o menino e as pedras - peça antonio rogério toscano

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  O menino e as pedras Dramaturgia para jovens, criada no ano de 2002. De Antônio Rogério Toscano

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Peça de Rogerio Toscano

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  • O menino e as pedras

    Dramaturgia para jovens, criada no ano de 2002.

    De Antnio Rogrio Toscano

  • 2

    Prlogo

    O pacifista (Caso seja do interesse do encenador, esta parte pica

    como outras possveis e eventuais sobras da dramaturgia poder ser

    suprimida na montagem.) H coisas que no so como parecem. Podem ter

    muitas formas, podem ser de outros jeitos... Podem ser bonitas e tristes de muitas

    maneiras, terrveis e assustadoras de outras. Podem ser como as pedras, podem

    ser como a gente quiser... So como esta histria, como este encontro, na regio

    de Gaza, na Palestina. (Tempo.) Uma histria assim nunca aconteceu. Se

    acontecesse, talvez no fosse exatamente assim... Talvez tivesse outra aparncia.

    Talvez fosse como as pedras... Talvez fosse como a gente quisesse... Podia ser

    de outro jeito! Podia at ser a histria de dois irmos, como no livro do Gnesis. E

    quando um deles levantasse contra o outro uma arma, teria comeado o pesadelo.

  • 3

    Cena 1

    (Terra arrasada, rida. Ftima, menina rabe, brinca com trs pedras, dispostas

    de forma simtrica, na frente do palco. Troca-as de posio e as trata como se

    fossem amigas suas. No so bonecas, mas Ftima fala com elas, solitria em

    sua brincadeira. Descobre posies geomtricas engraadas, cobre-as com vu.

    Distrai-se.)

    Ftima (Sozinha, enquanto coloca os pequenos vus nas

    pedras.) Voc precisa se proteger, menina. Aqui, todo mundo tem que ficar bem

    protegido... No quer? (Silncio.) Ah, eu tambm no queria... Mas assim.

    (Silncio.) Aprendi que bonito. No? T. (Tempo.) Pedra no gosta de vu...

    Ento, a gente brinca de outro jeito. (Coloca as pedras numa linha reta.) Assim

    reto. (Muda uma delas.) Agora, tringulo. Ah, vocs no sabiam? Tontas!

    (Tempo.) Sabiam? Ento, vamos ver: aonde que melhor ficar? Na reta ou no

    tringulo? (Espera, atenta, uma resposta.) No, tanto faz no resposta, n?

    Cada uma... Tanto faz! (Curiosa pela resposta silenciosa das pedras.) Tanto faz,

    tanto faz... Tanto faz, mesmo? (Um pouquinho feliz, por ter liberdade de escolha.

    Decidida.) Mas eu acho bonito reto. Ontem, eu preferi tringulo... bom quando a

    gente fica aqui trocando de lugar... A gente muda tudo... A gente pode mudar tudo!

    O dia fica calmo... O tempo passa lento... Nessas horas, parece que eu nunca

    mais vou parar de brincar com vocs.

    (Barulho ttrico, de exploso ou grito. Uma pedra voa, vinda de longe, e quase

    machuca Ftima. Sem pensar em mais nada, Ftima pega as suas pedras e as

    protege. Mais barulho. Violentamente, Ftima se descontrola e lana uma delas

    em represlia, na direo dos sons ttricos. Est furiosa. Novos barulhos. Ento,

    ela se afasta, correndo. Olha para as mos, ressente-se de ter ficado com apenas

    duas de suas pedras.)

  • 4

    Ftima (Para as pedras, ao coloc-las no cho.) Fiquem a.

    No saiam. (Procura demonstrar calmaria para as pedras.) Amanh, a gente

    brinca... Amanh a gente vai brincar mais! (Reflete sobre a pedra que foi lanada,

    como se respondesse a uma pergunta feita por ela mesma ou por uma das

    pedras.) A outra? (Mais barulho. Medo. Ela pega as duas pedras, correndo. No

    se sabe se para atir-las ou para guard-las.) Amanh a gente procura.

    (Ftima vai fugir para um lado, segurando nas mos as suas pedras, mas

    Yonathan, menino judeu, entra correndo do outro lado com uma pedra na mo.

    Tenso. Ftima se refugia no fundo do palco, de braos abertos. Situao de

    possvel tragdia. Yonathan vai atirar a pedra em Ftima mas ela, com medo,

    deixa as duas pedras de suas mos carem, uma aps a outra. uma queda

    triste, a das pedras. Depois das pedras cadas, o seu corpo que vai lentamente

    ao cho. Escorre. V-se que Ftima precisa de proteo. Mas, como ela est

    desarmada, Yonathan tambm no consegue machuc-la com a pedra que tem

    nas mos. Quando, j desarmado, ele percebe certo movimento nascido do medo

    dela, Yonathan se aproxima. Tenta ajud-la a se levantar, mas Ftima arredia.

    Situao de confronto iminente.)

    Yonathan (Olha fundo nos olhos dela. Com bondade.) Pode fugir.

    Pode escapar... (Tempo.) No vou jogar mais pedra... No vou. Pode ir...

    (Ela fica.)

    Yonathan No vai? Fuja! Eles podem vir pra c. A, eu vou ter que

    jogar. No vai ter jeito. Vai te machucar... Vai... Corre!

    (Ela fica. Tempo.)

    Yonathan No vai?

  • 5

    Ftima (Grave, cada palavra sua pesa como pedra.) Por que

    voc veio brincar aqui? (Ele vai responder, ela o interrompe.) No pode!

    Yonathan Quem falou?

    Ftima perigoso. Minha me disse.

    Yonathan E voc? Por que veio, ento?

    Ftima Porque eu posso. Minha me disse.

    Yonathan E eu, no?

    Ftima Voc no.

    (Tempo.)

    Yonathan (Argumentao apressada, instintiva e ameaadora.)

    Ontem, eu estava brincando bem aqui. Voc no estava. Anteontem, tambm.

    Voc no estava.

    Ftima (Seca.) Ontem, eu estava brincando aqui. Voc no

    estava. Anteontem, tambm. Voc no estava!

    Yonathan (Desconfiado.) Voc estava? (Tempo.) Aqui? (Tempo.)

    Ontem?

    Ftima Estava. Eu estava! Eu e as minhas trs pedras.

  • 6

    (Ela recolhe com mximo cuidado as duas pedras que deixara cair, h pouco.)

    Ftima Sara. (Pega a segunda pedra.) Leila. (Olha para o lugar

    para onde jogou a outra pedra.) E Amina.

    Yonathan Ento ns dois estivemos aqui, ontem! E anteontem...

    (Tempo.) Como foi que eu no te vi?

    Ftima Voc no estava! Eu estava!

    Yonathan (Slido como pedra.) Estava, sim. (Confuso.) Vai ver,

    no sei... Vai ver, foi em horrio diferente... Ou um de ns dois, provavelmente

    voc... . Voc! Voc no sabia bem se era mesmo aqui que voc estava...

    Ftima Era aqui. Deixei as minhas trs pedras assim, fazendo

    um tringulo pra eu saber aonde era... E elas me esperaram, aqui, at hoje. Eram

    trs. Trs pedras... Que eu achei aqui, bem aqui... Nessa terra. Que minha...

    Aonde eu sempre brinquei... Minha. (Tempo. Nervosa.) Voc devia ir embora!

    Yonathan (Retira, de um dos bolsos, a pedra que ia lanar em

    Ftima. Entrega a ela, doce.) Acho que era essa a sua pedra. (Ela olha de um jeito

    atento, duvidoso com relao ao reencontro com Amina. Olha, com receio e

    desejo, para a sua pedra. Desconfiada, hesita em peg-la de volta. Por fim, pega-

    a, rapidamente. Yonathan, sorridente.) Quase me acertou... Passou raspando.

    (Simptico.) Amina o nome dela?

    (Ftima guarda a pedra, como tambm as outras duas, sob suas roupas.)

  • 7

    Yonathan Eu vi o tringulo que voc deixou feito aqui, ontem.

    Achei esquisito... Era bonito. Tringulo... Mas, quando eu passei, voc no estava

    mais aqui.

    Ftima (Arredia.) De tarde, eu fiquei em casa. (Rancorosa.)

    Meu irmo est machucado.

    Yonathan Machucado?

    Ftima (Olha firme para ele, culpando-o pela ferida do irmo.)

    Foi ferido.

    (Tempo.)

    Yonathan Pedrada?

    Ftima Pedra. ! Pedra! Muita pedra! (Aponta para o lado de

    onde veio a primeira pedra.) Veio de l. Feriu...

    Yonathan (Lembrando-se de acontecimentos que no

    conhecemos.) Pedrada... Era seu irmo?

    Ftima Sangrava muito a cabea dele. E, por isso, ontem eu

    estava triste! Fiquei cuidando dele. Minha me disse para eu no vir hoje, mas eu

    quis. Eu precisava. (Bastante chateada. Afirma o seu lugar na terra disputada.)

    Por que no posso brincar no quintal da minha casa? Na minha terra, que

    minha, junto com as minhas pedras? (Acalma-se.) E eu tinha que vir para busc-

    las, coitadas! Pelo menos isso.

    Yonathan Nesses dias, andar por aqui est perigoso.

  • 8

    Ftima Sempre . Desde que eu nasci perigoso.

    Yonathan (Preocupado.) Eu, tambm. Desde que eu nasci, s tem

    medo rondando por aqui. A gente sai para brincar e fica com medo... Cansa!

    Tenho um amigo que diz que no devia ser assim... Mas ele nunca fala isso na

    frente dos outros. Tem medo. (Acha graa, sem compreender.) No devia ser

    assim... (Muda de tom, repentinamente agressivo.) Mas . E voc no tinha nada

    que vir aqui para buscar pedras!

    Ftima (Arrogante.) Eu podia deix-las aqui, tambm, se eu

    quisesse o quintal da minha casa!

    Yonathan (Mais agressivo.) Este quintal no da sua casa. o quintal

    da minha casa. E essas pedras so minhas. Me d!

    (Ftima afasta-se dele. Aps certo susto, enfrenta-o.)

    Ftima Sua casa? S se virou depois que vocs tomaram de

    ns! (Tempo tenso.) como as minhas pedras: s vo ser suas se voc tomar das

    minhas mos... (Ameaadora, com pedras nas mos. Fala devagar, com ameaa.)

    Agora, elas esto nas minhas mos. Cuidado com o lugar aonde vem brincar,

    menino!

    (Tempo.)

    Ftima (Comea uma brincadeira de pega-pega, tensa.) Vem

    pegar, vem! No corajoso? Com pedras na mo...

    Yonathan (Irritado.) Essa terra era nossa! Sempre foi!

  • 9

    Ftima (Interrompe a brincadeira. Surpreende-se com a falha

    do discurso dele.) Nossa? (Rancorosa.) Sempre?

    Yonathan (Confuso.) Eu disse nossa... Minha. No nossa...

    (Aponta para si mesmo e para ela.) Nossa. Meu pai me contou porque ns viemos

    para c. Para os antigos, como para ns ainda , essa terra era prometida...

    Santa! Para ns. (Novamente confuso.) No ns! Eu disse ns... Por isso ela

    nossa.

    Ftima Nisso, eu no acredito.

    Yonathan Eu sei...

    Ftima Voc fala de coisas santas. O que que voc sabe

    sobre as coisas santas?

    Yonathan Eu sei. Meu pai me disse. Os antigos...

    Ftima (Altera a brincadeira, mais ameaadora, com pedras

    nas mos.) Se sempre foi assim, terra prometida a vocs, no entendo... Nunca

    vou entender. Por que no ficaram por aqui? (Tempo que insinua crtica.) Foram

    embora...

    Yonathan (Triste.) Tivemos que fugir.

    Ftima (Semblante carregado.) Quando vocs foram embora,

    ns ficamos aqui! Em paz... Na nossa terra.

  • 10

    Yonathan (Confuso.) Ns no fomos embora. (Inventa qualquer

    coisa para confront-la.) Vocs que expulsaram a gente daqui...

    (Tempo.)

    Ftima Ns? No...

    Yonathan Inimigos. Sempre tivemos inimigos. Sina...

    Ftima Quando vocs no estavam aqui, minha me conta que

    as crianas podiam brincar, correr... Correr livre, sem medo. Voc sabe o que

    isso? Eu no sei. Muitas crianas vinham aqui. Para brincar com as pedras... E as

    pedras no botavam medo, no. Eram pedras, s... Ficavam no cho... Os

    meninos brincavam... Faziam linha reta, faziam tringulo. Agora...

    Yonathan A minha gente nunca foi embora. Foi expulsa. E

    alguns... Muitos! Ficaram...

    Ftima Isso j faz muito tempo. E voc sabe que no foi a

    minha gente que expulsou a sua.

    Yonathan Foram os inimigos. Em tempo de guerra, todo mundo

    inimigo e todos os inimigos esto em todos os lugares, no mundo todo! (Tempo.

    Bravo.) E quando ns quisemos voltar...

    Ftima Vocs voltaram cheios de pedras... Pedras na mo. E

    armas... Tanta arma... Ns s tnhamos as pedras...

    Yonathan Se no fosse desse jeito, vocs acabavam com as

    nossas casas. Tinha que ser assim. E nem vou te contar das outras coisas que

  • 11

    aconteceram, quando estivemos longe... Longe daqui... (Tempo.) Meu pai me

    disse.

    (Tempo.)

    Ftima (Encabulada.) Minha me me contou. (Sem mais

    tristeza, repentina.) Mas falou que vocs no prestam, por isso sofrem.

    Yonathan (Indignado.) Como ela sabe que a minha gente no

    presta? (Triste, sem entender.) Quem disse isso a ela?

    Ftima Ela.

    Yonathan Como que ela pode saber isso?

    Ftima Ela sabe, u! gente grande, sabe!

    Yonathan E voc acredita?

    Ftima U, voc no acredita no seu pai?

    Yonathan Pra saber, tinha que estar junto. Ns dois, aqui, por

    exemplo: o que que a gente sabe?

    Ftima No sabe de nada. S sei que voc me jogou uma

    pedra. Passou voando, raspando...

    (Tenso. Tempo.)

  • 12

    Yonathan Eu no joguei. Foi outro menino. (Tempo.) , sim... No

    fui eu. Eu trouxe a sua pedra e entreguei na sua mo. (Esfora-se para lembrar do

    nome dado pedra.) Amina... Acho que esse o nome. Devolvi.

    Ftima (Muda de nimo. Sorri.) Eu vi. Obrigada.

    Yonathan De nada.

    Ftima (Olha, pela primeira vez sem mgoa, para ele.)

    Obrigada mesmo. Eu... Eu no queria ficar sem ela.

    Yonathan De nada. Os outros meninos no viram. Ningum vai

    brigar comigo.

    Ftima Sabe, eu no fico contente quando jogam pedras nos

    passarinhos. Prefiro deixar os passarinhos brincando com as pedras... Como eu.

    Brinco aqui como um passarinho... s vezes, coloco comida para eles, para que

    venham brincar no meio das pedras. Eles vm, sabia? (Tempo.) Junto com Sara,

    Leila e Amina...

    Yonathan Ento, por que jogou Amina daquela maneira?

    (Tempo.)

    Ftima No sei. Costume.

    Yonathan Podia acertar num passarinho. (Encabulado, pensa em

    si mesmo.) Ou num menino-passarinho...

  • 13

    Ftima Costume. costume. (Emudece.) Fiquei triste enquanto

    ela no estava mais comigo. Muito triste... A gente perde, joga fora, tudo o que

    bom para gente... Mas tudo sempre to rpido, que...

    Yonathan Rpido demais. (Tempo.) Puxa, se gosta tanto dela,

    no entendo por que jogou.

    Ftima (Nervosa.) No percebi. Quando vi, j tinha jogado...

    Que coisa! Quantas coisas a gente nem percebe...

    Yonathan Devia perceber.

    Ftima , devia. Mas a gente no percebe... (Tempo.) E agora

    voc est aqui. (Desconcertada.) E eu, falando desse jeito com voc. Coisa

    esquisita... (Tempo.) Se bem que ia ser mais gostoso se fosse assim sempre, n?

    Yonathan Ia.

    Ftima Mas voc me jogou uma pedra. (Tempo.) E eu te joguei

    Amina.

    Yonathan Meu pai conta que por onde meu povo andou, sempre

    levou pedrada. Tambm se acostumou com sofrimento, com perseguio. Parece

    que no teve jeito de ter um tempinho assim... Como estamos tendo, agora.

    (Tempo.) Um dia ele me falou que no incio, h muito tempo, ns e vocs ramos

    muito prximos...

    Ftima (Desconfia um tanto.) Primos. Minha me me contou.

  • 14

    Yonathan S depois, quando tivemos que fugir, que vocs

    comearam a ver a gente como inimigo. E, depois, ns precisvamos voltar... Para

    o nosso povo, aqui a nossa terra.

    Ftima Vocs falam de terra prometida. Nunca entendi.

    Yonathan No precisa entender. como pra vocs, acho.

    Ftima Mas vocs no acreditam no que ns acreditamos.

    Yonathan U... Tudo bem. Eu no fico dando nome para as

    pedras e nem por isso acho que voc no deva fazer isso...

    Ftima As nicas coisas em que somos parecidos que ns

    dois somos meninos, moramos aqui e jogamos pedra uns nos outros... (Bem

    humorada.) Se bem que voc chamou minha pedra de Amina, agora h pouco.

    No foi?

    Yonathan No resto, somos diferentes.

    Ftima Para ns, aqui um lugar santo, tambm. Por isso eu

    falei que aqui, brincando junto com as pedras, eu brincava no quintal da minha

    casa. (Nota mais semelhanas entre eles em seu discurso.) Outra coisa igual.

    (Sorri.) Outra coisa igual...

    Yonathan Muitas coisas. Em geral, a gente nem v isso. Nem

    percebe...

    Ftima Mas hoje, sei l...

  • 15

    Yonathan ... Ningum sabe. E to ruim... No saber.

    Ftima (Animada.) A gente podia, hoje, brincar de dividir esse

    quintal. S um pouco... (Ela entrega uma pedra para ele, agora.) Eu disse que era

    nosso, mas...

    Yonathan (Muda de postura, assustado com a hiptese,

    repentinamente. Nem sabe ao certo porque reage com dio ternura de Ftima.)

    Mas... Mas... Mas no mais! Este quintal nosso e vocs que tm que ir

    embora! Voc no pode brincar por aqui! Tm que ir... E nem sei porque estou

    perdendo tempo conversando com voc. Voc tem que ir embora! Tem que ir!

    Tem que ir! Vai!

    (Irritado, Yonathan v que est com a pedra que Ftima lhe jogara na mo. Atira-a

    no cho, para no atirar em Ftima.)

    Yonathan Sai! Agora! Ou eu chamo os meninos! E sua cabea vai

    sangrar como a do seu irmo! Sai!

    (Ftima, assustada, sai. Leva consigo as duas pedras que esto em suas mos.

    Volta, para pegar a pedra que est no cho. Yonathan pega-a primeiro e ameaa

    atirar nela. Ela lhe estende a mo, pedinte. Ele corre para cima dela, ameaador.

    D a impresso de que vai atirar a pedra. Ela foge. Black-out.)

  • 16

    Cena 2

    O pacifista Esta podia ser a histria de dois irmos, como no livro

    do Gnesis. E quando um deles levantasse contra o outro uma arma, teria

    comeado o pesadelo. Neste sonho ruim, Caim, aps a morte de seu irmo Abel,

    seria mandado embora, condenado a ser errante a vida inteira pelas estradas do

    mundo. A marca de Caim, que lhe fizeram na testa, serviria para que todos

    soubessem que ele recebera esta sentena de nmade errante e que, por isso,

    no deveria ser morto. J se conhecia a dolorosa punio: tirar a terra do ser

    humano, torn-lo um perptuo estrangeiro em sua prpria casa, obrig-lo a andar

    sem destino e sem possvel retorno origem uma pena mais pesada do que a

    morte. Os judeus do Estado de Israel sabem que a vida sagrada e que, ento,

    preciso ter uma casa. O povo de Davi vagou pelo mundo, embora no tenha

    assassinado um irmo.

    (Yonathan est sentado no mesmo lugar da primeira cena. Brinca com a pedra de

    Ftima que ficou em seu poder. Parece esperar. Olha para os lados, como se

    esperasse algo. Tem um fuzil muito grande apoiado em seu brao. Imagem

    ttrica.)

    Yonathan (Fala sozinho. Ou para a pedra, que guarda desde o

    ltimo encontro com Ftima, no dia anterior.) U! No disse que vinha sempre,

    que estava sempre aqui? Cad? (Ameaa.) Queria ver ela chegar aqui, agora!

    (Desbocado.) Quintal da casa dela... nada! Essa terra minha... nossa!

    (Relembra da confuso com a palavra nossa.) No nossa... Minha! (Para a

    pedra.) Viu? Ela te deixou aqui. E ainda me deve aquelas duas outras pedras, que

    ela tinha que ter deixado aqui! (Olha no relgio.) Que droga! (Para a pedra.) Ser

    que ela no vem? Medrosa! (Espera.) No vem! Aposto que no vem!

  • 17

    (Cansa de esperar. Vai sair. D dois passos em direo sada e pra, pois

    percebe a chegada, do lado oposto, da garota Ftima.)

    Ftima (Corajosa, quase provocativa.) Vim pra ter certeza de

    que voc estava aqui.

    Yonathan Todos os dias eu venho. Te falei.

    Ftima No sei porqu, mas achei mesmo que voc estivesse

    por aqui.

    Yonathan (Ambguo, entre a ternura e a violncia.) Eu estava te

    esperando. (spero.) Eu quero as duas pedras de volta. So minhas. Esse lugar

    meu!

    Ftima Meu av, quando morreu, foi enterrado aqui, nesta

    terra. Como ela pode ser sua?

    Yonathan Enterrar o av no quintal do vizinho! So esses os

    costumes de vocs?

    Ftima (Avana sobre ele.) No fale assim nunca mais! No

    fale! (Descontrola-se.) No fale! (Frgil.) Eu gostava dele. E ainda gosto! No

    custa nada ter respeito com quem est morto. (Terna.) Meu av era... (Tempo.) E

    quando a gente fala dos mortos com carinho, como se a gente fizesse uma visita

    boa para eles, na memria da gente.

    Yonathan Como sabe disso?

  • 18

    Ftima Falaram. Eu acredito. Falam muito sobre os mortos

    nesse lugar. So muitos. Entristecem a gente, mas no d pra... A gente no pode

    esquecer.

    Yonathan (Brinca com o fuzil que carrega.) Ns que dizemos o

    que vocs podem e o que vocs no podem...

    Ftima Vocs podem mandar, mas isso no todo o poder. Eu

    posso muitas coisas, menino... E o que eu lembro ou deixo de lembrar, no est

    em seu poder. Nunca esteve!

    Yonathan Voc parece boba! Parece que nem tem medo. Um fuzil

    desses faz coisas que... Faz, sim! (Triste.) A gente ouve falar de muitos mortos,

    tambm.

    Ftima E parece que o mundo inteiro s escuta o choro dos

    mortos de vocs. Voc carrega um fuzil desse tamanho e os nossos mortos no

    existem... No choram... No tm importncia... (Seca.) Embora nosso cemitrio

    seja muito maior. Por qu?

    Yonathan O que voc sabe sobre cemitrios? Nmeros! Vocs

    inventam um monte de nmeros! De que adianta falar de nmeros... E voc...

    Voc... Aposto que nunca foi numa escola.

    Ftima Como voc sabe? Voc no sabe de nada! Eu sei muito

    de nmeros.

    Yonathan Sabe? O que voc sabe? Sabe que meu povo

    caminhou, espalhado pelo mundo, e foi odiado demais, menina? Algum

    conseguiu contar quantos foram maltratados? E por qu? Disso, voc sabe? A

  • 19

    gente no entende, no! A gente faz, sempre, essa mesma pergunta. A gente

    sempre se pergunta: por qu?

    Ftima bom perguntar. Quando me deixavam estudar, eu

    gostava de fazer perguntas.

    Yonathan Mas cansa ficar fazendo sempre a mesma pergunta,

    que parece que no tem resposta.

    Ftima Deve ter. Para tudo tem. Eu gostava de perguntar...

    (Tempo.) Por qu? Deve ter resposta... Para tudo tem...

    Yonathan Mas essa resposta no vem... Nunca.

    Ftima Vem, sim... (gil, um tanto carinhosa.) Coloca esse fuzil

    de lado e escuta comigo a voz dos mortos. (Escuta.) silenciosa, mas fala... s

    vezes, quando a gente chora, pode escutar resposta...

    Yonathan S quando chora?

    Ftima Voc disse que escuta falar dos mortos. Mas e a voz

    deles, dos mortos, debaixo das pedras, voc no escuta nunca?

    Yonathan (No sabe do que Ftima fala.) hn? (Tempo.) Pode

    ser, mas...

    Ftima Na minha casa, a gente v a morte todo dia, quase

    sempre. Meu av foi morto assim. E eu preciso escutar a voz dele, para no me

    acostumar com o silncio que ele deixou pra sempre! Meu av... Sem contar os

    primos, os tios, os conhecidos... Os desconhecidos! s vezes, a gente chega

  • 20

    quase a se acostumar. Parece normal. J pensou? Chega a se acostumar... A

    gente olha para uma pessoa morta e, na hora, no vem nenhum sentimento pra

    dentro da gente... S raiva. S vontade de revidar... Mas preciso escutar a voz

    deles... Precisa! Se voc prestar ateno, vai ver que eles gritam!

    Yonathan Gritam? De raiva?

    Ftima No. Nem sempre. S gritam... So como ns. Tm

    vontade de gritar. Eu grito sempre... (Grita.) divertido... Eu acho! (Grita. Ri. Pra

    de rir, sombria.) Ontem, quando eu sa daqui, podia ter sido ferida, como meu

    irmo... Cheguei em casa, olhei nos olhos dele. Vi que ele estava acostumado

    com a morte. Que no tinha medo... Ele no gritava. Ento, eu gritei. (Grita mais

    uma vez.) Naquela hora, parece que ele me ouviu...

    Yonathan Por qu?

    Ftima Porque ele gritou, tambm.

    Yonathan Junto? Ele gritou junto com voc?

    Ftima Juntos! Eu e ele... Gritamos juntos... Coitado, estava

    machucado.

    Yonathan Devia doer muito...

    Ftima Mas ele nem se lembrava que doa. No se lembrava

    que tinha medo.

    Yonathan Voc tem? (Tempo.) Medo?

  • 21

    Ftima Eu tenho medo. Eu tenho muito medo. (Tempo.

    Descontrada.) Vamos gritar?

    (Gritam juntos. Yonathan pra antes. Ftima acanha-se.)

    Yonathan At os passarinhos andam assustados por aqui.

    Qualquer grito pode parecer... No vo deles tem o medo de ser machucado por

    uma pedrada. Por que dar pedrada em passarinho? (Tempo.) Por qu?

    Yonathan Tem coisas que ns no vamos entender nunca.

    Ftima Tem que entender! Tem! (Grita.) Mas eu, tambm, no

    entendo sempre...

    Yonathan Teve uma guerra, no faz muito tempo. Nem era aqui...

    Mas aonde quer que fosse, sei l... Eu ia sentir do mesmo jeito. Medo... Meu pai

    me contou. Quando ele contava, dava vontade de gritar...

    Ftima O qu?

    Yonathan Guerra. Guerra d vontade de gritar...

    Ftima Eu sei. Isso eu sei. (Tempo.) Mas o que voc ia sentir?

    Yonathan No grito? (Tempo.) Pavor.

    Ftima E, quando o seu pai te contou, voc no gritou?

    Yonathan J calaram tanto a nossa boca...

  • 22

    Ftima Mas grita do mesmo jeito, tonto! Nem que seja um grito

    de silncio...

    Yonathan Gritar? No podia. Ele me contou que uns homens

    entravam nas nossas casas, arrancavam a gente fora, marcavam o nosso

    corpo. Trancafiavam a gente nuns lugares... (Tempo. Muito triste.) Campos de

    concentrao...

    Ftima Campos... O que ser que todas essas coisas tm que

    ver com campos... Nada... S pedra...

    Yonathan Campos... Era assim que chamavam aquilo... Tanto

    horror! Campos de concentrao...

    Ftima (Calma.) E no so campos de concentrao aqueles

    cercados mal-feitos que vocs fizeram em torno da minha casa, de todas as

    casas, no vilarejo?

    Yonathan Talvez sejam. Mas, agora, diferente!

    Ftima No . E ns gritamos, mudos... Mudos. Como as

    pedras!

    Yonathan (No consegue escut-la e segue sua necessidade de

    narrar.) Mudos de medo... Para ns, o nico jeito foi fugir, partir. Pra c. Por causa

    daquela guerra, meu povo precisou buscar um lugar. E o lugar do meu povo , e

    sempre foi, aqui.

    Ftima Aqui? Bem aqui? Onde meu povo, que era livre e

    cantava e no precisava de silncio... Dava para ouvir os passarinhos... Agora, a

  • 23

    gente tem que viver amontoado, preso por grades e pelas fronteiras de pedras que

    vocs demarcaram pra ns. Por qu?

    Yonathan Voc no sabe. No sabe de nada...

    Ftima Nem voc sabe. Ningum sabe...

    Yonathan (Insiste na histria de horrores.) Depois de presos,

    nossos homens eram separados das mulheres. Os filhos, chorando, eram

    arrancados de perto da me. Gritos, muitos gritos... Todos eram levados em uns

    trens horrorosos para um lugar que cheirava a carne queimada. Arrancavam at a

    roupa das pessoas e roubavam tudo.

    Ftima Parece at que voc est contando uma histria que eu

    conheo, que eu podia contar. No diferente de umas histrias que minha me

    contou...

    Yonathan Pode ser. Mas acho que era diferente... Quando as

    pessoas chegavam nos banheiros, quando pensavam que iam tomar um banho

    para aliviar um pouco a dor que estavam sentindo... (Di. Tem vontade de gritar.)

    Dos canos dos chuveiros saa um gs venenoso, que asfixiava. Os corpos,

    ningum nunca mais via. Queimavam. Para que os prximos que chegassem ali

    pudessem pressentir, pelo cheiro, o destino que os aguardava.

    Ftima Quanta tristeza...

    Yonathan Carne queimada. Sabe como cheira? (Tempo.) Outros,

    que escapavam vivos, esquelticos e com fome... (Engole seco um grito.)

    Famintos! (Tempo.) Com os braos arrancados, cobaias em laboratrios sujos,

    eram despejados vivos em uma vala comum...

  • 24

    Ftima Chega! (Tempo. Tapa, com as mos, os ouvidos.)

    Minha me me contou.

    Yonathan Isso eu nunca vou entender... Meu av tinha nmeros

    tatuados no brao... Marca. Marca muito...

    (Tempo.)

    Ftima triste, muito triste. Mas a tristeza no explicao

    para fazer o que vocs fazem, hoje. ?

    Yonathan Hoje, ns podemos lutar... diferente! (Acaricia o seu

    fuzil.) Hoje temos armas pra... Pra ter um pouco de paz.

    Ftima Lutar? (Tempo.) Por paz? (Tempo.) Por qu?

    Yonathan Porque queremos ficar em paz.

    Ftima Mas, mesmo assim, ontem voc ia jogar uma pedra em

    mim... Pedrada...

    Yonathan Eu no joguei! Eu ia jogar... Mas, sei l... Era quase

    mais forte do que eu, mas eu no joguei! Na hora, parecia que eu tinha razo, que

    voc devia ser ferida... Machucada! Ns... (Tempo breve.) Eu e os meninos...

    Vimos voc de longe. Sorte sua que os outros meninos no vieram. Eu falei para

    no virem... Eram pequenos, menores que eu. Correram de medo.

    Ftima S me viu de longe... E ia me jogar uma pedra.

  • 25

    Yonathan Outro menino jogou. Ralhei com ele. Mandei ele voltar.

    Ftima Mas ele jogou.

    Yonathan Pra mim, deu tempo de pensar e escutar uma coisa

    silenciosa que falava aqui, , no meu ouvido. Era uma voz surda que me

    perguntava a mesma coisa, na hora de jogar a pedra... Dizia: por qu?

    (Tempo.)

    Ftima Sabe, quando eu fico aqui, sozinha, brincando com as

    minhas pedras, eu gosto de ouvir o silncio. como aquela voz surda que eu te

    falei, dos mortos. Igual a esse silncio que voc disse que falou no seu ouvido,

    naquela hora... Silncio... (Tempo.) Silncio... Ele to confuso, cada hora ele diz

    uma coisa diferente... Mas ele fala.

    Yonathan (Entusiasma-se ao se reconhecer nisso. Amigvel.)

    assim mesmo. Comigo, igualzinho. Eu ouo o silncio... (Em tom menos

    efusivo.) Mas no d para falar disso com os moleques. Eles no iam entender...

    Acho.

    Ftima ... difcil falar disso com o meu irmo...

    Yonathan Eu acho gostoso ficar ouvindo o silncio...

    Ftima Mas no so todos vocs que pensam desse jeito...

    Que escutam essa voz quieta.

    Yonathan No somos todos iguais, u. Ningum . (Mais prximo

    dela.) Nem vocs...

  • 26

    Ftima Vendo de longe, difcil de perceber a diferena.

    Yonathan De perto, tambm . Olhe s pra ns dois, aqui. Somos

    diferentes, e demorou um monte para que a gente pudesse conversar de verdade,

    como agora... As coisas diferentes so bacanas, tambm. No so?

    (Tempo.)

    Ftima ... So.

    Yonathan Vamos ficar s um segundo escutando o silncio,

    juntos? (Ela resiste. Ele no d bola para a resistncia dela. Yonathan fecha os

    olhos.) Fecha os olhos.

    (Ftima fecha os olhos. Tempo. Ela abre os olhos quando Yonathan pega na sua

    mo, discretamente.)

    Yonathan Quantas coisas diferentes a gente consegue pensar... E

    uma coisa no precisa ser melhor que a outra... Elas podem ficar juntas,

    conviver...

    Ftima Como?

    Yonathan U, a gente pode inventar... Essa pergunta mais fcil

    de responder. Eu acho. s inventar a resposta... No como aqueles por

    qus... (Ainda de olhos fechados.) Quando a gente olha pra essa terra arrasada,

    parece que s se v uma coisa. Uma coisa s... Uma mesma coisa, feita s de

    deserto, de pedra... Mas quando eu estou aqui, sozinho... De olhos fechados... Eu

    vejo cada coisa diferente...

  • 27

    Ftima Eu tambm. (Dispe as suas duas pedras no cho.) At

    as pedras so diferentes. Cada uma das minhas pedras tem um nome. Cada uma

    delas tem uma historinha diferente... Que eu criei... Leila... Sara...

    Yonathan E Amina. (Abre os olhos. Mostra a pedra que estava

    com ele. Vai coloc-la junto com as outras.) esse o nome dela, no ? Como

    voc prefere, colocar em linha reta ou formando um tringulo?

    (Olham-se, demoradamente, nos olhos.)

    Ftima No sei. Escolhe voc.

    Yonathan Ah, ento vamos colocar todas juntas, uma bem do lado

    da outra...

    Ftima T.

    Yonathan Sabe... A gente est assim perto... Quase se feriu e

    agora est conversando... E a gente nem se perguntou ainda o nome um do

    outro... (Ri-se.) Como a gente estranha! (Tempo.) Qual o seu nome?

    Ftima (Tmida.) Ah, eu preferia no falar... Diga o seu

    primeiro.

    Yonathan Est bem. Eu me chamo Yonathan, que um nome

    bonito e importante para chamar um menino judeu!

    Ftima Yonathan? Que nome esquisito!

  • 28

    Yonathan Aposto que o seu tambm ...

    Ftima (Rpida.) Ftima. Eu me chamo Ftima, como a filha

    de Muhamaad, o primeiro dos profetas do islamismo, que uma boa f para uma

    garota muulmana.

    Yonathan Pode ser, mas esse nome no muito comum,

    tambm...

    (Ambos riem.)

    Yonathan (Animado.) Vamos fazer alguma coisa? Brincar!

    Ftima Brincar?

    Yonathan .

    Ftima Ser?

    Yonathan Por que no?

    Ftima Eu aceito. Mas eu escolho a brincadeira. (Tempo.)

    Vamos brincar de homem-bomba...

    Yonathan (Apavorado.) Homem-bomba? Por qu?

    Ftima No sei. Foi s uma idia que eu tive.

  • 29

    Yonathan Disso eu no brinco, no, porque isso no

    brincadeira. O seu povo que nos assusta com isso. Terroristas, meu pai chama

    isso de terrorismo! E isso que nos causa pavor!

    Ftima Desculpa. Foi s uma idia.

    Yonathan Vocs sempre ficam com essas idias!

    Ftima Para ns tambm triste, mas muitas vezes, no tem

    outro jeito.

    Yonathan Como no tem outro jeito? Vocs entram nas lojas, nos

    carros, nas casas e trazem bombas amarradas no corpo... Explodem quem estiver

    por perto e dizem que no tem outro jeito?

    Ftima s vezes, meu povo pensa que no tem.

    Yonathan Tem! Tem que ter!

    Ftima Mas s vezes parece que no.

    Yonathan (Nervoso.) Ento, falta fazer como a gente fez agora h

    pouco, e falta escutar mais o silncio!

    Ftima (Olha para o fuzil dele.) Sabe... Ns no temos as

    mesmas armas para nos defender do seu povo. O que voc queria? Brincar de

    fuzil?

    Yonathan (Revida, com certa agressividade.) Boa sada para

    quem atirou em mim as pedras com que brincava e dava nomes...

  • 30

    Ftima Eu no dava nada! O nome delas! Eu no preciso dar

    nada pra elas! delas! (Tempo.) E eu estava desprotegida... Nunca vem at ns

    ajuda que nos compreenda! Vocs mentem para o mundo todo! E ns sofremos,

    porque estamos com a nossa terra ocupada por vocs. Invadida! S temos nossas

    pedras, para atirar. o que temos! Nossa Intifada!

    Yonathan Intifada?

    Ftima Nossa revolta, com pedras nas mos... Somos assim.

    Yonathan E brincam de homem-bomba...

    Ftima (Ameaadora.) Tambm temos os nossos corpos, para

    explodir.

    Yonathan No tm mais nada?

    (Silncio.)

    Yonathan (Inconformado.) E os mortos? E o silncio?

    Ftima (Fria.) Voc tem razo. Ns temos os nossos mortos,

    para vingar!

    Yonathan (Tenta voltar atrs.) Mas a gente podia brincar de outra

    coisa... S mais um pouco. Estava to bom.

    Ftima No, Yonathan. Ns no podemos, no. Meu irmo est

    em casa, machucado, ferido pelas pedras. Pedrada! Quando eu olho para ele, sei

  • 31

    exatamente no que ele est pensando. E no consigo mostrar para ele que pode

    ser diferente... Nem com grito.

    Yonathan Nem com grito?

    Ftima No sei... Acho que nem com grito...

    Yonathan Achei que tnhamos gostado da diferena, que a gente

    podia achar graa em ver as diferenas entre Sara, Leila e Amina...

    Ftima Eu posso. Mas voc no.

    Yonathan Por qu?

    Ftima No sei. Nem o meu irmo sabe. Nem ningum... Vou

    perguntar a ele como far para afastar a tristeza que ele sente.

    Yonathan Como?

    Ftima Como voc disse, essa pergunta sempre foi mais fcil

    de responder. Como melhor que por qu. Mais fcil do que todos os por

    qus... E se ele sabe pelo menos isso como! , j no pouco. (Tempo.)

    Adeus.

    Yonathan J vai?

    Ftima Vou deixar as pedras aqui. Se quiser, leve-as com voc.

    Ou se quiser, atire-as em mim, por trs. Vou te entender. Se achar melhor, deixe-

    as a... Eu vou voltar.

  • 32

    Yonathan Fica.

    Ftima Com voc, no sei ficar. Vou at l, para ficar com meu

    irmo. Ele est ferido. Pedrada. Di.

    Yonathan Volte amanh. (Tempo.) Eu queria te ver amanh.

    Ftima Com um fuzil na mo? (Tempo.) No... Adeus.

    (Tempo. Ftima vai sair. Est triste. Olha de soslaio para trs.)

    Yonathan Fica.

    (Ftima corre. Yonathan fica. Ele vai at as pedras, que esto juntas como tinham

    deixado, no cho. Tem um impulso de peg-las. Mas deixa-as ali. Cabisbaixo, ele

    sai. Black-out.)

  • 33

    Cena 3

    O pacifista Os judeus do Estado de Israel sabem que a vida

    sagrada e que, ento, preciso ter uma casa. O povo de Davi vagou pelo mundo,

    embora no tenha assassinado um irmo. Este povo foi escravo e no tem

    motivos para festejar enquanto um nico escravo subsistir sobre a Terra. Mas a

    ocupao dos territrios palestinos traz para o nosso tempo uma centelha da pena

    imposta a Caim. Hoje, os muulmanos tm suas casas destrudas, vem

    arrancadas as suas oliveiras, vivem em permanente exlio e so obrigados a

    permanecer como estrangeiros em seu prprio quintal. E eles tambm no tm

    culpa nenhuma, no assassinaram os seus irmos.

    (Noite. Luz apenas nas pedras, que continuam juntas. Na penumbra, Yonathan e

    Ftima aproximam-se, silenciosos. No se vem, at que se chocam, de costas

    um para o outro.)

    Yonathan Pensei que tinha dito que no voltava!

    Ftima (spera.) Eu sempre volto! Principalmente quando

    estou triste.

    Yonathan Acho bom que tenha voltado.

    Ftima (Vestida com luto.) Estou triste. Queria ficar junto com

    as minhas pedras.

    Yonathan Veio s para buscar as pedras?

    (Tempo.)

  • 34

    Ftima E voc, por que veio?

    Yonathan Escutei o silncio. (Tempo.) Tive saudade.

    (Tempo.)

    Ftima Ainda no sabe?

    Yonathan De qu?

    Ftima Do que aconteceu.

    (Tempo.)

    Yonathan Eu soube. No foi longe de casa. At ouvi o barulho...

    Mas, como voc disse, tem hora que parece que a gente at se acostuma com

    isso... (Tempo.) Vocs no perdoam nada...

    Ftima Costume... Como so tristes esses costumes...

    (Tempo.)

    Yonathan Voc est vestida de preto. Por qu?

    Ftima Preto combina com tristeza.

    Yonathan Tristeza sua? (Tempo. Carinhoso.) Por qu? (Um tanto

    magoado.) Os vinte mortos da exploso eram nossos. Dessa vez, os nmeros

    foram contra mim.

  • 35

    Ftima Nmeros... O que voc sabe sobre nmeros? Por acaso

    mais triste para quem perdeu mais? (Tempo.) Ser que assim?

    Yonathan Vinte, Ftima! Morreram vinte!

    Ftima Vinte?

    Yonathan ... Vinte! Numa nica exploso... Vinte!

    Ftima Mais nenhum? Nenhum? (Tempo.) Nenhum a menos?

    Nenhum a mais?

    Yonathan Vinte... Sabe quanto vinte?

    Ftima Vocs contam vinte... Mas teve mais um... Teve mais

    um morto, que voc no contou... (Tempo.) Era o meu irmo... Doa nele. Di em

    mim, agora.

    (Silncio. Longo silncio.)

    Yonathan Em mim di. Do mesmo jeito.

    Ftima Eu tive saudade daqui... um lugar bom para chorar a

    saudade dele. Aqui, neste esconderijo...

    Yonathan (Sem saber o que pensar. Verdadeiramente triste.)

    Ento, vou chorar com voc.

    Ftima Voc pode? Pode chorar comigo?

  • 36

    (Tempo.)

    Yonathan Hoje , para ns, um dia sagrado. Yom Kipur... Dia do

    perdo.

    Ftima Que dia mais triste... (Tempo.) Voc consegue?

    Yonathan Perdoar?

    Ftima .

    Yonathan No. (Tempo.) Mas voc podia me ajudar, se quisesse.

    (Tempo.)

    Ftima Acho que no quero. Meu irmo no pde perdoar...

    Acho que eu no quero.

    Yonathan Nem eu.

    (Muito triste, ela sorri para ele, que responde com um olhar cmplice, quase

    sorridente.)

    Ftima Mas voc pode ficar aqui, se quiser... Eu deixo. bom

    ficar aqui, com as pedras... (Tempo.) Com voc.

    Yonathan Bom ficar aqui comigo, como tambm bom ficar aqui

    com as pedras...

  • 37

    Ftima ... Parece que a gente como elas... Uma coisa feita

    de pedra. Que podem dar nomes. Que so diferentes... Mas que, no fundo, tudo

    a mesma coisa sempre... Pedra pura.

    Yonathan Conhece a histria da Medusa?

    Ftima Est no Alcoro?

    Yonathan No. Nem no Tor. Mas no tem importncia. bonita.

    Ftima Conta. Vai me deixar mais triste?

    Yonathan No. Acho que no... Histrias no servem pra isso. o

    que eu acho... A medusa... (Olha nos olhos dela.) Meu pai me contou... Todo

    mundo que olhasse nos olhos da Medusa...

    Ftima (Triste.) Quem era essa Medusa?

    Yonathan Era um monstro, fascinante e bonito...

    Ftima Monstro bonito?

    Yonathan Monstro pode ser bonito. Beleza de monstro, u...

    (Tempo para superao de algumas tristezas.) Mas se voc quiser, pode fazer a

    beleza do monstro virar feira... Sei l. O que interessa que ela, no lugar dos

    cabelos tinha cobras, serpentes do deserto...

    Ftima Era um anjo.

  • 38

    Yonathan No. Nem demnio. Era Medusa. E os seus olhos

    faziam todos os que a olhassem de frente pra ela ficarem paralisados. At o

    corao virava pedra.

    Ftima (Triste.) Ns dois olhamos para ela?

    Yonathan Pode ser. Tem Medusa que se disfara. (Tempo.) Vai

    ver, o mundo uma Medusa grande, feia, dura...

    Ftima O mundo... Uma medusa?

    Yonathan Mas, para escapar dela, basta fechar os olhos...

    (Reflete.) A, a gente no v nada...

    Ftima Ficar de olhos fechados... De olhos bem fechados? A

    gente no sabe ficar de olhos fechados para o mundo... Mesmo que ele seja uma

    Medusa grande, feia e dura.

    Yonathan Mas ficar cego pra feira, cega tambm para a beleza

    que ela podia ter... (Simptico.) O duro que a gente vira pedra quando olha...

    Vira pedra.

    Ftima Pedra... Sempre vira pedra...

    Yonathan Teve um moo que a enfrentou, uma vez.

    Ftima ?

    Yonathan Ele se chamava Perseu.

  • 39

    Ftima Ele no virou pedra?

    Yonathan No. Para no olhar nos olhos dela, colocou um escudo

    de metal bem polido nas mos e ficou de costas para ela. Ele percebeu que se

    olhasse para sua feira, para a sua dureza at para a sua beleza, se ela tivesse,

    na opinio dele... , ficaria paralisado, sem ao. Ento, Perseu inventou o reflexo

    dela no espelho que era o seu escudo polido. Guiado por essa inveno, ele pde

    enfrent-la.

    Ftima Era um moo inteligente... Perseu... Ser que quando

    escutamos o silncio e o grito dos mortos, podemos escapar dela, tambm? Como

    Perseu?

    Yonathan ... Pode ser uma brincadeira bacana.

    Ftima Brincadeira triste. (Tempo.) No covardia?

    Yonathan S se quando a gente fechasse os olhos ou olhasse

    no nosso escudo de proteo , ns no pensssemos em nada. Se tudo ficasse

    vazio. Mas ns podemos enfrentar a Medusa desse jeito, inventando no silncio,

    um jeito de no virar mais pedra.

    (Fecham os olhos.)

    Ftima Parece bom. E a gente inventa um mundo que no

    duro como as pedras. Nesse lugar, as pedras so bonitas e diferentes umas das

    outras... E diferentes de ns, que no somos mais pedra. Nesse mundo, ns

    temos carne, coisa que no devia explodir... (Tempo.) Carne no foi feita para

    explodir...

  • 40

    (Tempo.)

    Yonathan Posso te perguntar uma coisa?

    Ftima U, pergunta.

    Yonathan Era por causa do seu irmo que voc quis brincar de

    homem-bomba comigo?

    Ftima No sei. Ele no falou nada sobre isso... A ningum.

    Yonathan Mas, do jeito dele, podia falar em silncio. E, para ele,

    podia ser a Medusa o que ele via quando olhava para voc, para o mundo...

    Mesmo enquanto vocs gritavam...

    Ftima ... Acho que era alguma coisa muito parecida com

    ela...

    Yonathan Ele no usou nenhum escudo. Virou pedra, carne

    explodida em pedra. E explodiu o mundo.

    Ftima Voc acha que um dia isso vai mudar?

    Yonathan No sei. Mas a gente pode ficar aqui, criando juntos

    no silncio, de olhos fechados... um escudo contra essa Medusa!

    Ftima Medusa que o mundo... Duro... Feio.

    Yonathan Bonito, assustador... (Encantado com ela.) Voc quer?

  • 41

    Ftima Ficar aqui?

    Yonathan ... (Tempo.) Fica.

    (Tempo.)

    Ftima No posso. E voc tambm no pode. Eu sou uma

    menina muulmana... E a Palestina no esse mundo a que a gente inventou,

    sem Medusa... Tem as pedras... Voc sabe.

    Yonathan Antes de ser da Palestina, voc s uma menina...

    Ftima Que gosta de brincar com as pedras. E voc um

    menino judeu. Que carrega um fuzil! Israel vai precisar de voc... Agora ou depois.

    Yonathan Como?

    Ftima (Triste.) Ah, essa pergunta fcil de responder...

    Como sempre mais fcil do que por qu.

    (Riem, tmidos. Tristes.)

    Ftima Bem mais fcil do que todos os por qus.

    (Tempo.)

    Yonathan Volta aqui quando voc quiser.

    Ftima No sei se vai dar. A coisa agora, depois da exploso,

    vai piorar. Mas, se eu no voltar, as pedras podem ficar aqui, juntas, para que

  • 42

    voc veja como elas so diferentes de voc... Para que voc veja como so

    bonitas... Cada uma delas...

    Yonathan Sara... Leila... E Amina.

    Ftima E Yonathan...

    Yonathan E Ftima.

    Ftima (Carinhosa.) Adeus, menino. Eu gostei de te conhecer.

    Foi bom... (Tempo.) Desculpe pela pedrada.

    Yonathan (Triste.) Sempre que der, vou vir aqui, para te esperar.

    Ftima Que bom. Cuidado.

    Yonathan Vou me lembrar sempre de ter cuidado. E de voc...

    Ftima Mas se voc esquecer, tudo bem. Eu vou te perdoar.

    Vou lembrar do seu dia do perdo. Como se chama, mesmo?

    Yonathan Yom Kipur.

    Ftima to esquisito quanto o seu nome. Mas bonito.

    Yonathan Voc bonita.

    (Tempo.)

    Ftima Voc tambm . Adeus.

  • 43

    Yonathan Cuidado com a Medusa, pelos caminhos...

    (Ela vai saindo. Pra. Volta-se para ele.)

    Ftima ruim ir embora... Olhe! Est amanhecendo, j. Mais

    tarde, o sol faz o olho da gente chorar, de to forte.

    Yonathan Voc precisa chorar um pouco.

    Ftima Mais ainda? Chega...

    Yonathan Chore de olhos fechados. De olhos bem fechados... E

    veja o grito de seu irmo pedindo o silncio...

    (Ela fecha os olhos. Afasta-se, com os olhos fechados.)

    Ftima Est bem. (Vai saindo.) Assim parece que voc est

    indo aqui, comigo. Do meu lado. Posso at sentir o seu cheiro.

    Yonathan Eu estou. Estou a. Estamos indo para a sua casa...

    Ftima E ns estamos indo para sua casa, tambm.

    Yonathan Ao mesmo tempo.

    Ftima Juntos.

    Yonathan Indo ao mesmo tempo para os dois lados, para todos os

    lugares diferentes... Juntos.

  • 44

    Ftima Juntos...

    (Ouvem-se barulhos de pedradas, exploso, tiros, ao longe. Esses barulhos

    aproximam-se, mas eles continuam com os olhos fechados, andando muito

    devagar, com as mos tapando os olhos. Repetem as ltimas palavras: Indo ao

    mesmo tempo para todos os lados, juntos... Quando as metralhadoras esto

    muito prximas, eles repetem mais alto as palavras, ditas durante a separao,

    para no ouvir os barulhos speros do mundo. Ftima grita as suas palavras,

    ltimas palavras, quando , de surpresa, alvejada, no peito, por um tiro. Cai.

    Yonathan escuta o silncio, que vem do ferimento dela. Continua de olhos

    fechados, grita mais forte as ltimas palavras: Indo ao mesmo tempo para todos

    os lugares, juntos!; at que ele no consegue mais gritar e abre os olhos,

    aterrorizado. Vai socorr-la. Os sons ttricos continuam, enquanto ele a protege

    como um escudo humano de outros tiros e pedras que vm de todos os lados.

    Yonathan fica ali, chora. Muito amedrontado, sofre ao se levantar e deixar o corpo

    de Ftima, cado... Ele corre. Luz cai em resistncia, enquanto Yonathan dispara,

    para todos os lados, desesperado, o seu fuzil. Black out. Em cena, num pequeno

    foco de luz, fica apenas o tmulo de pedras nascido deste encontro. A luz se abre

    e, sentado ao lado do corpo de Ftima, v-se a imagem de Jonathan, suicida.

    Projeta-se, nas paredes, o Angelus novus, de Paul Klee.)

    O pacifista (Veste negro.) Em outra passagem do livro do Gnesis,

    Abrao, para provar fidelidade ao seu Deus, decidiu pelo sacrifcio de seu prprio

    filho, Isaac. No ponto mais alto do monte Moriha, Abrao preparou um altar para

    degolar aquele a quem havia recebido como graa divina, na velhice, quando

    esperava morrer sem descendentes. Mas um anjo veio do cu e deteve sua mo.

    Pelas palavras de Deus, Abrao conheceu a lei sagrada: Salvando-se uma vida,

    salva-se o mundo. A guerra faz com que muitos filhos sejam sacrificados e

    concretiza o que o Deus de Abrao no quis: o sacrifcio de incontveis Isaacs.

  • 45

    Fim