o Ócio e a emancipação

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  • 8/19/2019 O Ócio e a Emancipação

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    O ÓCIO E A EMANCIPAÇÃO *

    Maria Teresa Ricci**  A diferença das sociedades capitalistas modernas, fundadas no trabalho e na condenação doócio, as sociedades pré-industriais, as sociedades antigas (gregas ou romanas) é que as mesmasrespeitavam o ócio, compreendido não como inércia, mas, por assim dizer, como atividade despojada eprivada de coerções, como liberdade de escolher a que se dedicar. Muitos filósofos antigos e tambémpensadores mais próximos a nós expressaram o seu desprezo pelo trabalho do qual pode depender a

    sobrevivência, assim como o dinheiro e as atividades que estão ligadas a ele. É claro que o ideal do óciosempre foi um ideal aristocrático, mas o que interessa aqui não é fazer elogio à vida aristocrática, quecomo bem sabemos sempre pressupôs a existência de classes subalternas dedicadas à obediência, masde mostrar simplesmente que o objetivo do homem e da sociedade também pode não residir na riqueza,na produção e no trabalho, como acontece na sociedade capitalista moderna, mas em qualquer coisa demais honroso, por exemplo, a vida de prazer ou de ócio e a vida contemplativa, para usar conceitosaristotélicos que hoje poderiam aparecer como simples provocações.  Proporemos aqui uma panorâmica geral que não tem absolutamente o objetivo de esgotar estatemática, mas certamente de oferecer alguns pontos de reflexão sobre a possibilidade de emancipaçãodas sujeições da sociedade atual, focando a atenção em alguns pensadores bem conhecidos ou menosconhecidos, que de tal problema trataram, desde a antiguidade até a atualidade.

      Na Grécia antiga, o último ideal de vida não é o trabalho ou o enriquecimento, mas certamente oprazer, o ócio. A vida do artífice, do artesão ou do mercante é desprezada porque falta a elas qualquerforma de liberdade, e se é submisso à necessidade. Aquele que deve trabalhar para viver é objeto dedesprezo, enquanto o ócio é sempre honroso. Esta sociedade não conhece um termo correspondente atrabalho como hoje é compreendido. Vernant escreve que “uma palavra como ponos ( fadiga, trabalho)aplica-se a todas as atividades que exigem um esforço penoso, e não somente aos trabalhos queproduzem valores socialmente úteis". Na verdade, na Grécia antiga, não existe o ideal de trabalho comofunção social, como uma atividade humana específica. O trabalho é contra todas as formas de vida livre,segundo Aristóteles que escreve na Política: "conseqüentemente, é claro que no estado conduzido domelhor modo, formado por homens absolutamente justos e não sob uma determinada relação, oscidadãos não devem levar a vida de mecânico ou de mercante ( essa espécie de vida é desprezível econtrária à virtude) e nem tão pouco ser camponeses aqueles que querem tornar-se cidadãos ( na

    realidade existe necessidade do ócio para desenvolver a virtude e as atividades políticas).  O ócio, diferentemente do trabalho, tem um objetivo em si mesmo. Mas isto não significa exaltar ainércia, a preguiça, já que a virtude para os gregos é sempre prática. De fato, diz sempre Aristóteles,“exaltar a inércia mais do que a ação não corresponde à verdade, porque a felicidade é atividade”.  Na Grécia, a classe dominante e os filósofos a ela ligados consideravam, geralmente, a vidaociosa, ou seja, a liberdade de escolher a atividade a qual se dedicar,como o único bem capaz deproporcionar a vida digna de ser vivida. A vida dos homens livres era incompatível com o trabalho, já quepara dedicar-se à atividade pública necessita-se de todo o tempo disponível. Mas a vida livre e ociosadedicada à filosofia, à política ou às festas era, na verdade, um privilégio de uma elite que vivia, como sesabe, do trabalho dos escravos, que constituíam a maior parte da população.  A Política de Aristóteles inicia-se com a apologia da escravidão, mas, curiosamente, ele mesmo

    propõe imediatamente, depois de um argumento extravagante para a sua época: “Se cada instrumentoconseguisse realizar a sua função após um comando ou prevendo-o antecipadamente, como dizem quefazem as estátuas de Dédalo ou os trípodes de Efesto os quais, ao ouvir o poeta - "entram com particularimpulso na assembléia divina” (Homero, II, XVIII 376), assim, do mesmo modo, se as máquinas de teartecessem sozinhas e os instrumentos tocassem a cítara, os chefes artesãos não teriam a verdadeiranecessidade de subordinados, nem os senhores de escravos." Esta esquisita idéia de Aristótelestornou-se hoje uma realidade e demonstra que o trabalho não é uma necessidade natural e inevitável.  Se considerarmos o conceito de trabalho na sua origem etimológica, ele indica, na verdade, nagrande maioria das línguas européias, a atividade dos servos ou dos escravos. Em latim ‘laborare’(trabalhar) significa cansar-se, sofrer. E assim o francês travail, ou o espanhol trabajo, parece que derivamdo latim tripalium, que era um instrumento de tortura. Arbeit em alemão indica o trabalho que desenvolve oórfão, pois não há ninguém que se encarrega dele. Pela sua origem etimológica o trabalho indica,portanto, um destino social infeliz, uma atividade com a qual se perde a liberdade, com a qual, de qualquerforma, torna-se escravo de qualquer outro. A generalização do trabalho a todos os membros dasociedade não é, portanto, mais nada que a generalização da dependência servil.  A tudo isso contribuiu, certamente, o protestantismo com a sua ética do trabalho, da profissão,

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    com a sua austeridade, como demonstra Weber na sua célebre obra - A ética protestante e o espírito docapitalismo (1904-05). O puritanismo quis destruir cada impulso ao prazer da vida, porque a alegria deviver desvia do trabalho profissional e da religiosidade. A ética puritana que se caracteriza pela especialtendência ao racionalismo econômico é abraçada nos países mais ricos da classe burguesa que, no inícioda época moderna, deveria encontrar-se com a mentalidade pré ou anticapitalista da antiga nobrezafeudal e guerreira que se opunha -pelo menos idealmente- a uma dura resistência a estas transformaçõessociais, à afirmação de uma nova mentalidade que exalta o laborioso e da qual nascem, por exemplo, assanguinárias leis contra a vagabundagem em toda a Europa Ocidental.

      É sobretudo nas cortes européias , a partir dos séculos XVI e XVII, que as duas mentalidades sechocam, aquela da burguesia em ascensão que quer destronar a antiga nobreza, e aquela da nobreza emdecadência, que no processo de formação dos Estados modernos, vê-se em grande parte integrada nascortes.  Na sociedade da corte, o estetismo, a arte de viver encontram o terreno mais apropriado ao seudesenvolvimento.  A antiga nobreza feudal, forçada aqui a um ‘ócio mortal’ (Saint-Simon), cria um estilo de vidafundado nas ‘boas maneiras’, que pressupõe exatamente como condições essenciais o ócio. A existêncianaquela época não está ainda totalmente submetida às imposições do ‘trabalho’, que nas sociedadespré-industriais do Antigo Regime não desfrutavam ainda da consideração das quais desfrutam atualmente.  Ao espaço do trabalho, a corte opõe o espaço do jogo, como nos mostram muitos tratadosdedicados à vida da corte. A sociedade que consagra o tempo ao jogo é uma sociedade que não ouve odever de produzir os bens e que geralmente despreza o trabalho. O ‘tempo’ da nobreza não é o tempo daprodutividade, mas aquele do ócio, do prazer. A politesse ( requinte) é uma ‘arte’ de brincar com o tempo,uma arte da paciência e da disponibilidade. Ela desaparecerá necessariamente na vida moderna, queimpõe ao indivíduo um ‘tempo’ que lhe é estranho, do qual não é mais senhor.  Entre a nobreza da corte domina um "éthos" social estranho à classe burguesa, toda inclinada aocálculo e à acumulação: aquele do consumo de prestígio, como mostra Norbet Elias nos seus célebresestudos. O nobre deve mostrar a total negligência diante do dinheiro e uma grande capacidade deesbanjar para manter o respeito do grupo ao qual pertence. O dinheiro representa para o nobre umadistinção social somente no que diz respeito ao uso que se pode fazer dele. Para a burguesia o dinheiro éo único verdadeiro meio que lhe possibilita elevar-se para além da sua posição. Diferentemente do nobre,o burguês, com posição elevada, não ostenta, portanto, desprezo pela atividade comercial, pelo contrário,

    reconhece a sua utilidade.  A corte, uma das últimas estruturas não burguesas do Ocidente, funda-se na suntuosidade e noluxo, no consumo do prestígio, no qual é possível chegar a destruir bens e riquezas acumuladas duranteanos. O nobre autêntico despreza, efetivamente, tudo isso que se pode comprar ou vender, eleapresenta-se como um homem do ‘dom’. A largueza e a magnificência são para ele obrigações, já que eledefende a sua honra e não o seu interesse. O verdadeiro nobre não só não economiza as suas riquezas,mas também a sua vida, que arrisca ostentamente nos duelos ou nas guerras.  Nos objetivos da nobreza estão, portanto, em primeiro lugar, a boa aparência e a honra. É nesteobjetivo que devem empenhar-se os bens, o dinheiro e o tempo. Como escrevia um tratadista do séculoXVI, Giovan Battista Assandri (1570-1575), “a honra não se dá ao rico porque o mesmo possui o dinheiro,mas porque livremente e magnificamente o gasta e o dispensa". Igualmente um outro escritor da época,

    Odoardo Baviera sustenta que os bens servem "para a comodidade e para o adornamento da suafamília". Estes eram alguns dos temas fundamentais da ‘economia’ ou ‘a arte de governar a casa’, que,desenvolvendo-se nas bases da antiga ‘economia’ de Xenofonte e de Aristóteles, conhece entre osséculos XVI e XVII um grande florescimento em toda a Europa, tornando-se um dos meios fundamentaispara a elaboração da ideologia da nobreza.  Nos tratados de 'economia', as 'riquezas naturais', os bens de uso imediato são sempreprivilegiados com relação ao dinheiro, que é 'riqueza artificial'. As riquezas, explica Piccolomini(1508-1578), consistem 'na abundância das substâncias para a alimentação e comodidade necessárias aohomem, e não na reprodução de bastante dinheiro. A verdadeira riqueza não é aquela obtida ou mantidapor intermédio do trabalho, mas aquela que é herdada e é constituída por bens imóveis, como a terra.Ricos e nobres o são e não se tornam, tão pouco, podem tornar-se o que são através do trabalho.  A propriedade da terra é por excelência a ‘riqueza natural’, por isso o modelo que emerge da

    ‘economia’ é a casa que vive da produção agrícola.  O dinheiro e os produtos mercantis na ‘economia’ aparecem restritos a um âmbito de práticasproibidas ao fidalgo, castigo a sua desonra. Mas é claro que a realidade nem sempre corresponde aoideal, e uma parte da nobreza, para manter o seu poder, utilizou-se de meios eficazes como as atividadesespeculativas e financeiras. E isto acontece sobretudo no século XVI, quando a terra perde lentamente a

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    sua função central na organização econômica e social, quando se começa a impor um tipo de produçãocapitalista e o conceito de ‘mercadoria’ tornar-se-á uma categoria fundamental.  A imposição desse tipo de mentalidade comporta inevitavelmente a crise do estilo de vidaaristocrático fundado na generosidade e no desprezo ao dinheiro e ao trabalho. Uma parte da nobrezaabraçará esses novos valores, e mantendo os princípios ao ócio e ao desprezo ao dinheiro, entrará nocomércio ou em atividades especulativas. Uma parte se endurecerá na defesa dos valores da antiganobreza feudal encarnando assim, na literatura, em personagens de aparência ridícula como Dom Quixoteou como os protagonistas de El Buscon de Quevedo. Ou então, como outra possibilidade, a nobreza irá

    para o banditismo, como acontece sobretudo na Alemanha do Século XVI ou na Espanha, retomandoassim a atividade principal do senhor feudal, ou seja, aquela atividade ligada às armas. Em geral, não erasó a decadência e a pobreza a empurrar estes nobres para formarem bandos e fazerem assaltos noscampos, mas também a possibilidade de conduzir ainda pessoalmente as guerras. Esta parte da nobrezaera constituída por aqueles nobres que nunca se ocuparam da agricultura, que não aceitavam serintegrados à corte e que para fugir da atividade de trabalho preferiam viver na miséria, encontrando-sedeste modo com as assim intituladas ‘classes perigosas’, ciganos e marginalizados, em que o estilo devida mostra surpreendentes analogias com o estilo de vida e com os ideais da nobreza.  As classes aristocráticas e as classes dos voyoux (termo francês), ‘foras-da-lei’ encontram-se nodesprezo ao dinheiro e ao trabalho, na ostentação da generosidade, e para lançar um olhar sobre o nossotempo, um raro exemplo deste casamento é talvez estabelecido por um personagem do qual fala-se muitonos últimos tempos, Guy Debord, que se considerava, ele mesmo um voyoux e que para os seus amigosrepresentava, ao contrário, um aristocrata generoso que construiu, ele próprio, a sua vida no princípio “netravaillez jamais!” (Não trabalhe jamais!) * Tradução de Juliana Zanetti de Paiva** Universidade Blaise-Pascal, Clermont-Ferrand

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