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2189 O MANDADO DE INJUNÇÃO E A HIDRA DE LERNA: A TUTELA DOS DIREITOS E INTERESSES DIFUSOS COMO UM NOVO TRABALHO AO JUIZ HÉRCULES * THE WRIT OF INJUNCTION AND THE LERNAEAN HYDRA: PRESERVING DIFFUSE RIGHTS AS A NEW LABOUR FOR JUDGE HERCULES Tanya Kristyane Kozicki de Mello RESUMO A Constituição de 1988 introduziu o mandado de injunção como mecanismo de controle concreto da inconstitucionalidade por omissão, porquanto cabível onde a falta de norma regulamentadora obstaculize ao titular o exercício de direito ou liberdade constitucionalmente outorgada ou ainda de prerrogativas relacionadas à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Tratando-se de inovação, e nada obstante a construção doutrinária apontar em sentido diverso, as primeiras decisões proferidas o foram com grande timidez, mormente pelo temor do Poder Judiciário de invadir seara alheia, afeta ao Poder Legislativo. Paralelamente a isso, a norma constitucional que criou a ação permanece, ela própria, carecedora de regulamentação, o que determinou a aplicação, por analogia, das disposições que regem o mandado de segurança. Por isso, e ainda que o texto constitucional nada referisse a esse respeito, passou a ser admitida, sem peias, a legitimação coletiva. Quanto ao conteúdo das decisões, verificou-se paulatina superação do temor inicial, com a substituição da postura não-concretista – onde apenas se dá ciência da mora ao órgão omisso, pela concretista individual, na qual se define, apenas para o postulante, os parâmetros viabilizadores do exercício do direito enquanto perdurar a falta de regulamentação. Vencido este desafio, e em tempos de questionamento acerca da insuficiência dos atuais instrumentos processuais para realizar a tutela dos (ditos) novos direitos, surge uma outra ordem de indagações, agora para reavivar a temática acerca do cabimento do writ para defesa dos direitos difusos. Se no tocante ao conteúdo da decisão havia razoável consenso doutrinário acerca da possibilidade de o Poder Judiciário, ao decidir o caso concreto, regulamentar o exercício do direito titularizado pelo impetrante, o novo debate se mostrará ainda mais desafiador, não apenas porque dissonantes as percepções, mas também por conta da própria natureza dos direitos a tutelar, de onde a inviabilidade de apurar a extensão dos efeitos da regulamentação provisória. PALAVRAS-CHAVES: CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE; MANDADO DE INJUNÇÃO; OMISSÃO INCONSTITUCIONAL; SEPARAÇÃO DE PODERES; DIREITOS DIFUSOS. ABSTRACT * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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O MANDADO DE INJUNÇÃO E A HIDRA DE LERNA: A TUTELA DOS DIREITOS E INTERESSES DIFUSOS COMO UM NOVO TRABALHO AO

JUIZ HÉRCULES*

THE WRIT OF INJUNCTION AND THE LERNAEAN HYDRA: PRESERVING DIFFUSE RIGHTS AS A NEW LABOUR FOR JUDGE HERCULES

Tanya Kristyane Kozicki de Mello

RESUMO

A Constituição de 1988 introduziu o mandado de injunção como mecanismo de controle concreto da inconstitucionalidade por omissão, porquanto cabível onde a falta de norma regulamentadora obstaculize ao titular o exercício de direito ou liberdade constitucionalmente outorgada ou ainda de prerrogativas relacionadas à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Tratando-se de inovação, e nada obstante a construção doutrinária apontar em sentido diverso, as primeiras decisões proferidas o foram com grande timidez, mormente pelo temor do Poder Judiciário de invadir seara alheia, afeta ao Poder Legislativo. Paralelamente a isso, a norma constitucional que criou a ação permanece, ela própria, carecedora de regulamentação, o que determinou a aplicação, por analogia, das disposições que regem o mandado de segurança. Por isso, e ainda que o texto constitucional nada referisse a esse respeito, passou a ser admitida, sem peias, a legitimação coletiva. Quanto ao conteúdo das decisões, verificou-se paulatina superação do temor inicial, com a substituição da postura não-concretista – onde apenas se dá ciência da mora ao órgão omisso, pela concretista individual, na qual se define, apenas para o postulante, os parâmetros viabilizadores do exercício do direito enquanto perdurar a falta de regulamentação. Vencido este desafio, e em tempos de questionamento acerca da insuficiência dos atuais instrumentos processuais para realizar a tutela dos (ditos) novos direitos, surge uma outra ordem de indagações, agora para reavivar a temática acerca do cabimento do writ para defesa dos direitos difusos. Se no tocante ao conteúdo da decisão havia razoável consenso doutrinário acerca da possibilidade de o Poder Judiciário, ao decidir o caso concreto, regulamentar o exercício do direito titularizado pelo impetrante, o novo debate se mostrará ainda mais desafiador, não apenas porque dissonantes as percepções, mas também por conta da própria natureza dos direitos a tutelar, de onde a inviabilidade de apurar a extensão dos efeitos da regulamentação provisória.

PALAVRAS-CHAVES: CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE; MANDADO DE INJUNÇÃO; OMISSÃO INCONSTITUCIONAL; SEPARAÇÃO DE PODERES; DIREITOS DIFUSOS.

ABSTRACT

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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The 1988 Constitution introduced the writ of injunction as a concrete control mechanism of unconstitutionality by omission, considered appropriate where the lack of a regulation rule prevents the holder from the exercise of the right or freedom that is constitutionally granted or even prerogatives related to nationality, sovereignty and citizenship. Being an innovation, and although the doctrinaire construction indicated otherwise since the very beginning, the first decisions pronounced were ones of extreme timidity, mainly due to the apprehensiveness of the Court of invading the terrain of others and affecting the Legislative Authority. At the same time, the constitutional rule that created the action remains in itself, lacking regulation, which determined the application, by analogy, of the arrangements that rule the writ of mandamus. Therefore, and even though the constitutional text makes no reference to this, collective legitimation became acknowledged without limits. A gradual overcoming of the initial apprehensiveness was noted with regard to the content of the decisions, with the substitution of a non-concrete posture – where only awareness of the default is given to the omissive organ by one in which one only defines the enabling parameters of the exercise of rights for the petitioner whilst the lack of regulation persists. Once this first challenge has been surmounted and in questioning times about the insufficiency of the current procedural instruments to materialize the tutelage of the (aforementioned) new rights, another investigation order appears, now, to resume the theme about the suitability of the writ for the defense of diffuse rights. If there used to be reasonable doctrinaire consensus as to the decision content about the possibility of the Judiciary Authority, regulating the exercise of the entitled right by the petitioner when deciding the concrete case, then the new debate will be even more challenging, not only because of the discordant perceptions, but also due to the nature in itself of the tutelary rights, from where there is the non-viability of ascertaining the extension of the effects of provisional regulation.

KEYWORDS: CONSTITUTIONAL CONTROL; JUDICIAL REVIEW; WRIT OF INJUNCTION; UNCONSTITUTIONAL OMISSION; SEPARATION OF POWERS; DIFFUSE RIGHTS.

1 À GUISA DE INTRODUÇÃO

Segundo a mitologia grega, o segundo trabalho exigido pelo rei Euristeu a Hércules impunha-lhe exterminar uma monstruosa criatura: a Hidra de Lerna, serpente com várias cabeças, das quais a maioria contava com capacidade de regeneração quando cortada.

Tal como a serpente, e desde a promulgação da Constituição de 1988, o mandado de injunção sempre suscitou muitas polêmicas, de tal sorte que se apresenta oportuna a analogia: vencida uma dificuldade pela evolução do posicionamento jurisprudencial, outra surge em seu lugar, trazendo novo desafio à capacidade criativa do juiz Hércules. Já foi até mesmo chamado de "o que foi sem nunca ter sido"[1], precisamente pelo modo refratário como inicialmente recebido (e compreendido) pela Corte Constitucional brasileira.[2]

Com efeito, e repetindo timidez anteriormente vista quando da introdução do controle jurisdicional de constitucionalidade em nosso ordenamento[3], por mais de década e

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meia a ação constitucional viu sua raison d'être esvaziada quase que ao limite, em circunstâncias a que a doutrina assistia impotente e desencantada. Não passou, durante muito tempo, de um arremedo da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, onde aparentemente se abria a todos a perspectiva de buscar a tutela jurisdicional para corrigir a inércia normativa inviabilizadora do "exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania"[4], mas que de nada servia senão para "noticiar" ao órgão faltoso que se encontrava em mora.

Paradoxalmente, contudo, e mesmo que à míngua de previsão constitucional específica, não demorou muito para que se admitisse a provocação coletiva, nos moldes do preconizado pelo art. 5º, LXX, para o mandado de segurança. Mas ainda mais paradoxal foi que a guinada de paradigma do Supremo Tribunal Federal tenha se dado precisamente em uma ação coletiva, passando a tutela a ser efetivamente prestada no sentido de conferir resposta efetiva aos jurisdicionados, deferindo-lhes reais condições de exercer direitos e liberdades constitucionalmente auferidos, mas até então pendentes de regulamentação.

Ou seja, aquele instrumento desacreditado e que se imaginava aproximar-se do ocaso definitivo ressurgia, suscitando uma nova ordem de questionamento, desta feita acerca da categoria de direitos que poderiam ser por ele tutelados: para alguns, apenas os coletivos da categoria representada; para outros, inclusive os de caráter difuso.

Da inicial recalcitrância em proferir decisões que conferissem verdadeira realização de direitos constitucionalmente positivados, passa-se a um cenário quase que diametralmente oposto, de onde é quase certo que surjam questionamentos acerca de uma eventual ameaça à separação orgânica de funções, por uma cogitada usurpação, pelo Poder Judiciário, de atribuição típica do Poder Legislativo.

E é precisamente neste ponto que reside o objeto deste estudo, para cujo desenvolvimento se faz imprescindível tecer algumas considerações acerca da origem do instrumento e da evolução jurisprudencial observada, bem como a respeito dos direitos metaindividuais e de suas perspectivas de tutela, para então analisar as perspectivas de resgate do instituto sem comprometimento do ideal de democracia[5] e

[6].

Mais do que respostas definitivas, a pretensão é buscar expor algumas dúvidas (reputadas) pungentes, bem como questionamentos e receios que circundam o tema, mormente em tempos de insistentes referências a um processo de judicialização da política e das relações sociais.[7]

2 REGIME JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO

O mandado de injunção foi criado pela Constituição de 1988 para, ao lado da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, propiciar o controle da inércia de órgão encarregado de conferir regulamentação a preceito de eficácia limitada.[8] Nada obstante o termo escolhido pelo constituinte para designá-lo aparentemente remeter ao writ of injunction do direito estadunidense e outros estudos conterem tentativas de

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identificação de semelhanças até mesmo com a reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde) do direito alemão[9] e [10], apresenta-se mais preciso o escólio de Flavia PIOVESAN, para quem esta ordem não encontra "similar no direito alienígena". E complementa:

(...) A confrontação que se possa fazer com a "injunction" direito americano, ou com a "equity" do direito inglês, ou ainda com o "Verfassungsbeschwerde" do direito alemão, apontam à singularidade do mandado de injunção, que, por sua vez, tanto envolve um juízo de equidade ("equity" dos ingleses), como se volta à proteção de direitos fundamentais da pessoa humana ("injunction" dos americanos e "Verfassungsbeschwerde" dos alemães), mas com características próprias e peculiares.[11]

Introduzido pelo art. 5º, esta garantia constitucional conta com a seguinte redação:

LXX - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.

De modo a reunir os subsídios necessários ao enfrentamento da questão propostas, passa-se a uma breve análise tão-só de alguns aspectos que se reputa indispensáveis à compreensão do instituto[12].

2.1 Pressupostos constitucionais

2.1.1 A Falta de Norma Regulamentadora

Ainda que se tenha dois pressupostos que devem se apresentar em concurso, é certo que o cerne do writ reside precisamente na omissão do Poder Público que, afrontando a integridade do texto constitucional, deixa de se desincumbir do dever de editar norma integradora de preceitos de eficácia limitada[13]. Caem a lanço as ponderações de André PUCCINELLI JÚNIOR:

Só é possível falar em omissão legislativa quando a Constituição consagra normas de eficácia limitada, sem densidade suficiente para se tornarem exequíveis por si mesmas, reenviando ao legislador a tarefa de lhe conferir aplicabilidade. De fato, como o combate à inércia legislativa é determinado pelo desejo de conferir máxima efetividade às normas constitucionais, o termo "omissão inconstitucional" perderia o sentido se todas elas fossem dotadas de eficácia imediata e integral.

Enquanto a inconstitucionalidade por ação decorre da atuação excessiva que geralmente resulta em norma inválida, por atentar contra o princípio da compatibilidade vertical dos atos normativos, a inconstitucionalidade por omissão se prende à inércia dos Poderes Públicos capaz de interditar os potenciais efeitos de uma norma. Daí a afirmação de que a inconstitucionalidade por ação remete ao problema da validade normativa, enquanto a inconstitucionalidade por omissão opera no plano da eficácia.[14]

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Imperativo referir, desde logo, que o texto constitucional alude a uma ausência de norma regulamentadora e não de norma legislativa, o que encerra abrangência significativamente maior. Com efeito, poderá o mandamus ser impetrado não apenas nos casos em que a autoridade omissa integrar o Poder Legislativo, mas também nos casos em que a norma faltante tiver natureza administrativa.

Assim, o que de fato releva é que a insuficiência normativa - qualquer que seja sua natureza - comprometa a fruição do direito outorgado pelo texto constitucional, porquanto o objetivo não é outro senão conferir a este a maior efetividade possível.[15]

Em síntese, por norma regulamentadora se poderá entender, nos termos do art. 103, § 2º, da Constituição, toda "medida para tornar efetiva norma constitucional", de onde a lição de José Afonso da SILVA:

Nesses casos, a aplicabilidade da norma fica dependente da elaboração da lei ou de outra providência regulamentadora. Se ela não vier, o direito previsto não se concretizará. É aí que entra a função do mandado de injunção: fazer com que a norma constitucional seja aplicada em favor do impetrante, independentemente da regulamentação, e exatamente porque não foi regulamentada. Se tivesse sido regulamentada, o mandado de injunção não teria cabimento.[16]

Por outro giro, apresenta-se indiferente perquirir acerca da extensão da omissão - se total ou parcial[17], pois tanto a inércia completa da autoridade quanto sua atuação deficiente bastará para que se abra a via da injunção.

2.1.2 A Inviabilidade do Exercício de Direito ou Liberdade Constitucional ou de Prerrogativa Inerente à Nacionalidade, à Soberania e à Cidadania

Embora tenha a doutrina divergido acerca do objeto do mandado de injunção[18], afigura-se mais ponderada a orientação adotada por José Afonso da SILVA, para quem "não importa a natureza do direito que a norma constitucional confere, desde que seu exercício dependa de norma regulamentadora e desde que esta falte, o interessado é legitimado a propor o mandado de injunção, quer a obrigação de prestar o direito seja do Poder Público, quer incumba a particulares"[19].

Em qualquer hipótese, contudo, haverá de se encontrar presente um "direito subjetivo constitucionalmente afirmado, porém não exercido pelo titular em razão da omissão legislativa na regulamentação do preceito que o veicula"[20], residindo neste ponto uma das diferenças entre o writ e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, que tem natureza objetiva e onde apenas se pretende a defesa da Constituição, e não a defesa de interesses do postulante[21].

2.1.3) O Liame de Causalidade entre a Falta de Norma Regulamentadora e a Inviabilidade do Exercício do Direito ou Liberdade Constitucional

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Por derradeiro, impõe-se destacar que o cabimento do mandado de injunção estará sempre a depender de um vínculo, um elo, de tal sorte que a inviabilidade do exercício do direito ou da liberdade tenha origem direta na falta da regulamentação.

Nesse exato sentido de há muito se posicionou o Supremo Tribunal Federal, por oportunidade do julgamento do Mandado de Injunção 81, relatado pelo Ministro Celso de Mello e que restou assim ementado:

Mandado de injunção - Situação de lacuna técnica - pressuposto essencial de sua admissibilidade - Pretendida majoração de vencimentos devidos a servidores públicos - alteração de lei já existente - Inviabilidade - Agravo Regimental improvido. A estrutura constitucional do mandado de injunção impõe, como um dos pressupostos essenciais de sua admissibilidade, a ausência de norma regulamentadora. Essa situação de lacuna técnica - que se traduz na existência de um nexo causal entre o vacuum juris e a impossibilidade do exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania - constitui requisito necessário que condiciona a própria impetrabilidade desse novo remédio instituído pela Constituição de 1988. (...)[22]

Indispensável, pois, a estreita co-relação entre os apontados pressupostos.

2.2 Legitimação Ativa

É consenso na doutrina que poderá figurar como sujeito ativo do mandamus aquele titular do direito ou liberdade constitucional cujo exercício se encontre obstaculizado pela ausência de norma que regulamente o preceito constitucional instituidor. Nesse passo, tanto poderá se tratar de pessoa física quanto jurídica, nacional ou estrangeira.

Questão que já se mostrou conflituosa na doutrina, mas que acabou restando prejudicada em virtude de claro posicionamento jurisprudencial, dizia com a admissibilidade de impetração coletiva. Assim é que, adotando como parâmetro as entidades relacionadas no art. 5º, LXX, da Carta Maior (mandado de segurança coletivo), bem como observando-se para as associações sindicais o quanto previsto no art. 8º, III, entendeu o STF pela possibilidade da provocação coletiva, ainda antes da supressão do limite aos juros reais então previstos no art. 192, § 3º, da Constituição[23] (revogado pela Emenda Constitucional n. 40, de 29 de maio de 2003). Verbis:

I - MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO: ADMISSIBILIDADE, POR APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 5º, LXX, DA CONSTITUIÇÃO; LEGITIMIDADE, NO CASO, ENTIDADE SINDICAL DE PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS, AS QUAIS, NOTORIAMENTE DEPENDENTES DO CRÉDITO BANCÁRIO, TEM INTERESSE COMUM NA EFICÁCIA DO ART. 192, PAR. 3º, DA CONSTITUIÇÃO, QUE FIXOU LIMITES AOS JUROS REAIS. (...)[24]

Esta legitimidade foi na sequência consolidada por aquela Corte Máxima, como se pode ver na ementa do MI 20/DF, julgado em data de 19 de maio de 1994:

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(...) MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de admitir a utilização, pelos organismos sindicais e pelas entidades de classe, do mandado de injunção coletivo, com a finalidade de viabilizar, em favor dos membros ou associados dessas instituições, o exercício de direitos assegurados pela Constituição. Precedentes e doutrina.[25]

Mas isto nem de longe se prestou a afastar as polêmicas que caracterizam a evolução do instituto nestas duas décadas de existência. Tal qual a Hidra de Lerna, superado o debate acerca de seu cabimento para a tutela de direitos coletivos suscitada por entidade representativa de classes, surge outra indagação, desta feita sobre sua aptidão para realizar a tutela de interesses difusos.

De fato, esta uma questão muitíssimo mais delicada, mormente se considerada a circunstância de que só há pouco teve início o florescimento do instituto no que diz com o conteúdo das decisões proferidas, em processo de evolução jurisprudencial que será rapidamente comentado.

3 CONTEÚDO EFICACIAL DAS DECISÕES INJUNCIONAIS

3.1 Correntes doutrinárias acerca do provimento judicial

De acordo com Regina QUARESMA[26], seriam basicamente três as possibilidades de conteúdo da decisões proferidas em sede de mandado de injunção, a saber:

- tese da subsidiariedade, onde o Poder Judiciário apenas recomendaria ao poder omisso a adoção das providências necessárias à edição da norma faltante, de tal sorte que o writ acabaria equiparado à ação de inconstitucionalidade por omissão;

- teoria da independência jurisdicional, que corresponderia a um pequeno avanço, pois reconheceria ao magistrado liberdade para "estabelecer como o direito deverá ser exercido e ordenar seu cumprimento, editando a norma com força de lei"; e

- tese resolutiva, aquela adotada pela autora e que vê no Poder Judiciário o responsável pela resolução do caso concreto, independentemente de regulamentação, em decisão que "pode ser interpretada como a extensão da aplicação pelo juízo de equidade"[27].

Usando terminologia distinta, porém com conteúdo bastante assemelhado, Alexandre de MORAES[28] refere a existência de duas correntes: a concretista e a não-concretista. Na primeira, e uma vez verificado o atendimento dos pressupostos constitucionais, o Judiciário emitiria um provimento de caráter constitutivo, pelo qual não apenas declararia a omissão como também viabilizaria o exercício do direito invocado até que sobreviesse a regulamentação editada pelo poder competente. Esta linha ainda se subdivide em concretista geral (pela qual a normatividade implementada pela decisão produziria efeitos erga omnes) e concretista individual (onde a decisão aproveitaria tão somente aquele que tivesse provocado a tutela jurisdicional)[29].

Já a segunda - não-concretista, apregoa que o writ apenas teria como finalidade a declaração da inércia do órgão ou autoridade responsável pela regulamentação, o que

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reduziria significativamente a eficácia do instituto, aproximando-o da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Como mencionado anteriormente[30], tal não se coaduna com a natureza distinta de ambos os institutos (objetiva, na ação de inconstitucionalidade; subjetiva, no mandado de injunção), que permaneceriam apartadas apenas sob o prisma da legitimação ativa. Afinal, se no controle abstrato o que se busca é a preservação da incolumidade do texto constitucional (salvaguardando-a quer da ação quer da omissão que o ataquem), no controle concreto se invoca uma solução para o problema submetido pelo impetrante à apreciação jurisdicional, que haverá de receber resposta adequada à realização de seu direito caso se entenda pela procedência.

3.2 Evolução da jurisprudência e a virada de paradigma pelo STF

Conforme se teve a oportunidade de referir adrede, a timidez inicial do Poder Judiciário foi aos poucos sendo substituída por provimentos mais assertivos e de fato viabilizadores do exercício de direitos e liberdades desde sempre outorgados pelo constituinte, de tal sorte que os impetrantes passaram a ver a jurisdição efetivamente prestada.

Em apertada síntese, é possível acompanhar a evolução do posicionamento adotado pela Suprema Corte pela invocação de algumas das decisões proferidas e que ilustram a postura preponderante em diferentes momentos.

Num primeiro momento, anota Luís Roberto BARROSO que "sem nutrir simpatia pela inovação representada pelo mandado de injunção e rejeitando o ônus político de uma competência normativa que não desejava, a Corte esvaziou as potencialidades do novo remédio"[31]. E foi assim que, imprimindo ao princípio da separação dos Poderes uma compreensão já ultrapassada[32], acabou por conferir ao mandamus o mesmo conteúdo decisional da ação de inconstitucionalidade por omissão, onde nada mais se fazia senão noticiar ao Poder competente a necessidade de adoção de providências regulamentadoras do exercício do direito invocado. A propósito, tal orientação foi adotada pouco mais de um ano após a promulgação da Constituição (julgamento em 23 de novembro de 1989), por ocasião do julgamento de Questão de Ordem no Mandado de Injunção 107/DF, em acórdão relatado pelo Ministro Moreira Alves:

MANDADO DE INJUNÇÃO. QUESTÃO DE ORDEM SOBRE SUA AUTO-APLICABILIDADE, OU NÃO. Em face dos textos da Constituição Federal relativos ao mandado de injunção, é ele ação outorgada ao titular de direito, garantia ou prerrogativa a que alude o artigo 5º, LXXI, dos quais o exercício está inviabilizado pela falta de norma regulamentadora, e ação que visa a obter do Poder Judiciário a declaração de inconstitucionalidade dessa omissão se estiver caracterizada a mora em regulamentar por parte do poder, órgão, entidade ou autoridade de que ela dependa, com a finalidade de que se lhe dê ciência dessa declaração, para que adote as providências necessárias, à semelhança do que ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, § 2º, da Carta Magna), e de que se determine, se se tratar de direito constitucional oponível contra o Estado, a suspensão dos processos judiciais ou

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administrativos de que possa advir para o impetrante dano que não ocorreria se não houvesse a omissão inconstitucional. (...)[33]

Passado algum tempo, o Supremo Tribunal acabou por absorver - ao menos em parte, as críticas da doutrina, que desde o início se mostrava preocupada com o esvaziamento da ação constitucional a persistir a postura não-concretista até então predominante. Ainda que sem adotar postura integralmente arrojada, novos rumos passaram a se apresentar, com a Corte assinalando prazo para adoção das medidas regulamentares, pena de o interessado ter assegurada a satisfação do direito até então obstaculizado pela omissão. Veja-se, para ilustrar, o decidido no Mandado de Injunção 282, julgado em 20 de março de 1991 e que teve como relator o Ministro Sepúlveda Pertence:

Mandado de injunção: mora legislativa na edição da lei necessária ao gozo do direito à reparação econômica contra a União, outorgado pelo art. 8º, par. 3º, ADCT: deferimento parcial, com estabelecimento de prazo para a purgação da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular do direito obstado a obter, em juízo, contra a União, sentença líquida de indenização por perdas e danos. (...) 3. Se o sujeito passivo do direito constitucional obstado é a entidade estatal a qual igualmente se deva imputar a mora legislativa que obsta ao seu exercício, é dado ao Judiciário, ao deferir a injunção, somar, aos seus efeitos mandamentais típicos, o provimento necessário a acautelar o interessado contra a eventualidade de não se ultimar o processo legislativo, no prazo razoável que fixar, de modo a facultar-lhe, quanto possível, a satisfação provisória do seu direito. 4. Premissas, de que resultam, na espécie, o deferimento do mandado de injunção para: a) declarar em mora o legislador com relação a ordem de legislar contida no art. 8º, par. 3º, ADCT, comunicando-o ao Congresso Nacional e à Presidência da República; b) assinar o prazo de 45 dias, mais 15 dias para a sanção presidencial, a fim de que se ultime o processo legislativo da lei reclamada; c) se ultrapassado o prazo acima, sem que esteja promulgada a lei, reconhecer ao impetrante a faculdade de obter, contra a União, pela via processual adequada, sentença líquida de condenação à reparação constitucional devida, pelas perdas e danos que se arbitrem; d) declarar que, prolatada a condenação, a superveniência de lei não prejudicará a coisa julgada, que, entretanto, não impedirá o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável.[34]

Como se vê, verificou-se aqui uma transição da orientação não-concretista para a concretista individual, com o que o Tribunal passou a aceitar a possibilidade de edição de uma regulamentação provisória, que atendesse aos reclamos do direito subjetivo do impetrante, ao menos enquanto ausente a regulamentação[35].

Mas a verdadeira "viragem da jurisprudência"[36] a que alude Gilmar Ferreira MENDES somente viria década e meia mais tarde, passando a Corte Suprema a adotar uma postura concretista, de tal sorte que ao julgamento de procedência do writ se integravam a indicação e aplicação "da norma integradora necessária à viabilização do direito constitucional anunciado"[37].

Conforme se disse[38], o Mandado de Injunção 20 representou significativo avanço do STF no sentido de, estendendo a previsão contida no art. 5º, LXX, da Lei Maior, autorizar a impetração de mandado de injunção coletivo. Contudo, naquela oportunidade - que versava precisamente sobre o direito de greve de servidor público, a decisão de procedência nem remotamente se prestou à viabilização do exercício do

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direito que já fora textualmente conferido à categoria pelo art. 37, VII[39]; antes, limitou-se a reconhecer a mora do Congresso Nacional em editar a lei complementar, a qual haveria de "definir os termos e os limites do exercício do direito de greve no serviço público", constituindo-se em "requisito de aplicabilidade e de operatividade da norma inscrita no art. 37, VII, do texto constitucional"[40].

Em meados de 2007 lançou-se sobre a matéria nova luz, de onde a Corte Suprema passou a de plano deferir a aplicação do estatuto legal que disciplina o movimento paredista dos trabalhadores em geral, como se pode conferir em passagem do emblemático aresto:

MANDADO DE INJUNÇÃO. GARANTIA FUNDAMENTAL (CF, ART. 5º, INCISO LXXI). DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS (CF, ART. 37, INCISO VII). EVOLUÇÃO DO TEMA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). (...) Em observância aos ditames da segurança jurídica e à evolução jurisprudencial na interpretação da omissão legislatIva sobre o direito de greve dos servidores públicos civis, fixação do prazo de 60 (sessenta) dias para que o Congresso Nacional legisle sobre a matéria. Mandado de injunção deferido para determinar a aplicação das Leis nos. 7.701/1988 e 7.783/1989. (...) A partir de uma série de precedentes, o Tribunal passou a admitir soluções "normativas" para a decisão judicial como alternativa legítima de tornar a proteção judicial efetiva (CF, art. 5º, XXXV). (...) 4. DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS. REGULAMENTAÇÃO DA LEI DE GREVE DOS TRABALHADORES EM GERAL (LEI no. 7.783/1989). FIXAÇÃO DE PARÂMETROS DE CONTROLE JUDICIAL DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE PELO LEGISLADOR INFRACONSTITUCIONAL. (...) O legislador poderia adotar um modelo mais ou menos rígido, mais ou menos restritivo do direito de greve no âmbito do serviço público, mas não poderia deixar de reconhecer direito previamente definido pelo texto da Constituição. Considerada a evolução jurisprudencial do tema perante o STF, em sede do mandado de injunção, não se pode atribuir amplamente ao legislador a última palavra acerca da concessão, ou não, do direito de greve dos servidores públicos civis, sob pena de se esvaziar direito fundamental positivado. Tal premissa, contudo, não impede que, futuramente, o legislador infraconstitucional confira novos contornos acerca da adequada configuração da disciplina desse direito constitucional. 4.2 Considerada a omissão legislativa alegada na espécie, seria o caso de se acolher a pretensão, tão-somente no sentido de que se aplique a Lei no 7.783/1989 enquanto a omissão não for devidamente regulamentada por lei específica para os servidores públicos civis (CF, art. 37, VII). (...)[41]

Nesse passo, constata-se que foi precisamente em uma ação coletiva, admitida em virtude de sistemática interpretação do texto constitucional (porquanto ausente previsão autorizadora específica), que se deu a mudança da orientação da Corte Suprema pátria.

Assim, o instituto, cujos primeiros anos acenavam com uma perspectiva sombria, ressurge para assumir o papel que a doutrina desde antanho reputara como a ele acometido pelo constituinte: viabilizar, tornar efetivo, possibilitar o exercício real e concreto de direito ou liberdade constitucional ainda (de)pendente de norma regulamentadora que lhe sirva de baliza.

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Evidente que passados mais de vinte anos da promulgação da Lei Magna, nada mais há que justifique permaneçam sem disciplina normativa direitos positivados. Todavia, e nada obstante não se possa validamente colher justificativas razoáveis, é certo que persistem os dispositivos não-regulamentadas e, pois, continua atual a discussão acerca do potencial da ação em comento.

Assim, consolidada a possibilidade de as decisões proferidas em sede de injunction serem providas de conteúdo normativo (com vistas à provisória concretização do direito invocado e até que sobrevenha medida do Poder Público competente), apresenta-se um novo desafio ao Judiciário: admitir, com as cautelas necessárias a evitar o desbordamento de sua função precípua, a utilização do instituto para possibilitar também a tutela dos interesses difusos, acerca dos quais cabem algumas breves considerações.

4 OS DIREITOS COLETIVOS E SUAS CATEGORIAS

4.1 Algumas ponderações iniciais

Conforme referido por Carlos Frederico MARÉS[42], o Estado e o Direito vivem atualmente a mais grave de todas as crises até aqui enfrentadas, já que ataca dogmas profundamente enraizados, suscitando discussões e conflitos que nem um, nem outro jamais se aparelharam para enfrentar. Pior do que isso, cuida-se de reconhecer uma nova ordem de temas, interesses e direitos que até então foram solenemente ignorados, precisamente porque insuscetíveis de recondução a um dos dois âmbitos até então admitidos - ou bem o público, ou bem o privado.

Com efeito, imperativo reconhecer que todo o Direito Moderno foi construído sobre a dicotomia entre o público e o privado, mormente sobre a idéia de propriedade privada e tendo como foco, quase que invariavelmente, um objeto que pudesse ser economicamente valorado. Nas palavras do autor, "nesta avaliação reside sua juridicidade, a tal ponto que o direito resolve todas as pendências, em última instância, em perdas e danos"[43].

Se por muito tempo houve recalcitrância em admitir "um direito coletivo que não fosse o conjunto ou a soma de direitos individuais"[44], a Constituição de 1988 veio para reconhecer esta nova realidade, onde todos são sujeitos, sem possibilidade de disposição individualizada, já que "a disposição de um seria violar o direito de todos os outros"[45]. Mais do que isso: se até então o Estado deveria zelar pela não-violação, em face destes deverá empreender ações efetivas para sua realização[46].

A respeito deste tema, ensina Menelick de CARVALHO NETO que não se cuida de uma mera ampliação do catálogo de direitos fundamentais, mas de verdadeira mudança que atinge por completo a visão de mundo e do próprio constitucionalismo. Literis:

Para esse último paradigma, a questão do público e do privado é questão central, até porque esses Direitos de última geração são Direitos que vão apontar exatamente para essa problemática: o público não pode ser visto como estatal ou exclusivamente como estatal e o privado não pode ser visto como egoísmo. A complexidade social chegou a

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um ponto tal que vai ser preciso que organizações da sociedade civil defendam interesses públicos contra o Estado privatizado, o Estado tornado empresário, o Estado inadimplente e omisso.

Usualmente, em todos esses Direitos de terceira geração, o Estado é o contraventor central, por ação ou omissão. A sociedade civil é, precisamente, aquela instância capaz de lutar por esses Direitos e de zelar pela eficácia deles. Nesse sentido, nós vamos ter uma transformação profunda em toda a teoria processual, o que mostra que os dois paradigmas anteriores eram muito relacionados, embora opostos.[47]

Bem por fazer tais considerações no bojo da discussão acerca da legitimidade do judicial review, o autor refere o embate havido entre o enfoque dos norte-americanos originais e o modelo concebido por Kelsen para fins de realização do controle de constitucionalidade. Contudo, conclui que esta nova ordem de interesses que estão a demandar proteção igualmente suscitam a necessidade de sofisticação dos instrumentos de tutela, de onde ser imprescindível rediscutir a própria atividade interpretativa.[48] Como se viu, em se tratando das liberdades, muito facilmente se admite o controle jurisdicional que afasta a intervenção estatal inconstitucional; já em sede de controle da omissão, mostra-se mais complexa a solução a ser adotada.

4.2 As categorias de direitos coletivos no direito nacional

O Código de Defesa do Consumidor - Lei no. 8078/90 - definiu três categorias de direitos coletivos, ou mais precisamente, duas de natureza verdadeiramente coletiva e uma de direitos individuais de massa, já que autorizadores de tutela coletiva. São elas:

- direitos difusos. Definidos pelo art. 81, parágrafo único, I, como sendo os "transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato";

- direitos coletivos, comumente referidos pela doutrina como direitos coletivos stricto sensu, seriam aqueles "transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base" (art. 81, parágrafo único, II); e

- direitos individuais homogêneos, aos quais o 81, parágrafo único, III, se refere como sendo aqueles "decorrentes de origem comum".

De acordo com Sérgio Cruz ARENHART[49], as duas primeiras categorias são marcadas pela transindividualidade, ou seja, a circunstância de serem "pertencentes não a um indivíduo determinado, mas a certa coletividade (ou à coletividade, considerada como o universo da população)", de onde "não podem ser isolados em um único indivíduo, não pertencem a uma única pessoa". Para exemplificar, invoca o direito ao meio ambiente (da categoria dos direitos difusos), acrescentando ser coletivo por "pertencer a toda coletividade, de forma diluída, não admite que ninguém, isoladamente, seja considerado como seu titular (ou mesmo de parcela determinada dele)". Acerca da indivisibilidade, pondera que ela impede qualquer pretensão de que sejam "confundidos

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com o somatório dos direitos individuais, pertencentes a cada um dos sujeitos que compõem a coletividade".

Neste estudo, é na primeira categoria que se assenta o debate proposto, é dizer, a admissibilidade de impetração de mandado de injunção para fins de tutela daqueles ditos difusos.[50]

5 DIREITOS DIFUSOS E MANDADO DE INJUNÇÃO - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CABIMENTO DO WRIT

Das ponderações até aqui esboçadas, constata-se que, em se tratando de mandado de injunção, doutrina e jurisprudência dificilmente caminharam pari passu. A bem da verdade, aquela pretendia ver, desde o início, uma atuação mais assertiva e concretizadora dos direitos constitucionais, enquanto esta se mostrava recalcitrante, em grande medida por temer imiscuir-se em seara de outrem.[51]

Nesse passo, é de se anotar que a tutela de direitos difusos em sede de injunção já era reconhecida[52], inclusive pela referência à legitimidade ativa do Ministério Público. Nesse passo, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade na previsão contida no art. 6º, VIII, da Lei Complementar 73/95, a qual dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União:

VIII - promover outras ações, nelas incluído o mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, quando difusos os interesses a serem protegidos

Em verdade, tal incumbência nada mais é senão defluência do previsto nos artigos 127, caput, e 129, III, ambos da Constituição, nos quais encontra seu engate de legitimação e validação:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

Com efeito, não seria coerente interpretar o dispositivo constitucional de modo literal e restritivo, para restringir a função institucional apenas à utilização da ação civil pública. Afinal, vale lembrar que nem mesmo se cogita de tutela coletiva, o que foi jurisprudencialmente viabilizado, em decisão que por certo tende à máxima efetivação dos direitos fundamentais, dentre os quais a efetivação da Constituição em seu correlato efeito - o direito subjetivo à emanação de normas[53].

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A propósito, de se destacar precisamente este ponto como apto a sepultar a idéia de que admitir a tutela de direito difuso aproximaria a ordem de injunção da ação de inconstitucionalidade por omissão. Com o devido respeito, esta continua tendo caráter objetivo, enquanto aquele, ainda quando impetrado pelo Ministério Público, destina-se à proteção do direito subjetivo à plena efetivação dos comandos insculpidos na Constituição.

Para ilustrar, refira-se o Mandado de Injunção 858, impetrado em junho de 2008 e distribuído à relatoria do Ministro Eros Grau, pelo qual o Ministério Público do Estado do Paraná pretende ver afastada a omissão do legislador complementar que, passados mais de quinze anos da Emenda Constitucional 4/1994, ainda não deu pelo estabelecimento dos casos de inelegibilidade dos candidatos aos cargos políticos, consoante previsto no artigo 14, § 9º, da Constituição do Brasil.

Em síntese, reitere-se que a ordem injuncional jamais terá o condão de violar o princípio da separação orgânica de funções, subtraindo ao Legislativo sua função típica. O que se terá, em qualquer caso, será uma regulamentação provisória de direitos que foram criados pela Constituição.

De todo modo, a analogia com a serpente mitológica termina na possibilidade que aquela tinha de regenerar as cabeças mutiladas: a ação injuncional nada tem de venenosa e não se cogita de seu extermínio; diferentemente, apenas se reconhece seu potencial para suscitar desafios, cuja tarefa de superação contribui para realizar os ideais preconizados na Carta Maior.

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[1] BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 189.

[2] Em obra publicada ainda antes da mudança de orientação jurisprudencial, Sergio Fernando MORO destacava um certo paradoxo na postura adotada pela Corte brasileira, recusando-se a extrair do mandado de injunção todo o potencial que lhe deferira a Constituição da República. Literis: "Agindo como procedeu, além de esvaziar o instrumento, frustrando os propósitos da Constituição a ele pertinentes e esvaziando a possibilidade de efetivo controle judicial de constitucionalidade sobre parte substancial da Constituição, rompeu com sua própria tradição de extrair das ações constitucionais todo o seu potencial, o que foi ilustrado pela doutrina brasileira do habeas corpus. Conforme visto, o STF potencializou a eficácia dessa ação constitucional, estendendo sua abrangência sem maiores preocupações com a história, quer nacional, quer internacional, do instituto. Já no caso do mandado de injunção, o Supremo, apegando-se acriticamente a construções doutrinárias extemporâneas, esvaziou a utilidade do instituto, quando teria bons argumentos para proceder de maneira contrária. Não deixa de ser paradoxal que a primeira postura foi adotada em período histórico pontilhado por violências institucionais, enquanto a segunda foi adotada em ambiente de renovação democrática e de estabilidade institucional." (in Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 101)

[3] A primeira Constituição da República foi a responsável por inaugurar o controle difuso de constitucionalidade, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal a competência recursal (art. 59, n. 3, § 1º, alíneas "a" e "b"). Nada obstante a expressa atribuição conferida aos juízes para declarar inconstitucionais os atos normativos do Poder Legislativo a partir daquele ano de 1891, tal não ocorreu de modo efetivo, porquanto os magistrados eram os mesmos dos tempos do Império, onde a incumbência de solucionar conflitos entre os poderes era do Poder Moderador, no qual o Imperador se encontrava investido. (cf. BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. A teoria das constituições rígidas. 2. ed. São Paulo: José Bushatsky, 1980. p. 157).

[4] Conforme art. 5º, LXXI, da Constituição da República.

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[5] A respeito da tensão entre constitucionalismo e democracia, veja-se apontamento de KOZICKI, Katya e BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz: "A polêmica que gira em torno do judicial review consiste basicamente no seu suposto caráter antidemocrático, na medida em que permite que juízes não eleitos pelo povo possam interpretar os valores substantivos presentes na Constituição, como também revisar e anular leis incompatíveis com tais valores, mesmo que provenientes do Parlamento, enquanto representante democrático do povo, numa tensão entre jurisdição constitucional e democracia" (in Jurisdição Constitucional brasileira: entre Constitucionalismo e Democracia. Revista Sequência, Florianópolis, n. 56, p. 157, jun. 2008.)

Nesse passo, e considerando que no mandado de injunção o controle que se faz versa sobre uma omissão inconstitucional, ainda maior preocupação poderia suscitar um eventual ativismo judicial, por temor de que o Poder Judiciário acabe por, desbordando de suas funções, produzir normação dotada de generalidade e abstração. Trata-se, contudo, de receio que pode ser facilmente afastado, bastando a criteriosa fixação de parâmetros para a eficácia das decisões proferidas, como se verá mais adiante.

[6] Ainda a propósito do tema, confira-se ensaio de Roberto GARGARELLA, onde são explorados variados argumentos em favor tanto da prevalência do constitucionalismo quanto da democracia. (Constitucionalismo versus democracia. In Teoria y Crítica Del Derecho Constitucional. Tomo I - Democracia. Buenos Aires, Argentina: AbeledoPerrot, 2009. p. 22 e seguintes).

[7] Acerca do tema, veja-se VIANNA, Luiz Werneck. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

[8] Reconhecendo o indiscutível valor das contribuições de autores como Maria Helena Diniz, Carlos Ayres Brito e Celso Ribeiro Bastos, adota-se neste trabalho a construção de José Afonso da Silva acerca da eficácia das normas constitucionais (in Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998), as quais podem ser reconduzidas a uma de três categorias, a saber: a) normas de eficácia plena, assim entendidas aquelas que prescindem de qualquer regulamentação ou integração por parte do legislador infraconstitucional, porquanto já adentraram o ordenamento jurídico com força suficiente para produzir efeitos sobre todos as situações que o constituinte pretendeu disciplinar, a exemplo dos arts. 21, 22 e 24, da Constituição; b) normas de eficácia contida seriam aquelas que nasceram com plenitude eficacial, porém que comportam a possibilidade de seu âmbito de abrangência vir a ser restringido pelo legislador infraconstitucional; em outras palavras, são aquelas dotadas de eficácia plena até que sobrevenha disposição integradora restringindo seu campo de incidência, v. g. do art. 5º, XIII; e, finalmente, c) normas de eficácia limitada, cujo potencial para produção de efeitos fica na dependência de integração a ser produzida pelo legislador infraconstitucional ou pelo administrador, no exercício de competência regulamentar, categoria que comporta subdivisão em normas constitucionais de princípio institutivo (como é o caso do art. 224, ao prever a criação do Conselho de Comunicação Social) e normas constitucionais de princípio programático (nestas, o constituinte delineou princípios a serem observados pelos órgãos estatais de modo à realização dos fins sociais do Estado, como se vê nos arts. 196 e 205).

[9] A qual não haverá de ser confundida com aquela prevista no art. 102, I, "l", que visa preservar a competência e garantia da autoridade das decisões proferidas pelo STF.

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[10] A propósito do tema, confira-se puccinelli júnior, André. A omissão legislativa inconstitucional e a responsabilidade do Estado legislador. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 170, 171.

[11] PIOVESAN, Flavia. Proteção judicial contra omissões legislativas. São Paulo : RT, 1995. p. 178.

[12] Assim é que não serão analisadas questões relativas à legitimação passiva, competência para conhecer e julgar o feito, prazo de impetração e procedimento legalmente delineado. Até porque, e conforme já mencionado, a própria norma constitucional instituidora da ação constitucional permanece, ela própria, pendente de regulamentação.

[13] Para fins deste estudo, não serão tecidas maiores considerações acerca da suficiência de mera lacuna técnica para fins da impetração ou mesmo quanto à diferença entre esta e a omissão inconstitucional. O tema pode ser consultado na obra de SOUZA, Luciane Moessa de. Normas constitucionais não-regulamentadas: instrumentos processuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 78 e seguintes.

[14] Op. cit., p. 120, 121.

[15] Veja-se o escólio de J. J. Gomes Canotilho: "O princípio da máxima efetividade (...), também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efectiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)." (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1097.)

[16] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 448.

[17] Para Jorge Miranda, "por omissão entende-se a falta de medidas legislativas necessárias, falta esta que pode ser total ou parcial. A violação da Constituição, na verdade, provém umas vezes da completa inércia do legislador e outras vezes da sua deficiente atividade, competindo ao órgão de fiscalização pronunciar-se sobre a adequação da norma legal à norma constitucional" (in Manual de Direito Constitucional, tomo VI, Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 308).

[18] Segundo Flávia PIOVESAN, "apresentaram-se, basicamente, três correntes doutrinárias. A corrente mais restritiva sustenta que a parte final do art. 5º, LXXI, ao se referir a prerrogativas 'inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania', restringe a expressão 'direitos e liberdades constitucionais' a estes bens jurídicos. Uma segunda corrente restringe a expressão 'direitos e liberdades constitucionais' aos direitos e garantias fundamentais do Título II do texto. A terceira corrente, a que se adota, entende que os direitos, liberdades e prerrogativas tuteláveis pela injunção não são apenas os constantes do Título II da Carta Maior, que se refere aos direitos e garantias fundamentais, mas quaisquer direitos, liberdades e prerrogativas, previstos em qualquer

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dispositivo da Constituição, tendo em vista que inexiste qualquer restrição no art. 5º, LXXI do texto." (ob. cit., p. 122, 123)

[19] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 451.

[20] NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano; SCIORILLI, Marcelo. Mandado de segurança, ação civil pública, ação popular, habeas data, mandado de injunção. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 236, 237.

[21] Em apertada síntese, pode-se dizer que no controle abstrato de constitucionalidade o foco central não é outro senão a manutenção da integridade da ordem constitucional, quando se suponha existir ação ou omissão que tenha contra ela obrado, de onde ser objetiva sua natureza jurídica. Já no controle concreto - no qual se insere o mandado de injunção, o objetivo precípuo é a decisão do caso concreto, cuja solução perpassa pela apreciação da existência de ofensa à ordem constitucional, mas que ainda assim haverá de manter seu foco no direito subjetivamente invocado.

[22] Julgamento em 20 de abril de 1990. Available:

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(MI$.SCLA. E 81.NUME.) OU (MI.ACMS. ADJ2 81.ACMS.)&base=baseAcordaos [12.jul. 2009]

[23] Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: (...) § 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.

[24] Mandado de Injunção 361/RJ, julgado em 08 de abril de 1994 e que teve como relator do acórdão o Ministro Sepúlveda Pertence. Available:

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=MANDADO+DE+INJUN%C7%C3O%2C+LEGITIMIDADE+ATIVA&pagina=3&base=baseAcordaos [12.jul. 2009]

[25] Relator o Ministro Celso de Mello. Available:

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(MI$.SCLA. E 20.NUME.) OU (MI.ACMS. ADJ2 20.ACMS.)&base=baseAcordaos [12.jul. 2009]

[26] QUARESMA, R. O mandado de injunção e a ação de inconstitucionalidade por omissão: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 51.

[27] Ibid.

[28] MORAES. Alexandre. Direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 175 e seguintes.

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[29] Apenas para complementar, vale referir que a orientação concretista individual conta ainda com duas subespécies: a direta (onde o Poder Judiciário, ao julgar procedente o mandamus, desde logo faz implementar o direito que a constituição outorgara ao autor) e a intermediária (nesta, fixa-se um prazo ao órgão competente para que purgue a mora e edite a norma regulamentadora; decorrido o lapso temporal e persistindo a omissão, o tribunal estabeleceria as condições de exercício). Ibid.

[30] Vide nota de rodapé n. 21.

[31] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 125.

[32] A este respeito, oportuno transcrever passagem colacionada por Luís Roberto BARROSO, na qual o Ministro Celso de Mello assim se pronunciou sobre o tema: "Com efeito, esse novo writ não se destina a constituir direito novo, nem a ensejar ao Poder Judiciário o anômalo desempenho de funções normativas que lhe são institucionalmente estranhas. O mandado de injunção não é o sucedâneo constitucional das funções político-jurídicas atribuídas aos órgãos estatais inadimplentes. Não legitima, por isso mesmo, a veiculação de provimentos normativos que se destinem a substituir a faltante norma regulamentadora sujeita a competência, não exercida, dos órgãos públicos. O STF não se substitui ao legislador ou ao administrador que se hajam abstido de exercer a sua competência normatizadora. A própria excepcionalidade desse novo instrumento jurídico impõe ao Judiciário o dever de estrita observância do princípio constitucional da divisão funcional do Poder" (STF, DJU, 1º fev.1990, p/ 280, MI 191-0-RJ, rel. Min. Celso de Mello).

[33] Supremo Tribunal Federal. Available:

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(MI$.SCLA. E 107.NUME.) OU (MI.ACMS. ADJ2 107.ACMS.)&base=baseAcordaos [12.jul. 2009]

[34] Supremo Tribunal Federal. Available:

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(MI$.SCLA. E 283.NUME.) OU (MI.ACMS. ADJ2 283.ACMS.)&base=baseAcordaos [12.jul. 2009]

[35] Esta mesma orientação pode ser ainda conferida nas decisões proferidas nos MI's 232 (Rel. Ministro Moreira Alves) e 284 (Rel. Ministro Celso de Mello).

[36] MENDES, Gilmar Ferreira; COLEHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2008. p. 1213 e seguintes.

[37] NUNES JÚNIOR; SCIORILLI. op. cit. p. 249, 250.

[38] Tópico 2.2.

[39] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao

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seguinte: (...) VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica

[40] Para a íntegra do acórdão, confira-se

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(MI$.SCLA. E 20.NUME.) OU (MI.ACMS. ADJ2 20.ACMS.)&base=baseAcordaos [12.jul. 2009]

[41] Para a íntegra do acórdão, confira-se

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(MI$.SCLA. E 670.NUME.) OU (MI.ACMS. ADJ2 670.ACMS.)&base=baseAcordaos [12.jul. 2009]

[42] MARÉS, Carlos Frederico. Os direitos invisíveis. In Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e a hegemonia global. Petrópolis, RJ: Vozes; Brasília: NEDIC, 1999. p. 307 e seguintes.

[43] Op. cit., p. 311.

[44] Ibid.

[45] Aut. op. cit., p. 319.

[46] Para Mauro CAPPELLETTI, "diversamente dos direitos tradicionais, para cuja proteção requer-se apenas que o estado não permita sua violação, os direitos sociais - como o direito à assistência médica e social, à habitação, ao trabalho - não podem ser simplesmente 'atribuídos' ao indivíduo. Exigem eles, ao contrário, permanente ação do estado, com vistas a financiar subsídios, remover barreiras sociais e econômicas, para, enfim, promover a realização dos programas sociais, fundamentos desses direitos e das expectativas por eles legitimadas" (in Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1993, p. 41)

[47] CARVALHO NETTO, M. Controle de constitucionalidade e democracia. In: MAUÉS, A. G. M. et alli. Constituição e democracia. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 228-229.

[48] Aut. op. cit., p. 232.

[49] ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva. São Paulo: RT, 2003. p. 155.

[50] Com efeito, o cabimento do writ para tutela dos direitos coletivos stricto sensu não apresenta maiores dificuldades, haja vista os precedentes jurisprudenciais que de há muito admitem a impetração por exemplo, por entidades de representação sindical. Quanto à terceira categoria - direitos individuais homogêneos, reitere-se a observação de que se trata, em verdade, de direitos individuais de massa, de onde não guardarem relação com o tema ora tratado.

[51] Conforme destacado anteriormente, o inicial receio do Supremo Tribunal Federal foi precisamente o de produzir, em sede de mandado de injunção, decisões que

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violassem o postulado da separação orgânica de funções, de onde ter se mostrado marcadamente refratário à adoção de uma postura concretista (ainda que apenas para o caso concreto e com eficácia apenas às partes da relação processual).

[52] Registre-se, em sentido contrário, o posicionamento de Flávia PIOVESAN, para quem "caso se admitisse a tutela também de direito difuso, o instrumento do mandado de injunção estaria, até certo ponto, a se confundir com o instrumento da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Isto é, caberia, em julgamento de mandado de injunção, a elaboração da norma regulamentadora geral e abstrata. O mandado de injunção deixaria de constituir instrumento de defesa de direito subjetivo, voltado a viabilizar o exercício de direitos e liberdades constitucionais, para se transformar em instrumento de tutela de direito objetivo, permitindo a eliminação de lacunas do sistema jurídico-constitucional". (op. cit., p. 126)

[53] Confira-se, acerca do tema, CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle judicial das omissões do Poder Legislativo: em busca de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 369 e seguintes.