que cada idade, por teu dano,É sucessivo Inverno da beleza;Aprende cedo, Anarda, o desenganoDesta ufana, já morta gentileza;Não queiras, não, perder em teu desgostoDo Dezembro da idade o Abril do rosto”.

O sentido geral de atenção para o tempoé bastante claro na estrofe. Mas há nuançassutis no desenvolvimento da idéia de que oindivíduo é criação do tempo, razão pelaqual Anarda não deve se iludir com a falsaidéia de incomunicabilidade ou deautocontemplação, porque isso é exclusi-vidade de Deus, que faz girar o sol e é aúnica criatura igual a si mesma, porqueinclui tudo e não admite diferenças. Enfim,o engano (artifício que conduz ao erro) deAnarda consiste na vaidade de considerar abeleza como condição suficiente para secolocar acima do tempo e dos homens, con-tra o que se coloca o dano (estrago) domesmo tempo, produzindo sucessivosdeclínios (invernos) na formosura. Por isso,o conhecimento do desengano (desilusão)não é apenas a meta da vida, mas tambémda doutrina do poema, que ensina que épela vivência desse estado que se desfazemos enganos da vaidade e da presunção. Osdois versos finais repetem o núcleo temáticodos dois primeiros, especificando um pou-co mais a noção de que não se deve trocaro prazer da juventude (Abril do rosto) pelodesprazer da velhice (desgosto do Dezem-bro da idade). Mais uma vez, a releitura

impõe retorno paradigmático às palavras-chaves da estrofe, localizadas, agora, naextremidade das rimas: rosto está para gen-tileza, que está para beleza, que está parariqueza; assim como desgosto está paradesengano, que está para dano, que estápara engano. Observe-se, por fim, que, emcomparação com os poemas da Fênix aquiconsiderados, o de Botelho é o único emque a luta do tempo contra a vaidade termi-na em convite amoroso, ainda que de ma-neira discreta, sobretudo quando compara-do com os poemas congêneres de Góngora,Quevedo e da tradição de Gregório deMatos, em que o convite é ostensivo. Asutileza do convite em Botelho decorre dopressuposto de que o gozo sugerido, assimcomo a vaidade, não deve aspirar à supera-ção dos limites impostos ao homem peloprojeto divino.

LIRISMO E SOCIEDADE

Observou-se acima que, além de versosde exaltação da beleza, há em Música doParnaso poemas voltados para a celebra-ção dos modelos dignos de imitação nasrelações históricas da Monarquia. Esses sãoos poemas encomiásticos, que dominam osegundo coro do livro, cuja abertura se dápelo soneto “À Morte Felicíssima de umJavali pelo Tiro que nele Fez ua Infanta dePortugal”. Com nítida função de proêmioaos textos celebrativos que vêm a seguir,esse soneto apresenta e desenvolve a tópi-ca da construção da eternidade por meiodas letras, que é, como se sabe, o núcleosemântico dessa espécie de poesia. Demaneira quase absoluta, a crítica tradicionalnão deu por ela, contentado-se em acusar opoeta de indiferença social ou de bajulaçãoaos poderosos. Pela perspectiva do presenteensaio, os poemas encomiásticos serão vis-tos como manifestação do desejo de inte-gração social, pois celebram a virtude civil,particularizada no rei, em homens de gênioe em agentes da nobreza, das letras, do clero,e das armas. Ao elogiar o rei e aqueles quecontribuem diretamente para a boa

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governação dos povos, o poeta procura in-cluir-se como membro hipotético do conse-lho de Sua Majestade, cuja razão requer aprudência do apoio para que a cabeça coor-dene com eqüidade os membros do corpomístico do Estado (5):

pois, além da concentração do tiro ao alvoem movimento, implicava exercício deequitação, que pressupunha o domínio doespírito sobre o corpo. A singularidade dosoneto decorre da inversão metonímica decelebrar o javali como forma de exaltar a

“Não sei se diga (ó bruto) que vivesteOu se alcançaste morte venturosa;Pois morrendo da destra valerosa,Melhor vida na morte mereceste.

Esse tiro fatal de que morresteEm ti fez ua ação tão generosa,Que entre o fogo da pólvora ditosaDa nobre glória o fogo recebeste.

Deves agradecer essa ferida,Quando esse tiro o coração te inflama,Pois à maior grandeza te convida:

De sorte que te abriu do golpe a chamaUma porta perpétua para a vida,Ua boca sonora para a fama”.

Trata-se de um poema venatório, espé-cie epidítica com que se celebravam ascaçadas da nobreza no Antigo Regime.Dentre as folganças preferidas, essa ativi-dade era encarada com muita distinção,

5 Trato do assunto com mais de-talhe em Mecenato Pombalinoe Poesia Neoclássica (SãoPaulo, Edusp/Fapesp, 1999,pp. 406-11).

jovem que o matou, D. Isabel Luísa Josefa,filha única de D. Pedro II com a rainha MariaFrancisca Isabel de Sabóia. Nesse sentido,trata-se de poema irônico, pois afirma umacoisa por meio de outra. Há também umcontraposto que contribui para o efeitoequívoco do texto, o qual consiste no con-fronto da bela com a fera ou, por outra, noparalelo entre as linhas ideais do perfil deuma princesa e o volume informe do corpode um javali (ó bruto). O efeito artístico dopoema depende, ainda, do jogo ambivalen-te entre o sentido próprio da expressão fogoda pólvora e de sua acepção metafórica fogoda glória, pois se o primeiro provoca amorte, o segundo conduz à vida eterna dafama, cuja boca divulgaria para sempre oprivilégio de morrer pela mão de umamulher que se destinava ao trono de Portu-gal (caso a morte prematura não a impedis-se de se tornar rainha). Todavia, por maisrazões que se aduzam à análise do poema,ele será sempre celebração lírica da caça,

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entendendo, com Horácio, o gênero líricocomo forma de louvor de manifestações davida prática, como são os amores, os ban-quetes, os atletas, os cavalos vencedoresnas corridas, etc. (6).

Nos poemas encomiásticos de Músicado Parnaso, há mais três recorrências datópica da morte como início da vida, dentreas quais se destaca a glorificação do Pe.Antônio Vieira, cujo falecimento o poeta,a exemplo de outros da Fênix Renascida,celebrou em belíssimo soneto, que em nadafica devendo ao texto de Fernando Pessoasobre o mesmo escritor, resguardados osrespectivos horizontes de cada poeta:

A questão central do poema é a con-quista da imortalidade da fama pelo méritoda vida, que, no caso de Vieira, notabili-zou-se pela aplicação do engenho à inter-pretação da Sagrada Escritura, por meioda oratória escrita (pena). Respeitado emvida, o orador tem direito também à eterni-dade, porque a alma dele renasce a cadaleitura de seus textos. A agudeza básica dosoneto consiste no conceito paradoxal quedispõe que é preciso morrer para viver,assim como, para esse tipo de ressurreição,quem vive não deve viver para si, mas poruma causa, tal como se deu com SantoAgostinho, que fornece o elemento parale-lo ao poema, que o estende depois para oscontinentes da África e da Europa, como asugerir a universalidade do Cristianismo eo poder de ambos os propagadores. Pelalógica do argumento, vive muito quem vivepouco, pois, entregando-se (embebido) àpalavra de Deus, Vieira renunciou à vidapessoal para dedicar-se ao trabalho de ora-dor, de onde decorre o prodígio da eterni-dade. Dentre os vocábulos importantes dopoema, deve-se dar atenção àqueles quemais a merecem, tais como assombro, por-tento e seus respectivos qualificadores (ve-nerado e esclarecido), que indicam a con-cepção segundo a qual se deu a invenção dopoema, que é a do milagre, do assombro, damaravilha, efeitos previstos tanto pela poé-tica dos Sermões de Vieira quanto pela deMúsica do Parnaso.

A julgar por esses sonetos, pode-se afir-mar que a integração social observada napoesia de Botelho de Oliveira dá-se pelafórmula horaciana, segundo a qual a artedeve se empenhar na busca da utilidade, doprazer e dos afetos persuasivos, sendo cer-to que o poeta privilegiou a noção de pra-zer, por meio do encantamento dos senti-dos e da diversão do intelecto. Se se parti-cularizar um pouco mais essa idéia, chega-se ao gênero do discurso conhecido porepidítico ou demonstrativo, que, conformeos ensinamentos de Aristóteles, manifesta-se no louvor ou na censura, correspondendorespectivamente às modalidades doencômio e da sátira (7). Em nome do utili-tarismo das artes, a sátira condena, em esti-

“Fostes, Vieira, engenho tão subido,Tão singular e tão avantejado,Que nunca sereis mais de outro imitado,Bem que sejais de todos aplaudido.

Nas sacras Escrituras embebido,Qual Agostinho, fostes celebrado;Ele de África assombro venerado,Vós de Europa portento esclarecido.

Morrestes; porém não; que o Mundo atroaVossa pena, que aplausos multiplica,Com que de eterna vida vos coroa;

E quando imortalmente se publica,Em cada rasgo seu a fama voa,Em cada escrito seu ua alma fica”.

6 Embora em outra perspectiva,Eugênio Gomes fornece subsí-dios úteis para a leitura do so-neto de Botelho de Oliveira,no pequeno ensaio “A Infantae o Javali”, no qual se aprendeque, no século XVI I , foiGóngora quem colocou emmoda a celebração do animalque tem a fortuna de morrerpor mão de soberano. Depois,a tópica passou para Portugal,tendo inspirado poemas aJerônimo Bahia, ao Pe. Antô-nio Vieira e a seu irmãoBernardo Vieira Ravasco, quea aplicaram ao caso particu-lar da mesma infanta deBotelho de Oliveira.

7 Cf. Ivan Teixeira, MecenatoPombalino e Poesia Neoclássi-ca, op. cit., pp. 271 e 450-7.

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Reis sob os quais viveuManuel Botelho deOliveira. Extraídos deHistoria del Reyno dePortugal, Manuel de Fariay Sousa, 3a edição,Bruxelas, 1730

D. Filipe III (1621-40)

D. Afonso VI (1656-83)

D. João IV (1640-56)

D. Pedro II (1683-1706) D. João V (1706-50)

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lo baixo, os vícios praticados contra a so-ciedade, idealmente concebida. Outra faceda mesma moeda, o encômio elogia, emestilo sublime, as virtudes sociais que mo-delam a pessoa. Em ambos os casos, oleitor é juiz de uma elocução que se apre-senta como espetáculo edificante no pre-sente: no primeiro, o texto deve conven-cer pelo riso; no segundo, pela elevaçãodo exemplo encenado. Da aplicação sin-gular do engenho decorrerá o grau de agu-deza do texto, que determinará o nível desua eficácia. Embora a tradição tenha con-sagrado Gregório de Matos pela sátira, nãolhe nega também poemas encomiásticos,ao passo que Botelho de Oliveira preferiuas situações elevadas do louvor, emboratenha deixado algumas composições emestilo jocoso, dentre as quais se contamseis romances do primeiro coro de rimas eos poemas dramáticos situados na partefinal de Música do Parnaso (8). Aristótelespensa que o louvor deve se restringir aoque é honesto; Quintiliano julga que seaplica também ao útil. Botelho de Olivei-ra funde a honestidade com a utilidade,praticando o encômio de maneira singu-larmente lúdica. Na dedicatória de seu li-vro, manifesta a convicção de que dessaatividade resulta o aprimoramento inte-lectual da pessoa, que é luzimento da so-ciedade, pois, sendo exercício do entendi-mento, a poesia é também agente de civi-lização:

“Nesta América, inculta habitação antiga-mente de Bárbaros índios, mal se podia es-perar que as Musas se fizessem brasileiras;contudo quiseram também passar-se a esteempório, aonde, como a doçura do açúcaré tão simpática com a suavidade do seucanto, acharam muitos engenhos, que, imi-tando aos poetas de Itália e Espanha, seaplicassem a tão discreto entretenimento,para que se não queixasse esta última partedo mundo que, assim como Apolo lhe co-munica os raios para os dias, lhe negasse asluzes para os entendimentos. Ao meu, pos-to que inferior aos de que é tão fértil estepaís, ditaram as Musas as presentes rimas,que me resolvi expor à publicidade de to-

dos, para ao menos ser o primeiro filho doBrasil, que faça pública a suavidade dometro, já que o não sou em merecer outrosmaiores créditos na Poesia”.

Assim, há, no mínimo, dois modoscomplementares de ler Música doParnaso: primeiro, como manifestaçãolúdica do engenho; segundo, como índicede incorporação da América ao jogo civi-lizado praticado na Europa. Concebidoapenas como categorias críticas de leitu-ra, tais aspectos não se dissociam na prá-tica dos poemas, como se pode perceberpela maravilhosa canção dedicada à mor-te da rainha Maria Sofia Isabel, segundaesposa de D. Pedro II e mãe de D. João V,ocorrida em 1699. O poema consta de vin-te e seis sextilhas e uma coda, nas quais sesimulam lamentos de todos os elementosdo cosmos, sugerindo que a morte da rai-nha sensibilizou desde o máximo até omínimo. Trata-se de poema prismáticoque, captando os suspiros das partes, com-põe um coro universal de gemidos e cho-ros muito convincente como composiçãodestinada a encenar a perda de um emble-ma que se supunha essencial à unidademística do corpo do Estado: primeiro,lamuriam-se as nações cultas do mundo;depois, os astros, as plantas e, por fim, osintegrantes do Reino, começando pelo reiaté as pessoas mais humildes do povo. Talcomo “À Ilha de Maré”, o poema segue aestrutura da silva, não só por mesclar ver-sos decassílabos com hexassílabos, mastambém por se basear na enumeração en-genhosa de aspectos diversos de um mes-mo campo semântico. Cada estrofe possuiautonomia de significado e é animada pelasingularidade de conter uma ou duas agu-dezas, constituídas por trocadilho, metá-fora imprevista, brevidade eloqüente, re-petição organizada, clareza precisa ou con-ceito engenhoso, sendo certo que o artifí-cio básico do todo decorre da singelezadas partes, que se revestem do cuidado deexplorar moderadamente as argúcias delinguagem, exceto a primeira estrofe, emque se concentram diversos ornatos daelocução seiscentista:

8 Os poemas dramáticos são HayAmigo para Amigo e Amor,Engaños e Celos, escritos emespanhol.

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“Que pavor, que crueza?Que pena, que desdita a Lísia enluta!Já do pranto a tristeza,Como mar lagrimoso, ao mar tributa;Vendo Netuno, para novo espanto,Que tem dous mares, quando corre o pranto”.

Como tudo em Música do Parnaso, aestrofe funda-se no artifício e no cálculo,que são correlatos da perspicácia e da des-treza, das quais procede a novidade da com-posição, que se obtém não por inspiração,mas por exercício. O efeito almejado é asublimidade da dor coletiva, sintetizada nopranto da pátria, que se confunde com omar. Ainda que a metáfora do pranto comorio seja corrente na poesia seiscentista, nempor isso deixa de promover o efeito de agu-deza, porque, como se viu, a variedade pres-supõe a uniformidade. O motivo principalda surpresa artística na estrofe consiste emque o pranto, antes de ser rio tributário domar, é já um mar de lágrimas, que conduzsuas águas ao mesmo mar, de onde, emespanto, Netuno admira o tumulto de doismares que surgem dos olhos de Portugal(Lísia) e se precipitam em sua direção. Essasobreposição de imagens ratifica a idéia deque o núcleo da poética de Botelho se fun-

da na metáfora hiperbólica e na hipérbolemetafórica, que se harmonizam na elocuçãoaguda e engenhosa. Além disso, não podeser posta em questão a eficácia da reiteraçãodo vocábulo mar, distribuído estrategica-mente ao longo dos versos e com projeçõesespeculares em pranto e Netuno. A brevida-de da estrofe resulta da agilidade com que sepassa da noção do choro de Portugal para oda precipitação de dois mares em direção aomar. A clareza decorre da imediata figura-ção dos olhos de Lísia como dois fecundosmananciais. Acrescente-se a isso o equívo-co sonoro do sintagma Lísia enluta, que tan-to pode soar como Lísia de luto quanto Lísiaem combate. Enfim, domina essa estrofe aforça das construções condensadas, que maistarde reapareceriam nas Odes Pindáricas,de Antônio Dinis da Cruz e Silva, e nospoemas celebrativos de Mensagem, de Fer-nando Pessoa, nos quais também se observaa presença do panegírico como modalidadede exaltação das virtudes cívicas da Monar-quia Lusitana.

Examine-se outra estrofe da mesmacanção, escolhida desta vez pelo critério darepresentatividade da economia dos artifí-cios de elocução, marcados pela singelezae moderação:

D. Maria SofiaIsabel deNeuburgo(1666-99),segundamulher de D.Pedro II.Extraído deRainhas dePortugal,FonsecaBenevides,Lisboa, 1874

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“A América sentidaFaz tanta estimação da dor, que ordena,Que desejara a vidaEterna, para ser eterna a pena;E quando no tormento mais se alarga,O doce açúcar troca em pena amarga”.

A estrofe apóia-se, apenas, em duasagudezas de médio alcance. A primeira con-siste na simulação do desejo de os brasilei-ros (América é sinédoque personificada deamericanos, que equivale a súditos do Bra-sil) viverem eternamente, para jamais ces-sar a homenagem à rainha, por meio daexpressão contínua do sofrimento. Em ri-gor, o texto afirma que a vida é curta paratamanha pena (padecimento, expiação,perda), conceito engenhoso de origemestilonovista que se projeta sobre o parado-xo de que a dor é querida, apesar desubjugadora (que ordena), visto associar-se com o objeto do encômio. A segundaagudeza manifesta-se na conversão da pro-priedade básica do açúcar em condiçãoafetiva do luto, aludindo ironicamente àeconomia baiana e à possível constituiçãopoética de um caráter pátrio local. Como aestrofe anterior, esta raciocina por meio daalegoria, movimentando nuanças oblíquasde significação hipotética, sempre fundadana expressão peregrina, que, viu-se, osseiscentistas identificavam com a elocuçãorara e surpreendente.

Tão moderada quanto esta é a nona es-trofe da canção, tomada aqui como modelode unidade em que opera, já não duas, masuma única agudeza:

“Também padece a LuaDesta mágoa infeliz o desalento;E, quando mais flutuaNo inconstante noturno luzimento,Minguante e cheia está, se a dor se estréia:Minguante em glórias, de desditas cheia”.

Assim como os demais astros evocadosna canção, a lua desfalece, perdendo o bri-lho por causa da dor. Ainda aqui, persiste aanimação alegórica, como de resto em todoo poema. No singular momento de tristeza,a lua ostenta dupla condição astronômica,com diferentes correlatos afetivos, porqueela é, enfim, astro humanizado: como min-guante, carece de orgulho, de vaidade oude beleza (glórias); como cheia, excede eminfortúnio (desditas). A natureza equívocadessa agudeza associa-se particularmenteaos vocábulos flutua e inconstante, quetambém oscilam em sua significação. Mui-to adequada ao afeto da tristeza, a elocuçãoda estrofe, mais que moderada, é discreta,no sentido de acusar sabedoria no ajuste dosvocábulos e dos ornatos ao decoro da queixaprópria da elegia, espécie poética que, con-forme os antigos, pode ser traduzida pelaexpressão ai de mim! Isso explica a adoçãodo estilo médio na canção, que não se elevanem se abaixa, porque pretende encenar afala de um cortesão abatido, mas que, comodiscreto, será sempre detentor de sabedoriaretórica ou eficiência elocutiva. Tendo emvista o poema como um todo, essa é a con-clusão mais importante que se tira: comoelegia ou epicédio, a canção, ao eleger otema do lamento pela morte da rainha, ins-

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titui uma audiência específica, os galantesfreqüentadores da Corte, a cujo espírito opoeta, enquanto persona encomiástica, deveajustar sua fala, produzindo-a conforme asleis do decoro ou adequação. Nisso consistea discrição geral do texto.

PANEGÍRICO E CORRELAÇÕES

O tom da elocução altera-se completa-mente quando o artista compõe poemas emlouvor à guerra, tal como se observa nopanegírico ao Marquês de Marialva. O es-tilo, então, torna-se festivo e elevado, pois,como se sabe, o panegírico baseia-se nafusão do gênero épico com o histórico, deonde nasce a euforia bélica dessa espéciepoética, cujas manifestações singularespodem ser lidas como se fossem episódiossoltos de epopéia inconclusa. Todavia, otom desse poema não é propriamente deelevação heróica, mas de heroísmo galante,com gestos mais adequados à corte que aocampo de batalha. Diga-se, então, que setrata de reminiscência estilizada da guerra,filtrada pela tópica da declamação palacia-na. Esse é o efeito produzido pelas 34 oita-vas do encômio, cujo virtuosismo as reco-menda como exemplo de singular eficáciapoética. O poema abre-se com a seguinteestrofe, de extraordinário recorte artístico:

“Agora, Aquiles lusitano, agora,Se tanto concedeis, se aspiro a tanto,Deponde um pouco a lança vencedora,Inclinai vossa fronte ao rude canto:Se minha veia vossa fama adora,Corra em Mavórcio, corra em sábio espanto,Cheia de glória, de Hipocrene cheia,No mundo a fama, no discurso a veia”.

A construção lembra Camões, sem serpropriamente camoniana. O terceiro e oquarto versos são apropriações de aspectosespecíficos da oitava estrofe de Os Lusía-das, a cuja inflexão o poeta baiano impri-me tonalidade inteiramente nova, produ-zindo o que a preceptiva chama de emula-ção original, resultante de íntimo convívio

com o costume. O epíteto com que se glo-rifica o Marquês, Aquiles Lusitano, decor-re também do poema camoniano (X,12),assim como todo o vocabulário da estrofe(rude, canto, fama, mavórcio, espanto, gló-ria, Hipocrene, mundo), pois pertence an-tes ao repertório da poesia heróica do quepropriamente a Camões. Logo, o primeiroprincípio para a leitura do panegírico deBotelho é entendê-lo como emulação – nãosó de Camões, mas também do gênero épi-co e de todo o universo cavalheiresco daepopéia renascentista. Mas a disposição damatéria, e particularmente dos vocábulosna estrofe, pertence inteiramente à poéticagongórica e, portanto, ao próprio poeta.Poucas vezes a agudeza atingiu tamanhaeficácia em língua portuguesa. Observe-sea elegante horizontalidade arquitetônica doprimeiro verso, em que os advérbios exter-nos centralizam a alusão perifrástica aohomenageado: agora, Aquiles lusitano,agora, como a sugerir que a existência doMarquês antecede em muito o momento docanto. Essa estrutura reiterativa repete-seno verso seguinte, em que a ordem do ad-vérbio se alterna conforme o esquema doquiasmo. Se, aqui, o fluxo sintático segue,conforme a natureza da língua, a disposi-ção horizontal dos vocábulos, nos três últi-mos versos, contrariamente à natureza dalíngua, o fluxo sintático orienta-se parabaixo, em franco declínio vertical, graçasao esquema da correlação entre os termosda oração, isto é, os sintagmas iniciais dostrês versos, cujo limite é marcado por vír-gula, forma uma frase, assim como os trêssintagmas restantes dos mesmos versosformam outra frase, verticalmente (9):

a) corra em Mavórcio (domínio deMarte), cheia de glória, a fama no mundo;

b) corra em sábio espanto, cheia deHipocrene (inspiração) a veia no discurso.

Espantosamente, esse artifício em co-lunas, insinuando a fachada de um temploou altar para a apoteose do homenageado,não prejudica o ritmo nem a leituraseqüencial; antes, possibilita harmonica-mente ambas as hipóteses, em procedimen-

9 Em termos atuais, poder-se-iadizer que a primeira leiturasegue a diret r iz do eixosintagmático; a segunda, semdeixar de ser um sintagma,imita a idéia do eixo para-digmático.

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to muito ajustado às preferências equívocasdo poeta. Ressalte-se, por fim, que AquilesLusitano é epíteto com que Camões saúdaDuarte Pacheco Pereira, também chamadofortíssimo, guerreiro que, no século XVI,destacou-se nas lutas portuguesas do extre-mo Oriente. Assim, a filiação de Marialva(D. Antônio Luís de Meneses) à tradição deguerreiros homéricos e camonianos consti-tui-se em traço galante de mitificação poé-tica da personagem, que, ao tempo daelocução, revestia-se ainda de nítida condi-ção histórica, aliás muito apreciada por seuscompatriotas, pois foi um dos principais in-tegrantes do movimento de restauração daindependência contra o domínio de Espanha

“Temerária, soberba, confiada,Por altiva, por densa, por lustrosa,A exalação, a Névoa, a Mariposa,Sobe ao Sol, cobre o dia, a luz lhe enfada.

Castigada, desfeita, malograda,Por ousada, por débil, por briosa,Ao raio, ao resplandor, à luz fermosa,Cai triste, fica vã, morre abrasada.

Contra vós solicita, empenha, altera,Vil afeto, ira cega, ação perjura,Forte ódio, rumor falso, inveja fera.

em 1640, tendo liderado, como general, ascélebres batalhas das Linhas de Elvas e deMontes Claros, já no reinado de Afonso VI,quando ao título de Conde de Cantanhedeacrescentou o de Marquês de Marialva.

O sistema de versos correlativos, ob-servado no final da estrofe, Botelho de Oli-veira deve tê-lo apreendido em Gôngora,que o incorpora como um dos processossintáticos mais típicos de sua poesia (10). Étambém muito freqüente em Música doParnaso e aparece de maneira persistenteno soneto “A um Grande Sujeito Invejadoe Aplaudido”, que pode, em toda a exten-são, ser lido tanto em direção horizontalquanto em direção vertical:

10 Cf. Damaso Alonso, “LaCorrelación em la Poesía deGóngora”, in Estudios y EnsayosGongorinos. Madri, EditorialGredos, 1960.

Esta cai, morre aquele, este não dura,Que em vós logra, em vós acha, em vós venera,Claro Sol, dia cândido, luz pura”.

Percebe-se, de imediato, que se trata desímile distendido ou comparação alegóri-ca, cujos termos se associam por justaposi-ção assindética. Os termos ideais dominamos quartetos; os reais, os tercetos: assimcomo as fracas manifestações da natureza(exalação, névoa, mariposa) são derrota-das por manifestações fortes (sol, dia, luz),os baixos sentimentos do homem (vil afeto,

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maravilhoso da leitura de Música doParnaso não decorre apenas da variedadedos procedimentos, mas também do acú-mulo deles no mesmo poema, bem comode sua contínua reiteração em poemas dife-rentes e de seu interminável movimento deinsinuações e negaceios semânticos, a quenão falta igualmente dissertação conceitual,em franca integração com a dominante sen-sorial das composições.

Encerre-se, então, o ensaio com o rápi-do exame de “Cravo na Boca de Anarda”,um dos momentos mais equívocos de Mú-sica do Parnaso, entendendo-se por equí-voco o contínuo jogo entre ser e parecer, deque tanto gosta o poeta:

“Quando a púrpura fermosaDesse cravo, Anarda bela,Em teu céu se jacta estrela,Senão luzente, olorosa;Equivoca-se lustrosa,(Por não receber o agravoDe ser nessa boca escravo)Pois é quando o cravo a toca,O cravo, cravo da boca;A boca, boca de cravo”.

No soneto “Ponderação do Rosto eOlhos de Anarda”, comentado no início dopresente ensaio, o sujeito da enunciação,conturbado pelos encantos da musa, consi-dera-se equivocado, afirmando com issoque se acha dividido entre o rosto da amadae os efeitos que provoca em seu juízo, quese confunde e acaba tomando um por ou-tro, de onde nasce a expressão equívoca,que se consubstancia na metáfora engenho-sa e em seus correlatos agudos, tal como aparonomásia, o trocadilho e a antanáclase.O vocábulo equivocado aparece tambémno soneto XV do cancioneiro de Anarda,em posição ainda mais estratégica:

“Quer esculpir artífice engenhosoUa estátua de bronze fabricada,Da natureza forma equivocada,Da natureza imitador famoso”.

Pelo sistema de correlações entre osversos, vê-se que forma equivocada da na-

ira cega, ação perjura) serão destruídos pordisposições elevadas do indivíduo, revela-das metaforicamente, no último verso, emsol, dia e luz, por meio da recolha de pala-vras disseminadas no primeiro quarteto.Conseqüência da eleição ternária dos ter-mos comparativos, todos os versos se divi-dem em três membros sintáticos, cuja or-dem se mantém inalterada até o fim, razãopela qual seu processo construtivo recebe onome específico de correlação progressiva,com versos trimembres. Alguns classifica-rão o soneto de ocioso e mecânico, mas étambém possível entendê-lo como manifes-tação do conceito de poesia enquanto artifí-cio engenhoso do entendimento, perspecti-va em que o texto ganha força e passa a exibirnotável plasticidade em sua urdidura.

ELOGIO FINAL

Em Música do Parnaso, tanto nos poe-mas de elogio da amada quanto nos deexaltação de virtudes cívicas, observa-se amesma exuberância de procedimentos es-tilísticos, resultantes de soberbo domíniosobre o sistêmico universo da retórica neo-aristotélica. Na esfera dos tropos, predo-minam a metáfora antitética e a hipérbolemetafórica, quase sempre fundidas no típi-co processo gongórico de aproximar as di-ferenças e ampliar os afetos. Além disso,nenhum outro poeta brasileiro dedicou-setanto à exploração equívoca dos vocábulosquanto Botelho de Oliveira, seja por meiodo trocadilho, seja por meio da calculadapolissemia da frase, seja por meio da inves-tigação de efeitos da luz e das cores sobreos afetos. No âmbito das figuras, distin-guem-se as inversões agudas dos termos naoração e as repetições simétricas de pala-vras ou de unidades maiores do período.No plano fônico do verso, o poeta justapõeharmonias e dissonâncias, privilegiando asdificuldades sonoras, com efeito de verda-deiros trocadilhos, que mobilizam paro-nomásias, justaposição de vocábulos propa-roxítonos, rimas imperfeitas, rimas toantese jogos de termos homônimos. O efeito

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tureza qualifica estátua, assim como imi-tador famoso da natureza qualifica artífi-ce. Lida pelo viés da preceptiva, a estrofedetermina o princípio de que arte é imita-ção equivocada da natureza, no sentido deresultar do artifício e do engenho, tomadoscomo instrumentos aptos a engendrar rea-lidades ilusivas e polimórficas, cuja essên-cia consiste em tomar o ser pelo parecer evice-versa, donde resulta o primado dametáfora como pressuposto básico de cons-trução poética, conforme o ensaio procurademonstrar desde sua primeira página.

Na décima em questão, ocorre algo se-melhante. Em seu quinto verso, surge a for-ma verbal equivoca-se, empregada comosinônimo de fundir-se a, cujo sujeito é púr-pura fermosa, que, ao atingir o rosto (céu)de Anarda, mistura-se a seus encantos cro-máticos. Essa é a chave do poema, inteira-mente fundado na astúcia camaleônica dasaparências. Por outro lado, não se pode es-quecer que equívoco, em retórica, significatrocadilho, entendido como jogo entre asvárias significações de uma mesma palavra.De fato, quando o poema diz púrpurafermosa, entende-se cravo; quando diz céu,entende-se rosto; quando diz estrela, enten-de-se cravo com pretensões de estrela; quan-do diz escravo, entende-se inferior; quandodiz boca, entende-se cravo; quando diz cra-vo entende-se boca, etc. Jerônimo SoaresBarbosa, em nota à sua tradução das Insti-tuições Oratórias de Quintiliano (11), defi-ne paronomásia como a modalidade de equí-voco que une vocábulos de significação di-ferente por meio da semelhança física, pro-vocando identidade semântica entre os mes-mos, tal como se nota na relação entre ostermos escravo e cravo, que se ligam tantopela forma quanto pelo significado, porqueo segundo se incrusta fisicamente no pri-meiro, de modo a sugerir sua inferioridadediante de Anarda. Outra modalidade de equí-voco muito conhecida, e já referida peloensaio, é a antanáclase, que consiste na ado-ção alternada de significados diferentes deum mesmo vocábulo, de que se tem exem-plo canônico nos versos finais desta décima.

O que mais espanta na composição é oefeito provocado no leitor, que entende mas

não consegue explicar o que entende, quevê mas não sabe exatamente o que vê –condição que se estende a boa parte dospoemas de Música do Parnaso –, isso por-que a atribuição metafórica dos termos nãose fixa com estabilidade, deixando a im-pressão de grande mobilidade semântica, aqual oscila ao sabor do jogo reiterativo dosvocábulos. Mas talvez seja possível fixarum sentido para a décima, partindo da se-guinte base de intelecção: Quando, Anarda,colocas o cravo na boca, ele, querendo os-tentar ares de estrela no céu de teu rosto –senão pelo brilho, com certeza pelo perfu-me –, vê-se subitamente obrigado a camu-flar-se em tua boca, para evitar a vergonhade ser inferiorizado, pois, ao tocar a boca,ele assume a aparência dela e ela assume aaparência dele. Por decorrência lógica, aseqüência cravo da boca é metáfora de flor,assim como boca de cravo é metáfora deboca. Em rigor, a primeira metáfora afirmaque a flor, ao contato da boca, assume apa-rência de lábios; a segunda afirma que oslábios assumem aparência de flor. Emambos os casos, os fatores de semelhançaentre os termos da imagem são a cor, obrilho, o formato, o perfume, o som e oefeito de prisão – cravo pode ser tambémprego e instrumento musical (12) –, sendocerto que tais propriedades são imanentesà boca de Anarda, independentemente daaproximação do cravo. Este serve comoelemento de realce da beleza da ninfa, poistodos os cravos possuem tais atributos, aopasso que ela os possui como fator de dis-tinção entre todas as musas, razão pela qualo cravo sai vencido quando posto em para-lelo com ela; por isso, sem pertencer aoreino vegetal, a musa supera um de seusmais estimados espécimes. Assim, o cra-vo, funcionando como elemento fecundantede assunto estéril (beleza de Anarda), adistingue entre as musas, ao mesmo tempoem que é reduzido à uniformidade genéricade sua espécie. Outro motivo da impressãoequívoca da décima consiste no quiasmodos dois últimos versos, constituídos, basi-camente, pelos substantivos cravo e boca,que se espelham em reverberações sono-ras, visuais, olfativas e semânticas.

11 Jeronymo Soares Barbosa,Instituiçoens Oratórias de M.Fabio Quintiliano, Vol. II,Coimbra, na Imprensa Real daUniversidade, 1790, pp. 274-7.

12 Péricles Eugênio da Silva Ra-mos levanta a hipótese de quea segunda ocorrência de cra-vo no nono verso da composi-ção associa-se a prego, nosentido de que a boca, sendocravo, prende e tiraniza a flor.João Adolfo Hansen sugere quea segunda ocorrência do vo-cábulo no décimo verso podeassociar-se ao instrumentomusical, em alusão, superpostaa outras, de que a fala deAnarda é harmoniosa como osom do cravo.

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Rosto da primeira edição de Música do Parnaso, de 1705, exemplar do IEB

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