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O MUNDO JUSTO ESTÁ NAS MÃOS DE QUEM? Uma análise da obra de J.M. Coetzee POR LICIA MARIA KELMER PARANHOS Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada) Orientador: Ronaldo Lima Lins Faculdade de Letras da UFRJ MARÇO – 2011

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O MUNDO JUSTO ESTÁ NAS MÃOS DE QUEM?

Uma análise da obra de J.M. Coetzee

POR

LICIA MARIA KELMER PARANHOS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada) Orientador: Ronaldo Lima Lins

Faculdade de Letras da UFRJ MARÇO – 2011

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Dedicatória

Às minhas filhas,

testemunhas das melhores

e das piores horas.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Prof.Dr. Ronaldo Lima Lins pela amizade, atenção e firmeza na orientação. À Prof.ª Dr.ª Beatriz Resende e ao Prof.Dr. Victor Lemus e suas preciosas colaborações no momento crucial deste percurso. Aos amigos, muito queridos, amigos de sempre, que partilharam toda dor e delícia desse projeto de vida. Às queridas Gabriela Bueno, Márcia Xavier e Martha Alkimin pela generosa amizade. Ao Gutemberg e sua peculiar visão de mundo. Às amadas filhas, Isadora e Clarissa, meus verdadeiros orgulhos.

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RESUMO

O MUNDO JUSTO ESTÁ NAS MÃOS DE QUEM? UMA ANÁLISE DA OBRA DE J. M. COETZEE

Licia Maria Kelmer Paranhos

Orientador:Ronaldo Lima Lins Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).

Tomando como base o cenário presente em que as subjetividades pouco se delimitam, em que as crises identitárias colocam o homem à mercê de uma obscura realidade e de uma temporalidade pouco reconhecível, este trabalho investiga na obra de J.M.Coetzee a representação dessa crise por que passa o homem contemporâneo. Como objeto de análise foram selecionadas as obras Desonra (1999), A Vida dos Animais (1999) , Elizabeth Costello (2003) e Homem Lento (2005) de J.M.Coetzee. A pesquisa trata da maneira como a produção ficcional e suas relações contextuais com a cultura e a sociedade apontam para novos paradigmas culturais que reflitam as urgentes demandas que se impõem ao homem contemporâneo. Desse modo, a investigação desenvolve-se em torno dos seguintes eixos temáticos: a crise de representação que se agudizou nos últimos anos do século XX, problematizando questões como o esvaziamento do sentido histórico e de sua matriz utópica a partir da descrença em um conceito de verdade, bem como a impossibilidade da experiência plena e de sua transmissibilidade; a crise de valores que se inscreve neste contexto, cenário em permanente desestabilização das subjetividades e das marcas identitárias, e a maneira como essa crise desdobra uma reflexão à luz da arte literária, em cuja representação se configuram a visão de um mundo opressivo e anárquico e a necessidade de se estabelecer novos padrões éticos que dêem conta desta realidade na qual o sujeito está vulnerável a circunstâncias inimagináveis. O método utilizado é o da sociologia crítica da cultura, iluminado pelo pensamento da filosofia na medida do necessário e do possível. A pesquisa procura mostrar como a crise de representação do sujeito, condicionada ao esvaziamento da crença em um projeto utópico, desdobra-se na reflexão de uma nova base ética que conduza “as escolhas” do século XXI.

Palavras-chave: Coetzee – Literatura – Ética.

Rio de Janeiro Março — 2011

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ABSTRACT

IN WHO´S HANDS IS THE FAIR WORLD? A REVIEW OF J. M. COETZEE WORK

Licia Maria Kelmer Paranhos

Advisor: Ronaldo Lima Lins

Summary of the Theory of Doctorate presented to the Program of Post graduation in Science of the Literature of the Federal University of the Rio de Janeiro as query for getting the Doctor's Title in Science of the Literature (Compared Literature). Taking base in the present scenery in which the subjectivities are rarely delimited, in what the identities crises place the man at the mercy of an obscure reality and a not much recognizable temporality, this theory investigates in J.M.Coetzee´s work the representation of this crisis over which passes the contemporary man. As object of analysis were selected the works Disgrace (1999), The Life of the Animals (1999), Elizabeth Costello (2003) and Slow Man (2005) of J.M.Coetzee. The present work analyses how the fictional production and its context relations with the culture and the society points to new cultural paradigms that reflect the urgent demands that are imposed to a contemporary man. In this way, the investigation is developed around the next thematic axles: the representation crisis that got worst in the last years of the XX century, questioning points like the emptying of the historical sense and its utopian womb from the disbelief in a real concept, as well as the impossibility of the full experience and its transmissibility; the valuable crisis that is registered in this context, scenery in constant destabilization of the subjectivities and the identities marks, and the way this crisis unfolds a reflection by the literary art, in which representation are shaped the vision of an oppressive and anarchic world and the necessity of establishing new ethical standards that can handle this reality wherein the subject is vulnerable to unimaginable circumstances. The used method is the critical sociology of the culture, illuminated by the philosophy thought in the limits of the necessary and possible. The inquiry tries to show how the crisis of the subject representation, stipulated to the emptying of the belief in an utopian project, unfolds in the reflection of a new ethic base that drives “the choices” of the XXI century.

Key words: Coetzee – Literature – Ethics.

Rio de Janeiro Março — 2011

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SINOPSE

Estudo da construção narrativa das identidades e

subjetividades em meio à crise de representação

dos valores éticos e morais no contexto

contemporâneo a partir da obra de J. M. Coetzee.

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Sumário

Introdução: A FICÇÃO LITERÁRIA SERVE PARA QUÊ?.............................................7

1. Capítulo 1- Modernidade e História : UMA PLENITUDE MODERADA

1.1. O bode expiatório..........................................................................................24

1.2. David Lurie e Paul Rayment:o reino do desejo na modernidade tardia........29

1.3. Lúcifer: um coração louco.............................................................................50

1.4. Sobre nossos próprios pés: nem Deus nem Marx-uma época sem

horizontes......................................................................................................55

1.5. Importante é estar cravado na vida................................................................65

2. Capítulo 2- Violência e apartheid: DESONRA

2.1. Melanie -Meláni – a escura ..............................................................................69

2.2. Temos tanto medo?............................................................................................77

2.3. O mundo justo para quem? Talvez a história tenha um papel maior.................88

2.4. Vergonha - Disgrace........................................................................................104

2.5. Ousar pensar o futuro.......................................................................................109

3. Capítulo 3 -O LUGAR DA ARTE ou o lugar da paixão

3.1. A tentação de Ivan Karamasov.......................................................................121

3.2. A escrita como forma de aventura moral pode ser perigosa...........................132

3.3. O silêncio de Paul West ou o ovo de pedra....................................................146

3.4. Foi atrás dos gregos errados, Elizabeth...........................................................159

3.5. Quem tem medo de Elizabeth Costello?.........................................................169

4. Conclusão: Por que Coetzee escreve e por que escrevo sobre Coetzee?........................183

5. Bibliografia.....................................................................................................................204

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1. INTRODUÇÃO

A FICÇÃO LITERÁRIA SERVE PARA QUÊ?

O fascinante no presente são as interrogações. Devemos matar a charada do quebra-cabeças que desenvolvemos, sem saber a quem se poderá dar a vitória se à liberdade, se à opressão. Por sorte, o pior não aconteceu. Não perdermos a curiosidade.”1

Ao longo dos últimos anos, a perplexidade se desenvolveu como um estado natural.

É evidente o conflito em que nos inserimos e a dificuldade em diagnosticar com precisão os

efeitos que recaem sobre nós. Diante de um tempo que oscila entre a vivência do espetáculo

e a da violência, o homem contemporâneo, mais que solitário, mergulha em desencanto.A

inconsistência do real nos dá a exata medida de nosso infortúnio. Perderam-se as crenças,

as convicções; Deus, a Ciência, o próprio Homem, nada traz respostas conclusivas ou

ilumina caminhos. Os indivíduos sofrem de um pânico narcísico. Vêem seus corpos

transformarem-se em mercadoria, sonhos e valores reduzidos a produtos perecíveis e, no

entanto apostam nisso todo o sentido da vida. Não sabem como fazer, mas sabem que não

podem desistir. Talvez seja este o legado do sujeito da chamada pós-modernidade – não

desistir.

É inegável que os avanços científicos e tecnológicos obtidos nos últimos cinqüenta

anos originaram profundas transformações no modo de vida em todo mundo, as quais

refletiram um expressivo progresso político assimilado pelas sociedades mais avançadas.

Entretanto, a moralidade contemporânea não apresenta condições de sustentar a convicção

em um futuro humano. Estranhamente, há algumas décadas , nossa razão permitiria muitos

sacrifícios e riscos em nome de um mundo mais justo.Outrora balizadas por uma matriz

1 LINS, 2005, n17, p.37.

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utópica, as crenças políticas e a possibilidade de transformação da realidade (sendo a utopia

a crença política por excelência) se tornaram concepções problemáticas devido às

mudanças culturais e sociais que vêm ocorrendo nas últimas décadas. A violência, a

indiferença, a “despassionalização” da discussão e da ação política, surgem, então, como

principal sintoma da crise de valores por que passamos.

A princípio, a perda de convicção está relacionada à impossibilidade de

teleologias. A perda do sentido histórico hegeliano teria tornado esta íntima narrativa, a de

nossos valores, uma obra fragmentária e errática, carente de coerência superior. Se não há

um sentido hegemônico nas ações humanas caímos em uma crise. O efeito desta ampla

crise de sentido pode ser sentido tanto em um plano mais amplo, nas ações políticas mais

radicais, da guerra e do domínio, quanto no plano limitado da individualidade.

Tomando como base este cenário em que as subjetividades pouco se delimitam, em

que as crises identitárias colocam o homem à mercê de uma obscura realidade e de uma

temporalidade pouco reconhecível, este trabalho investiga na obra de J.M.Coetzee a

representação dessa crise por que passa o homem contemporâneo.

Tomando por base as obras Desonra (1999), A Vida dos Animais (1999) , Elizabeth

Costello (2003) e Homem Lento (2005) de J.M.Coetzee, a pesquisa trata da maneira como a

produção ficcional e suas relações contextuais com a cultura e a sociedade apontam para

novos paradigmas culturais que reflitam as urgentes demandas que se impõem ao homem

contemporâneo.

Desse modo, a investigação desenvolve-se em torno dos seguintes eixos temáticos:

a crise de representação que se agudizou nos últimos anos do século XX, problematizando

questões como o esvaziamento do sentido histórico e de sua matriz utópica a partir da

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descrença em um conceito de verdade, bem como a impossibilidade da experiência plena e

de sua transmissibilidade; a crise de valores que se inscreve neste contexto, cenário em

permanente desestabilização das subjetividades e das marcas identitárias, e a maneira como

essa crise desdobra uma reflexão e uma revisão identitárias à luz da arte literária, em cuja

representação se configuram a visão de um mundo opressivo e anárquico e a necessidade de

se estabelecer novos padrões éticos que dêem conta desta realidade na qual o sujeito está

vulnerável a circunstâncias inimagináveis.

O último tema é, provavelmente, o principal em nossa reflexão. Colocando-se a

questão em termos não muito acurados, a obra de J.M.Coetzee instiga uma discussão

precisa e fortemente crítica sobre a ética contemporânea, que é tanto ‘pós-moderna’ e

concernente à realidade globalizada (qual a ética cabível em uma sociedade

espetacularizada, coisificada e consumista?) quanto oriunda de centros subdesenvolvidos

com as características, por exemplo, do Brasil (qual a possibilidade de uma ética

humanizante em uma sociedade em que a dignidade humana é constantemente agredida?).

O projeto nasce do desafio de romper a distância entre a filosofia e a literatura,

através de um procedimento imanente, derivado diretamente da obra ficcional do escritor

J.M.Coetzee. Os romances A Vida dos Animais (1999) , Elizabeth Costello (2003) e

Homem Lento (2005) instauram uma reflexão crítica , uma espécie de metaficção na qual é

traçado não só um pensamento sobre a arte em geral, mas o exercício do pensamento a

partir da obra de arte em particular. Essas obras transitam entre a ficção e a filosofia e

ressaltam na própria estrutura do romance os conflitos entre a razão e a imaginação criadora

refletidos contra o próprio romance e sua academização; e em um efeito inverso,

transmutam tudo em ficção, uma vez que A Vida dos Animais é, na verdade, oriundo de

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duas palestras do autor em um tradicional encontro acadêmico na Universidade de

Princeton sobre relevante tema ético, em que Coetzee surpreende ao apresentar uma

narrativa ficcional no lugar de um ensaio filosófico como é de costume nestas ocasiões.

Ao esgarçar essas medidas e transpor os limites de continentes que embora

dialoguem, são distintos, esse escritor sul-africano explora ao máximo aquela faixa estreita

que restou à linguagem do romance entre ética e estética na interpretação ficcional do

mundo. Recusando-se a se colocar diretamente no papel de conferencista e negando a

própria autoridade em dar respostas ou direções, Coetzee ficcionaliza a palestra, criando

para tanto um personagem – Elizabeth Costello. O que aparentemente sugere um recurso

literário “pós-moderno”, ao refratar seu discurso e sua autoridade de conferencista, na

verdade, instaura na literatura, um território em que a questão ética ganha seu verdadeiro

relevo.

A tensão ficcional da narrativa de Coetzee assume a impossibilidade de oferecer

uma última palavra de uma autoridade pensante ao universo de valores que nos guiam.

Deste modo, cada palavra do personagem encontra uma “contra-palavra” na medida em que

a obra é enriquecida por reflexões que dão o contraponto acadêmico, ou científico, à fábula

de Coetzee. O fato é que a questão ética só pode ser considerada no universo em comum

dos indivíduos e não como afirmação isolada de algum especialista ou coisa do gênero e,

nós, como leitores, não podemos desconsiderar o lugar de onde estamos para avaliar o

mundo, seus sentidos e referências.

Elizabeth Costello, o livro, recolhe oito capítulos, chamados de palestras no

sumário. No livro, a personagem trata de suas viagens a Amsterdam e Appleton College,

discute o Realismo em palestra apresentada em um colégio na Pensilvânia, fala sobre o

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Futuro do Romance em um navio de turistas, e em uma visita à África, discute sobre a

possibilidade ou não de se aprender ainda alguma coisa nas chamadas Humanidades. O

livro em seu desfecho discute sobre a morte. O penúltimo capítulo é uma parábola à moda

de Kafka em que Costello parece estar na porta do céu e descobre que deve prestar conta de

suas crenças a um júri. Contra todas as possibilidades, nos diz James Wood2, o livro é

comovente.

Deste modo, esta pesquisa inicia da seguinte proposição: se é possível à literatura

indicar respostas ao purgatório ético em que está aprisionado o pensamento

contemporâneo? Em que medida as soluções literárias podem servir de ponto de partida

para a realização de uma agenda filosófica que promova a liberdade entre os homens?

Na obra de J.M. Coetzee, a investigação sobre a miséria humana é menos o

resultado cerebral de uma visão de mundo fria, derivada da razão, e mais uma sensação

pungente e ao mesmo tempo discreta dos limites sempre rotos da dignidade e da justiça.

Desonra apresenta a história de David Lurie, professor universitário, branco, 52

anos, divorciado duas vezes, que vive na África do Sul. Lurie é um homem solitário que

planeja escrever uma ópera sobre Lord Byron, mas sempre adia o projeto. Acredita ter

“resolvido muito bem o problema de sexo,” quando semanalmente visita uma prostituta de

nome Soraya. Sua vida, racionalizada de maneira burocrática, começa a desmoronar

quando a prostituta o dispensa e, mesmo sabendo que é um erro, Lurie tem um caso com

uma de suas jovens aluna.

Acusado de abuso, e desprezando os códigos do ambiente universitário, Lurie cai

em desgraça. Refugia-se então na fazenda de sua filha, quando se vê diante da realidade

2 WOOD, 2003, pp15,16.

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“pós-apartheid” já instaurada em seu país, onde é “um risco possuir coisas: um carro, um

par de sapatos, um maço de cigarros.” Realidade brutal da qual os personagens são vítimas,

quando sua filha é estuprada por três homens negros e ele tem sua cabeça queimada.

Situação esta em que prima vingança e banditismo, brutalidade contra a qual a cultura

ocidental é inútil: “Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês de nada vale na

África negra.”

Lurie se junta a amigos de Lucy, sua filha, e passa a ajudar Bev Shaw na clínica de

animais. Mais adiante Lucy, que é homossexual, descobre-se grávida em decorrência do

estupro e decide ter a criança, para surpresa de Lurie, que mais atônito fica quando ela

resolve casar-se com Petrus, um antigo empregado da fazenda e hoje, novos tempos, co –

proprietário.

Petrus é um negro sul-africano que entende que mulher sozinha nos campos da

África do Sul corre muitos riscos. Nessa medida, propõe o casamento, que aos olhos de

Lurie não passa de um golpe para deter toda a propriedade.

A dignidade e a justiça ainda que sejam valores freqüentemente presentes na ficção

contemporânea, são levados ao extremo nessa obra em função das tensões políticas,

culturais e existenciais que dominaram o contexto sul africano ao longo do século XX.

Entretanto, a realidade estúpida da África do Sul configurada pela brutalidade lógica do

apartheid dão ao romance uma dimensão que transpõe as fronteiras sócio-políticas daquele

país.

Coetzee explora ao máximo os efeitos perversos dessa herança segregacionista

absorvida no cotidiano das pessoas, contudo seu texto descortina-se para um cenário em

que a humilhação, a dor e a solidão dos homens alcançam um estatuto universal. As tensões

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oriundas de uma sociedade que por quase quarenta anos constituiu-se fundamentalmente

pela violência da segregação racial dão um fôlego maior a questões primaciais, como os

limites da honra, da justiça e da lei.

Desonra é uma obra que trata de limites, ou melhor, de transpor limites; deslocá-los

em todos os níveis: no político, no moral, no sexual etc. O enredo está permanentemente

indagando o que se configura um verdadeiro ultraje, ou como definiríamos uma ofensa, ou

ainda o que distingue os diferentes atos de violência ou crueldade. Enfim, a obra coloca em

cheque a natureza flexível dos padrões morais e legais que constituem a base de

sociabilidade dos grupos humanos em geral e aponta a inocuidade destes padrões no

contexto contemporâneo.

Dessa perspectiva, poderíamos nos perguntar, então, o que afinal é a justiça ou para

que ela serve? O paradoxo moral em que sociedade moderna se insere nos leva a pensar o

que de fato é a justiça dos homens. Zigmunt Bauman afirma que: “pode-se sensatamente

esperar que numa sociedade dividida e acima de tudo moderna, que é – simultaneamente!-

acentuadamente desigual e devotada à promoção da igualdade como um valor supremo, a

essência da justiça permanecerá eternamente um objeto de controvérsia”3. Ainda que

possamos aqui questionar se de fato as sociedades modernas promovem a igualdade como

um valor supremo.

O direito e a lei, braços da justiça dos homens, inserem-se também nesse cenário

controverso e sem visibilidade. Frequentemente indagamos se a lei é uma elaboração dos

homens ou é inata a eles; se o conceito de direito diz respeito ao “eu”, ao indivíduo, e a

idéia de justiça remete-se ao âmbito do bem. Em suma, sabemos que os gregos não

3 BAUMAN,1998, pp.74,75.

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conheciam a palavra direito, mas agiam segundo a justiça – “diké”. A pergunta que

Sócrates faz aos sofistas sobre o que é o justo, remete a indagação sobre a natureza

ontológica do conceito de justo, isto é, do justo em si. Consideremos, então, que todo ato

justo visa ao aperfeiçoamento humano, ou seja, que praticar a justiça é fazer com que os

homens sejam felizes.

Emanuel Kant quando escreve A Crítica da Razão Pura está no caminho de um

formalismo, isto é, o filósofo mostra que a razão tem várias formas de se realizar e para

tanto se deve entender que a razão especulativa é aquela que estabelecerá normas para a

efetivação da razão prática. Esta é a história do direito. Se leis não são aplicações vazias e

são necessárias de acordo com a demanda histórica, como estabelecer o equilíbrio entre

diferentes demandas, considerando as complexas estruturas em que se apóiam as

sociedades? De que maneira o homem se comporta diante do que é costume ou tradição? Se

pensarmos apenas na lei, concluiremos que não se pode viver apenas com a racionalidade.

Kant modifica a aplicação da lei em busca da moderação entre sensibilidade e razão.

Entretanto, no tempo presente, não nos basta perguntar sobre as condições possíveis

para a aplicação das leis, conforme fazia Kant.Outro filósofo, Jacques Derrida, alerta-nos

sobre o conceito de direito, o qual, segundo ele, consiste na própria impossibilidade. Para

Derrida, todo ato que implica o direito, implica uma decisão, sendo que a esta deve se dar o

estatuto da indecidibilidade.O filósofo Derrida é diferente de Kant. Para aquele, a justiça é

uma aporia, isto é, a justiça é uma experiência do impossível, uma vontade ou desejo.

Em suma, se o direito é um instrumento do cálculo e a justiça uma experiência do

impossível e a decisão entre o justo e o injusto jamais será assegurada por uma regra,

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quando efetivamente houve a distinção entre o justo e o injusto? Afinal, o que é o justo? É

melhor agora nos determos às perguntas do que às respostas.

A pesquisa propõe investigar na obra de Coetzee, a representação dessa crise por

que passa o homem contemporâneo. A perda da experiência, consagrada por Walter

Benjamin, que a modernidade instalou e o posterior esvaziamento da crença em um projeto

utópico que configura a atualidade são algumas de nossas diretrizes. Ao menos, nestes

tempos pós-utópicos pensar a arte com poder de intervir na realidade não deixa de ser uma

possibilidade de utopia renovada.

A racionalidade contemporânea deve formular, não confrontar, mas sobretudo

dialogar, para que entendamos melhor nosso assombro diante da complexidade do real. Se

Coetzee, em sua obra, impõe seu olhar cético sobre o destino dos homens, é justamente a

força de sua narrativa que desdobra este ceticismo em esperança.

Restituir ao pensamento intelectual sua força de repercussão, inscrevê-lo numa nova

ordem de trabalho vivo que englobe o trabalho material, o doméstico e o trabalho imaterial

das atividades superiores tem em si um germe qualquer de dignidade e poder que possibilita

vislumbrar um caminho. “Se a arte ou a literatura tem como função utópica fazer-se o

laboratório dos mundos impossíveis”, como afirma o escritor argentino Ricardo Piglia, a

discussão de uma nova ética que exerça papel cada vez mais central na inteligência das

nações pode ser um tema potencialmente vinculado ao campo da literatura.

Questões como a impossibilidade da experiência, a desestabilização das marcas

identitárias e a violência que se assegura dos espaços vazios no contexto da sociedade

contemporânea repercutem na literatura deslocando o pensamento, focalizando trânsitos e

diálogos. É sob uma perspectiva multifocal que histórias têm sido revisitadas e construídas,

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identidades culturais reconfiguradas e problematizada a constituição do sujeito e sua

relação com a linguagem. São essas as questões que se apresentam ao refletirmos sobre o

papel da arte como motor necessário ao questionamento das políticas e da ética na chamada

modernidade ou modernidade tardia. O que explicaremos mais adiante.

A pesquisa procura mostrar como a crise de representação do sujeito, condicionada

ao esvaziamento da crença em um projeto utópico, desdobra-se na reflexão de uma nova

base ética que conduza “as escolhas” do século XXI.

O projeto iluminista buscava um modelo de sociedade em que a razão esclarecida

levaria os homens ao alcance da liberdade. O modelo que se preconizava localizava na

tolerância um dos seus sustentáculos, uma vez que alcançar a igualdade como ideal de

convivência pressupunha um código moral a que todos se submeteriam porque somente

precisariam dispor da razão para tanto.

A moralidade, fruto do exercício pleno da razão, garantiria o equilíbrio social,

confirmando a responsabilidade que cada um deveria assumir em relação ao outro. Segundo

Zigmunt Bauman, toda relação de proximidade exige a responsabilidade com o próximo,

esta é a base, isto é, aquilo que viabiliza um projeto de sociedade. Entretanto, no cenário

atual,o homem contemporâneo enxerga o próximo como estranho e, desse modo, afasta-o

dessa equação moralmente viável de convivência.Uma vez que o outro próximo torna-se

um outro estranho, substitui-se o sentimento de responsabilidade pelo de desconfiança ou

medo; esvaziando-se a proximidade, legitima-se o ressentimento e moralmente sentimo-nos

isentos de qualquer comprometimento.

Nessa medida, estamos diante de um dilema: nossa moralidade constrói -se a partir

da proximidade entre os seres, o que garante a vida em sociedade, contudo a dinâmica

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social afasta cada vez mais os indivíduos, transformando-nos em desconhecidos em nosso

próprio meio. Tal diagrama explica os índices de crueldade, violência e injustiça que as

grandes cidades suportam cotidianamente.

Vários são os pensadores que investigam a precariedade da vida em sociedade no

cenário contemporâneo. Eles problematizam as relações entre a esfera pública e a privada,

o declínio do espaço público como res publica, isto é, “coisa comum”, bem como, a

importância em se manter o espaço público como lugar da ação e do discurso.

Para Hanna Arendt, por exemplo, este é o lugar da visibilidade que é a medida da

realidade, em suas palavras: "tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e

tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência - aquilo que é ouvido pelos outros

e por nós mesmos - constitui a realidade.”4 E prossegue, "uma vez que a nossa percepção

da realidade depende totalmente da aparência, e portanto da existência na esfera pública

na qual as coisas possam emergir da trevas da existência resguardada, até mesmo a meia

luz que ilumina a nossa vida privada e íntima deriva, em última análise da luz muito mais

intensa da esfera pública."5

Tendo em vista, pois, que nos encontramos em um espaço público fraturado em sua

essência, as conseqüências são alarmantes para a vida em sociedade. A subjetividade

inverte a dinâmica pública, tornando-se sua própria medida, na qual a legitimidade das

relações é medida pela vida em família, pelo espaço da casa, isto é, pela esfera privada. Por

isso, tendemos a supervalorizar aquilo que é “nosso” do ponto de vista da intimidade, tais

como nossos parentes, nosso lar e nossa visão de mundo.

4ARENDT, 2003, p.59. 5Idem, 2003, p.61.

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Dessa perspectiva, é sempre mais complicado distinguir o que é comum a todos, e

em última instância, estar junto ao outro, e de agir em conjunto. Em suma, a subjetividade

ganha, desse modo, o status exclusivo de referência para a verdade e para o julgamento, o

que dilui as fronteiras entre o que é do interesse de todos e do interesse de cada um,

resultando em um sujeito indiferente ao seu semelhante e desprovido em experiências

coletivas. E quando não há coisas a partilhar, o medo e a violência tomam este lugar.

É vital, portanto, nos perguntarmos sobre as soluções possíveis para este estado de

coisas. Se necessitamos de um novo código ético que dê conta desses impasses, sabemos

também que somente constrói-se tal projeto a partir de uma demanda coletiva. Daí termos

como centro da discussão, a esfera pública, pois precisamos de visibilidade para criar novas

vias de conduta, e a literatura dá perspectiva a esta demanda

O poder da imaginação acionado pela arte literária nos permite enxergar o outro

com mais nitidez, nos colocando no lugar desse sujeito que a princípio nos é estranho. Esta

fórmula resgata o pensamento já mencionado, o qual compreende que para haver um

código ético, é necessário compartilhar responsabilidades entre os sujeitos sociais, e isto

somente se estabelece quando nos aproximamos uns dos outros.

Tomemos como exemplo Paul Rayment, personagem principal do romance Homem

Lento. 6 Um excêntrico encontro amoroso com uma mulher cega ilustra bem essa questão.

De um lado Rayment, personagem cuja perna foi mutilada em um atropelamento, de outro

Marianna, uma bela mulher que perdeu a visão. Ao aproximar de modo um tanto bizarro –

cuja análise virá adiante - dois seres cuja aparência foge aos padrões comuns ou esperados,

seu texto potencializa o profundamente humano, e nos provoca, conforme ilustra o seguinte

6COETZEE, 2007.

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trecho: “Eros. Por que a visão do belo chama Eros à vida? Por que o espetáculo do

horrendo estrangula o desejo? Será que a relação com o belo nos eleva, nos torna pessoas

melhores ou será abraçando os doentes, os mutilados, os repulsivos que melhoraremos a

nós mesmos?”7

Essa experiência amorosa, em particular, desloca o olhar de Rayment de sua própria

sina – a perda de uma perna em razão de um atropelamento - e o encaminha para inusitadas

formas em que a dignidade e a humilhação, palavras-chave em toda obra de Coetzee, se

revelam.

Se a arte literária serve para deslocar nossa percepção viciada em textos cotidianos da

realidade, a prosa de Coetzee radicaliza essa “tensão” e o faz estabelecendo uma

complicada empatia por aqueles personagens. Desse ângulo, ativa pela contramão,

experiências que estão amortecidas pela dinâmica tipificadora de nossos acordos sociais.

Ao aproximar, por exemplo, de modo incomum nosso protagonista e a mulher Marianna,

dois personagens inscritos no lado sombrio da vida, a que experiência Coetzee pretende nos

submeter?

Outro exemplo é a “aparição” imprevisível de Elizabeth Costello na porta de o

Homem Lento. A romancista inflexível e soberba, vegetariana radical, pouco afeita a

sociabilidades, mãe e sogra desagradável, personagem de outro romance que leva seu

nome, “chega para ficar” neste enredo. Coetzee nos instiga com a presença incômoda da

intolerante Elizabeth e o faz magistralmente, pois nunca perde de vista seu maior projeto –

a força da palavra literária como linguagem que nos humaniza – afinal, como nos diz

Cláudio Isaac: “Também se entende que a pouca afabilidade da dama é um vestígio

7 Idem, 2007, p.116.

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calculado de uma perspectiva humanista: não temos que ser simpáticos para merecer

compaixão.” 8:

Em toda sua obra, a ética é uma questão absoluta, estritamente vinculada à

dimensão política, cujo prisma é sempre o da ambigüidade. Não se trata aqui do bem e do

mal, mas de como somos bons e maus ao mesmo tempo. Seus personagens são focados pela

ótica das ruínas, e mantêm um perfil ético muito claro, porque quando postos à prova em

circunstâncias limítrofes, é sempre sua substância moral que os sustenta.

Paul Rayment, por exemplo, nega-se a receber uma prótese em lugar da perna

decepada e é um propósito tão firme, que justamente sua (nova) condição precária é que

nos permite entrever a intensidade de sua dignidade.

Em suma, Coetzee cria personagens plenos de defeitos, pouco afeitos à simpatia dos

leitores, mas profundamente humanos. E é a sua humanidade que nos constrange. Segundo

Ronaldo Lima Lins, “Os personagens de Coetzee, no absoluto da precariedade e da

decadência, manifestam-se de forma desconcertante. Dão idéia de afundar e se sustentam,

não obstante tudo, no barco da existência.”9

Lins ao analisar nossa época mais recente conclui que a narrativa contemporânea

traduz o esgotamento das experiências e o esvaziamento da curiosidade que antes se

manifestavam regidas pelo sentimento utópico da transformação do mundo e da esperança.

De acordo com suas idéias, a narrativa das últimas décadas é marcada pelo desencanto e

pela desventura, efeitos trágicos que sob uma dimensão mais profunda revelam o estado de

impasse a que chegamos.

8“También se entiende que la poca afabilidad de la dama es un rasgo calculado desde una perspectiva humanista: no tenemos que ser simpáticos para merecer compasión.”(ISAAC, 2006, Trad. A.) 9LINS, 2006, p.222.

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O recorte aqui é do desencantamento, das promessas não cumpridas da modernidade

que no bojo de sua vitalidade, multiplica as misérias e concentra em poucas mãos seus

efeitos mais promissores. A obra de Coetzee, segundo Ronaldo L. Lins, alinha-se, então, ao

chamado romance da desventura: “Trata-se de um romance do qual não se exclui a

hipótese de aventura, só que de aventura de um caráter que não se manifestava, quando o

sofrimento ou mesmo a dor associavam-se à possibilidade da utopia”10 ou, à ficção da

crise, e mais recentemente denominada de ficções do desassossego,11 conforme nos diz

Lucia Helena:

Essa imaginação ficcional é fundamento de uma reflexão crítica da maior validade, pois nela a forma estética porta em si também uma interferência e um compromisso ético, que não deixa de lado nem a qualidade da escrita, nutrida pela força da auto-referencialidade da linguagem artística, nem a reflexão crítica e profunda sobre os desconcertos do mundo em face da condição humana e social, a que a arte também remete. Conceber a ficção como imaginação histórica significa dizer que ela se faz mediadora entre o estético e o político, já que compartilha um elemento comum a ambos: o fato de que, ao encontrar as ruínas do pensamento, torna-se, ela própria, ruminação, revelando-se reflexão e crítica. Ou seja, realizando- se como um novo pensamento que brota de dentro das ruínas do pensamento. São ficções da crise. 12

O que estou chamando de modernidade? Conforme Roberto Machado13, é

conveniente denominar como modernidade o período que se inicia com Descartes e as

mudanças promovidas por Galileu, em meados do século XVII. Entretanto, ele escolhe

chamar este período de clássico e remete ao final do século XVIII e início do XIX, a marca

de modernidade, com a ruptura introduzida por Kant e os pós – kantianos. Para o filósofo

10LINS, 2006, ,p.217. 11 HELENA, 2010. 12Idem, 2005, pp. 89 – 108 apud HELENA, 2006, p.146. 13MACHADO, 2006.

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brasileiro, a marca cronológica se justifica, uma vez que a modernidade pela primeira vez

toma vulto de problema filosófico.

Já a crise dos valores morais por que passa a sociedade contemporânea, a acirrada

desmontagem da configuração identitária, principalmente desde as últimas décadas do

século XX, dá relevo a um estado de coisas, que se pode chamar de modernidade tardia ou

“envolvido em forte crítica” por pós-modernismo. Nessa pesquisa escolhemos o termo

modernidade em lugar de modernidade tardia.

O percurso da narrativa de Coetzee se afilia à responsabilidade ética que a

linguagem literária carrega em mantermo-nos alerta, pois configura um tipo de imaginação

histórica profundamente crítica, em que a tradição do pensamento é sempre colocada à

prova pela vivência trágica dos ideais do projeto iluminista.

Ao lidar com os horrores que a época atual fabrica, expondo os processos de

dominação e seus conflitos gritantes, sua narrativa mantém de modo genial a difícil aliança

entre a ética e a estética, que, em geral, é dispensada por muitos autores, ao elegerem o

aparato estético em detrimento da responsabilidade ética ou, por outro lado, ao reduzirem

sua narrativa a um tipo de manifesto/panfleto contra as injustiças sociais, em prejuízo do

valor formal da obra.

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Capítulo 1- Modernidade e História Uma Plenitude Moderada

O bode expiatório

“O uso do bode expiatório funcionou na prática quando ainda havia poder religioso por trás da prática. Você jogava os pecados da cidade nas costas do bode e levava o bode embora; pronto, a cidade estava limpa. Funcionava porque todo mundo entendia o ritual, inclusive os deuses. Depois os deuses morreram, e de repente era preciso limpar a cidade sem a ajuda divina. Passou - se a exigir ação real no lugar do simbolismo”.14

A nossa visão ocidental sobre o real constituiu - se sob um esquema de

ordem e sentido progressivos, motivada por uma compreensão teleológica, que escolheu

o futuro como foco da história.

As razões para tanto se originaram nas repercussões universais que

processos como a Revolução Francesa e a Revolução Industrial orquestraram no mundo

civilizado ocidental, criando uma nova perspectiva para aquelas sociedades. Em fins do

século XVIII, o caráter revolucionário que então a “história” adquiriu passa a nortear

definitivamente o olhar do chamado homem moderno, o qual procurava dar um sentido

maior à sua existência, acalentando o sonho de que o curso da história preencherá de

valor e significado o destino dos homens.

Sabemos que nem a Antigüidade Clássica e nem mesmo os cristãos e judeus

localizavam na história esse sentido último. Para os antigos, a natureza era um

“fenômeno” cujo curso cíclico determinava a razão da vida. O imutável e o constante

norteavam a perspectiva de mundo dos gregos, segundo a qual, a natureza de todas as

14 COETZEE, 2000, p.106.

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coisas era “desenvolver-se e degradar-se”. Eles não questionavam seu tempo ou época

porque não se distanciavam destas, não eram homens deslocados em sua temporalidade.

Eram a própria tradição. O tempo para estes suprimia a mudança, e nesse eixo imutável

entre o homem, o tempo e o espaço se estabelecia o princípio de identidade que balizava

as civilizações tradicionais.

Desse modo, a unidade do tempo ideal se apresentava onde este era eterno e

sem contradições, quando a plenitude se configurava em sua totalidade, e a fusão entre a

natureza e o homem resgatava sua origem mítica, de unidade atemporal. A tarefa da

história, então, era livrar os feitos humanos do esquecimento. Nas palavras de Hanna

Arendt:15

A tarefa da história para os antigos gregos era salvar os feitos humanos do esquecimento-seu entendimento enraizava-se na concepção e experiência gregas de natureza, que compreendia que todas as coisas vêm a existir por si mesmas, sem assistência de homens ou deuses - os deuses olímpicos não pretendiam ter criado o mundo-e que são, pois, imortais. Visto serem as coisas da natureza presentes, é improvável que sejam ignoradas ou esquecidas; e desde que elas existam para sempre, não necessitam da razão humana para sua existência futura; todas as criaturas vivas, inclusive o homem, estão nesse âmbito de ser-para-sempre, e Aristóteles nos assegura explicitamente que o homem possui imortalidade, a natureza assegura, para as coisas que nascem e morrem, o mesmo tipo de eternidade que para as coisas que são e não mudam, através do ciclo repetitivo da vida. O ser para as criaturas vivas é a Vida”,e o ser-para-sempre corresponde à procriação.

Seguindo o curso da natureza, o pensamento histórico nas antigas

civilizações preocupava - se em assegurar a permanência dos feitos humanos e impedir

sua perecibilidade. Desse modo, os homens resguardariam seu lugar de grandeza no

15 ARENDT, 2002, pp..70,71.

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cosmos, onde todo o resto é imortal. Todavia, por ser seu exato oposto, esta perspectiva

não sobreviveu à era cristã, quando somente o homem é imortal. Para o Cristianismo, o

mundo se extinguirá e o indivíduo viverá para sempre.

Segundo os cristãos e judeus, a história dos homens era uma história da

salvação na qual o destino se inscrevia numa perspectiva transcendente e atemporal

justificada pela vocação divina. Os gregos previam o futuro inferindo o passado; já para

a perspectiva hebraico-cristã, o passado era uma promessa para o futuro.

A valorização moderna da história secular, por outro lado, se desenvolveu

tomando dos antigos (propriamente dos romanos) sua visão pragmática dos fatos como

grandes acontecimentos políticos. O homem moderno elaborou uma Filosofia da

História, secularizando os princípios teológicos e aplicando-os em um progressivo

número de fatos empíricos. Da Antigüidade, eliminou o caráter de movimento cíclico

que estes observavam nas coisas do mundo, porém sustentando sua força de

continuidade e infinitude.

Hanna Arendt afirma que uma das condições mais elementares da época

moderna e que a diferencia de qualquer outra é a desconfiança irrefreável nos sentidos

humanos, isto é, na sua competência reveladora da verdade; o olhar sobre o sujeito recai

tão somente em sua capacidade de produção – “o homem [é visto]como um ser capaz de

ação”, condição que concentra e baliza todas as demais faculdades humanas.Em suas

palavras: “Não resta dúvida que a capacidade para agir é a mais perigosa de todas as

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aptidões e possibilidades humanas, e que é indubitável que os riscos autogerados com

que se depara hoje a humanidade jamais foram deparados anteriormente.”16

Perder a crença numa dimensão profunda onde a verdade se ocultaria,

projeta o homem em um inexplicável exterior.Os homens modernos acreditavam estar

diante de um tempo cujas evoluções técnicas os levariam a uma sociedade mais justa e

emancipada, no entanto percebemos que o desenvolvimento tecnológico, ao contrário,

tornou distante este sonho de liberdade e, ademais, promoveu o regresso social.

O processo de modernização apresentou-se muitas vezes em contradição

aos seus próprios ideais, trazendo em seu bojo antagonismos cujos modos de produção

foram insuficientes para “harmonizar”; processo esse agravado pela face política

imperialista e injusta que se configurou com bastante nitidez ao longo do século XX.

Nem a força da revelação, nem a verdade da razão, o homem vive, pois, a

aceleração que dissolve tudo - a história e o futuro. Em Desonra, por exemplo, uma

visão severa contempla todas as coisas e põe a nu a impossibilidade de se estar no

mundo com alguma autonomia, já em Homem Lento a tensão localiza esse efeito trágico

na arte da criação literária, posta em jogo nos embates entre o personagem Paul

Rayment e a escritora – personagem Elizabeth Costello. Com efeito, os personagens de

Coetzee estão condenados à perplexidade diante de um tempo que não entendem,

enfraquecidos diante de forças que lhes escapam ao controle e imersos em um universo

de valores profundamente degradados.

16 ARENDT, 2002, p.95.

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Tudo na obra denuncia a inviabilidade de um projeto de humanidade

eticamente viável e parece condenar todos a uma herança trágica quando instala um

diálogo com a História. Conforme Ronaldo Lima Lins17, “Coetzee reconhece o fato

consumado da destruição dos valores e não antevê saídas.”

A questão que se configura para pensarmos é se entre as brechas desse

panorama de ruínas não haveria justamente na essência de sua natureza, a criação de um

novo olhar, algo novo que surgisse justamente dessa condição na aparência imutável e

entretanto, contraditoriamente ambígua a qual a arte literária potencializa e projeta.

Iniciemos pelo romance Desonra.

17 LINS, 2008, p.182.

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1.2 David Lurie e Paul Rayment O reino do desejo na modernidade tardia

Bem se a pobre e fantasmagórica Emma

aparecesse algum dia na Cidade do Cabo, ele a levaria consigo uma quinta – feira de tarde para lhe mostrar como a plenitude pode ser: uma plenitude moderada, uma plenitude moderada. 18

O professor de poesia, David Lurie, ministra aulas sobre o romântico

Wordsworth, cogita escrever uma ópera sobre Lord Byron, é intelectual de formação

humanista; e no entanto, apanhado pelos novos projetos de reengenharia da

universidade, assim como seus colegas, é realocado para a cadeira de Comunicações:

Enquanto enfrenta as aulas de comunicações, frases, melodias, fragmentos de canções da obra ainda não escrita flutuam por sua cabeça. Nunca foi um grande professor; nessa instituição de ensino transformada e, em sua opinião, emasculada, ele está mais deslocado do que nunca. Mas seus colegas de antigamente também estão na mesma, curvados pela formação inadequada para as tarefas que se meteram a cumprir; sacerdotes em uma era pós-religiosa.19

Lurie é indiferente ao que ensina, bem como seus alunos são indiferentes a

suas aulas:

“Como não tem respeito pela matéria que ensina, não causa nenhuma impressão nos alunos.. Não o olham quando ele fala, esquecem seu nome. Essa indiferença lhe dói mais do que admite. (...) Ele continua ensinando

18 COETZEE,2000 p.12. 19 Idem, 2000, pp..11,12.

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porque é assim que ganha a vida, (...) faz com que perceba seu papel no mundo.”20

Suas referências literárias não à toa retomam Flaubert, para quem o homem

não escapa de um destino trágico mesmo diante de um tempo novo. Naturalmente,

aquele escritor francês já percebia com desconfiança as ruínas por debaixo do futuro

que os novos tempos estavam a construir.

Ao pensar na personagem de Flaubert, Emma Bovary, o professor David Lurie

convoca –a à moderação. Sobre que sensação o professor quer se mostrar atento, de que

quer prevenir-se? A recusa de Emma em encarar a realidade é uma forma de torná-la

suportável, já para Lurie esta é uma condição da qual não se pode libertar, não há como

recusá-la. Ele recusa-se a sonhar, pois na verdade, resiste desse modo a sair do mundo,

já que não conserva ilusões. O personagem vive no limite dos sentidos e percebe a

decadência física “como um destino a que não se pode escapar”, como uma perda de

poderes, uma preparação para a morte.

Lurie é uma palavra inglesa “derivada” do verbo To Lure, cuja acepção é

atrair, seduzir. Lurie, o “sedutor”, professor de poesia romântica, é um anti – bovarista

por excelência que ministra metodicamente suas incursões em terrenos de natureza

hedonística. Aprecia, sobretudo a moderação, conforme ilustra a passagem:

Suas necessidades acabaram se revelando bem leves, afinal, leves e fugazes, como as de uma borboleta. Sem emoção, ou apenas quem sabe com algo mais profundo, mais inesperado: um surdo contentamento básico, como o murmúrio do tráfego que embala o sono do morador da cidade, ou o silêncio da noite para os camponeses.21

20 COETZEE, 2000, p.11. 21 idem, 2000, p.12.

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Na obra, a expressão amorosa é irônica e desprovida de sensualidade. De

modo direto, econômico e sem celebração, Coetzee constrói um panorama que alcança

um estado de ceticismo, muitas vezes confundido como um comportamento cínico do

personagem. Ilustremos.

De fato, as “necessidades amorosas” do professor Lurie são primeiramente

demarcadas “nas tardes de quinta-feira(…)Pontualmente às duas da tarde,(…) no

quarto 113 do edifício Windsor Mansions.(…)”22. “(…) noventa minutos por semana

em companhia de uma mulher são suficientes para fazê-lo feliz,(…)”.23 Ainda que

almeje em certa medida alguma afeição ou maior intimidade com a mulher Soraya, os

limites daquele tipo de “amor” são categóricos – apenas sobrevive circunscrito às leis

do “contrato”, sem futuro, é amor comprado, como deve ser.

Seu ser individual é que lhe outorga consistência no mundo, portanto, reage

ante a dimensão indiferenciada entre sujeito e objeto própria à experiência amorosa. Ele

reconhece os limites do tempo em que vive e se esforça em negociar com eles, tanto que

mesmo quando sua alma sonha – “Então, em um domingo de manhã, tudo muda”.24 – e

ele se vê obcecado pela figura da mulher Soraya, desejando-a para encontros

imprevisíveis e admitindo maior ternura por ela, tamanho impulso resulta tão somente

em “uma sombra de inveja do marido que nunca viu.”25 A atitude amorosa não é

virtuosa, sequer a palavra amor é pronunciada. Lúcido e cético, recusa a ilusão e no

plano do discurso resiste às imagens sublimes que em geral caracterizam a prosa

romântica.

22 COETZEE, 2000, p.7. 23 Idem, 2000, p.9. 24 Idem, 2000, p.10. 25 Idem, 2000, p.17.

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O relacionamento entre pai e filha também é sacrificado, ainda que

inicialmente se expresse em modos mais autênticos, porque parece confessar uma

suposta fragilidade:

“(…) ele é o pai, é o seu destino, e quando um pai envelhece volta-se mais e mais para a filha, não há como evitar”.26 , não escapa de um discurso árido e econômico: “Ela lhe oferece chá. Ele está com fome, devora duas enormes fatias de pão com geléia de pêra picante, também feita em casa. Sente o olhar dela enquanto come. Tem de ser cuidadoso: nada mais desagradável para um filho do que o funcionamento corpóreo de um pai.” 27

A construção narrativa da identidade deste personagem parece, inicialmente,

para um professor de poesia romântica, ameaçar e desafiar os posicionamentos

possíveis do sujeito frente à própria herança cultural. Não se trata de uma reação

simplesmente à impossibilidade de recobrar a sensação de plenitude, sonho dos poetas

românticos, nem mesmo o impulso de alcançar a palavra original e reveladora, utopia da

narrativa.

David Lurie reconhece – se como homem contemporâneo, a quem a

experiência imediata com o outro está negada. Seu esforço está na convicção de que

pode superar a contradição entre real e desejo, resguardando a sua própria integridade

ao se abster das pulsões que levam ao caos das emoções. E revela uma consciência

histórica e uma lucidez diante do real, do qual percebe sua instabilidade permanente e se

vê ameaçado pelo vazio oriundo da profunda crise de valores.

26 COETZEE, 2000, p.101. 27 Idem, 2000, p.103.

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Entretanto, no limite dos sentidos, o professor David Lurie é apanhado por

“uma última chama... antes de se apagar”28 e em seu linguajar direto, sem sutileza ou

sensualidade, justifica:

(...)E no entanto, os velhos aos quais está a ponto de se juntar, os vagabundos e andarilhos de capas de chuva manchadas e dentaduras rachadas e orelhas peludas – eles todos um dia foram filhos de Deus, com membros firmes e olhar desembaçado. Será que podem ser condenados por se agarrar até as últimas ao seu lugar no doce banquete dos sentidos?29

No limiar da existência, um outro, Paul Rayment, também, vê-se emboscado

pela paixão. Os personagens em questão muito se assemelham, pois ambos apresentam um

sentimento de dignidade estóica, por assim dizer, diante das situações limítrofes que a vida

lhes prepara. O conceito de ‘limite’ aproxima-nos do que Coetzee insiste em apontar

quando trata do envelhecimento, tema fundamental para a compreensão de sua obra. Afinal,

seus personagens protagonistas são todos envelhecidos ou caminhando para o

envelhecimento – Lurie, Rayment e Costello; todos esses manifestam um profundo

deslocamento diante do mundo, que se deixa entrever pelas situações indignas a que estão

expostos. Iluminemos a questão.

Paul Rayment, personagem cujo nome sugere tanto iluminação quanto

choque, nos é apresentado nas primeiras linhas do romance Homem Lento, tecendo um

grande vôo – voa pelo ar tão cheio de graça! - ao ser atropelado em sua bicicleta por um

jovem motorista de nome Blight nas ruas de Adelaide, na Austrália:

28COETZEE, 2000, p 35. 29 Idem, 2000, p.32.

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O choque o colhe pela direita, duro, surpreendente e doloroso, como uma faísca elétrica, e levanta seu corpo da bicicleta. Relaxe! Ele diz a si mesmo enquanto voa pelo ar (voa pelo ar tão cheio de graça!) e de fato sente os membros obedientemente moles. Como um gato, diz a si mesmo: role, depois se ponha de pé, pronto para o que vier em seguida. A palavra pouco usual limber ou limbre também está à vista. Mas não é bem assim que as coisas acontecem. Seja porque suas pernas desobedecem, seja porque de momento está tonto (ouve, mais do que sente, o impacto do crânio no asfalto, distante, oco, como um golpe de marreta), ele absolutamente não se levanta; ao contrário, desliza metro após metro, sem parar, até se sentir quase embalado pelo deslizar.

Fica esticado no chão, em paz. É uma manhã gloriosa. O toque do sol é suave. Há coisas piores do que largar o corpo, esperar a força voltar. Na verdade, pode haver coisas piores do que tirar uma soneca rápida. Fecha os olhos; o mundo oscila debaixo dele, roda; ele apaga. 30

Em razão do acidente, teve sua perna amputada e se recusa a usar uma

prótese. Daí inicia-se uma nova vida, plena de cuidados e remédios e da qual está prestes

a “desistir”, quando se apresenta a ele a croata Marijana Jokié, enfermeira e também

faxineira cujo marido trabalha em uma montadora de automóveis, e com quem tem três

filhos. Marijanna “parece capaz de intuir as coisas para as quais ele está pronto e para

as quais não está.” 31 Ela massageia sua cicatriz, limpa a casa, cozinha, e no auge de seus

cuidados, devolve a Paul a dignidade que este julgava perdida. Paul apaixona-se por

Marijana: “É o sorriso de Marijana, demorando em sua memória, que provoca a

mudança há muito esperada, há muito necessária. De imediato a melancolia desaparece,

todas as nuvens escuras.”32

30 COETZEE, 2007, p.7. 31Idem, 2007, p.35. 32Idem, 2007, p.80.

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Aparentemente diferente de outros romances de sua autoria, Coetzee parece

um pouco mais complacente ao tratar do amor em Homem Lento. Ele examina cada

situação com um misto de distanciamento crítico e compaixão pelos personagens, percorre

paisagens humanas de clima mais ameno, com algum espaço para a afetividade e o humor,

ainda que bizarro ou meio mórbido, conforme o trecho a seguir, que ilustra a qualidade da

paixão de Paul Rayment: “Ele é como uma mulher que, não tendo parido filhos nunca,

velha demais para isso, agora repentina e urgentemente tem fome de maternidade. Fome

suficiente para roubar o filho de outra: é uma coisa louca assim.”33

Numa breve leitura desse fragmento podemos inferir a intensidade e o

arrebatamento do sentimento amoroso em Paul Rayment, todavia sob uma análise mais

cuidadosa revela-se outro patamar - uma história cruel e melancólica sobre um homem face

a mais profunda solidão e inexorável decadência:

O relógio está parado, mas o tempo não. Mesmo parado ali, pode sentir o tempo agindo sobre ele como uma doença mortal, como a cal viva que despejam em cima de cadáveres. O tempo o mastiga, devorando uma a uma as células que o constituem. Suas células estão se apagando como luzes.34

Seus econômicos gestos pela atenção de Marijana; suas tentativas de inserir-

se na família croata, quando Drago, o filho da enfermeira, a quem se oferecera para pagar

os estudos no Wellinton College, em Canberra, se muda para sua casa; suas cartas sem

respostas, mesmo quando confessa sua paixão, e se vê às voltas com o distanciamento da

33 COETZEE, 2007, p.81. 34 Idem, 2007, p.18.

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enfermeira; a reação ciumenta do marido Miroslav; todas as situações experimentadas por

Rayment são inócuas ou isentas de vigor, como expressa o trecho abaixo:

No entanto frívolo não é uma má palavra para resumi-lo,à maneira como era antes do evento (o atropelamento) e pode ser ainda. Se no curso de uma vida ele não praticou nenhum mal significativo, também não praticou nenhum bem. Não vai deixar nenhum traço de sua passagem, nem mesmo um herdeiro para levar seu nome. De passagem pelo mundo - era assim, numa época anterior, que costumavam designar as vidas como a dele: cuidar de seus interesses, prosperar tranquilamente, não atrair nenhuma atenção. Se não restar ninguém para julgar uma vida dessas, se o Major Juiz de Todos desistiu de julgar e se retirou para aparar as unhas, então ele julgará a si mesmo: uma oportunidade perdida.35

Em suma, o romance nos conduz a um cenário inóspito de aparente paralisia,

que não demanda resultados e cuja máxima perspectiva se dá com a “chegada” da escritora

Elizabeth Costello, personagem recorrente das últimas obras de Coetzee e para alguns

críticos, seu alter ego.

Elizabeth Costello instala-se no apartamento de Paul, bem como se instala

na narrativa, compartilhando o espaço com sua criatura. O romance adquire tão logo um

caráter metaficcional quando nosso protagonista rebela-se contra a veterana escritora que,

por meio de um jogo de perguntas com respostas evasivas, assume na narrativa seu lugar de

autora. Elizabeth tudo conhece sobre os personagens: ela promove um estranho encontro

amoroso entre Paul e uma mulher cega; tenta convencê-lo sobre a banalidade de seu amor

por Marijana; interfere todo o tempo sem explicações, conforme ilustra o trecho a seguir:

Ele está exausto, a cabeça rodando, basta fechar os olhos e afundar no sono. Mas não quer estar ali deitado inerte e exposto quando Costello voltar. Tem de começar

35 COETZEE, 2007, pp..25,26.

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a tomar consciência de uma certa qualidade dela, vulpina, mais que canina, que nada tem a ver com a aparência dela, mas que o deixa nervoso e em que ele não confia nada. Pode muito facilmente imaginá-la espreitando de cômodo em cômodo, no escuro farejando, caçando.36

Um encontro arranjado pela veterana escritora entre nosso protagonista e

Marianna, uma mulher bonita, que perdeu a visão e atraiu certa vez a atenção de Paul

Rayment em um elevador de hospital, revela um inusitado episódio. Este se inicia pela

condição cuja mulher estipulou: a de que Paul, além de ter de pagar pelo encontro para que

Marianna “mantenha o auto-respeito”, deveria estar totalmente vendado, ou seja, sob

hipótese alguma o homem poderia enxergá-la. A construção estética da passagem é tomada

por algo também peculiar, conforme conferimos a seguir:

(Elizabeth Costello) Volta da cozinha trazendo uma tigelinha de algo que parece creme. “É só uma pasta de farinha e água. Para colocar nos olhos. Não tenha medo, não vai machucar. Por que tem de usar isso? Porque Marianna não quer que você olhe para ela. Ela insiste. Aqui, abaixe. Fique quieto. Não pisque. Para segurar no lugar, uma folha de limoeiro em cima de cada olho. E para segurar as folhas no lugar, uma meia de náilon, lavadinha, prometo, amarrada atrás da cabeça. Pode tirar a hora que quiser. Mas eu não recomendaria, sinceramente não mesmo.37

Em outro momento curioso do encontro, avalia: “É como um experimento

primitivo de biologia – como colocar juntas espécies diferentes para ver se cruzam, raposa

e baleia, grilo e sagüi.”38Coetzee parece dizer-nos que a tragédia pessoal dos personagens,

seu declínio físico que acarreta também uma queda de padrão social traz novas perspectivas

sobre o significado de suas vidas. Essa experiência, em particular, desloca o olhar de sua

36COETZEE, 2007, pp.131,132. 37Idem, 2007, p.110. 38Idem, 2007, p.111.

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própria sina e o encaminha para novas formas em que a dignidade e a humilhação,

palavras-chave em toda obra de Coetzee, se revelam.

Ela cega, você coxo.39 Soa a ferina voz de Elizabeth Costello. O estilo

econômico em que Coetzee arranja seus personagens nos informa intensamente sobre o que

faz de nós, humanos, e o que significa envelhecer, bem como nos remete à reflexão sobre o

modo como vivemos as nossas próprias vidas. É como“calçar os sapatos de outros”, diz o

escritor neozelandês Lloyd Jones a respeito do que é a arte literária. Se, então, a literatura

serve para pensar o humano, tudo na prosa do sul-africano Coetzee radicaliza essa “tensão”

e o faz estabelecendo uma complicada empatia por seus personagens, dosada por uma

expressão seca, o que nos leva a uma sensação de angústia e opressão diante de uma

existência frívola . Ilustremos:

Vem-lhe à lembrança a capa de um livro que tinha,uma edição popular de Platão. Mostrava uma carruagem puxada por dois corcéis,um corcel negro de olhos brilhantes e narinas dilatadas representando os apetites baixos e um corcel branco de índole mais calma representando as menos identificáveis paixões mais nobres. De pé na carruagem, segurando as rédeas, um jovem de torso nu e nariz grego, uma fita amarrada na testa, representando possivelmente o eu, aquilo que chama a si mesmo de eu. Bem, em seu livro, no livro dele, o livro de sua vida, se um dia for escrito, a imagem será mais sem graça do que no de Platão. Ele próprio, esse que se chama Paul Rayment, estará sentado em uma carroça arrastada por uma junta de pangarés e rocins que bufam e chiam, que mal se agüentam com o próprio peso. Depois de sessenta anos de acordar toda bendita manhã, mastigar a ração de aveia, mijar e cagar, receber os arreios para puxar a carga do dia,a junta de Paul Rayment estará farta.Hora de descansar, dirá a parelha, hora de sair para o pasto. E se o descanso lhes for negado, bem, eles simplesmente dobrarão as pernas e se acomodarão em seus arreios; e se o chicote começar a zunir em volta de seus quartos, que zuna.40

39 COETZEE, 2007, p.105. 40 COETZEE, 2007, p.61.

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Na obra em análise, Elizabeth Costello, ainda que tente instigar seu

personagem a variadas incursões amorosas, com Marijanna, a enfermeira croata, Marianna,

a mulher cega, Margareth, a ex-namorada e mesmo com a própria Costello, se depara com a

resistência do seu “homem lento” que a interpela dizendo: “Será que eu não consigo

convencer você a nos deixar em paz para resolver a nossa salvação a nossa maneira?”

Mas do que exatamente está tentando salvar-se? De uma paixão arrebatadora

e doentia, por isso em sua desmedida perigosa ou a paixão aí seria justamente a cura dos

maiores males, isto é, aquela domada pela virtude, indispensável para a conduta correta da

vida e da justa escolha? Ou indo mais além, será que nosso personagem esquiva-se então da

paixão porque já não se reconhece próprio para amar, e “amar à nossa própria maneira”,

conforme suas palavras, remeteria ao que nos diz Theodor Adorno, em Dialética do

Esclarecimento, quando afirma que “o indivíduo não tem mais a força necessária para a

paixão”tendo em vista à opressão instalada no processo de interação social? Em suas

palavras:

As transformações universalmente conhecidas dos comportamentos eróticos dos jovens indicam a decomposição do indivíduo,que não tem mais a força necessária para a paixão – força do eu – e muito menos precisa dela porque a organização social que a integra encarrega-se de afastar as resistências manifestas que antigamente inflamavam as paixões e porque transfere o controle para o indivíduo,que deve adaptar-se a qualquer preço.

A despeito das dificuldades em formalizar um panorama claro sobre a

inserção do homem no contexto contemporâneo, ou, em outras palavras, dificuldade em se

obter uma satisfatória visibilidade desse sujeito diante dele mesmo, tendo em vista que ao

fim e ao cabo tudo remete aos efeitos fragmentários da existência; indagar sobre o sujeito

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da paixão é buscar, a partir da crise dos grandes modelos explicativos e políticos um dado

novo para este cenário.

Desse modo, desloca-se a paixão do lugar de consumo, isto é, do lugar

ordinário e esvaziado, delimitado pela força do mercado que tudo transforma em realidade

desde que se possa comprar; e de outro, problematiza-se outro lugar, em que a paixão é

comumente reduzida pela indústria da cultura à força de uma delas – a amorosa, na qual

Eros se transmuta em Narciso, e invariavelmente recai em simplificações e

superficialidades. Ao revigorarmos o conceito de paixão poderemos de fato refletir sobre

novos paradigmas em busca do que fundamenta o homem contemporâneo.

A grande oposição entre duas filosofias sobre a paixão surgiu antes mesmo

do aparecimento da noção de sujeito. Primeiro, podemos distinguir a de Aristóteles, que

trata a paixão como inerente ao humano e a sua práxis, portanto determinante e preciosa na

relação de responsabilidade ética do indivíduo e seu meio; em segundo, a de Platão, que

estabelece uma grande cisão entre paixão e razão, de modo que esta última apresenta um

limitado poder em relação à primeira, vista como furiosa, e por isso, um mal a ser

extirpado.

Entretanto, paixão é um termo de complexa compreensão, e aí retomamos

Hegel quando afirma que o conceito de pathos grego aponta para algo mais elevado e que

remete a grandes feitos imbuídos da racionalidade, que é essencial ao “eu” humano.

Explica-se. Não se trata aqui de a paixão entendida como um impulso que leva ao malgrado

de uma ação, pois, conforme o raciocínio hegeliano, sem as paixões não haveria uma escala

de valores éticos, isto é, não haveria a possibilidade de medir e julgarmos as ações, e de

tornarmo-nos responsáveis por estas.

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Podemos aferir que ter a responsabilidade pelos próprios atos devolve ao homem

alguma autonomia, e por conseguinte alguma liberdade. Todavia, sabemos que neste ponto

localiza-se outra ordem de coisas, que com o advento da Modernidade, tornou precária e

frágil a relação entre o homem e seu sonho de liberdade.

Em resumo, podemos concluir que o trato com os sentimentos na perspectiva grega

requer certas especificidades bem diversas da acepção moderna de pathos. Se para os

antigos, o sentido da paixão remete ao de experimentar o efeito de uma ação que implica

termos mais amplos, como a idéia de conduta e de polis , incluindo também a da

experiência cognitiva, estamos mais distantes de Aristóteles do que deveríamos. O que se

entende comumente está ligado à concepção forjada no decorrer século XVIII, na qual

paixão associa-se a algo irracional, que pressupõe o exagero e que se instala à revelia da

razão.

Essa concepção é fruto de uma herança romântica, cuja projeção da intimidade com

o valor de verdade dava-se como uma reação necessária à falsidade resultante das

racionalizações e dominações comuns às convenções sociais que primavam desde o Antigo

Regime. Isto posto, era urgente encarar a individualidade com grande exaltação, pois

perceber a vitória da intimidade, era perceber um novo espaço, em fins do séc. XVIII, que

se viu revigorado como o espaço da autenticidade em recusa às já mencionadas regras que

se impunham ao sentimento amoroso e transformador.

Dado esse breve histórico, podemos afirmar que, ao problematizarmos o sujeito da

paixão no universo contemporâneo, abre-se um longo caminho ao encontro do próprio

homem. Revigorar o pensamento de que corpo e espírito são uma só coisa, desfazendo o

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conceito que opõe paixão à razão pode ser uma das pistas para encontrarmos esse

fundamento.

Nesse esforço, é importante desconsiderarmos, em outro extremo, o irracionalismo,

que em múltiplas formas assumidas até hoje, gera modelos regressivos para o

comportamento da sociedade. Para ilustrar, podemos citar algumas soluções religiosas,

desde correntes fundamentalistas até o chamado esoterismo, multiplicado nas mais bizarras

tolices; e também, regressões de cunho político que muitas vezes presenciamos nas práticas

societárias seguidoras de uma ética comunitária, as quais quer queiram quer não, acabam

por neutralizar a possibilidade do sujeito exercer a própria autonomia crítica. Isto é, trata-se

de “acordos e normas” que dificultam a adoção de uma posição de exterioridade frente ao

estipulado por uma chamada “ética”, o que impede os homens de exercerem sua soberania

de modo independente da moralidade institucionalizada.

A paixão no interior da própria paixão como foco de invenção do saber é o que aqui

nos interessa. A regra então é inverter as “sequências” para iluminarmos novos ângulos,

uma espécie de visão em paralaxe41. A paralaxe é a mudança aparente da posição de um

objeto observado, causada por uma mudança da posição do observador.

Voltemos então aos romances. Coetzee em Homem Lento indaga sobre a atração

entre aqueles desprovidos de beleza, entre os enjeitados, os excluídos e os velhos.

Veladamente, resgata Platão em O Banquete e pergunta-se se não seria o abraçar os

desvalidos e repugnantes uma autêntica forma de amor, quando sabemos que para Sócrates

o amor é o desejo do belo. Em se tratando de desejo,uma outra obra – Elizabeth Costello -

41 Paralaxe vem do Grego: παραλλαγή que significa alteração. É a alteração da posição angular de dois pontos estacionários relativos um ao outro como vistos por um observador em movimento. De forma simples, paralaxe é a alteração aparente de um objeto contra um fundo devido ao movimento do observador.

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especificamente na Palestra 7: Eros se apresenta importante. Este capítulo ou palestra

como Coetzee escolhe nomear, diz respeito a algumas considerações da personagem que dá

nome ao livro sobre a relação entre deuses, mortais e o desejo. Deixemos que ela mesmo

explique:

Ela também não é isenta de curiosidade sobre a relação de deuses com mortais,(...).O que a intriga é menos a metafísica do que a mecânica,o lado prático de uma união que se dá apesar de uma distinção de ser. Se já é bem ruim sentir um cisne macho adulto metendo os pés palmados em suas costas enquanto ele faz o seu negócio, ou um touro de uma tonelada apoiando seu gemente peso em cima de você, como então, quando o deus não se dá o trabalho de mudar de forma, mas sim mantém-se assombroso, como pode o corpo humano se acomodar à explosão do desejo dele?42

Ainda Elizabeth:

O que ela sabe com certeza sobre os deuses é que eles nos espionam o tempo todo, espiam entre nossas pernas, cheios de curiosidade, cheios de inveja; às vezes, chegam a sacudir nossa jaula terrena. Mas até que ponto, ela hoje se pergunta, vai realmente essa curiosidade?(....) Mas talvez esteja errada a respeito do interesse deles em nós.(...) No auge de sua vida,se compraz em pensar, podia ter dado ao próprio Eros alado motivo para uma visita à terra. Não tanto porque fosse uma beldade, mas porque ansiava pelo toque do deus, ansiava por isso que doía; porque em seu desejo,tão impossível de ser correspondido e portanto tão cômico quando exercitado, ela podia ter prometido um gosto genuíno daquilo que não havia no Olimpo.Mas tudo parece ter mudado agora. Onde no mundo de hoje se encontra um desejo imortal como era o dela?Não nos classificados pessoais, decerto. “MBS,1,73m, trinta e poucos, gosta de astrologia,ciclismo,procura HBS, 35-45 para amizade,diversão, aventura.” Em nenhum lugar: “MBD,1,73m, sessenta,caminhando para a morte e morte vindo depressa ao seu encontro, procura D, imortal, forma terrena indiferente, para fins que palavras não descrevem.” Na agência de classificados iam estranhar. Desejo indecente, diriam, e a jogariam no mesmo cesto dos pederastas.43

42 COETZEE, 2004, p.204. 43 COETZEE,2004, pp.211,212.

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O envelhecimento não oferece conforto na obra de Coetzee. Tanto em

Desonra,como em Elizabeth Costello e ainda em Homem Lento, envelhecer é a decrepitude

em sua forma mais pura. Talvez tenhamos repetido um lugar-comum ao ligarmos o

envelhecimento à decadência, contudo nas obras em questão esse tema é permeado por

uma grave questão ética: David Lurie, Elizabeth e Paul Rayment são personagens que

comungam entre si uma estóica dignidade que por si mesma sinaliza confronto e

deslocamento.

São protagonistas cujo perfil tornam díficil qualquer empatia do leitor, e o

desconforto que oferecem se expressa numa complicada resistência ao lugar de degradação

e degredo social a que remete o clichê. Como é estar no mundo com a consciência da

fratura, mas tentando participar do último banquete dos sentidos? - insistente questão nas

obras.A que serve a velhice, afinal? pergunta-se Elizabeth:

Uma visão,uma abertura, como os céus são abertos pelo arco-íris quando a chuva pára de cair. Será que basta para os velhos terem essas visões de vez em quando,esses arco-íris, como uma consolação,antes da chuva começar a martelar de novo?Só quando estamos enferrujados demais para dançar é que percebemos os passos?44

As idéias “martelam”, sem poupar o leitor, no limite da própria existência,

pois no fundo somos aqueles que perdem tudo e estamos condenados pela própria finitude,

conforme nos ‘confessa’ Paul Rayment: “Uma perna perdida: o que é perder uma perna,

numa perspectiva mais ampla? Numa perspectiva ampla, perder uma perna não é mais que

44 Idem, 2004, p.213.

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um ensaio para perder tudo. Com quem irá gritar quando esse dia chegar? A quem irá

culpar?”45

Coetzee não negocia e prossegue com sua prosa litigante nos forçando a

olhar por dentro de onde em geral ninguém quer ver:

Ele cobre o espelho do banheiro não só para se poupar da imagem de um eu feio, envelhecido. Não:o gêmeo aprisionado atrás do vidro ele acha, acima de tudo, chato.Graças a Deus virá o dia, diz para si mesmo, em que não terei mais de ver esse aí!46

Ricardo Piglia 47nos diz ao comentar sobre a literatura, mais propriamente

sobre a arquitetura do conto e a obra de Jorge Luiz Borges que “os relatos nos confrontam

com a incompreensão e com o caráter inexorável do fim (...)” Que as marcas temporais e

seus reveses nos servem como uma presentificação da morte e que cruzamos por meio da

literatura “essa linha incerta que sabemos existir no futuro, como num sonho”. Enfim, essa

capacidade prospectiva, para além do fim, para perceber o sentido, só se é possível

distinguir pela arte. Nas obras em análise, Coetzee tece com maestria esse encontro com a

noção inevitável do fim sem conciliar com nenhum tipo de conforto. Na verdade, seu texto

nos constrange, nos incomoda a ponto de parte da crítica jornalística na ocasião do

lançamento de Homem Lento, por exemplo, acusar no livro uma perda de tom e ritmo, uma

história que não diz a que veio.

A suposta perda de vigor literário pressentida por alguns é justamente a mão genial

desse autor sul-africano ao nos confrontar pela forma de sua prosa com nossa inevitável

45 COETZEE,2007, p.21. 46Idem, 2007, p.172. 47 PIGLIA, 2000, p.98.

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decadência e sobretudo inevitável morte. A “perda” de ritmo detectada como um aspecto

negativo pela crítica diz respeito a nossa própria perda, ao termos que lidar com nossa

condição humana - inexorável aliança entre vida e morte. O que causa resistência, na

verdade, é o desenho trágico pelo qual ele vai traçando as nossas angústias mais profundas

e dolorosas diante desse cenário intrínseco à contingência da vida.

Envelhecer, pois, é aceitar o que está em oferta ou passar fome, insiste Elizabeth. É

sentir o abandono de Eros ainda que o desejo pulse com vigor nas próprias veias, conforme

alerta a Paul Rayment:

Onde mais no mundo,a esta altura,você vai encontrar afeto, seu velho feio? É, eu conheço essa palavra também, feio. Nós dois somos feios, Paul, velhos e feios, por mais que a gente queira segurar nos braços a beleza de todo o mundo. Ele nunca murcha em nós, esse desejo. Mas a beleza de todo o mundo não quer saber de nós. Então temos que nos contentar com menos, muito menos. De fato, temos que aceitar o que está em oferta ou passar fome. Então,quando uma madrinha bondosa se oferece para nos remover de nosso ambiente deprimente, de nossos sonhos sem esperança, patéticos, irrealizáveis, devemos pensar duas vezes antes de desdenhar o convite. 48

O personagem continua a indagar sem trégua sobre esse deus tão familiar aos belos

e à plenitude da vida, se este tem de abandonar aqueles que conhecem o limite da dignidade

da existência? Por que se deve perder o direito às sensações de devaneio e paixão?

Responde:“Dois seres menores, limitados, diminuídos: como ela pode ter imaginado que

uma fagulha do divino espocaria entre eles,ou uma fagulha qualquer?”49 conclui Costello

sobre ela e Rayment. E prossegue:

De quanto amor uma pessoa como você precisa, afinal, Paul, objetivamente falando? Ou alguém como eu? De

48 COETZEE, 2007, p 246. 49 COETZEE, 2007, pp.120,121.

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nada. Absolutamente nada. Nós não precisamos de amor, velhos como nós. O que nós precisamos é de cuidados: alguém para segurar nossa mão e depois quando ficarmos trêmulos, para nos fazer uma xícara de chá, para nos ajudar a descer a escada. Alguém para fechar nossos olhos quando chegar a hora. Cuidado não é amor.Cuidado é um serviço que qualquer enfermeira que valha o que ganha pode fornecer, contanto que você não peça mais. 50

Entretanto, qual é o lugar do desejo? O que o amor tem a ver com o desejo?.

Questão já lançada por Costello, em Palestra 7:Eros

Estranho como, à medida que o desejo abranda o domínio sobre o corpo,ela vê com mais e mais clareza um universo dominado pelo desejo. Não leram o seu Newton?, gostaria de perguntar na agência de encontros (gostaria de perguntar isso para Nietzsche também, se pudesse entrar em contato com ele). O desejo tem mão dupla:A atrai B porque B atrai A,e vice-versa:é assim que se faz para construir o universo.Ou se desejo é uma palavra muito rude, que tal anseio? Anseio e acaso:uma dupla poderosa, tão poderosa que se pode construir uma cosmologia em cima dela, desde os átomos e as coisinhas com nomes sem sentido que compõem os átomos, até Alfa Centauro e Cassiopéia, e as grandes costas escuras do além. Os deuses e nós,rodopiando indefesos nos ventos do acaso,porém atraídos igualmente uns pelos outros, não só por B e C e D,mas igualmente por X e Y e A e Õmega também. Não a menor coisa, não a última coisa, mas é chamada pelo nome de amor.51

Se desejo é amor, o que tem a ver com o belo? Nos informa Coetzee pela

voz de Paul Rayment em Homem Lento:

Por que o amor, mesmo o amor que ele afirma praticar, precisa do espetáculo da beleza para ser trazido à vida? O que, em abstrato, pernas torneadas têm a ver com amor, ou com desejo? Ou se trata apenas da natureza da natureza, sobre a qual não se fazem perguntas? Como funciona o amor entre os animais? Entre raposas? Entre aranhas? Existem coisas como pernas torneadas entre

50 Idem, 2007, p.162. 51 Idem, 2004, pp. 212,213.

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senhoras aranhas, e a sua força atrativa intriga o macho no mesmo momento em que o atrai?52

Já em Eros: palestra 7, nosso autor nos chama a atenção sobre a

devastação que o amor promove; o texto indaga se pagamos um preço muito alto ao

sermos tocado por um deus? E responde dizendo que preço alto quem paga são ... os

deuses! Posto que estes nos espreitam porque têm inveja. Em suas palavras, “gostaria de

pensar”,diz Elizabeth:

que os deuses admiram a nossa energia, a incessante criatividade com que tentamos escapar de nosso destino.” Psique, Anquises, Maria:deve haver maneiras melhores, menos lascivas,mais filosóficas de pensar todo o negócio homem-deus. Mas terá ela tempo ou equipamento,para não falar em disposição, para fazê-lo?53

Numa prosa inglória, o texto vai destilando a condição de seres que são

abatidos do processo social. E insiste em escancarar a indignidade desse lugar de exclusão

por meio de um tenso jogo de idéias, porque admite a condição precária, tal como um

impasse, e ao mesmo tempo, resiste a ela. Coetzee confronta-nos insistentemente.Com

um contorno trágico, seu projeto literário vai se definindo, uma vez que em sua prosa,

justamente nossa condição de finitude, muitas vezes de modo embaraçoso, é que nos

outorga vantagem. O que também, visto sob outro ângulo, nos leva a perceber

dolorosamente que a nossa salvação guarda em si nosso próprio aniquilamento.

Retomemos a obra Desonra e iluminemos a questão.

52 COETZEE, 2007, pp.157,158. 53 Idem,2007, p..208.

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1.3 Lúcifer – um coração louco

“Acho que se pode dizer que caí em desgraça.”54

David Lurie “existia em uma promiscuidade ansiosa e agitada”55 até

conhecer Melanie, sua aluna, muitíssimo mais jovem do que ele, relação que de imediato

lhe assegura um posto certo no doce banquete dos sentidos. O homem sente-se

apaixonado, um escravo de Eros que age sob a égide do desejo, ainda que marcadamente

platônico.

Embora admita um pulso de vida envolvendo a relação com a aluna, uma

possibilidade “de algum futuro”56, esse relacionamento não escapa à ferocidade em que o

atual tempo se inscreve, sendo fatalmente repudiado pela sociedade. Ademais, ele se

reconhece intruso como na cena em que desabafa: “Estupro não, não exatamente, mas

indesejado mesmo assim, profundamente indesejado. Como se ela resolvesse ficar mole,

morrer por dentro enquanto aquilo durava, como um coelho quando a boca da raposa se

fecha em seu pescoço”.57

Tal qual o anjo caído de Byron 58, Lúcifer – o anjo condenado à solidão, Lurie

cai em desgraça. Age por impulso e não por princípio, como admite o personagem:“Mas

que importância tem isso? Uma última chama dos sentidos, antes de se apagar”.59

Movido pela força expressiva das grandes recusas românticas, Lurie reivindica um outro

54 COETZEE,2000, p.100. 55 Idem, 2000,p.14. 56 Idem, 2000,p.37. 57 Idem, 2000,p..33. 58 Trata – se do poema “Lara” de Lord Byron, citado em Desonra, nas páginas 40,41. 59 COETZEE, 2000, p.35.

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mundo, o das qualidades sensíveis e eróticas da experiência humana. No entanto, aí

merece uma ressalva: que caiba ao artista romântico, de acordo com as palavras de André

Bueno ao comentar o desencantamento do mundo com o advento do capitalismo, “a

tarefa de reencantar o mundo pela via mágica da imaginação criadora de Eus

profundamente introspectivos(...)”.60Evidentemente não é este o perfil que move o

protagonista. Lurie não empreende luta alguma em defesa de qualquer causa maior ou

menor, seu movimento é um excesso, uma energia vital que ele ousa seguir mesmo

sabendo-se vencido pela opressiva realidade.

O professor é um homem preso a seu tempo,e conhece esta limitação: “(...)

‘não fui capaz de suprir alguma coisa, alguma coisa...’ele procura a palavra, ‘lírica. Eu

não tenho lirismo. Sei amar bem.Mas quando estou apaixonado não canto,’(...)” 61 A

imagem com a qual projetamos o tempo determina a consciência que temos da história. A

condição dramática da civilização é que o nosso fundamento não está no passado, como

no caso dos antigos, nem mesmo em nenhum princípio imóvel; somos uma civilização

sem precedentes, pois nos orientamos justamente por meio de incessantes transformações.

Em contrapartida, conforme afirmou Octavio Paz a respeito da poesia:

a poesia moderna desde os pré-românticos, procura fundamentar – se em um princípio anterior à modernidade e antagônico a ela. Esse princípio, impermeável à mudança e à sucessão (...) é a linguagem original da sociedade – paixão e sensibilidade – e por isso mesmo é a linguagem verdadeira de todas as revelações e revoluções.62

60 BUENO, 2002, p.137. 61 COETZEE, 2000, p.194. 62 PAZ, 1984, p.57.

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Ilustremos a questão. David Lurie, ainda que de formação humanista,

porta-voz desta herança poética, não sabe como ser lírico:

Seu impulso lírico pode não ter morrido, mas depois de décadas de inanição só consegue rastejar para fora da caverna torto, curvo, deformado. Ele não tem recursos musicais, não tem recursos de energia, para levar Byron na Itália além da monótona trilha em que vem correndo desde o começo. Tornou-se o tipo de trabalho que um sonâmbulo escreveria.63

E ao pensar sobre sua pequena ópera de câmara, lamenta e espera que

“brote, como um pássaro, uma única nota autêntica de desejo imortal.” Seu verbo não

expressa convicção: “A língua que ele usa com tanto garbo está, se ele soubesse,

cansada, frágil, roída por dentro, como se tivesse cupins. Só os monossílabos merecem

confiança, e assim mesmo nem todos”.64 Lurie anseia e sofre por autenticidade onde a

autenticidade já não mais se apresenta. Entretanto, o personagem revela-se

paradoxalmente, uma vez que seu ato rebelde em nome de um amor “dissidente” se

configura romântico e impregnado de um impulso utópico, eroticamente orientado.

Todo impulso erótico apresenta uma natureza revolucionária, já que fere as

leis de poder e autoridade do meio social. O erotismo é oriundo de uma experiência única

em cuja fronteira entre arte e vida se apaga, e o pensamento revolucionário e o

pensamento poético se cruzam. Lurie entreviu essa experiência, ele diria: “Fui um servo

de Eros(..).Era um Deus que agia em mim.”65 Nascimento e morte anunciada de uma

paixão, derrotada pelas figuras de ordem e poder, tal a longa tradição das recusas

românticas.

63 COETZEE, 2000, p.240. 64 Idem, 2000, p.148. 65Idem, 2000, pp.104,105.

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Somos todos órfãos de uma experiência poética vital, da qual o homem

participava integralmente, cuja violência das palavras ultrapassava uma realidade verbal,

se transformava em ato, em modo de vida...e de morte. Lurie reconhece a voz solitária do

homem contemporâneo quando diz à filha:“Você não está entendendo, minha filha. Você

está querendo que eu crie um caso que não dá mais para criar, basta. Não nos nossos

dias. Se eu tentar, ninguém vai me ouvir” 66 E admite que nada há a fazer, pois “quando

as grandes palavras retornarem, reconstruídas, purificadas, merecedoras de confiança

de novo, ele já estará morto há muito”.67

As palavras do poeta William Wordsworth e seu entusiasmo pela imaginação

que conforme Octavio Paz, “não está no homem, ela é o espírito do lugar e do momento”

68 já não ressoam, não são compreendidas: “Há muito deixou de se surpreender com o

grau de ignorância dos alunos. Pós-cristãos, pós-históricos, pós-alfabetizados, eles

podem ter surgido do ovo ontem mesmo.” 69O lirismo, a sensibilidade e a paixão caíram

no conto da modernidade, a poesia transformou-se em objeto, particularmente em matéria

do especialista em poesia romântica. Lurie não canta para sua Melanie, não conhece a

música - forma cuja estética ativa realiza efetivamente a aspiração romântica de mesclar

arte e vida.

O amor em questão é contrário às leis da espécie, antinatural, cujas

conseqüências são irreversivelmente desastrosas, sendo o personagem julgado “pelo seu

modo de vida,(…) por espalhar semente velha, semente cansada, semente que não

66 COETZEE, 2000, p.104. 67 Idem, 2000, p.148. 68 PAZ, 1984, p.65. 69 COETZEE, 2000, p.40.

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fecunda, contra naturam.”70 Melanie e Lurie são vítimas de uma ação civilizatória e

castradora que emana de uma sociedade cuja moral ao avesso consagra a imagem de uma

ordem simulada em prejuízo do essencial humano; o que vale é o espetáculo: “Estamos

vivendo tempos puritanos. A vida privada é assunto público. A libido é digna de

consideração, a libido e o sentimento. Eles querem espetáculo: bater no peito, mostrar

remorso, lágrimas se possível. Um show de televisão, na verdade.”71 O problema é que os

simulacros não abolem a realidade que é perversa, autoritária e totalizante.

No entanto, o que se revela grandioso, é o caráter trágico que não se localiza na

paradoxal relação amorosa. A interface trágica que se constrói no texto é que percebemos

inscrita no interior do malogro a própria salvação. Percebemos que não são as leis da

sociedade que já condenam a paixão do professor pela aluna, a razão de seu infortúnio,

quando é excluído da universidade e cumpre em exílio a pena por seu envolvimento.Nem

mesmo a face de inútil paixão que se delineia ao longo da narrativa desde quando

conheceu Melanie em sua sala de aula; o confronto com o namorado dela; seus atos

desmedidos para favorecê-la nas notas; a denúncia de assédio sexual e tudo que se segue.

Ainda assim, o trágico não se localiza no paradoxo entre o sentimento amoroso e seus

efeitos devastadores. Na verdade, o vigor trágico revela-se na condição de não superação.

Explica-se.

Peter Szondi em Ensaio sobre o trágico72 nos informa que “só é trágico o declínio

de algo que não pode declinar, algo cujo desaparecimento deixa uma ferida incurável.”

Lurie percebe-se indo ao encontro de sua última chance no banquete dos sentidos e isto

outorga-lhe um vigor heróico, garante-lhe autonomia. Contudo, ao tocar essa dimensão de

70 COETZEE, 2000, p.215. 71 Idem, 2000, p.79. 72 SZONDI, 2004, p.85.

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vida, toca seu próprio aniquilamento, e é ciente disso. Conforme Roberto Machado73, o

trágico aparece como categoria capaz de apresentar a situação do homem no mundo, a

essência da condição humana, a dimensão fundamental da existência somente na chamada

modernidade. Essa dimensão ontológica diz respeito “a imitação da obra do próprio ser,

entendida seja como identidade, espírito, vontade, unidade etc.” Outra característica que

a insere como marca da modernidade, ainda segundo Machado, é o aspecto da

contradição, do antagonismo , do dualismo de princípios junto ao aspecto da harmonia, do

equilíbrio, da conciliação e da resolução da contradição. Essa face dialética vai

possibilitar “a tragédia ser pensada como uma arte que apresenta dramaticamente uma

contradição”. Logo, a filosofia do trágico trata essencialmente de um estar no mundo

conflituoso e também ambíguo o que nos remete novamente a Lurie. Para ele , o

infortúnio não é conseqüência de sua ação desmedida ao optar pelo enlace amoroso;

aquele, o infortúnio, encontra-se na meta de seu próprio caminho, do qual já não pode

abrir mão, pois é o que lhe dá fundamento.É parte dele. É salvação porque é destruição. É

destruição porque é salvação.

73 MACHADO, 2006.

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1.4 Sobre nossos próprios pés

Nem Deus, nem Marx – uma época sem horizontes

Nos diz Elizabeth Costello: Interioridade.Podemos ser um com um deus tão profundamente, a ponto de apreender, de ter uma sensação do ser divino?(...)Outros modos de ser.Isso pode ser um jeito mais decente de colocar a coisa. Existem outros modos de ser além do que chamamos humano e nos quais possamos penetrar; e se não existem, o que isso nos revela sobre nós mesmos e nossas limitações?Não sabe muito sobre Kant, mas para ela isso soa como uma questão kantiana.Se o que sabe de ouvido estiver certo, então a interioridade começou com o homem de Königsberg e terminou, mais ou menos, com Wittgenstein, o destruidor vienense.”74

Desejamos o amor, mas somos incapazes de lidar com os riscos oriundos da

inerente força criativa que este sentimento evoca. Amar é pura ação de criar, recriar para o

belo, conforme Diotima (uma sacerdotisa estrangeira dotada de extraordinários poderes)

em O Banquete75. Diante de um cenário em que tudo é efêmero, o lugar de quem ama é

amedrontador, pois reivindica persistência, confiança no tempo e no desconhecido.

Desejamos amar e hesitamos ardentemente diante desse desejo, nesta mesma proporção.

Desejo este capturado pela sociedade de consumo e convertido em fórmulas prontas de

satisfação imediata que ao serem saciadas, criam novos desejos para novas satisfações.

Entretanto, o amor, irrompe as fronteiras das trocas instantâneas, e mantém-se na

contramão dessa temporalidade acelerada, pois o amor, força criativa, requer tempo para

transformar. Cria-se então um paradoxo, uma vez que procuramos o amor, mas não

estamos mais aptos a vivenciá-lo.

74 COETZEE, 2004, p.208. 75 PLATÃO,1981.

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Este estado de coisas atinge frontalmente o nosso entendimento sobre “o estar no

mundo”, pois, na medida em que não nos relacionamos com legitimidade entre nós, isto

é, que não estamos mais condicionados a comprometermo-nos imbuídos de “ uma

verdadeira humildade, coragem, fé e disciplina”, conforme as palavras de Erich

Fromm76, nessa medida perdemos de vista quem somos. É de um lugar solitário e vazio

de sentido que estamos tratando, pois, fundamentalmente, precisamos interagir com as

pessoas e mais que isso, buscar laços de confiança, segurança e apreço de modo que

criem estabilidade. Necessitamos de vínculos que nos guiem em direção a nós mesmos.

As relações pessoais configuram-se de modo bastante ambivalente, tendo em vista que

ansiamos e tememos a proximidade com o outro, o que torna ainda mais obtusa a

acepção de nossa identidade.

O desprestígio alcançado pela subjetividade é no mínimo surpreendente se

levarmos em conta que a sociedade moderna erigiu-se sob a idéia do indivíduo.

Descartes, no século XVII, examina a razão humana fora da tutela da visão escolástica,

o que já configura o primeiro grande passo na construção do sujeito e da subjetividade

na modernidade ocidental.Mais tarde, com a Revolução Francesa, o conceito de sujeito

se projeta como categoria política, e desde então, ainda que diante de muitos impasses,

nunca alcançou uma perspectiva tão empobrecedora como a atual.

A delicada história do eu e da subjetividade, como nos diz Lucia Helena77, deve a

Rousseau “a contraparte que irá esquadrinhar a tridimensionalidade em que, naquele

momento, se fragmenta a dimensão do eu --individual, social e natural -- com o que se

76 FROMM, 1956. 77 HELENA, 2006.

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vai compor o inverso da moeda eufórica da modernidade que, naquela fronteira,

ganhava sua ontologia melancólica.”

Na verdade, o que a escritora e professora almeja é desfazer alguns desvios de

raciocínio que consagram a concepção difusa do sujeito e da identidade como uma

característica peculiar à contemporaneidade. Ao lado dos conceitos de sujeito universal

guiado pela razão e do pacto social como fruto do acordo dos homens livres que se

elaborava desde o século XVII, mas com maior vigor no século XVIII, vingava também

uma potentíssima fórmula de um indivíduo melancólico que já contemplava o fragmento

em seu horizonte.

Com o fim da metafísica no século XVIII, o eu projeta-se como importante

fator na constituição social. Aliado à cultura, toma expressão no novo panorama que se

desenhava na virada do século XIX. Sobre a identidade, então, algumas leituras se

entrecruzaram, balizadas para o bem ou para o mal pelas utopias do Iluminismo; a visão

do nacionalismo inflado traduzido no sujeito empreendedor convivia com a do

indivíduo ensimesmado, encapsulado na solidão das novas terras, representados pelo

ideário romântico. Mais tarde, as fissuras do sistema colocaram-se à mostra, traindo as

expectativas do ideal revolucionário e seu projeto de fraternidade universal.

Fazendo um breve cotejamento com a história de Jean Jacques Rousseau, o

profeta da verdade como costumava chamar-se, observa-se que este, ao se retirar de Paris

com o intuito de desvendar-se a si mesmo, dá dimensão a sua própria personalidade e não

perde de vista o mundo, de riqueza e conforto que desfiguram o homem.

A atitude de Rousseau inaugura um novo tipo de militância que transforma a

vida humana e a conduz em uma busca radical pela verdade. O seu recolhimento não

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significa propriamente indiferença, ao contrário, o filósofo da verdade com sua atitude

instaura um novo espírito de pensar o mundo e o homem.

Em Desonra, a partida de David Lurie rumo à casa de sua filha pode ser

considerada um recolhimento, mas nesta iniciativa individual, de aparente impulso

libertário, não há lugar para o espírito transformador que a atitude de Rousseau

consagrava. David, assim como Rousseau, estava sozinho na terra, porém aquele não

dispõe de condições para olhar a si mesmo. David Lurie vive num tempo em que a

incapacidade de olhar para si redunda na incapacidade de olhar o outro. A crueldade que

o sistema impõe é que nada desencadeia mais este processo de veemente curiosidade,

quando pensar no outro é pensar em si próprio.

O drama acerca da identidade sem dúvida alguma é um ponto central na obra

de J.M.Coetzee. Não à toa em Desonra, Lurie convoca Emma Bovary a viver a

plenitude, entretanto, uma plenitude moderada, uma plenitude moderada, repete-se o

personagem. Segundo Ronaldo L. Lins78, “com Emma, Flaubert coloca o dedo na

ferida. Compõe um ser dilacerado, alguém que mal conhece o próprio eu e que se

movimenta no sentido do outro, mesmo que busque no mesmo afeto e valorização.”

Flaubert antecipa o que mais tarde denominaremos como “dissolução do eu”, o que

pensadores como Theodor Adorno e Walter Benjamin diagnosticaram ao analisar a

modernidade.

Lurie, ao contrário de conhecidos românticos de inspiração fulgurante como

Byron, a quem, não por acaso, o personagem dedica um trabalho – sua opereta, desiste,

78 LINS, 2005, p.29.

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não porque deseja reconciliar-se com o existente, entretanto ele relega o mundo das

qualidades sensíveis à inutilidade. Sua recusa inicial traduzida pelo impulso romântico

não sustenta o vigor necessário para sobreviver diante da violência. Diferentemente da

tradição romântica, cujas recusas e revoltas preenchem de sentido o passado histórico

antigo e recente, o personagem mesmo imbuído de uma força utópica, encantado pela

imaginação erótica, desiste: “(...) Nessa droga de história toda havia algo generoso que

estava fazendo o possível para florescer. Se ao menos soubesse que o tempo ia ser tão

curto!”79

A questão é entender se a desistência diz respeito ao Lurie como emblema

desta tradição esfacelada que caracteriza nossa época - herança maldita no plano social

que se implanta na literatura como desencanto -, ou ao Lurie como personagem dotado

de um profundo estoicismo e rigidez, elementos necessários a uma nova existência

moral, cuja identidade ainda se inscreve na história e na cultura desse tempo de crise.

Quais são as conseqüências para nós ao percebermos o nosso fracasso de

imaginar? Lord Byron, o projeto operístico do personagem Lurie, evoca o legado

filosófico das questões do Renascimento, como a solidariedade, a compaixão, em

resposta à lógica instrumentalizante da sociedade que, no século XVIII, se urbanizava

velozmente, trazendo em sua esteira o colapso ético em que estamos inseridos no

presente.

Byron, conhecido em sua época como um grande libertino, associado à

violação de tabus, ligações incestuosas e a inúmeros casos amorosos, é ligado a Lurie como

herdeiro da tradição liberal ocidental. O próprio Coetzee viola vários tabus em Desonra,

79 COETZEE, 2000, p.105.

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uma vez que o protagonista é de origem branca, entretanto, é culpado por assédio sexual a

uma mestiça e a filha é vítima de estupro.

O engajamento de Lurie ao poeta Byron se apresenta de modo bastante peculiar.

Ambos se alinham porque celebram a libertinagem e a violação de tabus, no entanto, Byron

reage ao individualismo crescente da sociedade burguesa em expansão, enquanto Lurie é

situado por Coetzee como herdeiro dessa tradição em um outro sentido.Este personagem se

insere no quadro social onde o fracasso da tradição iluminista resultou no colapso ético cuja

conseqüência principal é a violência.

A relação entre o tratamento da violência na África do Sul contemporânea e

o legado do Renascimento europeu coloca-se diante de uma aflita dúvida sobre as

possibilidades de uma ação ética na sociedade atual.

Diante do fracasso da imaginação que condiciona o mundo contemporâneo,

quando não há chance de reter ao menos um senso de êxtase na empobrecida existência,

Lurie “desiste”, porém não sem antes perceber o outro, ainda que este outro sejam

animais,cães vira-latas abandonados à própria sorte. Contemporâneo da geração de

1968, cuja bandeira da liberdade garantiu as transformações efetuadas no mundo

ocidental, aos 52 anos, o personagem David Lurie, é agente das conquistas que

transpuseram as fronteiras políticas e sexuais de toda uma geração.

No entanto, este personagem que inicia o romance acenando sua

conquistada autonomia e o desapego a tudo que o cerca, termina muito mais penitente

do que em seu início, como ilustra a passagem: “Ele e Bev não falam. Ele já aprendeu,

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com ela, a concentrar toda atenção no animal que estão matando, dando-lhe o que não

tem mais nenhuma dificuldade de chamar pelo nome correto: amor.”80

Banido da universidade em um auto-exílio nos campos da África do Sul,

apesar de viver em uma época opressiva, regida por um estado “anárquico” (outrora

autoritário), Lurie sofre com a sorte dos animais ou com a morte destes. O curioso é que

os cães de raça, na África do Sul do apartheid, eram um signo da supremacia branca,

treinados para dar segurança às fazendas espalhadas pelo país. Já os vira-latas eram

animais encontrados entre as comunidades negras. Em Desonra, são estes, os cães

franzinos e malcheirosos a quem Lurie quer privar da “desonra”, termo

intencionalmente escolhido, cuja potência semântica multiplica as imagens de um país

na era pós – apartheid. Vejamos o texto destacado:

Seria mais simples colocar os sacos no carrinho do incinerador logo depois da sessão e deixá-los ali para o pessoal da incineração cuidar deles. Mas isso significaria deixá-los no depósito junto com o lixo do fim de semana: restos das alas do hospital, carniça coletada na beira da estrada, refugos malcheirosos do curtume – uma mistura ao mesmo tempo fortuita e terrível. Ele não tem coragem de impor essa desonra aos cachorros.81

Importar-se com a honra de animais abandonados à própria morte deixa entrever

o legado de abandono oriundo do sistema violento do apartheid. A imagem de cachorros

doentes que perambulam pelos campos sul africanos e a súbita dedicação de nosso

personagem a estes seres, tentando oferecer-lhes um momento de dignidade ainda que

seja em um último suspiro, aproxima “temas” de difícil tratamento. Morte, abandono,

80COETZEE, 2000, p.245. 81 COETZEE, 2000, p.164.

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indigência, degradação são termos que na obra em questão ajudam a formar o quadro

social do país pós-apartheid.

A transformação por que passa o professor sinaliza a condição de estranheza

diante desse cenário, cuja amplitude ultrapassa as fronteiras africanas e aponta para um

sujeito espantado diante de uma realidade que não reconhece e na qual não se reconhece,

que caracteriza hoje o Ocidente. O abismo existente entre os padrões morais da sociedade

se configura na transitoriedade que a caracteriza, e se reproduz na relação com os animais

expressa no romance em questão.

Deixar de perceber a crueldade é deixar de nos perceber - não nos sensibilizamos

com a matança dos animais e não nos sensibilizamos com a matança da própria espécie, é

o que Desonra parece nos dizer. Segundo Jacques Derrida82:

“a questão dita d” O animal “é um signo primordial do logocentrismo e de uma limitação desconstrutível da filosofia.Trata-se de uma tradição que não foi homogênea, mas hegemônica, e assumiu o discurso da hegemonia, do domínio mesmo”(...) “A teoria cartesiana supõe, para a linguagem animal um sistema de signos sem resposta: reações, mas não resposta. (...)” Essa herança, quaisquer que sejam as diferenças, predomina no essencial, naquilo que conta na prática, o pensamento moderno da relação dos homens com os animais. O conceito moderno do direito depende maciçamente desse movimento cartesiano do cogito, da subjetividade, da liberdade, da soberania etc.”(...) “É no interior desse espaço filosófico-jurídico que se exerce a violência moderna para com os animais, uma violência ao mesmo tempo contemporânea e indissociável do discurso dos direitos do homem.”.83

Conferir direitos aos animais é deslocar a própria concepção do “sujeito humano”

que na perspectiva do legado filosófico, até então, justificou a violência impetrada

82 DERRIDA, 2004. p.82. 83 DERRIDA, 2004, p.81,84.94.

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contra estes seres vivos. Na obra Lurie se pergunta: “Deve lamentar? Será apropriado

lamentar a morte de seres que não lamentam entre si? Olhando o próprio coração, vê

apenas uma vaga tristeza.”84

Não há uma intenção decente ou uma causa admirável em Desonra. Lurie é um

personagem perdido no mundo decadente e miseravelmente sujeito a circunstâncias

inimagináveis:“(...) Ele preserva a honra dos cadáveres porque nenhum outro idiota se

dispõe a fazer isso. Isso é o que está virando: idiota, maluco, miolo-mole.”85 Contudo, a

indagação que se apresenta é quanto às implicações de nossas identidades sociais e de

nossos objetivos quando vivemos fechados à solidariedade e sequer percebemos o

outro.

84 COETZEE, 2000, P.146. 85 Idem, 2000, p.166.

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1.5 Importante é estar cravado na vida

O realismo nunca esteve à vontade com as idéias. Não poderia ser de outro jeito: a premissa do realismo é a idéia de que as idéias não têm existência autônoma, que só podem existir nas coisas. De certa forma, quando se tem de debater idéias, como aqui, o realismo é levado a inventar situações – caminhadas pelo campo, conversas – nas quais os personagens dão voz a idéias conflitantes e assim, em certo sentido, as encarnam. Nesses debates, as idéias não flutuam, nem podem flutuar livremente: ficam atadas aos interlocutores que as enunciam, e são geradas por uma matriz de interesses individuais a partir da qual os interlocutores agem no mundo. 86

A professora Rejane Pivetta de Oliveira em ensaio87 sobre o realismo e o

humanismo nos diz que o realismo é também uma forma de conhecer a realidade que se

opõe ao idealismo, pois lida com a “concretização” de contextos e circunstâncias. Em razão

disso, o realismo é a condição de toda literatura, tendo em vista que esta “concretiza”

sentido à relação do homem com o mundo por meio da criação de situações ou imagens.

88Na obra de Coetzee é justamente no manejo dessa relação mimética que se configura sua

maestria, uma vez que muito antes de constatarmos os aspectos realistas de sua obra, nos

deparamos sobretudo com um texto que a subverte.Explica-se.

Decerto é correto afirmarmos que a narrativa de Coetzee nos devolve ao que é

profundamente humano. Seu vigor ético é inegável quando nos coloca diante de

personagens que podem ser qualquer um de nós, em qualquer lugar, e estão sujeitos a

circunstâncias, quase ao alcance de nossas mãos. Decerto sua obra é realista. E não o é. Os

mecanismos de representação da narrativa são dispostos, por assim dizer, ao avesso; bem

86 COETZEE, 2004, p.15. 87 OLIVEIRA, 2009, p.6. 88 Idem, 2009,p.1.

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como o aspecto auto-referencial de seus textos dão nitidez a dispositivos que de antemão

naturalizariam sua narrativa, mas não o fazem.

Na análise de Rejane de Oliveira é citada uma das lições de Elizabeth Costello – As

Humanidades na África. Nesta, Costello viaja ao encontro de sua irmã mais velha, a freira

Blanche, a qual receberá um título honorário da Universidade de seu país de adoção na

África pela publicação de um livro sobre o trabalho com crianças nascidas vítimas da

AIDS.

Nesta palestra, conforme Coetzee prefere chamar, Costello em dado momento

escreve à irmã, relatando uma antiga experiência como modelo nua de um velho pintor

amigo de sua mãe, moribundo em um hospital. Para Elizabeth, desnudar-se para o pintor é

um ato supremo de humanidade: “Nada é mais humanamente belo do que tocar com os

pincéis os seios de uma mulher. As humanidades ensinam a humanidade. O que os gregos

nos ensinam é a beleza humana.”89 Entretanto, o que Elizabeth não escreve à Blanche é

que naquele leito de hospital, diante do velho moribundo, resolve cometer um gesto

inconfessável, sobre o qual nem ela mesma saberia o que pensar quando fosse de volta

para casa. Ela pergunta-se: O que a enfermeira Naidoo acharia daquilo, o que os gregos

achariam daquilo, o que sua mãe no andar de cima acharia daquilo?( ...)“Pousar a mão na

coberta e afagar o lugar onde o pênis deveria estar,” estimulando-o sexualmente,

acariciando e beijando e dando-se conta dos pêlos púbicos que ficaram brancos e do cheiro

desagradável das partes de um velho, mal lavadas. 90

89 COETZEE, 2004, p.169 apud: OLIVEIRA, 2009, p.5. 90 COETZEE, 2004, p.172.

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De acordo com a pesquisadora, a cena provoca mal estar, pois põe em xeque os

esquemas clássicos de representação, dos ideais de beleza e civilidade que costumam

projetar o sujeito em um forar-se, longe da irremediável realidade dos sentidos e

emoções91. A própria Costello admite que os gregos não têm nome para aquilo.92

Tal estratégia, ela nomeia de realismo encarnado, o qual lida com elementos cuja

mimese literária confronta o leitor com experiências nada fáceis de se explicar; com

situações que não comportam os véus da encenação e da performance,e que dão à ficção de

Coetzee um tom viceral e premente, diferente do texto naturalista, sobre o qual faz questão

de observar, que se presta a um olhar distante, uma mimese objetificante. Rejane Oliveira

define a obra de Coetzee como um realismo cravado na existência humana.93

Outro autor, Rita Barnard94, na resenha do livro J.M. Coetzee, de Dominic Head95,

analisa que Head situa Coetzee entre a auto-consciência metaficcional e o ilusionismo

realista, entre a materialidade e a alegoria, entre a metáfora e a metonímia. Sobre sua obra a

pesquisadora avalia que o projeto em curso do romancista é visto como a reconstrução de

uma ponte entre o mundo e o texto, como a imaginação de um realismo reconstituído, no

qual o escritor possa (dentre outras coisas)falar sobre, sem falar pelo outro. 96

Essas qualidades demarcam o quão distante a prosa de Coetzee está de uma

compreensão simplista das noções de realismo e referencialidade na representação literária.

O realismo e seu natural apego à referencialidade tomam uma outra dimensão em Coetzee,

do ponto de vista metaficcional, lidamos com lições-palestras que emergem do ambiente

ficcional pela voz da conhecida alter-ego Costello, do caráter reflexivo suscitado pela 91 OLIVEIRA, 2009,p.6. 92 COETZEE, 2004, p.173. 93 Idem , 2004, p.6. 94 BARNARD, 1993. 95 DOMINIQUE, 1997. 96 BARNARD, 2000,pp.214-216.

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prosa, experimentamos sensações daquilo que nos humaniza somado àquilo que nos

devolve ao real, longe dos padrões ideais de beleza promulgados pelos modelos clássicos.

O realismo reconstituído nesta obra é a ponte entre o mundo e o texto, em que os

significados emergem por si mesmos em um jogo de espelhamentos, no qual é a atuação do

texto que se coloca à prova, isto é, por meio de sua tessitura, entrevemos sua dimensão

política. Coetzee subverte a noção de realismo, fundando o que Arranz97 chama de um

novo realismo, no qual, como diz Elizabeth Costello, o importante é estar cravado na vida,

não a vida em si.98

97 ARRANZ, 2005. 98 COETZEE, 2004, p.39.

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Capítulo 2 – Violência e apartheid: DESONRA

Melanie – Meláni – a escura

“Desiguais, como negar?”99

Em Desonra, o profundo abismo entre os padrões que a universidade resiste

em manter e a realidade social a cada vez torna-se mais nítido. Lurie propriamente é

expulso da instituição, que a princípio teria um papel acolhedor, tendo em vista que se

trata de um intelectual e professor. Entretanto, será recebido pela comunidade que é

detentora de saberes os quais, a rigor, não compreende. Nesta ‘dialética’, a narrativa

indica um mundo que não é, propriamente, culturalmente múltiplo ou mesmo

culturalmente misturado, mas, usando as palavras de Breyten Breytenbach, escritor sul

africano perseguido pelo sistema segregacionista,um mundo bastardizado:

Nós (africânderes) somos um povo bastardo com uma língua bastarda.Nossa natureza é bastarda. É bom e bonito que, assim como com todos os bastardos - incertos da sua identidade -,começamos a aderir ao conceito de pureza, que é apartheid.Apartheid é a lei do bastardo. 100

99 COETZEE, 2000, p64. 100 “We (africaners) are a bastard people with a bastard language. Our nature is one of bastardy. It is good and beautiful thus... (But) like all bastards-uncertain of their identity-we began to adhere to the concept of purity. That is apartheid. Apartheid is the law of bastard.” (A Season in Paradise, New York: HarperCollins, 1994, pp.29-30,15Apud Coetzee: 2001, p.249. Trad.A.)

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Mas ser bastardo, ainda segundo Breytenbach, não é ter um destino fácil.

Implica um contínuo fazer-se e desfazer-se, uma procura ininterrupta pela própria

identidade.

Não é de se espantar que o personagem David Lurie reaja de modo tão

significativo ao tipo de justiça que predomina nesta sociedade. Para o autor de Desonra,

o critério de comunidade consiste na noção de grupo que compartilha dos mesmos

pensamentos para conceituar o que é o bem e o que é o mal.Nas palavras de Coetzee:

“Eu não acredito que nenhuma forma de comunidade duradoura possa existir em que

pessoas não compartilham o mesmo senso do que é justo e do que não é”.101

A discussão sobre a questão identitária na África do Sul se intensifica na

medida em que, historicamente, ser um sul africano é ao mesmo tempo lidar com as

categorias formuladas pelo apartheid, as quais, hoje, a comunidade quer apagar; e

definir novas identidades, que, tendo em vista o cenário ampliado do mundo

contemporâneo, são voláteis e de certo modo, inapreensíveis.

O apartheid e seu sistema segregacionista utilizavam o branco, o coloured, o

africano e o indiano como categorias distintivas para justificar o esquema

discriminatório em que se apoiava .A lógica implementada para assegurar essas

fronteiras não fugia de sua natureza tautológica: o branco era definido como aquele

aceito como pessoa branca pela comunidade branca e o coloured foi criado para

identificar os descendentes do homem branco e de mulheres nativas ou asiáticas, 101 “I do not believe that any form of lasting community can exist where people do not share the same sense of what is just and what is not just.” (Doubling the Pointed. Ed. David Attwell, Cambridge:Harvard University Press:1991, p.340.Trad.A.)

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embora na prática essa categoria tenha concentrado inúmeras acepções de origens

geneticamente diversas, tais como asiáticos, islâmicos ou africanos de origem pura e

europeus que por razões diversas se conduziram a uma vida ‘mista’.

Tais questões, tão sintonizadas a demandas contemporâneas acerca das

configurações identitárias, na África do Sul possibilitou às pessoas excluídas de suas

identidades naturais de negro ou branco, explorar identidades divorciadas das categorias

do apartheid. Essa busca revitalizou o passado colonial mais antigo que a própria África

negra, conforme ilustram as palavras de Coetzee: “Pesquisas arqueológicas empurram

para frente e para trás no tempo a data da migração dos africanos “negros”, falantes

das línguas Banto, para o território da atual África do Sul.”102

O problema, no entanto, focaliza-se na denominação coloured. Esse status

corresponde à necessidade que o sistema autoritário possuía em definir com uma mesma

feição a feição do mestiço. Coetzee se pergunta quais os parâmetros usados para atingir

tal distinção, se não havia critério comunitário para a coloração?O hibrido, também

conhecido como mestiço ou “bastardo”, reconhece-se como povo ligado à língua

africâner103, o que instaura algumas dificuldades.,uma vez que os estes reivindicam ser

um povo autóctone, o que por si só já exclui o lugar do mestiço.

102 “Archaeological researches push the date of the migration of “black” Africans, speakers of Bantu languages, into the territory of the present South Africa further and further back in time(…).”(COETZZE:2001, p.254.Trad.A.) 103 Sobre o africâner: Situada na rota comercial para as Índias e habitada por diversos grupos negros, a região da África do Sul foi colonizada, a partir do século XVI, principalmente por imigrantes holandeses (chamados bôeres ou africânderes), que desenvolveram uma língua própria, o africâner. Durante o século XIX, ocorreu uma série de conflitos entre os ingleses (que foram ocupando a região), os negros e os bôeres. Com os choques, os bôeres emigram para o nordeste (em 1836), fundando duas repúblicas independentes, Transvaal e Estado Livre de Orange. A entrada dos ingleses no Transvaal resultou na Guerra dos Bôeres, que culminou com a vitória britânica. A partir de 1911, a minoria branca, composta de africânderes e descendentes de britânicos, promulgou uma série de leis que consolidou seu poder sobre a população negra. A política de

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Vale dizer que os africânderes e os negros também disputavam entre si sua

origem ‘autóctone’. Do ponto de vista dos negros, estes justificavam que, como nativos,

já habitavam aquelas terras, antes dos holandeses lá aportarem; por seu turno, os

africânderes, descendentes de holandeses - primeiramente auto-denominados de bôeres

- diziam-se legitimamente africanos e primeiros ocupantes das terras, que a eles foram

designadas por Deus.

Da convivência entre variadas línguas africanas e o holandês, esses descendentes

desenvolveram uma língua própria, o africâner e apoiados pelo discurso religioso,

justificaram as perseguições, matanças e forçados degredos cometidos contra a

população negra. Tomavam como argumento a história de Cam, filho de Noé, do

Antigo Testamento. Cam, segundo a Bíblia, por ser de pele escura, em razão de servir

aos brancos, foi amaldiçoado por Deus. Essas crenças e discursos mais tarde serviram

para balizar as políticas segregacionistas conhecidas como o sistema do apartheid.

Um outro aspecto relevante a respeito do lugar do mestiço ou híbrido nessa

polêmica configuração de identidades, ainda que os mestiços reivindiquem sua ‘origem’

africâner, é o fato de que estes não eram considerados como pares nem pelos negros,

nem pelos brancos sul-africanos. Ainda assim, na África do Sul, essa figura sabe que

deve sua força à terra nativa e a seus ancestrais.

segregação racial do Apartheid (separação, em africâner) foi oficializada em 1948, com a chegada ao poder do Partido Nacional (PN). O Apartheid impedia o acesso dos negros à propriedade da terra e à participação política e os obrigava a viver em zonas residenciais segregadas, chamadas de ‘bantustões’ ou ‘homelands’, proibindo-se inclusive casamentos e relações entre pessoas de raças diferentes. A segregação instituída pelo Estado também destituiu as populações negras da cidadania sul-africana.

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Tomando por base o pensamento de Edward Said104, não há nenhuma

maneira de definir o outro, compreendê-lo se não considerarmos que há nesse

empreendimento a presença do que é constituído como superior, imperial. Ou seja,

estamos diante de um paradoxo – todo esforço de dar voz ao outro carrega em si o poder

daquele que enuncia, de seu posto de enunciação.

Por outro lado, é inexorável que, hoje, (para compreendermos a nós

mesmos) a voz hegemônica tem de considerar aqueles que não ganharam o direito à

voz. Portanto, entender o branco, na África do Sul, necessariamente é entender o negro.

Um e outro são indissociáveis para se fazer uma leitura do país pós-apartheid. Esse

sistema permeia as relações em todos os níveis, e também no esforço para a

compreensão do outro, negro, sem voz. Todos são herdeiros da segregação e seus males.

Contudo, para os novos rumos do país sul-africano o lugar do branco, do

homem branco, é o mais ameaçado. Sob a perspectiva de que a nossa cultura ocidental

tem suas bases nas coordenadas do tempo, é insustentável, hoje, para o sul-africano

branco se apoiar no passado marcadamente recente; ao contrário, deve principalmente

depurá-lo.O que significa depurar a si mesmo, privando-se então das referências

necessárias que traduziriam sua identidade de modo principalmente positivo, quiçá

ético.

No tempo presente, o lugar deste homem branco, cuja origem remota é

européia, é doloroso, carregado do peso moral que as ações do passado provocam.

Portanto, no jogo entre passado e presente, sem sentido torna-se o futuro, pois é

104 SAID, 2003.

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nebuloso e hostil. Afinal, como o próprio Coetzee afirma em uma entrevista: Os

brancos participaram em vários graus, ativo ou passivamente, de um crime muito bem

planejado e audacioso contra a África. 105

Se privilegiarmos, no entanto, a geografia, os espaços imaginados, conceito

de Benedict Anderson106, o cerne da questão não se diferencia substantivamente. O

aspecto do transitório e movediço permanece, principalmente se levarmos em

consideração a definição de identidade vinculada à idéia de povo autóctone, primevo,

aquele que fundou propriamente a nação sul-africana.

Entre uma perspectiva ou outra, temporal ou geográfica, o que emerge deste

quadro ameaçador é o deslocamento profundo do homem branco na África pós-

apartheid, gerado pelas vozes daqueles que sempre estiveram calados, e que ocupavam

até bem pouco tempo o lugar silencioso reservado a eles pela cultura hegemônica

ocidental. Podemos compartilhar melhor desse panorama, pelas palavras de Coetzee:

No início dos anos 90, uma mudança instrutiva aconteceu no discurso da África do Sul. Os brancos, por séculos insensíveis ao que os negros pensavam deles ou os chamavam, começaram a mostrar uma reação suscetível e até mesmo com ultraje em relação aos apelativos de colonos. Um dos gritos de guerra do Congresso Pan-Africano atacava um nervo particularmente sensível: “UM COLONO UMA BALA”.Os brancos chamavam a atenção para a ameaça às suas vidas contida na palavra “bala”, mas era “colono” que evocava uma perturbação mais profunda.Colonos, no idioma branco eram aqueles britânicos que ocuparam a terra por concessão no Quênia e nas Rodésias, o povo que se recusava a estabelecer raízes na África , que enviava suas crianças para serem educadas fora e falava da Inglaterra como lar.(...) Mas, no discurso da África do Sul contemporânea é uma palavra apropriada;ela vem

105 “The whites of South Africa participated, in various degrees, actively or passively, in a audacious and well-planned crime against Africa”.(COETZEE. 1992, p.342.Trad.A.) 106 ANDERSON, 1991.

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de outra boca, com uma intenção hostil, e com uma bagagem histórica de que os brancos não gostam. Pela primeira vez em sua história (...), os brancos que ouviam “UM COLONO UMA BALA” se encontraram na posição de nomeados. 107

Segundo Coetzee, não é obvio que termos como ‘nativo’, que corresponderia

a ‘negro’ nos EUA, no lugar de tornarem –se mais ‘naturais’ e esvaziados conforme a

freqüência continua do uso de palavras na comunicação humana ocasiona, contrariamente

intensificam o poder de ofender e de causar raiva. A um ponto em que apenas quem não é

nativo, por exemplo, continua usando o termo pelo poder de ofensa que este suscita.

Quando observamos no seu uso um ato verbal de marcação de hierarquia social é que

entendemos sua resistência à entropia semântica.

O poder simbólico da palavra aponta para o poder do lugar daquele que fala,

que nomeia. O termo ‘colono’ que parece tão neutro em sua denotação como o termo

‘nativo’, no ritualizado canto “one settler one bullet”, potencializa-se concomitantemente

de um valor substantivo - o fato de nomear, e de um valor verbal, que denota ação - a ação

de ofender. As duas palavras, ‘colono’ e ‘nativo’ tornaram-se ambas ofensivas pela

conotação agressiva e discriminatória que os lugares de quem as evoca potencializa. Para os

‘brancos sul-africanos’ ouvirem isso, sem poder de ignorar ou de impedir, nada mais há a

107“In the early 1990s, as an instructive shift took place discourse in South Africa. Whites, who for centuries had been genially impervious to what blacks thought about them or called them, began to react touchily and even with outrage to the appellations settler. One of the war-chants of the Pan-Africanist Congress struck a particularly sensitive nerve: “ONE SETTLER ONE BULLET”. Whites pointed to the threat to their lives contained in the word “bullet”; but it was “settler”, that evoked a deeper perturbation.Settlers,in the idiom of white, are those Britishers who took up land grants in Kenya and the Rhodesias, people who refused to put down roots in Africa, who sent their children abroad to be educated, and spoke of England as “home”.(….)But in discourse of contemporary South Africa it is a word appropriated; it comes from another mouth, with a hostile intentionality behind it, and with historical baggage that whites not like. For the first time in their history (…)the whites who heard “ONE SETTLER ONE BULLET” found themselves in the position of the ones named.”(COETZZE:1996, pp.1,2, trad.A.)

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fazer, além de se ofender. Ofender-se não se limita a posições de subordinação e fraqueza,

entretanto, parece a Coetzee, que se ofender é intrínseco àquele que tem seu poder roubado

ou teme por isso. Para ele, é tentador sugerir que o provocativo ato de nomear, quando

usado como uma tática dos fracos contra os fortes, se os fortes se ofendem, coloca, pelo

menos momentaneamente, os fortes na mesma posição dos fracos.

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2.2 Temos tanto medo?

(...) Não fica nervosa sozinha? Lucy dá de ombros.Têm os cachorros.Os cachorros já são alguma coisa.Quanto mais cachorros, mais proteção. Mas seja como for, se alguém resolver entrar, não acho que estar em duas seja melhor que uma.108

Como levar adiante uma existência que se tornou precária sem capitular para

a agressão e a violência? De quem seria a responsabilidade da violência? Como um país

pode ficar em paz com a violência? Somos capazes de romper com a violência? O que

acontece quando as estruturas de proteção da sociedade se apresentam como fonte de sua

própria destruição? É uma questão de verdade e justiça? Qual a relação entre os atos

privados de violência e os atos políticos de violência? Como a grandiosidade do crime do

apartheid e outros crimes do passado afetam o crime comum, ordinário? Se a violência é o

elo da comunidade, então um trauma pessoal torna-se um problema coletivo?

Se os valores iluministas falharam para a sociedade sul-africana pós-

apartheid, para a vida no campo esta cisão é nítida. Lucy, a filha de Lurie, fez parte de

uma comunidade, “uma tribo de jovens que vendia artigos de couro, cozia cerâmica em

Grahamstowne, entre uma colheita e outra de milho, plantava maconha.” 109Eles

ocupavam uma antiga casa das grandes famílias dos tempos do apartheid, no interior da

África do Sul, e, quando a comunidade dissolveu-se, Lucy permaneceu com Helen, sua

companheira. Mais tarde esta também se foi e Lucy, então, não era “mais uma menina

108 COETZEE, 2000, p.72. 109 Idem, ibidem.

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brincando de fazendeira, mas uma sólida camponesa, uma boervou”.110 Vivendo

sozinha entre negros e africâneres armados,filha de intelectuais urbanos, Lucy era o

resultado de uma África pós-guerra, “uma fazendeira da nova geração. Antigamente,

gato e milho. Hoje, cães e narcisos. Quanto mais as coisas mudam, mais continuam as

mesmas. A história se repete, embora em filão mais modesto. Talvez a história tenha

aprendido a lição.” 111

Embora vivendo no campo, e sendo este um “novo lugar” na África pós-

apartheid, as necessidades que se impõem neste território não são tão novas assim. A

personagem Lucy se insere em um cenário cujas identidades são pouco consistentes.

Marcado, antes, pela violência da segregação racial e hoje, pelo alto preço que tamanha

ferocidade apresentou, no país um silêncio permanece, são tempos de difícil

comunicação:

Cada vez mais ele está convencido de que o inglês não é a língua adequada para a verdade da África do Sul.Em inglês, a história se transformou num código e longos trechos dela engrossaram, perderam sua articulação , sua articulosidade,sua artificiosidade. Como um dinossauro a expirar e a se assentar na lama, a linguagem endureceu apertada no molde do inglês, a história de Petrus pareceria artrítica, ultrapassada.112

Petrus é o novo assistente de Lucy; na verdade, nestes novos tempos, é seu

sócio. Lucy diz ao pai:

Ele e a mulher estão no estábulo velho. Puxei eletricidade. É bem confortável. Ele tem outra mulher em Adelaide, e

110 COETZEE,2000,p.72. 111 Idem, 2000, p.74. 112 Idem, 2000, pp.135,136.

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filhos, alguns já grandes. De vez em quando, vai passar algum tempo lá.113

....................................................................................... Acabou de ganhar verba do Departamento da Terra, o suficiente para comprar de mim um pouco mais de um hectare. (...) Se fizer as coisas direito consegue mais uma verba para construir uma casa; daí vai poder mudar do estábulo. Pelos padrões do Cabo Leste é um homem de posses.(...) Não sei se eu tenho dinheiro para continuar com ele.114

Lurie,no entanto, nos diz que Petrus é vizinho:

Nos velhos tempos, dava para acertar tudo com Petrus. Nos velhos tempos dava para acertar as coisas a ponto de perder a paciência e demitir e contratar outro no lugar.Mas embora receba um salário, Petrus não é mais, em termos estritos, um trabalhador contratado.É difícil dizer o que Petrus é, em termos estritos. A palavra que parece servir melhor, no entanto, é vizinho.Petrus é um vizinho que acontece de vender seu trabalho porque lhe é conveniente.Ele vende seu trabalho sob contrato, um contrato verbal que não prevê dispensa por suspeita.Vivem em um mundo novo, ele, Lucy e Petrus.Petrus sabe disso, ele sabe disso, e Petrus sabe que ele sabe disso.115

Entretanto é um vizinho que não compartilha dos mesmos valores e crenças

e que não fala a mesma língua. Coetzee afirma que o trauma da invasão ‘estrangeira’ na

África dissolveu em definitivo qualquer base de legalidade para aquela nação. Se o lugar

do homem branco necessariamente tem de prestar conta com o passado, buscando a

reconciliação e o perdão da sociedade sul-africana, na obra a complexidade desse quadro

não se define claramente e é neste ponto que a narrativa toma grande dimensão.

Segundo Kochin,116a culpa sentida pelos brancos exige que os negros colonos

como Petrus sejam tratados como vizinhos.Talvez o impulso inicialmente solidário do

113 COETZEE, 2000, p.77. 114 Idem, 2000, p.90. 115Ibidem , p.135. 116 KOCHIN, 2002.

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personagem Lurie seja movido por esta culpa, uma vez que ele trabalhará para o negro e

com o negro, uma espécie de “tempero histórico”, um ajuste dos tempos pós-apartheid,

como sugere a fala de Lucy ao pai:“Podia ajudar com os cachorros. Podia cortar

carne para eles. É uma coisa que sempre acho difícil de fazer. E tem o Petrus. Ele está

bem ocupado cuidando da terra dele. Você podia ajudar.” 117

Ainda segundo Kochin,118 Petrus é amoral e não se encolhe diante da violência

instaurada. É bem verdade que manipula as categorias da cultura branca com destreza,

ainda que esta lhe apareça de modo fragmentado e artificial:

“Lucy é a nossa benfeitora, Petrus diz;e depois, para Lucy:Você é a nossa benfeitora.Uma palavra infeliz, ele[Lurie] acha, de duplo sentido, que estraga o momento.Mas como censurar Petrus?A língua que ele usa com tanto garbo está, se ele soubesse, cansada, frágil, roída por dentro, como se tivesse cupins.”119

Entretanto, quando o personagem se dispõe a casar com Lucy, em

decorrência do estupro sofrido pela personagem, sobre o qual trataremos mais adiante,

para daquele modo protegê-la, conforme ilustra a passagem: “Mas aqui, diz Petrus, é

perigoso, muito perigoso. Mulher tem de casar” ,120não se apresenta de modo claro ao

leitor se a intenção de Petrus era realizar um“golpe” para, finalmente ter para si toda a

terra de Lucy, ainda que seja esta a opinião dos criticos Michael Kochin e Lucia Helena.

O primeiro afirma que o “ataque é promovido, se não, instigado, por Petrus para

humilhar Lucy e forçá-la a aceitar a proteção de Petrus, cedendo a ele o controle sobre

117 COETZEE, 2000, p.90. 118 KOCHIN, 2002. 119 COETZEE, 2000,p. 198. 120 Idem,2000,p.148.

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a terra restante dela.”121 Já Lucia Helena, em artigo sobre as configurações identitárias

contemporâneas, assegura que: “Petrus quer sua terra de volta e, para isso, manda

violentar Lucy,a herdeira do colonizador,mesmo que ela seja não uma colonialista, e

sim uma feminista integrada na luta por melhores condições para o ex colonizado.”122

A obra de forma perspicaz joga com as diferentes perspectivas que insidem

sobre visão “desse outro”. Mediante o olhar do personagem Lurie, que nos conduz pela

narrativa, Petrus necessariamente está chantageando e aproveitando-se da situação,

conforme Kochin aponta:123“O preconceito em relação ao colonialismo é que a

presença colonial é temporária”, e prossegue citando o próprio Coetzee: “Para os sul-

africanos brancos ou negros, um colono é transitório, não importando o que diga o

sentido do dicionário.” Para Kochin: “Petrus é um colono no sentido do dicionário. Ele

sabe que a presença branca é temporária e quer a terra de Lucy para si.”124

Todavia a visão de Lucy contrapõe-se a essa. Mesmo considerando o desejo

de Petrus pela propriedade das terras, para ela são outras as intenções que o levam a

pedir-lhe em casamento. Entretanto, estas não se apresentam de modo consistente aos

olhos do leitor, como ilustra o diálogo empreendido entre ela e seu pai:

“Eu tentei levar com cuidado, ele[Lurie] conta a Lucy, depois.Mas não dava para acreditar no que estava escutando.Era chantagem pura e simples.

Não era chantagem.Você está errado.Espero que não tenha perdido o controle.

121 “The attack, David comes to realize is capitalized upon, if not instigated by Petrus in order to humble Lucy and force her to accept Petru’s protection and yield control to him of her remaining land.”(KOCHIN:2002, p.03 Trad.A.) 122 HELENA, 2010, p.60. 123 “The prejudice regarding colonialism is that the colonial presence is temporary”(Kochin, p.15)/ “To South Africans, white as well as black, a settler is a transient, no matter what the dictionary says.”(COETZEE:1996,p.01 Trad.A.) 124“Petrus is a settler in the sense of dictionary. He knows that it is the white presence in the countryside that is the temporary, and he wants Lucy’s land for his own.”(KOCHIN:2002, p.15Trad.A.)

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................................................................................................

Porque fique sabendo que não é a primeira vez.Petrus já está insinuando isso faz algum tempo.Que seria mais seguro eu fazer parte da família dele.Não é uma piada, nem uma ameaça.De alguma forma ele está falando sério.”125

Tal como “uma aliança, um acordo[ela]contribui com a terra, e em troca

ele [a]deixa ficar debaixo da asa dele.”126 “Não é uma piada , nem uma ameaça”,

entretanto não está claro o que é. O jogo romanesco propositalmente cria essa tensão.

Petrus, cujo nome significa pedra, portanto material sólido, sem

visibilidade, opaco, é um personagem enigmático e complexo.Se para alguns críticos ele

está diretamente envolvido com o estupro sofrido por Lucy: “Ao organizar o estupro,

Petrus acerta sua permanência na terra. Planeja o ataque para expulsá-la da terra:

quando ele vê que ela não sairá, deseja tomar Lucy e sua terra sob sua “proteção””,

127nada na obra confirma esta opinião.

Coetzee parece justamente querer provocar este efeito, utilizando sutis

ciladas na elaboração do enredo, sempre justificadas pelas falas de Lucy, conforme o

exemplo: “Ele está com o telefone na mão quando Lucy o detém. David,não,não faça

isso. Petrus não tem nada a ver com isso. Se você chamar a polícia, vai acabar com a

festa dele. Pense um pouco.”128

Ao deixar “em aberto” a questão, a obra convoca uma reflexão sobre a

identidade de tal personagem. De um lado, configura-se aquela apresentada por Lurie,

125 COETZEE, 2000, p.228. 126 Idem,2000, p.229. 127 “By organinizing the rape Petrus asserts his permanence in the land and against Lucy’s transience.Petrus arrange the attack to drive her off the land:when he see that she is not driven off, he is willing to take her and the land under his “protection”.”(KOCHIN:2002, p.13.Trad.A.) 128COETZEE, 2000,. p.151.

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que não por acaso representa a visão do homem branco, herdeiro da tradição

eurocêntrica; de outro, de modo nebuloso, pouco esclarecedor, a lacunar reação da

personagem Lucy.

A arquitetura do romance insiste em não fixar quaisquer moldes para este

controverso personagem, e não recai em binarismos, escapando de forjar um jogo de

oposição entre Lurie e Lucy que enquadrasse Petrus como bom ou mal, culpado ou

inocente; na verdade, apesar da oposição entre ela e seu pai, a reticente reação de Lucy

desestabiliza esta tensão e mantém de modo bastante opaco para nós leitores quem de

fato é Petrus.

Fazendo um sucinto cotejamento com o texto de Edward Said – A

Representação do Colonizado129,o autor, ao discutir sobre a instabilidade do termo

“interlocutores”, afirma:

(Portanto),na situação colonial, um interlocutor é,por definição, alguém complacente e que pertence à categoria do que os franceses chamavam na Argélia de evolué, notable ou caid (enquanto os grupos de libertação nacional reservavam para essa classe a designação de beni-wéwé, “negro do homem branco”),ou então alguém que, como o intelectual nativo de Fanon, se recusa a conversar e decide que somente uma reação radicalmente antagônica, talvez violenta, constitui a única interlocução possível com o poder colonial.

A obra quer escapar da complacência de que trata Said, contudo prescinde

também de atribuir ao colonizado uma identidade essencial ou fixa, que no exemplo

citado poderia definir um perfil nitidamente agressivo ao personagem Petrus.

129 SAID, 2003, pp.118,119.

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Ao contrário, apesar do contexto de acirrada violência, é no campo da

linguagem que a narrativa desencadeará as tensões que envolvem a experiência

colonial nas cidades pós-coloniais. Radicalmente reduzida, a linguagem segue um tipo

de esteticismo, desconcertante pela secura, que reflete na forma do enredo a pungente

condição do homem contemporâneo: a incapacidade de nos reconhecermos diante de

uma realidade hostil.

Segundo Paul Ricouer130, “reconhecer é reencontrar nos objetos ou nas

pessoas os traços de uma consciência que os fazem familiares a nós”, no entanto, a

condição de isolamento dos sujeitos impõe à ficção uma escrita econômica ou um

discurso igualmente limitado e sem nitidez.

A tensão que o romance estabelece sobre o“lugar” do sujeito, e ainda, sobre

a configuração de um novo sujeito no cenário contemporâneo faz necessária uma

exposição crítica de alguns aspectos importantes nas discussões empreendidas em torno

dessa temática.

Para Edward Said, as identidades estavam localizadas no espaço e no tempo

simbólicos, eram coordenadas básicas do sistema de representação da civilização:

elementos circunscritos em paisagens características, em senso de lugar, de casa/lar, em

tradições inventadas que ligam passado e presente, em mitos de origem, narrativas que

conectam o indivíduo a grandes eventos históricos nacionais. A cultura nacional, ou o

que Benedict Anderson chama de “comunidades imaginadas” – histórias e formas que

estabelecem as singularidades e as diferenças entre as nações.

130 “A Epopéia de um Sentido” in Folha de São Paulo Caderno Mais em 29/02/2004.

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À medida que o espaço encolhe e o tempo encurta, cria-se “um sentimento

avassalador de compressão de nossos mundos espaciais e temporais”, conforme a

afirmação de David Harvey. O sujeito posicionado à margem dos centros hegemônicos

se vê afetado por fronteiras “movediças”, que no lugar de indicarem limites com nitidez,

inauguram múltiplos caminhos

O impulso por unificação ou a vontade de viver em comum, os quais,

segundo Ernest Renan, conjugavam a idéia de “nação”, foram postos em cheque. As

identidades partilhadas pelo consumo e os fluxos culturais entre pessoas distantes no

espaço e no tempo, a configuração de uma língua franca internacional do consumismo e

a intensa intermediação do mercado global de estilos, imagens, mídia, entre outros,

sugerem uma forte desvinculação das identidades dos lugares, tempos, histórias e

tradições, multiplicando–se em diferentes identidades apelando a diferentes partes de

nós.

Logo, todo esse contexto nos leva a crer em uma tensão contínua e

ininterrupta das identidades em direção a um estatuto globalizado. Entretanto, o efeito

geral é contraditório; há oscilações entre as novas identidades que reivindicam o multi-

posicional, o multi-político, o multi-plural e a resistência a todo esse contexto cultural.

Esta resistência se caracteriza por elementos regressivos que visam ao

purismo e ao racismo. De um lado, há identidades que gravitam em torno do signo de

unificação e pureza anterior - nacionalismo, fundamentalismo, etnia, ortodoxia religiosa

– o que denominamos como Tradição, de outro, aquelas que não são fixas, sujeitas ao

plano da história, da política, da representação, da diferença; são identidades

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atravessadas, compostas por pessoas que foram dispersadas pra sempre de sua terra

natal, irrevogavelmente traduzidas. Estas não têm a ilusão do puro, são obrigadas a

negociar com as novas culturas em que vivem, sem serem assimiladas por elas. Hommi

Bhabha as conceitua como identidades híbridas, traduzidas, que se instalam num entre-

lugar na sociedade moderna. Para ele, o lugar de escrever a nação – a ambivalência.

É a partir dessa instabilidade de significação cultural – o discurso das

minorias - que a cultura nacional vem a ser articulada um movimento dialético entre

temporalidades diversas – moderna, colonial, pós-colonial, nativa – que não pode ser

um conhecimento estabilizado em sua enunciação; ela é sempre contemporânea ao ato

de recitação. É efeito de uma temporalidade disjuntiva que se instaura entre o contar e o

contado; entre o aqui e algum outro lugar. Agora, são as margens e não o que é linear,

horizontal, homogêneo que interessam.

Segundo Bhabha, é com os que sofreram o sentenciamento da história -

subjugação, dominação, diáspora, deslocamento - que emergem formas culturais não

canônicas, transformadoras de nossas estratégias críticas, para que o intelectual pós-

colonial possa elaborar um projeto histórico e literário. Como exemplo, as críticas pós-

colonial e negra propõem formas de subjetividade contestatórias que são legitimadas no

ato de rasurar as políticas de oposição binária; elas reivindicam uma linguagem para dar

forma a essas tensões.

Em Desonra, então, o mundo que Petrus estabelece é estranho para quem

ainda insiste na busca de uma comunidade ética pelos padrões já conhecidos da cultura

ocidental. O autor através deste personagem lida diretamente com o fenômeno do

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colonialismo e suas repercussões naquela sociedade. Petrus é um settler no sentido do

dicionário; este termo abarca simultaneamente os conceitos de colono, colonizador e

assentado e é exatamente esse efeito que a obra quer explorar, isto é, a potencialidade

semântica da palavra projeta a complexidade que envolve a questão identitária.

O sentido da palavra settler, oriundo da língua inglesa e aparentemente

neutro, toma um vulto ameaçador para o homem branco neste contexto sul-africano.

Nesta nova África do Sul, Petrus, que é um ‘nativo’, negro, passa a ser o novo ‘colono’,

aquele que toma a posse da terra. O sentido do termo mudou e passou a servir como

afirmação de poder daquele que historicamente foi sempre o ameaçado. Na verdade,

esse deslocamento de sentido repercute nitidamente um enredo histórico muito mais

amplo, que tem a ver com a tomada de terras engendrada pelos homens brancos no

processo de colonização.

Este personagem transita na profunda cisão entre os valores do campo e da

cidade e a impossibilidade de conciliar estes contextos, o que é bem exemplificado no

expressivo vácuo existente entre os padrões éticos e a realidade violenta da África do

Sul representado no romance. Na verdade, o retrato que Coetzee faz de Petrus incita as

contradições geradas por esta cesura, uma vez que o personagem resiste a qualquer

engessamento, mantendo-se intransponível, e desse modo, colocando à prova o racismo

e o conservadorismo que contaminam o âmbito político daquela sociedade.

O que é magistral na obra de Coetzee é que ele deixa seus personagens

livres para expressarem as posições conservadoras e liberais do quadro político de seu

país, conforme demonstram as distintas reações do professor Lurie e de sua filha Lucy

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diante da violência do estupro. Estratégia esta pouco compreendida, principalmente pela

crítica literária africana, que o acusa de reproduzir em seus textos a visão colonialista e

de manter em silêncio as vozes dos excluídos. Importante discussão que

aprofundaremos no último capítulo deste trabalho. Enfim, o que se coloca grandioso em

sua literatura é que Petrus pode ser algo radicalmente novo ou a mais antiga forma do

eurocêntrico regime do apartheid.

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2.3 O mundo justo para quem ? Talvez a história tenha um papel maior

Duas velhas trancadas no banheiro/ lá dentro de segunda a sábado/Ninguém sabia que estavam lá. Trancado no banheiro enquanto sua filha era usada. Uma canção da infância que volta para apontar um dedo acusador. Nossa, nossa !O que será que aconteceu? O segredo de Lucy; a desgraça dele.131

Quais são os limites da dignidade humana? O estupro que Lucy, a filha de

Lurie, sofre intensifica as questões decorrentes de uma vida precária na qual

sentimentos como solidariedade e compaixão, herança do ideário iluminista, são

inócuos. O ataque de que foi vítima a personagem modifica o tecido do romance,

investindo maior pressão nas tensões oriundas desse colapso ético.

Ao ser estuprada pelos três homens, Lucy é trancada em seu próprio

quarto, cujas portas se fecham para nós leitores, deixando-nos fora dos fatos sucedidos

ali. Neste lance, Coetzee explora dados significativos. Estrutura-se aí um quadro

complexo que abarca simultaneamente a própria criação romanesca, o alcance político

da palavra literária e a natureza ética deste jogo de relações.

Ao colocar seus leitores à parte do que acontece dentro do quarto, o

romance transforma o recinto propriamente em uma câmara escura, onde acontece uma

experiência humana extrema que não é acessível a ninguém, exceto aos participantes.

131 COETZEE, 2000, p.126.

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Esta tensão entre o quarto escuro e o fato de não se poder entrar estimula o

imaginário, confrontando-o com o invisível e mergulhando o leitor no cerne da criação.

Coetzee, em texto que trata das câmaras de tortura e a imaginação do escritor, cita outro

autor, John T. Irwin132, que ao definir a criação romanesca, vê o romancista como uma

pessoa que acampou diante dessa porta fechada, tal como diante de uma câmara escura,

e que enfrenta um banimento terrível, cria no lugar da cena o que está proibido de se

ver.

Para Irvin, a câmara escura é o próprio útero da arte, a fonte do imaginário

e do fascínio dos escritores. O maior desafio, segundo Coetzee, é o romancista

estabelecer a própria autoridade na produção dessas representações, isto é, imaginar a

violência em seus próprios termos: “O verdadeiro desafio é…como estabelecer a

própria autoridade, como imaginar a tortura e a morte em seus próprios termos.”133

Neste caso, o grande lance do jogo romanesco na obra de Coetzee é que

ele não o faz, não se propõe resolver o desafio, uma vez que não há na obra nenhuma

revelação explícita que descreva a ação violenta do estupro, conforme expressa o trecho

seguinte:

Você não entende, você não estava lá, diz Bev Shaw. Mas ela está errada. A intuição de Lucy está certa afinal: ele entende sim; consegue entender, se se concentrar, se se soltar, estar lá, ser os homens, entrar dentro deles, preenchê-los com o fantasma de si mesmo. A questão é: está nele ser a mulher?134

132 “To Mr.Irwin (following Freud e Henry James), the novelist is a person who, camped before a closed door, facing na insufferable ban, creates, in place of the scene he is forbidden to see, a representation of that scene and a story of the actors in it and how they come to be there.” (COETZEE:1986,p.02, trad.A.) 133 “The true challenge is (...) how to establish one’s own authority, how to imagine torture and death on one’s own terms.” (idem, 1986, p.2) 134 COETZEE, 2000, p.182.

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Todo o tempo o autor transpõe para nós leitores esta tarefa, como se

quisesse se desviar das armadilhas que indubitavelmente esse tipo de enredo provoca,

evitando clichês de figuras satânicas ou atormentadas, ou de fascínio erótico, ou mesmo,

de certo tom metafísico comuns às narrativas sobre violência .

Subliminarmente, a pergunta que Coetzee faz é: como representar esse

momento sombrio da alma? Enquanto metáfora da criação literária, como representar a

violência sem dobrar-se aos clichês que o assunto prepara? E finalmente: se é possível

à prosa romanesca uma última palavra no caminho de reconhecimento do mundo?

Se a tensão ficcional aponta para questões da criação estética e seu real

alcance da vida, também estabelece a dimensão ética como um outro relevo. O acesso à

experiência do estupro não se realiza uma vez que Lucy não se apresenta no enredo

como consciência examinada, tendo em vista que as pistas que asseguram ao

personagem sentido e referência são dadas por olhares alheios.

Entretanto, se acreditamos que os valores éticos somente são eficientes

quando compartilhados entre pessoas e não como princípio isolado de qualquer teoria,

não podemos desconsiderar que o lugar em que estamos para entender Lucy reflete no

plano romanesco o lugar possível de efetivar uma mensagem ética. A imaginação

permite colocarmo-nos no lugar do outro, entendermos o outro, buscando neste ato a

dimensão do humano em nós mesmos.

Todavia, somente temos acesso a Lucy pelos olhos alheios, essa perspectiva

reduzida, limitada por uma linguagem também reduzida ou econômica, expressa, com

efeito, a incapacidade de descortinamento da realidade e sobretudo a impossibilidade da

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linguagem em produzir verdade. Se a ética somente é possível no território comum

entre as pessoas, a inviabilidade de resgatar a palavra plena como um caminho viável

de reconhecimento do mundo, confere à ética o mesmo patamar de incertezas que

confere à condição humana – a impossibilidade de se reconhecer no outro.

Em um mundo em que Deus não mais pode ser referência e em que a razão

não pode ser tomada em abstrato, porque a vida “real”não se sustenta no abstrato,“toda

afirmação ganha a incerta estatura humana, tal como a arte e sua impossibilidade de

dar a última palavra”, como afirma o escritor Cristóvão Tezza.135

Na obra, o respeito à individualidade alheia e o cuidado pelo outro estão

ausentes do político naquela comunidade, a qual mesmo sofrendo reais transformações,

não viu alterada sua base de sociabilidade ou o modo como os indivíduos interagem

entre si. Tudo na obra indica o colapso dessas fronteiras, uma vez que não há espaço ali

para a solidariedade ou sentimentos efusivos, como ilustra o diálogo entre Lurie e Bill

Shaw :

Como você está?/ Tudo bem. Queimaduras superficiais, nada sério. Desculpe estragar sua noite./Bobagem, diz Bill Shaw. Amigo é para essas coisas. Você faria o mesmo./Ditas sem ironia, as palavras ficam grudadas nele e não se dissipam. Bill Shaw acredita que se ele tivesse levado uma pancada na cabeça e sido incediado, ele, David Lurie, iria de carro até o hospital, e ficaria esperando, sem nem um jornal para ler, para levá-lo em casa. Bill Shaw acredita que como ele e David Lurie tomaram uma xícara de chá juntos uma vez, os dois têm obrigações um com o outro. Bill Shaw está certo ou errado? Será que Bill Shaw, nascido em Hankey, a menos de duzentos quilômetros, vendedor de uma loja de material de construção, conhece tão pouco do mundo a ponto de não saber que existem homens que não fazem amigos com facilidade, cuja atitude em relação à amizade entre homens é roída pelo ceticismo? Em inglês moderno, friend, amigo, do inglês antigo freond, do verbo freon, amar. O ato de tomar chá juntos estabelece um

135 “A Indigestão da Ética” in:Folha de São Paulo, Mais!-em 05/05/2002.

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vínculo amoroso aos olhos de Bill Shaw? E se não fossem os vínculos de algum tipo, o que seria dele agora? Estaria na fazenda arruinada, com o telefone quebrado, no meio de cachorros mortos.136

Lurie é parte daquilo que ele mesmo condena, tanto sua investida sobre a

aluna Melanie, quanto o episódio do estupro traçam um paralelo emblemático do

fracasso das relações e a impossibilidade de uma ação ética frente a este cenário

desconcertante . A visão pessimista em relação à comunidade sul-africana que Coetzee

imprime em Desonra pode ser detectada alguns anos antes, ao receber o prêmio

“Jerusalém Prize for Freddom”, em 1987, quando afirmou que vivia em um lugar que

jamais compreendeu; e concluiu dizendo que em uma sociedade de escravos e senhores,

ninguém é livre.137

Nietzsche no prólogo de Genealogia da Moral138pergunta-se “de onde se

originam verdadeiramente nosso bem e nosso mal?” E prossegue, afirmando:

(...)O juízo bom não provém daqueles aos quais se fez o bem! Foram os bons mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu.139

Como definir nitidamente fronteiras que de antemão circunscrevem-se em

um diagrama de época. Quem estabelece o que é o bem e o que é o mal? Seguindo o

pensamento de Nietzsche, o juízo bom provinha dos superiores em posição que

136COETZEE, 2000, p.118. 137 “In a society of masters and slaves, no one is free. Coetzee, J.M. and Attwell, D. (eds) Doubling the Point, Essays and Inteviews. Cambrige:Harvard UP,1992 p.96 138 NIETZSCHE, 2001, p.9. 139 Idem, 2001, p. 19.

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estabeleceram para si e seus atos como bons, opondo-os a tudo que consideravam como

vulgar ou inútil. Eles tomaram para si o poder de criar valores, obtendo por meio da

linguagem a expressão deste poder:

(...)até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao ‘bom’ sentido da promoção, utilidade...E se o contrário fosse verdade? E se no ‘bom’ houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro?...De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem?De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?140

A obra Desonra instiga-nos a considerar forçosa a simplificação da divisão

dos homens entre heróis ou vilões, das mulheres entre boas ou más, do comportamento

entre virtude e vício, pureza ou licenciosidade.

No romance, a sociedade representada pela comissão universitária

movimentava-se na direção de checar ou confirmar os padrões morais que preconizava.

A comissão exigia de Lurie uma confissão pública, uma declaração cuja sinceridade

seria posteriormente avaliada pelos membros do comitê. A rigor, a convicção moral

deveria ser demonstrada não somente na forma de razões ou argumentos morais como

também na consistência da sinceridade com que o membro daquele grupo a

apresentava:

Primeiro o professor Lurie tem de fazer sua declaração. Depois nós decidimos se aceitamos essa declaração como atenuante. Não negociamos antecipadamente o que deve conter essa declaração. A declaração deve partir dele, com suas próprias palavras. Depois podemos julgar se é sincera.(...)

Eu(Lurie) disse as palavras, mas agora você quer mais, quer que eu demonstre a sinceridade delas. Isto é ridículo. Fica

140Idem, ibidem,, p.12.

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acima do alcance da lei.Para mim basta. Vamos seguir as regras. Eu me declaro culpado. E é até aí que eu vou141

Coetzee em Giving Offense: Essays of Censorship 142indaga “se nós não

podemos estar certos do que sinceramente acreditamos em contraposição ao que

meramente acreditamos, como saber no que as pessoas sinceramente acreditam?” A

pertinência desses conceitos é medida em Desonra pela reação de Lurie. Ao impor

limite à comissão, o personagem põe em cheque a legitimidade de obedecer a

procedimentos ou regras cuja origem não é clara, isto é, se provêm de padrões públicos

estabelecidos pela lei ou de convicções particulares deificadas como opinião ou hábito.

Nietzsche 143adverte para uma nova exigência, a necessidade de se averiguar

o valor destes valores: “o próprio valor desses valores deverá ser colocado em

questão.(...) até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao “bom” valor mais

elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da promoção, utilidade, influência

fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do homem).” A reação de Lurie à

comissão universitária confronta a natureza flexível que traduz aqueles conceitos,

sobretudo porque se inscrevem de acordo com o momento histórico em que estão

inseridos, refletindo os padrões cronologicamente marcados e constituídos em prol da

ordem social e da disciplina do indivíduo.

141COETZEE,2000, p.65. 142Idem, 1996, p.17. 143 NIETZSCHE, 2001, p.12.

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O episódio do julgamento instiga-nos a indagar como uma comunidade deve

se portar diante de um confronto ético? Coetzee afirma 144que “as pessoas às vezes

sentem ou dizem sentir perigo, aflição com o que eles consideram depravado ou imoral

no comportamento alheio, mesmo quando essas ações não estão diretamente atingindo

a eles, nem mesmo diretamente.” O jogo da narrativa confronta os limites entre os

sentimentos, entre aqueles que são úteis à sociedade e o próprio valor dessa utilidade.

Subliminarmente, o texto apela à dúvida e à hesitação diante da autoridade da razão,

parece nos alertar sobre o que está no consciente, pois é influência dos padrões

estabelecidos, quer se queira ou não. Nas palavras de Coetzee145:

Eu mesmo como intelectual, e as minhas respostas a um ultraje moral ou ultraje a dignidade ofendida estão emolduradas a partir de processos de pensamento e sistemas de valores que eu próprio defini.146

Quando se age deixando o imaginário fluir, se tem chance? Na obra, parece que não.

A tentativa de transgredir as regras sociais, estampando um tipo de amor que confronta o

ideal racional de cooptar a sexualidade para o terreno da ordem e produtividade

rapidamente é sacrificada pela comunidade. A impetuosa relação entre Melanie e Lurie

evoca forças que levam os sujeitos a impulsos perigosos, os quais a civilização deve

encobrir:

144“ People sometimes feel, or claim to feel, distress at what they take to be the immorality or depravity of these actions of others, even when such actions do not directly and unambiguously touch them.I myself am (and also, I would hope, to a degree not) an intellectual of this kind, and my responses to moral outrage or outrage at offended dignity are framed from within (though again, I would hope, not within) the procedures of thinking and system of values I have outlined.”(COETZEE, 1996, p.17.) 145“ I myself am (and also, I would hope, to a degree not) an intellectual of this kind, and my responses to moral outrage or outrage at offended dignity are framed from within (though again, I would hope, not within) the procedures of thinking and system of values I have outlined.”(Idem, 1996,p.18.) 146 COETZEE,1996, p.5.

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Estamos vivendo tempos puritanos. A vida privada é assunto público. A libido é digna de consideração, a libido e o sentimento. Eles querem espetáculo: bater no peito, mostrar remorso, lágrimas se possível. Um show de televisão, na verdade. 147

A proposição que se interpõe é se haveria alguma circunstância em que se

justificasse a restrição da liberdade do homem ou a intervenção em nome de

salvaguardar o moral do indivíduo? Nietzsche poderia nos responder:“(...) mal se

entende a 'natureza' enquanto se procurar uma 'morbidez' na base do mais saudável de

todos os monstros e plantas tropicais, ou até um 'inferno' que lhes seja inato. Foi assim

que fizeram até agora quase todos os moralistas.”148

Coetzee cita John Stuart Mill149 para quem “não é a sociedade que requer proteção

contra o indivíduo “marginal”, mas o indivíduo cujos direitos precisam ser protegidos,

não somente contra a tirania da legislação, mas contra a tirania dos sentimentos e

opiniões que prevalecem ou são hegemônicos. Isto é, a tendência da sociedade de impor

suas próprias idéias e práticas como leis ou regras de conduta para todos”150.

O tema recorrente em On Liberty151 é que o fim para o qual a humanidade está

garantida individualmente ou coletivamente ao interferir com a liberdade de ação de seus

integrantes é a autoproteção. Coetzee152 citando dois juristas conservadores britânicos,

147 Idem,2000, p.79. 148 NIETSZCHE, 2003, P.110. 149 John Stuart Mill, On Liberty, ed.Gertrude Himmelfarb (Harmond-sworth: Penguin, 1974), pp.68, 63. apud: COETZEE,1996, p.17. 150 “It is not society that requires protection against the deviant individual but the individual whose rights need to be protected, not only against “the tyranny of the magistrate” but against “the tyranny of the prevailing opinion and feeling”, that is to say, the tendency of society to impose its own ideas and pratices as rules of conduct for all.” 151 John Stuart Mill, On Liberty, ed.Gertrude Himmelfarb (Harmond-sworth: Penguin, 1974 apud:COETZEE, 1996. 152 (COETZEE, 1996, p.16.

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Patric Devlin e Ronald Dworkin153aponta que “o consenso da comunidade acerca de

qualquer matéria que gere indignação parece não precisar ter base moral, porém pode

ser uma composição de preconceito, aversão pessoal e a racionalidade (não

representando uma convicção, mas ódio cego), os quais são baseados no princípio

antropológico da autopreservação.”154

Em suma, Coetzee considera a censura matéria complexa de dimensões

psicológicas e políticas, que se autoproclama defensora dos interesses da comunidade e

guardiã entre a sociedade e as forças corruptoras que a ameaçam. Na verdade, para o

autor “a cura é pior que a doença” (...), pois ao “instituir a censura, o poder se desloca

para as mãos de pessoas cujo julgamento burocrático é regressivo para a vida cultural

até espiritual da comunidade, em suma, são pessoas dispensáveis para o grupo

social.”155

Ele também problematiza o aspecto psicológico dessa matéria, colocando

em questão a natureza da decisão sobre o que é porventura proibido ou não, pois

acredita que aquilo que o censor considera proibido é porque está em sua mente como

proibido e não necessariamente que o seja:

O censor age, ou acredita que atua pelo interesse da comunidade. Na prática ele freqüentemente desempenha o

153 Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously (Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1977) pp.253-54. apud: COETZEE, 1996. 154 “(...)The notion of moral position in a merely “anthropological” sense: the consensus appealed to need not have a properly moral basis, but may be a compound of prejudice…,rationalization…,and personal aversion(representing no conviction but merely blind hate).” 155 The chief of these is that, in my experience, the cure is worse than the disease. The institution of censorship puts power into the hands of persons with a judgmental, bureaucratic cast of mind that is bad for the cultural and even the spiritual life the community. COETZEE, 1996, pp. 9,10.

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ultraje dessa comunidade, ou imagina seu ultraje e atua. Às vezes, ele imagina ambos:comunidade e ultraje.156

Diante da desconfiança do mundo da razão e da cultura, quando já não se

obtém respostas do universo religioso, resta-nos a indagação urgente sobre quem de fato

perpetuará a justiça?À época da publicação de Desonra -1999-, o esforço da

comunidade sul africana estava em se colocar em julgamento157; fazer as pazes com

perdão, culpa e responsabilidade é parte de um processo de recuperação da doença do

apartheid, termo aquele comumente utilizado pelos analistas desse processo ao se

referirem ao sistema do apartheid.

Jacques Derrida em seu texto - O perdão, a verdade, a reconciliação: qual

gênero? , apresentado em uma conferência no Rio de Janeiro em 2004, faz uma leitura

do lugar do negro na África do Sul. Sua experiência pessoal com a Comissão de

Verdade e Reconciliação – TRC, o faz refletir sobre não só o homem branco, como

também o negro estão implicados em um processo de perdão e conciliação para

reconstrução de uma nova sociedade. A palavra ubuntu , utilizada pelo discurso oficial,

quer dizer somos parte um do outro, (em inglês fellowship: confraria, comunidade, co-

cidadania) traduz a própria reconciliação e “a missão da Comissão.”Derrida cita a

jornalista e poeta sul-africana Antje Krog, para ilustrar a natureza do processo social

instalado na nova África do Sul, que em seu livro célebre Country of my Skull

(literalmente País do meu Crânio) trata da adoção da constituição e da herança violenta

a qual segundo a escritora deve ser tratada a partir de uma :

156 The censors acts, or believe he acts, in the interest of community.In pratice he often acts out the outrage of that community, or imagines both the community and its outrage. COETZEE, 1996, p.9. 157 Trata-se da chamada Comissão de Reconciliação e Verdade – CRV –(Truth and Reconciliation Commission )que se formou em 1999 para apurar os crimes e erros do passado tendo em vista a criação de uma Nova África do Sul. (Recolhido do artigo de Sue Kossew. 2000)

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Necessidade de compreensão e não de vingança,uma necessidade de reparação e não de vingança,uma necessidade de ubuntu [ e o texto em inglês explica ou traduz essa palavra, entre colchetes, por “the African philosophy of humanism” ] e não de vitimização.158

O objetivo era fundar um novo estado, estabelecendo um bom termo com o

passado. Para tanto, deveria se garantir anistia para todos os ““ atos, omissões e

ofensas” associados , no decorrer dos conflitos passados, a intenções

políticas”.159Entretanto, o dilema social se concentra no êxito desta imbricada meta:

obter paz em relação ao passado, confiança no tempo presente e sentimento ético e

positivo em relação ao futuro.

Sue Kossew160 afirma que a necessidade da confissão pública de um crime

ser vista, para que dessa forma as feridas do passado sejam curadas e dê partida ao

perdão e ao arrependimento, embora não tenha encontrado aprovação universal, era um

aspecto da Comissão, TRC, uma espécie de retratação institucionalizada com o passado

segregacionista. Breyten Breytenbach, escritor sul africano perseguido pelo sistema

segregacionista, em Dogheart161descreve os membros da comissão como “cães de

Deus” e refere-se a ela como a Inquisição, definindo seu desempenho: “(…) de forma

que a memória seja escavada, moldada, iniciada e corrigida onde precisasse servir

como pilar para a nova história da nação. Nossa terra está repleta de esqueletos.”162

158 DERRIDA, 2005,p.51. 159 Idem, 2005, p.51. 160KROG, Antje. Country of my Skull (2000) apud:DERRIDA, 2005. 161BREYTENBACH, Breyten. Dogheart:a memoir.New York, San Diego and London:Harcour Brace&Company,1999,p.21. 162 “(…)so that memory may be excavated, shaped, initiated and corrected where needed to serve as backbone to the new history of the nation. Our earth is full of skeletons.”

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Sob outra perspectiva, o processo de recuperação da memória sul africana,

através da TRC é considerado essencial. Nas palavras do Arcebispo Desmond Tutu:163

“(N)A tentativa sul-africana de aceitar seu passado freqüentemente tenebroso,(...)por mais dolorosa que seja a experiência, não se deve permitir que as feridas do passado feneçam. Elas devem ser limpas com um bálsamo. Não pode haver cura sem verdade.”164

No romance, o julgamento do professor Lurie se distingue entre uma

apelação de culpa performática e um sentimento de arrependimento, e numa dimensão

mais ampla, mergulha em um universo de culpa e punição em um contexto social que

prega a reconciliação e o esquecimento. Se qualquer cultura comporta o sacrifício ou a

punição, na obra, aquele episódio congrega essas questões. Efeito da aliança entre o

discurso religioso e o discurso laico do Estado, Coetzee impregna de um ambiente

religioso o que deveria inscrever-se em outra ordem de discurso. Problematiza essas

fronteiras quando trata as noções de punição, arrependimento e perdão como alheias à

ordem do jurídico e do político:

O reitor estará disposto a aceitar a declaração com esse espírito./Que espírito?(pergunta Lurie)/ Espírito de arrependimento./Manas, já falamos dessa história de arrependimento ontem. Já disse o que eu penso. Não vou fazer uma coisa dessas. Compareci perante um tribunal oficialmente constituído, perante um braço da lei. Perante esse tribunal secular, me declarei culpado, uma declaração secular. Essa declaração deveria bastar. Arrependimento não tem nada a ver nem com uma coisa, nem com outra.

163 Arcebispo da Cidade do Cabo durante os anos 80 e ganhador do prêmio Nobel da Paz em 1984. 164 “South Africa’s attempt to come to terms with her often horrendous past(…)However painful the experience, the wounds of the past must be allowed to fester. They must be opened. They must be cleansed. And balm must be poured on them so they can heal…There can be no healing without truth.” (TUTU, Desmond The truth and Reconciliation Commission of South African report apud KOSSEW, 2000)

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Arrependimento pertence a outro mundo, a outro universo de discurso 165

Cabe ressaltar, entretanto que para Hanna Arendt166 tal premissa parte de

consideração oposta. Para a pensadora, o perdão está essencialmente na ordem dos

negócios humanos: “é preciso punir e perdoar para que a vida social não seja

interrompida”.167

Em suma, se por um lado, a visão teleológica do liberalismo crê nas forças

do mercado para ajustar quaisquer idéias ou fatos que ameacem à sociedade em prol do

desenvolvimento social, por outro, a visão religiosa tradicionalmente prefere banir tudo

aquilo visto como ameaça. O romance transita no limiar dessas questões ao traçar

paralelos entre o país pós-apartheid e sua herança social. Na verdade, está refletindo o

pensamento conservador e o liberal da África do Sul.

Ainda que Coetzee afirme no texto Taking offense que: “em nações fundadas sobre

leis há uma tendência a se imaginar que problemas sociais devam ter soluções legais e,

portanto, os tribunais possam ser usados para consertar erros históricos e corrigir

instabilidades sociais”168, o que se aponta em Desonra é que o racismo e o

conservadorismo contaminaram todas as posições políticas no país, mesmo as investidas

liberais, o que ficará mais nítido depois do estupro sofrido por Lucy.

165 COETZEE, 2000, p.69. 166 DERRIDA,J. e ROUDINESCO,E.., 2004, P.196.A Condição Humana 1983,pp.304, 305 apud: De que amanhã. Derrida, Jacques e Roudinesco, Elisabeth, 2004, p. 196. 167 Idem,2004, p.196. 168 In nations founded on laws, there is a tendency to imagine that social problems must have legal solutions, and thus that the courts can be used to right historic wrongs and correct social imbalances. (COETZEE,1996,p.25)

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O expressivo vácuo existente entre os padrões morais da universidade e do restante

do país, além de nos ilustrar que a herança cultural branca e européia somente mantém-se

na sociedade como signo da fratura , também aponta para os vestígios de legalidade que na

verdade só se justificam na autocondenação dos brancos sul africanos.

Se para que a vida não se interrompa seja necessário punir, como disse uma vez

Hanna Arendt, o personagem Lurie serve à comunidade como um bode expiatório:

“O uso do bode expiatório funcionou na prática quando ainda havia poder religioso por trás da prática. Você jogava os pecados da cidade nas costas do bode e levava o bode embora; pronto, a cidade estava limpa. Funcionava porque todo mundo entendia o ritual, inclusive os deuses. Depois os deuses morreram, e de repente era preciso limpar a cidade sem a ajuda divina. Passou – se a exigir ação real no lugar do simbolismo. Nasceu o censor, no sentido romano. Vigilância passou a ser a palavra-chave: a vigilância de todos por todos. Expurgo no lugar de purgação”. 169

A chamada razão ocidental falhou duas vezes na África do Sul. A primeira quando

da instituição do regime do apartheid que decretou a supremacia do africâner como

exemplo da hegemonia da raça branca. A segunda, quando não consegue impedir os

crimes motivados pelo racismo, independente se contra brancos ou negros, e a brutal

violência que predomina no país, que na obra chega ao limite no episódio do estupro.

O tipo de justiça que se instala aqui é avesso e torna impossível apresentar uma

crítica moral contra a violência que atinge os habitantes brancos das áreas rurais, o que

torna tudo mais deplorável ainda. Segundo Michael Kochin, 170 “a própria justiça

169 COETZEE, 2000, p.106. 170 “the very rough justice that makes it impossible to give a moral critique of the violence against rural whites makes the situation even uglier.”(KOCHIN: 2002, p.7)

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violenta torna impossível que se faça uma análise crítica da violência contra os brancos

rurais , o que faz com que a situação pareça ainda pior”.

Tradicionalmente, o braço armado do estado opressor, a polícia, não só na África

do Sul, como em diversos países, é conhecido pela truculência e abuso, principalmente

contra os setores mais desprovidos da sociedade. O que se põe aí em questão,

subliminarmente, é a cumplicidade da população branca sul-africana com a violência

desmedida patrocinada pelo Estado segregacionista ao longo dos quarenta anos do

apartheid.

Enfim, a violência rural na África do Sul não é fenômeno novo: pessoas que se

atacam, ataques que se repetem. Crimes contra brancos fazem parte de um enredo

histórico muito mais grave, que tem a ver com a história colonial daquele país. Em

depoimento ao WorldNetDaily, os fazendeiros sul-africanos Kobus Coeztee e Aletta

Klopers, respectivamente, denunciam:

É politicamente correto matar brancos estes dias. O que é estranho é o fato de que nós, fazendeiros brancos, alimentamos a população negra. Mas , veja o Zimbawe. Os líderes negros engendraram a fome contra os próprios cidadãos negros. É como se tudo fosse parte de algum horrível “plano de mestre”. Aparentemente, fazer com que negros matem outros negros de fome não incomoda a ninguém no mundo ocidental.

A comunidade mundial ficou de sobreaviso e não fez nada. Então não temos opção alguma a não ser nos defendermos. Felizmente, meu marido e eu fomos capazes de usar nossas armas de fogo para expulsá-los de nossa terra. Mas eles voltarão. 171

171“ It’s politically correct to kill whites these days. What is so strange is the fact that we white farmers feed the black population. But look at Zimbabwe. The black leaders have engineered a famine against own black citizens. It’s as if it’s all part of some horrible ‘master plan’. Apparently getting black’s to starve blacks to death doesn’t really bother anyone in the Western world.[…] The world community has stood by and done nothing.[…]So we have no choice but to defend ourselves.[…]Fortunately my husband and I were able to use our firearms to drive them off of our land. But they will be back.”(“South Africa’s White Farmers Under Siege”,by Antony C.Lobaido. WordNetDaily,06/06/2002, trad.A.)

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Aletta Kloppers expõe ao jornalista o modo como homens negros invadiram sua

fazenda e tentaram estuprar e atacar sua família. Muitas das matanças de fazendeiros

incluem a tortura, a mutilação de mulheres e o estupro, incluindo as crianças. Por outro

lado, Coetzee nos lembra que “a circulação de histórias de terror é o mecanismo que

estimula a paranóia branca sobre a sua expulsão da terra para o mar.”172 Diante desse

panorama, poderíamos, enfim, perguntarmo-nos sobre o que acontece com uma

comunidade cuja violência patrocinada pelo Estado do apartheid ainda assombra sua

memória?

Para Coetzee, a posição do intelectual deve ser sempre a de respeitar e defender as

pessoas ofendidas mesmo quando não concordam com o grau ofensivo do fato ou quando

os ultrajados em questão não representem necessariamente o lado mais fraco da questão.

Isto é, o intelectual deve considerar todo ultraje como irracional, mesmo quando o lado dos

ultrajados seja o do poder. Essa tolerância que pode parecer complacente, hipócrita ou

paternalista é uma conseqüência do secularismo racional em cujo horizonte eles vivem. Em

suas palavras: “Eu mesmo como intelectual ao formular minhas respostas a um ultraje sei

que estão emolduradas em processos de pensamento os quais eu mesmo defini.”173

Desta maneira, Coetzee aponta um paradoxo: se não se admite a natureza ofensiva

como se pode entender o outro, ao passo que se a admitimos, corre - se o risco de

emoldurarmos, categorizarmos a ofensa de acordo com os padrões definidos de antemão

pelo próprio intelectual. Por outro lado, poderíamos aferir que o respeito aos sentimentos

principalmente o de ultraje seria o segredo para evitar a anarquia. Todavia nesse caso se

172 “Circulation of horror stories is the very mechanism that drives white paranóia about being chased off the land and ultimately into the sea.” (COETZEE, 2001, p.256,trad. A.). 173 COETZEE, 1996, p.05.

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interpõe uma dúvida: quando as pessoas afirmam acreditar em algo de modo sincero, ou

melhor, quando podemos estar convictos da sinceridade de nossos sentimentos, como saber

no que os outros acreditam? O esforço estabelece-se na desconstrução da própria noção de

sinceridade para que dessa forma possamos mostrar a sinceridade do outro, incluindo a

nossa própria, o que envolve um grau de tolerância em relação ao direito de se ofender e de

sentir-se ofendido.

A África do Sul, hoje, é uma sociedade que busca o equilíbrio, a equidade, as

relações justas entre brancos e negros; e que se sabe devedora de um passado que tenta

entender. Entretanto, nesta África pós - apartheid, o africano é julgado de acordo com seus

próprios padrões, o que gera um panorama de complexo entendimento. Conforme diz o

escritor Breyten Breytenbach, a África do Sul “(...) é um país que escorregou direto da pré-

humanidade para a pós-humanidade”.174

A despeito de tal complexidade que dada questão instaura, para a análise da obra

Desonra, o importante é entender se a respeito da violência de que trata o livro, os

estupradores, ao invadirem a fazenda de Lucy, estão agindo sob vingança ou não. Isto é, se

o episódio bárbaro do estupro trata da vingança da África Negra motivada por uma espécie

de reparação histórica ou se a violência negra é inevitável diante de circunstâncias

socialmente tão fragilizadas?

Lurie ao reivindicar a punição dos invasores, aponta todo o tempo para o que

segundo ele qualifica aqueles atos hediondos, uma espécie de herança – a determinação

histórica:

Foi tão pessoal, ela[Lucy] diz. Foi tudo feito com um ódio tão pessoal.Foi isso o que mais me chocou.O resto era...de

174 (…)a country that has slid straight from prehumanity to posthumanity.”(COETZEE, 2001. p.250)

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se esperar.Mas por que eles me odiavam assim? Nunca tinha visto nenhum deles.

É a história falando por meio deles, ele[Lurie] arrisca afinal.Uma história de exploração.(...) Pode ter parecido pessoal, mas não era.Vem dos ancestrais.175

.................................................................................................

Se fossem brancos, você não falaria desse jeito (...) Mas está falando é de uma coisa nova. De escravidão. Eles querem que você seja escrava deles.176

Lucy, por sua vez, crê que deve viver entre eles, não quer reagir nem mesmo sair

daquelas terras, em parte crê que o estupro é o preço para continuar ali. A posse de seu

corpo pelos nativos negros atua no texto como metáfora da antiga tomada de terras pelos

brancos colonizadores:

Mas não tem outro jeito de encarar a coisa, David? E se esse for o preço que é preciso para continuar? Talvez eles entendam assim; talvez eu entenda assim também.Eles acham que eu devo alguma coisa.Se consideram cobradores de um débito, cobradores de imposto.Por que eu deveria poder viver aqui sem pagar? Talvez seja isso que eles dizem a si mesmos. 177

Na verdade, o romance põe em cheque os limites entre o que é pessoal e o

impessoal. Como, hoje, diferenciar se o que motiva a violência é responsabilidade ou

culpa (termo bastante utilizado pelos críticos) de um projeto social e sua herança histórica

dentre aquilo cuja motivação é absolutamente particular?

Sendo a violência negra inevitável, como reagir a ela? Subliminarmente Coetzee

deixa seus personagens livres para expressarem, de um lado, o medo racista e, de outro, a

sensação de impotência dos brancos sul-africanos.Os negros são creditados a uma

175 COETZEE, 2000, pp.177, 178. 176 Idem, ibidem, p.176 177 Idem, 2000, p.180.

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resposta vingativa, e é nesse sentido que o romance descobre e dramatiza o que une as

políticas diferentes entre David e Lucy, conforme James Wood.178

Para o crítico, ambos têm expectativas baixas e deprimentes sobre o futuro do país

e crêem que os brancos agirão de uma maneira mais nobre que os negros, mas expõem

um tipo de realismo cínico que é de fato uma variedade de culpa racista, como se o crime

dos negros e a punição dos brancos fossem, de fato, inevitáveis. Acreditam na punição:

Lurie, trancafiando os transgressores, Lucy, vivendo ela mesma entre eles.

178 WOOD, 2001.

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2.4 Vergonha – Disgrace “Mas as mãos de um dos senhores seguraram a garganta de K. enquanto o outro lhe enterrava profundamente no coração a faca e depois revolvia ali duas vezes. Com os olhos vidrados conseguiu K. ainda ver como os senhores, mantendo – se muito próximos diante de seu rosto e apoiando – se face a face, observavam o desenlace. Disse: - Como um cachorro! – era como se a vergonha fosse sobrevivê – lo.”179

Na obra, uma visão severa contempla todas as coisas e põe a nu a impossibilidade

de se estar no mundo com alguma autonomia. Lurie é um personagem perplexo e

enfraquecido diante de forças que lhe escapam ao controle, imerso em um universo de

valores degradados ou que não reconhece. Não há nenhuma utopia constituída em Desonra.

Percebe-se, sim, um modo crítico, onipresente e opressivo de representar a ausência de

liberdade.

O personagem Lurie, ao defender-se perante o “tribunal” da universidade, reivindica o

direito à “[A]liberdade de expressão. A liberdade de ficar calado.” Deste modo, não requer

nenhum favorecimento; resiste ao “jogo” em nome de um princípio - o que é totalmente

impossível no universo de “injustiça administrativa”, conforme retrata a fala da personagem

Rosalind, ex-mulher de Lurie: “[...]você já devia saber que julgamentos nada têm a ver

com princípios[...].”180– Por outro lado, Lucy nada reivindica, não há a quem ou ao quê

reivindicar.

Reivindicar é uma ação que se liga ainda à concepção de Estado, de Ordem cujas

noções de injustiça e justiça estão alçadas a normas verificáveis e analisáveis que se

subscrevem sob leis éticas ou em ausência delas. Segundo Zigmunt Bauman, “justiça 179 KAFKA, 1963, p.230. 180 COETZEE, 2000, p.212.

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significa redenção, recuperação de perdas, reparação do dano, compensação pelos males

sofridos – que corrija a distorção causada pelo ato de injustiça.”181

Segundo o crítico Kochin, 182Lucy quer renunciar a toda esperança humana de honra

e salvação. Na obra é nítida essa formulação quando assentimos à visão do personagem

Lurie, para quem a renúncia da filha se inscreve na semântica da subserviência ou da

vergonha: “Lucy pode ser capaz de curvar-se à tempestade;ele não, não com honra”183

A despeito dessa impressão, Lucy pode representar um modo de resistência ao

estado de coisas ao qual não se pode evitar, se considerarmos que, de todas as catástrofes

ocasionadas pela ação humana, ainda que haja o sentimento consensual que condena os

efeitos graves desses atos e alerte a sua necessária prevenção, é notória a crescente

impotência para impedi-los.

A personagem, na verdade, não “quer renunciar a toda esperança humana”,

simplesmente ela não crê no sentimento de esperança: “A culpa e a salvação são coisas

abstratas. Eu não funciono em termos de abstrações.” 184diz ela.

Analogamente ao famoso personagem de Kafka, Joseph K., nas linhas finais de O

Processo, quando sucumbe aos seus carrascos “como um cão!”185, Lucy parece dar a

mesma dimensão impiedosa à existência de que trata aquele romance. Com efeito, Coetzee,

em Desonra, emprega as mesmas palavras no diálogo entre ela e seu pai Lurie:

(…)Talvez seja isso que eu tenha que aprender a aceitar. Começar do nada.Com nada. Não com nada, mas…Com nada. Sem cartas, sem armas, sem

181 1998, p.75. 182 2002. 183 COETZEE, 2000, p.235. 184 Idem,2000, p.130. 185 Kafka,1963, p. 230.

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propriedade, sem direitos, sem dignidade.Feito um cachorro./É, feito um cachorro.”186

Se Joseph K em O Processo resistiu pela verdade e sucumbiu, finalmente, “como

um cão”, às regras do jogo burocrático do Estado, Lucy em Desonra não resiste, segue

como um cão. O cão na obra de Kafka, segundo Löwy ,187representa a servidão à

autoridade. Desse modo, sucumbir aos carrascos é uma ação carregada de efeito moral,

como ilustra a seguinte passagem:“a vergonha que deve sobreviver a Joseph K(última

palavra de O processo) é a de ter cedido sem resistência a seus carrascos”; em Desonra,

no entanto, somente como um cão é possível seguir, sem resistência. A força de tal

personagem consiste em sua própria vergonha. A “vergonha” de Lucy, fazendo aqui um

paralelo com Kafka, desconstrói o sentido próprio do termo e transforma-se em energia

vital. Não à toa o termo dá título à obra – Disgrace .

Para Lucy, não se coloca a questão da lei, a ausência desta é a questão e, na

ausência, todas as diferenças se nivelam. Ela não esmorece diante das regras do jogo,

entretanto não resiste, opta por seguir “como um cão”, de modo que a “servidão” da

personagem fizesse parte de um tipo de “anarquismo” possível, uma espécie de ato

profanatório, que confronta e destitui o que é totalitário para a reconstrução de um outro

estado de coisas.

Vítima da História e consciente de que a liberdade está além da face política

daquela sociedade, uma vez que esta não dá conta das contradições geradas pelo hiato entre

as ações humanas e os valores éticos, Lucy é capaz de dar forma a esse novo “outro”. Sua

aparente desistência aponta para uma inusitada ordem de coisas: a possibilidade da

186COETZEE, 2000, p.231. 187 LOWY, 1989, pp.82,83.

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instauração de um conflito radical, isto é, de uma nova dinâmica que não seja

“dialetizável”, que escape a uma economia de “lados” em que a luta entre opostos aponte

para uma solução dada, definida, limitada pelo próprio jogo.

Lucy ocupa uma posição “dentro mas não dentro” – uma não posição- cujo poder

está na aparente fraqueza. Se a personagem parece servil, esta aparência somente toma

forma consoante a lógica que o pensamento racional, fascinado pelo equilíbrio e pela

identidade, tolera como preâmbulo a uma reconciliação na qual a diferença, estará,

finalmente, ajustada.

Entretanto, Lucy se insere como potência ambígua, dela nada pode ser dito de

unívoco ou de definitivo, seu percurso circunscreve-se em sua radicalidade, em sua força

explosiva que instiga e convida à criação de outras maneiras de se pensar e viver que

escapam da tensão entre opostos.

Se considerarmos que a servidão existe na medida em que existe a opressão, a

personagem se recusa a escolher lados, se “posiciona” na contramão da reciprocidade. A

obra subliminarmente indica que combater a opressão sem resistir é a única forma de

destruí-la, de privá-la de significado, uma vez que reagir à opressão é imputar-lhe sentido, é

sustentá-la e consolidá-la.

Em suma, a não resistência da personagem é a condição para a criação de um novo

outro que supere a reprodução, a reação de certo modo especular à terrível violência que lhe

fora infligida. Enquanto Lurie necessita acorrentar-se firmemente aos frágeis laços de sua

identidade, ancorado na racionalidade e em uma consciência forjada pela memória e a

tradição, Lucy arrisca-se, sabe que a existência perdeu o sentido positivo da “revelação” da

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dimensão de transcendência, em suas palavras: “(…) não existe nenhuma vida elevada.A

única vida que existe é esta aqui.Que a gente reparte com os animais.(...).”188

A personagem é desenhada pelo opaco contorno do mundo presente – como

fotografia da condição humana. Lucy está no lado invisível, oculto que constitui o lado

inverso do dado, em uma dimensão similar ao forro do real. Ela tem consciência de que,

tomando emprestadas as palavras de Walter Benjamin “a experiência permitida não é

senão o [seu]nada.” 189

188 COETZEE, 2000, p.86. 189 LOWY, 1989, p.72.

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2.5 Ousar pensar o futuro

“A pessoa que não consegue enfrentar a vida sempre precisa, enquanto viva, de uma mão para afastar um pouco de seu desespero pelo seu destino... mas com sua outra ela pode anotar o que vê entre ruínas, pois vê mais coisas, e diferentes, do que as outras; afinal, está morto durante sua vida e é o verdadeiro sobrevivente.”190

Embora não haja uma causa admirável em Desonra, pois não existem

vencedores, nem perspectivas minimamente otimistas que possibilitem no momento

certo alguma espécie de sensação redentora, o esforço da análise aqui se concentra em

provar que Lucy – que quer dizer luz - é um caminho possível de futuro, valendo

lembrar de antemão, que esta idéia não se soma a um tipo de visão de mundo segundo a

qual o bem sempre prevalecerá.

Ao contrário, em Desonra, todas as contradições e antinomias da vida

permanecem irreconciliáveis e problemáticas, imersas em um ambiente pouco

hospitaleiro. A inevitabilidade do destino sombrio dos personagens na obra somente se

quebra, ainda que sutilmente e com nenhuma visibilidade, com a gravidez de Lucy. Ao

desenhar para esta personagem tal contorno, Coetzee parece brincar, mais uma vez, com

as fronteiras pré - delimitadas dos valores de nossa cultura ocidental. Isto é, a gravidez

da personagem resulta exatamente do ponto onde o bem e o mal se encontram. E se

misturam. Ainda que a vida em gestação demarque a violência e o horror de que a

personagem foi vítima, entretanto, também guarda um significado de imprevisível

190 KAFKA, 1921, apud ARENDT, 2003, p.148.

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futuro. É justamente essa marca de imprevisibilidade que garante um sentimento de

esperança no que tange às relações humanas: “ser uma pessoa boa” é o que espera

Lucy:

Talvez as coisas mudem quando a criança, ele[Lurie]faz um minúsculo gesto na direção da filha, da barriga da filha, nascer.Afinal será um filho desta terra.Não vão poder negar uma coisa dessas./Você já ama o bebê?/O bebê?Não. Como poderia?Mas vou amar.O amor cresce, basta confiar na Mãe Natureza.Estou decidida a ser uma boa mãe, David.Uma boa mãe e uma boa pessoa.Você devia tentar ser uma boa pessoa também./Uma boa pessoa. Bela resolução a ser tomada, em tempos sombrios.191

O algoz transformado em vizinho não poderia ser um primeiro passo a se

exercitar o amor? ? Lucy que inicialmente se caracterizaria como personagem

desgarrado, fruto de uma herança trágica, que por assim dizer, perdeu a perspectiva do

encontro com o outro; está preparando-se para ser boa pessoa, pronta para um outro

ainda em gestação e do qual nada consegue prever, apoiando-se somente em sua

convicção na própria natureza. Lucy não desiste, é intransigente e não subscreve sua

consciência, resistindo autonomamente, sobretudo quando parece estar mais do que

nunca impotente e resignada:

Pare, David!Não quero ouvir essa conversa de peste e fogo.Eu só estou tentando salvar minha pele./Então me esclareça.O que está tentando é conseguir alguma forma de salvação particular?Quer expiar os crimes do passado sofrendo no presente?/Não. Você está me interpretando errado. Culpa e salvação são coisas abstratas. Eu não funciono em termos de abstrações. Enquanto não fizer um esforço para entender isso, não tenho nada para dizer.192

191 COETZEE, 2000, pp.242,243. 192 Idem, p.130.

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Ao afirmar “não ter nada a dizer”, seu silêncio, na realidade, multiplica as

versões , projetando e produzindo novas possibilidades que inviabilizam qualquer chão

seguro para ancorar certezas, assentar a razão e assegurar a crença na firmeza das

identidades. Lucy é o próprio turbilhão, é a força motriz que conduz o texto a novas

perspectivas.

“Pode – se escapar da História?” Essa é uma questão central em Desonra,

segundo a Academia Sueca. Se a personagem de Lucy é complexa porque não evita as

armadilhas que a história lança, pelo seu estado de penitência diante da violência de que

foi vítima e paradoxalmente da qual é também algoz; ela também é sinuosa e escapa de

atitudes que ratificariam a lógica de um sistema social, que a rigor não funciona. Na

verdade, o silêncio de Lucy é bastante eficaz, porque reflete sua abstenção diante da

história, sua recusa a escolher lados do político daquela sociedade. Nietzsche, no

aforismo 26 do capítulo “Incursões de um extemporâneo” do livro Crepúsculo dos

ídolos, nos diz :

Não nos estimamos mais o bastante quando nos comunicamos.Nossas vivências próprias não são de modo algum tagarelas.Não poderiam comunicar-se se quisessem.Falta-lhes a palavra.[...]A fala, ao que parece, só foi inventada para o que é ordinário, mediano, comunicável.Com a fala vulgariza-se imediatamente o falante.-Extraído de uma moral para surdos-mudos e outros filósofos.193

Lucy escapa à vulgarização. Se considerarmos, tomando por base o

pensamento de Jacques Derrida que nada escapa à história enquanto discurso, podemos

concluir que o silêncio da personagem a localiza em um “além da história”, em um

193 NIETSZCHE, Götzen-Dammerung, in op.cit.,vol.6, p.128 apud Nove Variações Sobre Temas Nietzschianos. FERRAZ, Maria Cristina Franco -Rio de Janeiro:Relume Dumará,2002, p.80.

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outro pouco reconhecível para quem ainda se inscreve nos moldes de nossa herança

cultural.

Em Givving Offense: Essays on Censorship,194 Coetzee analisa o espírito de

resistência presente na obra de Erasmo de Rotterdan. Ele aponta a dificuldade em

ajustar o texto do filósofo holandês a qualquer discurso, uma vez que se lida com um

tipo de texto em confronto com poderes de interpretação cujos significados desdobram-

se em seus próprios ‘moldes’ de significados. O elogio ao discurso flutuante da loucura

nada mais é que o árduo esforço de Erasmo em combater no próprio campo político. O

texto do filósofo, segundo Coetzee, praticamente desarma qualquer um que

passionalmente decida tomar partido pela causa erasmiana, tomando para si a posição

do conhecedor, do detentor do saber ou da verdade. Na verdade, o poder de seu texto

está na própria fraqueza, na sua jocosa abnegação do status de grande-falo, na posição

evasiva de estar dentro/fora do jogo ao mesmo tempo, na simulada fraqueza de seu

poder de crescer, de propagar-se, de gerar erasmianos.195Erasmo produz um tipo de

texto que recusa à cooptação.

194 COETZEE, 1996, p.83-103. 195“ What I try to bring forward is an extraordinary resistance in the Erasmian text to being read into and made part of another discourse. We are dealing here with a text in confrontation with powers of interpretation that mean to bend it to their own meaning.[…]The discourse of Erasmus’s Protean Folly is only by the most strenuous effort wrestled to the field of politics:Erasmus vitrtually disarms anyone who passionately decides to take up the Erasmian cause by elevating him in advance to the status of one knows. Instead, the power of the text lies in its weakness – its jocoserious abnegação of big-phallus status, its evasive (non)position inside/outside the play-just as its weakness lies in its power to grow, to propagate itself, to beget Erasmians.”(Idem,1996, p.173)

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Em O Elogio da Loucura196 , famigerada obra daquele filósofo, existem

dois tipos de louco, aquele que se lança à rivalidade e o que se coloca fora dela, sendo

este o mais problemático, dito tolo, que exerce um tipo de êxtase fora da cena197,

ocupando uma posição não dada, não definida, limitada pelo jogo da vida. Aqui então se

esclarece a referência a esse pensador, que a que tudo indica é uma influência forte na

obra de Coetzee (leia-se: seu posicionamento intelectual nos tempos do apartheid e a

forte reação crítica à sua obra da chamada crítica engajada, tratada no último capítulo

desta pesquisa) e aqui, na construção do personagem Lucy. Em suma, estar dentro ou

fora do sistema constitui uma economia de lados, esse lugar do não-lugar é o que

projeta Lucy, que se posicionou em um espaço de silêncio que anula o processo de

reciprocidade. Ao recusar-se checar o “crime”, recusa-se a reiterá-lo e desse modo,

perpetuar inevitavelmente o político e a ordem.

André Brink, romancista sul-africano, dissidente intelectual que entre os

anos de 1960 e 1970 rejeitou a tutela de um governo que se dizia protetor do povo,

instalando-se contra o aparato de censura daquele país, afirma em um ensaio publicado

em 1984:

196 Elogio da Loucura,(dedicado a Thomas More) é um livro que apresenta a loucura como uma deusa que conduz as ações humanas. Identifica a loucura em costumes e atos como o casamento e a guerra. Diz que é ela que forma as cidades, mantém os governos, a religião e a justiça. Ele critica muitas atividades humanas, identificando nelas mediocridade e hipocrisia. Erasmo de Roterdã nasceu Desidério Erasmo, em 1467 e morreu em 1536. 197 A título de curiosidade, Coetzee, em recente(maio de 2010) Festival de Homenagem aos seus 70 anos, em Amsterdam, na Holanda , leu o que pode tornar-se um conto ou mais provável, um romance, intitulado The old woman and the cats, nosso autor volta a temas de sua predileção. A história trata da visita de um filho, professor na meia idade, a sua velha mãe. O filho se pergunta , logo na sua chegada, “por que morar em uma cidade tão longe, difícil de chegar, sozinha, por que tudo relacionado a minha mãe tem que ser tão complicado?”Escritora e um tanto excêntrica, a mãe mora em uma pequena cidade da Espanha, com muitos gatos selvagens que por pouco não foram mortos pela população. Com ela reside também o bobo exibicionista da cidade, a quem ela acolheu, responsabilizando-se por ele e evitando sua expulsão do lugar.(Relato colhido de uma pesquisadora participante do Festival em Amsterdam)

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A ordem totalitária depende, para sua própria existência, de um equilíbrio precário. Sem o herético, o rebelde, o escritor, o estado se desintegra:ainda assim, ao tolerá-lo, o regulador sela igualmente seu destino.Por essa razão o sistema todo-poderoso do Grande Irmão (em 1984 de George Orwell)desaparece uma vez que ele quis erradicar o dissidente – mas, não podia passar sem ele.198

Lucy não é dissidente, nem rebelde, representa tão somente a possibilidade

de reinserção do sujeito numa ordem ainda intangível. Derrida, no texto Imprevisível

Liberdade199nos diz que “a relação do ser vivo com o outro é sempre incalculável.”200

Em suas palavras:

O outro, a chegada do outro é sempre incalculável.Isso não deixa de produzir efeitos na máquina, mas não pode ser calculado pela máquina.É preciso pensar, que quer dizer aqui inventar, o que for preciso para não fechar nossos olhos diante da máquina e diante do extraordinário progresso do cálculo, compreendendo ao mesmo tempo, no interior e no exterior da máquina, esse jogo do outro, esse jogo com o outro.Uma vez aceito seu princípio e entregue à exposição do outro – portanto ao acontecimento que vem nos afetar, portanto a esse afeto que é aquilo pelo que se define a vida -nesse momento, é preciso se arranjar para inventar o advento de um discurso capaz de apreender isso.

Talvez seja com efeito um dos nomes da coisa: acolher, da forma inventiva,

acrescentando algo seu, (este) que vem à sua casa, este que vem a si, inevitavelmente, sem

convite. A figura de Petrus e o episódio do estupro colocam Lucy no correto lugar dentro

da esfera de humanidade. O que poderia “resultar numa imobilidade”, tomando

emprestadas as palavras da professora e pesquisadora Beatriz Resende ao tratar sobre o

chamado trágico contemporâneo,201 resulta em um “desejo profanador,” conceito cunhado

198“The totalitarian order depends for its very existence on a precarious equilibrium. Without the heretic, the rebel, the writer, the state crumbles: yet by tolerating him, the ruler equally well seals his fate.At least by implication,[in George Orwell’s 1984]Big Brother’s mighty system disappears because he wanted to eradicate the dissident-but could not do without him.”((Literatuur in die strydperk.1985, ,p.16) apud COETZZE ,1996, p.207, trad.A.) 199 DERRIDA, 2004, p.75. 200 Idem, 2004, p.75. 201 In:O Globo, Prosa e Verso, p.2, publicado em 30/08/2008.

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pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, sobre o qual iremos tratar no capítulo O Lugar da

Arte.

Somos seres que simulam, que inevitavelmente reagem à própria

vulnerabilidade engendrando mundos de sentidos, recobertos por certo efeito de

naturalização. Procedemos assim provavelmente como estratégia de distinção de nossa

própria humanidade, portanto somos prospectivos e isto serve como proteção ao

perecimento, uma espécie de mecanismo que retarda a iminência da morte. Inventamos

civilizações e somos capazes de construir espaços de permanência para aplacar a força

amoral da natureza.

Desse modo, se consentimos que nossas existências são ditadas pelos simulacros, e

que sem ficções sociais não há sociedade, é inegável a força que isso provoca, lançando-

nos em múltiplas possibilidades projetadas ao infinito, oferecendo-nos o extravio,o

incalculável,o indecidível e – talvez- uma experiência única: a de desvencilharmo-nos,

finalmente, da massacrante ditadura dos sentidos consentidos, nos instigando, enfim, a

ficcionalizarmos outros, o que inevitavelmente conduziria as sociedades para novos

sentidos e para uma nova liberdade.

Se há uma mensagem ao futuro dos homens nesta obra, ela se concentra na

personagem Lucy. Ao escolher pela vida do filho indesejado, fruto da violência do

estupro, em um instante a personagem recria uma possibilidade de futuro. Um futuro

imprevisível, marcado pela instabilidade e pelo desamor, mas que traz consigo a força

da convicção. Afinal, não foi sob uma irrefreável convicção na razão que muitas

transformações se operaram na chamada modernidade? Lucy, no entanto, confia na mãe

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natureza, uma mudança conveniente de paradigma, que suscita outros recortes cujo

aprofundamento caberia uma outra pesquisa.

A escolha de Lucy é prosseguir, deixando sua “casa” aberta para o que

chega imprevisivelmente.Tomando as palavras de Derrida:

A hospitalidade pura ou incondicional supõe que o que chega não foi convidado para ali onde permaneço senhor em minha casa e ali onde controlo minha casa,meu território, minha língua, lá onde ele deveria(segundo regras da hospitalidade condicional , ao contrário) se curvar de certa forma às regras em uso no lugar que o acolhe.A hospitalidade pura consiste em deixar sua casa aberta para o que chega imprevisivelmente, que pode ser um intruso, até mesmo um intruso perigoso, eventualmente suscetível de fazer o mal.202

Lucy se insere nesta nova ordem lógica de que trata o filósofo, cuja melhor

medida é sua desmedida extraordinária. Em suas palavras: “Preciso de paz à minha

volta. Estou pronta para fazer qualquer coisa, qualquer sacrifício, para ter paz.”203 A

personagem Lucy emerge estrategicamente destas temporalidades diversas; e segue

pelas margens, numa tensão contínua e ininterrupta – para ter paz?

202 DERRIDA, 2004, p.77. 203COETZEE, 2000, p.234.

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Capítulo 3 -O LUGAR DA ARTE ou o lugar da paixão A tentação de Ivan karamasov204

Suponhamos, pergunta Ivan Karamazov a seu irmão Alyosha, personagens da famigerada obra de Fiodor Dostoievski, que seja necessário, para que os homens sejam eternamente felizes, que seja inevitável e essencial torturar durante uma eternidade uma pequena criatura, tão somente um menino, nada mais que um. Consentiria isso?205

Em Desonra há um jogo tenso entre o considerado selvagem e o dito

civilizado, na ordem do impulso e da razão, do desejo e da lei, do humano e do animal,

do colonizado e dos colonizadores, por exemplo. De uma maneira geral, podemos partir

da premissa de que a tensão entre esses pólos é moldada por uma natureza malfazeja,

conforme ilustra o trecho: “Temos de ficar com medo? Ele [Lurie] murmura./Não sei.”

[responde Lucy].206

Em uma época com pouca visibilidade, na qual novas configurações

transitam entre antigos códigos, a dinâmica violenta desse quadro social leva todos a

uma espécie de xeque-mate histórico, quando é:

Um risco possuir coisas: um carro, um par de sapatos, um maço de cigarros. Coisas insuficientes em circulação, carros, sapatos, cigarros insuficientes. Gente demais, coisas de menos. O que existe tem de estar em circulação, de forma que as pessoas possam ter a chance de serem felizes por um dia. Essa é a teoria. Não a maldade humana, apenas um vasto sistema circulatório, para cujo funcionamento piedade e terror são irrelevantes. É assim que se deve ver a vida nesse país: em seu aspecto esquemático. Senão se enlouquece. Carros, sapatos; mulheres e para o que acontece com elas.207

204 DORFMAN, Ariel –título do artigo publicado em O Globo, 09/05/2004. 205 Extraído do artigo “A Tentação de Ivan karamasov”,em O Globo,09/05/2004. 206 COETZEE, 2000, p.107. 207 Ibidem, p.114.

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Quando os sentimentos de piedade e terror são irrelevantes, os seres

humanos são jogados em uma esfera suspensa, atemporal, desenraizada, em que os

pilares históricos e culturais indefinidos, indicam imensa decomposição das noções

clássicas de que a razão se valia para traçar suas coordenadas, como bem ilustra o

trecho a seguir:

Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês nada lhe valem na África negra. Está desamparado, um alvo fácil, um personagem de cartoon, um missionário de batina e capacete esperando de mãos juntas e olhos virados para o céu enquanto os selvagens combinam lá na língua deles como jogá-lo dentro do caldeirão de água fervendo. O trabalho missionário: que herança deixou esse imenso empreendimento enaltecedor? Nada visível.208

Trata-se de uma época em que a verdade desdobrou-se em relatos múltiplos

e por inúmeras vezes esvaziados. O sujeito constituído também pela linguagem

desestabilizadora de sentidos sofre os efeitos desses deslocamentos e se pergunta em que

tempo e espaço deve prosseguir ou que categorias de tempo e espaço devem ser recriadas

quando a violência é imperativa e desfaz quaisquer traços de familiaridade, traços estes

herdados do antigo sonho romântico ou teológico de alcançar uma unidade constituída.

É curiosa a sociedade sul-africana do apartheid que por quase quarenta anos

engendrou um projeto segregacionista fundado em um aparente paradoxo – tornar o

desejo indesejável.Coetzee nos chama a atenção a respeito deste termo:

Indesejável é uma palavra curiosa.O significado “não ser desejado” está deslocado da maioria dos adjetivos iniciados por un/in e terminados por able/ible. Inexplicável significa “incapaz de ser explicado”mas, indesejável certamente não significa “não ser capaz de ser desejado”. Pelo contrário, um apetite voraz para os livros ou quadros ou idéias sob

208 COETZEE, 2000, p.111.

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investigação é precisamente o que o censor busca refrear. Em seu léxico, indesejável significa “o que não deve ser desejado” ou mesmo “o que não é permitido ser desejado.209

Em Desonra, um sombrio desejo engole tudo com sua garganta negra e norteia o

curso do enredo: pelo desejo incontido, o professor foi julgado e sumariamente

sacrificado por seus colegas da Universidade; pelo mesmo tipo de impulso, Lucy foi

estuprada e definitivamente humilhada.

Se em um passado nem tão distante, o desejo constituía um espaço privilegiado de

liberdade, quando gerações e gerações de poetas reivindicavam do imaginário o fluir de

desregradas fantasias, hoje os homens se encontram condenados a seus efeitos perversos e

querem se livrar dele. Pelo menos é o que nos diz Coetzee, nas palavras do personagem

Lurie: “o desejo é uma cruz que se podia muito bem viver sem.” 210

Em contrapartida, poderíamos nos perguntar de que parte de nós emerge a vontade

de torturar, infligir uma dor a outro, oriunda do próprio desejo? Quais são essas forças da

natureza humana que se mascaram cotidianamente para refrear nossos ímpetos mais

recônditos? “Freud considerava inextirpáveis as pulsões de morte e de destruição, a

“crueldade” originária do “sadismo’ ou do “masoquismo.” Ele próprio teve dificuldades

em deduzir logicamente as conseqüências éticas ou políticas quanto ao que chama de

cultura ou civilização”, nos diz Jacques Derrida.211

209 “Undesirable is a curious word. In the meaning “not to be desired” (OED) it is out of line with most English adjectives beginning un-/in- and ending – able/ible. Inexplicable means “not able to be explained” but undesirable does certainly not mean “not able to be desired”. On the contrary, an eager appetite for the books or pictures or ideas under interrogation is precisely what the censor seeks to curb. In his lexicon, undesirable means “that ought not to be desired” or even “that may not be desired”.” (COETZEE: 1996, Preface and Acknowledgments p.VIII, trad. A.) 210COETZEE, 2000, p.106. 211 2004, p.148.

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Coetzee, ao analisar no romance de Nadine Gordimer, Burger’s Daughter de

1979, A Filha de Burger, o episódio de espancamento de um burro por um homem

negro, o qual remete, segundo ele, ao episódio do espancamento dos cavalos em Crime

e Castigo, de Dostoievski, chama a atenção para uma dimensão cuja pretensa

racionalidade do sujeito é difícil de se entrever: “O espetáculo vem das entranhas do

inferno de Dante, para além do padrão da moralidade. Porque a moralidade é

humana, enquanto que as duas figuras presas à carroça pertencem a um mundo

maldito e desumano.” 212 Sua análise prossegue indicando a necessidade de um tempo a

ser constituído no qual a humanidade será restaurada, retornando ao âmbito do

julgamento moral, ao que Coetzee sabiamente reconhece como impasse, pois não

acredita em soluções.

As noções de humanismo que acompanham tal raciocínio, isto é, de valorização

sobretudo das capacidades humanas não se inscrevem nesta análise em uma

compreensão universal. Ao aprofundarmos tal discussão,o que não se coloca aqui,

teríamos que aprofundar termos afins como ‘humanidade’ e ‘homem’ e a “história” que

delimita tais questões.

De modo bem generalizante, trataríamos primeiro dos antigos gregos, para quem

o homem é um animal racional; depois, já no século XVII lidaríamos com a filosofia

de Descartes em cuja acepção do termo ‘homem’ toma a forma da razão absoluta como

a própria medida do ser. Depois traduzido no Renascimento pelo seu empenho em

212 “The spectacle comes from the inner reaches of Dante’s hell, beyond the cope of morality.For morality is human, where as the two figures locked to the cart belong to a damned, dehumanized orld.”(COETZEE, 1986, p.5 ,Trad.A.)

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assegurar o domínio e a glorificação do homem sobre a natureza, sobrepondo uma certa

cultura e um certo modo de ser, ditados então como modelos universais.

Enfim, esse ideal de civilização baseado em um espírito refinado de conduta

moral, de repressão dos impulsos e emoções, cuja universalização de valores

pretensamente conforma toda a humanidade em um ideal civilizador utópico, reduziria a

análise aqui a uma visão melancólica, a qual não se subscreve a obra de Coetzee.

Segundo Ronaldo Lins213a obra desse autor “ comenta o desgaste de valores e é

natural que faça dele o seu centro, escapando assim pela porta dos fundos, dos

impasses do seu tempo.(...)Com uma poderosa intuição, o autor de Desonra toca na

ferida do conformismo, como toca na ferida do inconformismo, ambos alvos da

profundidade de suas reflexões.”

A partir desse panorama e refletindo sobre a idéia de fraternidade, a idéia da

violência é imperativa. Resta-nos admiti-la como um efeito trágico da experiência

humana ou contrapô-la a uma racionalidade que permita ao homem decidir pelo que é

certo ou pelo que é errado. Quantos de nós, afinal, consentiríamos a violência quando

esta recaísse sobre uma espécie de jogo tenso e perverso entre a cidade e a selva, no

qual as regras da selva implodem às do colonizador e as leis do civilizado punem

inescrupulosamente quem as descumpre?

Poderíamos analisar tal disputa nos conformando com a visão corrente mais

ingênua, segundo Fausto Wolf,214de que bárbaros ou selvagens são aqueles outros mais

213 LINS, 2008, p.188. 214WOLF in: P. NOVAES, 2004.

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exóticos e distantes que não compartilham das condições culturais e sociais dos

civilizados e sermos assim facilmente capturados para uma visão perversa de

fraternidade, na qual o que se impõe é a manutenção da vida a todo custo, conforme

expressa Lurie, nosso personagem de Desonra: Isso acontece todo dia, toda hora, todo

minuto, diz a si mesmo, em toda parte do país.Considere-se feliz por ter escapado com

vida. Considere-se feliz de não estar preso no carro, sendo levado embora, ou no fundo

de um canal com uma bala na cabeça. Sorte de Lucy. Acima de tudo Lucy.215

Ariel Dorfman216 nos alerta ao afirmar que o século XX se dedicou ao

aperfeiçoamento da dor, bem como à sua industrialização, ele nos diz que:

“Foi um século que criou manuais de dor e de como aplicá-las, cursos de treinamento sobre como acrescentar essa dor e catálogos para explicar onde adquirir instrumentos que asseguram que aquela dor seja incessante;um século que deu medalhas a homens que escreveram esses manuais, felicitou os que elaboraram esses cursos e enriqueceu os que fabricaram os instrumentos daqueles catálogos de morte.”

Em seguida, Dorfman nos pergunta se “temos tanto medo?” Temos sim.

Pelo menos é essa resposta que o romance Desonra nos dá. A violência movimenta-se

sinuosamente, predominando em todos os níveis da esfera social ali representada. Não

há lugar para antigos procedimentos, conforme ilustra o conselho que Ettinger,

fazendeiro de origem branca, vizinho de Lucy, transmite a Lurie:“Melhor você se

cuidar, porque a polícia não vai cuidar, nunca mais, pode ter certeza.”217

215COETZEE, 2000, pp.113,114. 216 DORFMANN, 2004. 217 COETZEE, 2000, p.116.

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Se o caminho então, diante da violência e suas repercussões e consequências

irreversíveis, é nos absolver da história para prosseguirmos, Edward Said 218 nos adverte

que a nossa história recente é muito mais rica que um inventário de perdas:

“(...)se não existem maiores reservas de esperança na história do que a ficha consternadora do século XX nos oferece e se mesmo o grande número de causas perdidas não proporciona , na verdade, uma ocasião para o fortalecimento da vontade e a amoladura de aço frio da defesa enérgica de uma causa”,diz ele, “afinal, o século XX foi uma grande era de resistência, e isso não foi completamente silenciado.”

Mesmo contando com “a grande força da resistência” de que trata Said, a

dúvida é se há a perspectiva da redenção, da absolvição diante da violência e dos vazios

de sentido em que nos inserimos, sem nostalgia. Se somente ao esvaziar-se a relação

entre vítima e algoz, surgirão condições de recriar um cenário hospitaleiro e reconstruir

um novo sistema de relações para dar norte à humanidade?A questão é que o fenômeno

da violência implode todas as possibilidades. Como buscarmos o entendimento quando

não há entendimento?

Paul Rayment, nosso homem lento, se pergunta: Eros. Por que a visão do

belo chama Eros à vida? Por que o espetáculo do horrendo estrangula o desejo? Será

que a relação com o belo nos eleva, nos torna pessoas melhores ou será abraçando os

doentes, os mutilados, os repulsivos que melhoraremos a nós mesmos?219

Bem sabemos, que os antigos gregos não opunham o amor à qualidade de

seus desejos. Para aqueles, tratava-se da medida em que estes se efetuavam. O foco aqui se

218 SAID, 2003, p.238. 219 COETZEE, 2007, p.116.

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apóia em Fedro, mais exatamente no desfecho do Diálogo. Neste há dois dramas que se

apresentam, um diz respeito ao amor submetido à ordem e à medida, e outro ao amor

desmesurado. No primeiro, o amante é convidado à liberdade do saber, em que amado e

amante são simultaneamente objeto e sujeito do amor, usufruindo de uma perfeita

reciprocidade, em que o amante vê no amado outro amante. No outro, trata-se do amor

desmesurado, avassalador e que se presta a dominar o parceiro. É um tipo de amor regido

pela paixão, no qual não há ponderação ou saber. Ao final do Diálogo, na verdade, não se

encerra o assunto uma vez que este tema é de natureza inesgotável, contudo a oposição

entre a desmedida e a ordem nos interessa, pois remete à tensão pressentida em Homem

Lento.

O projeto de Coetzee não trata de transformar os personagens em heróis,

como já apontamos; seu intento é escancarar o que é profundamente humano e por isso,

não isento de ambigüidades. Por sua vez, a despojada contenção da forma literária não

reduz o alcance das indagações que seu texto provoca. Isto é, enquanto sua narrativa

reluta em esparramar-se em desmedidas apaixonadas (nosso “homem lento” de fato nada

empreende, pelo menos no que tange às ações épicas ou conduzidas por forças instintivas

da paixão), é exatamente o amor que é convocado em suas linhas finais. Instiga-nos

Coetzee, ao defrontar-nos com o convite, certamente um tanto tímido, de Elizabeth a Paul

para que seguissem juntos: “Podíamos viajar pelo país inteiro, nós dois, ou toda esta

vasta terra marrom, norte e sul, leste e oeste. Você podia me ensinar obstinação e eu

ensinava a você a viver com nada, ou quase nada.” E a peremptória resposta negativa de

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Paul: “ “Não”- diz afinal, “isto não é amor. Isto é alguma outra coisa. Alguma coisa

menos. ” ”220

Afinal, qual a medida que Coetzee procura ao provocar-nos com este

impasse entre autora e personagem, entre criação e criatura? A recusa de Paul não

surpreende, porquanto nada no romance preparou este tipo de desfecho. E de fato este não

poderia efetuar-se. Homem Lento inscreve-se no conjunto do romance da desventura,

conforme o conceito de Ronaldo Lima Lins.221Carrega consigo as marcas do nosso

desconcerto diante da realidade; o ritmo lento de seu enredo e a superficial ausência de

acontecimentos, na verdade, revelam-se como um roteiro de impasses.222A sensação é um

sentimento pavoroso de desencanto e prostração diante dos fatos que se arremetem numa

velocidade incrível contra nós. É como se o salto pelo ar das primeiras páginas da obra

traduzisse a nossa necessidade de harmonização com o mundo ou o real:

“Relaxe!, ele diz a si mesmo enquanto voa pelo ar (voa pelo ar tão cheio de graça!) e de fato sente os membros obedientemente moles. Como um gato,diz a si mesmo: role, depois se ponha de pé, pronto para o que vier em seguida. A palavra pouco usual limber ou limbre(maleável) também está à vista.”223

“Role, depois se ponha de pé, pronto para o que vier em seguida”. Ser

maleável é a medida que Coetzee parece encontrar para a astúcia poética do ser humano,

a qual ainda que circunstancialmente paralisada ou lenta ,como nos diz Ronaldo Lins

sobre a literatura, “já não necessita declarar-se de imediato, podendo dar a impressão de

220 COETZEE, 2007, p.276. 221 LINS, 2006. 222 idem,2006. 223 COETZEE,2007, p.7.

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concordar enquanto conserva um núcleo de resistência”224 É possível recriar uma

experiência de sentido que estabeleça um espaço de verdade para a arte? É possível que

encontremos na arte um lugar de entendimento?Com maleabilidade?

224 LINS, 2006, p.222.

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3.2. A escrita como forma de aventura moral pode ser perigosa

(…)não existe nenhuma vida elevada. A única vida que existe é esta aqui.Que a gente reparte com os animais.(...) J.M.Coetzee

Coetzee encaminha aquele debate – se a arte comporta ainda a possibilidade de

entendimento sobre o real cortado pela violência desmesurada - ao cerne do processo

criador, pois na medida em que nos apresenta importantes questões, coloca-nos diante de

personagens cujas condições precárias ou humilhantes remetem sempre a situações

frustrantes que recaem invariavelmente em implicações de natureza ética que traduzem este

estado de crise por que passamos.

Em outras palavras, em Homem Lento, o embate entre Paul, o personagem que

recusa ser controlado, e Elizabeth, a autora que não pode abandonar seu personagem,

demonstra a complexa engenharia do processo de criação literária. A resistência de Paul

implica o ostracismo de Elizabeth, que não faz nosso homem lento “acontecer” de fato. E

sobra para nós, leitores...

A profusão de perguntas e respostas evasivas presentes em sua narrativa longe de

ser um artifício “pós-moderno”, como alguns críticos insistem, desvela a construção

dialética de um texto metaficcional, em permanente diálogo consigo mesmo, com o fazer

literário e com a recepção de sua obra. Desse modo, Coetzee dificulta o lugar do leitor,

sempre o convoca a tomar decisões, a perscrutar o cerne da criação literária e ao embate

com a própria imaginação.

Ao receber o prêmio Nobel em 2003, em sua conferência intitulada Ele e seu

Homem225, Coetzee nos conta histórias estranhas sobre patos, sobre a peste em Londres, as

225 Artigo disponível em:www.nobelprize.org 2003.

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quais são histórias, entre outras, que, seu homem conta a ele. Em dado momento se

pergunta: “quem é este homem que nunca o abandona? Como chamá-lo? Como

representá-lo? O senhor e o escravo? Irmãos gêmeos? Companheiros de armas? Ou são

inimigos, adversários? Que nome dar a esse companheiro com quem reparte suas tardes e

ocasionalmente suas noites também?” Ele prossegue dizendo que gostaria de encontrá-lo,

para contar-lhe suas angústias ou suas aventuras no ofício de escrever, mas teme que este

encontro nunca se dará, ao menos nesta vida. Diz que ambos “são como dois navios que

rumam em direção contrária, dois marinheiros atarefados em seus navios, um que faz a

rota do oeste e outro a do este.” De vez em quando se cruzam em alto mar, mas não se

reconhecem, pois estão “muito ocupados para se cumprimentarem”.

Sua conferência nos fala sobre o poder das palavras, o ofício do escritor, sobre a

solidão, a imitação e o naufrágio. É uma profunda reflexão a respeito da arte literária, tal

como se sucede em A Vida dos Animais e o posterior Elizabeth Costello. Nestas histórias

podemos perceber, conforme nos diz Manuel Arranz226, “uma dimensão distinta das

anteriores, pois liberadas de algumas convenções do gênero narrativo, parecem escritas

por vontade própria, como se fossem ditadas por seu homem.”

A obra de Coetzee fala por si e é no campo da linguagem que estabelece sua

autoridade. Seu texto insiste em nos indagar sobre o lugar que a arte literária ocupa e,

mais além, busca a autonomia da escrita como território de formulação ética, o que

podemos observar na seguinte passagem em que Elizabeth Costello adverte:

O que eu questiono é que temos de nos precaver contra os horrores que o senhor descreve em seu livro. Nós,

226“Estas historias tienen una dimensión distinta que la de sus novelas anteriores, creo yo. Es como si se hubieran liberado de algunas convenciones relativas al género, como si estuvieran menos sometidas a una voluntad narrativa, como si se escribieran en definitiva solas, «fácilmente, sin ni siquiera reflexionar», como si se las dictara su hombre.” (ARRANZ: 2005, Trad. A)

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enquanto escritores. Não meramente por causa dos nossos leitores, mas em atenção a nós mesmos. Podemos nos colocar em risco pelo que escrevemos, eu ao menos acredito nisso. Se o que escrevemos tem o poder de nos tornar pessoas melhores, certamente tem também o poder de nos tornar piores. 227

Um exemplo bastante significativo sucedeu-se na Festa Literária de Paraty de 2007,

conhecida como FLIP. Lá, Coetzee lê um trecho de um recente livro – Diário de um ano

ruim228– à época ainda em processo de criação. Não afeito a palestras ou discussões que

habitualmente tratam da arte literária, conforme pode se esperar nessas ocasiões, nas

devidas proporções, nosso autor repete aqui o mesmo procedimento que o levou a

apresentar Elizabeth Costello, um de seus marcantes personagens do romance A vida dos

animais , em um encontro acadêmico, episódio já citado nesta pesquisa. Esta performance

muitas vezes mal interpretada pelos desavisados, reforça o traço mais vigoroso de sua

empreitada narrativa: a autoridade da palavra literária.

Para Coetzee, a literatura não lhe confere, como autor, nenhuma espécie de

autoridade, uma vez que o poder está no texto em si – uma linguagem cuja autonomia

ganha um sujeito próprio, ao que ele chama de “seu homem”. Para aclarar este argumento,

apresentamos como exemplo uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo,em 21 de abril

de 2004, na qual o escritor sul-africano é indagado a respeito de Elizabeth Costello ser uma

espécie de seu alter ego. Em suas palavras:

A pergunta sobre onde a pessoa histórica J.M. Coetzee se posiciona em relação ao livro não é essencial. A pergunta mais importante é: "Quem conta as histórias?". E a resposta é: na maioria das vezes, um narrador que está próximo a Elizabeth. Menos na primeira história, em que esse contador está mais próximo de seu filho.

227 COETZEE., 2005, p.169. 228 Idem, 2008.

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Em outra entrevista ao mesmo jornal, em 21de junho de 2007, ele reforça o

argumento e responde em forma de pergunta:

Deus, ou o "espírito do tempo" utiliza escritores para se expressarem na narrativa conhecida como história? Respostas a questões como essa são menos importantes que o sentimento desconcertante de ser um personagem de uma história que é maior do que podemos enxergar, um sentimento que todos nós experimentamos uma vez ou outra.

Quando questionado sobre o recurso da metalinguagem presente em obras como

Elizabeth Costello e agora também em Homem Lento, o escritor recorre à famosa passagem

da obra de Cervantes em que Dom Quixote e Sancho Pança são alertados a respeito de sua

natureza ficcional, quando um homem diz que são personagens de um livro do próprio

Cervantes. Nas suas palavras:

Esse é um momento complexo tanto para o leitor quanto para os dois personagens. Estou interessado nesse momento - o momento metaficcional. Mas estou mais interessado no momento vivido pelo personagem do que na vida do leitor.

A arquitetura ficcional de Coetzee dá projeção ao ato de narrar como emblema da

crise identitária pela qual passamos. Em Homem Lento, o personagem Paul Rayment vê-se

paralisado quando resolve confessar seu amor por Marijana, porque “sua linguagem é

insuficiente: é rígido e convencional, ele mesmo se sente como um boneco de ventríloquo,

talvez porque nasceu na França e sua língua materna não é o inglês.” David Lurie,

personagem de Desonra, encontra-se diante da mesma sorte de coisas, quando deseja ouvir

histórias da África:

Em inglês, a história se transformou num código e longos trechos dela engrossaram, perderam sua articulação, articulosidade, sua artificiosidade. Como um dinossauro a expirar e a se assentar na lama, a linguagem endureceu.

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Apertada no molde do inglês, a história de Petrus pareceria artrítica, ultrapassada.229

O processo de democratização do mundo ocidental projeta a palavra para o centro

de poder, isto é, cria novas formas de vida que reivindicam novas linguagens, as quais

geram novos comportamentos, numa profusão tamanha que ainda resta grande perplexidade

e impotência para o seu entendimento, por um lado. Entretanto, parte da crítica

contemporânea insiste em valorizar as chamadas minorias, como se a diferença garantisse

ao sujeito um estatuto de autonomia diante da instrumentalização da razão ocidental.

Em geral, dessa perspectiva supervaloriza-se um sujeito ao mesmo tempo

atomizado e refratado em múltiplas subjetividades, cujo efeito alcançado é esvaziado de

sentido. Por outro lado, pensadores como Antônio Negri230 afirmam que se as formas de

representação tradicionais mudaram e as novas subjetividades criaram suas próprias

verdades que permanentemente colocam em jogo as relações de poder e domínio do mundo

contemporâneo. Em suas palavras:

Nesses 40 anos, o conceito de experiência vivida mudou radicalmente. O intelecto não pode mais ser separado da vida das paixões. As diferentes partes do homem estão novamente juntas. A verdadeira mudança é esta: a reconquista da vida. Sabemos que o poder e a própria relação de capital (a relação capital-trabalho) operam por dispositivos que dominam a vida dividindo-a: o trabalho é separado dos afetos; o público do privado; a cultura da natureza. É a separação do tempo de vida em tempo de trabalho e tempo livre que determina a subordinação das forças produtivas enquanto trabalho assalariado. É a separação do tempo livre em tempo de reprodução e tempo de lazer que permite a redução dos desejos criativos em necessidades de consumo, isto é, em padronização das formas de vida em “modas” (de vida). A própria idéia de Estado funcionou ao longo de séculos multiplicando as divisões e gerenciando o medo. Nesse sentido, os estudantes, os operários, as feministas e, com eles, os movimentos para os direitos civis e contra a

229COETZEE., 2000, p. 136. 230NEGRI & COCCO., 2008.

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guerra, os estudantes brasileiros contra a ditadura e todos os que quiseram que algo mudasse em 1968 atualizaram a definição que Spinoza tinha dado de democracia: uma sociedade sem medo. A partir desse momento, a vida começou a ser vivida de maneira diferente: virtualização do trabalho, globalização, enfraquecimento dos Estados-Nação... (...) As praticas de libertação não estariam mais subordinadas ao horizonte longínquo da emancipação. Resolver as questões de discriminação significa operar uma crítica bem mais eficaz da ordem social do capital! Como dissemos, 68 foi a experimentação de outras formas de existência: não em outro lugar, nem outro mundo “melhor” e sem o capital, mas aqui e agora! A luta operária se tornou desmedida e ingovernável quando se juntou às lutas sociais que se constituíam dentro da que é tida como “reprodução”, quando na realidade é a própria produção da vida. Com isso, afirmava-se a possibilidade de uma verdade, de um sentido, que não era mais o fruto paradoxal de seu contrário, a não-verdade da subordinação. Essa passagem, como acabamos de enfatizar, se deu com formas de subjetivação que conseguiram produzir sua própria verdade e, assim, esvaziar os dispositivos disciplinares, ao passo que se afirmavam como máquinas de libertação. São as lutas sociais de tipo novo que se desenvolveram a partir de 1968 que definem esse deslocamento. Lutas novas porque assumem a mobilização produtiva da esfera da reprodução como terreno de constituição autônoma, antagônica à ordem disciplinar da fábrica. São questões extremamente atuais porque o trabalho se difundiu pela sociedade, além da relação salarial, envolvendo a própria vida em seu conjunto. Não faz sentido separar o que acontece no nível das formas de vida (as práticas de libertação de mulheres, negros, gays, lésbicas, migrantes estrangeiros) do que acontece nas dinâmicas políticas e econômicas. À ofensiva biolítica (a potência da vida) da década de 1970, o poder respondeu se tornando biopoder, poder sobre a vida como um todo, como dizia Foucault. É por essas linhas que passam os novos conflitos sociais. Eles envolvem ao mesmo tempo as questões sociais, econômicas e políticas, ou seja, a própria democracia.

Em que pesem as graves conseqüências que a chamada modernidade sustenta, aqui

procuramos analisar qual o alcance dessas novas formas de representação diante deste

complexo panorama. Em qual medida a linguagem literária dá maior visibilidade ao sujeito,

cuja identidade difusa resulta desse processo social?

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A questão da linguagem enquanto forma que viabiliza o difícil equilíbrio entre a

ética e a estética é um importante projeto na arquitetura ficcional de Coetzee, e uma chave

de raciocínio importante.

Em um artigo intitulado:“Into the dark Chamber:The Novelist and South África”231,

já citado na pesquisa, Coetzee debate sobre os limites (se os há?!) éticos da arte literária. O

cerne da discussão aponta se é eticamente admissível escolher declaradamente o mal moral

como tema de representação literária. Coetzee discute a representação literária das práticas

das câmaras de tortura do Estado autoritário que se mantiveram na África do Sul por longas

décadas. Em suas palavras:

A câmara escura por si é a origem da fantasia novelística; ao criar uma aberração, ao envolvê-la em mistério, o Estado cria as condições necessárias para que o romance cumpra a sua função de representação.Mas há algo escabroso em seguir desse modo o Estado, convertendo seus repugnantes mistérios em motivo de fantasia. Para o escritor, o problema mais profundo é não se permitir afetar pelo dilema que o Estado propõe, a saber, ignorar suas ações ou produzir representações destas. O verdadeiro desafio é como jogar o jogo com as regras do Estado, como estabelecer sua própria autoridade, como imaginar a tortura e a morte com seus próprios termos.

E prossegue:

O escritor confronta-se com um segundo dilema não menos sutil, relativo à pessoa do torturador. Como deve representá-lo? Se sua intenção é evitar os clichês das histórias policiais – não converter o torturador em uma figura demoníaca, nem em um ator de humor negro, nem em um funcionário sem rosto, nem em um homem tragicamente dividido que faz um trabalho e não crê neste - que outras possibilidades lhe restam?232

231 Artigo publicado originalmente em o jornal The New York Times em 12 de Janeiro de 1986.(Trad.A)

232 “The dark, forbidden chamber is the origin of novelistic fantasy per se; in creating an obscenity, in enveloping it in mystery, the state creates the preconditions for the novel to set about its work of representation. Yet there is something tawdry about following the state in this way, making its vile mysteries the occasion of fantasy. For the writer the deeper problem is not to allow himself to be impaled on the dilemma proposed by the state, namely, either to ignore its obscenities or else to produce representations of them. The true challenge is how not to play the game by the rules of the state, how to establish one's own authority, how to imagine torture and death on one's own terms. (…)The writer faces a second dilemma, of a no less subtle nature, concerning the person of the torturer. (…)How is the writer to represent the torturer? If

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De fato, os limites entre a ética e a estética sempre foram conflituosos, pois estas se

encontram estreitamente próximas. Parece-nos que Coetzee quer alertar-nos sobre a

natureza autônoma destes juízos, sem contudo efetuar nenhuma separação. Seu debate

tensiona questões como a submissão do caráter estético ao valor moral em situações de

extremo conflito; instiga outrossim a idéia de que para que haja estética é vital o sentido de

totalidade; dito de outra forma, para que se possa representar o mal moral, é fundamental o

alcance do sentido de totalidade e humanidade pela linguagem literária- utopia do discurso.

Na linha de frente deste confronto encontramos a veterana Elizabeth Costello ou “um

narrador que está próximo a Elizabeth” a nos indagar: o que é melhor: escrever? E sendo

assim, como fazê-lo? Ou é melhor praticar o bem? E neste caso, qual bem?

A crítica literária insiste em afirmar que em seus livros é sempre incômoda e

irritante a aliança entre a ética e a estética, e quer nos parecer que justamente neste ponto

foi apanhado o peruano Mario Vargas Llosa!233

Em um artigo234 bastante polêmico, este escritor trava um sinuoso embate com

Costello, a quem acusa de querer impingir à literatura uma função moralizante, a qual

desviaria o verdadeiro caráter desta arte, transformando-a em um braço da religião, da

política ou da ética. Em determinado trecho, chega a comparar a escritora a ditadores

famosos, conforme ilustra o trecho a seguir235:

he intends to avoid the cliches of spy fiction - to make the torturer neither a figure of satanic evil, nor an actor in a black comedy, nor a faceless functionary, nor a tragically divided man doing a job he does not believe in - what openings are left?”(trad. A.)

233 Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2010. 234LHOSA, 2002. 235 “Como Elizabeth Costello, aunque por razones mucho menos nobles que las de ella, los inquisidores, Stalin y todos los comisarios y censores que en el mundo ha habido -y han sido innumerables- han

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Como Elizabeth Costello, embora por razões muito menos nobres do que a de seus inquisidores, Stalin e todos os comissários e censores em todo o mundo têm sido – inúmeras vezes - tem argumentado que a literatura não pode ser submetida ao critério daqueles que a escrevem, que há 'lugares proibidos' e a ficção não deve ser violada, porque ao fazê-lo tornam-se obscenos, imorais, ou pecadores, ou reacionários, etc. e isso gera efeitos nocivos para a sociedade.

Na verdade, Vargas Llosa preocupa-se com os limites nunca bem vindos aos quais a

arte porventura pode ser obrigada a submeter-se. Ilustremos a questão. No romance

Elizabeth Costello, o entrave se dá, entre outras coisas, pelo declarado transtorno que o

romance de outro escritor – Paul West, The very rich hours of county of Stauffenberg236 –

causou em nossa carismática personagem. No livro, a veterana escritora tem a vida

inusitadamente revelada em oito instigantes palestras. A sexta debruça-se sobre o problema

do mal. Porque está fazendo isso comigo?237 ela pergunta, atormentada com as palavras do

escritor inglês. Ele escrevera um livro sobre Hitler e a execução de um grupo de oficiais

traidores. As descrições feitas por West são minuciosas, agressivas e colocam o leitor no

centro de uma história de horror. As palavras do carrasco às vitimas. O cadafalso. As

vítimas, velhos exaustos, aterrorizados, choramingando de medo, as lágrimas, a voz da

criatura medonha que regressara, que ganhara vida, que ressuscitara para lembrar o que

todos querem esquecer. O sangue nas unhas da semana anterior. Depois, Hitler, o olhar de

satisfação pela vingança, e os soluços, a agonia, o atenuar do desespero, o último gemido, a

bamba imobilidade da carne morta.

sostenido que la literatura no podía ser dejada al libre albedrío de quienes la escriben, pues hay 'lugares prohibidos' que la ficción literaria no debe violar, porque hacerlo es obsceno, inmoral, o pecador, o reaccionario, etcétera, y tiene efectos perniciosos en la sociedad.”(trad.A.) 236 WEST, 1980. 237COETZEE., 2004, p.176.

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Foi isto que despertou o desespero da romancista; uma experiência estética que

Costello nunca desejou ter experimentado. Obsceno – dizia, porque estas coisas não deviam

acontecer e também obsceno porque, uma vez que aconteciam “(…) não deviam ser

trazidas à luz do dia, mas acobertadas e escondidas nas entranhas da terra, como o que

acontece nos abatedouros do mundo.” 238

Mais adiante, acrescenta-se ainda outra questão, não menos relevante que considera

a hipótese de: “os escritores que se aventuram nos territórios mais sombrios da alma

voltam sempre incólumes?” 239 A questão em jogo é o valor deste tipo de experiência

estética, e em qual medida podemos considerar isto relevante? Como sair incólume, se

“(…)a própria escrita, como uma forma de aventura moral, pode ser perigosa”? 240Mas a

escritora, que se revoltou sobretudo porque Hitler havia sido ressuscitado, sabia que West,

tal como ela, é um escritor, que conta ou reconta histórias, cujas personagens adquirem vida

própria.

Que mal tem isso? Talvez ela preferisse, se de uma escolha se tratasse, fazer o bem

e não contar uma história, porventura nociva, porventura nefasta ou horripilante; talvez seja

isso que a distingue do escritor inglês, mas seria por isso melhor que West? De qualquer

forma, o que o seu homólogo fizera era inqualificável, estava para além do exprimível;

obsceno!

Haverá lugares proibidos, tal como onde foram enforcados os conspiradores de

Julho de 1944? (…) As suas últimas horas só a eles pertencem, não são nossas para nos

intrometermos e apropriarmos delas, é o que pensa Elizabeth. Neste momento, um homem

na platéia pergunta: Como é que sabe que Sr.West se prejudicou com o que escreveu? E se

238 COETZEE. 2004, p.178. 239Idem, 2004, p.180. 240Idem, 2004, p.181.

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certos escritores forem mais resistentes a experiências como aquela, e se o mesmo

acontecer com os leitores? Aprender com que se escreve ou lê, renascer mais forte e

conhecedor, pois a experiência reforça as defesas? Não seria esta outra face de tamanha

dúvida?

Ainda assim Elizabeth sentia-se extenuada ao ler West, o mal, outrora esquecido e

enterrado, passara para ela, como eletricidade. Não quero ler isto. (…) Não quero ler isto.,

(…) Não quero ler isto, repetia para si insistentemente.

A critica de Vargas Lhosa não escapa da ambiguidade moral que a armadilha do

texto de Coetzee cria. Sua obra recusa-se ao engessamento, não escolhe pragmaticamente o

lado político e nem engrossa fileiras ideológicas. Nela não há refúgios para poupar quem

quer que seja, pois todos são contaminados pelo mundo onde vivemos e não estão isentos

da indignidade, nem alheios à destruição. Não há inocentes, todos são herdeiros de uma

herança trágica e sempre pagarão, portanto, pelos crimes de outros. São resíduos da história

sempre a nos assombrar... Ao que Coetzee denomina de “tortura sem torturador”.

Explica-se. No artigo “Into the dark chamber241”, nosso autor analisa um episódio

da obra A filha de Burger 242já citada nessa pesquisa, da escritora, também sul africana e

ganhadora do Nobel, Nadine Gordimer, o qual remete aos mesmos problemas éticos aqui

apresentados. Trata-se do flagelo de um animal que evoca a famosa passagem de Crime e

Castigo de Dostoievski (parte I, capítulo 5). Em síntese, a personagem Rosa testemunha um

homem açoitando impiedosamente um burro que puxava uma carroça. Em um instante,

petrificada, ela observa, nas palavras do texto:

241 COETZEE, “ Into the dark chamber:the novelist and South Africa”, 1986. in:http://www.nytimes.com/books/97/11/02/home/coetzee-chamber.html 242 GORDIMER, 1979.

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O fato de causar dor incidido pela vontade de acreditar nisso, incidido e solto, uma força que existe em si. Violação sem violador, tortura sem torturador, pilhagens, pura crueldade que está além do controle dos seres humanos que gastaram milhares de anos para concebê-la.. Todo o engenho, desde os parafusos e cadeiras de choque elétrico,a infinita variedade e gradação de sofrimento, por chicotes, por medo, por fome, por reclusão em regime de isolamento; os campos de concentração, de trabalhos forçados, de reassentamento, as Sibérias de neve e de sol, as vidas de Mandela, Sisulu, Mbeki, Kathrada, Kgosana picados pelas gaivotas da Ilha.

Ainda o texto:

Pode parar o espancamento, impor sua autoridade sobre o motorista, inclusive fazer que o prendam e o julguem. Mas, sabe que esse homem - negro, pobre, embrutecido – tem como viver senão na brutalidade, fazendo aos outros o que fazem a ele? Por outro lado, pode deixar de lado, permitindo que a tortura continue. Mas então terá que viver com a suspeita de que deixou de lado por nenhum motivo melhor que a relutância de ver a si mesma como um daqueles brancos que se preocupam mais com animais do que com as pessoas..243

Rosa segue seu caminho e abandona o país uns dias mais tarde, pois vê-se incapaz

de lidar com os dilemas que a África do Sul plantou em seu dia-a-dia. Coetzee analisa a

reação de Rosa Burguer, a personagem que simbolicamente devolve à superfície problemas

de difícil solução ética. Em suas palavras:

É importante não interpretar o episódio de forma limitadamente simbólica. O condutor e o burro não representam respectivamente o torturador e o torturado. “Tortura sem torturador” é a frase-chave. Para sempre na memória de Rosa choverão os golpes e o animal se estremecerá de dor. O espetáculo provém dos lugares profundos do inferno de Dante, para além do âmbito da ética. Porque a ética é humana, enquanto as figuras presas à carroça pertencem a um mundo amaldiçoado,

243“(In a frozen instant she beholds) ''the infliction of pain broken away from the will that creates it; broken loose, a force existing of itself, ravishment without the ravisher, torture without the torturer, rampage, pure cruelty gone beyond the control of the humans who have spent thousands of years devising it. The entire ingenuity from thumbscrew and rack to electric shock, the infinite variety and gradation of suffering, by lash, by fear, by hunger, by solitary confinement - the camps, concentration, labour, resettlement, the Siberias of snow or sun, the lives of Mandela, Sisulu, Mbeki, Kathrada, Kgosana, gull-picked on the Island.''(....)She can put a halt to the beating, bring her authority to bear on the driver, even have him arrested and prosecuted. But does this man - ''black, poor, brutalized'' - know how to live other than by brutality, doing unto others as has been done unto him? On the other hand she can drive past, allowing the torture to continue. But then she may have to live with the suspicion that she passed by out of no better motive than a self-regarding reluctance to be thought ''one of those whites who care more for animals than people.'' (COETZEE, 1986. trad.A.)

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desumanizado. Eles colocam Rosa Burger em seu lugar: a definem incluída na esfera humana. Do que Rosa foge, ao sair da África do Sul, é da negativa visão de que existe um mundo paralelo ao seu, a uma distância não maior que meia hora de carro, um mundo de força cega e mudo sofrimento, degradado, por baixo do bem e do mal.

Ainda Coetzee:

Como continuar para além deste momento escuro da alma é a questão que Gordimer aborda na segunda metade de seu romance. Rosa Burger retorna à terra onde nasceu para compartilhar seu sofrimento e esperar o dia da libertação. Não há falso otimismo, nem da sua parte nem de Gordimer. A revolução não vai por fim nem na crueldade ou no sofrimento, talvez nem na tortura. Rosa sofre e espera um tempo em que a humanidade será restaurada em face da sociedade e, portanto, que todas as ações humanas, incluindo a flagelação de um animal, terão retornado para o campo de julgamento moral. Numa sociedade assim será significativa mais uma vez que o olhar do autor, o olhar da autoridade e do juízo autorizado se coloquem sobre as cenas de tortura. Quando a decisão deixar de reduzir-se ao olhar de horrorizado fascínio como um estado de choque ou ao afastamento da cena, então o romance poderá assumir mais uma vez seus poderes sobre a totalidade da vida e poderá se atribuir às câmaras de tortura um espaço no conjunto. 244

Coetzee, então, não faz um julgamento ético da função da arte, na verdade, não

assume imperativo ético algum, conforme afirma em Doubling The Point245.O argumento

de suas obras é a verdade como fundamento, possibilitada por uma linguagem restauradora 244“IT is important not to read the episode in a narrowly symbolic way. The driver and the donkey do not respectively stand for torturer and tortured. ''Torture without the torturer'' is the key phrase. Forever and ever in Rosa's memory the blows will rain down and the beast shudder in pain. The spectacle comes from the inner reaches of Dante's hell, beyond the scope of morality. For morality is human, whereas the two figures locked to the cart belong to a damned, dehumanized world. They put Rosa Burger in her place: they delimit her as within the sphere of humanity. What she flees from in fleeing South Africa is the negative illumination that there exists another world parallel to hers, no farther away than a half-hour's drive, a world of blind force and mute suffering, debased, beneath good and evil. (…) How to proceed beyond this dark moment of the soul is the question Miss Gordimer tackles in the second half of her novel. Rosa Burger returns to the land of her birth to join in its suffering and await the day of liberation. There is no false optimism, on her part or on Miss Gordimer's. Revolution will put an end neither to cruelty and suffering, nor perhaps even to torture. What Rosa suffers and waits for is a time when humanity will be restored across the face of society, and therefore when all human acts, including the flogging of an animal, will be returned to the ambit of moral judgment. In such a society it will once again be meaningful for the gaze of the author, the gaze of authority and authoritative judgment, to be turned upon scenes of torture. When the choice is no longer limited to either looking on in horrified fascination as the blows fall or turning one's eyes away, then the novel can once again take as its province the whole of life, and even the torture chamber can be accorded a place in the design.”(COETZEE, 1986. trad.A.) 245 COETZEE, J. ; ATTWELL, D.,1992.

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da vida em sua totalidade. Entretanto, ele não crê na possibilidade hoje de alcançarmos essa

dimensão de verdade; sua obra está sempre a nos dizer que o que ocorre no mundo é o que

ocorre. Não temos escolha. A literatura não serve para fixar limites, ela não é uma aventura

moral e portanto não deve seguir o real cegamente. A literatura é a linguagem que nos

devolve quase brutalmente ao real, é pelo inefável na prosa de Coetzee que chegamos ao

coração da história ou dos fatos.

O juízo moral deve servir para, conforme a metáfora presente no texto de Gordimer,

nos situarmos, nos levarmos de volta ao mundo humano, que como ideal deve alcançar a

totalidade, e o vigor como representação do real quando este resgatar sua face de

humanidade. Então, aí, a ética prevalecerá, porque a ética é do âmbito do humano e

estaremos todos dentro do mundo do juízo em que o bem e o mal coexistem. O texto deve

nos situar no mundo ético, tal como Rosa foi situada.

“Suponhamos, pergunta Ivan Karamazov a seu irmão Alyosha, personagens da

famigerada obra de Fiodor Dostoievski, que seja necessário, para que os homens sejam

eternamente felizes, que seja inevitável e essencial torturar durante uma eternidade uma

pequena criatura, tão somente um menino, nada mais que um. Consentiria isso?”

Ariel Dorfman, em artigo publicado em 2004,246retoma a grandiosa obra daquele

autor russo para nos perguntar se alguma vez se justifica a tortura. Se estamos dispostos a

permitir que outros perpetuem atos de terror em nosso nome. Se o medo que sentimos é tão

grande que não somos capazes de evitar a barbárie diária a que muitos outros seres

humanos são submetidos a qualquer momento. Como agora, neste exato instante, ele nos

diz, alguém pode estar sendo torturado!?

246 já citado nessa pesquisa, p.123.

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À tentação de Ivan karamasov, Alyosha responde que não, não consentiria que

nenhuma criatura fosse torturada. E, nós, consentiríamos? E se este outro não for um

inocente, consentiríamos a tortura? Resistiríamos à tentação d‘Os irmãos Karamasov?

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3.3 O silêncio de Paul West e o ovo de pedra

Elizabeth Costello “não acredita mais que contar histórias seja uma coisa boa em si.

Quando o contador de história abre a garrafa, o gênio é libertado para o mundo, e depois

é um inferno colocá-lo de volta para dentro. Sua posição, sua posição revisada, sua

posição no ocaso da vida: é melhor, no geral, que o gênio permaneça dentro da

garrafa.”247

No capítulo anterior analisamos a “Palestra 6- O problema do mal”, na qual Coetzee

questiona a obra do escritor – Paul West248. Observamos que a personagem Costello vive

um profundo conflito sobre a representação literária do mal e suas repercussões. Trata dos

perigos por que passam os escritores ao se aventurarem em lugares proibidos, de tornarem

o mal atraente e sentirem –se contaminados por ele. Assim, colocando em risco não

somente a própria alma, mas a de quem lê, pois, segundo Costello, há coisas que não são

boas de se ler, tampouco de se escrever. Conforme dito anteriormente, o texto de West trata

da conspiração de julho de 1944, em que oficiais nazistas que planejavam matar Hitler,

foram presos e executados.Afinal, Elizabeth se pergunta por que tamanho aturdimento

diante da obra de outro escritor que, tal como ela, “vivem de contar ou recontar histórias”?

Entretanto, retomamos aqui essa análise para apontar que a razão principal de sua

resistência e angústia tem menos a ver com o aspecto moral que o texto literário pode

suscitar e mais a ver com a experiência estética que empreende. Explica-se.

Não é difícil perceber que os conflitos entre a arte e a moral são reais e acontecem

porque a relação entre a atividade artística e a ordem moral é bastante estreita, frágil; difícil

247 COETZEE, 2004, p.186. 248 Já citado na pesquisa , p.136.

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por vezes de combinar. Ao detalhar o sofrimento daqueles homens que traíram Hitler e

foram sacrificados lentamente em nome dessa traição, a narrativa nos faz experimentar a

crueldade dos carrascos e a humilhação por que passaram as vítimas, escancarando a

vergonha que aqueles corpos denegridos pela tortura apresentaram. Ademais, segundo

Elizabeth, as palavras de Paul West causam descargas elétricas na espinha do leitor, pois

como ela, este sabia bem usar as palavras e em razão disso aquele mal “não é uma coisa

que possa ser demonstrada,...,é algo que só pode ser experimentado.”249 E finaliza

dizendo: Não quero ver isto!

Ao tratar desse efeito provocado pela narrativa, Costello nos fala de ‘experimentar’.

Aqui, trava-se um interessante exercício sobre o valor moral da literatura em si e de sua

extraordinária capacidade em desencadear emoções, próprias da experiência estética da arte

em geral.

Não seria simples iniciar um debate sobre tal tema, o qual convém denominar

autonomia entre a ordem estética e a ordem moral. Muitos pensadores afirmam que a arte

nos impulsiona ao exercício de julgar com a capacidade estética, e por essa razão, possui

um valor moral. Entretanto, essa relação não se estabelece pela interdependência ou pela

hierarquia entre a estética e a ética.Trata-se de entrevermos uma analogia entre ambas.

A autonomia estética é mais difícil de conceituar porque se localiza em um campo

empírico, de um tipo de experiência. A ficção, por exemplo tem uma capacidade de

iluminar nosso comportamento, clarear nossas emoções, porém não necessariamente

aprofundar nosso entendimento moral. A arte não pretende explicar nossas emoções, mas

249 COETZEE, 2004, p.196.

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sim, provocá-las. A questão está em se a expressão artística provoca ou não. Em outras

palavras, não é necessário que haja um sentido ou se tal experiência seja correta.

Talvez exista algo a se aprender sobre a moralidade através da arte, ou através

desta, aprender sobre a natureza das emoções, uma vez que a literatura põe em manifesto

algo nuclear - a natureza narrativa das emoções, ou seja, as imagens literárias põem em

manifesto a sensibilidade das emoções ao modo de representação.

À primeira vista, Coetzee ao instalar essa discussão na chamada: “Palestra 6 - O

problema do mal”, parece estar mais próximo de Platão, considerando que para o filósofo

grego, a moral ligava-se à sabedoria, e a maneira de ser junto à inteligência refinada

estavam estritamente ligadas à arte. Desse ponto de vista, os temas da sabedoria moral estão

intimamente associados aos temas da beleza, relação esta que levou o escritor Vargas Lhosa

a acusar o texto de Coetzee de moralista, conforme discutido anteriormente.

Porém, existe um ponto a ser esclarecido na dita palestra. Elizabeth mergulhada em

seu conflito, repentinamente lembra do seu próprio encontro com o mal, ao que chama de

ovo de pedra. Ela jamais havia contado a alguém sua história, bem como jamais a

escrevera. Muitos anos antes, conhecera – caçou - um homem em um bar no meio da noite,

o seduziu, e em razão de ter desistido de fazer amor com ele, terminou sendo espancada. O

tal Tim ou Tom bateu nela, quebrou seu maxilar, e ainda sentia prazer no que fazia.

Elizabeth em seus pensamentos confessa que “durante meio século, a lembrança

permaneceu dentro dela como um ovo, um ovo de pedra, que nunca se abriria, que nunca

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germinaria. Ela acha aquilo bom, gosta daquilo, daquele seu silêncio, um silêncio que

esperava preservar até o túmulo.”250

Todavia, ao relatar essa história para nós leitores, explicando os motivos de sua

personagem e ainda conquistando nossa simpatia, Coetzee acaba por violar o segredo de

sua heroína, por quebrar propriamente a ética de sua privacidade. Não seria isso indigno, ou

nas palavras de Costello, obsceno!? Esse episódio não se inscreveria naquelas histórias que

nunca deveriam ter sido escritas de que fala Elizabeth? Ou Coetzee ao escrevê-lo, quer na

verdade, mostrar que a ficção literária não pode restringir a si mesma das difíceis e sutis

distinções que o pensamento abstrato requer?Explica-se.

Não estaria Coetzee, em sua narrativa, nesse momento desafiando as idéias que nos

direcionam, explorando ao limite a sua escrita ficcional? E nesse caso, colocando à mostra

o caráter insidioso do discurso ficcional, o qual necessariamente não se localiza no

rompimento de determinadas regras, mas propriamente na condição de criar suas próprias

regras em que outras forças, outra dinâmica exercem o controle?251Um discurso que “se

diverte em inventar regras com as quais brinca de se regular?252”

Vamos deixar que ele mesmo responda:

Sinto uma liberdade maior de seguir o meu pensamento onde ele me leva quando estou escrevendo ficção do que quando estou escrevendo crítica. Uma razão é que, como disse antes, não sou um filósofo treinado (e crítica contemporânea se tornou uma boa medida, uma variante de filosofar). Não apenas isso: tendo a ser míope no meu pensamento. Para mim seria inútil tentar repensar Dostoievsky nos termos de Derrida ou – o que me interessaria mais – repensar Derrida em termos Dostoievskianos, porque não tenho a mente para isso, sem falar no equipamento filosófico. Outra razão tem a ver com os dois modos discursivos. Histórias são

250 COETZEE, 2004, p.185. 251 COETZEE; ATWELL, 1992, p.205. 252 Idem, p 104.

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definidas por sua irresponsabilidade: elas são, no julgamento de Swift, “aquilo que não é”. A sensação de escrever ficção é de liberdade, de irresponsabilidade, ou melhor, de responsabilidade em relação a alguma coisa que ainda não emergiu, que se encontra em algum lugar no fim da estrada. Quando escrevo crítica, por outro lado, estou sempre consciente da responsabilidade sobre um objetivo que foi colocado para mim não apenas pelo argumento, não apenas por toda a tradição filosófica na qual estou implicitamente me inserindo, mas também pelo rígido discurso da crítica. Se eu fosse verdadeiramente um crítico criativo, eu trabalharia no sentido de liberar esse discurso, de torná-lo menos monológico, por exemplo. Mas a verdade simples é que não tenho investimento suficiente na crítica para tentar. Onde faço minha liberação, meu jogo de possibilidades, é na ficção. Dito de outro modo: estou preocupado em escrever um tipo de romance no qual não se está em desvantagem (comparado ao filósofo) quando se brinca (ou trabalha) com idéias. 253

A maestria de sua escrita – o que Coetzee define por irresponsabilidade: ou melhor,

de responsabilidade em relação a alguma coisa que ainda não emergiu, que se encontra

em algum lugar no fim da estrada - é percebermos que ainda com todo o estardalhaço que

sua narrativa fabrica nas estratégias de representação literária, sobre o que iremos tratar

mais adiante nesse capítulo, ela também deixa entrever, tal um soslaio, o principal motivo

que leva aos intensos conflitos de nossa protagonista.

Costello chama a atenção para a dignidade ou indignidade de colocar à mostra o

suplício da carne humana no momento da tortura ou da dor, para o sentimento de angústia

que as cenas de fragilidade humana acarretam, e por fim, protesta em nome da humilhação

e da vergonha a que ninguém deveria se expor. Contudo, o que a captura principalmente é

aquilo que a aproxima dessa indignidade, não o que a afasta!

253 COETZEE, 1992, p.246. (Trad. A.)

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Por um momento, a personagem imagina-se nua diante de um espelho, associando a

imagem de “seus peitos caídos e seus quadris ossudos” às fotografias íntimas das mulheres

prisioneiras da guerra européia, devastadas pela desnutrição e pelo pavor, à beira de serem

mortas por seus carrascos com um tiro na nuca. A esta aproximação tão íntima é que resiste

Elizabeth, suplicando por não olhar. Em seguida, nomeia seu aturdimento de “recato de

irmã.”

Esse mais novo laço familiar assombra o texto, repetindo-se na narrativa pela voz de

Costello, como uma cantilena: “Velhos, irmãos, mortos enforcados com as calças caindo

nos pés, executados.”254 E ainda : “Não gosta de ver irmãs e irmãos humilhados do jeito

tão fácil de humilhar velhos, despindo-lhes as roupas, por exemplo, tirando-lhes as

dentaduras, caçoando de suas partes íntimas.”255

Ao configurar um cenário tão desolador, Coetzee põe em evidência nossa condição

essencial, isto é, a decadência que envolve o envelhecimento, tal um ‘horror’ necessário

que nos garante o acesso a uma existência moral – uma vez que nos irmana de modo

inexorável como seres humanos e, no caso, a literatura dá dimensão: “Paul West estava

apenas cumprindo seu dever de escritor,(...)nas pessoas das vítimas do carrasco

relembrava para ela as criaturas pobres, tortuosas, trêmulas que somos todos.”

Por outro lado, o curioso é que esses irmãos também são oficiais do exército

alemão, capturados como traidores de Hitler, portanto, não compartilham da idade

cronológica que nossa personagem quer retratar, ou seja, não são homens septuagenários

apanhados em conspiração militar; são jovens oficiais em sua maioria.

254COETZEE, 2004, p200. 255Idem, 2004, p.198.

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Na verdade, Coetzee aproxima as imagens de agonia e flagelo por que passam esses

personagens, momentos antes de serem mortos pelos carrascos, ao processo de

envelhecimento. O texto, sub-repticiamente, nos informa sobre o suplício dos condenados

pelo suplício de Elizabeth, quase septuagenária, que resiste à imagem inquestionável do

corpo em processo de envelhecimento, ou em outras palavras, resiste à aproximação da

morte : “deixe-me voltar os olhos para outro lado”.

Já no desfecho da ‘palestra’, nossa personagem pede “uma terceira alternativa, uma

maneira de concluir aquela manhã satisfatoriamente e dar-lhe forma e significado: algum

confronto que conduzisse a uma palavra final.”256Essa associação, inusitada, nos diz mais e

bastante sobre o tema recorrente do envelhecimento na obra desse escritor.

Elizabeth Costello anseia pela palavra redentora que, enfim, traduzisse o

fundamento da existência por si só tão devastadora; algum sentido “que iluminasse o

panorama para ela, mesmo que depois voltasse a sua escuridão primeira.”257 O que nos

remete ao escritor Ricardo Piglia258quando diz que: “no fundo, a trama de um relato

esconde sempre a esperança de uma epifania. Espera-se algo inesperado, e isso vale

também para quem escreve.” .

Esse intenso debate da personagem consigo mesma reflete concomitantemente sobre

a prática da escrita atravessada por um vazio existencial aterrorizante, ao que não por acaso

são signatários Dostoievski, Kafka e Beckett – só para citar aqueles sobre quem Coetzee já

debruçou sua pesquisa.

256COETZEE, 2004, p.202. 257 Idem, p.202. 258 PIGLIA, 2004, p.105.

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O engenho deste enredo provoca de tal modo a imaginação que dribla por assim

dizer qualquer risco do texto recair em artifícios puramente metaficcionais ou no que Linda

Huctheon259 denominou como auto-reflexão autotélica da escrita, ou seja, um discurso tão

centrado em sua própria engrenagem que se isenta de qualquer referencialidade fora ou

além de si mesmo.

Escutemos a própria Elizabeth: ‘ela também jogava com as palavras, até elas

estarem certas’, ‘faz ou costumava fazer esse tipo de coisa’, mas ainda que já tenha escrito

sobre o mal, ‘a imundície daquele porão em Berlim era demais para ela, parecida demais

com a coisa moderna para ela agüentar.’E provoca-se: Então o que acontece com ela

agora?Agora, de repente, ficou boazinha. Agora não gosta mais de se ver no espelho, uma

vez que a faz pensar na morte.Coisas feias ela prefere embrulhadas e guardadas numa

gaveta. Uma velha girando o relógio para trás , de volta à Melbourne católico-irlandesa

de sua infância. É só isso afinal?260

Tomando emprestada a imagem de Elizabeth “ao se ver no espelho(...) com medo da

morte”, o que entrevemos nesse “espelho-narrativo” é o ofício literário, uma profunda

reflexão sobre a literatura. E quando pensamos sobre a literatura, pensamos sobre seu

papel na sociedade, se é que existe algum...

Portanto, não se quer saber somente como se escreve, mas também e principalmente

por que se escreve, para que se escreve. E a resposta quase sempre está no que se escreve.

Elizabeth Costello diz não mais acreditar que contar histórias seja uma coisa boa em si, e

que se tivesse que escolher entre contar uma história e fazer o bem, acha que preferiria

259HUTCHEON, 1988, p.40. 260COETZEE, 2004, p.199.

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fazer o bem.261 Sobre as razões do escritor, essa Elizabeth prontamente nos leva àquela –

a mesma - de Homem Lento, ainda que com outro Paul, não mais West, agora Rayment.

Esclareceremos.

Nesse enredo, nos defrontamos com o embate do fazer literário, em que criador e

criatura se confrontam e nos confrontam. “Você veio a mim”,ela diz [a Paul Rayment].

“Sob certos aspectos, eu não controlo o que me vem. Você veio, junto com a palidez, as

costas curvas, as muletas,o apartamento ao qual se pega tão obstinadamente, a coleção

de fotografias e todo resto. Junto também com Miroslav Jokié, o refugiado croata – é, é

esse o nome dele, Miroslav, os amigos o chamam de Mel -,e seu vago envolvimento com a

mulher dele.”262“Você me trata como um fantoche”, ele[Paul Rayment] reclama. “Trata

todo mundo como fantoche. “Inventa histórias e nos força a representar as histórias para

você(...) Não seja amargo,Paul. Deixar você, pegar Marianna: talvez eu não faça isso,

talvez faça.Quem sabe a que se pode ser levado.”263

Coetzee nos apresenta as razões do escritor e da arte de escrever, nos relata que ao

escrever não se controla , de certa forma, o que vem. Quem sabe, então, a que se pode ser

levado?:

“O senhor me veio,só posso dizer isso. O senhor me ocorreu – um homem com uma perna ruim, sem futuro e com uma paixão inadequada. Foi aí que começou. Pra onde vamos daqui, não faço a menor idéia. O senhor tem alguma proposta?”264[Elizabeth pergunta a Rayment.]

Em outro livro – O Mestre de São Petersburgo265 - nos diz Coetzee também sobre

as razões do escritor: “ escreve precisamente porque esteve sozinho em tua infância,

261 COETZEE, 2004, p.186. 262 Idem,2007 p.90. 263 Idem, 2007,pp.125,126. 264 Idem, 2007, p.93. 265 Idem,2003.

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porque não teve amor.(...) não escrevemos graças à plenitude, quero dizer, escrevemos

graças à angústia , à carência”. E ainda sobre o escrever, por vias obtusas e difíceis de se

identificar na mente humana, de alguma forma a necessidade de contar histórias e de ser

amada estão interligadas, nos informa Elizabeth.266.

Na figura do escritor, Ronaldo Lins 267 identifica um núcleo de resistência à atual

época. Ainda que diagnostique um imenso potencial de destruição e nos advirta sobre as

dificuldades para privilegiar a vida e para fazer o Bem, tendo em vista que nossas

intenções são constantemente esmagadas pela mola do lucro, Lins vê na condição

solitária do escritor um lugar de liberdade. Ele com as mãos livres, pode incluir-se na

definição de Sartre e se meter onde não é chamado, sejam quais forem as ocasiões. Só

por isso merece que nos debrucemos sobre o seu trabalho.

Sobre as razões do leitor, nesse caso, o fato é que lemos porque buscamos

orientação, ou seguindo aqui as palavras de Coetzee, buscamos nossa salvação. E mesmo

que aqui concluamos que a literatura pareça conter um propósito ético, vinculada à

salvação de nossas almas e à necessidade de amor, o embate que o texto de Coetzee trava

desvela também um outro estado de coisa: a convicção no vigor desse propósito.

Em Desonra, por exemplo, Lurie diante de seu infortúnio numa África do Sul pós –

apartheid, afirma que nada há a fazer, “nada que ele, um antigo professor de

comunicações, possa imaginar. A não ser começar tudo de novo a partir do a-bê-cê. E

quando as grandes palavras retornarem, reconstruídas, purificadas, merecedoras de

confiança de novo, ele já estará morto há muito.”268

266 COETZEE, 2004, p.248. 267 LINS,2008, p.198,199. 268 COETZEE, 2000, p.148.

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Coetzee chama a atenção para a palavra redentora, provoca substancialmente as

potencialidades da linguagem, mas não guarda ilusões. Sua ficção força a escrita a

confrontar estratégias que colocam em xeque seu poder de criação e revelação, sem

contudo desvelar a verdade, – utopia da narrativa, o que denota a dimensão imponderável

e resistente da linguagem. Em razão disso, sua ficção que inicia sempre como uma

resposta, termina sempre com uma pergunta. E mais uma vez sobra pra nós,leitores...

Na palestra Humanidades na África, ao tratar sobre o Humanismo, Coetzee nos diz

que este resultou em um “conjunto de técnicas - as ciências humanas - , mais árido do

que a poeira. Explications de texte sem fim”,269 causadas pelo monstro da razão, da razão

mecânica, responsável pela morte amarga dos studia humanitatis.270 Pergunta-se qual

rapaz ou moça com sangue nas veias vai querer passar a vida raspando arquivos ou

fazendo explications de texte sem fim?

O que parece uma crítica tão somente à instrumentalização da razão e suas graves

repercussões, apresenta antes um aspecto singular e significativo: o fato de se ter sangue

nas veias ou não. Esclareceremos.

Em outro lugar, Rayment, nosso homem lento, reclama sobre si mesmo: “ Old

blood, cold blood, as palavras martelam sua cabeça. Não há calor suficiente nas veias.”271

Ainda em Homem Lento, dessa vez Costello reage dizendo:“Conforme estou tentando

fazer você entender, nossos dias estão contados, os seus e os meus, porém estou aqui,

matando tempo, sendo morta pelo tempo, esperando – esperando você.” Ele[Rayment]

sacode a cabeça,desamparado.”Não sei o que você quer.”“Força!”, ela diz.272

269COETZEE, 2004, p.149. 270Idem, 2004, p.141. 271 Idem,2007, p.217. 272 Idem, 2007, p.213.

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Nesse pequeno esboço de força, sangue nas veias ou da ausência de ambos nas

figuras envelhecidas de Elizabeth e Paul cabe ainda uma particular análise da obsessão pelo

envelhecimento e a decadência física na obra de Coetzee em geral. Trata-se também do

corpo posto em evidência, feito de sangue e vísceras, que envelhece e que como toda

matéria viva, morre. Enfim, que espécie de analogia pode-se traçar entre a figura desse

corpo em envelhecimento e o vigor ético do discurso literário?

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3.4 Foi atrás dos gregos errados, Elizabeth273

Meu quadril doeu tanto que hoje não consegui andar e mal consegui sentar. Inexoravelmente, dia a dia, o mecanismo físico se deteriora. Quanto ao mecanismo mental, estou continuamente alerta para engrenagens quebradas, fusíveis queimados, esperando sem esperança que ele sobreviva a seu hospedeiro corporal. Todo velho se torna cartesiano.274

No desfecho do primeiro capítulo dessa pesquisa, caracterizamos o discurso

ficcional de Coetzee como um tipo de realismo reconstituído275, que projeta uma ponte

entre o mundo e o texto, analisado também como realismo encarnado276, aquele que é

cravado na vida, isto é, uma espécie de realismo que nos devolve ao real, ou melhor, ao

irremediável real que não comporta os véus da encenação e da performance.277.

Trata-se de um tipo de realismo que confere pela figura do corpo humano uma

espécie de materialidade à gravidade da existência. Vamos ouvir Elizabeth Costello:

“Fique sabendo de uma coisa, Paul: os anos passam num piscar de olhos. Então aproveite

enquanto ainda está com saúde. É sempre mais tarde do que se pensa.”278E pensa sobre a

Vênus de Milo:

Será que a Vênus de Milo se sente natural? Apesar de não ter braços, a Vênus de Milo é tida como ideal de beleza mas seus braços foram quebrados; a perda deles

273COETZEE, 2004, p.163. 274 Idem, 2008, p.195. 275 Rita Barnard em sua resenha do livro J.M. Coetzee, de Dominic Head identifica na obra de Coetzee uma fascinação persistente pela referencialidade e pelo substancial . A leitura de Dominic Head situa a obra em um lugar entre a autoconsciência metaficcional e o ilusionismo realista, entre a materialidade e a alegoria, entre a metáfora e a metonímia. O projeto em curso do romancista – gestual e utópico – é o de reconstruir uma ponte entre o mundo e o texto, o de imaginar um “realismo reconstituído”, no qual o escritor possa ,dentre outras coisas, falar sobre, sem falar pelo outro (Barnard, 2000, p. 214). 276OLIVEIRA, 2009. 277 Idem, 2009, p.4. 278COETZEE, 2007, p.107.

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faz sua beleza mais pungente. No entanto, se descobrissem amanhã que a Vênus foi de fato feita a partir de uma modelo amputada, ela seria imediatamente removida para um depósito no porão. Por quê? Por que a imagem fragmentada de uma mulher pode ser admirada, mas não a imagem de uma mulher fragmentada, independente de os cotos terem sido bem costurados? 279

A imagem de uma mulher fragmentada, a decadência do corpo, da beleza, a imagem

de uma mulher envelhecida....Qual o lugar dessas questões? O relógio do tempo batendo

incessantemente, a irrefutável proximidade da morte. Para Costello, para Paul Rayment e

também para Lurie, em Desonra, que perdeu sua habilidade em atrair mulheres bonitas e

ainda não protegeu sua filha Lucy do estupro que sofreu; a questão que lhes abate é o

modo de estar no mundo intensificado pela implacável força do tempo.

Elizabeth nos diz ao comentar sobre o fim do século XX que: “Pode ter conseguido

rastejar até a linha de chegada e atingido a nova era, mas com certeza não se sente à

vontade nela.”280 Trata-se de refletir sobre “um estar no mundo” ou um “mal estar.”

Em Humanidades na África281, Costello é convidada para um almoço formal, em

uma cerimônia de homenagem à sua irmã Blanche.282Entretanto, ela não tem apetite,

há[apenas] um nó de náusea em seu estômago. A náusea é intermitente nessa narrativa e

resulta em um desmaio de nossa mais famosa protagonista, que desconfia sobre sua

indisposição não ser física ou de ordem apenas corporal. Chama o desmaio de

recolhimento: seu corpo quer voltar ao que lhe é familiar. Está na África, onde tudo é

muito estranho e excessivo.

279 COETZEE, 2007, pp 67,68. 280 COETZEE, 2004, p200. 281 COETZEE, 2004, p.142. 282 Palestra citada na página 62 desta pesquisa.

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A palestra trata sobretudo de um embate entre o ideal civilizatório greco-romano e o

judeo-cristianismo, dito de outra forma, discute-se o Helenismo como alternativa religiosa

ao Cristianismo ou, em termos mais específicos, a harmonia da beleza física em oposição

ao desamparo e à aflição do corpo em sofrimento.

Blanche,irmã de Elizabeth, acusa o Helenismo de ser uma alternativa dos estetas

europeus, não do povo, o qual prefere alguém que sofra como eles, como eles e para eles.

Alguém em quem eles toquem a ferida e sintam o cheiro de sangue. Em dado momento,

Costello admite que o Helenismo – “ mentes livres em corpos livres - mais que um

quadro idealizado:[é] um sonho, uma ilusão”- , e pergunta-se: “Mas que de outra forma

se pode viver senão em sonhos?” Por fim, Blanche irredutível despede-se da irmã com

outra acusação: “Foi atrás dos gregos errados, Elizabeth.”

Seguindo de maneira subliminar esse roteiro de idéias, isto é, admitindo que a

existência só é possível por meio de sonhos, e que tudo é estranho e excessivo para nossa

protagonista - tamanha inadequação existencial – marcada no texto pela náusea que

acomete Costello ao longo daquele enredo, é inevitável aqui uma aproximação dessa

análise à mais famosa obra de Sartre, "A Náusea".

Nessa obra, Sartre nos mostra Antoine Roquentin, um historiador letrado e viajado,

que chega à cidade de Bouville ("boul" indicando "lama" e metaforicamente "impureza")

a fim de escrever a biografia do marquês de Rollebon, figura pitoresca e de

excentricidade fascinante, que vivera na cidade durante o século XVIII. Ao iniciar seus

trabalhos, logo se desencanta de forma irreversível não só pela biografia, como também

pela própria sociedade e condições humanas com as quais se depara em Bouville.

Roquentin é, então, acometido por uma (a priori) estranha sensação de aversão ao ser

humano e sua condição existencial - a "náusea".

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Cercada de um niilismo exacerbado e elucubrações de alta profundidade

intelectual, "A Náusea" nos mostra um protagonista inadequado e repelido pelas próprias

contestações que faz a respeito da existência e sua falta de sentido, ou seja, a respeito da

gratuidade e ilogicidade da existência, por si só desprovida de essência.

Trata-se, portanto, da saga de um personagem conturbado e por vezes beirando a

loucura, tal é a nudez existencial a que ele se expõe.Como dito, para Antoine Roquentin a

existência é gratuita e ilógica e essa constatação por cada um de nós é algo terrível e fora

de aceitabilidade. Decorre, então, dessa falta de essência verdadeira uma busca de cada

ser humano por sua essência artificial e iludida, havendo, para esse fim, uma série de

mecanismos que tornam a existência mais suportável.283

A sensação de náusea como efeito da consciência, como experiência que revela a

gratuidade e o absurdo das coisas e o quanto o sentido da existência pode ser irracional,ou

seja, essa medida de inadequação existencial acrescentada à soma de enganos que é a vida

para Antoine Rouquetin, confere também ao personagem de Coetzee uma dimensão

tangível, que tem no corpo sua expressão maior. O próprio Coetzee chama atenção para

isso:

Se eu analiso minha própria ficção, vejo se elevar um padrão simples (simplório?) O critério é o corpo. Além de qualquer coisa, o corpo não é “aquilo que não é ” e a prova de que ele é está na dor que sente. O corpo e sua dor se tornam um contraponto às provações infindáveis da dúvida.( one can get away whith such crudeness in fiction; one can’t in philosophy, I am sure.)Not grace, then, but at least the body. Let me put it baldly: in South Africa it is not possible to deny authority of suffering and therefore of the body. It is not possible. Not for a logical reasons, not for ethical reasons, (I would not assert the ethical superiority of pain over pleasure), but for political reasons, for reasons of power. Deixe-me novamente não ser ambíguo: não é que alguém conceda

283 Utilizo aqui o texto de Marcelo Sobrinho Mendonça,retirado do site: www.mundodosfilosofos.com.br/analise-obra-a-nausea-jean-paul-sartre.htm -em 30/10/2010.

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autoridade ao corpo em sofrimento: o corpo que sofre se toma dessa autoridade, esse é o seu poder. Em outras palavras: seu poder é inegável.284

Trata-se aqui do corpo em processo de envelhecimento, no seu curso natural de

matéria viva, como agente na construção de sentido, cuja dimensão dá materialidade à

gravidade da existência. Maurice Merleau-Ponty chama de “encarnação da consciência”,

a relação do corpo com o tempo e o espaço, como “pivô do mundo.”

Não à toa, a náusea de Costello manifesta-se enquanto o enredo daquela palestra

põe em discussão as repercussões do Humanismo e do Cristianismo na cultura ocidental.

Enquanto os personagens confrontam os paradigmas a que se subscrevem os ideais

civilizatórios; discutem o corpo posto em evidência entre a harmonia das formas puras e

da beleza, orquestrada pelos gregos, e a imagem ensangüentada de Cristo pregado em

uma cruz, símbolo da religião cristã; é a crença na figura humana como fundamento

civilizatório que subliminarmente está posta em xeque.

Em uma análise mais detida, percebemos que a náusea da personagem recupera o

gládio entre o Autodidata Humanista e Roquentin, no já citado livro de J.P. Sartre. O

embate entre a crença irrestrita nas capacidades humanas do Autodidata e o pessimismo

niilista de Roquentim em relação a essa capacidade se interpõe ao embate entre as irmãs

Costello. Na narrativa de Coetzee, não se perde de vista a crença no processo

civilizatório, entretanto vê-se ela própria desarmada no momento de uma possível

284 IF I look back over my ficction, I see a simple(simple minded?) standart erected. That standart is the body. Whatever else, the body is not”that which is not”, and the proof that is is the pain it feels. The body with its pain becomes a counter to the endless trials of doubt. .( one can get away whith such crudeness in fiction; one can’t in philosophy, I am sure.)Not grace, then, but at least the body. Let me put it baldly: in South Africa it is not possible to deny authority of suffering and therefore of the body. It is not possible. Not for a logical reasons, not for ethical reasons, (I would not assert the ethical superiority of pain over pleasure), but for political reasons, for reasons of power. And let me again be unambiguous: it is not that one grants the authority of the suffering body: the suffering body takes this authority: that is its power. To use other words: its power is undeniable. (COETZEE; ATWELL. 1991,p.248)

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estabilização interpretativa, e isso se dá quando a personagem é acometida pela

intermitente náusea.

A náusea dispara o processo de desdoxificação do discurso, isto é, Coetzee reutiliza

os discursos dominantes e naturalizados, desativando seu potencial ideológico em prol de

uma outra acomodação de sentido que não se estabelece de modo linear. Vale lembrar

que o caráter insidioso da ficção, no entanto, não recai em espécie de narrativa de

natureza relativista. Ou, em outras palavras, o mal físico da personagem desarma um

possível efeito de infinita textualização, trazendo à cena a autoridade do corpo com dor

de que trata Coetzee em trecho anteriormente destacado. Enfim, é a materialidade da dor,

expressa como náusea na personagem, que se manifesta insidiosamente no texto e desloca

o entendimento de um ajuste natural de sentido.

Se levarmos em consideração que buscamos nossa salvação - utilizamos aqui o

termo de Coetzee - contra o desamparo e que no geral buscamos na narrativa uma resposta

a esse estado existencial; e, sob outro prisma, se considerarmos que no contexto desta

análise, tanto o Humanismo, que acredita na capacidade irrefreável humana e o

Cristianismo, que acredita no merecimento divino do homem, tanto um quanto outro

podem ser confrontados sobre os conceitos de humano, de divino e de animal, enfim, que

nenhum desses conceitos guardam em si o signo do imutável, correríamos o risco de recair

em uma espécie de relacionismo generalizado em busca do entendimento sobre nossa

própria existência. Em outras palavras, arriscaríamo-nos em uma investigação de cunho

autotélico dos parâmetros de nossa identidade, uma espécie de multiplicação generalizante

de discursos.

Para escapar de um possível esvaziamento, de um discurso niilista ou de pouca

consistência, o corpo serve como alegoria do sentido - ele dá limite tangível ao

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entendimento abstrato. O corpo em envelhecimento, recorrente figura na obra de Coetzee,

nos aproxima enquanto subjetividade, nos iguala em identidade, traz o texto à significação.

E o ponto tangível na busca por identidade é a soberania de seu funcionamento. Não à toa o

personagem sartriano é acometido pela náusea diante do absurdo da existência. Mais uma

vez é o corpo, por meio de suas reações soberanas que recupera algum sentido entre nós e

nossa própria existência. O corpo é soberano no seu ciclo de vontades, uma vez que ele se

impõe ao peso da realidade ou ao seu entendimento.

O filósofo Giorgio Agamben285 nos lembra que os latinos chamavam Genius ao

deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento, e que ele, para os

antigos, é o princípio que rege e exprime a existência. Entretanto, a despeito de ser tão

íntimo e pessoal, Genius também é o que há de mais impessoal, e concentra-se nesse

aspecto o que se quer tratar aqui.

Genius é a personalização do que nos supera e em nós excede. Compreender essa

concepção é entender que o homem não é apenas Eu e consciência individual, mas que

desde o nascimento até a morte, ele convive com um elemento impessoal e pré-individual,

que não tem a ver somente com aquilo que estamos acostumados a considerar mais nobre e

elevado.

Segundo o filósofo, todo impessoal em nós é genial, sobretudo a força que move o

sangue em nossas veias ou nos faz cair em sono profundo; a desconhecida potência que, em

nosso corpo, regula e distribui tão suavemente a tibieza e dissolve ou contrai as fibras de

nossos músculos. Nossa vida fisiológica é onde o mais próprio é o mais estranho e

285AGAMBEN, 2007.

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impessoal, e onde o mais próximo é o mais remoto e indomável. Isso é onde Genius se

apresenta; é a nossa vida enquanto não nos pertence.286

Desse modo, é exatamente por meio do que não nos pertence é que nos tornamos

familiarizados. Quando Elizabeth acorda do desmaio, entende que este mal súbito é seu

corpo reclamando por retornar a um velho ambiente, a uma vida que lhe é familiar.287 É

curiosa essa relação entre aquilo que não podemos controlar - a vontade soberana do corpo

- e o que nos assegura familiaridade neste enredo. Explica-se.

Todos somos capazes de entender a sensação da náusea, nos irmanamos por

compartilharmos da dor ou de seus sintomas. Isso porque a dor “é”, e seu caráter ontológico

é sua resistência a ser outro. O corpo (em envelhecimento) como paradigma do

entendimento resiste e sua autoridade apresenta-se diante da palavra que perdeu a própria

autoridade como produtora de verdade - palavra redentora; e como palavra que provoca

alteridade, que faz chegar ao outro.

O corpo como verdade, alegoria do sentido, se expressa pelo processo de

envelhecimento e ganha de Coetzee o conceito de unidade da experiência em Diário de

um ano ruim288 - em contraste, não necessariamente em oposição, com a unidade mínima

de sentido, que é a palavra:

Falamos do cachorro com a pata machucada e do pombo com a asa quebrada. Mas o cachorro não pensa em si mesmo nesses termos, nem o pássaro. Para o cachorro quando ele tenta andar, existe apenas Sou dor; para o pássaro, quando ele se lança em vôo, simplesmente Não consigo. Conosco parece ser diferente. O fato de existirem expressões tão comuns quanto “minha perna”, “meu olho”, “meu cérebro” e mesmo “meu corpo”sugere que acreditamos que exista alguma entidade não material, talvez irreal, que mantém uma relação de possuidor e possuído no que se refere às “partes”do

286AGAMBEN, 2007, pp.16,17. 287COETZEE, 2004, p.162. 288Idem,2008, p.67.

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corpo e mesmo quanto ao corpo todo. Ou então a existência dessas expressões mostra que a linguagem não encontra um ponto de apoio, não consegue se desenvolver enquanto não tiver fracionado a unidade da experiência.289

O corpo que nos iguala em humanidade é a alegoria da ética almejada. Em razão

disso, Rayment em Homem Lento que perde a perna, recusa a prótese. Rayment resiste a

um novo corpo em nome de sua identidade; embora fracionado pelas circunstâncias da

realidade, é o corpo e sua dor que lhe assegura dignidade. Nessa medida é ético porque é

ele – o corpo - que ao fim e ao cabo estabelece entre aquele personagem e sua existência

novas relações; é ele ou em razão dele que se reconfigura sua experiência.

Em suma, Coetzee põe em relevo a emblemática discussão que cerca as noções de

identidade. Como nos enxergamos diante do mundo - como nos posicionamos diante das

circunstâncias? Elizabeth chora, está velha demais para isso; Lurie desiste, não há

possibilidade de entendimento nesses tempos; Rayment despede-se de sua criadora

Costello, pois examina seu próprio coração – e percebe que a narrativa não encontra o

amor, não encontra o sentido, afinal. Somente nos resta Lucy – seu corpo ultrajado pela

violência do estupro– pela dor- que elabora outro corpo. Lucy que não acredita em vida

elevada, somente [n]essa que repartimos com os animais; Lucy que afirma que não

funciona por abstrações...E aqui se repete a questão: que espécie de analogia pode-se

traçar entre a figura do corpo e o vigor ético do discurso literário?

Coetzee escolhe o mal estar diante da existência traduzido pelo envelhecimento.

Uma vez que o limite sobre a vida e a morte é de natureza ética, de que senso de

justiça,de que noção de bem, de que dignidade, então, precisamos ?

289 COETZEE, 2008, p.67.

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O problema é que ficamos sem resposta. Nós, leitores; Elizabeth diante do silêncio

de Paul West: “ É uma abertura, uma chance de ele falar alguma coisa. Ele pigarreia,

mas não diz nada, continua olhando para frente, apresentando a ela seu perfil bastante

bonito.”290 Elizabeth diante do silêncio de sua irmã freira: “ Blanche, querida Blanche,

ela pensa, por que existe essa barreira entre nós? Por que não podemos falar uma com a

outra diretamente expostas, como pessoas que estão à beira da morte? Mamãe se foi; o

velho Mr. Phillips foi cremado, transformado em pó e espalhado ao vento; do mundo em

que crescemos, sobram só você e eu. Irmã da minha juventude, não morra numa terra

estranha, não me deixe sem resposta!291 Diante do silêncio de Paul Rayment: “Me

responda, Paul. Diga alguma coisa.(grifo do autor)

E somente escutamos: “(...)um mar batendo na cabeça dele. Na verdade, em seu

entender, podia já ter caído no mar, levado para cá e para lá pelas correntes das

profundezas. O bater da água que com o tempo despirá seus ossos do último fiapo de

carne. Pérolas no lugar de olhos; coral em vez de ossos”292

As obras aqui relacionadas apresentam personagens aturdidos diante do

envelhecimento, como náufragos à deriva, que percebem a dificuldade em encontrar

sentido, a dificuldade em encontrar respostas para o purgatório ético em que se deparam

os homens. Personagens que aspiram um mundo mais decente, mas não guardam ilusões.

Ainda assim, não perdem de vista a própria dignidade, justo “numa época em que os

artistas se agarram aos farrapos de dignidade que lhes restam...”293

Para o desfecho, o próprio Coetzee:

290COETZEE, 2004, p.190. 291Idem, 2004, p.174. 292Idem, 2007, p.108. 293Idem, 2004, p.187.

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O espelho-palavra se quebrou.(...) As palavras na página não mais se levantarão nem serão levadas em conta, cada uma proclamando “Significo o que significo!” O dicionário que costumava ficar ao lado da Bíblia e das palavras de Shakespeare em cima da lareira,lugar onde nos lares piedosos de Roma eram guardados os deuses da família, transformou-se apenas mais em um livro de código.294 (...)Acreditamos que houve um tempo em que podíamos dizer quem éramos. Agora, somos apenas atores recitando nossos papéis. O fundo caiu. Poderíamos considerar trágico esse evento , não fosse pelo fato de ser difícil respeitar um fundo que cai, seja ele qual for- isso agora nos parece uma ilusão, uma dessas ilusões sustentadas pelo olhar concentrado de todos da sala. Removam seu olhar apenas um instante, e o espelho cai ao chão e se parte.295

294COETZEE, 2004, p.26. 295Idem, 2004, p.27.

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3.5 Quem tem medo de Elizabeth Costello?

Para o desfecho deste capítulo- O Lugar da Arte, trataremos especificamente da

recepção à obra ficcional deste autor sul africano. Um dos críticos e especialistas mais

renomados da obra de Coetzee, David Attwell, afirma que sua ficção expressa “um modo de

pós-colonialismo sentido na pele, que traz o legado da metrópole a uma relação complexa

e emocional com a crise histórica na qual está imerso.”296 Justamente é a complexidade

dessa relação que gera mal entendidos e reações adversas oriundas, principalmente, da

crítica sul-africana.

De fato, é uma tarefa difícil inscrever J.M.Coetzee em quaisquer teoria e discurso de

natureza teórico-literária, quando se trata da crítica africana como um todo. Há uma

peremptória exigência pelo engajamento político da obra desse escritor e na mesma

proporção, uma rancorosa reação dessa mesma crítica. Coetzee não é facilmente

encampado pela chamada crítica pós-colonial africana, que, no geral, trata de modo

bastante diversificado a heterogênea literatura deste continente. Não causa espanto lembrar

que à época do lançamento de Desonra -1999, a obra foi considerada racista e promotora de

uma visão profundamente negativa da África do Sul, país que lutava, então, pela

construção, sob grande visibilidade internacional, de uma nova sociedade pós- apartheid.

Dada a questões de natureza histórica, como o advento de novas democracias

resultantes de processos de libertação política no continente, somado a países que ainda

enfrentavam ou enfrentam sistemas ditatoriais, a literatura e a crítica literária africanas

preocupam-se sobretudo em “descolonizar” as produções artístico-literárias em função da

organização de um novo cânone inscrito em forte heterogeneidade. Essa marca reflete

296COETZEE; ATWELL, 1991, p. 3.

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também o fato de a crítica dividir a literatura entre branca e negra, bem como explica uma

“acanhada” visão da obra de Coetzee, situada entre os anos de 1970 e 80, que, em geral

quando mencionada, é ligada ao apartheid e considerada como literatura dissidente, ou mais

enfaticamente, depois da publicação de Desonra em 1999, considerada racista e liberal.

Não é difícil entender esse contexto, tendo em vista, que a chamada “voz” do

homem branco carrega, quer queira ou não, a história da colonização de boa parte daquele

continente, cujo discurso ainda é muitas vezes recepcionado como “voz do colonizador”.

Retoma-se aqui a complexidade que requer esse tipo de análise.

Em se tratando da obra de Coetzee, o aspecto ético, fortemente humanitário e de

diretrizes universais, é sempre enfatizado pela crítica, conforme já discutido ao longo deste

trabalho. Entretanto, também é mal compreendido por boa parte da crítica sul-africana que

o acusa de manter um compromisso com as representações ‘coloniais’ e de não explicitar

um real engajamento nos conflitos sócio-raciais presentes naquela sociedade.

A pesquisadora Marília Bandeira,297 em sua dissertação de mestrado afirma que, na

visão de alguns críticos, os autores brancos, voluntariamente ou não, participaram da

construção de um discurso que resultou em processo similar ao que Edward Said cunhou de

Orientalismo (1978), - o Africanismo. Um continente construído pelo olhar do colonizador,

que resultou em romances, relatos, estudos e pesquisas, enfim, formadores da base de

distinção entre a África e o chamado Ocidente, nos quais predominam imagens exóticas e

de cunho essencialista.

Elizabeth Costello, nossa famosa personagem, trata desse lugar ocupado pelo

escritor africano, mais especificamente “sul-africano”, durante os tempos do apartheid:

297 BANDEIRA, 2008.

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O exotismo e suas seduções?Conte o que quer dizer com isso. O romance inglês, diz, é escrito em primeiro lugar por ingleses e para ingleses. É isso que faz dele o romance inglês. O romance russo é escrito em russo para russos. Mas o romance africano não escrito por africanos para africanos. Os romancistas africanos podem escrever sobre a África, sobre experiências africanas, mas me parece que estão olhando por cima do ombro o tempo todo enquanto escrevem, para os estrangeiros que lerão seus livros. Gostem ou não, eles aceitaram o papel de intérpretes, interpretando a África para seus leitores. No entanto, como é possível para alguém explorar um mundo em toda sua profundidade se, ao mesmo tempo, precisa explicar o que está fazendo para uma classe de alunos ignorantes? É demais para uma pessoa só, não pode ser feito, não em um nível ,mais profundo. Parece-me que essa é a raiz de seu problema. Ter de fazer uma performance de sua africanidade ao mesmo tempo que escreve.298

A questão da performance para qual a personagem chama a atenção diz respeito ao

um perfil a que os escritores deveriam se encaixar. A maioria dos autores sul-africanos

preocupava-se em retratar os violentos conflitos ocorridos que marcaram e ainda norteiam o

país, desde a implantação do regime segregacionista em 1948. Nessa medida, não importa

se estamos diante de um autor sul-africano branco ou negro, pois a contextualização de suas

narrativas dentro de uma moldura definida pelo conflito racial é constante em muitas das

suas obras até hoje.

Por outro lado, a literatura escrita por brancos africanos e descendentes de europeus

caracterizaria a chamada “dupla ancestralidade,” denominação de Lewis Nkosi,299 e foi

considerada um produto bastardo de culturas e gêneros, tendo sido analisada pela crítica,

em geral, negativamente, segundo a pesquisadora Marília Bandeira. Nkosi, porém, enfatiza

uma marca positiva dessa característica por meio da afirmação e valorização da “mistura.”

O crítico argumenta que a diversidade do romance africano reflete melhor a África

298COETZEE, 2004, p.59. 2991981.

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moderna, fortalecendo e vitalizando a sua ficção. Nessa medida, a literatura produzida

pelos autores de dupla ancestralidade deve ser encarada, segundo o crítico, como um acervo

de documentos valiosos que representam com propriedade suas vicissitudes e sua história.

Entretanto, Nkosi avalia que os escritores sul-africanos da era do apartheid eram

conclamados a assumir um posicionamento de protesto e comprometimento, atuando como

uma espécie de consciência da sociedade, revelando o que muitos preferiam não ver.

Aspecto esse sempre reivindicado pela crítica ao tratar da chamada “escrita branca”.

Alguns nomes como Nadine Gordimer e Breyten Breytenbach e André Brink

citados nessa pesquisa, por exemplo, são considerados autores brancos engajados na luta

anti-apartheid. Suas obras foram constantemente censuradas e impedidas de serem

publicadas. Por outro lado, pela escrita de Coetzee desenvolver outro estilo, que escapava

entre outras características de um registro explícito de denúncia social e política, sua obra

foi mal compreendida por autores da escrita de “resistência ao apartheid”, bem como pelos

próprios órgãos de censura do Estado, que não conseguiam “identificar” propriamente o

que deveriam censurar. Não à toa,e em especial, Coetzee trata da censura detalhadamente

em sua extensa obra não ficcional.

Em Giving Offense: Essays on Censorship,300 Coetzee aponta em vários escritores,

sujeitos a regimes de censura, um discurso contaminado, por um lado, pela ordem de

violência à qual tenta escapar; por outro, contaminado pelos olhos dos censores. Explica-se.

É de tal modo essa aproximação – excessiva preocupação em burlar a censura - que o

censor transforma-se na verdade em uma espécie de olhos do escritor, seu alter ego.301

300COETZEE, 1996. 301Idem,1996, p.36.

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É como se os escritos estivessem sob uma ordem de contágio, a que ele chama de paranóia.

Em suas palavras:

Nem eu, quanto escritor, estou isento. Por uma insistente fraseologia, por uma veemência, por uma exigência de atenção às minúcias do estilo, por uma excessiva releitura e reescrita, detecto, na minha própria linguagem, a mesma patologia que discuto aqui. Tendo experimentado o auge da censura na África do Sul, visto suas consequências, não somente na carreira de colegas escritores, mas no discurso público em geral, e percebido dentro de mim alguns de seus efeitos mais secretos e vergonhosos, tenho toda a razão para suspeitar que o que quer que tenha afetado Arenas (escritor cubano)ou Manganis (o escritor grego George Manganis)ou (o iugoslavo Danilo) Kis, real ou ilusória, me contaminou também.302

Perceber-se também contaminado pelo espírito de censura e perseguição vigente,

possibilita a esse escritor um exame detido e substancial de sua obra, criando um resultado

universal ao que poderia ser marcadamente histórico. Vale lembrar uma de suas grandes

preocupações em relação ao processo criativo, que desafia a seu ver os escritores sul

africanos submetidos à censura da época do apartheid é não jogar com as regras do Estado,

é estabelecer sua própria autoridade, em suma, é imaginar a tortura em seus próprios

termos.

Uma parte da crítica escolheu apoiar aquela abordagem universalista, cuja

intensidade é notada por ocasião da publicação do romance À Espera dos Bárbaros em

1980, crítica mordaz à censura, à tortura e ao sistema imperialista. Coetzee em entrevista a

Richard Began303 em 1992, sobre a possível relação entre os graves conflitos raciais de seu

302 Nor am I, as I write here, exempt. In the excessive insistency of its phrasing, its vehemence, its demand for sensitivity to minutiae of style, its overreading and overwriting,I detect in my own language the very pathology I discuss. Having lived through the heyday of South African censorship, seen its consequences not only on the careers of fellow-writers but on the totality of public discourse, and felt within myself some of its more secret and shameful effects, I have every reason to suspect that whatever infect Arenas or Mangakis or Kis, whether real or delusional, has infected me too. (COETZEE, 1986, p.37.) 303BEGAN, 1992, p.424.

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país e o enredo de À Espera dos Bárbaros, reafirma o caráter atemporal e de indefinida

geografia presente na obra:

Não há nada sobre negritude ou “branquitude” em À Espera dos Bárbaros. O magistrado e a garota poderiam muito bem ser russo e Khirghz, ou Han e Mongol,ou Turco e Árabe, ou Árabe e Bérbere.(...)304

David Attwell em J M Coetzee, South África and Politcs of Writing305 analisa as

condições sociopolíticas à época da publicação de À Espera dos Bárbaros. Ele aponta que o

caráter universalizante que permeia a narrativa, se dá em razão de driblar a censura306 e

atingir maior público de leitores, a despeito de Coetzee, em outro lugar, fazer menção à

morte dos ativistas Steven Biko e Neil Aggett em câmaras de tortura, e igualmente no livro

À Espera dos Bárbaros serem os efeitos das câmaras de tortura sobre lideranças políticas

um importante aspecto presente. Para o crítico, o romance em questão apresenta uma

espécie de exorcismo do fantasma do realismo social que comprometia a literatura local. Na

obra, as relações significativas são apresentadas de modo esquivo, quase impreciso para

que possíveis desfechos interpretativos sejam desfeitos em benefício de uma “versão”mais

complexa, propriamente irresoluta. Ao final, Attwell define Coetzee como “alguém que

vive em tempo real o profundo sofrimento diante da condição histórica de seu país.”307

304 “There is nothing about blackness or whiteness in Waiting for the Barbarians . The magistrate and the girl could as well the Russian and Khirghz, or Han and Mongol, or Turk and Arab, or Arab and Berber.(…)” 305 ATWELL, 1993. 306 Vale lembrar que Coetzee em Givving Offense- Emerging from censorship apresenta uma visão bastante demarcada a respeito da figura do censor e seus efeitos transfiguradores na criação literária,isto é, o autor aponta na figura do censor alguém que se estabelece no ato da criação como um intruso e que toma as rédeas da ficção.: “the censor is na intrusive reader, a reader who forces his way into the intimacy of the writing transaction, forces out the figure of the loved or courted reader, reads your words in a disapproving and censourious fashion.”( COETZEE, 1984, p.38) 307“ Painfully conscious of one’s immediate historical location”(Attwell, 1993, p.73)

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Um outro estudo, de Anne Waldron Newmann,308 sobre o tempo da narrativa em À

Espera dos Bárbaros, avalia o efeito alegórico universal marcado pelo uso do tempo

presente que serve à alegoria atemporal da opressão. Segundo ela, a característica alegórica

se expressa em razão das situações ali narradas não representarem a si mesmas, e sim

corresponderem a outros eventos. Efeito este que o preservou da censura vigente em época

de apartheid e que concomitantemente tornou – o alvo da chamada crítica engajada.

Vale como curiosidade mencionar o relatório do censor Reginald Lighton sobre À

Espera dos Bárbaros, que pondera sobre a ausência de apelo popular na obra, e diz que

“apesar de ter seus méritos literários, existem menos de meia dúzia de palavras ofensivas

em função do contexto e todas lugares-comuns (...); e que ‘a narrativa não se passa no

país, e sim no deserto’; que ‘os incidentes sexuais não são provocantes’; e que por fim

‘não há razão convincente para declarar o livro indesejável’.”309

Outro crítico, Derek Attridge, entretanto, adverte a necessidade da crítica em aclarar

na narrativa, os fatos políticos que sucediam na África do apartheid. O especialista pondera

sobre as relações óbvias traçadas pela crítica entre o contexto opressor sul africano e o

enredo do romance publicado no ano de 1980. Na verdade, preocupa-se com o fato do

conceito de alegoria, ser um recurso simplificador que resulte no risco de amarrar o texto

em inter-relações facilitadas e costumeiras entre a ficcão e a realidade. Attridge aponta que

o texto em si não possui uma verdade, bastando aos leitores trazê-la à tona à luz do

308 1990. 309 MACDONALD, 2004, p. 292.

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conhecimento, e diz sobre À Espera dos Bárbaros ser uma experiência que a cada leitura

suscita novas formas de entendimento, uma nova singularidade. Em suas palavras:310

Alguma coisa surge na experiência da leitura tal como um evento. Eu trato como algo que estando no processo de entendimento e respondendo como um leitor individual, nem tempo e lugar específico, condicionado por uma história que vai além.

A despeito da visão categórica e resistente ao caráter alegórico presente nas obras

aqui relacionadas defendidas por Derek Attridge em Against Allegory , pode-se constatar

facilmente na obra de John Coetzee uma intensa crítica à explicitação de lados, ao

engessamento do discurso; por fim, à dificuldade de negar que parte de sua obra traduz-se

também com forte característica alegórica. O próprio Coetzee nos diz isso: “A paisagem

não é determinada em Barbarians [...] Eu apenas aproximei diversos cenários e deixei

muita coisa vaga com uma intenção específica de que não se fizesse uma conexão a um

lugar preciso.”311

Acrescenta-se ainda o romance Vida e Época de Michael K.312de 1983 que rendeu a

Coetzee um dos dois prêmios britânicos – Booker Prize- que recebeu, o qual também se

inscreve neste caráter alegórico. Nadime Gordimer ao prefaciar o livro Critical

Perspectives on J. M. Coetzee,313nos informa:

Se até a Idade do Ferro, a ficção de J.M. Coetzee não fizera menção à África do Sul, tem se mantido à distância disso. Esta ficção poderia não vir de lugar nenhum do mundo. Vida e época de Michael K. são a vida e época de milhões de negros sul-africanos que são removidos, humilhados, expulsos, isolados vagando e

310“something that is grounded in a experience of the reading as en event.(...)I treat (the text) as something that I, into being, only in the process I understanding and responding that I, as an individual reader in a specific time and place, conditioned by a specific history, go through.”( Attridge, 2004a) 311 PENNER, 1989, p. 76. 312 COETZEE, 2003. 313 GRAHAN, 1996

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escondendo-se além dos limites das áreas. Michael K. era um deles, todos eles.314

Com propósito, vale lembrar de Walter Benjamin315 quando magistralmente nos

indica que o conceito de alegoria não trata de referências lineares. As representações por

meio desse conceito resultam em “multissignificações” que enriquecem o entendimento, o

que projetaria essa figura de linguagem, segundo sua visão, como um conceito apto para

definir a origem da obra de arte.

A alegoria ou o modo alegórico presente na obra de Coetzee cria um recurso,

digamos, de maior independência do discurso dominante e com efeito, desfaz a

possibilidade de uma visão positivista dos fatos. Isto é, ele conduz a escrita, ativando

processos de desrealização do cotidiano e ainda incorporando estratégias de deslocamento

que levam à superfície do texto seu potencial ideológico.

A assunção da postura mais independente é defendida por nosso autor em

entrevista:316“Deixe-me dizer de maneira clara que eu não sou enamorado do Ou isto/ Ou

aquilo.”E prossegue:

Eu tenho esperanças de que pelo menos eu tento analisar o que “sustenta” [essa oposição binária “ou isto, ou aquilo”] em cada caso (se eu puder usar essa metáfora de fundação); e que essa resposta de analisar o Ou isto / Ou aquilo não seja lida simplesmente como uma evasiva. (Se for, terei perdido meu tempo) (grifo do autor).

314 “Whether, until Age of Iron, J.M.Coetzee’s fiction has made no mention of South Africa, has been distanced from it. […] This fiction could not have come from anywhere else in the world. Life and Time of Michael K. are the life and time of millions of black south Africans who are removed, dumped, wandering, hiding from Endorsement Out under the Group Areas Act. Michael K. was one of them,all of them.” ( Against Allegory in: ATTRIDGE, Derek. J. M. Coetzee and the Ethics of Reading. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 2004a.) 315 BENJAMIN, 1984. 316 COETZEE, 1996, p 107.

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Esse pequeno panorama crítico aqui esboçado deve-se principalmente ao fato de

Coetzee ser um autor cuja obra é sempre motivo de polêmica. Seus detratores acusam-na

de eurocêntrica, descomprometida com “a voz” dos segregados ou excluídos e

caracterizada pela ausência de polifonia.. O especialista Kenneth Parker, em artigo

intitulado J.M. Coetzee: the postmodern and the post-colonial317avalia que:

Se uma característica dominante do projeto pós-colonial é refutar através da escrita os centros de poder, questionando as reivindicações da Europa à exclusividade do conhecimento e assim descentrar a idéia de autenticidade do colonizador, então Coetzee, como crítico, não é partícipe dessa atividade contradiscursiva.318

Benita Parry, em Speech and silence in the fictions of J.M. Coetzee,319 segue

raciocínio similar, quando pressupõe uma espécie de má vontade em Coetzee de

“orquestrar uma composição polifônica.”320 Sua análise considera que embora Coetzee

apresente estratégias narrativas que põem em xeque o discurso eurocêntrico-dominante,

estas não apresentam sucesso, uma vez que suas narrativas impedem o diálogo entre os

saberes não – canônicos, definidos pela especialista como indizíveis (ineffable). A ausência

das vozes dos segregados seria uma repetição da chamada white writting e também

reproduziria o gesto colonizador de submeter o outro ao silêncio.

Tudo indica que Coetzee quer escapar de uma espécie de confinamento ideológico

característico de um período histórico em que a literatura sul - africana serviu como fonte

de denúncia do sistema do apartheid e como único relato capaz de “registrar” a história de

segregação, já que os outros diversos canais estavam plenamente censurados e sob domínio.

317HUGGAN; WATSON, 1996. 318HUGGAN; WATSON, 1996. ,p.85. 319PARRY, 1998, pp.149-165. 320Benita Parry refere-se aos romances Life and times of Michael K (1983), Foe(1986) e Age of Iron(1990) .

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Benita Parry afirma que o realismo social predominou no romance sul africano

desse período e em ambas as literaturas, negra e branca, as quais seguiam igualmente o

modelo eurocêntrico. Havia uma premência em relatar a situação dos excluídos e vítimas

do apartheid, e os escritores tomavam partido, escolhiam lados para denunciar os abusos e

crimes.

A especialista sul - africana reconhece a postura de Coetzee de não se autorizar a

falar pelos excluídos com a voz da cultura dominante, bem como admite nessa postura a

convicção do autor de que não lhe cabe atribuir ou negar aos personagens essa capacidade

de atuar (agency). Segundo sua visão, ainda que seja clara, em sua narrativa, a crítica ao

discurso dominante, diagnostica uma armadilha nessa estratégia, tendo em vista que,

segundo ela, o poder de enunciação europeu-dominante sobrevive à tentativa de subverter

seu domínio. Parry afirma que o texto de Coetzee privilegia o Ocidente e que os saberes

eurocêntricos são os únicos com poder de enunciar, deixando a representação dos

subjugados sem nenhuma chance de resistência. Por fim, admite que para uma escrita de

resistência ao colonialismo, é necessária a voz dos excluídos.

David Attwell321 em outro artigo considera essas ponderações, contudo

problematiza essa afirmação de ausência de alteridade marcada no silêncio dos excluídos.

Ele nos diz que: “se Coetzee tivesse abordado os sistemas de saber não-ocidentais e

orquestrado uma peça polifônica, o Ocidente ficaria sendo a cultura principal de

referência em sua prosa.” Desse modo, ele reafirmaria as estratégias de poder e dominação

que tanto critica Parry. Segundo Attwell, é na própria dimensão estética, nas qualidades

321 ATTWELL, David. “‘Dialogue’ and ‘fulfilment’ in “J. M. Coetzee’s Age of Iron”. In: ATTRIDGE,2004a, p. 167.

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performáticas da linguagem literária que Coetzee subverte essas estruturas. Aqui vale

lembrar o personagem Petrus de Desonra,cujo lugar de silêncio, isto é, de consciência não

examinada, analisado nessa pesquisa no capítulo 2, substancializa essa discussão.

A ausência/presença do discurso dos segregados, no caso Petrus, problematiza a

exclusão, propiciando visibilidade à questão da polifonia no texto literário. O tratamento

estético configurado no silêncio do personagem projeta a discussão sobre a histórica

exclusão dos despossuídos, transformando o poder do discurso e seu alcance social no

próprio objeto de análise. A realização estética toma como objeto a alteridade na atuação do

texto, deixando entrevermos sua dimensão política. A gênese do silêncio, sua presença,

cercado por um tom enigmático do personagem, potencializa a relação de atribuição da fala

na configuração estética do texto.

Pode-se perceber essa feição ética assegurada pela configuração estética da narrativa

no aspecto auto-reflexivo (ou metaficcional) do texto de Coetzee, que segundo David

Attwell,322 transfere com sucesso a responsabilidade autoral para o leitor. Para ilustrar, ele

cita o romance Idade do Ferro,323 chamando a atenção para a fundamentação ética do texto,

inscrita porém, somente em sua atuação textual. Senhora Curren, a protagonista do

romance, nos textos que deixa postumamente para a filha não oferece a ela uma ‘resposta

definitiva’, um significado revelador, mas a encenação desse significado. No desfecho do

ensaio, Attwell remete a uma citação de Coetzee em Doubling the Point324: “Não assumo

imperativo ético algum. A Sra. Curren é aquela que acredita em deveria(should), que

acredita em acredita em (believes in). De minha parte, o livro está escrito, vai ser

322ATTWELL, David. “‘Dialogue’ and ‘fulfilment’ in “J. M. Coetzee’s Age of Iron”. In: ATTRIDGE,2004a. 323 COETZEE, Age of Iron, 1990. 324COETZEE apud ATTWELL, in: Doubling the Point: Essays and Interviews. Ed. David Attwell. Cambridge, MA,EUA e Londres: Harvard University Press, 1992, p.178

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publicado, nada pode impedi-lo. Está feito. O poder que estava à minha disposição foi

empregado.”

O aspecto auto-referencial presente em Elizabeth Costello, em A vida dos Animais

ou mesmo em Homem Lento, só para citar as obras selecionadas para esta pesquisa, dá

dimensão à atuação do texto literário no processo de desnaturalização das representações.

Constata-se na prosa de Coetzee uma investigação muito particular das práticas discursivas

eurocêntricas em sua historicidade e limitações epistemológicas, mecanismo este poderoso

no “desvelamento” das estratégias de neutralização e cooptação do imaginário ou de

domesticação e controle pelas estruturas ideológicas opressivas ou de mercado, conforme

prefere Luiz Costa Lima325.

325 O professor e pesquisador Luiz Costa Lima, ao ser entrevistado sobre, entre outras coisas, a relação da literatura com as novas tecnologias de massa e seus efeitos de neutralização estética, chama a atenção para o fato de que ao mercado pouco importa que a obra literária provoque uma experiência específica, a experiência estética, e que para tanto ela se mostre de pé atrás contra os valores vigentes, desde que, e aqui se mostra o que significa neutralização estética, seja um produto vendável, o quanto possível de alta vendagem. Mais além, ele cita J.M.Coetzee como um dos autores que não contribuem com as agências de controle. Visto em :www. verbo21.com.br em 10/08/2010.

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CONCLUSÃO

POR QUE COETZEE ESCREVE E POR QUE ESCREVO SOBRE COETZEE?

“Ética não é a vida que simplesmente se submete à lei moral, mas a que aceita, irrevogavelmente e sem reservas, pôr-se em jogo nos seus gestos. Mesmo correndo o risco de que, dessa maneira, venham a ser decididas, de uma vez por todas, a sua felicidade e a sua infelicidade.”326

Em 2010, J.M.Coetzee completou 70 anos e em sua homenagem foram realizados

diversos eventos, principalmente na Europa. De uma maneira insistente, a despeito da

riqueza de sua obra, existe um aspecto que se repete nas mais variadas análises, em diversas

palestras sobre seu trabalho: de ser Coetzee um escritor da linguagem.

Sua obra trilha um processo incessante e inevitável de aproximação e

distanciamento do sentido, uma espécie de ir e vir entre a auto-revelação e o auto-

mascaramento aos quais os movimentos da linguagem nos condena. Seu trabalho

repetidamente e de modo pungente mergulha nos mecanismos em que ela se apóia; indaga-

nos sobre aquilo que se acaba de dizer ou que está prestes a ser dito e revelado pelas

palavras ou que permanece além delas, mas que somente por meio dessas pode ser

revelado.

Em Doubling the Point, Coetzee apresenta um interesse especial pelo escritor de

língua inglesa Ford Madox, autor modernista anglo-americano, a quem muitos anos antes

dedicou sua pesquisa de mestrado, defendida na UCT327 em 1963, sobre seu romance The

Good Soldier, de 1915. A economia da escrita de Ford se tornou para ele, Coetzee, uma

aspiração, bem como o fato do inglês escrever como um outsider. Seu pai foi um alemão

326 AGAMBEN, 2007, p.61. 327 Universidade de Cape Town em Cidade do Cabo, África do Sul.

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anglicizado e sua mãe cresceu em um meio bastante boêmio, os pré – rafaelitas.328Com

efeito, nos diz Coetzee, que a aspiração social de Ford Madox era se tornar distintivamente

inglês, plus anglais que lês anglaises e que para tanto cultivava um certo “estoicismo

tosco.”

Segundo David Attwell, organizador do livro Doubling the Point, é evidente que

Coetzee é muito diferente de Ford, mas sua sensibilidade à posição de outsider cultural e

seus resultados sobre o estilo do escritor chamam a atenção. Por trás de seu modo preciso,

pela qualidade da exatidão de seu texto, tanto no estilo quanto nos efeitos sobre o leitor; o

experimentalismo lapidar dos seus romances, que nos leva de um ambiente cultural a outro,

sugerem, segundo Attwell, um tipo de neutralidade, ou por isso mesmo, um

internacionalismo genuíno, apenas possível ao outsider cultural.

O fato também de ser lingüista especializado no sentido mais estrito, afinal suas

pesquisas acadêmicas incluem a morfologia do holandês, mas também do nama329, do

malaio330 e outras línguas não européias é significativo. Nesses e em outros estudos

328 Em 1848 um grupo de jovens artistas ligados à Royal Academy de Londres funda a Irmandade Pré-Rafaelita, são eles: John Everett Millais (1829-1896), William Holman Hunt (1827-1910) e Dante Gabriel Rossetti (1828-1882). Com o caráter de sociedade secreta, o grupo almeja realizar uma reforma na arte britânica mediante a recuperação do modelo dos pintores florentinos do Quattrocento. Em sua tarefa o grupo é conduzido pela mesma preocupação com a sinceridade e o mesmo incômodo em relação ao preciosismo da arte oficial, que leva na França os pintores do grupo de Barbizon e Courbet na direção do realismo. Ao contrário destes, os pré-rafaelistas propõem como solução ao artificialismo da arte acadêmica a retomada dos pintores anteriores a Rafael (1483-1520), para eles o responsável por toda a insinceridade da arte diante da natureza. Trata-se então de voltar ao tempo em que os artistas eram artífices "sinceros e fiéis à obra de Deus", a natureza, e se empenhavam em copiá-la de modo simples e direto, sem o filtro das formas pré-estabelecidas da pintura acadêmica.(in: GOMBRICH, E.H. “A história da arte”. Rio de Janeiro: LTC, 1999.) 329O nàmá, também chamado khoekhoe ou khoekhoegowab, antigamente chamada de hotentote é a mais populosa e mais disseminada dentre as línguas Khoisan sendo falada na Naníbia, Botsuana e África do Sul por cerca de 250 mil pessoas (1990 - Ethnologue)

330 O malaio é uma língua austronésia falada pelos malaios e por pessoas de outros grupos étnicos que habitam a península Malaia, o sul da Tailândia, as Filipinas, Cingapura, o centro-leste da ilha de Sumatra, as ilhas de Riau e partes do litoral de Bornéu.É a língua oficial da Malásia , do Brunei e de Cingapura.(In: Wikipédia)

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lingüísticos, Coetzee foi capaz de imaginar-se fora de sua própria conjuntura cultural, ou

melhor, ele reflete sobre o que significa pensar fora de sua própria cultura. Nessa medida, a

lingüística habilitou-o a compreender a língua como um sistema cultural inscrito histórico e

socialmente. Em suas palavras:

“Muito de minha formação acadêmica foi na linguística. E de muitas maneiras eu sou mais interessado na linguística que no lado literário da profissão acadêmica. Acho que existe uma evidência de um interesse no problema da linguagem em todos os meus romances. Não vejo qualquer ruptura entre meu interesse profissional na linguagem e minhas atividades como escritor” 331

Ainda segundo Attwell, contactar a gramática universal e, mais tarde, o

estruturalismo, foram etapas importantes na sua preparação como escritor, ainda que ele

tenha dito que desses movimentos não ganhou nada de muito útil de modo imediato. No

entanto, encaminhar-se à linguagem ficcional via lingüística e seu estilo singular quanto à

forma do discurso não são elementos usuais.

Os romances de Coetzee não se apresentam como objetos estéticos acabados; estes

são sempre conscientes de si mesmos e inseridos numa espécie de jogo ou processo de

feitura, para o qual o leitor é convocado a participar. O status de outsider salientado pelo

crítico e a ênfase sobre o processo de criação de ficção são aspectos de grande relevância da

experiência de leitura de sua obra .

Além dessa “auto-consciência lingüística”, há também um sentido no qual a escrita

ganha um corpo histórico reconhecível. Coetzee ainda que trate da situação sul - africana,

conforme observamos em Desonra, obra selecionada para essa pesquisa, bem como em

331 ATTWELL, “Notas ao capítulo I”, 1993, p. 128.

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muitos de seus anteriores romances,332dá universalidade às questões de modo tão poderoso

que se arrisca David Attwell a dizer que ele, Coetzee, escreve sobre o sujeito europeu,

deparando-se com a heterogeneidade e a diferença de forma profunda e perturbante. Apesar

de escritores modernistas terem percorrido caminhos semelhantes, para Attwell, não se

depararam com as mudanças decisivas de poder e autoridade que aconteceram no mundo

conhecido como pós-colonial. Os trabalhos de Coetzee falam sobre o sujeito europeu neste

lugar pós-colonial mais perigoso, cuja redistribuição de poder global que caracteriza a

contemporaneidade, torna sua obra paradigmática.

Seu trabalho articula algumas das preocupações fundamentais que assolam a crítica

como um todo. A dificuldade da linguagem em apreender a verdade ou a autenticidade –

constante indagação de sua obra – ou em apreender a verdade de outro ser através da

linguagem que dispomos - caráter ético que permeia seu projeto literário o leva a discussões

sobre como a linguagem nos escreve e nos lê, como chega a figurar, sendo o texto aquilo

que traduz nossos pensamentos aos outros; o texto e, secundariamente, a fala.

Em suma, a dimensão crítica de sua obra compreendida tanto na auto-reflexibilidade

econômica quanto no concomitante envolvimento com as complexidades da representação,

as quais em variados momentos foram tratadas nessa pesquisa, nos leva a um desfecho

necessário para entendermos J.M.Coetzee.

No início de Doubling the Point, Coetzee nos diz que “num sentido mais geral toda

escrita é autobiográfica: tudo que você escreve, incluindo crítica e ficção, escrevem você

enquanto você as escreve.”333Mais adiante, ele usa uma metáfora peculiar para descrever o

início de seu compromisso com a escrita:

332 À Espera dos Bárbaros; Vida e Época de Michael K.;Idade do Ferro citados nessa pesquisa. 3331992, p.18.

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Eu acho que eu sabia como seria o início, e hesitei. Eu sabia que, uma vez realmente iniciado, eu precisaria ir até o fim com a coisa toda. Como uma execução:você não pode voltar atrás, deixando a vítima pendurada na corda, esperneando e sufocando, ainda viva. É preciso ir até o fim.(Eu poderia ter usado a metáfora de nascimento, percebo, mas deixemos como está).

De outra feita, perguntaram-lhe o que leva alguém a escrever? Ao que ele

respondeu “O que eles estão escrevendo é uma investigação de seus próprios motivos para

escrever.”334

James Wood335 nos relata que há muitos anos, antes da publicação de Elizabeth

Costello, J.M.Coetzee assumiu o hábito de, quando convidado a uma palestra, acionar um

dispositivo ricamente reflexivo: ele lia em voz alta uma história de um escritor convidado a

dar uma palestra. O nome da escritora, não necessariamente seu alter ego, uma das

curiosidades com que brinca o dispositivo, autora de várias palestras que Coetzee proferiu é

nossa Elizabeth, é claro! Australiana nascida em 1928, famosa pela reescrita de um

romance clássico, Ulisses de Joyce, o que nos remete à Foe336, obra reescrita de Coetzee a

partir da história de Robinson Crusoé.

A alternativa ficcional de Coetzee concedia ao autor compartilhar idéias enquanto

obscurecia sua posse ostensiva delas. Escolher a leitura de uma ficção ao invés de uma

fazer uma palestra propriamente acadêmica lhe permitia apresentar ou dramatizar o objeto

em debate ou discussão propriamente dito.

Certa vez, Coetzee foi convidado para uma conferência na Holanda sobre o

problema do mal. Os participantes talvez tenham se sentido pouco confortáveis, tal como a

334COETZEE, 1982. 335 WOOD, 2001. 336 1986.

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escritora Costello sugere, de serem obrigados a falar do mal para uma platéia bem

alimentada e bem vestida neste ambiente europeu no final do milênio.

Coetzee, nesse congresso, resolveu pela primeira vez ler a história da escritora

autraliana Elizabeth Costello que na ficção foi convidada a Amsterdam para falar sobre o

problema do mal. Costello, Coetzee disse, convenceu-se de que alguns tipos do mal são

perturbadores demais para serem representados. Durante a palestra, concluiu que há coisas

que simplesmente não devem ser lidas, nem devem ser escritas, pelo bem do leitor e do

escritor. Essa leitura estranha e deliberadamente contraditória foi capaz de provocar reações

exaltadas, conforme analisamos no capítulo anterior.

Em 1997, em um seminário em Princeton, Coetzee apresenta uma palestra “sobre os

direitos dos animais,” posteriormente publicada como A Vida dos Animais, outra obra

selecionada para essa pesquisa. Nessa palestra ele leu duas histórias sobre Costello que

mais uma vez na ficção foi convidada a uma palestra em algum lugar chamado Appleton

College.

Nessa leitura de Coetzee em Princeton, Costello anunciou não ver diferença entre a

matança dos animais nas indústrias alimentícias e o Holocausto da 2ª guerra. Sua

sensibilidade em relação ao tema era tão imensa tanto para o sofrimento dos animais quanto

para a cumplicidade silenciosa de milhões de seres humanos, que chegava ao limite do

insuportável. Em outro momento, o diretor da faculdade onde está se apresentando Costello

pergunta se o vegetarianismo de nossa personagem é então resultado de sua convicção

moral, o que ela nega de forma desconcertante, alegando que se trata, na verdade, de um

desejo de salvar sua alma!

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Na ocasião, Peter Singer337 sugeriu que o dispositivo usado por Coetzee era

fundamentalmente evasivo. “É um dispositivo maravilhoso, realmente. Costello pode

criticar alegremente o uso da razão ou a necessidade de ter quaisquer princípios ou

proibições claros, sem que Coetzee se comprometa com essas afirmações”, escreveu ele.

Difícil saber os motivos de que fala Coetzee ao ser indagado sobre o que leva

alguém a escrever. O que pretendia alcançar com a novidade, ou que tipo de reação queria

provocar na platéia e seus colegas. No entanto, parece que o recurso provocou a sensação

de algo novo que denunciava as limitações do formato que predomina nesses encontros

acadêmicos. Ainda segundo Wood, para os palestrantes ficaram evidentes tais limitações,

enquanto Coetzee “sacudia a poeira e experimentava uma nova forma de falar.”

O paradoxo da forma escolhida é a de que Coetzee, por um lado, e aos olhos de

parte da crítica, parece estar jogando o seu habitual jogo de “contenção” e “proteção”.

Afinal, o asceta famoso, o palestrante carrancudo e pálido, o não-entrevistado, apenas

decidiu usar a estratégia de não se vincular, isto é, de colocar suas proposições na boca de

um personagem e escapar da linha de frente do debate. Por outro lado, as idéias de Costello

são tão fortes e de natureza tão polêmica que forçam o leitor a escutá-las e segui-las de

volta ao seu autor, Coetzee, por ele mesmo.

Em outras palavras, se Coetzee estava apenas se resguardando, optando por um jogo

que o salvaguardasse, por que apresentar argumentos tão claramente polêmicos? O

dispositivo que de antemão distancia o autor ou quer parecer que o faça, leva a platéia

diretamente de volta para ele, como o autor certamente reconhece.

337Peter Albert David Singer nasceu em Melbourne em 6 de julho de 1946. É um filósofo e professor australiano e dá aulas na Universidade de Princepton, nos EUA. Atua na área de ética prática, tratando questões de Ética de uma perspectiva utilitarista.. Singer é um grande defensor dos animais, apoiando plenamente a causa da libertação animal, um dos muitos motivos que o fez adotar o veganismo.

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Sob essa lógica, poderíamos também aferir que o que nos diz Coetzee é que a

maneira mais fácil de se aproximar do leitor é se auto corrigir e se auto criticar. O que ele o

faz ao colocar Elizabeth em confronto com sua capacidade de argumentar, uma vez que a

personagem pondera que o argumento não é seu métier; preocupa-se em ter exagerado em

Amsterdam ao falar demais, porque um limite foi atingido, afinal, ainda há algo a dizer a

uma platéia educada, européia, no início do novo milênio? 338

Outro dispositivo utilizado por Coetzee é o filho de Elizabeth, John, que muitas

vezes a acompanha para oferecer outra visão a respeito da protagonista. Costello então

transforma-se em uma senhora cansada e comum, capaz de preocupar o filho com

freqüência, inclusive sobre seu aspecto físico frágil e personalidade muitas vezes

vulnerável, elementos de difícil constatação quando não se tem intimidade (parece dizer-

nos Coetzee).

Em A Vida dos Animais discute-se a vida e não os direitos dos animais. Um dos

argumentos é que a razão filosófica tem nos impedido de entrar na consciência dos

animais. E nessa medida, quando decidimos os limites de sua consciência, tendemos a

acreditar que temos direitos expugnáveis sobre essas formas de vida.

Costello menciona o artigo de Thomas Nagel339 sobre a impossibilidade de pensar a

nós mesmos na mente de um morcego. Se podemos nos imaginar como mortos, por que não

imaginarmo-nos como um morcego? Pergunta Elizabeth a uma platéia atenta e silenciosa.

“Para ser um morcego vivo é preciso estar cheio de ser, ser totalmente um morcego é como

ser plenamente humano, que é também estar cheio de ser; ser completo, cheio de ser é 338 COETZEE,2004. 339 Thomas Nagel nasceu em Belgrado, Iugoslávia em 4 de julho de 1937 , é filósofo e vive nos EUA onde dá aulas de Filosofia e Direito New York University. Seus trabalhos se concentram em Filosofia da Mente,Filosofia Política e Ética. É conhecido por sua crítica aos estudos reducionistas sobre a mente em seu "What Is it Like to Be a Bat?" ("Como é ser um morcego?"), de 1974, e por sua contribuição à teoria político-moral e deontológica em "The Possibility of Altruism", de 1970.

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viver como um corpo – alma. Um nome para experiência completa do ser é alegria340.” Em

seguida, a personagem argumenta que “isso não é nada mais do que o exercício de

solidariedade humana, exercício que os romancistas de todo mundo deveriam praticar.”

A personagem prossegue afirmando que “o conhecimento que temos não é

abstrato”, e depois cita um silogismo: “Todos os seres humanos são mortais, eu sou um

ser humano, portanto eu sou mortal”.341 Conforme o crítico James Wood, esse silogismo

remete a obra de Tolstoi, A Morte de Ivan Illitch. Costello e Coetzee, neste momento, não

estão apenas afirmando que tal conhecimento não é abstrato, eles estão decretando sua

concretude não-abstrata, recusando-se a argumentar filosoficamente, como Tolstoi faz em

seu romance, de acordo com Wood.

O objeto de Costello é a morte e a chave para essa compreensão é a referência a

Ivan Ilitch. A palestra trata da vida dos animais, e portanto, também a vida dos humanos, os

quais ao vislumbrarem a própria morte, podem imaginar a morte e o sofrimento de milhões

de animais que nos leva mais uma vez a pensarmos sobre nossa própria morte.Na obra de

Tolstoi, lidar com a morte é buscar a salvação, tal como Costello que se diz tentando salvar

sua alma quando indagada sobre seu hábito vegetariano!

Já no desfecho da palestra, quando ela chora nos braços do filho, quer parecer-nos

que se trata exatamente de seus momentos finais:

“ Ela volta para ele um rosto molhado em lágrimas. O que ela está querendo? Pensa ele.Que eu responda a pergunta por ela?(…) Ele estaciona o carro, desliga o motor, abraça a mãe. Aspira o aroma de crème de beleza, de pele envelhecida. “Pronto,pronto”, sussurra no ouvido dela.”Calma,calma,já está quase no fim.””342

340COETZEE, 2004, p.89. 341Idem, 2004, p.88. 342COETZEE, 2004, p.132.

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Não se pode saber o quanto de Costello é compartilhado por Coetzee. Todavia, sua

resposta a Thomas Nagel é a resposta da literatura à filosofia. Os que ouviram Coetzee em

Princeton, ouviram uma crítica que não se submete a nenhuma outra instância, e que

pretende ser tão potente quanto a literatura ou a filosofia sobre a qual ela discorre, na

verdade, uma crítica que é literatura, ou mesmo, poderíamos chamar de uma modalidade

de crítica: a crítica ficcional, afirma James Wood.

Não há como negar a influência do conhecimento filosófico ao lidar com os

romances de Coetzee, já que ele próprio nos deu algumas indicações nesse sentido. Ao

comentar o fato de não ser um “filósofo por formação,” o autor afirma seu interesse em

escrever um tipo de romance que “não esteja em excessiva desvantagem (em comparação

ao filósofo) quando se entretém (ou lida) com idéias”.343

Não há aqui uma disputa entre a filosofia e a literatura. Na verdade, temos campos

de conhecimento não hierarquizáveis. O recurso de Coetzee ao criar Costello é o da ficção

sobre a argumentação da crítica tradicional; parece-nos uma maneira de dizer que o único

meio de discutir literatura é através da literatura, isto é, a argumentação literária deve

assumir uma forma literária.

Entretanto, a ficção também é encantamento, não só argumento. Em Humanidades

na África, Costello lembra o fervor religioso com que leu Eliot 344e Lawrence345 nos anos

de 1950 e afirma que 346bastam os livros para ensinar a nós mesmos.

Se podemos constatar a influência de Tolstoi na obra de Coetzee, também

percebemos outro escritor russo, Dostoievski. Em Irmãos Karamasov, os personagens 343COETZEE, 1991, p. 246. 344 T.S.Elliot : poeta modernista, dramaturgo e crítico literário inglês, nascido nos EUA em 1888; morreu em 1965 em Londres. 345 D.H.Lawrence: esritor, poeta, dramaturgo e crítico modernista nascido em 1885 em Notthingam, Inglaterra;morreu em Vince em 1930. 346COETZEE, 2004, p. 145.

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agem sob forças passionais; por exemplo, Dimitri Karamasov submete-se a ser julgado pelo

assassinato do pai, mesmo sabendo-se inocente. Ele oferece-se como bode expiatório – o

que lembra Lurie em Desonra, ao ser julgado pela comissão da Universidade; Dimitri

aceita a punição porque sentia vontade de matar seu pai e se dispõe como culpado frente a

todos.

Parece que Costello tal como Dimitri acredita no gesto no lugar do argumento. Ela

observa que está ultrapassando os limites da razão, pois quando questionada sobre seus

princípios a respeito da matança dos animais, afirma que “ se princípios são o que se quer

tirar dessa conversa, (eu respondo): abra seu coração e ouça o que ele diz.”

O texto de Coetzee prossegue com Elizabeth querendo as desculpas até dos

pássaros:“Um pardal derrubado de um galho com um estilingue, uma cidade destruída

pelo ar: quem se atreve a dizer o que é pior? O mal, tudo isso, um universo mal inventado

por um deus mal.” Ela, então, se rende ao sacrifício, coloca-se em ambientes racionais e

anuncia seu coração: “Eu estou me oferecendo a vocês em toda minha ‘desrazão’. Deixe a

razão fazer o que quiser comigo. Eu não sou uma idéia.”

De que trata a desrazão de Costello? O psicanalista Jurandir Freire em artigo

jornalístico347diz que aquilo que realmente importa é a medida de cada um para com as

próprias ações éticas, isto é, para ele, citando outro filósofo Zigmunt Baumann , “só se

pode julgar uma sociedade pela maneira como ela trata os desvalidos.”

Quando o personagem de Dostoievski defende que devemos pedir perdão mesmo

aos pássaros, bem como o faz Costello, o que se entende é a impossibilidade de

hierarquizar eticamente as ações que praticamos. Qual o pior mal? Existe hierarquia para o

mal? Ou nas palavras de Coetzee: Que cheiro tem o mal?De súlfur?De enxofre? De Zyklon 347 In:O Globo, Prosa e Verso, 30/10/2010

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B? Ou o mal se tornou sem cheiro e sem cor, como tanta coisa do resto do mundo

moral?348

A vida é um teatro, diria Erasmo de Rotterdam, em O elogio da Loucura:349 Para

dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o

fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma.350

Elegendo aqui um paradoxo típico de Erasmo, Coetzee afirma que: “uma dignidade que

mereça respeito é uma dignidade sem dignidade.”351 E que: “O verdadeiro respeito é

uma variedade de amor. Respeitar alguém significa perdoar nessa pessoa uma inocência

que fora do teatro seria falsa, uma dignidade que seria risível.”352 Desnudar seus

personagens de sua dignidade ao explorar os problemas éticos surgidos de um colapso de

fronteiras entre o eu e o outro, recusar a submeter-se à ordem instrumentalizante dos

padrões morais herdados da tradição ocidental, deslocar os parâmetros identitários ao

expressar caridade aos animais como se humanos fossem, parece ser um projeto de

Coetzee, para quem a dignidade é uma herança, uma ficção que criamos para nos

distinguirmos.

Sobre isto trata Coetzee: não há senso de comunidade se não há valores a se

compartilhar – daí a medida do corpo – marca de sua obra. O corpo de Elizabeth – seu

coração – que é anunciado quando se coloca em ambientes racionais contra a própria razão;

o corpo em silêncio de Lurie, em Desonra, que perde seu lugar de acadêmico, seu nome e

348COETZEE, 2004, p.189. 349 ROTTERDAM, 2003. 350 ROTTERDAM, 2003, pp.40,41. 351 “A dignity worthy of respect is a dignity without dignity.”(COETZEE,1996, p.15 Trad.A) 352“ True respect is a variety of love and may be subsumed under love; to respect someone means, inter alia, to forgive that person an innocence that, outside the theater, would be false, a dignity that would be risible.” (COETZEE,1996,p.15.Trad.A.)

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seu emprego, quando emudece diante da Comissão da Universidade que julgava o caso de

assédio sexual; o corpo de Lucy, afinal, que sofre a violência do estupro, herança trágica

inscrita nos tempos do apartheid. Enfim, diante da razão é o corpo que responde, por quê?

Porque é uma forma de dizer que Costello, Lurie e Lucy não são uma idéia, que a

morte não é uma idéia e o sofrimento também não! E a literatura convocada a falar, tal

como a morte e o sofrimento, isto é, a ficção, também não é uma idéia.

Em Doubling the Point ,353 ele toma a questão:

Quando você escreve – estou falando de qualquer tipo de escrita – tem a sensação de que está se aproximando “disso” ou não. É ingenuidade pensar que escrever é um processo simples de duas etapas: primeiro você decide o que quer dizer, depois você diz. Ao contrário, como todos sabemos, você escreve porque você não sabe o que quer dizer, ou você não sabe que sabe. Escrever “revela” para você aquilo que você queria dizer em primeiro lugar. De fato,algumas vezes constrói o que você quer ou queria dizer. O que é revelado pode ser bem diferente daquilo que você queria dizer inicialmente. É nesse sentido que se diz que escrever escreve você. Escrever mostra ou cria o que nosso desejo era um minuto atrás. Desse jogo emerge, com sorte, o que você reconhece ou espera reconhecer como verdadeiro.(...) A verdade é algo que vem no processo da escrita ou vem do processo da escrita.

Pode-se estabelecer aqui algumas interseções curiosas. Em Homem Lento, Coetzee

nos diz que escrever é uma forma de amor, e o impasse entre criadora e personagem

diagnostica o panorama de dificuldade para a arte (literária) e não apresenta solução. Mas

não afirma isso de modo tão simples: “a verdade é dita, se é que chega a ser dita, em

amor. Porque o olhar amoroso não se ilude. O amor vê o que é melhor no amado, mesmo

quando o melhor do amado acha difícil emergir para a luz.354

353 COETZEE, 1992. 354Idem, 2007, p.170.

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Retomemos, então, as considerações que encaminham a pesquisa: qual medida é

necessária à escrita , de qual vigor precisamos para resgatar à palavra literária sua força de

repercussão? Deixemos que a ficção responda: “É isso que Elizabeth Costello não entende.

Elizabeth Costello pensa nele como um castigo”, nos conta o personagem Paul Rayment,

sobre sua criadora em Homem Lento. “Um castigo que veio infernizar os últimos dias de

sua vida, uma penitência incompreensível que ela está condenada a dizer, recitar, repetir.

Ela olha para ele com desgosto, com desânimo, com exasperação, com o coração pesado,

com tudo menos amor.”355 Paul Rayment, diz que quando encontrá-la, [Elizabeth] “vai

dar-lhe uma lição: Um homem que vê o mundo à sua maneira e que ama à sua maneira. É

um homem que não há muito tempo perdeu uma parte do próprio corpo: não esqueça

disso. Tenha um pouco de caridade, ele dirá. Então talvez possa encontrar em você a força

de escrever.”

Aqui completa-se um ciclo de raciocínio interessante: escrever é buscar a verdade,

pelo menos a própria verdade. Esta só pode ser dita em forma de amor, que se expressa

com autenticidade validada pelo gesto, ou pelo corpo e seu sofrimento. É o homem que

“não há muito tempo perdeu uma parte de seu corpo” que desperta o gesto em direção ao

outro; gesto esse que ganha o nome de “caridade”. Em outras palavras, pelo sofrimento do

corpo, em lugar da impossibilidade da linguagem fazê-lo, chegamos ao outro, sentimos o

outro. E nesse jogo de alteridade, a palavra – chave é caridade, ou como prefere Coetzee:

Não Eros, muito menos Agape. Caritas. Seria preciso esperar que os cristãos viessem com

a palavra certa.356

355COETZEE, 2007, p.170. 356 Idem, 2004, p.173.

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É o corpo e sua dor postos em evidência (o que anteriormente denominamos “corpo-

alma”, no esforço de nomear um deslocamento de paradigma que desse conta de uma nova

reflexão) na obra de Coetzee que garantem a autenticidade do gesto em direção ao outro.

Ainda que assim corramos o risco de ponderar que a nossa subjevidade ( e nossos valores

morais) foi reduzida ao corpo como valor central, interpretação plausível nesse debate,

trata-se aqui de uma outra ordem de coisas. Trata-se da vida “ que aceita, irrevogavelmente

e sem reservas, pôr-se em jogo nos seus gestos” , ou seja, é desse acerto ético de que fala

Agamben357 que parte a empreitada da obra de Coetzee, segundo nossa análise. É um

projeto de vida que se inscreve no risco e não no cálculo.

Em razão disso, esclarece-se o sentido de caritas, que muito além de manifestar a

solidariedade, o cuidado com outros seres, trata-se de um lugar em que lidar com o outro é

se colocar em risco. Risco esse expresso nas obras aqui analisadas pelas circunstâncias

limítrofes por que passam os personagens de Coetzee, fartamente discutidas nessa pesquisa.

A literatura tem que incomodar. A desesperança pode resultar em um desejo

profanador, nos diz a professora e crítica literária Beatriz Resende, citando Giorgio

Agamben358 ao discutir o legado de desesperança na contemporaneidade.

Segundo o filósofo italiano, para o “grande jurista Trebácio”, o ato de profanar

“em sentido próprio denomina-se àquilo que, de sagrado ou religioso que era, é devolvido

ao uso e à propriedade dos homens. (...) Puro, profano, livre dos nomes sagrados, é o que

é restituído ao uso comum dos homens.” No texto Elogio da Profanação, Giorgio

Agamben nos diz que “profanar não significa apenas abolir e cancelar as separações, mas

357 2007. 358 In:O Globo, Prosa e Verso, p.2, publicado em 30/08/2008.

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aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas.” 359 Um novo uso, orientado por

um ato profanatório, transforma o que foi separado de si mesmo e assim, separado da sua

relação com uma finalidade, em um novo dispositivo que é devolvido ao social.

Agamben, em sua análise discute a linguagem, a qual além da função instrumental

que o poder lhe impingiu para o controle ideológico, segundo ele, ganhou um procedimento

diferente de controle, que ao ser separado na esfera espetacular, atinge a linguagem no seu

rodar no vazio, ou seja, no seu possível potencial profanatório.

Mais essencial do que a função de propaganda, a linguagem como instrumento

voltado para um fim é a captura e a neutralização do meio puro por excelência, isto é, da

linguagem que se emancipou de seus fins e assim se prepara para um novo uso. Os

dispositivos midiáticos são exemplo disso. A espetacularização da palavra impede a

possibilidade de um novo uso, de uma nova experiência da palavra.

O pensador analisa também a pornografia como um dispositivo que aniquilou com

bastante eficiência o meio puro: quando o corpo nu estabelece um contato direto e

despudorado com o ‘espectador’, o filósofo identifica a banalização do procedimento, isto

é, as pornostars em lugar de compartilhar com seus parceiros a cena erótica, olham

resolutamente para a câmera, mostrando maior interesse pelo espectador.

Walter Benjamin, em 1936, já havia anunciado essa inversão ao escrever sobre

Fuchs, quando diz que o que atua como estímulo sexual não é propriamente a imagem da

nudez, mas a idéia de exibição do corpo nu frente à câmera. Depois, o filósofo alemão trata

ao caracterizar as transformações por que passa a obra de arte na época da sua

reprodutibilidade técnica do valor de exposição, conceito esse que segundo Agamben, não

359AGAMBEN, 2007, p.75.

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poderia caracterizar melhor a nova condição dos objetos e até mesmo do corpo humano na

idade do capitalismo.

O dispositivo da pornografia procura neutralizar o potencial profanatório embutido

na capacidade humana “ de fazer andar em círculo os comportamentos eróticos, de os

profanar, separando-os do seu fim imediato.” Enquanto no exemplo, quando a pornostar

encara a câmera, no lugar de tornar-se cúmplice de seu parceiro, parecia que se iniciava um

novo ou diferente uso que dizia respeito não tanto ao prazer do parceiro, mas um novo uso

coletivo da sexualidade, entretanto, a pornografia intervém e neutraliza a intenção

profanatória. Segundo Agamben, esse desejo profanador se subscreve ao consumo solitário

e desesperado da imagem pornográfica, o que acaba substituindo a promessa de um novo

uso.

O filósofo conclui sua analise chamando a atenção para aquilo que denomina como

“tarefa política da geração que vem”:qualquer improfanável baseia-se no aprisionamento e

na distração de uma intenção autenticamente profanatória, por isso é importante toda vez

arrancar dos dispositivos – de todo dispositivo - a possibilidade de uso que os mesmos

capturaram .360

Coetzee quando “elege” em sua ficção a imagem do corpo envelhecendo como

emblema ético, e o faz escancarando seu processo de decadência e sua improdutividade,

não estaria justamente operando com os dispositivos profanatórios de que trata Agamben?

Qual o potencial ético da imagem por assim dizer humilhante de um corpo velho e

doente, por exemplo, como Mr Phillips morrendo em um leito de hospital na África em

Elizabeth Costello, o livro:

360AGAMBEN, 2007,pp..78, 79.

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“Não há como ignorar os sinais. Não mais um velho ativo, apenas um velho, um velho saco de ossos esperando para ser levado embora. Deitado de costas com os braços abertos, as mãos frouxas, mãos que no espaço de um mês ficaram tão azuis e nodosas que nos perguntamos como conseguiam segurar um pincel( tinha o hobbie de pintar aquarelas). Não está dormindo, apenas deitado, esperando. Ouvindo também os sons de dentro, os sons da dor. ( Não vamos esquecer a dor. Os terrores da morte não bastam: em cima deles a dor, crescendo.) As humilhações não têm limite. ”361

Agamben ao tratar da passagem do sagrado ao profano fala do jogo, como um uso

totalmente incongruente do sagrado sobre o qual Émile Benveniste distinguiu seu caráter de

inversão: “a potência do ato sagrado reside na conjunção do mito que narra a história com

o rito que a reproduz e a põe em cena.O jogo quebra essa unidade, como ludus, jogo de

ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus ou jogo de palavras cancela o

rito e deixa sobreviver o mito.”362

Para Agamben, o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem

a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não

coincide com o consumo utilitarista. Assim a profanação do jogo não tem só a ver com a

esfera religiosa. As crianças que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia às mãos,

transformam em brinquedo também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do

direito e das outras atividades que estamos acostumados a considerar séria, nos diz o

filósofo.

O corpo em cena na ficção de Coetzee parece posto em jogo, de que trata Agamben.

A operação que o jogo desencadeia desativa os dispositivos de captura e distração, e

projeta autenticamente a intenção profanatória do uso, novo uso desse corpo. A profanação

da imagem do corpo é que instala o potencial ético e estético de seu novo uso.

361COETZEE, 2004, p.170. 362AGAMBEN, 2007, p.67.

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“As humanidades nos ensinam humanidade”, diz Costello a sua irmã Blanche “as

humanidades nos devolvem nossa beleza humana. É isso que os gregos nos ensinam,

Blanche, os gregos certos.” 363 Se os gregos certos nos ensinam a beleza, sobre o que

exatamente Coetzee quer nos ensinar?

Jacques Rancière afirma em seu livro A Partilha do Sensível364 sobre a crise da arte

que a multiplicação dos discursos ou a captação da arte pelo discurso gerou; a

generalização do espetáculo ou a morte da imagem são indicações de que é no terreno

estético que prossegue uma batalha ontem centrada nas promessas de emancipação e nas

ilusões e desilusões da história. Porém o autor adverte, que não se trata de vincular ao

terreno da arte as conquistas da emancipação e nem mesmo de reivindicar desse mesmo

terreno contra o pensamento do desencanto.Trata-se de definir as articulações do regime

particular das artes, isto é, um tipo específico de ligação entre modos de produção das obras

ou das práticas, formas de visibilidade dessas práticas e modos de conceituação dessas ou

daquelas.

Rancière classifica a arte de acordo com a tradição ocidental em três grandes

regimes de identificação: o regime ético, o representativo e o estético. Entretanto, a

despeito da complexidade que tal discussão remonta, para o que aqui nos interessa, é sobre

o regime estético das artes, os possíveis que elas determinam e seus modos de

transformação que iremos tratar.

O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no singular e

desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros

e artes. Mas, ao fazê-lo, ele implode a barreira mimética que distinguia as maneiras de fazer

363COETZEE, 2004, pp.169, 170. 364 RANCIÈRE, 2005.

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arte das outras maneiras de fazer e separava suas regras da ordem das ocupações sociais.

Ele afirma absoluta singularidade da arte e destrói ao mesmo tempo todo critério

pragmático dessa singularidade. Funda, a uma só vez, a autonomia da arte e a identidade de

suas formas com as formas pelas quais a vida se forma a si mesma.

O regime estético das artes é, antes de tudo, a ruína do sistema de representação,

isto é, de um sistema que a dignidade dos temas comandava a hierarquia dos gêneros da

representação. Este regime desfaz essa correlação entre tema e modo de representação, e tal

revolução acontece primeiro na literatura. Passar dos grandes acontecimentos e

personagens à vida dos anônimos; identificar os sintomas de uma época, sociedade ou

civilização nos detalhes íntimos da vida ordinária; explicar a superfície pelas camadas

subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus vestígios é um programa literário, antes

de ser científico. O regime estético das artes teve papel essencial na constituição do

paradigma crítico das ciências humanas e sociais, segundo Jacques Rancière.

A soberania estética da literatura, ele nos diz, não é o reino da ficção. Em virtude da

“idade romântica,”que força a linguagem a penetrar na materialidade dos traços através

dos quais o mundo histórico e social se torna visível a si mesmo, a literatura é um regime

de indistinção tendencial entre a razão das ordenações descritivas e narrativas da ficção e as

ordenações da descrição e interpretação dos fenômenos do mundo histórico e social.

Em outras palavras, segundo o pensador, a ordenação ficcional deixa de ser o

encadeamento causal aristotélico das ações “segundo a necessidade e a verossimilhança” e

torna-se uma ordenação de signos. Não como uma autorreferencialidade solitária da

linguagem, consagrando – se um autotelismo que a separa da realidade; mas como

identificação dos modos da construção ficcional aos modos de uma leitura dos signos

escritos na configuração de um lugar, um grupo, um muro, uma roupa, um rosto.

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Por que escolho Rancière para o desfecho dessa pesquisa? Primeiro porque é desse

ponto que outro (outra pesquisa) se iniciaria. Porque é justamente na sua definição de

regime estético das artes em que localizo minha premissa inicial. A análise descrita aqui

dialoga com o tratamento que desejo dar à literatura em específico: devolver o vigor da

palavra literária. Isto é, devolvê-la à vida que elabora seu próprio sentido.

Ainda que a obra de John M. Coetzee seja inscrita em um grande ceticismo, é

justamente a força de repercussão da matéria literária que potencializa o lugar que esta

ocupa, desdobrando-se sobretudo em sabedoria. Para o que serve a ficção literária, afinal?

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x, 212f.:Il.; 31cm.

Orientador: Ronaldo Lima Lins

Tese (doutorado) — UFRJ/ Instituto de Letras e

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