o mal É radical ou banal

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O MAL É RADICAL OU BANAL?   A propósito do filme HANNA ARENDT  de Margareth Von Trotta Laura Sokolowsky Disponível em: Lacan Cotidiano 328 Em uma das últimas cenas do filme  Hannah Arendt , que está nas telas da França nessa semana, a filósofa parece falar consigo mesma .[1] Seu olhar se perde ao longe, através da janela de seu apartamento em New York. Esgotada pelas semanas de polêmicas e insultos que se seguiram ao aparecimento de seus artigos sobre o processo Eichmann, no  New Yorker, ela suspira. Seus detratores não perceberam o erro. Aqueles que a acusam de ter tomado a defesa de Eichmann e de ter acusado os Judeus de terem participado em sua própria exterminação, não compreenderam que o mal não pode ser ao mesmo tempo radical e banal. Não compreenderam que esse burocrata da administração nazista representava um tipo novo de criminoso. Frente ao tribunal de Jerusalém, via-se Eichman brandindo circulares redigidas em língua administrativa nas quais as palavras não têm mais a função de expressar o real”  [2].Limitado tanto no raciocínio quanto em sua faculdade de se expressar, mas sem uma vendeta particular, o indizível horror dos crimes cometidos pelo pequeno homem ridículo e resfriado foi descrito de modo inesquecível por Arendt. Na verdade o assunto tomou outro caminho propriamente estupefaciente no momento em que o criminoso confessa que era um leitor assíduo da Critica da razão pratica de Kant. Por ocasião do interrogatório de polícia, Eichman deu uma definição aproximativa, mas correta, do imperativo categórico sublinhando que o principio de sua vontade devia sempre ser tal que pudesse se tornar o principio das l eis gerais. 

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O MAL É RADICAL OUBANAL? 

 A propósito dofilme HANNA ARENDT  

de Margareth VonTrotta 

Laura Sokolowsky

Disponível em: Lacan Cotidiano 328 

Em uma das últimas cenas do filme Hannah Arendt , que está nas telas da Françanessa semana, a filósofa parece falar consigo mesma.[1] Seu olhar se perde aolonge, através da janela de seu apartamento em New York. Esgotada pelassemanas de polêmicas e insultos que se seguiram ao aparecimento de seus artigossobre o processo Eichmann, no  New Yorker, ela suspira. Seus detratores nãoperceberam o erro. Aqueles que a acusam de ter tomado a defesa de Eichmann ede ter acusado os Judeus de terem participado em sua própria exterminação, nãocompreenderam que o mal não pode ser ao mesmo tempo radical e banal. Nãocompreenderam que esse burocrata da administração nazista representava um

tipo novo de criminoso.

Frente ao tribunal de Jerusalém, via-se Eichman brandindo circulares redigidasem língua administrativa “nas quais as palavras não têm mais a função deexpressar o real”  [2].Limitado tanto no raciocínio quanto em sua faculdade de

se expressar, mas sem uma vendeta particular, oindizível horror dos crimes cometidos pelopequeno homem ridículo e resfriado foi descritode modo inesquecível por Arendt. Na verdade o

assunto tomou outro caminho propriamenteestupefaciente no momento em que o criminosoconfessa que era um leitor assíduo da Critica darazão pratica de Kant. Por ocasião dointerrogatório de polícia, Eichman deu umadefinição aproximativa, mas correta, doimperativo categórico sublinhando que oprincipio de sua vontade devia sempre ser tal quepudesse se tornar o principio das leis gerais. 

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 Arendt escreveu:  “Ignoramos a que ponto Kant contribuiu à formação damentalidade do “pequeno homem” na Alemanha, mas é certo que, num certosentido, Eichmann seguiu efetivamente os preceitos de Kant: a lei era a lei; nãose podia fazer exceções. No entanto, em Jerusalém, Eichman confessa que fez duas exceções na época em que cada um dos “quatro milhões de Alemães” tinha

“seu Judeu honesto”. Ele ajudou um primo meio-judeu e depois, por intervençãode seu tio, um casal judeu. Essas exceções o embaraçavam até hoje.Questionado, no interrogatório, sobre esses incidentes Eichman deles searrependeu nitidamente. Ele tinha alias "confessado sua falha” a seussuperiores. Porque frente a seus deveres assassinos, Eichman conservou umaatitude sem compromisso – atitude que, mais do que todo o resto, o condenavaaos olhos de seus juízes, mas que para seu pensamento era precisamente o queo justificava. Sem essa atitude ele não teria podido fazer calar a voz de suaconsciência, a qual talvez ainda ouvia por mais pusilânime que fosse. Nenhumaexceção: essa era a prova de que ele sempre agira contra suas “tendências” – sentimentais ou interessadas -, e de que ele nunca fez mais do que o seu

“dever”. [3] 

 A banalidade do personagem, suasubmissão total à autoridade queo dispensou de pensar todadiferença entre o bem e o mal,inspirou a Arendt sua celebrenoção da banalidade do mal, diebanalitat des Busen. Do mesmo

modo, isso parece lhe ter sidosoprado, alguns anos antes, porseu mestre em filosofia KarlJaspers, com o qual ela mantevecorrespondência entre 1926 e1969. 

Logo após a guerra Arendt escreve a Jasper que não conseguia considerar comocrimes, passíveis de serem julgados, os atos cometidos pelos nazistas. Comoabordá-los juridicamente? Face a suas monstruosidades esses atos se situavamfora do direito porque excediam toda possibilidade de sanção. A inumanidade dafalta era tal que se situava para além do crime. E a inocência das vítimas se situavaalém de toda bondade, de toda virtude. Nada se pode fazer humanamente nempoliticamente, sublinhou ela. Em umacarta de 19 de outubro de 1946,Jaspers respondeu que ele ficavainquieto com esse raciocínio.Imputando aos atos nazistas aqualidade de serem além do humano,era-lhes conferido, querendo ou não,

uma certa grandeza satânica. “ Paramim, é porque isso foi assimverdadeiramente que se deve ver as

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coisas em toda sua banalidade, em sua prosaica nulidade” corrige ele. Bactériasque aniquilam populações inteiras são, no entanto, apenas bactérias. Jasperssublinhava que a criação de mitos e lendas relativas à obscuridade do mal queacabara de ser cometido era um erro, a vertente estética e quase literária da coisadeveria ser totalmente proscrita. Em outros termos, a inclinação à ficção era uma

falsificação. Para Jaspers, “não há idéia e nem substância nesse assunto” . [4]. Parece que foi essa a lição que Arendt conservou por ocasião do processoEichmann menos de vinte anos mais tarde. 

Sobre a questão do mal, chama a atenção que Kant, assim como Arendt, foi malcompreendido em sua época. O estudo que Kant escreve Sur le mal radical dansla nature humaine, publicado em 1792, é considerado como o preâmbulo de suafilosofia da religião. Para ele a origem da tendência ao mal é insondável e não hánenhuma outra razão compreensível que explique de onde nos terá vindo o malmoral. As Escrituras lançam o mal ao começo do mundo, num espírito mau. Ohomem caiu no mal pela via de uma sedução, de onde vem a concepção de que ohomem seduzido não seria, na origem, fundamentalmente mau. Resta umaesperança de que, apesar da corrupção de seu coração, o homem possua sempre

uma boa vontade e podemos esperar que ele retorne para a via do bem da qual seafastou. Kant se pergunta, ora, de onde provem o mal nesse espírito?[5]. Porconsequência, Kant não acredita na existência de uma natureza humanaoriginalmente boa. Que o homem não seja naturalmente bom mas que seja maupor natureza, que exista uma inclinação inata para o mal, leva à conclusão de queo homem deve agir de modo a fazer tudo o que esteja em seu poder para progredirmoralmente. 

 A doutrina kantiana da origem insondável do mal provocou um escândalo. A definição positiva do mal e a ideia segundo a qual a natureza humana é marcadapor uma corrupção indelével chocou, por exemplo, a Goethe que considerava quedepois de uma vida consagrada a libertar o homem de seus preconceitos, Kant derepente suja o cristianismo. Debocharam e gozaram de Kant. Revoltaram-se econfundiram o pendor do homem para o mal com um mal absoluto e invencível.Consequentemente, foi feito o erro de substantivar o mal radical segundo Kant.O mal é radical sem ser absoluto, demoníaco ou sobre-humano. A radicalidade deque se trata não visa um ponto que se situe fora de um limite, de uma fronteirado humano. Trata-se da opacidade do fora-do-sentido. O mal não tem explicaçãoracional. 

Cronologicamente, entre o mal radical segundo Kant e a banalidade do mal,encontramos a reflexão de Freud sobre essa questão. Em  Mal estar na

civilização,publicado em 1929, Freud indicava que na origem o mal é uma perdade amor. É por angústia face à possibilidade de perder o amor do Outro que o

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sujeito renuncia ao mal. Essa angústia é qualificada por Freud de angústia socialrelativamente a essa relação entre o sujeito e o Outro. Essa angústia social não éa angústia de castração. A criança não renuncia por causa da ameaça, mas porqueteme perder o amor de um Outro que não é somente o pai ou a mãe. O Outro deque se trata conhece todos os pensamentos maus, todos os desejos culpáveis,

mesmo os mais recalcados. É o supereu que julga e pune. 

 A reflexão de Freud sobre o mal ultrapassa a lógica edipiana, ela desemboca naconsideração de uma relação ao desejo assim como ao gozo além do Nome-do-Pai. Em definitivo avançar com a análise, não sem angústia, até o consentimentoda perda de amor do supereu, essa é, sem dúvida, a chance única oferecida pelapsicanálise à civilização.