o livro do amor: comentÆrio sobre o convívio de platªo · nota sobre esta ediçªo a presente...

205
TRADU˙ˆO E COMENT`RIOS Ana Thereza B. Vieira O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convvio de Platªo

Upload: dodung

Post on 09-Nov-2018

229 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza B. Vieira

O Livro do Amor:Comentário sobre o Convívio de Platão

Page 2: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Capa: Antonio Canova (1757-1822). As três Graças. Museu Hermitage, São Petersburgo(Rússia).

Page 3: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Universidade Federal do Rio de JaneiroPrograma de Pós-Graduação em Letras Clássicas

Rio de Janeiro2017

ISSN 978-85-8101-020-5

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza B. Vieira

APRESENTAÇÃO Marco Lucchesi

O Livro do Amor:Comentário sobre o Convívio de Platão

Page 4: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Universidade Federal do Rio de JaneiroREITOR: Roberto Leher

Centro de Letras e ArtesDECANA: Flora de Paoli Faria

Faculdade de LetrasDIRETORA: Eleonora Ziller Camenietzky

Programa de Pós-Graduação em Letras ClássicasCOORDENADOR: Ricardo de Souza NogueiraVICE-COORDENADORA: Arlete José Mota

Departamento de Letras ClássicasCHEFE: Fábio Frohwein de Salles MonizSUBCHEFE: Rainer Guggenberger

Conselho EditorialAlexandre Moraes (UFF)Fabio de Souza Lessa (UFRJ)Fábio Frohwein (UFRJ)Ricardo de Souza Nogueira (UFRJ)Fernanda Lemos (UERJ)

Conselho ConsultivoArlete José Motta (UFRJ)Claudia Beltrão da Rosa (UNIRIO)Carolina Kesser Barcellos Dias (UFPEL)Deivid Valério Gaia (UFRJ)Maria Cecília Colombani (Universidad de Morón)

Capa e editoraçãoFábio Frohwein de Salles Moniz

DiagramaçãoEsther Marie Batista Reis

Revisão de textoAna Thereza Basilio Vieira

Revisão técnicaLucia Pestana

Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas / Faculdade de Letras � UFRJAv. Horácio Macedo, 2151 � sala F-327 � Ilha do Fundão21941-917 � Rio de Janeiro � RJwww.letras.ufrj.br/pgclassicas � [email protected]

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão© Copyright desta edição deAna Thereza Basilio VieiraDireitos Reservados2017

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão.

149 p.

1. Literatura latina. 2. Filosofia. 3. VIEIRA, Ana Thereza Basilio.

Page 5: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Nota sobre esta edição

A presente edição de O livro do amor: Comentário sobre o Convívio dePlatão é a segunda versão da tradução da obra de Marsilio Ficino,atualizada e acrescida de um estudo introdutório e notas explicativas,necessárias para um maior esclarecimento do contexto da obra. Aprimeira edição, de 1996, editada pelo Centro de InvestigaçãoFilosófica e Clube de Literatura Cromos, já esgotada, sob o título Olivro do amor foi vencedora do Prêmio de Tradução Alejandro JoséCabassa, na categoria �Investigação Filosófica�, concedido pela UniãoBrasileira de Escritores, integrante da Federación Latinoamericanade Sociedades de Escritores, em 1997. Esta edição, assim como aprimeira, conta com uma apresentação de Marco Lucchesi, Membroda Academia Brasileira de Letras. A nova versão conta com o apoioe financiamento do Programa de Pós-Graduação em EstudosClássicos da Universidade federal do Rio de Janeiro � PPGLC �, doqual sou Membro Permanente. A pesquisa e tradução ora apresentadafoi inicialmente desenvolvida no núcleo de Pesquisas PROAERA �Programa de Estudos em Representações da Antiguidade, como umdos textos que fazem releituras de obras da Antiguidade Clássica.Para a presente edição foi, então, selecionado um novo ConselhoEditorial, bem como novo Editor.

Page 6: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário

¶ MARSILIO FICINO E OS ESTUDOS PLATÔNICOS

Ana Thereza Basilio Vieira¶ APRESENTAÇÃO

Marco Lucchesi

O Livro do Amor

¶ Ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Cosme de Médici¶ Proêmio do florentino Marsilio Ficino sobre o livro do amor aBernardo del Nero e Antonio di Tucci Manetti¶ Proêmio | Comentário do florentino Marsilio Ficino ao Convívio dePlatão, sobre o amor

I,1 | Por que regra o amor deve ser louvado. Qual a sua dignidade egrandezaI,2 | Da origem do amorI,3 | Da utilidade do amorII,1 | Deus é bondade, beleza, justiça, princípio, meio e fimII,2 | De que modo a beleza divina produz amorII,3 | A beleza é o esplendor da bondade divina e Deus é o centro dequatro círculosII,4 | Como Platão expõe sobre as coisas divinasII,5 | A beleza divina resplandece por todas as coisas e em todas éamadaII,6 | Sobre as paixões dos amantesII,7 | Sobre os dois nascimentos do amor e sobre as duas VênusII,8 | Exortação ao amor. Sobre o amor simples e sobre o recíprocoII,9 | O que procuram os amantesIII,1 | O amor existe em todas as coisas e é para todosIII,2 | O amor é autor e conservador de todas as coisasIII,3 | O amor é mestre e governador das artesIII,4 | Nenhum membro do mundo odeia outro membroIV,1 | Narra-se os textos de Platão sobre a antiga natureza dos homens

Page 7: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

IV,2 | Expõe-se a opinião de Platão sobre a antiga figura dohomemIV,3 | O homem é a própria alma e a alma é imortalIV,4 | Porque a alma criada é ornada com duas luzes e por qual razãovai para o corpoIV,5 | Por quantos caminhos a alma volta a DeusIV,6 | O Amor reconduz as almas ao céu, distribui graus de beatitude,dá o gozo eternoV,1 | O amor é bem-aventurado porque é belo e bomV,2 | Como o amor é retratado e em que partes da alma a beleza éreconhecida e é gerado o amorV,3 | A beleza é algo incorpóreoV,4 | A beleza é o esplendor do vulto divinoV,5 | Como nascem o amor e o ódio, ou porque a beleza é incorpóreaV,6 | Quantas partes são exigidas para que a coisa seja bela, e que abeleza é um dom espiritualV,7 | Sobre a pintura do amorV,8 | Sobre a virtude do amorV,9 | Sobre os dons do amorV,10 | O Amor é mais antigo e mais novo que os outros deusesV,11 | O Amor reina diante da NecessidadeV,12 | De que modo, reinando a necessidade, Saturno castrou o Céue Júpiter verdadeiramente ligou SaturnoV,13 | Os deuses que concedem as artes aos homensVI,1 | Introdução à disputa do amorVI,2 | O Amor está entre beleza e torpor e entre Deus e homemVI,3 | Dos espíritos e demônios das esferasVI,4 | Dos sete presentes que são por Deus distribuídos aos homenspelos espíritos médiosVI,5 | Da ordem dos demônios de Vênus e como projetam o amorVI,6 | Como somos capturados pelo amorVI,7 | Do nascimento do amorVI,8 | Em todos os espíritos existem dois amores, e, na verdade,cinco nos nossos

Page 8: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 8

VI,9 | Que paixões existem nos amantes por causa da mãe do amorVI,10 | Quais os dotes dos amantes por causa do pai do amorVI,11 | Qual a utilidade do amor pela sua definiçãoVI,12 | Dos dois amores e porque a alma nasce na supracitada verdadeVI,13 | Como a luz da verdade está na almaVI,14 | De um lado o amor está frente aos homens e de outro, frenteàs mulheresVI,15 | Acima do corpo está a alma; acima da alma, o anjo; acima doanjo, DeusVI,16 | Qual a comparação entre Deus, o anjo, a alma e o corpoVI,17 | Qual a comparação entre as belezas de Deus, do anjo, daalma e do corpoVI,18 | Como a alma se eleva da beleza do corpo à beleza de DeusVI,19 | Como Deus deve ser amadoVII,1 | Conclusão das coisas supracitadas e opinião do filósofo GuidoCavalcantiVII,2 | Sócrates foi um verdadeiro amante e semelhante a CupidoVII,3 | Do amor ferino, que é beleza de insanidadeVII,4 | A fascinação do amor é algo vulgarVII,5 | Como somos facilmente enredados pelo amorVII,6 | De um certo efeito admirável do amor vulgarVII,7 | O amor vulgar é perturbação do sangueVII,8 | Como o amante se torna semelhante ao amadoVII,9 | Por quem somos particularmente enamoradosVII,10 | Como são seduzidos os amantesVII,11 | O modo de se desligar do amorVII,12 | Quão nocivo é o amor vulgarVII,13 | Quão útil é o divino amor e das suas quatro belezasVII,14 | Em que graus os furores divinos elevam a almaVII,15 | O amor é o mais notável de todos estes furoresVII,16 | Quão útil é o verdadeiro amanteVII,17 | Como devem ser dadas graças ao Espírito Santo que nosiluminou e anima esta disputa

Page 9: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 9

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Marsilio Ficino e os estudos platônicosAna Thereza Basilio Vieira

MARSILIO FICINO NASCEU em Florença em outubro de 1433. Ao ingressarna Universidade de Pisa, teve como seus mestres Luca di Antonio deS. Gemignano, Comando di Simone Comandi di Pieve S. Stefano e omédico e filósofo Niccolò di Jacopo Tignosi da Foligno, que o iniciounos estudos de filosofia.

No ano de 1451, Ficino foi consagrado clérigo e, a partir deentão, se dedicou ao estudo e divulgação do Neoplatonismo, emharmonia com os estudos sacros. Seus estudos

[�] representam o entusiasmo sincero e subjetivo de um homemque acredita ter a chave para o que ele busca, que está perfeitamenteciente de que, apesar de apresentar o verdadeiro Platão, ele tambémrealiza algo que nunca foi feito antes: mostrando que Cristianismoe Platonismo são, de fato, partes harmoniosas da mesma explanaçãodo universo.1

As fontes antigas de Ficino são, em verdade, Platão, DionisoAreopagita, Avicena, Alfarrábio, Avicebron ou Salomão Ibn Gabirol,Cícero, Santo Agostinho, Apuleio, Plotino, Calcídio e Macróbio.

Page 10: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 10

Logo em 1456, começa a redigir as suas obras de cunhofilosófico, compondo os Libri quattuor Institutionum ad Platonicamdisciplinam, dedicados a Cristoforo Landino da Patrovecchio, maspublicados somente em 1491, a conselho do próprio Cristoforo, comuma nova dedicatória a Filippo Valori, seu editor.

Dentre suas outras obras, constam De laudibus medicinae; Devoluptate; De virtutibus moralibus, dedicado a Antonio Canigiani;Compendium de opinionibus philosophorum circa Deum et animam; De furoredivino, dedicado a Pellegrino Agli, a quem confessa ser um seguidorda teoria do amor platônico; e De quattuor sectis philosophorum, dedicadoa Clemente Fortini e a Antonio Canigiani.

Em 1458, Marsilio Ficino foi enviado por seu pai àUniversidade de Bolonha, para seguir os estudos de medicina. Noano seguinte, entretanto, ele se dedicou ao aprendizado do grego,traduzindo já as mais variadas obras, como os Hinos Órficos e as obrasde Hesíodo e Homero. O autor foi apresentado a Cosme de Médici,que se tornou seu tutor e lhe cedeu a Villa de Careggi, para que ali sededicasse com mais afinco aos seus estudos. Ficino, assim, fundou aAccademia Platonica, onde passaram a se reunir alguns estudiosos �dentre os quais médicos, filósofos, poetas, músicos e sacerdotes2 � eonde se dedicaram à composição de discursos, leituras e conferênciaspúblicas sobre Platão e Plotino, proferidas em alguma igreja ouauditório próximos à Villa. O florescimento do neoplatonismo seconsagra, sobretudo, após a vinda dos gregos para o Concílio de 1438,em Ferrara � depois transferido para Florença por conta de uma peste� e pela leitura de textos de Gemisto Pletão, um dos filósofosresponsáveis pela revitalização dos estudos neoplatônicos em 1439.Até então a retomada dos estudos de Platão não lograra sucesso entreas diversas sociedades que se formaram.

Em Careggi Ficino recebeu de Cosme de Médici aincumbência de verter para o latim os textos de Platão. Antes, porém,de iniciar esse trabalho, o estudioso resolveu traduzir outros textosgregos para aprofundar seus conhecimentos da língua. Traduz, então,os Hinos, de Proclo; a Teogonia, de Hesíodo; a Argonáutica e o Pimandro,de Hermes Trismegisto, e os Commentaria in Zoroastrem, além de verterpara o latim uma obra de Speusippo sobre as definições platônicas,dedicando-a a Giovanni Cavalcanti.

Page 11: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 11

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Após a morte de Cosme de Médici em 1464, seu filho Pierodi Cosimo passou a ser o protetor de Ficino, garantindo-lhe quecontinuasse seus estudos e versões da obra de Platão; tanto que,entre 1470 e 1480, após a morte de Piero di Cosimo, ainda serealizaram diversas reuniões entre os estudiosos na Villa de Careggi,sob a direção de Ficino e Landino, para discutirem textos de filosofia,poesia e política.

Ficino foi ordenado padre em dezembro de 1473 e, no anoseguinte, Lourenço de Médici lhe ordenou retor da igreja de S.Cristóvão. Como agradecimento, Ficino escreveu o De christianareligione, onde explicava o que viria a ser a chamada docta religio. Aseguir compôs De divina providentia; De nominibus Dei; De gaudiocontemplationis; De triplici in Deum mentis ascensu; De raptu Pauli ad tertiumcoelum e De optimo dive, em que retratou as conversações em Careggicom Cosme e Lourenço de Médici.

Entre os anos de 1474 e 1475 comemoraram o aniversáriode Platão com a realização de um banquete. Ficino aproveitou aocasião para apresentar seu comentário ao Banquete, intituladoCommentarium in Convivium Platonis, o qual dedicou a Lourenço deMédici. Logo depois, Ficino verteu o texto para a língua toscana,dando-lhe o título de Dello amore. As teorias aqui expostas acerca doamor platônico são amplamente utilizadas por escritores não sóitalianos do Quattrocento italiano, como também por vários outrosautores de toda a Europa. Houve múltiplas edições do Commentarium,cada qual com alterações específicas, sendo a de 1561 a mais acuradade todas. A edição em língua toscana, dedicada a Bernardo del Neroe a Antonio Manetti, provavelmente de 1544, é utilizada para efeitosde comparação quando pairam dúvidas acerca de algum trechoininteligível no latim. Algumas passagens do texto de Platão sãoescolhidas para serem comentadas, segundo os modelos de estudorenascentistas, adotados por Ficino. Em sua primeira versão doComentário, o filósofo incluíra alguns dados sobre a vida de Platão,seu horóscopo e filosofia; dados estes que foram suprimidos em outrasversões.

Em 1482, Ficino apresentou a Theologia Platonica em 18volumes, onde tratou da imortalidade da alma, conforme aoplatonismo cristão. Evidenciou-se aqui uma identificação entrefilosofia e religião, a pia philosophia.

Page 12: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 12

O então jovem Pico della Mirandola se junta aos membrosda Accademia Platonica, por volta de 1484, tornando-se discípulode Ficino e sugerindo ao mestre o estudo e tradução das Enéades dePlotino, publicadas mais tarde junto com os comentários à sua obra.

Em 1487, compôs as Praedicationes aut conciones e, em 1489, oLiber de vita, dedicado a Lourenço de Médici, onde Ficino afirma terpossuído dois pais: um carnal, que o iniciara nos estudos de Galeno� Diotifeci; e outro espiritual, que o iniciara nos estudos de Platão �Cosme de Médici. O Liber foi motivo de grandes críticas, pois ofilósofo ali expunha seus conhecimentos acerca de astrologia enecromancia; várias acusações lhe foram imputadas, inclusive pelaIgreja de Roma, devendo Ficino compor sua Apologia para explicarsuas crenças; somente com a intervenção de Lourenço de Médicicessam as acusações e críticas.

O autor frequentemente traduzia obras, como o Dedaemonibus, de Psello; De somniis, de Sinésio; De AegyptiorumAssyriorumque Theologia; o Comentário de Lido Prisciano ao De Mente,de Teofrasto, nos rastros de sua �philosophia perennis�.

Pela composição do De vita caelitus comparanda, Ficino éacusado, junto ao papa Inocêncio VIII, de praticar magia e necromancia.Nesta obra declara-se seguidor da �magia natural�, não profana e,graças à ajuda de alguns amigos influentes, consegue se livrar dasacusações.

Quando Lourenço de Médici morreu em 1492, se estabeleceuo início da decadência da Accademia Platonica. No ano seguinte, Ficinocompôs dois pequenos tratados de astronomia: De sole e De anima.

A 1º de outubro de 1499, Ficino faleceu na Villa de Careggi,após lançar as bases da grande tradição neoplatônica dos temposmodernos.

Florença, durante este período do Renascimento, é o lugar deconvergência das filosofias em voga, e que Ficino saberá melhor quetodos os demais acolher e sintetizar: �do leste, a filosofia do amorplatônico, uma filosofia masculina e esotérica; do oeste, o fluxo doamor cortês renascentista, tradições do amor romântico, feminino epessoal, vindo da Provença para a Itália através da Sicília; e do sul, ofluxo do amor cristão, intelectualizado por Santo Agostinho, eritualizado pela Igreja romana�.3

Page 13: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 13

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Apresentação4

Marco Lucchesi

1 A COISA AMADA

O Comentário ao Banquete de Platão é ainda capaz de despertaradmiração e surpresa no leitor contemporâneo. Isso porque a obra deFicino é clara e apaixonada. E a poesia sobrepaira em todas as suaspáginas. Um rasgo de entusiasmo e um rasgo de melancolia constituemo seu percurso dialético. Outras vezes, é o desespero que suprime amalha conceitual. Uma filosofia da imortalidade estruturada em duaspontas: Deus e o Amor. É o que vamos ler em seu Comentário.

Ficino partiu do Banquete e do Fedro, dois grandes diálogosque ensinavam a relação entre o bem e a beleza, da Ética de Aristótelese do Lélio de Cícero. A todos estes, juntou São Paulo e SantoAgostinho, que ensinavam a dimensão da caridade, bem como ospoetas do dolce stil nuovo como Guinizelli e Cavalcanti. A Comédia deDante e o Cancioneiro de Petrarca perfazem a síntese de sua filosofiado amor. Perfazem, mas não determinam. Marsilio Ficino sabedestramar a tradição e a reorganizar dentro de um sistema novo e detodo fascinante. Ultrapassa a condição de fragmentos para instaurarum discurso.

Para o filósofo, o amor humano é uma preparação para oamor divino. Tudo parte da semelhança. E quando o amor éverdadeiro os amantes se identificam um com o outro. Passamos do

Page 14: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 14

amor solitário ao amor recíproco. Semelhança e reciprocidadefundamentam a sua estrutura:

A semelhança gera o amor. A semelhança é uma certa naturezaigual em vários. Pois se eu sou semelhante a ti, tu também ésnecessariamente semelhante a mim. Portanto, a mesmasemelhança, que impele que eu te ame assim como tu me amas,obriga-te também a me amares.

Algo parecido com o poema de Camões: o amador setransforma na coisa amada e em si mesmo possui a parte desejada.Lemos no Comentário que

na verdade cada um tem a si próprio e ao outro. Pois este existenaquele. E aquele existe, mas neste. Com efeito, enquanto eu teamo, eu me encontro amante, em ti, estando eu a pensar em mim,e recobro-me por mim mesmo, perdido na minha negligência,conservando-me em ti. A mesma coisa fazes em mim.

E prossegue:

Pois eu, depois que perdi a mim mesmo, se por ti me recobro, porti tenho a mim; se por ti tenho a mim, eu te tenho antes e mais quea mim mesmo, e estou mais próximo de ti que de mim, visto queme ligo a mim precisamente por ti.

Todavia, apesar dessa profunda união, os amantes não sabemexatamente o que buscam um no outro. Querem sempre mais e jánão sabem o que significa esse mais. Sentem uma nostalgia arraigada,mas não sabem determinar a sua extensão. Sofrem quando amam edesconhecem por que sofrem. Têm saudade do imponderável. Asemelhança e a reciprocidade não resolvem esse mistério divino.Primeiro, porque a sede de quem ama não se aplaca ao ver ou aotocar o corpo do amado. Não deseja este ou aquele corpo, mas oresplendor divino infuso no outro. A presença de Deus é como umsuave perfume que faz pressentir o sabor de um fruto ignorado.Igualmente, o temor e a reverência do amante ao ver o amado é umtemor inconsciente em face de Deus.

Page 15: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 15

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Tais argumentos demonstram que o amor não se limita a duaspessoas, mas a três: dois seres humanos e um Deus: o amante e oamado são como espelhos que guardam a imagem imperfeita do Pai.É isso que os aproxima um do outro. Precisam compreender aprofundidade desse Bem. Pois amar é voltar à Origem. Vejamos.

2 MOTIVOS DE INQUIETAÇÃO

Num conhecido diálogo de Platão, o desejo da filosofia é odesejo da morte. Inicialmente terríveis, as palavras de Sócratesganham maior clareza à medida que avançamos na leitura do Fédon.Filosofar é libertar-se do corpo para se ocupar da alma, é ir deixandomorrer as solicitações do corpo na realidade do pensamento. Ao nossoredor, apenas miragens e simulacros. Tudo mergulhado em sombras.E o corpo sendo uma extensão dessa realidade. Se buscamos oconhecimento puro, devemos examinar as coisas com a alma. Passarda esfera do sensível para a esfera do inteligível. A nossa pátria é aaltíssima região da qual baixamos a este mundo terreno, lá onde morao nosso Pai. Por isso é preciso morrer. Porque habitamos a Distância.Porque vivemos no Exílio. Transcender: eis a palavra-chave naconcepção platônica. Morte e transcendência preparam o fim daDistância e o regresso ao seio da Unidade. A nostalgia de Deus é aantecâmara da morte. Eis o que pensava justamente Marsílio Ficino.Filosofar é morrer.

Ficino é um ser enamorado e atormentado por Deus. E assuas páginas dão o testemunho dessa procura incessante doSignificado. Da imagem e do rosto de Deus. A filosofia para Ficinonão é senão amor a Deus e regresso a Deus. Voltar ao Princípio dosprincípios e contemplar a Causa das causas. Passar da superfície aoProfundo. Pois o homem - sem Deus - é uma devastadora inquietação.O horizonte puramente físico de Aristóteles e Lucrécio jamais serviude consolo para Ficino.55 Tanto Kristeller como Garin mostrarambrilhantemente como a renúncia de Ficino aos estudos da juventude(Lucrécio e Aristóteles) repercutem na Theologia Platonica. Penso noDe rerum natura:

Page 16: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 16

Sic igitur solem, lunam, stellasque putandumex alio atque alio lucem iactare subortu,et primum quid flammarum perdere semper;inviolabilia haec ne credas forte vigere.Denique non lapides quoque vinci cernis ab aevo,non altas turris ruere et putrescere saxa,non delubra deum simulacraque fessa fatisci,nec sanctum numen fati protollere finisposse neque adversus naturae foedera niti?Denique non monimenta virum dilapsa videmus,

Só fez aumentar-lhe a busca do Sentido. O maior desejo do homem� lembra o filósofo � consiste em tornar-se onipotente. Ele mede océu, a terra e os abismos. O céu não lhe parece tão alto. O centro daTerra, tão profundo. E o abismo já não lhe causa mais terror. Asdistâncias espaciais e temporais não o impedem de chegar aondebem entende. Contudo, a inquietação e a melancolia não se despegamde sua alma. Não lhe basta a conquista da Terra. Sente-se acabrunhadopela vanidade das coisas. Precisa do Outro. Tem saudades do Infinito.E não quer sucumbir nas ondas do tempo.

O endereço do homem é outro. Assim como o Sol atrai asflores, a Lua move as águas, e Marte comanda os ventos, tambémsofremos o impacto da beleza, que é o rosto de Deus, e que atrai aalma (a sé tira) por uma lei de intrínseca semelhança. Estas páginasde alta poesia � que sabem unir metáforas e conceitos, símbolos ealegorias6 � fazem da filosofia de Ficino um pensamento emocionado.Comprometido com Deus e com a imortalidade da alma. DizLourenço, o Magnífico:

Della divina infinità l�abissoquasi per una nebbia contempliamo,benché l�alma vi tenga l�occhio fisso;

ma d�un perfetto e vero amor l�amiamo.Quel che conosce Dio, Dio a sé tira;amando alla sua altezza c�innalziamo.

Page 17: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 17

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Nos versos do Magnífico o conhecimento de Deus torna-seo desejo supremo da alma e nele somente. Todas as demais formasda vida e do conhecimento devem ser entendidos como preparaçãomais ou menos consciente para voltar ao Criador. Esse é o destinoirreversível da alma. Tu ergo Deus noster, tu solos sitim hanc extinguesardentem. Aplacar-lhe a sede. Fonte das fontes.

Um encontro sublime entre o amador e a coisa amada. Umprojeto de redenção onde coincidem o Bem e o Uno, a Causa eficientee a Causa final, o Demiúrgo de Platão e o Intelecto de Aristóteles.Tal a sobreposição de matizes da tradição platônica que alimenta afilosofia do retorno em Marsilio Ficino.

3 PROJETOS DE UNIDADE

Para compreendermos aquela teoria, é preciso recorrer àshipóstases de Plotino. Admirável desinterpretação do Parmênides.Negativa Transcendência do Uno. Radical dimensão meta-ôntica. Odrama do retorno parte justamente destas questões.

Solidão do Primeiro Princípio. Eis o que constatamos - arespiração presa, a mente extasiada, o coração palpitante �desde asprimeiras páginas de Plotino: o Uno real, o Uno total, apareceradicalmente separado do Universo, acima da essência e da vida, daparte e do todo. Não é qualidade ou quantidade. Não se move, nemdescansa. Não possui forma ou figura. É absolutamente o Separado.Além do ser (epékeina óntos). Transcendência dele em tudo. Imanênciade tudo nele. A multiplicidade do cosmos provêm do não múltiplo, enão pode existir a multiplicidade, sem a existência daquele. Assim éa árvore da vida. Onipotência absolutamente dona de si mesma. Tudoparte do Singular.

A superclaridade do Primeiro Princípio expande-se comoplenitude que se comunica, autárquica e sem desejo, ao Filho. Opensamento � ato essencial do Intelecto � é plural e o seu índicemetafísico é infinitamente menor se comparado ao Uno, mergulhadocomo se encontra na in-diferença. Eis a razão pela qual o Uno seriaincapaz de pensar a si mesmo, pois, se assim o fizesse, deixaria de serunidade originária, tornando-se sujeito e objeto. Conquanto deficiente

Page 18: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 18

e posterior, o Intelecto é o primeiro dos seres e, por um movimentode regresso (epistrophé) ao Pai, contempla o Uno, que não pode serpensado senão como perene explicitação de si mesmo. A distânciaque os separa corresponde ao abismo do Infinito. Mesmo assim, oFilho é o ser mais próximo do Pai.

Ao deixar ser a diferença do Intelecto através da processão, oUno nada perde de sua autarquia. Permanecendo, gera o Intelecto desi mesmo, tal como o fulgor dos raios solares. A inteligência primeiraé um kósmos noetós que possui um aspecto ativo e subjetivo, o ato depensar, e um aspecto passivo e objetivo, o conjunto das ideias. Avida do Intelecto é a luz primeira, que se acende e resplandece sobresi, iluminante e iluminada, puramente inteligível, que se vê por simesma e não tem necessidade de outra iluminação. Para Plotino, asideias não representam o conteúdo do Intelecto, mas significam opróprio Intelecto. Cada ideia é ao mesmo tempo intelecção einteligência. Salvaguardar-se destarte a especial unidade-múltipla doFilho.

Ao contemplar os inteligíveis, o Intelecto reverbera a imagemdestes na Alma, comunicando-lhe o próprio ser. Daí porque a Almaé o verbo do Intelecto. Uma parte dela permanece no inteligível, forado cosmos, contemplando o Intelecto. A outra parte avança emdireção dos seres sensíveis, aos quais dá vida. Se a primeira écomparada ao agricultor, a segunda é comparada à árvore. Aquela étranscendente. Esta, imanente. Sendo dupla a sua natureza, seriamelhor para a Alma viver no inteligível. Apesar disso, domina-a umanecessidade de participar do mundo sensível. Eis a característica quelhe permite criar o mundo com a memória dos inteligíveis. A Alma �diria Ficino num contexto maior � é o rosto da totalidade, o centroda natureza e a cópula do mundo.

A Alma do Todo envolve harmonicamente o corpo doUniverso. Este participa tanto quanto possível da beleza das ideias,pois a Alma produz contemplando os inteligíveis: as almas individuais,o Sol e as estrelas, os rios e os mares. E a beleza é o sinal de algoainda mais profundo, o índice de uma imponderável nostalgia, a marcado regresso. A alma sonha com um plano de permanência econtemplação. O Belo é o prefácio do Bem. Eis o nosso destino.

Page 19: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 19

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Plotino compreende o retorno a Deus como fuga do solitário aoSolitário (figué mónou prós mónon). Chega mesmo a lançar mão dametáfora de Ulisses:

Fujamos pois à cara pátria. Mas como partir, como preparar estafuga? Não certamente com os nossos pés, porque eles sempre noslevam de um lugar para outro da Terra. Nem é preciso aparelharcarruagens ou navios, mas abandonar todas estas coisas, e nãolhes dirigir os nossos olhares, fechar os olhos corporais e despertaroutros, que todos possuem, mas que poucos usam.

Um caminho interno e por mares metafísicos. Quandofinalmente o solitário chegar ao Solitário, haverá a imanência da almano Uno, união por presença, êxtase e abandono, esquecimento earrebatamento. Com o retorno ao Uno fecha-se o círculo. O fim daconversão coincide com o princípio da processão.

4 PRINCÍPIO E FIM

No cristianismo as questões da Trindade, da Criação e daEncarnação obrigam a repensar a identidade e a diferença. Passamosda emanação à criação. Do deus impessoal ao deus pessoal. Do não-desejo do Uno ao desejo do Pai. Da in-diferença do Princípio àdiferença do Verbo. Do indivíduo à pessoa.

Partindo de Agostinho e do Pseudo-Dioniso, podemosdistinguir em Deus, em sua transcendente unidade, o mesmo e ooutro. A identidade consiste no Deus imutável, sempre igual a simesmo, infinito em sua perfeição, reunindo os atributos do Uno, doIntelecto e da Alma. Temos aqui a plenitude do ser. A diferençaconsiste na criação, transcendendo-se livremente a si mesmo, semdeixar de permanecer idêntico, uno e trino, sendo a diferença ummomento interno da unidade divina. Afinal, garantida atranscendência de Deus, a pluralidade já não constitui uma diminuiçãoa ser eliminada do Uno e a ser explicitada necessariamente fora dele.

Ao aceitar semelhantes aspectos, Marsilio Ficino critica ateoria de uma processão circular e infinita, como se houvesse umperene permanecer, um perene proceder e um perene regressar.

Page 20: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 20

Parece-lhe absurdo um movimento sem fim: tudo seria igual a tudo,sem que a causa final pudesse atuar de modo transcendente. O Unoseria apenas o suporte do processo circular. Além disso, Ficinotambém empresta às hipóstases um rosto e uma vontade. A solidãodo Uno começa a sofrer uma grande mudança, pois a força que atraio conhecido ao desconhecido, o significante ao significado, não poderepousar na clássica des-afeição do Uno. Se os homens amam oPrimeiro Princípio, que acendeu em suas almas essa nostalgia, essainquietude e essa paixão, também o Pai ama radicalmente epessoalmente todos os homens.7 Ninguém mais se dissolve no seioda matéria universal ou na unidade de uma inteligência que é a formada matéria humana. Trata-se de uma relação profunda e radicalmentepessoal. Deus agora tem face. Una e plural. Conhece os homens nadiferença. E já não pode prescindir da face:

Se amarmos os corpos, os espíritos, os anjos, na verdade nãoamaremos estes, mas Deus nestes. Por certo nos corpos amaremosa sombra de Deus; nos espíritos, a semelhança de Deus; nos anjos,a sua própria imagem. Assim, no presente, amaremos Deus emtodas as coisas, a fim de que em Deus, em suma, amemos todas ascoisas. Assim, pois, enquanto vivermos, a ele nos dirigiremospara ver não só Deus, mas todas as coisas em Deus, e amaremosnão só ele próprio, mas ainda todas as coisas que estão nele mesmo.E quem quer que neste tempo com caridade se consagre a Deus,enfim, se salvará. Isto é, voltará à sua ideia, pela qual foi criado. Aíde novo, se algo lhe faltar será corrigido e se unirá perpetuamenteà sua ideia. Então, o verdadeiro homem e a ideia do homem são amesma coisa. Por isso, nenhum de nós na terra, separado de Deus,é um verdadeiro homem, visto que dele está separado pela ideia epela forma. A ela nos levarão o divino amor e a piedade. Em todoo caso,aqui estamos repartidos e mutilados; então, amando, unidosà nossa ideia, nós nos tornaremos homens íntegros, posto quepareceremos ter primeiramente amado Deus nas coisas, para quedepois amemos as coisas em Deus, e por isto pareceremos veneraras coisas em Deus para nele estimarmos sobretudo a nós mesmos,e, amando Deus, amamos a nós mesmos.8

Page 21: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 21

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Como bem observou Kristeller, a vontade é o verdadeiroprincípio que põe a alma em movimento e a conduz até o seu fim. Ointelecto, considerado superior até quando a mente humana estavaum pouco acima dos objetos, revela-se inferior quando o objetoultrapassa a capacidade do pensamento humano. Só o amor propiciaa união: Propius unimur Deo per amatorium gaudium. O intelectopermanece fechado em si mesmo, enquanto que a vontade busca oobjeto. O amor e a beleza coincidem aqui. Fons totius pulchritudinisdeus est. Fons totius amoris est deus. E a ideia do homem e a sua plenitudetambém se identificam. O sujeito continua sendo o rizoma dessametafísica.9 Pois a diferença torna-se um espelho, onde o amador sereflete na coisa amada e a coisa amada se reflete no amador. Quemais pode refletir o espelho senão a própria face?

Page 22: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 22

O Livro do Amor

Page 23: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 23

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Ao Ilustríssimo e Excelentíssimo SenhorCosme de Médici, Duque de Florença, meurespeitabilíssimo Senhor

GRANDE, ANTES VERDADEIRAMENTE MARAVILHOSA, meu Ilustríssimo eExcelentíssimo Senhor, foi a bondade e benignidade do nosso MarsilioFicino, por certo um digno discípulo daquele grande Cosme, cujonome vossa Excelência ainda retém na ilustre memória. Como nãose contentasse de ter dado Platão aos latinos, ilustrado e declaradocom muitos de seus eruditos escritos, não menos desejando alegrar atodos os que tivessem notícia apenas desta nossa língua, com queele desejara antes satisfazer as honradas e úteis convicções do VossoMagnífico Lourenço, dignou-se a traduzir na nossa língua materna ocomentário que compusera em latim sobre o amor de Platão, dirigindo-o a Bernardo del Nero10 e a Antonio Manetti,11 seus virtuosíssimosamigos, como se demonstra pela sua própria epístola: Intençãoverdadeiramente benigna e santa, mas que ainda não chegara àqueleponto a que ele mesmo o dirigira, ficando este seu tesouro como queescondido até os nossos tempos, ou em realidade usufruído porpoucos. Por isso, considerado com a benigna intenção de Marsilio e autilidade que dali poderia resultar, quando se pudesse ler e entendercom aquela fé e integridade que ele mesmo o escrevera e traduzira,

Page 24: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 24

tendo a comodidade de um texto copiado do próprio original, quisparticipá-lo a todos os que entendem a nossa língua, mas sob o muitohonrado nome de V. E., como daquela a quem eu devo não sóretribuir aquilo que como coisa hereditária lhe pertence, mas aindatudo o que sou ou jamais poderia ser. Receba-o, então, V. E. comespírito alegre e como que impresso com o maior cuidado que sepôde. E não se admire se diante deste Comentário não se encontra otexto de Platão, porque desejei mais seguir o julgamento de Marsiliocom certo encargo de evitar a fadiga de traduzi-lo que proporcionaràs pessoas incultas, que costumam considerar apenas a aparênciadas coisas, e, pelo seu modo figurado e grave, estimular em suasmentes aqueles afetos que ali se tratam, e talvez com maior amplitudeque convém a uma língua comum como é a nossa. Por esta razãoMarsilio traduziu-o e comentou aos latinos e não quis dar aos seusalgo além do Comentário apenas como uma coisa em tudo divina everdadeiramente cristã. Leia-o então V. E. e continue como bem faza incentivar os estudiosos desta língua, a honrá-la e enriquecê-la comtodas as antigas belas artes e salutar ciência, e se recorde de mim,seu fidelíssimo servidor.

D. V. E. Devotíssimo Cosme Bartoli12

Page 25: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 25

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Proêmio do Florentino Marsilio Ficinosobre o livro do amor a Bernardo del Neroe Antonio di Tuccio Manetti, prudentescidadãos Florentinos, seus diletos amigos

COSTUMAM OS MORTAIS fazer muito melhor as coisas que geralmente ecom frequência fazem depois de muito tempo fazê-las bem, quantomais a frequentam. Segui no amor esta regra pela nossa estultice emiséria. Todos nós amamos sempre de algum modo, quase todosamamos mal: e quanto mais amamos, pior amamos. E não se acreditase um em um milhão ama corretamente, porque não é um hábitocomum. Este erro monstruoso (ai de nós!) acontece porque comaudácia ingressamos primeiro nesta fatigante viagem de amor,aprendemos o seu limite, e o modo de passar sobre os perigosos passosda estrada. E, entretanto, quanto mais andamos (ai de nós, infelizes!),caminhamos para o nosso grande erro. E tanto mais importa se perdernesta selva escura, que em outras viagens, quanto mais vezes e commais frequência se caminha. O Supremo amor da Providência divina,para reconduzir-nos ao caminho certo por nós perdido, outrorainspirou na Grécia uma mulher muito casta, chamada sacerdotisaDiotima;13 que, inspirada por Deus, e encontrando o filósofo Sócrates,inclinado sobretudo ao amor, declarou-lhe o que era esse ardente

Page 26: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 26

desejo, por que via podemos incorrer no mal supremo, e por que viapodemos alcançar o sumo Bem. Sócrates revelou este sagrado mistérioao nosso Platão. Platão, filósofo mais piedoso que os outros, logoescreveu um livro para auxiliar os gregos. Eu, para auxiliar os latinos,traduzi o livro de Platão da língua grega para a latina e, animado pelonosso Magnífico Lourenço de Médici, comentei os mistérios maisdifíceis neste livro. E a fim de que aquele salutífero Maná, enviadodos céus a Diotima, se tornasse comum e fácil para muitas pessoas,traduzi da língua latina para a toscana os chamados mistériosplatônicos junto com o meu comentário. Tal volume dedicoprincipalmente a vós Bernardo del Nero e Antonio Manetti, meuscaríssimos amigos, porque estou certo de que com amor recebereis oamor que vos manda o vosso Marsilio Ficino, e dareis a entender aqualquer pessoa que presumisse ler este livro com negligência oucom ódio que não será capaz de fazê-lo na eternidade. Pois que nãose compreende a diligência do Amor com a negligência, e não seagarra este Amor com ódio. Que a mente nos ilumine e estimule anossa vontade o santo espírito, Amor divino, que inspirou Diotima,para que o amemos em todas as suas belas obras, e nele em seguidaamemos as suas obras e infinitamente gozemos da sua infinita Beleza.

Page 27: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 27

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

ProêmioComentário do florentino Marsilio Ficinopara o Convívio de Platão, sobre o amor

PLATÃO, PAI DOS FILÓSOFOS, aos oitenta e um anos de idade, a 7 denovembro, dia em que nascera, colocou-se à mesa no banquete, e,depois de removidas as iguarias, expirou. Contudo, todos os antigosplatônicos até os tempos de Plotino14 e Porfírio por muitos anoscelebraram este banquete, em que se conserva igualmente oaniversário natalício e o da morte de Platão. Mas estes festins solenesforam negligenciados mil e duzentos anos depois de Porfírio. Enfim,nos nossos tempos, o ilustríssimo varão Lourenço de Médici, querenovaria o convívio platônico, instituiu Francesco Bandino15 comoseu despenseiro. Então, visto que Bandino estabelecesse cultuar odia 7 de novembro, com pompa real recebeu no campo de Caregginove convivas platônicos: Antonio Agli, bispo fesulano; o médicoFicino; Cristóvão Landino,16 poeta; Bernardo Nuzzi,17 retórico; TomásBenci;18 João Cavalcanti,19 nosso criado, a quem, por causa da virtudedo espírito e da notável índole, os convivas denominaram herói; osdois Marsupinos, Cristóvão e Carlos, filhos do poeta Carlos. Por fim,Bandino quis que eu fosse o nono, para que com Marsilio Ficinoacrescido aos acima citados se completasse o número das Musas.

Page 28: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 28

Removidos os festins, Bernardo Nuzzi tomou o livro dePlatão, que se intitula Convívio, sobre o Amor, e leu todas as oraçõesdeste Banquete. Nestas leituras pediu que os outros convivasnarrassem cada um uma oração. Todos aceitaram. E, lançada a sorte,aquela primeira oração de Fedro coube a João Cavalcanti expô-la. Aoração de Pausânias, ao teólogo Antônio; a do médico Erixímaco, aomédico Ficino; a do poeta Aristófanes, ao poeta Cristóvão; a doadolescente Agatão, a Carlos Marsupino. A Tomás Benci foi dada adiscussão de Sócrates, e, então, a de Alcibíades, a CristóvãoMarsupino. Assim, todos aceitaram a sorte. Mas, o bispo e o médico,impelidos a se retirarem, um para o cuidado dos espíritos e o outropara o dos corpos, legaram a João Cavalcante expor as suas partes.Os outros a ele se voltaram e se calaram atentos para ouvi-lo. Então,assim, foi exortado aquele herói.

Page 29: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 29

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

I, 1 | Por que regra o amor deve ser louvado. Qual a suadignidade e grandeza

É MUITO AGRADÁVEL, ó excelentes convivas, aquela sorte que hoje mecoube, pela qual foi estabelecido que eu tratasse a pessoa de FedroMirrinúsio. Daquele Fedro, digo, cuja familiaridade tanto estimou osumo orador tebano Lísias,20 e que com uma oração cuidadosamentecomposta se esforçou por cativar. Até Sócrates tanto admirou a suaíndole que um dia, junto ao rio Ilísio, comovido pelo seu esplendor,e mais elevado, cantou os mistérios divinos, o qual antes seproclamara ignorante não só de todas as coisas celestes, mas tambémdaquelas terrenas. Ainda se maravilhou do seu engenho Platão, quededicou a Fedro as primícias de seus estudos. Àquele os epigramas, aeste as elegias de Platão, a outro o seu primeiro livro sobre a belezaintitulado Fedro. Como, então, sou parecido com este Fedro, nãoprecisamente eu, na verdade não me arrogo tanto, mas, em primeirolugar, o acaso da sorte e, depois, o vosso aplauso me julgarão comestes felizes auspícios, antes de tudo interpretarei de bom grado asua oração. A seguir, pelas virtudes do engenho, exporei as partes deAntônio e Ficino.

Ó excelentes varões, cada filósofo imitador de Platãoconsidera três partes em cada coisa: as que antecedem, as quecontinuam e as que seguem o fato. Se forem boas, louva este mesmo

Page 30: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 30

fato; se acaso forem ruins, censura-o. Logo, aquela é um perfeitoelogio, que relata a antiga origem do fato, narra a forma presente emostra os acontecimentos que seguem. Das que antecedem, louva-se cada uma como nobre, das presentes como grande e das queseguem como útil. Por isso, por aquelas três partes nos louvores seconclui estas três: excelência, grandeza e utilidade.

Por esta razão, o nosso Fedro, tendo contemplado sobretudoa presente excelência do amor, chama-o grande deus. Acrescentou dignoda admiração dos deuses e dos homens. E com razão. Pois admiramosaquelas coisas que são particularmente grandes. Decerto é grandeaquele a quem todos os homens e deuses, como dizem, se submetem.Porque entre os velhos tanto os deuses quanto os homens amam. Oque Orfeu e Hesíodo mostram ao falar que as mentes dos mortais edos imortais são domadas pelo amor. Além disso, diz-se que se deveadmirá-lo. Pois que cada um ama aquele cuja beleza admira. Naverdade, os deuses ou, como dizem os nossos, os Anjos, admiram eamam a beleza divina; os homens, a beleza dos corpos. E, todavia,este é elogio do amor tirado da presente excelência que o acompanha.Depois, Fedro o louva pelos fatos precedentes, quando afirma que éo mais antigo de todos os deuses. Onde resplandece a beleza doamor, quando se narra a sua antiga origem. Em terceiro lugar, louvarápelas coisas que seguem, quando pelo seu resultado aparecerá a suaadmirável utilidade. Mas trataremos primeiramente da sua antiga enobre origem, e depois de sua futura utilidade.

Page 31: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 31

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

I, 2 | Da origem do amor

COMO ORFEU, NA ARGONÁUTICA, cantasse sobre os princípios das coisasperante Quirão e os heróis, seguindo a teologia de MercúrioTrismegisto,21 colocou o caos diante do mundo, e diante de Saturno,Júpiter e outros deuses, e dispôs o amor no seio do próprio caos comestas palavras:

πρεσδυτατον τε χαι αυτοτελη πολυµητιν Ερωτα

Muito antigo, perfeito em si mesmo, e muito hábil amor. Hesíodo na Teogonia,o pitagórico Parmênides22 no livro Da Natureza, e o poeta Acusilau23

concordaram com Orfeu e Mercúrio. Platão, no Timeu24, do mesmomodo descreve o caos e nele coloca o amor. E igualmente contouFedro no Convívio. Os Platônicos chamam o caos de mundo disforme,e o mundo, então, o caos formado. Segundo eles, três são os mundos,e da mesma forma três serão os caos. O primeiro de todos é Deus,autor dos universos, que chamamos o próprio bem. Este, num primeiromomento, cria a mente angélica, depois a alma desse mundo, comoquer Platão, e enfim o corpo do mundo. Não chamamos de mundoaquele deus supremo, porque o mundo significa o ornamentocomposto de muitas coisas. Na verdade, aquele deve ser muito simples,

Page 32: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 32

mas afirmamos que ele é o princípio e o próprio fim de todos osmundos. A mente angélica é o primeiro mundo feito por Deus. Osegundo é a alma de todo o corpo. O terceiro é toda aquela máquinaque vemos.

Em qualquer caso, nestes três mundos, três são consideradosos caos. No princípio Deus cria a substância daquela mente, quetambém chamamos de essência. Essa, naquele primeiro momentoda sua criação é disforme e sombria. Mas porque nasceu de Deus epor uma certa paixão inata, volta-se para Deus, seu princípio. Voltadapara Deus, é ilustrada pelo seu próprio raio. Aquela sua paixão pelofulgor do seu raio se acende. Toda a paixão acesa se liga a Deus.Quando se acende, se forma. Pois Deus, que tudo pode, reproduz asnaturezas das coisas criadas na mente que a ele se liga. Naquela,portanto, num certo modo espiritual são pintadas, como assim direi,todas as coisas que sentimos nesses corpos. Ali são produzidos osglobos dos céus e dos elementos, as estrelas, as naturezas dos vapores,e as formas das pedras, dos metais, das plantas e dos animais.

Não duvidamos que as ideias sejam tais espécies de todas ascoisas, geradas naquela mente superior com um certo estímulo deDeus. E muitas vezes chamamos aquela forma e ideia dos céus deDeus Céu; e a forma do primeiro planeta, Saturno; do mesmo modonos planetas que seguem. Também aquela ideia desse fogo se chamadeus Vulcano; do ar, Juno; da água, Netuno, e, da terra, Plutão. Assimtodos os deuses atribuídos a certas partes do mundo inferior são asideias daquelas partes reunidas naquela mente superior. Mas aaproximação da mente a Deus precedeu a perfeita concepção dasideias do Deus que a forma. O incêndio da paixão a precedeu; aintrodução do raio a este; aquela primeira conversão da paixão aesta; e àquela a essência disforme da mente. Enfim, queremos que ocaos seja essa essência ainda não formada. A sua primeira conversãoa Deus é nascimento do amor. A introdução do raio é alimento doamor. O incêndio que o segue chamamos de crescimento do amor. Aaproximação é ímpeto do amor. A formação, perfeição do amor.Chamamos combinação de todas as formas e ideias em latim de mundo,em grego êοσµον, isto é, ornamento. A graça desse mundo eornamento é a beleza, para a qual aquele amor, assim que foi gerado,atraiu e conduziu a mente; a mente, antes disforme, por ela mesma

Page 33: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 33

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

depois se torna formosa. Por isso é condição do amor que seduza abeleza e una o disforme ao formoso.

Pois quem duvidará que o amor logo siga o caos e preceda omundo e todos os deuses que são distribuídos às partes do mundo?Pois que aquela paixão da mente existe antes da sua formação, e, namente formada, nascem os deuses e o mundo. Com razão, portanto,Orfeu chamou-o muito antigo. Além disso, perfeito em si mesmo, como sedissesse o que se realiza em si mesmo. Porque aquele primeiro impulsoda mente parece, pela sua própria natureza, tirar de Deus a suaperfeição, e apresentar à mente aquela que assim se forma, e os queassim são gerados pelos deuses. Chamou-o ainda muito hábil. E comrazão. Pois toda a sabedoria é conselho próprio a cada coisa, e é porisso atribuída à mente, porque, voltada a Deus por amor, resplandeceupor seu próprio fulgor. E, do mesmo modo, a mente se volta paraDeus, a fim de que o olho se dirija à luz do sol. De fato, em primeirolugar, ele observa; depois vê a luz do sol; em terceiro lugar percebeas cores e as figuras das coisas na luz do sol. Pois, no começo o olhosombrio, e como o caos disforme, ama a luz, enquanto olha; irradia-se ao olhar; olhando o raio se forma das cores e figuras das coisas.Assim como, na verdade, aquela mente logo gerada e disforme, poramor, a Deus se volta e se forma, assim também a alma do mundodali gerada se volta à mente e a Deus, e como no início seja disformee caos, por amor dirigida à mente, torna-se mundo nas formas porela recebidas. E igualmente a matéria desse mundo, logo por naturalamor a si, dirigiu-se à alma e se apresentou obediente a ela, e, comono princípio, o caos jazesse disforme sem o ornamento das formaspor este amor que a cativa, obtido da alma o ornamento de todas asformas que são vistas no mundo, do caos fez-se mundo.

Logo, três são os mundos e três os caos. Em todas essas coisas,enfim, o amor acompanha o caos, precede o mundo, desperta as coisasem repouso, ilumina as sombrias, vivifica as mortas, forma asdisformes e completa as imperfeitas. Nos louvores quase nada maiorpode ser dito ou imaginado.

Page 34: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 34

I, 3 | Da utilidade do amor

MAS ATÉ ENTÃO tratamos da sua origem e nobreza. Agora, julgo que sedeve discorrer da sua utilidade. Na verdade é supérfluo relatar cadabenefício do amor concedido ao gênero humano, sobretudo quandotodas as coisas podem ser percebidas de forma sucinta. Mas todasnele consistem para que se sigam as coisas boas, e se evitem as ruins.Os males do homem são as próprias coisas torpes, e igualmente osseus bens são as coisas honestas. Sem dúvida, todas as leis e doutrinasnão sustentam nada além daquilo que os homens assim instituíram:que se afastem das coisas torpes e persigam as honestas. Porém, asquase inumeráveis leis e artes, enfim, somente depois de longo tempochegam àquilo que um mesmo amor realiza em pouco tempo. Pois avergonha se afasta das coisas torpes e incita às coisas honestas oestudo da excelência. Nada além do amor mostra aos homens estasduas com mais facilidade e rapidez.

Quando dizemos amor, entendei o desejo do amor. De fato,esta é a definição do amor entre todos os filósofos. A beleza,entretanto, é uma certa graça, que na maior parte das vezes nascesobretudo da combinação de várias coisas. Ela é tríplice, visto quepela combinação de várias virtudes nas almas é graça; pela concórdiade várias cores e linhas nos corpos nasce como graça; do mesmomodo é grande graça nos sons pela consonância de várias vozes.Tríplice é, portanto, a beleza: dos espíritos, dos corpos e das vozes.

Page 35: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 35

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

A dos espíritos se conhece na mente; a dos corpos se percebe com osolhos e a das vozes com cada ouvido. Assim, visto que sejam mente,visão e audição, com as quais podemos gozar da beleza, o amor érealmente o desejo de usufruir da beleza, o amor se contenta semprecom a mente, com os olhos e com os ouvidos. O que acontece aoolfato? O que é necessário ao gosto ou ao tato? Percebem os odores,os sabores, o calor, o frio, a sua flexibilidade e a dureza e sentidossimilares a este. Nenhum destes é beleza humana, visto que são formassimples; porém a beleza do corpo humano procura a concórdia dediversos membros. O amor, como seu fim, volta-se para o gozo dabeleza. Esta pertence apenas à mente, à visão e à audição. Pois oamor se limita a estes três; na verdade, o desejo, que acompanha ossentidos restantes, não se chama amor, mas paixão e furor.

Além disso, se o amor para com o homem deseja a própriabeleza, logo a beleza do corpo humano consiste numa certacombinação; a combinação é a temperança; o amor estimula apenasaquelas coisas que são temperadas, modestas e decentes. E assim osprazeres do gosto e do tato, que até então são violentos e impetuosos,que dispersam a mente do seu estado e perturbam o homem, o amornão só não os deseja, como ainda os abomina e evita, como coisasque são contrárias à beleza por causa da intemperança. O furorvenéreo leva à intemperança, e por isso à assimetria. E assim parecedo mesmo modo atrair a deformidade; o amor, entretanto, atrai abeleza. A deformidade e a beleza são coisas contrárias. Logo, taismovimentos, que estas coisas atrai, parecem ser contrários entre si.Por isso, o desejo do coito, isto é, de se associar, e o amor não só nãosão os mesmos movimentos, mas ainda se mostram como contrários.E isto atestam os velhos teólogos, que deram a Deus o nome deamor. O que também os teólogos posteriores com o maior empenhoconfirmaram. Na verdade, nenhum nome é conveniente a Deus,quando é comum a coisas torpes. Por esta razão cada um, de acordocom a mente, deve tomar cuidado para não transferir o amor, nomedivino, para as perturbações insanas. Que Dicearco25 se envergonhe,se algum outro não receia censurar a platônica majestade, que muitoconcedera ao amor. Pois, não podemos nunca conceder muito, nemo suficiente aos afetos decentes, honestos e divinos. Então, sucedeque todo amor seja honesto e todo amante, justo. Na verdade, todo

Page 36: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 36

ele é belo e decente, e ama particularmente a beleza. Porém, o ardorturbulento, pelo qual somos levados à lascívia, quando leva àdeformidade, é considerado contrário ao amor.

Para voltarmos então à utilidade do amor, a vergonha, quenos afasta das coisas torpes, e o estudo, que nos aviva para as coisashonestas, com facilidade e rapidez derivam do amor. Porque, emprimeiro lugar, o amor, que procura as coisas belas, deseja sempre ascoisas decentes e magníficas, e odeia as coisas disformes, e evitanecessariamente as coisas torpes e obscenas. Depois, se duas pessoasse amam de forma recíproca, observam-se uma à outra, e desejamagradar-se mutuamente. Visto que um é observado pelo outro, comoaqueles que nunca carecem de testemunha, abstêm-se das coisastorpes. Como tentem agradar-se mutuamente, tentam as coisasmagníficas com ardente estudo, para que não sejam desprezados peloamado, mas julgados dignos da vicissitude do amor.

Mas Fedro explica esta razão de forma muito eloquente eestabelece três exemplos dos amores. Um exemplo é o do amor damulher para o homem, em que se fala de Alceste, mulher de Admeto,que quis morrer pelo amado. Outro é o do amor do homem para amulher, como o de Orfeu a Eurídice. O terceiro é o do amor dohomem para o homem, como o de Pátroclo a Aquiles. Onde se mostraque nada torna os homens mais fortes que o amor. Na verdade não émister investigar a alegoria de Alceste ou de Orfeu no momento. Defato, estas coisas exprimem com mais veemência a força e o impériodo amor, como se fossem contadas como uma história empreendida,do que se fossem julgadas como expostas pela alegoria.

Logo, sem controvérsia, declaramos que o amor é um deusgrande e admirável, além de nobre e muito útil; e assim favorecemosao amor, para que estejamos satisfeitos do seu fim, que é a própriabeleza. Sem dúvida, gozamos daquela parte que conhecemos.Conhecemos com a mente, a visão e a audição. Portanto, com estes agozamos. Nós nos servimos de outros sentidos, não da beleza, que oamor deseja, mas de algum outro de que o corpo mais carece. Então,com estas três coisas, buscaremos a beleza, e por ela, que brilha nasvozes e nos corpos, como por algum vestígio, descobriremos adecência do espírito. Decerto nós a louvaremos; julgaremos o amor etentaremos sempre conservá-lo, a fim de que seja tão grande quanto

Page 37: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 37

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

a beleza. E quando o corpo é na verdade belo, o espírito o é muitopouco, pois com custo e pouco amamos a ociosa e caduca imagemda beleza. Quando apenas o espírito é belo, amamos com muito fervoresta decência estável do espírito. Quando realmente a beleza seapresenta em ambos os lados, admiramo-la com mais veemência. Eassim testemunharemos que somos da família platônica. Pois ela nãoconheceu nada, a não ser as coisas festivas, alegres, celestes esuperiores.

Mas estas coisas da oração de Fedro já são suficientes.Passemos a Pausânias.

Page 38: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 38

II, 1 | Deus é bondade, beleza, justiça, princípio, meio efim

OS FILÓSOFOS PITAGÓRICOS quiseram que a Trindade fosse a medida detodas as coisas; é por esta razão, julgo, que Deus governa as coisasem número de três e ainda com ele mesmo as coisas se limitam aonúmero três. Pois Virgílio disse isto:

Deus gosta do número ímpar26

Decerto aquele sumo autor, em primeiro lugar, gera cada coisa,em segundo, dela se apodera e, por terceiro, a aperfeiçoa. Cada coisatambém, antes de tudo, corre daquela fonte perene quando nasce,depois reflui para ela mesma quando volta à sua origem, e por fim seaperfeiçoa, depois que volta ao seu princípio. Isto profetizou Orfeu;chamou Júpiter princípio, meio e fim do universo. Princípio, vistoque produz; meio, porque atrai para si mesmo as coisas produzidas; efim, conforme aperfeiçoa as coisas que retornam. Daí podemosproclamar aquele rei dos universos bom, belo e justo, o que muitasvezes se diz em Platão. Digo bom quando cria; quando seduz, belo;quando aperfeiçoa pelo mérito de cada coisa, justo. Logo, a beleza,de quem é próprio seduzir, coloca-se entre a bondade e a justiça.Decerto provém da bondade e vai para a justiça.

Page 39: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 39

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

II, 2 | De que modo a beleza divina produz amor

NA VERDADE, ESTA BELEZA divina em todas as coisas gerou o amor, istoé, o desejo de si mesmo. Porque se Deus atrai o mundo para si e omundo é atraído, existe uma certa contínua atração, que começa emDeus, passa ao mundo, e, enfim, acaba em Deus, que, como numcerto círculo de onde se originou, pela segunda vez volta ao mesmo.E assim, um círculo, o mesmo por Deus no mundo e pelo mundo emDeus, é chamado por três nomes. Enquanto em Deus começa e seduz,é beleza; conforme passa ao mundo e o atrai para si mesmo, é amor;quando ao voltar para o autor une a sua obra a si mesmo, é desejo.Portanto, o amor começa na beleza e para no desejo. Isto quis para siaquele hino notável de Hierioteu e Dioniso Areopagita,27 em queassim cantaram estes teólogos: O amor é um círculo bom, de bem em bemsempre precipitado. Necessariamente, então, o amor é bom, quandonascido do bem ao bem volta. Da mesma forma, portanto, é Deus,cuja beleza desejam todas as coisas, e em cuja posse todas as coisasrepousam. Daí, então, o nosso desejo se inflama. Ali repousa a paixãodos amantes, e não se apaga, mas se completa. E, com razão, Dionisocompara Deus ao sol, porque assim como o sol ilumina e aquece ocorpo, assim também Deus dá aos espíritos o brilho da verdade e oardor da ternura. Em qualquer caso, direi que assim examinamosesta comparação no sexto livro da República28 de Platão.

Page 40: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 40

Na verdade, gera corpos visíveis e olhos que veem; introduzum espírito luminoso nos olhos para que vejam, e pinta os corpos decores para que sejam vistos. E nem, entretanto, o próprio raio aosolhos e as próprias cores aos corpos são suficientes para conseguir avisão, a não ser que na própria luz, uma sobre muitas, pela qual muitase próprias luzes são distribuídas aos olhos e aos corpos, não chegue,ilumine, excite e se fortifique. Do mesmo modo, aquele primeiro movimento de todos, que sediz que é Deus, fornece beleza e movimento a cada coisa quando aproduz. Sem dúvida, aquele movimento, quando for concebido emalguma coisa criada e num paciente subordinado, é fraco e impotentepara a execução da obra, mas uma perpétua e invisível luz do divinosol sempre a todos assiste, favorece, vivifica, estimula, preenche efortifica. Disto divinamente falou Orfeu:

Favorecendo todas as coisas e elevando-se a si mesmo sobre todas as coisas

Como é movimento de tudo e fortifica, diz-se que é bem. Vistoque vivifica, conforta, acaricia e estimula, é belo. Como nas coisasapresentadas, e que devem ser conhecidas, seduz aquelas três forçasda alma conhecida � mente, visão e audição -, é beleza. Conforme sejunta à coisa conhecida, na potência que conhece, é verdade. Enfim,visto que é bom, gera, rege e preenche. Visto que é belo, ilumina eintroduz a graça.

Page 41: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 41

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

II, 3 | A beleza é o esplendor da bondade divina e Deus éo centro de quatro círculos

E NÃO CONTRARIAMENTE aos seus interesses, os velhos teólogoscolocaram a bondade no centro e a beleza no círculo. Decerto abondade está num centro; porém, a beleza, em quatro círculos. Umúnico centro de tudo é Deus, os quatro círculos ao redor de Deus sãoa mente, a alma, a natureza e a matéria. A mente é o círculo estável.A alma é móvel por si. A natureza é móvel no outro, mas não pelooutro. A matéria é móvel pelo outro e no outro. Então, na verdade,narraremos porque assim chamamos Deus o centro e aqueles quatrorestantes chamamos círculos. O centro é um ponto do círculo, indivisível e estável. Daí,numerosas linhas, divididas e móveis, são levadas a umacircunferência a elas semelhante. Sem dúvida esta circunferênciadivisível se move ao redor do centro como um eixo. E esta é anatureza do centro, que, ainda que seja uno, indivisível e imóvel,entretanto, em qualquer lugar em muitas e até em todas as linhasdivisíveis e móveis se encontra. Em qualquer lugar da linha, pois,está o ponto. Porque, na verdade, nada pode ser atingido pelo seudessemelhante; as linhas, levadas da circunferência até o centro, sãoimpelidas a atingir tal ponto central com um certo ponto simples eimóvel. Quem negará com razão ser Deus nomeado o centro de tudo,visto que esteja em todas as coisas, totalmente uno, simples e imóvel?

Page 42: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 42

Sem dúvida, todas as coisas por ele produzidas são múltiplas ecompostas, e de alguma maneira móveis, e, visto que dele se originam,assim para ele voltam à semelhança das linhas e das circunferências. Então, a mente, a alma, a natureza e a matéria, que de Deusprocedem, tendem a voltar para ele mesmo, e de todos os lados seespalham para ele através das forças. E como o ponto central seencontra por toda parte nas linhas e em todo o círculo, pelo seu pontocada linha toca o ponto central do círculo, assim também Deus, centrode tudo, que é a unidade mais simples e o movimento mais puro,introduz-se nos universos, não só porque está presente em todas ascoisas, mas porque em todas as coisas por ele criadas aplicou algumaparte ou potência íntima, muito simples e notável, que se chamaunidade das coisas; da qual e para a qual como do centro e para ocentro dependem as partes e as potências de cada coisa. Nitidamentea este seu centro e a esta própria unidade se unem as coisas criadas,convém antes que se unam ao seu criador, assim como ao própriocentro, o que muitas vezes já repetimos, se unam ao centro de tudo.A mente do anjo se eleva na sua ponta e cabeça antes que chegue aDeus. E ainda a alma e as coisas restantes do mesmo modo agem. Eo círculo visível do mundo é a origem daqueles círculos invisíveis damente, é claro, da alma e da natureza. De fato, os corpos são sombrase vestígios das almas e das mentes. Na verdade, a sombra e o vestígiotrazem a sua figura, de que são sombra e vestígio. Por isso, aquelesquatro não injustamente são chamados quatro círculos. Mas a mente é círculo imóvel, porque tanto a sua obra quantoa sua substância permanecem sempre as mesmas, e igualmenteproduz, percebe sempre do mesmo jeito e do mesmo modo deseja.Contudo, a mente algumas vezes pode ser chamada móvel porque,assim como todas as outras coisas, procede de Deus, e se volta paraele mesmo. A alma do mundo e qualquer outra é círculo móvel. Comefeito, esta sua natureza, que discorre, conhece e produz nos espaçosde tempos; as idas e vindas, porém, por ele e para ele e a obra temporalsão sem dúvida chamadas movimento. Se há verdadeiramente firmezano conhecimento da alma, está mais de acordo com o auxílio damente que da alma. A natureza móvel ainda é um círculo. Quandodizemos alma, segundo o costume dos antigos teólogos,compreendemos a força posta na razão e no sentido da alma; quando

Page 43: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 43

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

dizemos natureza, percebemos a força da alma pronta para gerar.Particularmente chamaram aquela força em nós homem; esta é aimagem e o simulacro do homem. Sem dúvida, ela é faculdade degerar, por isso diz-se móvel, porque acompanha a sua obra nosespaços de tempo. Na realidade, nisto difere daquela propriedade daalma porque a alma se move por si e em si. Por si, digo, porque éprincípio do movimento. Em si ainda porque na própria substânciada alma reside a obra da razão e do sentido. Então não resultanecessariamente nenhum trabalho no corpo. Na verdade, aquela forçade gerar, a qual chamamos natureza, decerto se move por si, quandoé alguma força da alma que se move por si. Além disso, diz-se que semovimenta em outro, porque toda a sua obra termina na massa docorpo. De fato, o corpo nutre, cresce e produz. Verdadeiramente, amatéria e a massa do corpo são círculos movidos por outro e emoutro. Por outro, na verdade, porque por necessidade pela alma éagitado. No outro, porém, porque é agitado em tal espaço domovimento do corpo. Agora, então, podemos perceber com clareza por que causa osteólogos colocam a bondade no centro e a beleza no círculo. Poisque a bondade de todas as coisas é um único e mesmo Deus, peloqual todas as coisas são boas; a beleza, entretanto, é o raio de Deusintroduzido naqueles quatro círculos de alguma maneira precipitadosao redor de Deus. Tal raio reproduz naqueles quatro círculos todasas belezas de todas as coisas. Costumamos chamar aquelas belezasna mente de ideias; na alma, razões; na natureza, sêmens; na matéria,formas. Por isso, nos quatro círculos parecem ser quatro esplendores.O esplendor das ideias no primeiro, das razões no segundo, dos sêmensno terceiro e das formas no último.

Page 44: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 44

II, 4 | Como Platão expõe sobre as coisas divinas

PLATÃO REVELOU ESTE MISTÉRIO na epístola ao rei Dioniso,29 quandoafirmou ser Deus a causa de todas as coisas belas, assim como oprincípio e a origem de toda a beleza. Diz: Tudo está ao redor do rei de todas as coisas. Por sua causa todas ascoisas existem. Ele mesmo é a causa de todas as coisas belas. As segundasestão ao redor do segundo. As terceiras ao redor do terceiro. Contudo, o espíritohumano ambiciona compreender quais sejam aquelas coisas, olhando para asque lhe estão próximas, das quais nenhuma é suficiente. Na verdade, ao redordo próprio rei e daquelas coisas que eu citei, nada é assim, entretanto, o espíritodiz o que há depois dele.30

Ao redor do rei, não significa dentro do rei, mas fora deste. EmDeus, com efeito, não há nenhuma composição. O queverdadeiramente significa aquela expressão ao redor de todas coisas,Platão o mostra quando acrescenta: Todas as coisas existem graças a ele,e ele mesmo é a causa de todas as coisas belas, quer dizer, por este motivotodas as coisas existem ao redor do rei, porque todas as coisas, porsua natureza, a ele se voltam assim como por ele, como princípio,todas as coisas são produzidas. De todas as coisas belas, isto é, de todaa beleza que ressalta nos círculos supracitados. Pois, as formas doscorpos pelos sêmens, esses pelas razões, aquelas pelas ideias sereduzem a Deus e são por Deus geradas nestes mesmos graus. Emespecial, pois, quando diz todas as coisas, compreende as ideias, porquenestas se encerram as coisas restantes.

Page 45: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 45

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

As segundas ao redor do segundo. As terceiras ao redor do terceiro.Zoroastro estabeleceu três príncipes do mundo, senhores de trêsordens: Onomasis, Mitris e Arimanis. Platão denomina-os Deus,mente e alma. Além disso, estabeleceu três ordens nas belezas divinas:ideias, razões e sêmens. As primeiras, pois, isto é, as ideias ao redordo primeiro, isto é, ao redor de Deus, porque por Deus são distribuídasà mente e reconduzem a mente àquele mesmo por quem sãoconcedidas. As segundas ao redor do segundo, isto é, as razões ao redorda mente, visto que passam pela mente à alma e dirigem a alma àmente. As terceiras ao redor do terceiro, isto é, os sêmens das coisas aoredor da alma. Pois, passam da alma à natureza, bem entendido àquelapotência de gerar, e de novo unem a natureza à alma. Pela mesmaordem, as formas descem da natureza à matéria. Mas Platão não asenumera na ordem estabelecida porque, interrogado por Dioniso sobreas coisas divinas, introduziu as três ordens pertencentes às belezasincorpóreas como divinas; mas deixou de lado as formas dos corpos.Além disso, não quis chamar Deus o primeiro rei, mas o rei de todasas coisas, para que, se dissesse o primeiro, não parecesse talvez colocá-lo ao mesmo tempo com tais chefes em outra espécie de número esemelhança de condição. Nem disse as primeiras ao redor daquele,mas todas, para que não acreditemos que ele é o condutor mais deuma certa ordem que de todas. O espírito humano ambiciona compreender quais sejam aquelas coisas.Habilmente após aqueles três esplendores da divina beleza que brilhamnos três círculos, lança-lhes o amor do espírito. Por isso, então, acende-se o ardor do espírito. Pois, é justo que o divino deseje as coisasdivinas.

Olhando para aquelas que lhe estão próximas. Porque oconhecimento humano se origina dos sentidos, por aquelas coisasque vemos mais notáveis nos corpos, acostumamo-nos a julgá-lasdivinas várias vezes; por aquelas forças das coisas corpóreas,investigamos o poder de Deus; pela ordem, a sabedoria; e pelautilidade, a bondade de Deus. Chama também as formas dos corpospróximas à alma, quase do mesmo modo nascidas. De fato, no grauseguinte, depois do espírito estão dispostas as formas dos corpos.

Page 46: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 46

Das quais nenhuma é suficiente. Deste modo as formas não existemsuficientemente nem nos mostram suficientemente as coisas divinas.Na verdade, pois, as coisas são ideias, razões e sêmens. Sem dúvidaas formas dos corpos parecem mais ser sombras das coisas queverdadeiramente coisas. Assim como a sombra do corpo ainda nãomostra a figura exata e distinta do corpo, assim também os corposnão indicam a própria natureza daqueles seres divinos. Ao redor do próprio rei e daquelas coisas, que eu citei, nada é igual.Pois como as coisas mortais parecem semelhantes às imortais e asfalsas às verdadeiras? Entretanto, o espírito diz o que existe depois dele, isto é, o espírito,enquanto julga as coisas mortais com as imortais, sem razão falasobre as coisas divinas e não pronuncia as divinas, mas as mortais.

Page 47: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 47

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

II, 5 | A beleza divina resplandece por todas as coisas eem todas é amada

MAS PARA QUE COMPREENDAMOS muitas coisas em poucas, diz-se que obem é a própria existência elevada de Deus. A beleza é certomovimento ou um raio, que penetra por todas as coisas; primeiro namente angélica; depois, na alma de tudo e nos espíritos restantes; emterceiro lugar na natureza; e em quarto na matéria dos corpos. Ornaa mente com a ordem das ideias. Completa a alma com a série dasrazões. Fortalece a natureza com sêmens. Enfeita a matéria com asformas. Pois, do mesmo modo que um raio do sol ilustra quatro corpos- fogo, ar, água e terra -, assim um raio de Deus ilumina a mente, aalma, a natureza e a matéria. E visto que todo aquele que examina aluz nestes quatro elementos vê o raio do próprio sol e a ele mesmo sevolta para contemplar a luz superior do sol, assim quem quer quecontemple a beleza nestes quatro elementos - mente, alma, naturezae corpo - e neles ame o fulgor de Deus, por tal fulgor, contempla eama o próprio Deus.

Page 48: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 48

II, 6 | Sobre as paixões dos amantes

ENTÃO, CONCLUI-SE QUE O ÍMPETO do amante não se extinguirá peloaspecto ou pelo tato de nenhum corpo. Pois, não deseja este ou aquelecorpo, mas admira, ambiciona e se extasia à vista do esplendor dadivindade superna que resplandece nos corpos. Por isso, os amantesnão sabem o que desejam ou procuram, porque desconhecem o próprioDeus, cujo sabor oculto busca certo seu odor muito doce em suasobras. Na verdade, somos todos os dias estimulados por este odor.De fato sentimos o odor, e sem dúvida desconhecemos o sabor. Paraque então, seduzidos pelo odor manifesto, desejemos o sabor oculto,com razão não sabemos o que desejamos e suportamos. Assim ainda acontece sempre que de alguma maneira os amantestemem o aspecto do amado e o venerem. Direi, igualmente, e setemo que nenhum de vós se envergonhe ouvindo estas coisas, direi oque também de inferior os fortes e os homens sábios se acostumarama suportar na presença de qualquer amado. Sem dúvida, não é humanoo que os espanta, dilacera e fere. Pois, a força humana é sempre maisnotável nos mais fortes e nos mais sábios. Mas aquele fulgor dadivindade que brota nas coisas formosas impele os amantes a seaturdirem, ter medo e venerá-las como um simulacro de Deus. Pelamesma razão, em vista da presença do amado, o amante despreza asriquezas e as honras e nada possui. De fato, é justo que as coisasdivinas se anteponham às humanas.

Page 49: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 49

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Também costuma muitas vezes suceder que alguém deseje setransferir para a pessoa amada. E não injustamente, porque desejaser e de homem se transformar em Deus. Quem, entretanto, nãotrocará o homem por Deus? Acontece ainda que, seduzidos pelo amor,por sua vez suspirem e se alegrem. Suspiram porque deixam a simesmos, se perdem e se destroem. Alegram-se porque se mudampara algo melhor. Aquecem-se também por sua vez e têm frio àsemelhança daqueles que uma febre terçã ataca. Com razão não sótêm frio, porque são abandonados pelo próprio calor, mas ainda seaquecem, quando são inflamados pelos fulgores do raio celeste. Atimidez sai da frieza; da audácia, o calor. Por isso ainda assim surgemos tímidos e os audaciosos. Além disso, alguns muito tolos se tornammais vivos quando amam. Quem de fato não vê com mais sutileza,quando o raio celeste favorece? Na verdade, estas coisas são suficientes ao próprio amor ebeleza, sua origem, e aos afetos dos amantes.

Page 50: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 50

II, 7 | Sobre os dois nascimentos do amor e sobre asduas Vênus

EM SEGUIDA, DEVE-SE DISPUTAR brevemente sobre dois nascimentos dosamores. Pausânias junto com Platão afirma ser Cupido companheirode Vênus. E julga necessário haver outros tantos Cupidos quantassejam as Vênus. Recorda, porém, duas Vênus, que igualmente doisCupidos acompanham. Na verdade, supõe uma Vênus celeste, e outrarealmente vulgar. Aquela celeste nascera do Céu sem mãe; a vulgarfora gerada por Júpiter e Dione.31

Por esta razão os Platônicos chamam Céu o sumo Deus, porqueassim como o Céu, aquele corpo sublime, rege e contém todos oscorpos, assim também aquele sumo Deus domina todos os espíritos.Sem dúvida, dão à mente vários nomes. De fato, ora chamam Saturno,ora Júpiter, ora Vênus. Pois aquela mente existe, vive e compreende.Costumaram chamar a sua essência Saturno; a vida, Júpiter; e ainteligência, Vênus. Além disso, do mesmo modo, chamamos a almado mundo Saturno, Júpiter e Vênus. Conforme percebe as coisassuperiores, Saturno; enquanto move as coisas celestes, Júpiter; comoproduz as coisas inferiores, Vênus. A primeira Vênus, que está na mente, diz-se ter nascido doCéu sem mãe, porque segundo os Físicos a mãe é a matéria. Porém,aquela mente é uma associação corporal estranha à matéria. A segundaVênus, que é posta na alma do mundo, é gerada por Júpiter e Dione.

Page 51: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 51

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Por Júpiter, isto é, por aquela virtude da própria alma que move ascoisas celestes. Pois ela criou a potência que produz estas coisasinferiores. Por isso, atribuem mãe também àquela, porque, espalhadasobre a matéria do mundo, julga-se que tenha comércio com a matéria.Por fim, como direi em suma, Vênus é dupla. Uma é sem dúvidaaquela inteligência, que colocamos na mente angélica. A outra é aforça de gerar concedida à alma do mundo. Ambas têm o amorsemelhante a si como companheiro. Mas aquela é arrebatada peloamor inato, a fim de perceber a beleza de Deus. Esta é igualmentearrebatada pelo seu amor para gerar a mesma beleza nos corpos.Aquela compreende por primeiro em si o fulgor da divindade, depoiso traz para a segunda Vênus. Esta transporta as centelhas deste fulgorpara a matéria do mundo. Parece formoso, pelo alcance da suanatureza, cada corpo do mundo na presença de tais centelhas. Percebeatravés dos olhos a beleza destes corpos o espírito humano, que denovo possui duas forças. Pois, tem a força de perceber, e tem o poderde gerar. Estas duas forças são duas Vênus em nós, e seguem-nasdois amores. Quando, em primeiro lugar, a beleza do corpo humanose oferece aos nossos olhos, a nossa mente, que é a primeira Vênusem nós, venera-a e a ama como imagem de divino ornamento e, muitasvezes, por esta àquele se move. Entretanto, a força de gerar, a segundaVênus, deseja ardentemente gerar uma forma a ela semelhante. Nosdois casos, portanto, é amor. Aí é o desejo de contemplar, e, aqui, ode gerar a beleza. Um e outro amor é honesto e louvável. De fato,um e outro segue a divina imagem. O que então Pausânias desaprova no amor? Certamente eu odirei. Se alguém mais ávido de reprodução abandona a contemplação,quer porque segue a reprodução além da medida com as mulheres oucom os homens contra a ordem da natureza, quer porque prefere aforma do corpo à beleza do espírito, em qualquer caso abusa dadignidade do amor. Pausânias censura este abuso do amor. Dondeaquele que de forma correta deste se serve, por certo louva a formado corpo, mas por esta concebe uma beleza mais notável do espírito,da mente e de Deus e mais impetuoso a admira e ama. Porém, a talponto se serve do dever da reprodução e da relação, enquanto a ordemnatural e as leis civis, fixadas pelos prudentes, prescrevem isto. Sobreestas coisas Pausânias é mais difuso.

Page 52: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 52

II, 8 | Exortação ao amor. Sobre o amor simples e sobreo recíproco

MAS, Ó AMIGOS, EU VOS EXORTO e peço que com todas as forças cultiveiso amor, que é sem dúvida um bem divino. E não vos dissuada o quecontam que Platão disse sobre certo amante. Ele disse: o amante éum espírito morto no próprio corpo, mas vivo num corpo alheio. Enão vos perturbe ainda o que Orfeu cantou sobre a amarga e míserasorte dos amantes. Na verdade, como estas coisas devem serpercebidas, e por que meio se deve prestar-lhes auxílio, peço-vos, sevos apraz, escutai com atenção. Platão chama o amor uma coisa amarga. E não é sem razão,porque morre quem ama. Orfeu nomeia-o γλυκυπικρον, isto é,agridoce. De fato, o amor é uma morte voluntária. Como é morte, écoisa amarga. Como é voluntária, é doce. Morre, então, alguém queama. Na verdade, o seu pensamento, esquecido de si, volta-se semprepara o amado. Se não pensa por si, certamente não pensa em si. Porisso, o espírito assim disposto não produz em si mesmo, porque aprincipal obra do espírito é o próprio pensamento. Quem não produzem si, não existe em si mesmo. Pois, estas duas coisas, o ser e a obra,são iguais entre si. E não há ser sem obra, nem a obra excede opróprio ser. E ninguém produz onde não está, e onde quer que estejaproduz. Logo não existe em si o espírito do amante, porque não operaem si mesmo. Se não existe em si, também não vive em si mesmo.

Page 53: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 53

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Quem não vive está morto. Portanto, está morto em si aquele queama. Por acaso vive ao menos em outrem? Sem dúvida. Duas são as espécies do amor: um é simples, e o outro recíproco.O amor simples é quando o amado não ama o amante. Então, oamante está morto de todo. Pois não vive em si, como muitas vezesjá demonstramos, e também não vive no amado, porque é por elerejeitado. Logo onde vive? Acaso em algum lugar no ar ou na águaou no fogo ou na terra, ou em outro corpo bruto? De maneiranenhuma. Na verdade, o espírito humano não vive em outro corposenão humano. Ou talvez em algum outro corpo de homem não amadoviverá? Nem isto decerto. Pois, se nele não vive onde deseja muitoviver, de que modo viverá em outro lugar? Em parte alguma, portanto,vive aquele que ama um outro e não é por ele amado. Por isso, estáinteiramente morto o amante não amado. E não ressuscitará nunca,a não ser que a indignação o desperte. Quando, em verdade, o amadocorresponde no amor, nele ao menos vive o amante. Aqui, sem dúvida,acontece algo admirável. Todas as vezes que duas pessoas se amam com mútuabenevolência, este naquele e aquele neste vive. Deste modo, oshomens reciprocamente se trocam e cada um destina a si mesmo aooutro, a fim de recebê-lo. Vejo de que modo trocam-se a si mesmos,quando se esquecem de si. Mas não percebo como recebem o outro.Pois, aquele que não tem a si mesmo, muito menos poderá possuir ooutro. Mas, na verdade, cada um tem a si próprio e ao outro. Porqueele existe, mas naquele. Aquele também existe, mas neste. Sem dúvida,enquanto eu te amo, encontro-me, amante, em ti, estando eu pensandoem mim, e recobro-me por mim mesmo, perdido na minha negligência,conservando-me em ti. A mesma coisa tu fazes em mim. E de novo isto parece admirável. Pois eu, depois que perdi amim mesmo, se por ti me recobro, por ti tenho a mim; se por ti tenhoa mim, eu te tenho antes e mais que a mim mesmo, estou mais próximode ti que de mim, visto que me ligo a mim precisamente por ti. Nistosempre a força do desejo difere da violência de Marte. Pois, assim oimpério e o amor se diferenciam. O imperador por si possui os outros,o amante pelo outro se ama e cada um dos amantes torna-se maiorpor si mesmo, mais próximo do outro, e morto em si revive no outro.

Page 54: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 54

De fato, existe apenas uma única morte no amor recíproco, e umadupla ressurreição. Pois morre uma vez em si mesmo aquele que amaquando se despreza. Logo renasce no amado, quando o amado orecebe com ardente pensamento. Renasce pela segunda vez, quandono amado, enfim, se reconhece e não duvida que seja amado. Ó mortefeliz, que duas vidas perseguem! Ó comércio admirável, no qualalguém trai a si mesmo pelo outro, tem o outro e não deixa de ter a si!Ó lucro inestimável, quando dois assim se fazem um, porque cadaum dos dois por um só se faz dois e, como se fosse duplicado, quemtivera uma vida, já terá duas, sobrevindo uma morte! Pois quem umasó vez está morto renasce duas vezes, por uma vida fez-se duas, epor si, sendo um, conseguiu duas vidas para si. Sem dúvida, o castigo é muito justo no amor recíproco. Deve-se castigar o homicida com a morte. Quem negará que é homicidaaquele que é amado, quando separar a alma do amante? Quem pelasegunda vez negará que aquele morre igualmente, quando do mesmomodo amar o amante? Esta é uma restituição muito devida: quando este restitui a almaque recebe àquele e aquele a este. Cada um, amando, entrega a suaalma e, pagando com amor, restitui a outra pela sua. Por isso, comrazão, deve amar a si próprio quem quer que seja amado. Aqueleque, na verdade, não ama o amante deve ser considerado réu porhomicídio. E ainda ladrão, homicida e sacrílego. A riqueza é possuídapelo corpo, o corpo pelo espírito. Logo, quem se apropria do espírito,por quem tanto o corpo quanto as riquezas são possuídas, apropria-se ao mesmo tempo do espírito, do corpo e das riquezas. E, portanto,acontece que como ladrão, homicida e sacrílego deve ser condenadoa uma tríplice morte, e como totalmente disforme e profano pode serimpunemente morto por quem apraz, a não ser que por sua vontadeele próprio cumpra aquela lei, isto é, ame o amante. Assim, quandomorre, uma primeira vez, ele mesmo igualmente morre uma vez,quando renasce pela segunda vez, também pela segunda vez renasce. Pelas razões supracitadas, mostrou-se que o amado por sua vezdeve amar o amante. Na verdade, não só deve, mas é obrigado, comose mostra. A semelhança gera o amor. A semelhança é certa naturezaigual em vários. Pois, se eu sou semelhante a ti, tu também ésnecessariamente semelhante a mim. Portanto, a mesma semelhança,

Page 55: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 55

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

que impele que eu te ame assim como tu me amas, obriga-te tambéma me amares. Além disso, o amante sai de si e se dá ao amado. Logoo amado cuida deste como uma coisa sua. Pois, as suas coisas sãomuito caras a cada um. Acontece que o amante esculpe a figura doamado no seu espírito. E, assim, o espírito do amante torna-se umespelho no qual reflete a imagem do amado. Por esta razão, o amadose reconhece no amante, e é levado a amá-lo. Os astrólogos julgamque a troca do amor é especial entre eles; na gênese destes há umamudança de luzes isto é, do Sol e da Lua. É evidente que se quandoeu nasci o Sol estava em Áries e a Lua em Libra, quando tu nascesteo Sol estava em Libra e a Lua em Áries. Ou quando ascender ummesmo e semelhante signo ou um mesmo e semelhante planeta. Ou,igualmente, olhar o ângulo oriental de um planeta benigno. Ou Vênusnuma mesma casa de nascimento for posta na mesma casa e grau.Os Platônicos acrescentam que um mesmo e semelhante demôniosem dúvida conduz as suas vidas. De fato, os Físicos e os Morais32

querem que a semelhança da combinação, da nutrição, da erudição,do costume e do conselho seja causa de semelhante afeto. Por fim,onde várias causas coincidem, aí a mudança é reconhecida com maisveemência. Onde estão todas, ali ressurge o afeto de Pítias e Damão,de Pílades e Orestes.33

Page 56: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 56

II, 9 | O que procuram os amantes

MAS O QUE PROCURAM eles quando se amam reciprocamente? Procurama beleza. Porque o amor é desejo de se usufruir da beleza. A beleza,contudo, é certo esplendor, que o espírito humano toma para si. Semdúvida, a beleza do corpo não é nada além do próprio esplendor noornamento das cores e das linhas. Ainda a beleza do espírito é ofulgor na boa disposição da doutrina e dos costumes. Nem a audição,nem o olfato, nem o gosto, nem o tato, mas o olho percebe aquela luzdo corpo. Se só o olho reconhece, só ele goza. Portanto, apenas oolho goza a beleza do corpo. Na verdade, quando o amor não foroutra coisa a não ser o desejo de se usufruir da beleza, e esta, então,é percebida somente pelos olhos, o amante do corpo se contenta sócom a visão. Pois, o desejo de tocar não é parte do amor nem afetodo amante, mas espécie de insolência e perturbação do homem servil.Por isso, só na mente compreendemos aquela luz e a beleza do espírito.Portanto, contenta-se apenas do olhar da mente aquele que cobiça abeleza do espírito. Por fim, a beleza é trocada pela beleza entreamantes. O homem usufrui da beleza do amado mais novo atravésdos olhos. O mais novo persegue a beleza do homem com a mente.E aquele que é formoso apenas de corpo, por este costume se tornabelo de espírito. Aquele que é belo apenas de espírito satisfaz osolhos do corpo com a beleza do corpo. A troca é nitidamentemaravilhosa. A ambos é honesta, útil e agradável. Na verdade, a

Page 57: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 57

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

honestidade é idêntica em ambos. Do mesmo modo, pois, é honestoaprender e ensinar. O encanto é maior no mais velho, que se comprazcom o aspecto e com a inteligência. Verdadeiramente, a utilidade émaior no mais jovem. De fato, por ser mais notável o espírito que ocorpo, tanto mais cara é a aquisição da beleza do espírito que a docorpo! Até aqui interpretamos o discurso de Pausânias, agorainterpretaremos aquele de Erixímaco.

Page 58: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 58

III, 1 | O amor existe em todas as coisas e é para todos

LOGO, PELA MENTE DO NOSSO ERIXÍMACO, parece que três coisas devemser tratadas por nós. Primeiramente, o amor é inato a todas as coisase prolonga a todas as coisas. Em segundo lugar, é autor e conservadorde todas as coisas que existem segundo a natureza. Em terceiro lugar,que é mestre e senhor de cada arte.

Sem dúvida, três são os graus das coisas consideradas nanatureza: superiores, inferiores e iguais. Aquelas superiores são causadas inferiores; as inferiores são obra das superiores; as iguais sãoconsideradas as mesmas entre si por natureza. Na verdade, as causasamam as suas obras como partes e imagens de si. Mas as obras tambémdesejam as causas como suas conservadoras. Contudo, aquelascolocadas na mesma ordem, em recíproca caridade por sua vez semovem para si como semelhantes a um único e mesmo membro. Porisso, Deus governa os anjos, e os anjos com Deus as almas, e asalmas com estes regem e governam os corpos com certa benevolência.Onde se vê claramente o amor das coisas superiores para as inferiores.

De novo, os corpos se ligam com grande avidez às suas almase delas se separam com grande pesar. Os nossos espíritos desejam abeatitude celestial. As coisas celestes com felicidade veneram amajestade do deus superior. E eis aí o afeto de amor das coisasinferiores para as superiores.

Page 59: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 59

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Do mesmo modo, todas as partes do fogo de bom gradoreciprocamente se juntam. De novo as partes da terra, da água e doar, por sua vez, e em qualquer espécie de animais atraem sempre osanimais desta mesma espécie em ligação recíproca. Daí se vê o amorentre as coisas iguais e semelhantes. Pois, quem, então, terá dúvida,se acaso o amor for criado em todas as coisas e para todos. E isto é oque Dioniso Areopagita mostrou no livro Dos nomes divinos com estaspalavras na mente de Hieroteu. Dizemos que percebemos ser amor divinoou angélico ou espiritual ou animal ou natural certa virtude inatural e misturada,que na verdade move as coisas superiores para a providência das inferiores, e denovo concilia as coisas iguais para a relação mutuamente sociável a si, e, porfim, anima algumas coisas inferiores, para que se convertam a coisas melhorese mais sublimes. Estas são suas palavras.

Page 60: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 60

III, 2 | O amor é autor e conservador de todas as coisas

NA VERDADE, ASSIM SE PROVA aquele segundo membro da nossa oração,no qual o amor é considerado autor e conservador de todas as coisas.O desejo de propagar a própria perfeição é certo amor. A perfeiçãoabsoluta está na suma potência de Deus. A divina inteligência acontempla. E, assim, a vontade deseja propagar esta mesma fora desi. A partir da propagação deste amor, todas as coisas são por elecriadas. Por isso, o nosso Dioniso disse: o divino amor não impeliu o reide todas as coisas a permanecer em si mesmo sem descendência. Esse mesmoinstinto de propagação foi posto por aquele primeiro autor em todasas coisas. Por isso, os seus santos espíritos movem os céus e os seuspresentes são distribuídos a todos os que o seguem. Por isso, os astrosespalham a sua luz pelos elementos. Por isso o fogo em associaçãocom o seu calor move o ar; o ar, a água e a água, a terra. E, vice-versa, a terra atrai para si a água; esta, o ar; ele, o fogo e algumaservas e árvores, desejosas de propagar a sua semente, geram coisassemelhantes a si. Também os animais brutos e os homens sãoarrebatados pelos encantos do mesmo desejo para gerar a sua raça.

Porque, se o amor faz todas as coisas, também conserva todaselas. Pois, o ofício da execução e da conservação é sempre seu. Istoé, as coisas semelhantes são conservadas pelas semelhantes. Logo, oamor atrai o semelhante ao semelhante. Cada parte da terra se dirigeàquelas partes da terra a ela semelhantes, quando se junta o amor

Page 61: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 61

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

recíproco. Toda a terra ainda desce com avidez para o centro daquelemundo como a um seu semelhante. As partes da água são levadascom todo o corpo da água sucessivamente para si e para o local quelhes é conveniente. Assim também fazem as partes do ar e do fogo.E ainda estes dois elementos são atraídos pelo amor daquela regiãopara a região superior consoante e semelhante a si. Também o céu,como disse Platão no livro Do reino, se move por um amor inato. Defato, toda a alma do céu está ao mesmo tempo em qualquer ponto docéu. Portanto, o céu corre desejoso de usufruir da alma com o intuitode que com todas as suas partes, sem exceção, goze de toda a alma.Porém, voa muito rápido, para que possa encontrar-se, logo que estejainteiro, e onde quer que a alma esteja toda junta. Além disso, asuperfície côncava da esfera maior é o lugar natural da esfera menor.E porque qualquer partícula desta esfera igual encontra-se comqualquer partícula sua, cada uma deseja atingir todas as suas partículas.Se repousasse, cada partícula tocaria outra, mas não uma a todas.Correndo, quase alcança aquilo que não poderia alcançar, repousando.Logo, corre muito rápido para que cada parte atinja todas quase aomesmo tempo com suas forças.

Por fim, todas são conservadas pela unidade das suas partes,e morrem pela sua dispersão. Na verdade, o amor recíproco faz aunidade dessas mesmas partes. O que é lícito contemplar nos humoresdos nossos corpos e nos elementos do mundo. Na concórdia destascoisas, como disse o pitagórico Empédocles, consistem o mundo e onosso corpo, e pela discórdia se dissipam. Sem dúvida a vicissitudefornece a concórdia da paz e do amor naqueles. Então disse Orfeu:

Μονοζ γαρ τουτων παντων οιηχα χρατ′υνειζSozinho tu comandas as rédeas de todas estas coisas.

Page 62: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 62

III, 3 | O amor é mestre e governador das artes

DEPOIS DISTO, RESTA-NOS EXPOR como ele é mestre e governador detodas as artes. Decerto entenderemos ser o mestre das artes, se,todavia, considerarmos que ninguém nunca pode encontrar ouaprender arte alguma, a não ser que o prazer da investigação e odesejo de encontrá-la o incite a fazê-lo, e aquele que ensina ame osdiscípulos e os discípulos bebam desse ensino com grande avidez.Além disso, merecidamente é denominado governador. Na verdade,executa com diligência e acaba com cuidado os trabalhos de artetodo aquele que ama muitíssimo os próprios artifícios e as pessoaspara as quais são feitas aquelas coisas. Acrescente-se a isto que osartífices não procuram ou tratam em cada arte nada além do amor.

Agora, passemos rapidamente por aquelas artes, queErixímaco recorda com Platão. Que outra coisa, pois, observa amedicina além dos quatro humores do corpo se tornarem epermanecerem mutuamente amigos, e a natureza amar e buscar essesalimentos, bebidas e outros empregos para viver ou tratar? Erixímaco,com certa semelhança, descobriu aqui também esses dois amores -celeste e vulgar -, que Pausânias definira antes. De fato, a disposiçãotemperada do corpo tem o amor moderado para as coisas moderadase convenientes. E a disposição imoderada contém o amor contráriopara as coisas contrárias. Na verdade, deve-se ser favorável àquele enunca obedecer a este. Além disso, na ginástica deve-se investigar

Page 63: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 63

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

qual o hábito do corpo que ama e quais modos de se exercitar e quegestos solicita. Na agricultura, que terra, que sementes e que culturaaprecia, e que modo de cultivar é estimado por cada árvore.

Observe-se o mesmo na música, cujos artífices investigamos números que mais ou menos amam esses números. Eles encontramum pequeno amor entre um e dois, e um e sete. Na verdade,descobrem um amor mais ardente entre um, três, quatro, cinco ouseis. Entre um e oito, um muitíssimo ardente. Esses fazem as vozesagudas e graves, diversas por sua natureza, reciprocamente mais amigasentre si em certos intervalos e módulos. Daí nascem a composição ea suavidade da harmonia. Ainda misturam assim, de modo sucessivo,os movimentos mais lentos e os mais velozes, para que se tornemmuito amigos e forneçam o ritmo e o arranjo. Logo são transmitidosos dois gêneros da melodia musical. Com efeito, um é grave econstante; o outro é suave e alegre. Platão, nos livros da República eDas Leis, julga aquele útil e este nocivo aos que o utilizam. No Convívioconfia àquele a musa Urânia, a este Polímnia. Alguns amam aqueleprimeiro gênero, outros o segundo. Os sons, que cobiçam, devem serobedientes e se aproximar do amor daqueles, e resistir ao desejo destes.Pois o amor daqueles é celeste e o destes, na verdade, é vulgar.

Existe certa amizade, que a astronomia observa, nas estrelase nos quatro elementos. Aqui, decerto modo, se encontram aquelesdois amores. De fato, o amor moderado neles existe, quando commuita moderação correspondem às forças recíprocas. E existe o amorimoderado, quando um destes ama a si mesmo em demasia e dealguma maneira deixa os outros. Daquele derivam a agradáveltemperatura do ar, a tranquilidade da água, a fertilidade das terras ea saúde dos animais; deste, as coisas contrárias.

Por fim, a arte dos vates e dos sacerdotes parece, depreferência, residir neste, para que nos ensine aqueles ofícios doshomens que são amigos de Deus, e por cuja razão os homens setornam amigos de Deus. Quem há que ofereça uma quantidade deamor e caridade a Deus, à pátria, aos pais, aos outros, tanto vivosquanto mortos?

É lícito presumir o mesmo em outras artes, e concluirsucintamente que o amor existe em todas as coisas e para todos; eque é o autor e conservador de todas as coisas e senhor e mestre dasartes universais. Com razão o divino Orfeu chamava-o:

Page 64: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 64

ευπαλαµον, διϕυη, παντων χληιδαζ εχονταHábil, híbrido e possuidor das chaves de todas as coisas.

Ouvistes primeiramente de Pausânias e depois de Erixímacocomo, de fato, são as duas naturezas. Podemos compreender bempelas coisas ditas acima por que razão ainda se diz por Orfeu possuiras chaves do mundo. Pois, como mostramos, este desejo de propagara própria perfeição natural a todos explica a fecundidade oculta edificultosa de cada um, enquanto impele as sementes a brotar nogérmen, produz em seu ventre as forças de cada um e concebe orebento e, como concebido em cada chave, manifestando-se, chegaà luz. Assim, todas as partes do mundo, porque são obra de um únicoartífice, membros dessa máquina semelhantes entre si que existem evivem, e a eles se unem mutuamente por uma certa recíproca caridade,para que com razão o amor possa ser chamado enlace perpétuo,encadeamento do mundo e sustentáculo imóvel das suas partes esólido fundamento de toda a máquina.

Page 65: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 65

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

III, 4 | Nenhum membro do mundo odeia outro membro

PORQUE SE ASSIM É, os membros dessa obra não podem ser de modoalgum inimigos entre si. Pois, o fogo não evita a água, por ódio daágua, mas por amor a si mesmo, para que não seja extinto pelo frio daágua. E a água não extingue o fogo por ódio do fogo, mas é atraídapor certo desejo de ampliar o seu próprio frio produzir água semelhantea si a partir do corpo do fogo. Porque para que todo o desejo naturaltenda ao bem e nenhum ao mal, não é propósito da água extinguir ofogo, que é mal, mas produzir água semelhante a si, que é bem. Poisque se pudesse se completar sem a destruição do fogo, certamentenão consumiria o fogo. A mesma razão é atribuída àquelas coisasque parecem ser contrárias e inimigas entre si. Além disso, o cordeironão odeia a vida e a figura do lobo, mas receia a sua perda, causadapelo lobo. E nem o lobo o dilacera e devora por ódio do corpo, maspor amor a si. E nem o homem teme o homem, mas os vícios dohomem. Nem nós invejamos aos mais poderosos e fortes seus dotes,por ódio a eles, mas por amor a nós mesmos, para que não temamosa eles sucumbir. Por isso, nada impede que o amor esteja em todas ascoisas, e por todas elas penetre. Logo, sem dúvida, porque está emtoda a parte e penetra nas coisas mais íntimas, temeremos tanto essedeus, como poderoso senhor, cujo império não podemos evitar, comojuiz muito sábio, a quem não podemos ocultar nossos pensamentos.Porque é criador e conservador de todas as coisas nós o veneraremos

Page 66: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 66

como pai e o cultuaremos como tutor e guarda. Porque ensina bemcada arte, nós o seguiremos como preceptor. Pelo autor existimos evivemos. Como conservador permanecemos para a eternidade. Pelopreceptor somos instruídos e formados a viver bem e na felicidade.

Page 67: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 67

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

IV, 1 | Narra-se os textos de Platão sobre a antiga naturezados homens

COM ESTAS PALAVRAS o nosso amigo impôs o seu fim. Cristóvão Landino,homem que excede na doutrina, o qual nos nossos temposconhecemos antes de tudo como poeta platônico e órfico, seguiu-oneste modo para explicar a obscura e confusa sentença de Aristófanes.

Posto que João Cavalcanti, com sua diligência nos dispensassedos longos rodeios das disputas, a sentença de Aristófanes, entretanto,envolta de palavras muito obscuras, exige uma explicação e até umacerta luz. O amor, diz Aristófanes, é sobre os outros deuses benéficoao gênero humano, curador, tutor e médico dos homens. Convémprimeiramente notar como fora outrora a natureza dos homens, ealgumas de suas paixões. Pois, agora não é como fora um dia, masmuito diferente. No princípio, três eram os gêneros dos homens, nãosó aqueles dois de agora, macho e fêmea, mas ainda havia um terceirocomposto de ambos. Além disso, a espécie de cada homem era inteirae redonda, e tinha o dorso e os flancos em círculo, quatro mãos epernas iguais às mãos, do mesmo modo dois rostos ligados a umpescoço arredondado e inteiramente semelhantes. O gêneromasculino fora gerado do sol, o feminino da terra, o composto dalua. Assim, eram de espírito altivo e corpo robusto. Por isso tentavamlutar com os deuses e subir ao céu. Por esta razão, Júpiter cortoucada um ao longo, e de um fez dois, à semelhança daqueles que

Page 68: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 68

cortam ovos oblongos com o cabelo. E se, pela segunda vez, pordesdém, parecessem estar furiosos com os deuses, ameaçou parti-losde novo do mesmo modo. Depois que a natureza dos homens foiassim dividida, cada um desejava a sua metade. Logo corriam aoredor dos braços deitados, acariciando-se mutuamente, esforçando-se por se unirem à antiga condição. Por causa da fome e da inaniçãose extinguiriam, a não ser que Deus não estabelecesse uma medidapara a sua união.

Desde então é natural aos homens o amor recíproco,conciliador da antiga natureza, fazendo de dois um para cumprir ecuidar da natureza dos homens. Na verdade, cada um de nós é ametade do homem assim cortada, como os peixinhos denominadosrodovalhos e dourados, e que, fendidos, de um são feitos dois. Logocada um procura a sua metade. E assim quantas vezes deseje outro,seja de que sexo for, aproxima-se da sua metade, excita-seardentemente, liga-se com um ardente amor e de fato nem por ummomento admite que dele se separe. E assim apoia-se no desejo derefazer-se todo e aceita o nome de amor. O que com o maior empenhonos agrada no tempo presente, enquanto que conduz cada umseparadamente à sua metade e nos lança uma grande esperança nofuturo para que piedosamente cultuemos a Deus, e quando nos restituirà antiga figura, ele nos tornará muito felizes.

Page 69: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 69

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

IV, 2 | Expõe-se a opinião de Platão sobre a antiga figurado homem

ARISTÓFANES NARRA ESTAS e muitas outras coisas, semelhantes a prodígiose monstruosidades, sob as quais, como véus, deve-se julgar que seescondem os divinos mistérios. Era, pois, costume dos antigosteólogos ocultar nas sombras de figuras os seus próprios sagrados epuros mistérios, para que não fossem manchados pelos profanos eimpuros. Nós, porém, não julgamos que pertence exatamente aosentido cada coisa descrita nas figuras acima e em outras. E, naverdade, Aurélio Agostinho34 diz que não se deve julgar que todas ascoisas, representadas nas figuras, devem significar algo. Muitas, defato, por causa das que significam a elas se juntam graças à ordem eà conexão. A terra é sulcada apenas pela relha, mas, para que istopossa acontecer, vários outros membros também se juntam a essearado. Esta, portanto, é a suma do que se propõe que nos deve serexposto.

Outrora os homens tinham três sexos: masculino, feminino ecomposto, filhos do sol, da terra e da lua. E eram inteiros. Mas, porcausa da soberba, visto que desejassem se igualar a Deus, foramdivididos em dois, e, se, pela segunda vez, se encherem de orgulho,serão separados em duas partes. Feita a separação, a metade é poramor atraída à outra metade, para que aconteça o restabelecimentoda integridade.

Page 70: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 70

Na verdade, tal será a suma da nossa interpretação. Os homens,isto é, as almas dos homens. Outrora, isto é, quando foram criadospor Deus. São inteiros, são ornados de duas luzes, uma natural e outradifusa, para que pela natural considerassem as coisas iguais einferiores, e pela difusa, as superiores. Desejaram se igualar a Deus.Recurvaram-se a uma única luz natural. Depois se separaram. Deixaramescapar o esplendor difuso, quando se converteram a uma única luznatural e logo caíram nos corpos. Se, pela segunda vez, se tornarem maissoberbos, serão divididos, isto é, visto que confiassem demasiadamenteno caráter natural, de alguma maneira se extinguirá aquela luz inata enatural que resta. Tinham três sexos. Os machos gerados do sol, as fêmeasda terra e os compostos da lua. Uns receberam o fulgor de Deus segundoa força, que é masculina, outros segundo a temperança, que éfeminina, outros ainda segundo a justiça, que é composta. Estas trêsvirtudes em nós são filhas de outras três que Deus possui. Mas emDeus aquelas três - sol, lua e terra - são conhecidas por nós comomasculina, feminina e composta. Feita a separação, uma metade por amoré atraída à outra metade. As almas já divididas e mergulhadas nos corpos,quando primeiramente chegarem à adolescência, conservaram-no pelaluz natural e inata assim como por uma sua certa metade são excitadosàquela luz difusa e divina, outrora metade de si mesmas, que deixaramescapar ao cair, acolhendo-o no estudo da verdade. Quando oreceberem, então, serão inteiras e bem-aventuradas na visão de Deus.Este, portanto, será o compêndio da nossa interpretação.

Page 71: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 71

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

IV, 3 | O homem é a própria alma e a alma é imortal

VISTO QUE O CORPO seja composto de matéria e quantidade e sejasuficiente à matéria receber, à quantidade ser dividida e se distender,e a própria recepção e divisão sejam paixões, a consequência é quepor sua própria natureza seja tanto submetido à paixão e à corrupção.Se, de fato, por isso a ação parece convir ao corpo, não age enquantoé corpo, mas enquanto nele existem certa força e qualidade de algumamaneira incorpórea, para que haja calor na massa do fogo, frio namatéria da água e compleição no nosso corpo. Sem dúvida, dessasqualidades provêm as operações dos corpos. Decerto, o fogo nãoaquece porque é longo, extenso ou profundo, mas porque é ardente.Nem aquele fogo maior aquece mais, ao contrário, por causa dadispersão aquece menos, mas este é mais quente. Logo, visto que asoperações provêm do benefício das forças e das qualidades, e aspróprias forças e qualidades não consistem na matéria e na quantidade,é lícito que estejam na matéria e na quantidade, segue-se que épertinente ao corpo sofrer e a algo incorpóreo agir. Em todo o caso,estas forças são, na verdade, instrumentos para operar. De fato, elasmesmas não são suficientes a operar por si, porque não são suficientespara existir. Pois, o que jaz em outro não pode sustentar a si mesmo,e com certeza depende de outro. Acontece que as qualidades,necessariamente sustentadas pelo corpo, existam e sejam regidas poroutra substância superior que não seja o corpo nem jaza no corpo.

Page 72: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 72

Assim é a alma, que, presente e residindo no corpo, sustenta a simesma e distribui a qualidade e a força da compleição aos corpos,pela qual, como instrumentos no corpo e pelo corpo exerce váriasoperações.

Daí o homem é destinado a gerar, nutrir, crescer, correr, ficarde pé, sentar, falar, criar obras de arte, sentir e entender. Na verdade,a própria alma faz todas estas coisas. E por isso a alma será o homem.Se dizemos que o homem gera, produz e nutre, a alma como pai eartífice do corpo cria, produz e nutre este mesmo. Se dizemos queestá de pé, senta, fala, a alma sustenta, dobra e agita os membros docorpo. Se dizemos que trabalha e corre, a alma estende e ergue asmãos à vontade e agita os pés. Se dizemos que sente, a alma, pelosinstrumentos dos sentidos, como janelas e portas, percebe os corposexteriores. Se compreende, a alma por si mesma sem nenhum outroinstrumento do corpo alcança a verdade. Portanto, todas as coisasque se diz que o homem faz, o próprio espírito o faz, e o corpo suporta.Por isso é que só o homem é espírito; entretanto, o corpo é trabalhoe instrumento do homem. Principalmente porque o espírito, seminstrumento algum do corpo, exercita o seu trabalho preferido, istoé, a inteligência, quando por ela perceber as coisas incorpóreas, e, naverdade, pelo corpo serão conhecidas apenas as corpóreas. E assim,se o espírito por si medita algo, por si certamente existe e vive; vive,porém, sem o corpo, porque trabalha sem o corpo. Se existe por si,convém que exista algo próprio a si não comum ao corpo; por causadisso pode obter um nome de homem próprio a si, fora da massa docorpo. Visto que, decerto, por esta razão o nome parece significaralgo, que permanece estável, porque é considerado de cada um denós por toda a vida, e que alguém, de fato, é chamado homem portodo tempo. O corpo sempre flui crescendo, decrescendo, emsuspensão contínua, em liquefação, mudando sucessivamente nocalor e no frio. A alma permanece sempre a mesma, o que nos mostracom clareza a indagação da verdade, e são sempre as mesmas a vontadedo bem e a firme conservação da memória. Logo, quem será tãoinsensato que atribua o nome do homem, para nós muito firme, aocorpo que flui sempre e em todas as partes mudado, antes que aoespírito muito estável? Por essas coisas pode ser claro que, quandoAristófanes nomeou os homens, significasse as nossas almas segundoo uso platônico.

Page 73: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 73

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

IV, 4 | Porque a alma criada é ornada com duas luzes e porqual razão vai para o corpo

CERTAMENTE A ALMA GERADA por Deus, por um certo instinto natural,volta-se para ele, seu pai, como o fogo gerado na terra por uma forçados elementos superiores, logo por um ímpeto da natureza se dirigeaos superiores. Convertida a ele, é ilustrada pelos seus raios. Maseste primeiro fulgor recebido na substância da alma, por si antesdisforme, torna-se mais obscuro, e, atraído para a sua capacidade,chega a si mesmo firme e natural. E assim, por ele como seusemelhante, a alma vê a si mesma e as coisas que estão abaixo de si,isto é, todos os corpos; mas, na verdade, não vê Deus e as outrascoisas superiores. Contudo, por esta primeira centelha feita maispróxima a Deus, pela segunda vez recebe outra luz mais clara paraque conheça também as coisas celestes. Logo, tem duas luzes. Queruma natural inata, quer outra divina e difusa. Para que reunidasconjuntamente, como que com duas asas, possa voar pela regiãosublime. E se usasse sempre aquela luz divina, estaria sempre pegadaàs coisas divinas, e a terra estaria isenta de animais racionais.

De resto, a divina providência decidiu que a alma seria senhorade si mesma e não só ambas, como ainda uma das duas poderiam seservir da luz. Depois acontece que, quando a natureza guia, convertidaà sua própria luz, esquecida do divino, observa a si mesma e as suasforças pertencentes à fabricação do corpo e deseja acompanhar tais

Page 74: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 74

forças nas fabricações dos corpos. Por este desejo, como dizem,pesado, desce para o corpo, onde exerce as forças de gerar, mover esentir, e pela sua presença embeleza a terra, morada ínfima do mundo.Por isso, ela não deve carecer de razão, para que nenhuma parte domundo seja destituída da presença dos racionais viventes, assim comoo seu Autor, a cuja semelhança o mundo foi feito, é todo razão.Entretanto, o nosso espírito caiu no corpo quando, deixada a luzdivina, serviu-se apenas de sua luz e concebeu que ele estivessecontente de si mesmo. Só Deus, a quem nada falta, acima do qualnada existe, está contente de si mesmo, persiste e basta a si. Por issoé que o espírito se fez igual a Deus quando quis estar contente apenasconsigo, quase não menos quanto Deus bastasse a si mesmo.

Page 75: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 75

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

IV, 5 | Por quantos caminhos a alma volta a Deus

ARISTÓFANES DISSE CLARAMENTE que esta soberba foi a razão para que oespírito, que nasceu inteiro, fosse separado, isto é, de duas luzes, afim de que se servisse de uma, negligenciando, então, a outra. Assim,mergulhou no abismo do corpo, como no rio Letes, e, ao mesmotempo, esquecido dos sentidos e da paixão, como dos guardas e dotirano, foi arrebatado. Na verdade, em corpo adulto, e limpos osinstrumentos dos sentidos, aos poucos volta a si, quando a doutrinapara isto concorre. Onde se eleva o fulgor natural e procura a ordemdas coisas naturais. Por esta investigação, percebe que é um arquitetodesta máquina imensa. E deseja vê-lo e possui-lo. Ele é visto numúnico esplendor divino. Por isso, a mente, pela busca da própria luz,é com veemência instigada a recuperar a luz divina. Na verdade, talestímulo e desejo são o verdadeiro amor, por isso cobiça uma metadedo homem e a outra metade dele mesmo, porque a luz natural, que éa metade do espírito, esforça-se por acender de novo no espíritoaquela luz divina, a qual diz-se que é a outra metade dele mesmo,outrora desprezada. E isto é o que na epístola a Dioniso disse Platão:O espírito humano procura compreender quais sejam as coisas divinas, nestasadmirando as que lhe são afins.

Em verdade, quando Deus verteu a sua luz no espírito,acomodou-a sobretudo neste para que levasse os homens à beatitude,que consiste na sua possessão. A ela somos conduzidos por quatro

Page 76: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 76

virtudes: prudência, força, justiça e temperança. Primeiramente, aprudência nos mostra a beatitude. Conduz as três forças restantescomo três caminhos conduzem à beatitude. Por conseguinte, Deusdirige a sua centelha em vários espíritos a tal fim, assim como quandoa prudência guia, uns voltam ao seu autor pelos ofícios da coragem,outros pelos da justiça e outros pelos da temperança. Convém saberque uns, graças a este dom, com um espírito vigoroso, sustentam osperigos e a morte pelo culto de Deus, pelos patrícios, pela pátria.Outros assim dispõem a vida com justiça, para que não ofendamninguém nem permitam ser ofendidos por suas forças. Outros domamas paixões pela vigília, pelo jejum e pelo trabalho. Decerto, estesavançam por três veredas, mas se esforçam por chegar a um mesmofim de beatitude, quando a prudência isto lhes mostra.

Assim as três virtudes estão também contidas na prudênciadeste Deus. Os espíritos dos homens, excitados pelo seu desejo,desejam alcançá-las através de suas funções, aderir a elas e possui-las sempre. Denominamos a força dos homens masculina, por causado vigor e da audácia. A temperança, feminina, por causa de umacerta compleição suspensa e mais fria do desejo e por causa doengenho com brandura. A justiça é composta. Na verdade, é femininaporque, pela sua inocência, não causa prejuízo a ninguém. E, semdúvida, é masculina, por não permitir ser injuriada pelos outros eolhar para os homens iníquos com uma censura mais severa. Porque,na realidade, é próprio do homem dar, e da mulher receber; por issochamamos o sol, que mostra a todos a luz, e não a recebe de ninguém,masculino. A lua, que a recebe do sol, e a distribui aos elementos,por dar e receber, é composta. A terra, que certamente por recebê-lade todos e não distribui-la a ninguém, chamamos feminina. Por issoé que sol, lua, terra, Força, Justiça e Temperança são merecidamentedesignados pelo apelido de masculino, composto e feminino. E a fimde conceder a Deus um nome mais distinto, chamamos estas virtudesnele de sol, lua e terra, e em nós, de sexo masculino, composto efeminino. Porque aquela luz divina que lhes foi vertida pelo sol deDeus foi criada com o sentimento da força, dizemos que lhes foiconcedida a luz masculina. Pela lua de Deus com o sentimento dajustiça, a composta. Pela terra de Deus, com o sentimento datemperança, a feminina.

Page 77: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 77

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Logo, voltados para a luz natural, desprezamos aquela vertidae divina. Pois, menosprezada uma, guardamos a outra. Daí, temosuma nossa metade e descuidamos da outra. Sem dúvida, então,conduzidos pela luz natural num momento da vida, na verdadebuscamos todos o divino, mas, diferentes, procedemos de diferentesmodos à sua aquisição. Pela força, aqueles que pela força de Deusoutrora a receberam com o sentimento da força. Pela justiça, outrose igualmente pela temperança. Enfim, cada um procura aquela suametade, que recebera, e outros, decerto, pela luz masculina de Deus,outrora perdida e agora recuperada, desejam gozar da força masculinade Deus; outros pela luz composta do mesmo modo da virtudecomposta; outros igualmente pela luz feminina. Em verdade,adquirem tanta graça aqueles que, depois que a centelha natural nelesmesmos brilhou em idade adulta, pensam que ela não é suficientepara julgar as coisas divinas, para que por indicação da centelha naturalnão concedam afeto de almas ou de corpos à majestade divina e paraque julguem que ela não é mais notável que os corpos ou as almas.Nisto, com certeza, diz-se que quase todos erraram. Aqueles que,confiados no engenho natural, na investigação das coisas divinas, oudisseram que Deus não existe, como Diágoras;35 ou duvidaram comoProtágoras;36 ou julgaram-no corpo, como os epicuristas,37 estoicos,38

cirenaicos39 e muitos outros; uma certa alma, como Marco Varrão,40

Marco Manílio41 e alguns outros. Estes, como ímpios, não só nãorecuperaram a luz divina outrora negligenciada, como aindaestragaram a luz natural por causa de seu abuso. O que estragou écom razão considerado quebrado e despedaçado. Por isso os espíritosdaqueles que como soberbos e inchados pela altivez confiaram emsuas forças se dilaceram novamente, como disse Aristófanes, quandoainda encobrem a luz natural, que lhes fora deixada, com falsasopiniões e a destroem com costumes iníquos. E assim, servem-secorretamente da luz natural todos aqueles que, reconhecendo que éimperfeita e mutilada, julgam que de alguma maneira é suficientepara julgar as coisas naturais. Na verdade, para julgar aquelas coisassobrenaturais, pensam que é necessária uma luz mais sublime, poralguma exatíssima purgação do espírito, assim se preparam, a fim deque, pela segunda vez, brilhe para eles a luz divina, cujos raios comcerteza têm parte em Deus e são restituídos àquela antiga integridade.

Page 78: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 78

IV, 6 | O Amor reconduz as almas ao céu, distribui grausde beatitude, dá o gozo eterno

VÓS, Ó NOTABILÍSSIMOS CONVIVAS, fazei este Deus, que sobre os outrosdeuses Aristófanes diz ser benéfico ao gênero humano, propício avós com todo tipo de sacrifícios. Invocai-o com preces piedosas,recebei-o de todo coração. Este, por sua bondade, primeiro conduzos espíritos à mesa celeste abundante de ambrosia e néctar, depoisacomoda cada um em seu assento, por fim com suavidade os retémpara sempre. De fato, ninguém volta para o céu, a não ser aquelesque agradaram ao Rei dos céus. Agradam-lhe aqueles que o amamcom maior zelo. Mas é impossível conhecê-lo verdadeiramente porcompleto no momento presente. Mas, na realidade, é possível e fácilamá-lo de qualquer modo conhecido. Aqueles que conhecem Deusnão lhe agradam a não ser que amem o que conhecem. Os que oconhecem e amam são amados por Deus não porque o conhecem,mas porque o amam. Com efeito, nós não gostamos daqueles queconhecêramos, mas dos que nos amaram com ternura. Pois temosmuitos inimigos que nos conhecem. Por isso, não é o seu conhecimentoque nos restitui ao céu, mas o amor.

Além disso, a ordem dos que se põem à mesa celeste seguediversos graus de amantes. Porque os que amaram a Deus de modomais distinto ali se nutrem em banquetes mais distintos. Isto é, aquelesque por obra da força cultuaram a força de Deus, dela mesma

Page 79: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 79

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

usufruem. Os que então cultuaram a justiça usufruem da justiça. Domesmo modo gozam da temperança os que cultivaram a temperança.E assim vários espíritos usufruem de várias razões e ideias da mentedivina por um impulso variado do amor. Todos, porém, usufruem detodo o Deus, porque é tudo em cada ideia. Mas de um modo maisnotável possuem todo o Deus aqueles que o veem na ideia maisnotável. De fato, cada um está de posse daquela virtude de Deus queama. Por esta razão, como diz Platão no Fedro, a inveja se afasta docoro divino. Na verdade, visto que seja o mais agradável de tudoestar de posse da coisa amada, qualquer um vive contente e plenopossuindo o que ama. Pois, se dois amantes se tornam possuidoresde seus prazeres, cada um repousa na possessão do seu amado; e, defato, não terá nenhum cuidado, porque outro está de posse de umamado mais belo.

Por isso, acontece que, por benefício do amor, em diversosgraus de felicidade sem nenhuma inveja quem quer que seja ficacontente da sua porção. Sucede ainda que sem nenhum enfado osespíritos se nutram dos mesmos banquetes pela eternidade. Comefeito, para que os convivas se divirtam, não são suficientes osalimentos, nem os vinhos, a não ser que a fome e a sede os persuadama se nutrirem, e por muito tempo permanece tanto a diversão quantoa avidez. Realmente, quem negará ser a avidez certo amor? Pois oeterno amor, pelo qual o espírito se move sempre a Deus, faz comque se regozije sempre de Deus como de um novo espetáculo. Amesma bondade de Deus instiga no espírito este amor e torna o amantefeliz.

Logo, para encerrarmos em poucas palavras, elogiaremosmuito os três benefícios do amor: o que nos reconduz ao céu, outroradivididos, repondo-nos no antigo estado; o que põe cada um em seusassentos e torna todos calmos nesta distribuição; e o que, expulsotodo fastio, por um certo seu ardor, sem interrupção, incita no espíritoum divertimento como novo e o torna feliz com uma branda e docefruição.

Page 80: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 80

V, 1 | O amor é bem-aventurado porque é belo e bom

CARLOS MARSUPINO, CARO DISCÍPULO das Musas, que seguiu o poetaLandino, assim começa a oração de Agatão. O nosso Agatão julgaque o Amor é um deus bem-aventurado, porque é muito belo e ótimo.Além disso, enumera com discernimento aquilo que é muito belo eda mesma forma o que se reclama como ótimo. Nestas enumeraçõesreproduz o próprio amor. Em seguida, depois que narrou como é,enumera os benefícios por ele atribuídos ao gênero humano. E esta éa suma da sua disputa. Na verdade, interessa-nos antes que tudoindagar por que causa, visto que se mostrasse bem-aventurado, disseque este é muito bom e belo, qualquer que seja a diferença entre abondade e a beleza. Platão no Filebo quer que seja bem-aventurado aquele a quemnada falta. E este é o que é perfeito em todos os sentidos. Entretanto,há uma certa perfeição interior e outra exterior. Chamamos a interiorbondade, e a exterior, beleza. Por causa disso o que é totalmentebom e belo, assim como em todos os sentidos perfeito, chamamosbem-aventurado. De qualquer maneira, observamos esta diferençaem todas as coisas. Certamente, como desejam os Físicos,42 uma certamistura interior temperadíssima dos quatro elementos gera um brilhoexterior. Além disso, a fertilidade natural às raízes e aos caules revesteas ervas e as árvores de uma variedade muito agradável de flores efolhas. Também nos animais uma união salutar dos humores produz

Page 81: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 81

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

uma agradável beleza das linhas e das cores. Ainda, a virtude doespírito parece levar para si uma certa beleza honestíssima naspalavras, nos gestos e nas obras. Também uma sua sublime substânciarodeia os céus com uma luz muito clara. Podemos chamar aquela debondade e esta de beleza. Por isso queremos que uma certa flor debondade seja beleza; pelos encantos desta flor, como por um certoalimento, a bondade oculta no interior atrai os que a observam. Masporque o conhecimento da nossa mente tira a origem dos sentidos,não entenderemos nem desejaremos nunca a própria bondade inseridano íntimo das coisas, a não ser que fossemos a ela levados pelosindícios manifestos da beleza exterior. Nisto parece muito admirávela utilidade da beleza e do seu companheiro, o próprio amor. Por estas coisas, julgo que é bastante conhecido que existe tantoentre a bondade e a beleza quanto entre a semente e a florzinha, e,como as flores, nascidas das sementes das árvores, elas mesmastambém produzem sementes, assim a beleza, esta flor de bondade,como brota do bem, do mesmo modo conduz os amantes ao bem.Na verdade, este nosso herói demonstrou isto abundantemente nascoisas acima.

Page 82: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 82

V, 2 | Como o amor é retratado e em que partes da almaa beleza é reconhecida e é gerado o amor

DEPOIS DISTO, AGATÃO, de forma mais difusa, enumera quantas coisassão exigidas para a formosa beleza deste deus. Diz-se que é jovem, terno,ágil, bem feito e brilhante. Em primeiro lugar, entretanto, devemosprocurar o que estas coisas conferem à beleza, depois, de que mododevem ser percebidas quando são atribuídas a este deus. Os homens têm razão e sentido. A razão por si mesmacompreende as razões incorpóreas de todas as coisas. O sentido peloscinco instrumentos do seu corpo chega às imagens e qualidades doscorpos: as cores pelos olhos; pelos ouvidos, as vozes; os odores pelasnarinas; pela língua, o sabor; pelos nervos, as qualidades simples doselementos, isto é, calor, frio e restantes. Por causa disso, o quanto dizrespeito à questão proposta, são enumeradas seis forças do espíritopertinentes ao conhecimento: razão, visão, audição, olfato, gosto etato. A razão é atribuída à divindade suprema, a visão ao fogo, ao ara audição, ao odor dos vapores o olfato, à água o gosto e o tato àterra. Pois a razão procura as coisas celestes e não tem a própria sedeem outro membro do corpo, assim como a divindade não tem umadeterminada sede em nenhuma parte do mundo. A visão é colocadana parte elevada do corpo, como o fogo na região superior do mundo,e recebe a luz pela sua natureza, que é próprio do fogo. A audiçãoigualmente segue a visão de que o ar puro segue o fogo, e ouve as

Page 83: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 83

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

vozes que são produzidas no ar retumbante, e pelo intervalo do arpenetram nos ouvidos. O olfato é por isso confiado ao ar caliginosoe aos vapores misturados do ar e da água, porque é posto entre osouvidos e a língua, como entre o ar e a água, facilmente apreende egosta muito dos vapores que provêm da mistura do ar e da água.Quais são os odores das ervas, flores e frutos muito agradáveis àsnarinas? Quem hesitará comparar o gosto da água aos licores, quesucede ao olfato como ao ar mais espesso molhado no licor unido dasaliva, e é muitíssimo apreciado na bebida e nos doces sabores? Quemhá que da mesma forma hesite atribuir o tato à terra, visto que setransforme por todas as partes do corpo terreno, complete-se nosnervos, sobretudo terrenos, e facilmente toque aquelas coisas quetêm solidez e peso, as quais a terra concede aos corpos? Assim, então,acontece que o tato, o gosto e o olfato sintam apenas as coisascolocadas muito próximas a eles mesmos, e sofram sentindo muito,ainda que o olfato pareça apreender coisas mais remotas que o gostoe o tato. A audição, porém, conhece coisas mais distantes e não seincomoda tanto. Por isso ainda a visão contempla mais longe e faznum momento o que os ouvidos fazem com o tempo. Na verdade,conhece-se o brilho antes que se ouça o trovão. A razão percebe ascoisas mais remotas. De fato, não percebe apenas aquelas coisas queestão no mundo e presentes como o sentido, mas também as queforam e estarão acima no céu. Por isso pode ser evidente que das seisforças da alma, três - tato, gosto e odor - refiram-se antes ao corpo eà matéria; porém as outras três - razão, visão e audição - referem-seao espírito. Por esta razão, as três que se dirigem para aquele corpo convêmmais ao corpo que ao espírito. E aquelas coisas que são por elaspercebidas, visto que movem o corpo a ele conveniente, a muitocusto chegam até a alma e pouco agradam como coisas muito poucosemelhantes a ela. Então, as três superiores, muito distantes da matéria,convêm muito mais à alma e agarram aquelas coisas que decertopouco movem o corpo e sem dúvida movem bastante a alma. Porqueodores, sabores, calor e semelhantes prejudicam muito ou são úteisao corpo; pouco fornecem à admiração ou ao julgamento do espíritoe são por ele desejados com moderação. Entretanto, a razão da verdade

Page 84: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 84

incorpórea, cores, figuras e vozes nada ou pouco apenas movem ocorpo. Ainda aguçam a vivacidade do espírito para investigar maisque tudo e tomam o seu desejo para si. O alimento do espírito é averdade. Os olhos são muito úteis para encontrá-la e os ouvidospara aprendê-la. Logo, aquelas coisas que pertencem à razão, visão eaudição, ambiciona por causa de si mesmo, como próprio alimento.Mas aquelas três que movem os outros sentidos são mais necessáriasao corpo para alimentá-lo, sustentá-lo ou produzi-lo. E, assim, oespírito procura estas coisas não por sua causa, mas de outro, isto é,do corpo. Além disso, somos chamados a amar as coisas quedesejamos por causa de nós mesmos; entretanto nós nos interessamospouco por aquelas que na verdade existem por causa de outro. Poismerecidamente queremos que o amor pertença apenas às ciências,figuras e vozes. E por isso aquela graça que se encontra apenas nestestrês - virtude do espírito, figura e voz -, porque muito provoca oespírito significa êÜëëïò, que eu digo proveniente de êáëÝù, isto é,chama-se provocação. Na verdade, êÜëëïò, em grego, significa belezaem latim. Decerto nos são agradáveis o verdadeiro e ótimo costumedo espírito, a figura do corpo formoso e a combinação das vozes. Emtodos os casos, que o espírito estime estas três, como próximas a si ede alguma maneira incorpóreas, com mais grandeza que as trêsrestantes; é conveniente que as aceite com mais avidez, abrace maisardentemente e admire com mais veemência. E esta mesma graça davirtude, figura ou vozes, que chama e toma para si o espírito atravésda razão, visão ou audição, é sabiamente chamada beleza. E estastrês são aquelas graças, das quais Orfeu assim falou:

‘ Αγλαιη τε θαλεια και Ευϕροσυνη πολυολσεEsplendor, vigor e grandiosa alegria

Chama esplendor aquela graça e beleza do espírito que consiste nobrilho da verdade e da virtude. Vigor, então, a suavidade da figura eda cor. De fato, esta floresce mais no vigor da juventude. Alegria,enfim, aquele sincero, salutar e perpétuo prazer que sentimos namelodia musical.

Page 85: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 85

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

V, 3 | A beleza é algo incorpóreo

COMO ASSIM SE TÊM estas coisas, é necessário que a beleza seja algocomum à virtude, figura e vozes. Pois, não chamaríamos qualquerdestes três belo de um mesmo jeito, a não ser que se encontrasse nostrês uma definição de beleza. Donde se segue que a própria razão dabeleza não pode ser o corpo, visto que a beleza, se fosse corpórea, demodo algum conviria às virtudes do espírito que são incorpóreas. Eestá tão longe do corpo ser beleza, que não só não pode ser corpóreaaquela que está nas virtudes do espírito, mas ainda aquela que estános corpos e nas vozes. Na verdade, ainda que chamemos algunscorpos formosos, não são, contudo, formosos pela sua própria matéria.Se, todavia, um único e mesmo corpo de homem hoje é formoso;entretanto, amanhã, por algum acaso, seria disforme, quando sedesfigurasse, como se uma coisa fosse ser corpo e outra ser formoso.E também não são formosos pela própria quantidade. Porque algunscorpos grandes e outros pequenos parecem igualmente formosos. Ecom frequência os grandes são disformes e os pequenos formosos.E, ao contrário, os pequenos são torpes e os grandes muito agradáveis.De vez em quando ainda acontece que a beleza seja semelhante emalguns corpos grandes e pequenos. E se é assim, estando muitas vezesna mesma quantidade, a beleza se muda numa certa circunstância e,algumas vezes mudada a quantidade, permanece a beleza e ela parecesimilar nos grandes e nos pequenos; certamente estas duas coisas,beleza e quantidade, devem ser diversas por completo.

Page 86: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 86

Além disso, ainda se a formosura de algum corpo estivesse naespessura do corpo de alguma maneira corpórea, não agradariacontudo ao que observa se fosse corpórea. Agrada ao espírito a belezade outra pessoa, não conforme repousa na matéria exterior, masconforme a sua imagem é concebida ou percebida pelo espírito atravésda visão. Aquela imagem na visão e no espírito, dado que estes sejamincorpóreos, não pode ser corpo. De que modo, pois, como direi,todo o céu seria compreendido pela pequena pupila do olho se oacolhesse de modo corporal? De maneira alguma. Mas o espírito numponto sustém toda a amplidão do corpo em modo espiritual e numaimagem incorpórea. Agrada sempre ao espírito apenas aquela belezaque é por ele recebida. Contudo, ainda que seja uma representaçãodo corpo exterior, nele, entretanto, é incorpórea. Logo, a belezaincorpórea agrada. Agrada aquilo que é agradável a cada um. O queé agradável, enfim, é belo, porque se cumpre que o amor se refira aalgo incorpóreo e a própria beleza é mais uma certa representaçãoespiritual da coisa que uma beleza corpórea. Há, entretanto, alguns que imaginam que a beleza seja uma certaposição de todos os membros43 ou, como empreguemos com as suaspalavras, uma simetria e uma proporção com uma certa suavidadede cores. Por isso, nós não aceitamos a sua opinião porque, visto quetal disposição das partes esteja apenas nas coisas compostas, nenhumacoisa simples seria bela. Agora, entretanto, chamamos belas as corespuras, as luzes, uma voz, o fulgor do ouro e a alvura da prata, aciência e a alma, que são todas coisas simples, assim como realmenteagrada muito que sejam coisas belas. Acrescente-se a isto que aquelaproporção encerra todos os membros do corpo composto e não existeem cada um, mas em todos. E assim, todos os membros por si nãoserão belos. Contudo, de cada partícula nasce a proporção de todo ocomposto. Donde algo acontece muito fora de propósito, porque elasnão são formosas por sua própria natureza, produzirão beleza. Muitasvezes ainda acontece que, permanecendo na mesma proporção edimensão dos membros, o corpo não agradará como antes. Além disso,aquela figura do vosso corpo é a mesma hoje e no ano passado, masa graça não é a mesma. Nada envelhece mais devagar que a figura.Nada envelhece mais rápido que a graça. Assim consta claramente

Page 87: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 87

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

que não são a mesma coisa a beleza e a figura. Com frequência tambémvemos ser mais direita num que em outro a disposição das partes e adimensão dos membros. Porém desconhecemos por que razão alguém,que nos é revelado mais formoso, é amado com maior ardor. Porqueparecemos ser bastante advertidos a julgarmos que a formosura éalguma outra coisa além da disposição das partes. A mesma razãonos adverte que não suspeitemos que a beleza seja a suavidade dascores. Quase sempre, pois, a cor é mais nítida num mais velho, e agraça é maior num mais novo. E nos iguais por vezes acontece queaquele que supera o outro na cor, será, entretanto, por ele superadona graça e na beleza. E, todavia, não ouse alguém afirmar que é beleza uma certamistura de figura e de cores. Porque assim nem as ciências nem asvozes, que carecem de cor e de figura, nem as cores e as luzes, quenão têm nenhuma figura, serão julgadas dignas de amor. Além disso,o desejo de cada um é completado pela visão que desejava. Decerto,a fome e a sede são apaziguadas pela comida e pela bebida. O amornão é preenchido por nenhum aspecto ou tato do corpo. Portanto,não deseja nenhuma natureza do corpo, e certamente busca a beleza.Donde sucede que essa não possa ser algo corpóreo. Por todas estas coisas, conclui-se que aqueles que, inflamadospelo amor, têm sede de beleza, se todavia desejam extinguir a sedemuito ardente com um trago deste licor, em outro lugar além do rioda matéria, ou do regato da quantidade, da figura ou de quaisquercores convém procurar o humor dulcíssimo desta beleza, pelo qual asua sede se acende. Para onde, enfim, vos dirigis, ó infelizes amantes?Quem acende as chamas muito ardentes do vosso coração? Quemextinguirá tão grande incêndio? Este é o trabalho, esta é a empresa.44

Direi logo, mas esperai.

Page 88: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 88

V, 4 | A beleza é o esplendor do vulto divino

A FORÇA DIVINA, elevando-se acima de todas as coisas, aos anjos e aosespíritos por ele produzidos, assim como a seus filhos, com branduraverte aquele seu raio, no qual se acha a força fecunda de todos osseres criados. Este neles pinta, como mais próximos a ele, a disposiçãoe a ordem de todo o mundo com muito mais cuidado que na matériado mundo. Por isso, esta pintura do mundo, a qual percebemos toda,brilha mais nítida nos anjos e nos espíritos. Neles, contudo, está afigura de cada esfera, do sol, da lua e das estrelas restantes, doselementos também das pedras, das árvores, de cada animal. Destemodo, as pinturas são denominadas pelos Platônicos nos anjosexemplários e ideias, nos espíritos razões e noções, na matéria doorbe formas e imagens. Decerto, são claras no orbe, mais claras noespírito e claríssimas na mente do anjo. Portanto, um vulto de Deusbrilha sucessivamente em três espelhos postos por ordem: no anjo,no espírito e no corpo do mundo. Neste mais próximo como muitoclaro, no outro mais distante é mais obscuro. Naquele muito distante,se semelhante aos outros, muito obscuro. Por isso, a santa mente doanjo, não sendo impedida por nenhuma função do corpo, reflete-seem si mesma, onde vê aquele vulto de Deus insculpido em seu seio.Logo, admira o contemplado e de modo muito ardente a ele semprese liga. Chamamos a graça daquele vulto divino de beleza. Nomeamosamor a avidez do anjo profundamente ligada ao vulto de Deus. Tomara

Page 89: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 89

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

que o mesmo nos acontecesse! Mas, entretanto, o nosso espírito, geradonesta condição, visto que é cerceado por um corpo terreno, foge parao ofício de gerar. Acabrunhado por esta inclinação, desdenha o tesouroescondido em suas entranhas. Em seguida, envolvido pelo corpoterreno, por muito tempo serve ao uso do corpo. A este trabalho, naverdade, ajusta sempre o sentido, ajusta ainda a razão por muito maistempo que convém. Depois conclui-se que não mais repreenda acandura daquele vulto divino que nele brilha perpetuamente antesque, num corpo já adulto e numa razão desperta, considerasse o vultode Deus, que resplandece na máquina do mundo e que se manifestano pensamento através dos olhos. De fato, por esta consideraçãoeleva-se para contemplar aquele que brilha dentro de si. Como, naverdade, o vulto do pai é agradável aos filhos, é necessário que ovulto de Deus Pai seja muito agradável aos espíritos. Como muitasvezes recordarei o mesmo, brilho e graça do seu vulto quer no anjo,quer no espírito ou na matéria do mundo devem ser nomeados belezauniversal. E o ardor a ela dirigido deve ser chamado de amoruniversal. Não duvidamos que em qualquer lugar esta beleza sejaincorpórea. Pois ninguém duvida que no anjo e no espírito ela nãoseja um outro corpo. Nos corpos ainda é incorpórea quer comomostramos acima quer como no presente compreendemos mais quetudo a partir disto: que o olho não percebe nada além da luz do sol,pois as figuras e as cores dos corpos nunca são vistas a não ser quandoa luz as ilustra. E não chegam aos olhos com a sua própria matéria. Énecessário, entretanto, que estas sejam vistas nos olhos para que sejamvistas pelos olhos. E, assim, uma luz do sol se oferece aos olhos porele ornado das cores e formas de todos os corpos ilustrados. Os olhos,com a ajuda de certo raio seu, percebem a luz assim disposta e, depoisque o receberam, veem todas as coisas que nele estão. Por isso, todaa ordem do mundo que aqui é vista, é percebida não no modo comoestá na matéria dos corpos, mas como está na luz espalhada nosolhos. Visto que naquela luz esteja separado da matéria, estánecessariamente desprovido de corpo. Daí ainda se mostra com clareza que a própria luz não pode sercorpo, quando num instante do oriente ao ocidente completa todo o

Page 90: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 90

orbe, de todos os lados penetre sem nenhum incômodo o corpo do are da água e por nada se estrague misturado às imundícies. Na verdade,estas coisas não convêm de modo algum à natureza dos corpos. Comefeito, o corpo não se move no momento, mas no tempo. E nenhumcorpo penetra um outro sem incômodo ou dissipação de si mesmo,do outro ou de ambos. E de forma sucessiva dois corpos mútuosmisturados se estragam por contágio. O que vemos na mistura daágua e do vinho, do fogo e da terra. Portanto, visto que a luz do solseja incorpórea, seja o que for que receba, recebe-o de sua naturezaneste instante. Por isso, num modo espiritual recebe as cores e asfiguras dos corpos. E do mesmo modo a própria empresa é vistapelos olhos. Donde é fato que toda beleza deste mundo, que é oterceiro vulto de Deus, mostra-se a si mesmo incorpórea pela luzincorpórea do sol.

Page 91: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 91

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

V, 5 | Como nascem o amor e o ódio, ou porque a belezaé incorpórea

DE TODAS ESTAS COISAS, segue-se que toda a graça do vulto divino, quese chama beleza universal, não é incorpórea apenas no anjo e noespírito, mas também na visão dos olhos. E, comovidos pela admiração,amamos não só toda essa face conjuntamente, mas ainda as suaspartes, onde o amor particular nasce junto à beleza particular. E assim,comove-nos algum homem, como membro da ordem mundana,sobretudo quando a centelha da beleza divina muito claramentenaquele resplandece. Tal afeto tem duas causas. Ora porque a imagemdo vulto paterno nos agrada, ora ainda porque a beleza e a forma dohomem, combinadas com habilidade, muito habilmente se encontramcom aquela razão do gênero humano, que o nosso espírito toma doAutor de todas as coisas e as retém. Daí, a imagem do homem exterior,percebida pelos sentidos, passando para o espírito, discorda daquelafigura do homem que o espírito possui, logo desagrada e como figuradisforme existe no ódio. Se está em harmonia, logo agrada e éconsiderada como formosa. Acontece que alguns, que continuamentevão ao nosso encontro, agradam ou desagradam e nós não sabemos acausa de tal afeto, pois quando o espírito está impedido na função docorpo, de modo algum vê aquelas formas íntimas a ele. Na verdade,por alguma natural e oculta inconveniência ou conveniência sucedeque a forma da coisa exterior, com a sua imagem agitando a forma

Page 92: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 92

dessa mesma coisa representada no espírito, destoa ou se harmonizae por essa oculta aversão ou prazer o espírito, comovido, odeia ouama esta própria coisa.

Certamente, aquela força divina no anjo e no espírito inculcoua semelhança do homem criado intacto. Sem dúvida, a constituiçãodo homem na matéria do mundo como remotíssima daquele Autordegenera daquela sua figura intacta. Todavia, na matéria melhordisposta se apresenta mais parecida, e mais dissemelhante na outra.A que se mostra mais semelhante, como convém à força de Deus e àideia do anjo, assim se acorda à razão do espírito. O espíritoexperimenta esta conveniência. Verdadeiramente nossa própriaconveniência consiste na beleza e naquela prova consistem os afetosdo amor. Pois que, na verdade, a ideia e a razão são estranhas à matériado corpo, mas a constituição do homem é julgada semelhante àquelasnão pela matéria ou quantidade, mas, de preferência, por aquela coisaincorpórea. Como semelhante àqueles, se harmoniza. Como seharmoniza, é bela. Por isso, o corpo e a beleza são diversos.

Então, se alguém procurar saber, pois, como a forma do corpopossa ser semelhante à forma do espírito e da mente e à razão, peço,observe a construção do arquiteto. No princípio, o arquiteto daconstrução concebe a razão e a quase ideia no espírito. Depois queimaginou tal casa, fabrica-a segundo as suas forças. Quem negaráque a casa é corpo e que ela é muito parecida com a ideia incorpóreado autor à semelhança da qual foi feita? Além disso, por causa dealguma ordem incorpórea mais que por causa da matéria deve serjulgada semelhante ao arquiteto. Vamos, afasta logo a matéria, sepuderes; contudo podes afastá-la com o pensamento, mas deixa aordem! Nada te restará do corpo, nada da matéria. Mas, ao contrário,será exatamente a mesma a ordem que vem do autor e aquela quepermanece no autor. Faz o mesmo no corpo de algum homem!Descobrirás a sua forma, que está de acordo com a razão do espírito,simples e isenta de matéria.

Page 93: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 93

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

V, 6 | Quantas partes são exigidas para que a coisa sejabela, e que a beleza é um dom espiritual

O QUE É, ENFIM, a beleza do corpo? Um certo ato, vivacidade e graçaque resplandece no próprio influxo da sua ideia. Tal fulgor não sedirige para a matéria antes que ela esteja muito habilmente preparada.Na verdade, a preparação do corpo vivente consta destas três coisas:ordem, modo e espécie. A ordem significa as distâncias das partes; omodo, a quantidade e a espécie, os traços e a cor. Mas natural: que osouvidos, os olhos, o nariz e o resto estejam no seu lugar; os olhosestejam próximos do nariz na mesma distância, e igualmente osouvidos e outros distem dos olhos em intervalos iguais. E estasemelhança de intervalos, pertencente à ordem, não basta, a não serque se ajunte o modo das partes, que, conservando a devida proporçãode todo o corpo, conceda a cada membro um tamanho modesto, afim de que três narizes dispostos ao longo preencham o comprimentode todo o vulto, e os semicírculos de ambas as orelhas conjuntamenteunidos façam o círculo da boca aberta. Do mesmo modo, ainda, aconjunção das sobrancelhas faça como o comprimento do nariz,termine o comprimento do lábio, e igualmente da orelha; as duasórbitas dos olhos igualem a abertura da boca; oito cabeçascompreendam a altura do corpo, e ainda a extensão dos braços paraos lados, assim como das pernas e dos pés, demonstre a mesma coisa.Além disso, tomamos a espécie como necessária, para que não só os

Page 94: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 94

traços artificiais das linhas e as rugas como também o esplendor dascores ornem aquela ordem e modo das partes.

E estas três coisas, ainda que estejam na matéria, não podemser nenhuma parte do corpo. A ordem dos membros não é, na verdade,nenhum membro; pois a ordem está em todos os membros. Aindanenhum membro se encontra em todos os membros. Acontece que aordem não é senão um conveniente intervalo das partes. Na verdade,o que dizemos ser o intervalo senão a distância das partes? Enfim, adistância ou é nada e um vazio inteiramente fútil ou algum traço daslinhas. Porém, quem dirá que são corpos as linhas, que carecem delargura e profundidade, e que são necessárias ao corpo? Assim, omodo não é quantidade, mas término de quantidade. Realmente ostérminos são superfícies, linhas e pontos, que, quando carecem deespessura de profundidade, não são considerados como corpos.Colocamos ainda a espécie não na matéria, mas na alegre concórdiade luzes, sombras e linhas. Por todas estas coisas é manifesto que abeleza até aqui está privada da massa do corpo, visto que nunca secomunica com a própria matéria, a não ser que esteja disposta comaquelas três preparações incorpóreas, que narramos. Sem dúvida, ofundamento dessas é a reunião temperada dos quatro elementos, paraque o nosso corpo seja semelhante ao céu, cuja substância étemperada, e não se revolte pela formação do espírito por algumexcesso dos humores. Mas assim o celeste fulgor facilmente brilharáno corpo muito semelhante ao céu e aquela forma perfeita do homem,que o espírito tem, resultará com mais clareza na pacífica e obedientematéria. Além disso, quase do mesmo modo, as vozes se dispõem areceber a sua beleza. Pois a sua ordem é a subida da voz grave àoitava e daí a sua descida. O modo é a devida progressão pelas terças,quartas, quintas e sextas vozes, assim como pelos tons e semitons. Aespécie é o melodioso exercício da sonora voz.

Em todo o caso, por essas três coisas, como por certoselementos, os corpos compostos de muitos membros, como as árvorese os animais, e a junção de várias vozes, se dispõem a receber abeleza. Na verdade, os corpos mais simples, como os quatroelementos, as pedras e os metais e igualmente cada voz do interior, aela se adaptam bem por uma certa combinação, abundância e

Page 95: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 95

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

claridade de sua natureza. Contudo, o espírito está, por sua natureza,a ela acomodado antes de tudo porque ele é espírito e quase umespelho próximo de Deus, no qual, como dissemos acima, reluz aimagem do vulto divino. Então, como ao ouro, em suma, não se deveacrescentar nada para que pareça formoso, mas deve-se separar asimundícies da terra, se a ele se prenderam, assim também o espíritonão precisa de nenhuma adição para que pareça formoso, mas deve-se depor a tão inquieta cura e a solicitude do corpo, e expulsar aperturbação do desejo e do temor: logo aparecerá a natural beleza doespírito.

Mas para que a oração não se alongue mais, pelas coisas ditasacima, concluamos em breves palavras que a beleza é uma certa graçavivaz e espiritual, que, ilustrando um raio de Deus, é primeiramentevertida sobre o anjo, e depois sobre os espíritos dos homens, sobre asfiguras e vozes dos corpos, que pela razão, visão e audição comove edeleita os nossos espíritos; quando deleita arrebata, e quando arrebatase inflama de ardente amor.

Page 96: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 96

V, 7 | Sobre a pintura do amor

SEM DÚVIDA, O POETA AGATÃO, segundo o costume dos velhos poetas,veste esse deus com uma imagem humana e pinta-o à semelhança deum próprio homem formoso. Jovem, terno, flexível e ágil, convenientementepreparado e nítido. Com que fim isto? Decerto, essas preparações sãomais para uma propensão à formosura que formosura. Pois destascinco partes, as três primeiras anunciam uma união temperada docorpo, que é o primeiro fundamento; as duas restantes indicam ordem,modo e espécie.

Os Físicos demonstraram que o indício da temperadanatureza corpórea é a suave e firme igualdade da tenra carne. Quandoo calor excede em demasia, o corpo é árido e cabeludo; quando éfrio, é rígido; quando há secura, é duro e áspero; quando há humidade,é frouxo, caído, desigual e torto. Pois, a igual e firme ternura do corpoindica a sua moderada disposição em quatro humores. Por causa disso,Agatão chamou-o mole, delicado e terno. Por que jovem? Porque estacombinação existe não só para benefício da natureza, mas tambémda idade. De fato, pela longa duração do tempo, separadas as partesmais sutis dos humores, restam as partes como que mais espessas.Exalados o fogo e o ar, reina o excesso da água e da terra. Mas porque ágil e flexível? Para que o compreendas apto a todos os movimentose pronto, a fim de que não julgues, quando disser mole, que tambémquisesse dizer a moleza lânguida e molesta da mulher, pois que esta

Page 97: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 97

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

é contrária à compleição moderada. Depois disto acrescentou:convenientemente preparado, isto é, formado da ordem e do modohonestíssimos das partes. E juntou nítido, isto é, resplandecente desuave beleza das cores, e feitas estas preparações, Agatão ocultou oque restara. Por certo, depois destas coisas resta-nos supor o adventodessa graça.

Porém, estas cinco partes aparecem na figura do homem,assim como dissemos, mas devem ser entendidas de outro modo napotência do amor. Na verdade, mostram a sua força e igualdade. Porisso diz-se jovem, porque os jovens se enlaçam muito no amor e,enlaçados pelas suas insídias, desejam a idade juvenil. Mole porqueas índoles tenras se cativam com mais facilidade. E aqueles que sãocativados, ainda que antes fossem violentos, tornam-se mansos. Ágile flexível porque entram às escondidas e do mesmo modo saem. Bemfeito e ordenado porque deseja coisas formosas e ordenadas e evita ascontrárias. É nítido porque na florida e brilhante idade aspira à índoledo homem e ambiciona coisas floridas. Visto que Agatão mostra estascoisas com muita eloquência, basta que delas brevemente tenhamosfalado.

Page 98: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 98

V, 8 | Sobre a virtude do amor

AINDA AS COISAS que são ditas por Agatão sobre as quatro virtudesdevem assim ser aceitas para indicar a bondade do Amor com o intuitode se afirmar que é justo, porque onde o amor é íntegro e verdadeiro,ali está a vicissitude da benevolência, que não admite nenhumaafronta ou injúria. Tão grande é a força desta ternura que ela sozinhapode conservar o gênero humano em tranquila paz, porque nem aprudência, nem a coragem, nem a força das armas, leis e eloquênciapodem acabar sem benevolência.

Além disso, chama temperado porque doma os desejos torpes.Com efeito, o amor procura a beleza, que consiste numa certa ordeme temperança, rejeita os desejos vis e imoderados e afasta-se sempredos gestos torpes; o que no princípio ouvistes muito do herói. Eonde reina o seu afeto, todos os outros desejos são desprezados.

Acrescentou fortíssimo. Pois o que é mais forte que a audácia?Quem do mesmo modo combate com mais ousadia que o amantepela pessoa amada? Marte excede em coragem aos outros deuses, isto é,aos outros planetas, porque torna os homens mais fortes. Vênus odoma. Na verdade, quando Marte, posto nos ângulos do céu nasegunda ou oitava casa de nascimento, anuncia coisas ruins para oque nasce, Vênus muitas vezes, pela sua conjunção no contraste ouocultamento quer no aspecto sêxtuplo ou trino de Marte, como assimdirei, detém a sua maldade. Novamente quando Marte domina no

Page 99: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 99

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

nascimento do homem, distribui grandeza de espírito e irascibilidade.Se Vênus se aproximou muito, não impede aquela virtude do grandeespírito concedida por Marte, mas reprime o vício da irascibilidade,quando parece fazer Marte mais clemente, doma-o. Marte, entretanto,nunca doma Vênus. Pois ela, se for a guia da vida, fornece o afeto doamor. Se Marte comandar muito perto, com o seu calor torna o ímpetode Vênus mais ardente, assim como se, quando alguém nasce, Marteestiver na casa de Vênus, em Libra ou Touro, por causa da presençade Marte, aquele que então nasceu se inflama de amores mais vivos.Outra vez Marte segue Vênus, mas Vênus não segue Marte, porque a audáciaé escrava do amor, e não o amor da audácia. Com efeito, pois, oshomens são enlaçados pelo amor não porque são audaciosos, mas amaior parte do tempo, e, porque são feridos, tornam-se muitoaudaciosos para incorrer em qualquer perigo pela pessoa amada. Porfim, aquele evidentíssimo argumento da sua coragem, que excede atodos, é que todas as coisas obedecem ao amor, mas ele não obedeceninguém. Certamente amam os seres celestes, os animais e todos oscorpos, assim como os fortes e os sábios, os homens ricos e os grandesreis apresentam os pescoços ao império do amor. O amor, entretanto,não é ocultado por nenhum destes. E na verdade os presentes dosricos não compram o amor. Nem as ameaças ou violências dospoderosos podem nos constranger a amarmos ou deixarmos de amar.Pois o amor é livre e por sua vontade nasce em livre vontade, a qualnão constrangerá ainda Deus, que, desde o início, determinou quefosse livre. Por isso, sucede que o amor, que dá força a todos, escapada violência de todos. Tão grande é a sua liberdade que outros afetosdo espírito, artes e operações preferem muitas vezes um prêmiodiverso de si; o amor se contenta consigo como um prêmio para simesmo, como se não houvesse outro prêmio que fosse digno do amoralém do amor. Pois aquele que ama, ama sobretudo o amor. De fatodeseja que acima de tudo este, por sua vez, ame o amante pela pessoaamada.

Também é muito sábio. Por essa razão, o amor é criador econservador de todas as coisas e mestre e senhor de cada arte, julgoque isto foi bastante discutido na oração de Erixímaco. Nestas coisasse mostra a sabedoria do amor. De tudo isto, conclui-se que o amor é

Page 100: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 100

bem-aventurado porque é muito belo e ótimo. Na verdade constaque é belo porque se encanta com as mais belas coisas comosemelhantes a ele. Por isso é que sendo também ótimo torna osamantes ótimos. Realmente é necessário que seja ótimo aquele quetorna os outros ótimos.

Page 101: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 101

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

V, 9 | Sobre os dons do amor

O QUE É O AMOR mostrou-se a partir daquela nossa ida e vinda. Ecomo é pelas palavras de Agatão supracitadas. Quais presentesconcede facilmente se obtém das coisas ditas. De fato, um amor ésimples e o outro recíproco. Aquele simples compreenderá qualquerpessoa: torna-a prudente para prever, viva para dissertar, eloquentepara falar, magnânima para fazer as coisas, engraçada para os gracejos,preparada para os jogos, e muito forte para cada coisa séria. O amorrecíproco, quando repele os perigos, oferece segurança; quando afastaa discórdia, oferece concórdia, e, quando evita as misérias, trazfelicidade. Com efeito, onde há caridade mútua, ali não há nenhumainsídia e ali estão todas as coisas comuns. Lá cessam as brigas, osfurtos, os homicídios e os combates. Tal tranquilidade foi concedidapelo amor não só aos animais, mas também aos céus e aos elementos,aqui trata Agatão, e foi mostrado mais difusamente acima na oraçãode Erixímaco. Ao fim dessa oração diz-se que o amor, com o seucanto, acaricia as mentes dos deuses e dos homens, porque claramentecompreenderá alguém que lembrar que se demonstrou acima que oamor existe em todas as coisas e se estende a todos.

Page 102: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 102

V, 10 | O Amor é mais antigo e mais novo que os outrosdeuses

MAS, ANTES QUE EU TERMINE, ó excelentes convivas, pelas forças decaráter explicarei três questões, que são reproduzidas na discussãode Agatão. De fato, em primeiro lugar, procura-se saber porque Fedrodisse que o amor é mais velho que Saturno e Júpiter e, realmente,Agatão disse que é mais jovem; em segundo lugar, o que em Platãosignifica o reino da Necessidade, que é o império do amor. Emterceiro, aqueles deuses descobriram essas artes quando o amorreinava.

Pai de todas as coisas, Deus criou aquelas mentes que lhefavorecem, as quais movem Saturno, Júpiter e outros planetas, porum certo amor de propagar a sua origem e pela vontade da providência.Por sua vez, as mentes logo nascidas amam o seu pai quando oreconhecem. Aquele amor, do qual são criadas as coisas celestes,chamamos mais velho que elas, aquele verdadeiro amor, no qual ascoisas criadas são amadas pelo seu criador, mais jovem. Por isso, amente angélica não aceita do seu pai as ideias do planeta Saturno ede outros antes que se curve à sua face por natural amor. De novo,depois que as aceitou, com maior ardor amou o presente do pai.Assim, pois, o amor daquele anjo para Deus, em parte é mais antigoque as ideias que se chamam deuses, em parte ainda é mais jovem.Por esta razão o amor é princípio e fim, o primeiro e o último dosdeuses.

Page 103: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 103

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

V, 11 | O Amor reina diante da Necessidade

NA VERDADE, PARA QUE A SEGUNDA QUESTÃO seja resolvida, diz-se queeste reina diante da Necessidade porque o divino amor deu origem atodos os seus descendentes, no qual não se coloca nenhuma violênciada necessidade. Pois quando não tem nada acima de si, não trabalhaforçado, mas por sua vontade qualquer que seja ela. Contudo, a menteque o segue, quando se enlaça, necessariamente pulula. Logo, poramor produz e esta por necessidade se desenvolve. Ali começa adominação do amor e aqui a da necessidade. Esta, ainda que nasçada suma bondade de Deus e, por isso, seja boa, todavia, porque sedesenvolveu fora de Deus, necessariamente degenera da infinitaperfeição do pai. Mas o efeito nunca sustenta toda a bondade dacausa. De qualquer modo, por um lado nesta marcha necessária epor outro ainda na degeneração do efeito consiste o império danecessidade. Mas a mente logo gerada, como dissemos, ama o seuautor. Aí ressurge o reino do amor. Pois não só ela, por amor, se elevaa Deus, como também Deus, por amor, ilumina a que se volta paraele. Na verdade, aqui de novo o poder da necessidade se esconde;pois que aquela luz, que desce de Deus, não se retira da mente pelasua natureza obscura com tão grande claridade quanta é concedidapor Deus. Mas, por sua natureza é obrigada a receber pela suacapacidade. Por esta razão a violência da natureza que eleva torna-se uma luz mais obscura. Por sua vez a origem do amor se aproxima

Page 104: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 104

dessa necessidade. Aquela, visto que foi primeiramente acesa poreste fulgor de Deus, volta-se com mais ardor para ele e, como queinstigada por essa centelha de luz, cobiça toda a plenitude da luz.Depois Deus, pela bondade da sua providência, além daquele primeiroraio natural, distribui também a luz divina. E assim, por sua vez, opoder do amor e o da necessidade alternadamente a ele sucede.Decerto, esta sucessão nas coisas divinas resulta na origem danatureza; em outras, nos intervalos do tempo. Assim, pois, acontecepara que o amor seja o primeiro e o último de todos. Sobre o espíritotambém e outros que de Deus resultam, para que do mesmo modo sejulgue estes dois impérios. Por isso, se falamos de modo preciso, oimpério do amor é mais antigo que o da necessidade, quando o poderdaquele se inicia em Deus e o desta nas coisas criadas. Se discernimossobre as coisas criadas por Deus, para os tiranos, o reino da necessidadeantecede o do amor, visto que as coisas procedem e dele mesmodegeneram por necessidade ao proceder antes que por amor se voltemao seu pai.

Orfeu celebrou estes dois impérios em dois hinos. Assim é oimpério da Necessidade no Hino da Noite:45

δεινη γαρ‘ αναγχη παντα χρατυνειA forte necessidade domina todas as coisas

Porém, assim é o reino do Amor no Hino a Vênus:46

χαι χρατεειζ τρισσϖν µοιρϖν, γενναζ δε τα πανταImperas e geras todas as coisas em três destinos

Orfeu divinamente estabeleceu os dois reinos e, por sua vez,comparou-os e antepôs o amor à necessidade, quando disse que aqueleimpera suficientemente em três coisas, nas quais consiste anecessidade.

Page 105: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 105

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

V, 12 | De que modo, reinando a necessidade, Saturnocastrou o Céu e Júpiter verdadeiramente ligou Saturno

DE QUE MODO, porém, dominando a necessidade, os seguintes deusesaqui mencionados por Agatão castraram ou ligaram os seus pais,facilmente compreendemos pelas coisas ditas. Na verdade, isto nãodeve ser assim percebido, de modo que a mente do anjo divida edilacere o próprio Deus, mas em si mesma menos se divide o que lheé concedido por Deus. Pouco antes mostramos de modo claro ospresentes de Deus necessariamente despedaçados da sua sumaperfeição no espírito que os recebe. Acontece que aquela fecundidadeda natureza, certamente íntegra em Deus, mas quebrada e como quemutilada no anjo, diz-se com razão ter sido castrada. Contudo, diz-secontê-lo, quando reina a necessidade, porque nem pela vontadedaquele que dá nem pela do que recebe, mas por aquela necessidade,pela qual o efeito não pode igualar à sua causa, necessariamentetermina. Assim, então, Saturno, isto é, o anjo parece castrar o Céu, osumo Deus. Também Júpiter, isto é, a alma do mundo parece ligarSaturno, isto é, contrair a força recebida pelo anjo em si mesmo pordefeito de sua natureza em limites mais louváveis. Na verdade opoder, que nele terminou e se dissolveu por causa da grandeza, nestejá se julga ligado e contraído por causa da brevidade. Omito que osastrólogos julgam que a maldade do planeta Saturno é frequentementeconstrangida pela conjunção, recepção ou oposição de Júpiter ou peloseu aspecto sêxtuplo ou triplo.

Mas basta sobre estas coisas. Passemos à terceira questão.

Page 106: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 106

V, 13 | Os deuses que concedem as artes aos homens

AGATÃO EXAMINA AS ARTES transmitidas ao gênero humano pelos deusespor causa do amor. De Júpiter é o reino; de Apolo é a arte de atirarflechas, adivinhar e curar; de Vulcano, a fabricação de metais; deMinerva, a arte de tecer; das Musas, enfim, a música. Doze divindadespresidem aos doze signos do Zodíaco. A Áries, Palas; a Touro, Vênus;Apolo a Gêmeos; a Câncer, Mercúrio; a Leão, Júpiter; a Virgem,Ceres; à Libra, Vulcano; a Escorpião, Marte; Diana a Sagitário; Vestaa Capricórnio; a Aquário, Juno e a Peixes, então, Netuno. Atravésdeles todas as artes são transmitidas ao nosso gênero. Aqueles signos,que neles presidem as divindades, infundem as suas forças de cadaarte no corpo e no espírito. Assim Júpiter, por Leão, torna o homemmais apto para a administração dos homens e dos deuses, isto é, paraexecutar bem tanto as coisas humanas quanto as divinas. Apolo, porGêmeos, mostra a predição, a medicina e o arco; Palas, por Áries, aperícia de tecer; Vulcano, por Libra, a fabricação de metais e os outros,as artes restantes. Porque, na verdade, os presentes nos sãomagnificamente concedidos pela sua bondade de providência,dizemos fazer liberalidades quando o amor nos instiga. Por causadisso julgamos que nasce a consonância musical daquele muito veloze ordenado giro dos céus, e dos oito movimentos dos círculos oitotons são produzidos; de todos, porém, alguns produzem noveharmonias. E assim, denominamos nove musas os nove sons dos

Page 107: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 107

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

céus pela harmonia musical. Outrora o nosso espírito fora premiadocom a razão dessa música. De fato a origem deste céu, merecidamentechama-se natural harmonia do céu, a qual, depois, se assemelha aosvários instrumentos e cantos. E este presente do mesmo modo nosfoi concedido pelo amor da providência. Portanto, ó ilustres varões,amemos esse deus porque é muito belo, porque é ótimo devemosimitá-lo; e porque é bem-aventurado, venerá-lo, para que, por suaclemência e liberalidade, nos conceda o poder de sua beleza, bondadee beatitude.

Page 108: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 108

VI, 1 | Introdução à disputa do amor

ATÉ AGORA FALOU Carlos Marsupino. Contudo, Tomás Bêncio, diligenteimitador de Sócrates, se transportou à reflexão das palavras socráticascom um espírito favorável e com um vulto risonho.

O nosso Sócrates, diz, considerado pelo oráculo de Apolocomo o mais sábio dentre todos os gregos, costumava declarar que aarte de amar sobressaía às outras, e por causa da experiência dessaarte, Sócrates ou outro qualquer devessem ser julgados como muitosábios. Dizia ter tomado para si tal arte não de Anaxágoras,47 Damon,48

do físico Arquelau,49 nem dos professores de retórica Pródico de Céos50

e Aspásia,51 nem do músico Cono,52 dos quais aprendera muitas coisas,mas de Diotima,53 mulher fatídica, inspirada pelo espírito divino. Pelaminha sentença mostrou que só por inspiração divina os homenscompreenderam o que seria verdadeiramente a beleza, o amor legítimoe como poderiam amar. Tão grande é o poder da faculdade do amor!Tão grande sublimidade! Por isso, ficai longe dos alimentos celestes,digo, ficai longe, ó profanos, soterrados pelas imundícies terrenas, eabsolutamente devotos de Baco54 e de Priapo, lançai por terra e nalama, como costume dos porcos, o amor, presente celeste. Entretanto,vós, ó convivas castíssimos, e todos os outros consagrados a Diana ePalas,55 que exultais com a liberdade do espírito puríssimo e com ogozo perpétuo da mente, conservai-vos na felicidade e ouvi comdiligência os divinos mistérios revelados a Sócrates por Diotima. Mas

Page 109: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 109

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

antes de ouvir Diotima, deve-se resolver uma certa contenda entreaqueles que acima trataram do amor e os que haverão de tratá-lo nofuturo. Pois, os primeiros, chamaram deus de amor belo, bom, feliz.Sócrates e Diotima o negam, e colocam-no entre belo e torpe, bom emau, feliz e mísero, deus e homem. É lícito que julguemos uma eoutra sentença verdadeira por outra razão.

Page 110: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 110

VI, 2 | O Amor está entre beleza e torpor e entre Deus ehomem

A PEDRA DE MAGNÉSIA insere no ferro certa sua qualidade, pela qual oferro feito muito semelhante ao magneto se inclina a esta pedra. Talinclinação, como originária da pedra e que se volta para a pedra, porcerto é chamada inclinação da pedra, como está no ferro, é igualmentedo ferro e da pedra. Com efeito, na verdade não está na pura matériado ferro, mas na qualidade da pedra já formada. Por essa razão, retéma propriedade de ambas. Também o fogo, que consideramos maismanifesto, pela sua qualidade, isto é, pelo calor, queima o linho, olinho suspenso pela qualidade do calor voa até a região superior dofogo. Tal voo, como incitado pelo fogo, volta-se para o fogo, e ochamamos claramente de ígneo, como está no linho, dizemos, naverdade, que o linho e igualmente o fogo não estão em estado puro,mas já ardente, pela natureza de ambos, chamamos tanto o voo dolinho quanto do fogo.

A figura do homem várias vezes, por causa da bondadeinterior felizmente concedida por Deus, é belíssima no olhar, pelosolhos daqueles que a contemplam no seu espírito difunde o raio doseu esplendor. Em todo o caso, por esta centelha como por um certoanzol, o espírito atraído avança para o que atrai. Pela sentença deAgatão e de outros acima, nós não duvidamos considerar um deusbelo, bom e feliz este impulso, que é o amor, visto que dele depende,

Page 111: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 111

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

nele mesmo se reflete pelo belo, bom e feliz. Porque, na verdade,está no espírito já aceso pela presença do seu belo raio, somosimpelidos a chamá-lo um estado médio entre belo e não belo. Quando,por certo, o espírito, que até então não recebe nenhuma imagem dacoisa bela, ainda não ama aquela coisa por ser desconhecida. E quempossui toda a beleza não é derrotado pelo estímulo do amor. Comefeito, quem tem as coisas que ambiciona? Acontece que, depoisdisso, se abrasa em ardente amor, quando após encontrar uma imitaçãoelegante da coisa bela, por aquela prova, é instigado à plena possessãoda beleza. Na verdade, logo que o espírito do amante em parte tem aprópria coisa bela, e em parte não a tem, com razão em parte é belo,em parte não o é. E assim desejamos que o amor, por tal combinação,seja um certo estado médio entre o belo e o não belo companheirode cada um. Em todo o caso, por esta razão, Diotima, visto que a elajá voltamos, chamou o amor de demônio. Porque assim como osdemônios estão no meio das coisas celestes e terrenas, assim o amorpossui um meio termo entre a deformidade e a beleza. João mostrouem suficiência nas suas primeira e segunda orações esta sua regiãomédia entre a natureza disforme e a formosa.

Page 112: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 112

VI, 3 | Dos espíritos e demônios das esferas

MAS CONHECEI, ENTÃO, como os demônios habitam a região média entreo céu e a terra, pelas palavras de Diotima neste Banquete, de Sócratesno Fedro e no Filebo, do estrangeiro ateniense nas Leis e Epinomos.

Platão julga que a máquina universal deste mundo é reta emovida por alguma alma, visto que todo o corpo do mundo é umcerto corpo, composto de todos os quatro elementos, cujas partículassão os corpos de todos os animais. Pois, o pequeno corpo de cadaanimal é uma partícula do corpo mundano. E não se compõe de todoo elemento do fogo, ar, água e terra, mas de cada parte desteselementos. Logo tanto o todo é mais perfeito que a parte, quanto émais perfeito o corpo do mundo que o corpo de cada animal. Decerto,seria absurdo que o corpo imperfeito tivesse uma alma, mas o perfeitonem tem alma, nem vive. Portanto, quem agora é aprisionado pelamente, que diga que vive uma parte e negue o todo? Vive, pois, todoo corpo do mundo, enquanto vivem os corpos dos animais, que sãoas suas partes. Convém que uma seja alma de tudo, assim como umaé a matéria e uma a estrutura. Por isso, visto que doze são as esferasdo mundo, como agrada a Platão, oito céus e quatro elementos sob océu, e estas doze esferas estão sucessivamente separadas, diversasna beleza, nos movimentos e na propriedade, é necessário que lhesassistiam doze almas diversas pela beleza e pela virtude. Logo, umaserá a alma de uma primeira matéria, e doze almas dos doze círculos.

Page 113: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 113

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Quem negará que vive a terra ou a água, que dão vida aos animais apartir de seu nascimento? Porque se as imundícies do mundo viveme estão cheias de seres vivos, por que o ar e o fogo sendo melhoresnão vivem nas partes do mundo e os seres vivos não têm igualmentepara si céus do mesmo modo? Mas, na verdade, vemos aquelesanimais celestes, que são as estrelas, e os terrenos e aquáticos; semdúvida não vemos os do fogo e do ar, pois não percebemos o elementopuro do fogo ou do ar. Isso também revela que na terra dois são osgêneros de animais, brutos e racionais, e do mesmo modo na água,quando a água é superior à terra não deve ser menos composto que aterra de racionais. Então, dez são os globos superiores bem ornadossó de racionais por causa da sua excelência.

Os platônicos chamam deuses a alma do mundo, isto é, daprimeira matéria, e doze as almas das esferas e das estrelas, comoseguidoras da mente angélica e do sumo Deus; demônios, os animais,que, localizados sob a lua no fogo etéreo, ou do ar puro, ou do arnebuloso, habitam a região próxima da água; homens, os racionaisque na realidade moram na terra. Os deuses são imortais eintoleráveis; os homens, toleráveis e mortais; os demônios na verdadesão imortais, mas toleráveis. E as paixões do corpo não são atribuídasaos demônios, mas a certo afeto do espírito, com os quais de algumamaneira amam os homens bons, odeiam os maus e se misturam maisperto deles e com mais ardor ao governar as coisas inferiores,sobretudo os humanos. Segundo este ofício, todos parecem bons. Naverdade, alguns platônicos e teólogos cristãos quiseram que existissemcertos demônios maus. Mas até o presente não discutimos nada sobreos demônios maus.

Contudo, Dioniso Areopagita, que não discorda pouco damente de Platão, costuma chamar os anjos bons segundo o próprionome de nossos guardiães, os governadores do mundo inferior. Mas,segundo Dioniso também podemos chamar anjos ministros de Deusaqueles deuses e espíritos das esferas e das estrelas que Platãoinvoca,56 visto que também ele não diverge de Platão, porque comoaparece no décimo livro das Leis, de forma alguma ainda retém taisespíritos nas prisões das esferas, como as almas terrestres aos seuscorpos. Mas, por tão grande virtude, afirma as coisas dadas pelo sumo

Page 114: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 114

Deus para que, pela visão de Deus, juntas possam usufruir da vontadedo seu Pai e sem nenhum trabalho ou solicitude reger e mover osglobos do mundo, e governar facilmente as coisas inferiores com seusmovimentos. Por isso, há mais que uma discordância de palavras quede sentença entre Platão e Dioniso.

Page 115: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 115

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 4 | Dos sete presentes que são por Deus distribuídosaos homens pelos espíritos médios

A MENTE DIVINA contém as ideias de todas as coisas que os deusesservem; e pelos presentes dos deuses são chamados a obedecer osdemônios.57 Com efeito, todas as coisas passam do mais alto ao maisbaixo pelo meio, assim como aquelas ideias divinas, concepções damente, pelos deuses e demônios distribuem os seus presentes aoshomens. Sete são as suas partes precípuas: estímulo da contemplação,poder de governar, animosidade, clareza dos sentidos, brilho do amor,sutileza de interpretar, fecundidade de gerar. Primeiramente, Deuscontém em si as suas forças. Depois distribui o seu poder a setedeuses, que movem sete planetas, e são por nós chamados de anjos,para que assim cada um receba cada coisa pelas outras. Aqueles setemostram cada parte precípua a cada ordem subserviente dosdemônios. Esses as transmitem aos homens.

Sem dúvida, Deus verte para si as almas logo que nascem.Estas, correndo por Câncer do orbe da via Láctea, são arrastadaspara o corpo por um certo corpo celeste e lúcido, onde se encerramrodeados por corpos terrenos. Mas a natureza da terra deseja que oespírito puríssimo não possa cair neste corpo impuríssimo antes deter recebido algum médio e puro invólucro. Porque é mais forte queo espírito, é também mais puro e delicado que o corpo, e é julgadopelos platônicos como uma cópula muito agradável da alma com o

Page 116: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 116

corpo terreno. Desde então acontece que os espíritos dos planetasem relação aos nossos espíritos, e ainda os corpos em relação aosnossos corpos sem cessar consolidem e fortifiquem as forças daquelessete presentes, que logo de início foram concedidos por Deus. Poreste mesmo ofício presidem outras tantas naturezas de demôniosque estão entre as coisas celestes e os homens. Saturno fortalece odom da contemplação pelos demônios de Saturno. Júpiter, o poderde governar e imperar com o ofício dos demônios de Júpiter. Marte,a grandeza do espírito pelos demônios de Marte. O Sol, a claridadedos sentidos e da opinião, donde segue a predição, pelo auxílio dosdemônios solares. Vênus inspira o amor pelos demônios de Vênus.Mercúrio ajuda a habilidade de anunciar e interpretar quandointercedem os demônios de Mercúrio. Por fim, a Lua conserva o ofícioda reprodução pelos demônios lunares que se juntam. É possívelque repartam a sua faculdade com todos os homens, embora as partesprecípuas àqueles possam mais na sua concepção e nascimento peladisposição do céu. Na verdade, é possível que as partes vindas porinspiração divina sejam honestas, embora possam nos parecerdisformes algumas vezes por causa do seu abuso; isto se manifestano exercício do governo, impetuosidade, amor e reprodução.

Para não nos alongarmos por mais tempo, possuímos oinstinto do amor, oferecido pelo sumo Deus e por Vênus, que se dizque é uma deusa, e pelos demônios. Por essa razão, com certeza, échamado Deus por Agatão, demônio por Diotima, digo demônio deVênus.

Page 117: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 117

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 5 | Da ordem dos demônios de Vênus e estes comoprojetam o amor

ALÉM DISSO, O AMOR de Vênus é um demônio triplo. O primeiro écolocado pelos platônicos na Vênus celeste, isto é, na própriainteligência da mente angélica. O segundo, na Vênus vulgar, convémsaber, naquele poder de gerar que tem a alma do mundo. Por causadisso, aqueles dois são chamados demônios porque estão entredeformidade e formosura, como tratamos acima e pouco depoisexplicamos mais extensamente. O terceiro é a ordem dos demôniosque acompanha o planeta Vênus. Estabelecemos também uma ordemtríplice destes. Uns são atribuídos ao elemento do fogo, outros ao doar mais puro e outros ao do ar mais denso e nebuloso. E todos sãodenominados pelo vocábulo grego ¸ ñ ù ò, que significa amor, ¸ñùôåò,isto é, dos amantes.

Os primeiros lançam os aguilhões do amor naqueles homensem que a bílis, o humor colérico e abrasado, impera. Os segundosnaqueles em que impera o sangue, o humor do ar. Os terceiros, então,naqueles em que impera o humor aquoso e terreno, a pituíta e a bílisnegra. Porém, quando todos os homens são feridos pelas flechas deCupido, então são exatamente quatro os seus gêneros. Pois Platãomostrou no Fedro que são muito feridas as almas seguidoras de Júpiter,Febo, Marte e Juno, isto é, de Vênus. E estas, inclinadas ao amordesde os primórdios da sua criação, costumavam amar mais aqueles

Page 118: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 118

homens que teriam nascido sob os mesmos planetas. Daí os de Júpiterserem muito afetados pelos de Júpiter, os de Marte, pelos de Marte eos outros igualmente pelos outros.

Page 119: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 119

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 6 | Como somos capturados pelo amor

ENTENDEI O QUE DIREI de um exemplo sobre os outros três. Qualquerespírito que esteja sob o império de Júpiter escapa para um corpoterreno, concebe para si na própria descida uma certa figura do homema ser forjada, conforme ao astro de Júpiter. Representa-a com exatidãono seu corpo etéreo, como perfeitamente apto ao corpo. Se, do mesmomodo, encontrou na terra a semente misturada, no corpo ainda pintaa terceira figura semelhante à primeira e à segunda, se acaso sucedero contrário, não será assim tão parecida. Várias vezes acontece quedois espíritos, ainda que em diversos espaços de tempo, teriam descidoenquanto Júpiter reinava; e outro, que encontrou na terra as suassementes, teria muito bem concebido um corpo idôneo, segundoaquelas ideias anteriores; outro ainda, por causa da inépcia da matéria,na verdade, iniciara o mesmo trabalho, mas não acompanhara comtanta semelhança o seu modelo. Então, aquele corpo é mais formoso.

Ambos se agradam mutuamente por causa de uma certasemelhança da natureza, mas agrada mais aquele que se julga maisformoso entre eles. Por isso, acontece que qualquer um ama muitonão aqueles mais formosos, mas os seus, isto é, os que nasceram domesmo modo, ainda que menos formosos que muitos outros. Porconseguinte, aqueles que, como dissemos, nasceram sob um mesmoastro, assim se acham, como representação do mais belo destes,insinuando-se pelos olhos no espírito do outro, totalmente semelhante

Page 120: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 120

a uma certa representação, formada a partir da própria reproduçãotanto no corpo etéreo quanto nos interiores do espírito, que é simétricoe consoante a todas as partes. O espírito assim impelido, reconhececomo sua aquela representação vulgar. Decerto, esta é, por suas forças,tal e qual aquela que há muito tempo possui em si mesma, e quedeseja representar no seu corpo mas não pode. Aquele continuamentese aproxima do seu interior e, se algo lhe falta para a perfeita imagemdo corpo de Júpiter, repara-a quando a reforma. Em seguida, ama aprópria representação reformada como um trabalho próprio. Então,acontece que os amantes assim se enganam, visto que julgam que oamado é mais belo. Pois, com o passar do tempo, não observam oamado na sua simples imagem recebida dos sentidos das coisas, mascontemplam-no na representação já reformada da alma à semelhançada sua ideia, que é mais bela que o próprio corpo. Desejam todos osdias contemplar demais aquele corpo, em que por primeiro nasceu arepresentação. De fato, posto que o espírito, ainda com o corpoausente, conserve consigo a sua imagem e isto lhe seja bastante, osespíritos e o olho, como instrumentos da alma, contudo, não aconservam.

Sem dúvida, parecem ser três em nós: alma, espírito e corpo.A alma e o corpo de natureza muito diversa se associam por meio doespírito, que é um certo vapor muito tênue e límpido gerado pelocalor do corpo da parte mais delgada do sangue. Por isso, espalhadopor todos os membros, recebe as forças da alma, e as difunde aocorpo. Recebe uma segunda vez, pelos instrumentos dos sentidos, asimagens dos corpos externos, que por causa disso não podem serfincados na alma, porque a substância incorpórea, que é mais notávelnos corpos, não pode ser por eles formada com a ajuda das imagens.Mas a alma, por toda a parte presente no espírito, facilmente examinaas imagens dos corpos como no espelho nele refletido e, por meiodelas, julga os corpos. E este conhecimento é exposto pelos platônicoscomo sentido. Enquanto as admira, concebe em si mesma imagenssemelhantes àquelas muito mais puras pela sua força. Chamamos talconcepção de imaginação e fantasia. Assim, as imagens concebidassão conservadas com memória fiel. Às vezes a força do espírito é porelas incitada a contemplar as ideias universais das coisas, que em si

Page 121: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 121

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

contêm. E, por esta razão, enquanto pelo sentido distingue certohomem e o concebe na imaginação, no intelecto contempla a razão ea definição comum a todos os homens, através da ideia inata daquelahumanidade, e a imagem que contemplara. Então seria suficiente aoobservador que um dia tivesse visto o amado na representaçãoconcebida do homem formoso junto de si e reformada com memóriafiel. Todavia ao olho e ao espírito é necessária a perpétua presençado corpo exterior, para que pela sua ilustração continuamente sereacendam e se confortem e se agradem, assim como os espelhoslevam a imagem pela presença do corpo e pela ausência a deixam.Logo, estes e o espírito, por causa de sua carência, buscam a presençado corpo, visto que, sendo muito condescendente com eles, éobrigado a procurá-la.

Page 122: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 122

VI, 7 | Do nascimento do amor

MAS AGORA VOLTEMOS a Diotima. Quando esta contou o amor no númerodos demônios, por aquelas razões que narramos, mostrou a sua origema Sócrates. No nascimento de Vênus, pondo-se à mesa dos deuses, Poro, filhodo Conselho, embriagado de néctar, misturou-se com Pênia58 no jardim de Júpiter.Desta relação nasceu o amor.

No nascimento de Vênus, isto é, quando a mente do anjo e aalma do mundo, que pela dita razão chamamos de Vênus, nascem dasuma majestade de Deus. Põe-se à mesa com os deuses, isto é, Céu, Saturnoe Júpiter se alimentavam dos próprios bens. Pois, quando a inteligênciano anjo e a força de gerar na alma do mundo, que propriamentechamamos duas Vênus, davam à luz, já era supremo aquele deus aquem chamam Céu; além disso, existia a essência e a vida no anjo, osquais chamamos Saturno e Júpiter, e havia também na alma do mundoo conhecimento das coisas superiores e a agitação dos corpos celestes,que outra vez chamamos Saturno e Júpiter. Poro e Pênia indicamabundância e pobreza. Pois Deus é denominado conselho e fonte deconselho, porque é verdade e bondade de todas as coisas, em cujoesplendor todo conselho se torna bom, cuja bondade todo conselhotende a adquirir. O nascimento de Júpiter, compreende a fecundidade davida angélica; na qual, quando desce aquele Poro, isto é, o raio deDeus, misturado a Pênia, isto é, à própria carência primeira, cria oamor. No princípio o anjo existe e vive por Deus. Até que se denomine

Page 123: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 123

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

estas duas, essência e vida, Saturno e Júpiter. Tem o poder decompreender que julgamos ser Vênus. Tal poder é por sua naturezadisforme e obscuro, a não ser que seja iluminado por Deus, como aforça do olho diante da proximidade do sol. Julgamos que Pênia éessa obscuridade, como falta e ausência de luz. Porém, a força decompreender por um certo instinto natural voltada ao seu pai retira oseu raio divino, que é Poro e abundância, no qual se encerram, comonuma certa semente, as razões de todas as coisas. Aquele instintonatural é aceso pelas chamas deste raio. Este incêndio e este ardorque nasce da primeira obscuridade e da centelha que se aproxima, éo amor nascido da carência e da abundância.

No nascimento de Júpiter, isto é, gerado sob a sombra da vida.De fato, quando logo depois do vigor da vida nasce o ardor decompreender. Mas por que apresentam Poro embriagado de néctar?Porque transborda de orvalho de vivacidade divina. Por que o amoré em parte rico e em parte carente? Porque não possuímos isto porcompleto, nem costumamos desejar inteiramente aquilo de quecarecemos. Mas, visto que alguém procura aquilo de que carece, quempossui toda a coisa o que mais buscaria? Além disso, porque quandoalguém deseja o desconhecido, é necessário que de algum modo eleexista em nós antes que o amemos. E não só o conhecido. Na verdade,costumamos odiar as coisas por nós conhecidas, mas deve ser pornós julgado como bom e agradável. E não parece que isto basta àardente benevolência, a não ser que julguemos facilmente poderperseguir aquilo que contamos ser agradável. Logo, quem ama algo,decerto ainda não possui por inteiro aquilo na própria coisa. Todavia,reconhece este mesmo pelo conhecimento do espírito, e julga-oagradável e confia poder persegui-lo. Este mesmo conhecimento,deliberação, esperança, como presente em outro, é o pressentimentodo bem ausente. Na verdade não arderia se não agradasse a estechamamos Poro, confusas e explicadas já naquele poder inerente aVênus, começam a brilhar com mais clareza.

Sem dúvida, assim como o anjo existe para Deus, assimtambém a alma do mundo existe para o anjo e para Deus. Na verdade,curvando-se para as coisas superiores, delas igualmente recebe o raioe se inflama e gera o amor que partilha da abundância e da carência.

Page 124: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 124

Daí ornada de formas de todas as coisas, pelo seu exemplo move oscéus e com o poder de gerar cria formas semelhantes na matéria doselementos. Aí de novo vemos duas Vênus. De fato, uma é força destaalma para conhecer as coisas superiores; a outra força, então, é mãedas coisas inferiores. Na verdade, aquela não é própria da alma, masimitação da contemplação angélica, esta, contudo, é própria danatureza da alma. Por isso, quantas vezes colocamos uma Vênus naalma, compreendemos a sua força natural, a sua própria Vênus.Quantas vezes colocamos duas, uma é comum ao anjo, a outra éprópria a esta mesma alma. Logo existem duas Vênus na alma: aprimeira celeste, e a segunda, então, vulgar. Ambas têm o amor, aceleste para meditar a beleza divina; a vulgar para criar esta mesmabeleza na matéria do mundo. Mas aquele vê tal decência, que estaquer entregar por suas forças à máquina do mundo. Mas, na verdade,cada uma é levada a gerar a beleza, porém cada uma a seu modo. AVênus celeste, por sua inteligência, esforça-se por retratar em simesma a beleza mais aperfeiçoada das coisas superiores; a vulgar,por criar em si a beleza divina, concebida pela fecundidade dassementes divinas. Por isso, um dia chamamos aquele amor de Deusporque se dirige às coisas divinas, tanto quanto é possível demônio,porque está entre a privação e a abundância. O outro amor é sempredemônio, porque parece ter uma comoção para o corpo e se inclinamais à região inferior do mundo. Na verdade, este é isento de Deus econveniente à natureza dos demônios.

Page 125: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 125

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 8 | Em todos os espíritos existem dois amores, e, naverdade, cinco nos nossos

ENTRETANTO ESTAS DUAS Vênus e os dois amores existem não só naalma do mundo, mas ainda nos espíritos das esferas, estrelas, demôniose homens. E visto que todas as almas com ordem natural se dirigemàquela primeira na série competente, é necessário que os amores detodos também assim se dirijam àquele seu amor para que por eledependam somente do outro. Por causa disso, Diotima costumava,na verdade, chamar apenas esses demônios aquele grande demônio.Aquele que, iminente a todos pelo mundo todo, não deixa os coraçõesficarem indolentes, mas aos poucos os incita a amar.

Em nós, porém, não são encontrados dois, mas cinco amores.Decerto, os dois extremos são demônios. Os três do meio não sãoapenas demônios, mas sentimentos. Com certeza, na mente do homemé eterno o amor para descobrir a beleza divina, por cuja graçaseguimos os estudos da filosofia e os ofícios da justiça e da piedade.Há ainda no poder de gerar certo oculto estímulo para criar filhos. Eé perpétuo este amor, pelo qual somos continuamente incitados, aretratar na imagem da prole gerada certa semelhança desta belezasuperior. Esses dois amores perpétuos em nós são dois demônios,que Platão prediz estar sempre presente nos nossos espíritos, dosquais um eleva às coisas superiores, o outro faz descer às inferiores;um é o calodaemon, isto é, o demônio bom; o outro, cacodaemon, isto é,

Page 126: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 126

o demônio mau. Em realidade, ambos são bons, porque são declaradosnecessários e honestos tanto à criação de filhos quanto à indagaçãoda verdade. Sem dúvida, por isto o segundo é chamado mau, porque,em virtude do nosso abuso, frequentemente nos perturba e retira,sobretudo, o espírito da sua parte boa, que consiste na especulaçãoda verdade, e afasta-o para os ofícios mais vis. No meio destes, estãoem nós três amores que, visto não serem iguais no espírito, comoesses muito firmes, mas começam, crescem, decrescem e acabam,serão mais retamente chamados movimentos e sentimentos quedemônios. Destes, um se distancia em intervalos iguais de ambos osextremos. Os outros dois se inclinam a uma das duas partes. Mas,quando a figura de algum corpo, por causa da preparação da matéria,é tal que a mente divina a contém na sua ideia, diante dos olhos noespírito penetra pelos olhos, agrada logo ao espírito, quando está deacordo com aquelas razões, que como modelos da própria coisa oraa nossa mente, ora o poder de gerar, conserva as coisas outrorarecebidas por graça dos deuses. Daí, como dissemos, o amor se insinuatríplice. Com efeito, estamos prontos e fomos gerados dispostos àcriação ou para a vida contemplativa, ou para a ativa, ou para avoluptuosa. Se para a contemplativa, pela beleza da forma corporalsomos logo animados à consideração do espiritual e divino. Se para avoluptuosa, de repente, pela visão, descemos ao desejo de tocar. Separa a vida ativa e moral, persistiremos naquele único prazer de vere conversar. Aqueles são tão engenhosos que se arrastam muito aoalto, esses são tão pobres que se afundam até o ínfimo, estes comomédios permanecem na região média.

E, assim, todo amor se inicia pela visão. Mas o amor dohomem contemplativo pela visão sobe à mente. O do voluptuoso,pela visão desce ao tato. O do ativo permanece na visão. O amordaquele se converte mais ao demônio superior que ao inferior, e dessese abaixa mais ao ínfimo que ao alto; o deste se distancia de ambosem intervalos iguais. Esses três amores recebem três nomes. O amordo homem contemplativo é denominado divino; humano, o do ativo;e selvagem, o do voluptuoso.

Page 127: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 127

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 9 | Que paixões existem nos amantes por causa damãe do amor

ATÉ O PRESENTE declaramos que o amor é um demônio gerado pelaabundância e carência e dividido em cinco espécies. Pelas palavrasde Diotima trataremos, em seguida, quais sentimentos tambémnascem nos amantes pela natureza de tal amor.

Diz: Porque o amor foi criado no nascimento de Vênus, acompanha ecultua Vênus e é tomado pelo desejo do belo, visto que a própria Vênus é muitobela. Porque é filho da inópia, é árido, magro e esquálido, de pés descalços,humilde, sem moradia, sem cama e sem nenhuma cobertura, dormindo nasportas na rua, sob o céu e, enfim, sempre necessitado. Porque é filho daabundância, arma cilada às pessoas belas e boas. É viril, audaz e feroz,veemente, abrasador, sagaz e caçador, fazendo sempre novas máquinas de guerra,inclinado à prudência, eloquente, filosofando por toda a vida, encantador efascinante, poderoso, feiticeiro e sofista. Por sua natureza não é de todo imortal,nem mortal. Mas algumas vezes cresce e vive num mesmo dia, outras tantasdesborda. Algumas vezes se apaga e de novo revive pela natureza do pai. Oque na verdade adquiriu, lhe escapa. Por conseguinte, o amor nunca é miserávelnem tampouco opulento. Além disso, ainda é colocado entre a sabedoria e aignorância.

Estas coisas disse Diotima. Nós explicaremos as quepudermos em poucas palavras. É lícito que estas coisas estejampresentes em todos os gêneros dos amores, contudo parecem maisclaras para nós nas três como mais manifestas.

Page 128: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 128

Depois de gerado segue Vênus no nascimento de Vênus, isto é, geradocom aqueles ânimos superiores, que denominamos venéreos, reconduzos espíritos dos homens às coisas superiores. E é tomado pelo desejo dobelo, visto que a própria Vênus é muito bela, isto é, incita as almas aodesejo da suprema e divina beleza quando ele mesmo nascera naquelesânimos, que, próximos a Deus são mais ilustrados pela beleza deDeus e nos estimulam a esses mesmos raios.

Além disso, porque a vida de todos os animais e árvores e afertilidade da terra consistem no humor e no calor, para demonstrara carência do amor, Diotima indicou que a um e outro faltava tantoo humor quanto o calor, quando disse árido, magro e esquálido. Logo,quem ignorará serem áridas e secas aquelas coisas que o humorabandonou? Quem do mesmo modo dirá que uma palidez e umaaspereza vêm de outro lugar além do enfraquecimento do calorsanguíneo?

Ainda, os mortais são deixados pálidos e magros por um amordiuturno. Certamente a força da natureza quase não basta às duasobras ao mesmo tempo. O esforço do espírito amante se revolvetodo no pensamento constante do amado. Ali está aplicada toda forçae união natural. Por esta razão o alimento não se desfaz perfeitamenteno estômago. Acontece que a maior parte se volta nos restossupérfluos, e aquela menor, então, é trazida crua para o fígado. Alitambém mal se desfaz pela mesma razão. Por isso, o sangue raro ecru de lá se espalha pelas veias. Assim, todos os membros seenfraquecem e empalidecem pela carência e crueza do alimento.

Por causa disso, onde o esforço constante do espírito é levado,para ali voam os ânimos, que são triunfos e instrumentos do espírito.Os ânimos são criados no coração pela parte mais delgada do sangue.O espírito do amante é arrastado para a imagem do amado gravadana fantasia e para o próprio amado. E os ânimos são arrastados domesmo modo. Voando para lá continuamente se dissolvem. Por issoé necessário um estímulo muito frequente do puro sangue para recriaros ânimos consumidos, em que as partes mais delgadas do sanguesão todos os dias exaladas para restaurar os ânimos. Por causa disso,sobrevive sujo, espesso, árido e negro no sangue, quando o puro eclaro foi dissolvido. Depois o corpo seca e se torna áspero, e daí

Page 129: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 129

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

saem os amantes melancólicos. Na verdade é produzida pelo sangueseco, espesso e negro a melancolia, isto é, a bílis negra, que com seusvapores cobre toda a cabeça, seca o cérebro, não deixa de agitar aalma dia e noite com imagens sinistras e horrendas. Lemos que istoaconteceu ao filósofo Lucrécio59 por causa do amor, e que, maltratadoprimeiramente pelo amor e depois pela loucura, enfim se matou.

Estas coisas costumavam acontecer para aqueles que,consumidos pelo amor, transferiram a concupiscência ao abraço queé próprio da contemplação. Com efeito, suportamos com maisfacilidade o desejo de ver que a vontade de ver e de tocar. Como osantigos médicos observassem estas coisas, disseram que o amor éuma paixão mais próxima da paixão melancólica. O médico Rhazes60

recomendou que ela fosse tratada com o coito, jejum, embriaguez epasseio. E nem só o amor restitui tais homens, como ainda todos osque por natureza são assim nascidos mais inclinados ao amor.Entretanto, são assim aqueles em que a bílis, que chamam cólera, oua bílis negra, que chamam melancolia, prevalece sobre outroshumores. A bílis é quente e seca; a bílis negra, seca e fria. Aquelaocupa o lugar do fogo no corpo dos amantes, e esta, o da terra.Portanto, os melancólicos áridos e secos são concebidos à imitaçãoda terra; os coléricos ásperos e pálidos à imitação do fogo. Oscoléricos, precipitados, pelo ímpeto do humor do fogo são arrebatadosao amor. Os melancólicos pela preguiça do humor da terra amamcom mais lentidão. Na verdade, pela estabilidade do próprio humor,depois que são seduzidos, persistem por muito mais tempo.

Logo, com razão, o amor árido e áspero se forma quando oshomens que são assim costumam favorecer ao amor mais que osoutros. O que julgamos acontecer, sobretudo por isso, porque oscoléricos são consumidos pelo incêndio da bílis, os melancólicos sãocorroídos pela aspereza da bílis negra. O que Aristóteles afirmavano sétimo livro Dos Costumes. E assim o humor molesto angustiasempre a ambos e impele a procurar algum conforto maior e contínuocontra a contínua inquietação dos humores. Assim são os prazeresda música e do amor. De fato, não podemos consagrar um esforçotão extensamente a nenhum outro divertimento quanto aos encantosda música e das vozes e aos atrativos da beleza. Mas os sentidosrestantes logo se fartam. Porém, a visão e a audição são alimentadas

Page 130: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 130

por muito mais tempo pelos murmúrios e pela pintura do frívolo. Enão são apenas mais seguros os prazeres destes sentidos, mas aindamais parecidos com a união humana. Na verdade, o que há de maisconveniente aos ânimos do corpo humano que as vozes e figuras doshomens? Sobretudo daqueles que não só agradam pela semelhançada natureza como também pela graça da beleza. Por essa razão, oshomens coléricos e melancólicos seguem as atrações do canto e dabeleza como único remédio e conforto da desagradabilíssima uniãode si mesmos. E por isso são mais propensos aos encantos de Vênus.E Sócrates, que Aristóteles julgou melancólico, declarava que elepróprio era o mais propenso de todos à arte de amar. E podemosjulgar o mesmo da melancólica Safo, como ela própria afirmava. E onosso Maro, cuja imagem indica ter sido colérico, embora casto, foi,entretanto, mais propenso a amar.

De pés descalços. Por causa disso, Diotima pintou o amor assim,visto que o amante é tão dominado nos assuntos do amor que, naverdade, em outros interesses da vida tanto privados quanto públicos,não é cauteloso como convém; mas, temerário, é levado por toda aparte sem nenhuma previdência dos riscos. Por isso, em seusprocessos, incorre em perigos constantes, não de modo diferentedaqueles que não mantêm os seus pés na superfície. Donde sãoincomodados por numerosos espinhos e pedras.

Humilde. O vocábulo grego de Platão, ÷áìáéðåôÞò, significavoando pelas regiões mais baixas da terra. De fato, muitas vezes, porcausa do abuso do amor, vê que os amantes vivem sem sentido e quepor cuidados volúveis perecem os grandes bens. Por certo, estes atése entregam ao amado para que se esforcem de todo em passar paraeles e imitem-nos tanto nas palavras quanto nos gestos. Sem dúvida,quem não se debilitará pela imitação muito frequente de meninos emeninas? Que menino ou mulher não escapará?

Sem moradia. A morada do pensamento humano é a própriaalma; a da alma, o ânimo; a deste ânimo, o corpo. Três são oshabitantes, três as moradas. Cada um se exila do natural domicíliodeles afastado. Pois todo pensamento não se volta para a disciplina etranquilidade do seu espirito, mas para os deveres do amado. E aalma abandona o serviço do corpo e do seu ânimo, esforça-se porpassar para o corpo do amado. O ânimo, carro da alma, enquanto o

Page 131: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 131

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

espírito se precipita para outro, voa também soprando outro lugar. Eassim sai da morada o próprio pensamento, a alma e o ânimo. Ainsânia e a perturbação acompanham a primeira saída; a segunda, adebilidade e o medo da morte; a terceira, a precipitação, o pavor e osuspiro. Por conseguinte, o amor se priva do repouso desejado dospróprios Lares e da sede natural.

Sem cama e sem nenhuma cobertura. Na verdade não tem onderepousar nem com que se abrigar. De fato, quando cada coisareivindica a sua origem, a centelha do amor, instigada no desejo doamante pela interposição do corpo formoso, tenta voar depressa parao próprio corpo. Mas por este impulso transporta voando consigo odesejo e o desejado. Ó sorte cruel dos amantes! Ó vida mais deplorávelque qualquer morte, a não ser talvez que o vosso espírito, tirado dopróprio corpo pela violência do amor, despreza, além disso, a figurado amado e se retira do templo do divino esplendor, onde enfimrepousará e se contentará!

Quem igualmente negará que o amor anda por aqui e por alinu e sem teto? Quem de fato ocultará o amor? O olhar terrível, taurino,atento o descobre; a conversa roubada o declara; o rubor e a palidezdo vulto, os frequentes suspiros, a agitação dos membros, a queixaperpétua, os elogios importunos, a súbita indignação, a vaidade, ainsolência, a petulância, a suspeita vã, e os serviços mais vis omostram. De fato, assim como a luz do raio acompanha o calor nosol e no fogo, assim os indícios externos seguem o incêndio íntimodo amor.

Dorme à porta. As portas do espírito parecem ser os olhos e osouvidos. Daí, na verdade, muitas coisas são trazidas para o espírito eas disposições e costumes do espírito rompem com mais clareza pelosolhos. Os amantes quase sempre se consomem em ver as figuras eouvir as vozes. Raras vezes as suas mentes se prendem a esta mesma.Com mais frequência vaga pelos olhos e ouvidos. Por isso, diz-se quese deitam às portas.

E diz-se que jazem no caminho, pois a beleza do corpo deveser algum caminho, pelo qual começamos a subir para uma belezamais elevada. Quem, entretanto, se prostra aos torpes desejos ouainda é atormentado no aspecto por mais tempo que convém, pareceque fica no próprio caminho, e se dirige sobretudo para o seu fim.

Page 132: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 132

Sob o céu. Com razão. De fato, muito ocupados numa única coisa, nãoconsideram nada que devem fazer. E assim, levando a vida ao acaso,com todos os perigos da sorte, como que nus, levam a vida sob océu, e estão expostos a todas as tempestades.

Sempre pobre pela natureza da mãe. Sem dúvida, como aprimeira origem do amor fora a necessidade e, o que é natural, nãopode ser de todo extirpada, o amor é sempre pobre e sempresedento. Mas por tanto tempo quanto falta para conseguir algo, oardor do amor se abrasa. Visto que é possuído todo e de todas aspartes, quando cessa a carência, acaba o ardor mais que perdurasem pobreza.

Page 133: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 133

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 10 | Quais os dotes dos amantes por causa do pai doamor

ESTAS COISAS SEGUEM a inópia, mãe do amor, e na verdade as contráriasao seu pai, a abundância. As que verdadeiramente são contrárias,qualquer um reconhece pelos conhecimentos supracitados. É acimadescrito como simples, incauto, vil, fraco. Aqui são postos os seuscontrários. De fato, diz-se cálido. Caçador, sagaz, maquinador, traidor,inclinado à prudência, filósofo, viril e audaz, veemente, eloquente,mago e sofista. O amor, que em outros negócios faz o amantedescuidado e incapaz, nos assuntos do amor torna-o astuto e ardente,o que em modos admiráveis espreita a graça do amado, quer seduzacom enganos, quer engane com docilidades ou afague com o discursoou amanse com o canto. Igualmente o furor, que o tornara brandocom a docilidade, digo, o mesmo furor serve as armas, a ferocidadedos amantes contra os indignados, por isso tranquilidade para os quelutam e força indestrutível.

O amor, como dissemos, conduz à origem pelo olhar. O olharestá entre a mente e o tato, daí o espírito do amante é sempre separadoem partes contrárias, e por sua vez é jogado para cima e para baixo.Algumas vezes nasce o desejo de tocar, outras, na verdade, o castodesejo da beleza celeste e ora aquela ora este prevalece e conduz.Nestes, aqueles são honestissimamente educados e excedem a sutilezado engenho e nos outros muitas vezes a supera. Os que se prostram

Page 134: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 134

aos pés do corpo são com razão julgados áridos, nus, humildes, fracose inertes. Áridos, porque sempre abrasam, nunca se realizam. Nus,porque como temerários se sujeitam a todos os perigos e como muitoimprudentes e incultos são considerados infames. Humildes, porquenão pensam nada elevado e grandioso. Fracos, porque sucumbem aostorpes desejos. Inertes, porque são tão pobres que, quando o amor osatrai, ignoram e permanecem no caminho, e não chegam ao fim. Naverdade, os contrários parecem opostos a estes, pois alimentados dericos sólidos do espírito se realizam mais e amam com maistranquilidade e conservam o pudor. Negligenciam a beleza ociosa docorpo e se elevam mais ao alto e, como que munidos de armas efrívolos, retiram de si os prazeres e subjugam os sentidos da razão.Estes, como os mais habilidosos e os mais prudentes de todos, assimfilosofam para que pelas figuras dos corpos como vejam algunsvestígios ou odores muito cautelosos, com perspicácia investiguema decência dos movimentos sagrados do espírito a partir destes, eassim caçando alcancem o que com alegria desejam.

Sem dúvida, tão grande presente provém da abundância, paido próprio amor, porque o raio da beleza, que é a abundância e o paido amor, tem esta força para que venha daqui e dali, e em si refletindoatraia o amante. Entretanto desce primeiramente de Deus para oanjo e para a alma, como transpondo matérias frágeis, e com facilidadeespalha da alma para o corpo preparado para acolhê-lo, brotasobretudo deste mesmo corpo do homem mais novo pelos olhos,como janelas muito luminosas do espírito. Voa pelo ar muito longe,e, penetrando nos olhos do mais velho, transpassa a alma, excita odesejo, conduz a alma ferida e o desejo aceso à sua cura e refrigério,enquanto arrebata-o consigo de onde ele próprio descera, mas aospoucos primeiro para o corpo do amado, em segundo lugar para aalma, em terceiro para o anjo, e, por fim, para Deus, primeira origemdo seu esplendor. Esta caça é útil, esta é uma feliz caçada dosamantes. Em todo o caso um familiar do nosso Sócrates atribui-lheesta caça no Protágoras de Platão. De onde vens, então, diz, ó Sócrates?Sem dúvida, julgo que voltas daquela caça para a qual a honestaíndole de Alcibíades costuma te levar.

Além disso, chama o amor sofista e mago. Platão, no diálogo doSofista61, define sofista como um argumentador ambicioso e astuto,

Page 135: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 135

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

que com espertezas de sagacidade nos mostra o falso pelo verdadeiroe pensa em contradizer nas conversas aqueles que consigo mesmodiscutem. Tanto os amantes quanto os amados, às vezes, suportamisto. Pois os amantes, obcecados pelas névoas do amor, com frequênciatomam as coisas falsas por verdadeiras, enquanto julgamos os amadosmais formosos, espirituosos e melhores do que são. Pela violênciado amor eles próprios se contradizem. Na verdade, a razão delineiauma coisa e a cobiça acompanha outra. Os seus conselhos mudampelo império do amado, eles próprios se contrariam para criar ocostume aos outros. Muitas vezes ainda os formosos são enredadospela astúcia dos amados e com facilidade se tornam mais perseverantesdo que foram anteriormente.

Mas por que julgamos o amor mago? Porque toda a força damagia consiste no amor. A obra da magia é uma contração de um aoutro por semelhança de natureza. Entretanto, as partes deste mundo,como membros de um único animal, todos dependentes de um únicoautor, são conjuntamente associados por comunhão de uma únicanatureza. Por isso, assim como em nós o cérebro, pulmões, coração,fígado e membros restantes atraem, por sua vez, algo para si e seajudam mutuamente e sofrem por um que padece pelo outro, assimos membros deste grande animal, isto é, todos os corpos do mundodo mesmo modo ligados, ora um ora outro, tomam de empréstimo asnaturezas e são, por sua vez, tomados de empréstimo. Do parentescocomum nasce o amor comum, e do amor, a contração comum. Logo,esta é a verdadeira magia. Assim, da concavidade do orbe da Lua, ofogo é atraído para o alto pela congruência da natureza, e também aágua é tirada do seu lugar. Assim, o magneto desvia para si o ferro; oeletro, as limalhas; o enxofre, o fogo; o Sol, muitas flores e folhas; aLua, as águas; Marte costuma incitar os ventos, e várias ervas tambématraem para si vários tipos de animais. Nos assuntos humanos o prazeratrai a cada um. Logo as obras da magia são obras da natureza; e,decerto, a arte é ministra. Na verdade a arte, quando falta algo aoparentesco natural, acrescenta isto aos tempos oportunos pelosvapores, números, figuras e qualidades. Como na agricultura, anatureza cria as sementes e a arte as prepara. Os antigos atribuíramesta arte aos demônios, porque perceberam qual seria a sociedade

Page 136: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 136

das coisas naturais, o que convém a cada um, como a concórdia dascoisas seria reordenada onde falta. Alguns são contados como amigosentre estes ou por uma certa semelhança da natureza como Zoroastroe Sócrates, quer como amados pelo culto, como Apolônio de Tiana62

e Porfírio. Por isso, diz-se que os sinais, as vozes e os presságiostocam com diligência, ou ainda os oráculos pelos que dormiam e asimagens pelos demônios. Quem parece ter se tornado mago poramizade aos demônios, como os demônios são mágicos, sãoconhecedores da amizade das próprias coisas. E toda a natureza édenominada mágica pelo amor recíproco.

Alguém ainda mais formoso nos encanta pelos ternos olhos.Os homens com a força da eloquência e modulações de versos, comoem alguns encantamentos, tomam-nos e os conciliam a si. Por causadisso, acalmam e se apoderam com culto e presentes não menos quecom feitiços. Por esse motivo, ninguém duvida que o amor é ummago, visto que toda a força da magia consiste no amor e que otrabalho do amor se realiza através de fascinações, encantamentos efeitiços.

Não é de todo mortal nem também imortal. Não é mortal, porquedois amores, aqueles dois que chamamos demônios, são perpétuosem nós. Não é imortal, porque os três medianos todos os dias sãomudados, crescem e decrescem. Além disso, no desejo dos homens,desde os inextinguíveis primórdios da vida, há um fervor inato quenão permite que o espírito repouse, e sempre o impele a se aproximarcom cuidado de alguma coisa. Diversos são os caráteres dos homense não se vive com uma única promessa. Donde aquele contínuo fervorda concupiscência, que é o amor natural, incita uns aos estudos dasletras, outros à música ou às figuras, outros à honestidade doscostumes ou à vida religiosa, outros às honras, alguns a acumularriquezas, quase todos à luxúria do ventre e de Vênus, outros a outrascoisas, e o mesmo homem em diversas idades a diversas coisas. E,assim, o fervor é igualmente chamado imortal e mortal. Imortal, porquenunca se extingue e muda a matéria antes que se dissipe. Mortal,porque não se recosta sempre sobre a mesma coisa, mas busca novosprazeres pela mudança de natureza ou pela saciedade duradoura pelaabundância de uma mesma coisa, e o que faltou a algo de algumamaneira revive em outro. É ainda por isso chamado imortal, porque a

Page 137: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 137

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

figura amada é para sempre amada. Por quanto tempo permanece,pois, no mesmo homem, tanto tempo é nele mesmo amada. Quando,na verdade, dele sai, não é mais a mesma figura nele, que antesamavas. Não amarás decerto esta nova, porque não a amaras antes;na verdade, não deixas de amar aquela anterior. Isto importa tanto,que antes a examinavas em alguém, agora por certo a vês apenas emti mesmo, e amas sempre esta mesma, gravada na memória, e quantasvezes se apresenta aos olhos do espírito, tantas vezes incita-te a amar.Por isso, quantas vezes temos em nós aquele outro muito amado,tantas vezes nos comovemos, quer saltem ou se agitem as vísceras,quer se enfraqueça o fígado ou palpitem os olhos e o vulto atraiavárias cores para aquele contrário. Na verdade, a sua presença traz afigura latente no espírito do amante pelos olhos e igualmente,soprando, reanima os fogos adormecidos sob as cinzas. Por esta razãoo amor é chamado imortal. Mas, por isso também, é considerado mortal,porque, ainda que os vultos permaneçam sempre gravados no peito,não se oferecem, contudo, do mesmo jeito aos olhos da mente. Porconseguinte, a benevolência parece em momentos alternados queimare esfriar.

Acrescente-se a isto que o amor selvagem e humano não podenunca existir sem indignação. Quem não se indignará com aqueleque lhe arrebatou o próprio espírito? Que, na verdade, pelas coisasrestantes, a liberdade seja tão grata quanto molesta é a escravidão.E, então, ao mesmo tempo, odeias e amas as pessoas formosas; odeiasenquanto são ladrões e homicidas, enquanto espelhos que brilhampelo fulgor celeste te constranges a admirá-las e amá-las. O que farás,ó infeliz? Não sabes para onde te voltas, ó perdido, não sabes? Quandoisto acontecer não queiras estar com o homicida. Não queiras tambémviver sem a sua bem-aventurada presença. Quando não podes estarcom aquele que te perde e mata, não podes viver sem aquele que tefurta com tão admiráveis atrativos e te reivindica todo para si. Desejasfugir daquele que te queima com suas chamas. Desejas ainda a ele teprender, para que, próximo àquele mesmo que te possui, também teunas a ti. Procuras a ti mesmo fora de ti, ó infeliz, e te unes ao ladrão,a fim de que, capturado, um dia te recuperes. Ó insano, na verdadenão queres amar, porque não queres morrer. Não queres tambémnão amar porque julgas que deves servir à representação dos céus.

Page 138: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 138

Assim, por esta alternativa, acontece que, assim como direi, o amorseca e renasce a cada momento.

É colocado também por Diotima entre a sabedoria e a ignorância.Pois o amor acompanha aquelas coisas que são belas. A mais bela detodas é a sabedoria. Logo procura a sabedoria. Quem procura asabedoria não a possui por completo. Quem, pois, busca as coisasque estão presentes? E também destas não carece de todo. Naverdade, apenas nele é sábio, porque reconhece a sua ignorância.Quem na verdade não sabe que é ignorante, ignora tanto as própriascoisas quanto a sua ignorância e não reclama o reconhecimento dascoisas das quais ignora privar-se. Portanto, o amor da sabedoria,porque está em parte privado da sabedoria, é colocado entre asabedoria e a ignorância.

Esta, disse Diotima, é a condição do amor. Contudo, anatureza da suprema beleza, isto é, deste mesmo belo é que é delicado,perfeito e bem-aventurado. Delicado, enquanto por uma certa suavidadeatrai para si o desejo de tudo. Perfeito, enquanto seduz estas coisas,ilustra as que se aproximam com seus raios e as aperfeiçoa. Bem-aventurado, enquanto conclui as coisas ilustradas com os bens eternos.

Page 139: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 139

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 11 | Qual a utilidade do amor pela sua definição

NA VERDADE, DEPOIS QUE DIOTIMA expôs qual é a origem do amor ecomo ele mesmo é, mostra para onde tende e a que conduz os homens.Por certo, desejamos todos ter bens, e não apenas ter, mas ter sempre.Na verdade, cada bem dos mortais é mudado e se extingue, e logo sedissipam todos, a não ser que todos os dias fossem criados novosbens no lugar dos que se vão. Para que, por consequência, de qualquermodo os bens sempre perdurem em nós, desejamos recriar aquelesperdidos. Produzindo-os se faz o restabelecimento. Daí nasce emtodos o instinto da reprodução. Contudo, como a reprodução restituias coisas mortais quando continuam semelhantes às divinas, ela ésem dúvida um dom divino. Semelhantes às coisas divinas, porqueas disformes são contrárias às belas e as formosas são semelhantes eamigas. Por isso, a reprodução, nele, é um trabalho divino que é belo,e com perfeição e facilmente se consome. As contrárias, ao contrário.Por causa disso, aquele estímulo de reprodução busca as coisasformosas e rejeita as contrárias.

Reclamas o que é o amor dos homens? O desejo da reproduçãono belo para conservar a vida perpétua nos mortais. Assim é o amordos homens que vivem na terra, este é o fim do nosso amor. Naverdade, diz-se que naquele mesmo tempo em que cada um dosanimais vive, e é o mesmo da infância à velhice, ainda que se diga omesmo, nunca contém em si a mesma coisa, mas se faz sempre novo,

Page 140: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 140

como diz Platão, e se livra das coisas velhas, segundo os pelos, acarne, os ossos, o sangue e todo o corpo até o fim. E isto não ocorreapenas no corpo, mas também na alma. Costumes, usos, opiniões,desejos, dores e temores são continuamente trocados e por istonenhum persiste o mesmo e igual; por certo as primeiras coisas sãoabolidas e as novas sucedem e se fortificam. Além disso, o que émais admirável, não só algumas ciências também se evaporam, outrassurgem, e nem sempre somos os mesmos segundo as ciências, comotambém qualquer uma das ciências sofre quase o mesmo. Com efeito,a meditação e a lembrança são como uma repetição da ciênciaantecessora. Pois o esquecimento parece ser a saída da ciência. Naverdade, a meditação, recolocando sempre a nova memória no lugarda que se foi, conserva a ciência, que parece ser a mesma. Em todoo caso, por este pacto, quaisquer que sejam as coisas mutáveis noespírito ou no corpo, se conservam, não porque são de todo sempreas mesmas, pois isto é próprio das coisas divinas, mas porque o quese consome e se vai deixa algo novo semelhante a ele. Certamente,com este remédio as coisas mortais se fazem semelhantes às imortais.

Portanto, em cada parte da alma, umas vezes contempla ascoisas para o conhecimento, outras vezes o corpo é por ela regido e oamor da reprodução é gerado para conservar a vida perpétua. O amorque está nesta parte acomodada para reger o corpo logo desde oinício nos impele a receber a comida e a bebida, a fim de que porestes alimentos sejam gerados os humores com os quais se restabeleceo que sem interrupção flui do corpo. Num corpo adulto, o própriosêmen se inquieta e provoca o desejo de procriar, visto que não podepermanecer sempre em si mesmo, permanece reservado no filho muitosemelhante a si para sempre. Também o amor da reprodução,atribuído à parte da alma que conhece, faz com que a alma ambicionea verdade, como o próprio sustento, com o qual se nutre e cresce aseu modo. E se alguma coisa por esquecimento sai do espírito ou seentorpece pela indolência e pelo descuido, como que reproduz noestudo da recordação e da meditação, e traz de volta à mente ou oque por esquecimento perecera ou o que se entorpecera pelaindolência. Na verdade, estimula com o ardentíssimo desejo de ensinare de escrever o quanto o espírito já cresceu, como pela ciência gerada

Page 141: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 141

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

nos escritos e nos espíritos dos discípulos a inteligência do preceptore a verdade permanecem eternas entre os homens. E assim tanto ocorpo quanto a alma nos assuntos humanos parecem poder durarsempre em cada homem após a sua morte.

Um e outro amor acompanha as coisas belas. Convém saberque aquele que rege o corpo governa o próprio corpo o quanto cobiçase nutrir com os alimentos mais delicados, agradáveis e belos e geraruma prole formosa com uma bela mulher. E o que pertence ao espíritose compraz em instruí-lo com disciplinas muito distintas e agradáveise, escrevendo com uma haste ornada e bela, fazer uma ciência muitosemelhante à sua, e, ensinando, criar num certo espírito muito belo epuro, direi, num espírito agudo e ótimo. Por certo, não distinguimoso próprio espírito. Por isso não contemplamos a sua beleza.Entretanto, vemos o corpo, sombra e imagem do espírito. E, assim,olhando pela sua imagem, presumimos que é um belo espírito numcorpo formoso. Por esta razão, de muito bom grado, ensinamos oshomens formosos.

Page 142: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 142

VI, 12 | Dos dois amores e porque a alma nasce nasupracitada verdade

JÁ DISSEMOS MUITO sobre a definição do amor. Agora, porém, declaramosa distinção que há em Platão pela fecundidade do espírito ou docorpo sobre o amor. Diz: O corpo que gera todos os homens está prenhe, eestá prenhe o espírito. Desde o início no corpo estão intercalados ossêmens de todos os seus. Então, pelas séries estabelecidas dos tempos,os dentes rompem, aparecem os pelos, a barba se espalha, os sêmensda procriação fluem. Se o corpo fecundo está cheio de sêmens, muitomais fértil é o espírito mais notável que o corpo, e desde o iníciopossui os sêmens de todos os seus. Logo, há muito tempo o espíritoescolheu as razões dos costumes, artes e disciplinas e também, se forjustamente cultivado, nos tempos estabelecidos dá à luz os seus filhos.Mas, pelo seu desejo, busca, invenção, julgamento e comparaçãopercebemos que tem as razões naturais de todos os seus. Quem negaráque o espírito deseja logo, desde tenra idade, coisas verdadeiras, boas,honestas e úteis? Entretanto, ninguém escolhe coisas desconhecidas.Assim, ainda no espírito estão algumas noções que antes desejara,pelas quais, como suas formas e razões, julga que se deve desejartais coisas.

O mesmo é experimentado pela busca e invenção. Se Sócratesprocura Alcibíades63 na turba de homens e algum dia é encontrado, énecessário que outra figura de Alcibíades se ache na mente de

Page 143: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 143

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Sócrates, para que saiba que homem procura entre os restantes epossa distinguir Alcibíades, encontrado no meio de muitos outros.E, assim, o espírito não indagaria aquelas quatro coisas, isto é,verdade, bondade, honestidade e utilidade, e nenhum dia asencontraria, a não ser que tivesse alguma noção destas coisas pelaqual procuraria o que desejava encontrar, a fim de que, quantas vezesencontrasse o que investigara, o reconhecesse e separasse das quelhe são contrárias.

E experimentamos isto não só pelo desejo, indagação einvenção, mas também pelo julgamento. Pois, quem quer que julguealguém seu amigo ou inimigo, não ignora o que é a amizade ou ainimizade. Então, como todos os dias julgaremos, e julgaremosretamente, como costumamos, que muitas coisas são verdadeiras oufalsas, boas ou más, se, de alguma maneira, a verdade e a bondadenão fossem por nós conhecidas? Como outra vez muitos ainda nãoversados em suas artes experimentassem muitas vezes bem ostrabalhos da construção, música, pintura e outras artes tambéminventadas dos filósofos e os experimentassem de novo, a não serque existissem de alguma forma aquelas coisas e a razão a elesatribuída pela natureza?

A comparação também nos mostra o mesmo. Na verdade,quem quer que, comparando o mel ao vinho, anuncie que um é maisdoce que o outro, reconhece qual sabor é doce. E quem, comparandoSpeusipo64 e Xenócrates65 a Platão, diz que Xenócrates é mais parecidocom Platão que Speusipo, sem dúvida conhece a figura de Platão.Do mesmo modo, quando julgamos bem por muitas boas razões ummelhor que o outro e pela participação maior ou menor da bondadeum parece melhor ou pior que o outro, é necessário que não ignoremosa bondade. Além disso, quando por muitas e diversas opiniões dosfilósofos e também de outros várias vezes julgamos que é maissemelhante à verdadeira e verossímil à melhor, é preciso que não nosfalte alguma contemplação da verdade para que não ignoremos quecoisas lhe são mais similares. Por este motivo, alguns na adolescência,outros ainda sem mestre, quase todos de pouquíssimos rudimentosde doutrina são contados já muito doutos pelos preceptores indicados.Para que nunca pudesse ser feito muito a não ser, como dissemos,quando a natureza ajuda. Sócrates demonstrou isto em abundância

Page 144: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 144

aos rapazes Fédon, Teeteto e Menão e ensinou que os rapazes podemresponder de modo correto em cada arte se alguém os interrogar comprudência, pois por natureza são dotados de razões de todas as artese disciplinas.

Page 145: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 145

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 13 | Como a luz da verdade está na alma

LOGO PARECE AMBÍGUO em Platão como as razões estão no espírito. Sealguém segue aqueles livros que Platão escreveu quando era maisnovo - Fedro, Menão e Fédon -, julgará talvez assim que eles estãoquase pintados na substância do espírito, com figuras na parede, oque foi muitas vezes acima tratado por mim e por vós. Assim, pois,parece indicar ali. Porém, no livro sexto da República, aquele homemdivino mostra tudo e diz que a luz da mente para compreender todasas coisas é aquele mesmo Deus pelo qual todas as coisas foram feitas.Mas assim compara alternadamente o sol e Deus, visto que, como osol existe para os olhos, assim existe Deus para as mentes. O sol geraos olhos e lhes dá força de ver, que existiria em vão e se romperia nastrevas eternas se a luz do sol não estivesse presente, pintada nascores e nas figuras dos corpos, onde o olho vê as cores e as figurasdos corpos. Nem outra coisa qualquer a não ser o olho contempla aluz. Entretanto, parece contemplar várias coisas, porque a luz delemesmo vertida está ornada de várias formas de corpos externos. Defato, o olho percebe esta luz refletida nos corpos e por certo a próprialuz não sustenta quase nada na sua fonte.

Do mesmo modo, Deus cria a alma e a sua mente e distribuiforça para compreender aquela que estaria vazia e obscura, a não serque a luz de Deus estivesse presente em si, e por isso contempla asrazões de todas as coisas. Então, pela luz de Deus, percebe e conhece

Page 146: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 146

apenas a própria luz divina. Porém, parece conhecer diversas coisasporque percebe a si mesmo sob diversas ideias e razões de coisas.Quando alguém, vendo o homem com os olhos, gera na fantasia aimagem do homem e por muito mais tempo se desenvolve naquelaque deve julgar, tira a agudeza da sua mente para admirar a razãoque existe no homem naquela luz divina. Por isso, a centelha brotasem interrupção na mente e em realidade é percebida pela próprianatureza do homem. E em muitos outros do mesmo jeito. Assimpercebemos tudo pela luz de Deus. Na verdade, não podemos ver aprópria luz pura na sua fonte nesta vida. Nisto claramente consistetoda a fecundidade da alma, porque nas suas entranhas brilha aquelaluz eterna de Deus, pleníssima de razões e ideias de todas as coisas,para a qual a alma, quantas vezes deseja, se volta pela pureza da vidae na suprema intensidade do estudo brota cheia das centelhas dasideias.

Page 147: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 147

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 14 | De um lado o amor está frente aos homens e deoutro, frente às mulheres

ASSIM, O CORPO DOS HOMENS está prenhe, como deseja Platão, e prenheestá o espírito, e ambos são incitados ao parto pelos aguilhões doamor. Uns pela natureza ou educação são mais aptos que outros aospartos do espírito que dos corpos, outros, e por certo muitos, aocontrário. Aqueles seguem o amor celeste, estes o vulgar. Aquelespor natureza assim amam os homens mais que as mulheres e os jáquase adultos mais que os meninos, visto que neles é muito maisforte a sutileza da mente, que, pela sua notável beleza, é muito maisapta à disciplina, que aqueles desejarão criar. Outros, ao contrário,pelo desejo de relação venérea e pelo resultado da criação corporal.Pois, na verdade, aquela força criadora da alma, como desprovida deconhecimento, não faz nenhuma separação de sexo; contudo, pelasua natureza é tantas vezes incitado a procriar quantas julgamos umcerto corpo formoso, e quase sempre sucede que aqueles que seconservam com os homens, porque fincam os aguilhões nas suaspartes criadoras, a eles se misturam. Vênus estivera sobretudo nasua gênese no signo masculino e com Saturno, ou nos limites deSaturno ou oposta a ele. Porém, convinha observar os aguilhõesdaquela parte e não este trabalho inútil de perda, e procurar o ofíciode criar e levá-lo dos homens às mulheres. Por tal erro, julgamosaquele crime que se apresenta nefasto e que Platão nas suas Leis

Page 148: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 148

abomina como espécie de homicídio muito forte. Sem dúvida, deveser julgado homicida aquele que retira tanto o homem que ainda iránascer quanto aquele que tira os filhos do seu meio. Na verdade, émais audacioso aquele que destrói a vida presente; entretanto, é maiscruel o que inveja o que vai nascer e mata os seus filhos que aindanão nasceram.

Page 149: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 149

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 15 | Acima do corpo está a alma; acima da alma, oanjo; acima do anjo, Deus

NA VERDADE, ATÉ AGORA falamos da dupla fertilidade da alma e dosdois amores. Depois diremos em que graus Diotima transportouSócrates das partes inferiores às elevadas. Reconduz do corpo à alma,da alma ao anjo, do anjo a Deus. Assim é lícito argumentar que nanatureza devem existir estes quatro graus das coisas.

Todo corpo é movido por algum outro; mas por sua naturezanão pode mover a si mesmo, visto que nada pode agir por si. Mas,pela presença da alma em si mesmo, parece que se move e pela almavive e, decerto, quando a alma está presente, move a si mesmo dealguma forma; quando está ausente, move-se apenas por outro, vistoque não tem esta natureza em si mesmo, mas em especial a almapossui em si a própria força de se mover. Porque está presente emcada um, distribui força para mover a si mesma. Porque ainda distribuiaos outros a sua própria presença, deve tê-lo muito mais e antes.Logo, a alma está acima dos corpos, como pode mover a si mesmasegundo a sua essência, e por isso deve estar acima daquelas que nãoalcançam as coisas presentes por si mesmo, mas pela dos outros parase mover. Quando dizemos que a alma se move por si mesma, assimcomo eu teria dito, como Aristóteles quis tomar de Platão, mas demodo transitivo expomos aquele discurso, como quando asseveramosque Deus resiste, o sol brilha e o fogo aquece por si. Nas verdade,

Page 150: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 150

parte da alma não se move, nem parte se agita, mas por sua naturezase move toda por si mesma; isto é, corre com a razão de uma paraoutra e percorre por intervalos de tempos os trabalhos de nutrição,crescimento e geração. Esta ida e vinda temporal de si mesmacorresponde à alma, porque o que está acima dela percebe não algumascoisas em alguns momentos, mas tudo ao mesmo tempo num pontoda eternidade. Por isso, o primeiro movimento e o primeiro intervalode tempo são convenientemente colocados por Platão na alma, ondeo movimento e o tempo passam no corpo. Decerto, por isso, énecessário que o repouso exista antes do movimento, visto que orepouso é mais perfeito que o movimento, e convém que algumainteligência estável se encontre acima da razão móvel da alma, queseja a inteligência segundo toda ela, e a inteligência sempre emmovimento. Na verdade, a alma não percebe como algo inteiro esempre, mas algumas vezes e segundo uma parte de si, e não tem avirtude de perceber certo, mas de modo ambíguo. Por consequência,visto que este mais perfeito precede aquele mais imperfeito, sobre amente da alma que em parte é móvel deve-se pôr a mente do anjo,aquela parte livre, estável, inteira, contínua e muito certa, para queassim como a alma movida por si precede ao corpo agitado por umoutro, assim a mente estável por si precede a alma para que se mova,e por isso parecem se mover por sua vontade não todos os corpos,mas os animados, assim a alma pela mente tem aquilo que semprepercebe. Se, na verdade, por sua própria natureza o conhecimentoestivesse na alma, estaria em todas as almas, mesmo na das feras,como o seu próprio poder de se mover. Logo, o conhecimento nãocompete por si e em primeiro lugar à alma. Por isso, convém que aanteceda porque por si e em primeiro lugar se compõe da mente. Talé o anjo, mais notável que as almas.

Mas, necessariamente, sobressai à mente do anjo, aqueleprincípio das coisas e sumo bem que Platão no Parmênides chama opróprio uno. Com efeito, por sua natureza simples, o próprio unodeve estar acima de toda multidão das coisas compostas. Pois de umse produz o número e, dos simples, toda composição. Contudo, aquelamente, ainda que seja imóvel, enfim não se eleva acima do própriouno puro e simples. Na verdade, percebe a si mesma. Daí, de qualquer

Page 151: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 151

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

modo, estas três parecem diversas entre si: o que o sentido percebe eé percebido. Pois, a sua razão é uma conforme percebe, outraconforme é percebida, e outra, ainda, conforme é o sentido. Por estarazão, tem o poder de conhecer diante do ato do conhecimentointeiramente disforme por si e se forma quando conhece. Percebendoestas coisas, deseja e toma a luz da verdade; pelo que parece tersentido a sua falta antes que pudesse compreendê-la. Decerto, temem si a multidão de todas as ideias. Percebes quão grande é a multidãoe a variada composição no anjo. E assim somos impelidos a pôradiante de nós mesmos o uno puro e simples. Contudo, por essemotivo, não podemos antepor nada a este mesmo uno, porque overdadeiro uno se encontra desprovido de toda multidão ecomposição. Porque, se tivesse alguma coisa acima de si, dele sempredependeria. Por isso, dependendo daquele, por ele mesmo degenerariaem si mesmo, como todo efeito costuma degenerar por sua causa. E,por essa razão, já não seria uno e simples, mas composto pelo menosde duas coisas; isto é, da função da sua causa ou do próprio abandono.E assim, como quer Platão e confirma Dioniso Areopagita, o própriouno sobressai a todas as coisas e o próprio uno é por ambos julgadocomo o notável nome de Deus.

Aquela razão também nos mostra a sua grandeza porque odom da causa mais eminente deve ser muito amplo e estender-se atodos pela superioridade de sua virtude. O dom do uno se propagapelo universo. Pois não só é única a mente e qualquer que seja aalma, mas também diz-se em certo sentido que é disforme a própriamatéria das coisas e a sua ausência. Porque dizemos que é um osilêncio, uma a escuridão e uma a morte. Todavia, as funções damente e da alma não se estendem até ela. Sem dúvida, a mentedistribui a beleza artificial e a ordem. A alma fornece vida emovimento. Na verdade, a primeira matéria disforme do mundo e aausência das coisas está privada de beleza e de vida. Assim, o própriouno antecede a mente e a alma, quando a sua função se estendemais. Pela mesma razão, a mente parece exceder a alma, porque avida, função da alma, não é concedida a todos os corpos. Contudo, amente distribui beleza e ordem a todos estes.

Page 152: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 152

VI, 16 | Qual a comparação entre Deus, o anjo, a alma e ocorpo

ASSIM, SUBIMOS DO CORPO para a alma, desta ao anjo, deste a Deus.Deus está sobre a eternidade; o anjo está todo na eternidade. Porcerto, tanto a sua operação quanto a essência permanecem estáveis.Porém, o repouso da eternidade é próprio. A alma está em parte naeternidade e em parte no tempo. Na verdade, a sua mesma substânciaé sempre a mesma sem nenhuma mudança de crescimento oudiminuição. Mas a operação que pouco antes mostramos, corre porintervalos de tempo. O corpo se apresenta todo no tempo, pois a suasubstância é mudada e a toda a sua operação requer um espaço detempo. Portanto, o próprio uno sobrepuja o repouso e o movimento;o anjo se coloca no repouso, a alma, igualmente, no repouso e nomovimento, e o corpo, apenas no movimento. O uno outra vezpermanece sobre o número, o movimento e o lugar; o anjo é colocadono número sobre o movimento e o lugar; a alma, no número e nomovimento, mas sobre o lugar; o corpo se submete ao número, aomovimento e ao lugar. Porque o próprio uno não tem nenhum númeroou reunião das partes, nem de modo algum muda aquilo que é, nemse fecha em nenhum lugar. O anjo, decerto, tem número de partes eformas, mas está livre de movimento e lugar. A alma tem umamultidão de partes e afeições e muda pelo progresso do raciocínio epela variedade das perturbações, mas está isenta dos limites do lugar.Porém o corpo se submete a todos eles.

Page 153: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 153

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VI, 17 | Qual a comparação entre as belezas de Deus, doanjo, da alma e do corpo

NA VERDADE, EXISTE a mesma comparação entre estas quatro e as suasformas. Isto é, a forma do corpo consiste na reunião de muitas partes,sujeita-se ao lugar e se estende pelo tempo. A beleza do espírito sofre,por certo, variações do tempo e contém a multidão das partes, masestá livre dos limites de lugar. Certamente, a beleza do anjo tem apenaso número, se eleva sem os outros dois. Porém, a beleza de Deus nãosofre nada disto. Em todo o caso vês a forma do corpo. Acaso desejastambém observar a beleza do espírito? Tira da forma corporal o pesoda própria matéria e os limites dos lugares, deixa o restante: já tens abeleza da alma. E desejas a do anjo? Toma, suplico, não só os espaçosdo lugar, mas retém ainda o passar do tempo, e a reunião múltipla:logo a encontrarás. Retiras a reunião múltipla daquelas formas, deixapara diante a forma simples: Sem demora terias alcançado a belezade Deus. Na verdade, o que então me restará, quando estas coisasforem retiradas? Acaso julgas existir algo além da luz e da beleza?Mas a beleza de todos os corpos é esta luz do Sol, que vês pintadadestes três, da multidão das formas, pois o vês pintado de muitasfiguras e cores, do espaço do lugar e da mudança temporal. Retira oseu assento na matéria, para que detenha os dois restantes fora desselugar: em suma, tal é a beleza do espírito. Retira daí a mudança dotempo, se te apraz, deixa o restante: ficará uma luz muito clara sem

Page 154: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 154

lugar e movimento, mas esculpida de todas as razões em todas ascoisas. Este é o anjo, esta é a beleza do anjo. Retira, enfim, aquelenúmero das diversas ideias, deixa apenas uma simples e pura luz, àsemelhança da sua luz, que permanece no próprio globo do Sol, enão se dispersa pelo ar: de alguma maneira aqui compreendes a belezade Deus, que tanto sobrepuja, pelo menos, as formas restantes, quantoaquela própria luz do Sol, pura, una, inviolada, se eleva acima doesplendor do Sol em si disperso pelo ar nebuloso, dividido, pintado,obscurecido. E, assim, a fonte de toda a beleza é Deus. Porconsequência, Deus é a fonte de todo amor.

Por causa disso, a luz do Sol na água é como alguma sombramais clara que esta mesma no ar. O esplendor que está no ar é sombraigualmente para o seu fulgor no fogo, o fulgor no fogo é sombra paraa luz do Sol que neste mesmo Sol brilha. A comparação é a mesmaainda entre aquelas quatro belezas do corpo, espírito, anjo e Deus.Deus assim nunca é enganado para que, na verdade, ame a sombrada sua beleza no anjo, e despreze a verdadeira beleza que lhe é própria.E o anjo não é tomado até então pela beleza da alma, que é a sombradeste mesmo, a fim de que, detido pela sua sombra, abandone a própriafigura. Contudo a nossa alma, deve sofrer mais porque esta é a origemde toda a nossa infelicidade; a alma, digo, assim sozinha é delineadapelos encantos da forma corporal para que menospreze a própriabeleza, e, esquecida de si mesma, siga, em verdade, a forma do corpo,que é a sua sombra.

Daí aquele destino muito cruel de Narciso em Orfeu. Daí acalamidade deplorável dos homens. Narciso, na verdade, adolescente,isto é, o espírito do homem temerário e inexperiente. Não vê o seurosto, de modo algum observa a sua própria substância e virtude. Masacompanha a sua sombra na água e se esforça por abraçá-la, isto é, admira abeleza no corpo frágil e à semelhança da água que corre, que é asombra do próprio espírito. Na verdade abandona a sua figura. Nuncasegue a sombra. Porque o espírito despreza a si mesmo, seguindo ocorpo e não se completa com o uso do corpo. Com efeito, não desejao próprio corpo, mas, como Narciso, procura a sua beleza, atraídopela forma corporal, que é a imagem da sua beleza. E, visto que nãoobserva isto, enquanto, na verdade, deseja uma coisa, segue outra, enão pode satisfazer o seu desejo. Por isso, debilitado se consome em lágrimas,

Page 155: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 155

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

isto é, o espírito, assim retirado de si e mergulhado no corpo, étorturado por nocivas perturbações e, pintado de manchas do corpo,quase morre, porque já parece mais corpo que espírito. Em todo ocaso, Diotima, para que Sócrates fugisse desta morte, reconduziu-opelo corpo ao próprio espírito, deste ao anjo, e deste a Deus.

Page 156: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 156

VI, 18 | Como a alma se eleva da beleza do corpo à belezade Deus

IMAGINAI DIOTIMA, Ó CARÍSSIMOS convivas, que assim reprimiu Sócratesfalando: Nenhum corpo, ó Sócrates, é belo em todos os sentidos. Pois, ounuma parte é formoso e naquela disforme, ou hoje é julgado formosoe outras vezes muito feio, ou é belo para um e torpe para outro.Assim, a beleza do corpo, infectada pelo contágio da torpeza, nãopode ser pura, verdadeira e primeira. Além disso, ninguém entãoalgum dia suspeita que a própria beleza é torpe, assim como asabedoria não é insensata; na verdade, julgamos a disposição doscorpos algumas vezes formosa e outras torpe. E, ao mesmo tempo,uns julgam-na de modo diverso. Logo, a beleza nos corpos não éprimeira, nem verdadeira. Acrescenta a isto que muitos corpos sãochamados pelo único nome de beleza. Portanto, uma é a natureza dabeleza comum em muitos corpos, pela qual, do mesmo modo, sãodenominados belos. Em verdade, tal natureza, assim como está emoutros, isto é, na matéria, assim depende de um outro escolhido.Com efeito, o que não pode se sustentar por si mesmo, muito menosdepende de si mesmo. Acaso algo dependerá da matéria?Absolutamente. De fato, nada disforme e imperfeito pode ornar eaperfeiçoar a si mesmo. Depois, o que é um deve se originar de um.Por isso é que uma beleza de muitos corpos depende de um outroartífice incorporal. O único artífice de todas as coisas é Deus, que

Page 157: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 157

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

pelos anjos e pelas almas diariamente restitui toda a bela matéria domundo. Por isso, julga-se que se descobre aquela verdadeira razão dabeleza em Deus e nos seus ministros mais que no corpo do mundo.Eleva-te a ela, ó Sócrates, como julgo de novo com facilidade porestes graus.

Se a natureza te desse olhos de lince, meu Sócrates, para quepela visão penetrasses em qualquer coisa que passa, aquele belíssimocorpo exterior do teu Alcibíades te pareceria muito torpe. Quanto éo que amas, ó amigo? Ao menos a superfície, antes a cor, te seduz,antes um certo reflexo muito leve de luzes e sombra. Ou se a vãimaginação te engana, assim amas aquilo com que sonhas antes queo vejas. Do contrário, acaso pareceria opor-me a ti, se por certo aqueleAlcibíades é formoso? E, entretanto, em quantas partes é formoso?Sem dúvida em todos os membros, exceto no nariz achatado e nassobrancelhas mais elevadas do que convinha. Todavia, estas coisassão mais formosas em Fedro. Mas a espessura das suas pernas nãoparece bem. Premia isto em Carmide, a não ser que o pescoço graciosote ofendesse. Assim, se observares cada homem, não louvarás nenhumpor inteiro. Em qualquer parte juntarás aquilo que é correto efabricarás contigo a figura íntegra pela observação de todas as coisas,a fim de que a beleza absoluta do gênero humano, que se encontraespalhada por muitos corpos, esteja no teu espírito composta dareflexão de uma única imagem. Fazes pouco caso da figura de cadahomem, ó Sócrates, se a ela te juntares. Na verdade, não a possuistanto por graça dos corpos quanto do teu espírito. E, assim, ama aque fabricou o teu espírito e o próprio espírito ama o seu artíficeantes que aquele exterior manco e disperso. Porém, o que ordenoque ames no espírito? A beleza do espírito. Entretanto, a luz é abeleza dos corpos, e a luz é a beleza do espírito. A luz é a verdade doespírito, que, sozinha, o teu amigo Platão parece exigir de Deus nosseus ditos. Diz: Deus, concede-me que o meu espírito se torne belo e que abeleza do espírito não impeça aquelas coisas úteis ao corpo. Eu o julgareiapenas sábio e rico. Ali Platão declara que a beleza do espírito consistena verdade e na sabedoria, e Deus a distribui aos homens. Uma emesma verdade, atribuída a nós por Deus, por vários efeitos seus,recebe vários nomes de virtudes. Enquanto demonstra as coisasdivinas é a sabedoria, que Platão exigiu de Deus mais que as outras;

Page 158: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 158

conforme demonstra as coisas naturais é a ciência; como é humana,é prudência; para torná-los iguais, justiça; para torná-los invencíveis,fortaleza; para fazê-los tranquilos, chama-se temperança.

Por estes, são numerados dois gêneros de virtudes. Digo, asvirtudes morais e intelectuais mais notáveis que as primeiras. Asintelectuais são sabedoria, ciência, prudência; as morais: justiça,fortaleza e temperança. As morais são mais conhecidas pelas suasoperações e funções civis. As intelectuais são mais escondidas pelaverdade oculta. Além disso, quem é educado com costumes honestos,como mais puro que os outros, facilmente se eleva às virtudesintelectuais. Por esta razão, ordeno que primeiro consideres a belezado espírito, que consiste nos costumes, para que compreendas que éúnica razão de todos os costumes, pela qual do mesmo modo sãochamados honestos. Isto é, uma verdade de vida puríssima, que nosconduz à verdadeira felicidade pelas ações da justiça, fortaleza, etemperança.

Logo, ama primeiro esta única verdade dos costumes e luzmuito formosa do espírito. Saiba, ainda, como haverás de subir muitoacima dos costumes para a verdade muito lúcida da sabedoria, ciênciae prudência, se considerares estas coisas no espírito educado comótimos costumes e neles estiver contida a norma muito correta davida moral. Ainda que consideres várias doutrinas da sabedoria,ciência e prudência, julga, porém, que em todos há uma luz deverdade, pela qual todas são igualmente chamadas belas. Prescrevo-te amá-la com o maior empenho como beleza suprema do espírito.Mas, com efeito, esta única verdade em várias doutrinas não podepor isso ser a primeira verdade de todas, porque está em outros, porqueé distribuída por muitas doutrinas. Porém, o que quer que repouse nooutro, certamente do outro depende. E, contudo, a verdade únicanão nasce do grande número de doutrinas. O que em verdade é um,deve se originar de um. Por isso, convém que sobre a alma do homemhaja uma certa sabedoria, que não é dividida por diversas doutrinas,mas uma é a sabedoria, de cuja única verdade se origina a múltiplaverdade dos homens.

Ó Sócrates, lembra-te que aquela única luz da única sabedoriaé a beleza do anjo, que deves cultuar além da beleza do espírito.

Page 159: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 159

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Como demonstramos acima, aquela sobrepuja a beleza dos corpos,que não se liga a um lugar, nem se divide ou se corrompe segundo aspartes da matéria. E sobrepuja a beleza do espírito, porque é de todoeterna e não se move pela ida e vinda temporal. Visto que em verdadea luz do anjo se agita na série de muitas ideias e convém que sobretoda a multidão esteja a unidade, que é a origem de todo número, énecessário que ela mane de um princípio de todas as coisas, quechamamos o próprio uno. E assim a luz de todo muito simples dopróprio uno é beleza infinita, porque não se mancha com as sujeirasda matéria, como a beleza do corpo, nem se muda pelo progressotemporal como a do espírito, nem como a do anjo se dissipa damultidão da forma. Porém, toda a qualidade secreta por uma condiçãoexterior é chamada pelos Físicos de infinita. Se neste mesmo há calor,não impedido pelo frio e pelo humor, não sobrecarregado pelo pesoda matéria, é chamado de calor infinito, porque a sua força é livre enão se junta a nenhum limite da condição. Igualmente, a luz livre detodo corpo é infinita, pois brilha sem modo e término, porque brilhapor sua natureza, quando não é de modo algum delimitada por outro.E, assim, a luz e a beleza de Deus, que é de todo simples e absolutaacima de todos os outros, sem dúvida é chamada beleza infinita. Abeleza infinita também procura um grande amor. Por esta razão peço-te, ó Sócrates, que de alguma maneira ames as coisas restantes comum certo limite; em verdade amas a Deus com amor infinito e não hámodo algum para o amor divino.

Page 160: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 160

VI, 19 | Como Deus deve ser amado

ESTAS COISAS DIOTIMA oferece a Sócrates. Nós, contudo, ó ilustríssimos varões, amaremos não só um Deussem medida, como se supôs que Diotima ordenou, mas amaremossomente a Deus. Assim, pois, a mente se volta para Deus como amenina dos olhos para o Sol. O olho, entretanto, não só deseja a luzmais que as outras coisas, mas apenas a luz. Se amarmos os corpos,os espíritos, os anjos, na verdade não amaremos estes, mas Deusnestes. Por certo, nos corpos amaremos a sombra de Deus; nosespíritos, a semelhança de Deus; nos anjos, a sua própria imagem.Assim, no presente, amaremos Deus em todas as coisas, a fim de queem Deus, em suma, amemos todas as coisas. Assim, pois, enquantovivermos, a ele nos dirigiremos para ver não só Deus, mas todas ascoisas em Deus, e amaremos não só ele próprio, mas ainda todas ascoisas que estão nele mesmo. E quem quer que neste tempo comcaridade se consagre a Deus, em Deus enfim se salvará. Isto é, voltaráà sua ideia, pela qual foi criado. Aí de novo, se algo lhe faltar, serácorrigido e se unirá perpetuamente à sua ideia. Então, o verdadeirohomem e a ideia do homem serão uma mesma coisa. Por isso, nenhumde nós na terra, separado de Deus, é um verdadeiro homem, vistoque dele está separado pela ideia e pela forma. A ela nos levarão odivino amor e a piedade. Em todo o caso, aqui estamos repartidos emutilados, então, amando, unidos à nossa ideia, nós nos tornaremos

Page 161: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 161

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

homens íntegros, posto que pareceremos ter primeiramente amadoDeus nas coisas, para que depois amemos as coisas em Deus, e poristo pareceremos venerar as coisas em Deus para nele estimarmossobretudo a nós mesmos, e, amando Deus, teremos amado a nósmesmos.

Page 162: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 162

VII, 1 | Conclusão das coisas supracitadas e opinião dofilósofo Guido Cavalcante

POR FIM, CRISTÓVÃO MARSUPINO, homem muito amável, que haveria deapresentar a pessoa de Alcibíades, volta-se a mim com estas palavras.Na verdade, ó Marsílio, agradeço muito à família do teu João, queentre muitos ilustríssimos cavaleiros em doutrina e atos, gerou ofilósofo Guido,66 muito merecedor da república e à frente de todosno seu século pelas sutilizas da dialética, que imitou este amorsocrático tanto nos costumes quanto nos versos, em pouco tempoofuscou aquelas coisas ditas por vós.

Em verdade, Fedro tratou da origem do amor que emana dasentranhas do caos. Pausânias, depois do amor já ter nascido, dividiu-o em duas belezas, isto é, celeste e vulgar. Erixímaco explicou a suagrandeza, quando demonstrara que estas assim estavam presentesem todas as coisas, distribuídas pelas duas partes. Aristófanes declarouo que faria em cada uma a presença do magnânimo Deus, mostrandoserem por ele reunidos os homens despedaçados. Agatão tratou dagrandeza de sua virtude e poder, quando argumentara que apenaspor ele os homens se tornam bem-aventurados. Enfim, Sócrates,instruído por Diotima, resumidamente explicou o que e como é oamor, de onde surgiu, quantas partes possui, para onde se dirige equanto vale.

Page 163: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 163

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

O filósofo Guido Cavalcanti parece ter inserido todas estascoisas com muita arte em seus versos. Assim como o espelho dealgum modo outra vez brilha, tocado pelo raio do Sol e, por aquelereflexo do esplendor, queima a lã colocada junto de si, logo ele julgaque assim é a parte da alma que denomina obscura fantasia e memória,e, como um espelho, é agitada pela imagem da beleza que existe noSol, como por certo raio sorvido pelos olhos, para que por ela própriarepresente para si uma outra imagem, por cujo esplendor a força dodesejo como a lã se acenda e ame. Acrescenta que este primeiroamor aceso no desejo do sentido é criado pela forma do corpo,observada pelos olhos. Mas aquela própria forma, não está impressana fantasia, naquele modo em que está na matéria do corpo, mas semmatéria, assim também é a imagem de cada homem posto num certotempo e lugar. De novo, de tal imagem logo brilha na mente umaoutra beleza, que não é mais semelhança de certo corpo humano,como havia na fantasia, mas razão comum e definição igual a todo ogênero humano. E, assim, como o amor sujeito ao sentido se originada imagem da fantasia, gasta pelo corpo, no desejo do sentido dedicadoao corpo, assim outro amor muito alheio ao comércio do corpo nascedesta beleza da mente e razão comum, como muito distante do corpona vontade. Estabeleceu aquele no desejo e este na contemplação.Julga que aquele se desenvolve junto à forma particular de um únicocorpo, e este junto à beleza universal de todo o gênero humano. Emtodo o caso, estes amores lutam entre si no homem e aquele os expulsapara baixo, para a vida ferina e voluptuosa, conduz ao alto, à vidaangelical e contemplativa. E quer que este esteja fora da perturbaçãoe seja encontrado em poucos; e aquele esteja cheio de paixões e emmuitos. Por isso, explica isto em poucas palavras, sendo mais extensonas paixões narradas de outrem.

Porque, na verdade, ele mostra muito claramente as coisas,que vós narrastes antes, não julguei necessário contá-las de novo nomomento presente. Bastaria saber que este verdadeiro filósofomisturou na criação do amor alguma deformidade do caos, que vósestabelecestes acima, quando disse que a obscura fantasia iluminoue gerou o amor a partir da mistura daquela obscuridade e daquelaluz. Por esta razão, quem não veria em suas palavras aqueles doisamores, isto é, o vulgar e o celeste? Além disso, dispõe ainda a sua

Page 164: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 164

primeira origem na beleza das coisas divinas, e a segunda na doscorpos. Pois, percebe que o Sol é a luz de Deus, e o raio, a forma doscorpos. Por último, deseja que o seu fim corresponda ao seu próprioprincípio, quando a instigação do amor leva uns à forma do corpo, eoutros à beleza de Deus.

Page 165: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 165

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 2 | Sócrates foi um verdadeiro amante e semelhantea Cupido

ATÉ AGORA TRATAMOS do amor. Chegamos a Alcibíades e Sócrates.Depois que os convivas louvaram bastante o Deus dos amantes,restara louvar os legítimos cultores deste Deus. Sócrates é por todosdenominado como o que com mais legitimidade ama a todos. Vistoque, por toda a vida, sem nenhuma dissimulação, de todo tivessecombatido em público nos acampamentos de Cupido, nunca foracaluniado por ninguém de que amasse alguém com menorhonestidade. Como costuma dizer a verdade, pelo rigor desta vida epela repreensão dos crimes alheios, muitos e grandes homens lheforam hostis: Anitos, Meleto e Licão,67 sobretudo, cidadãospoderosíssimos na república, os oradores Trasímaco, Polo e Cálias.68

Por isto, teve como perseguidor muito vivo o cômico Aristófanes.69

Mas nem os cidadãos lhe imputaram os amores desonestos naacusação, com a qual levaram Sócrates a juízo, nem os oradores,seus inimigos, censuraram algo em Sócrates. E nem o cômicoAristófanes, ainda que ligasse outros muitos ridículos e absurdosinsultos a Sócrates nas dionisíacas. Acaso julgarias que ele fugiriadas línguas venenosas de tais detratores se se manchasse com tãohorrível crime, e se, ao contrário, não estivesse muito longe da suspeitade tal crime?

Page 166: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 166

Por ventura, ó ótimos varões, notastes acima aquele que,quando Platão imagina o amor, pinta toda a efígie de Sócrates, edescreve a figura daquela divindade na pessoa de Sócrates, como seo verdadeiro amor e Sócrates fossem semelhantes, e que por issofosse o verdadeiro e legítimo amante? Vamos, reconduzi ao espíritoaquela pintura do amor. Colocai a pessoa de Sócrates diante dos olhos.Vereis um homem magro, seco e esquálido, ainda que fosse melancólicopor natureza, magro de fraqueza e sujo pela negligência. Por estarazão está nu, isto é, coberto com uma simples e velha mantilha.Caminhando de pés descalços, assim Fedro70 sempre mostra o habitualSócrates caminhando em Platão. E voa humilde para as regiões ínfimas,a visão de Sócrates estava sempre fixa na terra, como diz Fédon.Frequentava os lugares mais vis, ou ainda era observado nas oficinasdos escultores ou do curtidor de peles Simão. Servia-se dos vocábulosrústicos e grosseiros, que Cálicles exprobou no Górgias.71 Por isso, eratão calmo que, ainda que atormentado por muitas injúrias, muitasvezes perturbado, comovido, não se entregava, na verdade, ao espírito.Sem morada. Sócrates fora interrogado sobre que região era: do mundo,diz. Por certo, a pátria é ali onde há o bem. Mas não tinha lares seus,nem leito macio, nem mobília preciosa. Dormindo na porta, na rua,debaixo do céu. Estas coisas significam para todos o peito aberto e ocoração sofredor do nosso Sócrates. Além disso, ele se maravilhavada visão e audição, que são as portas do espírito, e ainda caminhavaseguro e intrépido, e também repousava, se fosse conveniente, emqualquer lugar envolto numa mantilha.

Sempre necessitado. Quem não saberá que Sócrates foi filho deum escultor e de uma parteira e procurou viver até a velhiceesculpindo pedras com a própria mão, e não teve nunca com quealimentar suficientemente a si e aos filhos? Aqui e ali manifestava anecessidade da sua mente, interrogando a todos, e proclamando quenada sabia. Viril. Com efeito, era de espírito constante e de forteopinião, o qual ainda rejeitou Arquelau da Macedônia, Scopascranônio e Euríloco de Larissa com um espírito elevado, não aceitandoo dinheiro por eles enviado, e sequer desejou se dirigir a eles. Audaze feroz. Quão grande foi a sua força nos assuntos bélicos, Alcibíadesexplica com muita eloquência no Convívio; e diz-se que quandoSócrates o venceu, retirou-se por sua vontade para Potideia. Veemente.

Page 167: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 167

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

De fato, como o fisionomista Zópiro72 bem julgara, era tumultuoso.Muitas vezes, na verdade, costumava agitar os dedos e arrancar oscabelos entre os que falavam, fazendo isto com veemência dediscurso. Eloquente. Quando diferia, as razões iguais eram-lhe quasesuficientes para cada parte. Ele se utiliza de palavras grosseiras, comodiz Alcibíades no Convívio, mas mesmo assim comovia os espíritosdos que ouviam mais que Temístocles e Péricles e todos os outrosoradores.

Arma ciladas às pessoas belas e boas. Alcibíades diz que Sócratessempre traiu a si mesmo. De fato, atraído pelo amor daqueles quepareciam ter índole honesta, por suas razões Sócrates os atraía àfilosofia. Caçador quente e sagaz. Platão atesta no Protágoras que Sócratescostumava caçar a beleza divina da forma do corpo, como foi bastantemencionado acima. Maquinador. De muitas maneiras, como indicamos diálogos de Platão, confundia os sofistas, exortava os adolescentes,ensinava os homens modestos. Inclinado à prudência. De fato, era tãoperspicaz quando pressagiava com tanta prudência, que quem agissecontra o seu conselho se perderia; o que é narrado por Platão noTeago. Filosofando por toda a vida. Ordenou isto na sua defesa nosjulgamentos contra os juízes, para que, se por aquela condição oabsolvessem da morte, nunca filosofaria depois, e preferiram que elemorresse a deixá-lo filosofar.

Encantador, fascinante, mago e sofista. Isto é, Alcibíades diz queele se encanta mais pelas palavras que pela melodia dos excelentesmúsicos Mársias73 e Olimpo. Na verdade, os seus acusadores e amigosatestam que tivesse um demônio familiar. O cômico Aristófanes,bem como os seus acusadores, chamaram Sócrates de sofista. Comefeito, possuía igual faculdade de exortar e dissuadir. Entre a sabedoriae a ignorância. Como todos os homens fossem ignorantes, diz Sócrates,disso difiro dos outros, porque não ignoro a minha ignorância, e osoutros a ignoram totalmente. Assim estava entre a sabedoria e aignorância: ainda que desconhecesse as próprias coisas, conhecia,entretanto, a sua ignorância.

Portanto, depois de louvar o próprio amor, Alcibíades julgouSócrates semelhante ao amor e, por isso, um verdadeiro amante, paraque, por este louvor, compreendêssemos que deverão ser do mesmomodo louvados todos os que amam. Quais são os louvores de

Page 168: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 168

Sócrates, aqui ouvistes, expostos com clareza pela boca de Alcibíadesnas palavras de Platão. Como Sócrates amava, também pode sabê-loquem se lembrar da doutrina de Diotima.

Page 169: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 169

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 3 | Do amor ferino, que é beleza de insanidade

DECERTO, INTERROGARÁ ALGUÉM o que este amor socrático traz ao gênerohumano, porque deve ser celebrado com tantos louvores, e o quecontraria. Eu o direi com certeza, repetindo um pouco mais o que foidito acima.

O nosso Platão define no Fedro74 que o furor é a alienação damente. Mas apresenta dois tipos de alienação. Imagina que umaprovém de enfermidades humanas; a outra, de Deus. Denomina aquelade loucura, e esta de furor. Pela enfermidade da loucura, o homem éprecipitado à beleza do homem e de alguma maneira o homem setorna fera. Dois são os gêneros da loucura. Um nasce do vício docérebro; o outro, do vício do coração. Muitas vezes o cérebro éocupado pela bílis denegrida; outras, pelo sangue denegrido; porvezes, deveras pela bílis negra. Por isso, os homens se tornam algumasvezes dementes. Aqueles que são agitados pela bílis negra, mesmonão sendo atacados por ninguém, se irritam muito, vociferam emvoz alta, atiram-se aos que se lhes apresentam, e arruínam a si mesmose aos outros. Aqueles que trabalham com um sangue denegrido,irrompem em risos muito exagerados, gabam-se junto aos costumesde todos, anunciam maravilhas de si mesmo, se regozijam com ocanto e exultam com uma dança. Os que são oprimidos pela bílisnegra cometem erros perpetuamente e representam para si mesmossonhos, que ou os assustam no presente, ou receiam no futuro. E,

Page 170: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 170

por certo, estas três espécies de loucura se originam de um defeito docérebro. Quando, na verdade, aqueles humores são retidos no coração,geram a angústia e a inquietação, e não a demência. Então, decerto,geram a alteração de espírito quando comprimem a cabeça. Por isso,diz-se que estão confinados no defeito do cérebro. Mas, pelaenfermidade do coração, julgamos que ela se faça propriamenteloucura, pela qual são afligidos aqueles que amam sem medidas. Osacratíssimo nome do amor, de um modo falso, é-lhes atribuído. Naverdade, para que, por acaso, não pareça que sabemos em demasiacontra muitos, pela sua disposição, também nos serviremos do nomedo amor para estes.

Page 171: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 171

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 4 | A fascinação do amor é algo vulgar

VÓS, PORÉM, PRESTAI ATENÇÃO com ouvidos e mente às coisas que direi.Na adolescência, o sangue é delgado, claro, quente e doce. Mas, como passar do tempo ele se torna mais espesso nas partes debilitadas emais delgadas, e, além disso, mais escuro. Certamente o que é fino eraro é puro e límpido; o oposto, na verdade, é ao contrário. Por quequente e doce? Porque a vida e o princípio de viver, isto é, a própriageração, consistem no calor e no humor, e o sêmen, criado em primeirolugar para os seres vivos, é quente e húmido. Tal natureza é vigorosana infância e na adolescência. Nas idades seguintes, aos poucos setransforma necessariamente em qualidades contrárias: secura e frieza.Por isso, o sangue no adolescente é delgado, claro, quente e doce.Porque é delgado, é claro; porque é novo, é quente e húmido; porqueé quente e húmido, por esta razão, parece ser doce. De fato, é docena mistura do quente e do húmido. A que fim? Com certeza para quecompreendais que os espíritos são delgados e claros, quentes e docesnesta idade. Mas, visto que estes são gerados pelo calor do coraçãodo sangue mais puro, em nós são sempre tal qual é o humor do sangue.Assim como, sem dúvida, tal vapor do sangue é denominado espírito,assim ele próprio manda raios semelhantes a si pelos olhos, comojanelas de vidro. E, ainda, assim como o Sol, coração do mundo,pelo seu giro envia luz, e pela luz, as suas virtudes às coisas inferiores,assim o coração do nosso corpo por certo movimento perpétuo,

Page 172: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 172

agitando o sangue próximo de si, por ele difunde os espíritos paratodo o corpo e, por eles, as centelhas das luzes a cada membro,sobretudo pelos olhos. De fato, o espírito, principalmente quando émuito leve, voa para as partes mais altas do corpo, e a sua luz, commais abundância, resplandece pelos olhos, visto que eles própriossão mais claros e nítidos que todas as outras partes.

Sem dúvida, nos olhos e no cérebro existe certa luz, aindaque exígua, a qual veem de noite muitos animais, cujos olhos brilhamnas trevas, e que podem disso ser testemunhas. E ainda, se alguémdecerto comprimisse com o dedo e virasse o canto do olho, pareceriaobservar um certo círculo lúcido dentro de si. E diz-se que o divinoAugusto75 tinha, por isso, olhos claros e nítidos para que, quandoobservasse alguém com maior intensidade, o obrigasse a abaixar orosto, como para o fulgor do Sol. Diz-se também que Tibério76 tivesseolhos enormes e que, o que era admirável, viam de noite e nas trevas,mas, como que primeiro acordassem do sono, tornavam a fecharnovamente. Porém, visto que o raio enviado pelos olhos traz consigoo vapor espiritual, e este vapor, o sangue, por ele percebemos que osolhos avermelhados e remelentos constrangem os olhos do observadora trabalhar pelo lançamento do seu raio, semelhante a um enfermo.E, ainda, o raio parece alongar-se até aquele que se apresenta, eespalhar o vapor do sangue corrompido junto com o raio, por cujacontaminação o olho do observador é penetrado.

Escreve Aristóteles77 que as mulheres, quando o sanguemenstrual corre, pelo seu olhar sujam o espelho com gotas de sangue.O que julgo acontecer porque o espírito, que é vapor sanguíneo, pareceque é um certo sangue muito fino, a tal ponto que rejeita a visão dosolhos, mas na superfície do espelho percebe-se claramente que setornou mais espesso. Isto, se chegar a uma certa matéria mais rara,como o pano ou o linho, não aparecerá por certo, porque nãopermanece na superfície daquela coisa, mas nele penetra. Se, naverdade, chegar à densa, mas áspera superfície, como pedras, tijolose similares, se dissipará e se despedaçará pela desigualdade daquelecorpo. Porém, o espelho, pela sua dureza, conserva o espírito nasuperfície; pela igualdade e brandura se conserva sem quebrar; pelobrilho, o raio do próprio espírito consola e aumenta; pela frieza, impele

Page 173: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 173

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

a sua raríssima névoa às gotículas. Quase pela mesma razão, quantasvezes, com esforço, de boca aberta, sopramos num vidro, molhamosa sua face com certo orvalho muito fino de saliva. Pois, o hálito,voando da saliva, comprimido naquela matéria, volta à matéria.

Assim, o que é admirável, se o olho aberto e atento se dirigea alguém, lançará os aguilhões dos seus raios para os olhos doobservador e ainda com estes aguilhões, que são veículos dosespíritos, acertará aquele vapor sanguíneo, que denominamos espírito?Depois, o aguilhão venenoso traspassa os olhos, e, em todos os casos,é enviado pelo coração do que o atira ao coração do homem ferido,como se retornasse à própria região, fere o coração, e no seu dorso setorna mais dura e volta para o sangue. Este sangue peregrino, dealgum modo, pela sua natureza estranho ao homem ferido, corrompeo seu próprio sangue. O sangue infectado adoece. Depois, resulta adupla fascinação. A visão de um velho fétido e a menstruação damulher, que a sofre, fascinam o menino. A visão do adolescentefascina o velho. Porque, na verdade, o humor do velho é frio e muitovagaroso, com dificuldade no menino atinge o dorso do coração, e,não sendo muito apto à passagem, pouco move o coração, se nainfância não foi muito tenro. Por este motivo, é leve fascinação. Naverdade, é muito grave, e por ela o mais novo atravessa as entranhasdo mais velho. É disso, ó excelentes amigos, que o platônico Apuleio78

se lastima. Diz: Tu mesmo és causa e origem de toda dor presente, e ainda opróprio remédio e minha única salvação. De fato, estes teus olhos, passandopelos meus às profundas entranhas, provocam um vigoroso incêndio nas minhasmedulas. Logo, miseravelmente, por tua causa morrerei.

Colocai, peço-vos, diante dos olhos Fedro Mirrinunte79 eaquele orador tebano Lísias, atraído pelo seu amor. Lísias cobiça ovulto de Fedro, Fedro crava-lhe as centelhas dos seus olhos e, aomesmo tempo, com as centelhas transmite-lhe seu espírito. O raio deFedro é com facilidade unido ao raio de Lísias, e também o espíritose une facilmente ao espírito. Tal vapor, gerado pelo coração de Fedro,logo procura as entranhas de Lísias, em cuja dureza se torna maisunido, e sai do sangue de Fedro para o primeiro, assim como o sanguede Fedro, o que é admirável, já está no coração de Lísias. Então, semdemora, um clama ao outro. Lísias a Fedro: �Ó Fedro, meu coração,

Page 174: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 174

caríssimas entranhas!� Fedro a Lísias: �Ó Lísias, meu espírito, ó meusangue!� Fedro segue Lísias, porque o seu coração reivindica o seuhumor. Lísias acompanha Fedro, porque o humor sanguíneo requer opróprio vaso, e exige a sua morada. Na verdade, Lísias acompanhaFedro com maior ardor. De fato, o coração mais facilmente vive semuma pequena partícula do seu humor que o mesmo humor sem opróprio coração. O regato necessita mais da fonte que a fonte doregato. Então, por certo, como o ferro, pela qualidade recebida doimã, é atraído a esta pedra, mas não a atrai, assim também Lísiasacompanha mais Fedro que Fedro a Lísias.

Page 175: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 175

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 5 | Como somos facilmente enredados pelo amor

ACASO ALGUÉM DISSERA: o tênue raio, levíssimo espírito, o escasso sanguede Fedro podem tão depressa, com tanta veemência e de modo tãofunesto manchar todo Lísias? Em qualquer lugar isto não pareceráadmirável, se considerardes as várias enfermidades que se originampor contágio: prurido, comichão, lepra, pleuris, tísica, disenteria,inflamação dos olhos e epidemia. Por certo, sem dificuldade, faz-se ocontágio do amor e sobressai como a mais grave de todas as pestes.Pois, o vapor espiritual e aquele sangue, lançado do adolescente parao mais velho, possui quatro qualidades, como dissemos acima. Éclaro, delgado, quente e doce. Claro, sobretudo porque é harmônico,acaricia e eleva à claridade dos olhos e dos espíritos no velho. Porisso, acontece que por eles é desejado com avidez. Delgado, porquecorre logo para as entranhas. Assim facilmente pelas veias e artériasse insinua a todo o corpo. Quente, porque age e se move comveemência e com mais força penetra no sangue do velho e converte-o para a sua natureza. O que assim tratou Lucrécio:80

Assim aquela gota da doçura de Vênus, em primeiro lugar,destilou para o coração e deixou para si uma cura molesta.

Além disso, porque é doce, de algum modo aquece, nutre edeleita as vísceras. Então acontece que todo o sangue do homem,modificado na natureza do sangue juvenil, deseja o corpo daquele

Page 176: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 176

jovem, em cujas veias se fixa o humor do sangue recente, e tambémpassa às veias novas e tenras. Sucede ainda que este doente seja aomesmo tempo atingido pelo desejo e pela dor. Pelo desejo, por causada claridade e doçura daquele vapor e do sangue. Pois aquela atrai eesta deleita. Pela dor, pela sua própria tenuidade e calor. De fato,aquela reparte e dilacera as vísceras; esta toma do homem o que éseu, e muda-o na natureza de outro. Por isso, com certeza, não permiteque a mudança repouse em si, mas sempre o atraia para aquele quefoi infectado. Assim indicou Lucrécio:81

E o corpo o leva para onde a mente foi ferida pelo amor.Pois todos quase sempre se oferecem à ferida e à mente.O sangue corre àquela parte em que somos feridos com uma

[pancada.E se se aproxima, o humor vermelho corre para o inimigo.

Nestes versos Lucrécio deseja que o sangue do homem, feridopelo raio dos olhos, chegue ao que lhe feriu do mesmo modo como osangue de alguém, que caiu ferido pela espada, a este homemretroceda. Assim, como diria, se procurardes a razão do milagre, eu arevelarei. Heitor fere e mata Pátroclo.82 Pátroclo observa Heitor, queo feriu. Por isso, o seu pensamento julga que deve se vingar. Semdemora, a bílis se incita para a vingança; por ela o sangue se inflamae logo corre pela ferida, não só para defender aquela parte do corpo,mas ainda para vingá-la. E, do mesmo modo, correm os espíritos;porque estes são leves, voam para Heitor e migram para ele; pelo seucalor se mantêm por um certo tempo, imagina, até às sete horas.Neste mesmo tempo, se Heitor, posicionado perto do cadáver, olhaa sua ferida, esta mesma ferida lança o sangue que corre contra Heitor;na verdade, o sangue, de algum modo, pode passar para o inimigo,porque todo o calor ainda não se extinguiu, nem a agitação interiorse acalmou, mas também pouco antes se movera contra ele, e, afinal,porque o sangue se volta para os seus espíritos e os espíritos, por suavez, atraem o seu sangue para si. Comprovamos que, de modosemelhante, Lucrécio indicou que o sangue, que corre do homemferido, por amor, a ele se apressa.

Page 177: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 177

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 6 | De um certo efeito admirável do amor vulgar

ACASO, Ó HOMENS CASTÍSSIMOS, direi ou antes omitirei o que dissodecorre? Por certo eu o direi; visto que isto exigis, mas parece umabsurdo contá-lo. Mas, de fato, quem não dirá de modo torpe coisastorpes? Tão grande alteração, voltando-se do homem mais velho àsemelhança do mais jovem, faz com que todo este seu corpo procurese transferir naquele e se transporte todo daquele para si, a fim deque ou o novo humor acompanhe os novos vasos, ou os vasos maistenros acompanhem o humor mais tenro. Então, muitos são obrigadosa fazer coisas muito torpes entre si. Com efeito, quando o sêmengenital corre por todo o corpo, confiam que só pelo seu lançamentoou gesto podem entregar todo o corpo ou recebê-lo todo. Isto notouem si mesmo aquele filósofo epicurista, Lucrécio,83 o mais infeliz detodos os amantes:

Assim então alguém recebe os golpes do dardo de Vênus,quer o menino o lance aos membros das mulheres,ou a mulher, lançando o amor por todo o corpo, com issose fere, inclina, e se alegra por se juntar a ele.E lança ao corpo o humor tirado do corpo...................................................................................

Page 178: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 178

Imagina o corpo com avidez, juntam as salivasda boca e, em vão, apertando, sopram as bocascom os dentes, porque assim nada podem suprimirnem penetrar e sair de todo o corpo para o corpo.Pois, às vezes, parece que querem fazer e lutar.Até que com ardor os membros do desejo se prendem aos

[companheirosde Vênus enquanto se dissolvem pela força enfraquecida.

O epicurista Lucrécio disse isto. Porque os amantes desejamtomar para si todo o amado, diz-se que isto demonstra Artemísia,84

esposa de Mausolo, rei da Cária, que amou seu marido acima daafeição humana, e reduziu o corpo do seu defunto a pó, e o bebeu,dissolvido em água.

Page 179: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 179

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 7 | O amor vulgar é perturbação do sangue

NA VERDADE, É ARGUMENTO que esta paixão está no sangue; porquecarece de tal repouso nos outros, por certo, a febre contínua é colocadapelos Físicos no sangue; a qual, entretanto, permanece em repousona pituíta por seis horas; e fica um dia na bílis; e dois no humor dabílis negra. Portanto, com razão a colocamos no sangue. Isto é, nosangue melancólico, como ouvistes na oração de Sócrates, a fixaçãodo pensamento acompanha sempre este sangue.

Page 180: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 180

VII, 8 | Como o amante se torna semelhante ao amado

POR ISSO, NENHUM DE VÓS se admire se ouvir que aquele amante produziualguma semelhança ou figura do amado em seu corpo. Comfrequência, as mulheres grávidas pensam vivamente no vinho, quedesejam com avidez. O pensamento exagerado move os espíritosinteriores e neles desenha a imagem da coisa desejada. Estes, damesma forma, movem o sangue e, na delicadíssima matéria da barriga,reproduzem a imagem do vinho. Logo o amante deseja com maiorardor e veemência seus prazeres e neles pensa com maior firmezaque as grávidas. O que seria admirável se até os vultos, que estãopresos e fixos no peito, pelo próprio pensamento fossem representadosno espírito, e, pelo espírito, fossem logo fixados no sangue? Sobretudoquando nas veias de Lísias o sangue delicadíssimo de Fedro já é gerado,para que o vulto de Fedro possa facilmente refletir-se no seu própriosangue. Pois, na verdade, cada membro do corpo, como todos osdias se resseca, assim todos os dias se restabelecem com o orvalhotomado ao alimento, acontece que por dias o corpo de cada homem,que por si mesmo se exauriu, aos poucos se refaz. Logo, os membrosse refazem pelo sangue que emana dos regatos das veias. Porconsequência, vos admirareis se, pintado com uma certa semelhança,o sangue imprimir esta mesma semelhança nos membros, de modoque, enfim, o mesmo Lísias parece se tornar igual a Fedro em algumascores, feições, afetos ou gestos?

Page 181: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 181

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 9 | Por quem somos particularmente enamorados

ALGUÉM TALVEZ PROCURE saber, sobretudo, não só deste modo por quaispessoas os amantes são enredados, mas também por quem, de algumaforma, são separados. Sem dúvida, as mulheres atraem os homenscom facilidade, porém, mais facilmente aquelas que trazem consigouma certa índole masculina. Com tão maior facilidade os homensatraem os homens porque são mais parecidos a eles que as mulheres,e têm sangue e espírito mais lúcido, quente e delgado, coisas em queconsiste o enredamento amoroso. Dentre os homens, mais depressafascinam os homens ou as mulheres aqueles que são de algumamaneira mais sanguíneos que coléricos; possuem olhos grandes,verdes e brilhantes, sobretudo se, em verdade, vivem castos, e nãodesfiguram os rostos serenos pelo coito com o notável suco exauridodos humores. Com efeito, como acima dissemos, estas coisas sãoprocuradas pelas mesmas setas enviadas, que ferem o coração. Alémdisso, eles mais depressa se enlaçam aos que nascem, se Vênus estavaem Leão, ou a Lua observava Vênus com maior ardor, e que estãodispostos numa mesma junção. Os fleumáticos nunca são dominadospela pituíta. Os melancólicos, onde há a bílis negra, na verdade, sãoa custo capturados, mas, depois de capturados, nunca dele se liberamdepois. Quando o sanguíneo sobrepuja o sanguíneo, o jugo é leve e ovínculo suave, porque semelhante união cria o amor recíproco. Alémdisso, a suavidade deste humor concede esperança e fidelidade ao

Page 182: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 182

amante. Quando o colérico se une ao colérico, é a escravidão maisinsuportável. Todavia, a semelhança da união neles cria algumavicissitude de benevolência, mas aquele humor da bílis perturba-oscom uma cólera frequente. Quando o sanguíneo se une ao colérico,ou o oposto, por causa da união conjunta do humor suave com oenérgico, gera-se uma certa alteração de cólera e graça, de desejo edor. Quando o sanguíneo se une ao melancólico, é um laço perpétuo,não muito infeliz. Porque a doçura do sangue combina a amargura damelancolia. Quando, na verdade, o colérico seduz o melancólico, é amais perniciosa de todas as pestes. O humor muito vivo doadolescente aos poucos penetra nas vísceras do mais velho. A chamaestá nas brandas medulas. O amante infeliz por eles se excita. Acólera leva à cólera e às matanças. A melancolia à tristeza e àlamentação perpétua; muitas vezes, nestes, a saída do amor é comopara Fílis,85 Dido86 e Lucrécio. Porém, o adolescente fleumático oumelancólico não atrai ninguém por causa da consistência do sanguee dos espíritos.

Page 183: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 183

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 10 | Como são seduzidos os amantes

PORÉM, COMO OS AMANTES são seduzidos, parece já termos dito osuficiente, se neste momento acrescentarmos que, então, são muitoseduzidos quando, com um olhar muito frequente e fixo, dirigindo-seà outra ponta, os olhos se unem aos olhos e, infelizes, absorvem umlongo amor. Sem dúvida, toda a causa e origem desta enfermidade,como agrada a Museu,87 é o olho. Por isso, se alguém sobressai pelobrilho dos olhos, ainda que não tão composto nos membros restantes,muitas vezes, por aquela razão que dissemos, obriga o que contemplaa se enlouquecer por ele. Quem está, ao contrário, bem ordenado,convida mais a uma certa benevolência moderada que ao ardor. Aboa disposição dos membros restantes, além dos olhos, não pareceser a força da razão de tal doença, mas o impulso do momento. Porquetal composição de longe exorta o observador a vir para mais perto.Depois, na sua própria consideração retém o que percebe por muitomais tempo próximo. Decerto, apenas a própria visão fere o que estáretido. Entretanto, não só o olho, mas a concórdia e a alegria detodas as partes concorrem como causa para aquele amor moderado,partícipe da divindade, de que se discute muito neste convívio.

Page 184: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 184

VII, 11 | O modo de se desligar do amor

ATÉ AGORA TRATAMOS de como e pelo que somos seduzidos. Resta queensinemos em poucas palavras como nos desligamos do amor. Naverdade, há duas soluções: decerto uma é da natureza, e a outra, dadiligência. A natural é realizada em certos intervalos de tempo. Enão concerne somente a esta, mas a todas as enfermidades. Pois,tanto o prurido permanece na pele quanto o refugo do sanguecorrompido nas veias, ou a pituíta salgada floresce nos membros. Oprurido cessa no sangue limpo e na pituíta destruída, e as manchassão retiradas da horrível pele. Contudo, pela natureza, a diligência daevacuação concede muito. A evacuação ou a união repentina sãoconsideradas muito perigosas. Também o movimento dos amantespersevera necessariamente por tanto tempo quanto aquele contágiodo sangue, que, lançado às veias pelo fascínio, comprime o coraçãocom um grave cuidado, nutre a ferida nas veias, queima os membroscom chamas ocultas. Pois a passagem acontece do coração para asveias e das veias aos membros. Por fim, quando este movimento étirado dos amantes, ao contrário, cessa a inquietação dos loucos. Istorequer um longo espaço de tempo em todos, por certo muito longonos melancólicos, principalmente se forem seduzidos pelo influxode Saturno. E acrescente-se que é muito amargo, se foremabandonados no tempo retrógrado de Saturno, ou na conjunção comMarte, ou oposto ao Sol. Adoecem ainda muito mais aqueles em

Page 185: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 185

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

cujo nascimento Vênus estava na casa de Saturno, ou observava commais veemência Saturno e a Lua. Deve-se acrescentar a esta purgaçãonatural a indústria da arte muito exata. Em primeiro lugar, deve-setomar cuidado para que não tentemos arrancar ou mutilar as coisasprematuras, e não cortemos com grande perigo as que podemosromper com mais segurança. A interrupção do costume deve ser feita.Na verdade, deve-se tomar muito cuidado para que as luzes dos olhosnão se juntem às luzes dos olhos. Se há algum vício no espírito ou nocorpo do amado, deve-se revolvê-lo atentamente no espírito. Oespírito deve se aproximar de muitos, variados e graves negócios.Com frequência, o sangue deve ser reduzido. Deve-se servir do vinhoclaro; um novo sangue e um novo espírito se aproxima ainda sempre,quando o sangue se livra da embriaguez do velho. Muitas vezes, deve-se exercitar até que venha o suor, pelo qual se abrem os poros docorpo para fazer a sua limpeza. Estas coisas, que os Físicos empregampara a defesa do coração e alimento do cérebro, mais que todas, sãomuito úteis. Muitas vezes, ainda, Lucrécio recomenda o que se deveencontrar:

Mas é conveniente evitar as imagens e se abster dos alimentosdo amor, e voltar a mente para outro lugar,e repousar o humor em alguns corpose não deter uma só vez o que se mudou pelo amor de alguém.88

Page 186: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 186

VII, 12 | Quão nocivo é o amor vulgar

MAS PARA QUE NÃO ENLOUQUEÇAMOS, falando por mais tempo sobre aloucura, assim, brevemente, concluiremos. Uma certa beleza daloucura é aquela solicitude incômoda, pela qual os amantes vulgaresdia e noite são atormentados. Aqueles que, por amor, aflitos, primeiropelo incêndio da bílis, e, depois, pela queimadura da bílis negra,desmoronaram em fúrias e fogo, como que cegos, ignorando por ondepudessem se precipitar. O tebano Lísias e Sócrates demonstram noFedro, de Platão, quão pernicioso é este amor adúltero, tanto para oamado quanto para os amantes. E assim, por este furor, o homem élevado à natureza das feras.

Page 187: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 187

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 13 | Quão útil é o divino amor e das suas quatrobelezas

ENTÃO, PELO DIVINO FUROR se eleva sobre a natureza do homem e seconverte a Deus. Além disso, o furor divino é esclarecimento da almaracional, pelo qual Deus retira a alma das coisas superiores àsinferiores, e das inferiores às superiores. A queda da alma deste únicoprincípio de todas as coisas aos corpos se efetua em quatro graus:mente, razão, opinião e natureza. Pois, é necessário que algo se insinuedo primeiro ao último, e caia pelos quatro do meio, visto que emtoda a ordem das coisas existem seis graus, dos quais o próprio uno éo primeiro; o último, o corpo; e os quatro medianos, por certo, são osque predissemos. O próprio uno, fim e medida de todas as coisas,está desprovido de mistura e multidão. A mente angélica é, narealidade, a multidão, mas estável e eterna, das ideias. A razão daalma é multidão móvel, mas ordenada, das noções e argumentos.Contudo, a opinião é a desordenada e móvel multidão das imagens,mas uma substância unida em pontos, visto que a própria alma, emque há opinião, é uma substância, que não ocupa lugar algum. Anatureza é a força de nutrir da alma e igualmente da união animal, anão ser que se difunda pelos pontos do corpo. Depois, o corpo é umamultidão indeterminada de partes e acidentes, submetida aomovimento e dividida em substância, pontos e momentos.

Page 188: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 188

A nossa alma observa todas estas coisas. Por elas desce, e,por meio delas, se eleva. Porque, de fato, é produzida pelo própriouno, princípio de tudo, obteve certa unidade, que une toda a suaessência, forças e operações, pela qual e para a qual, assim, outrascoisas, que estão na alma, existem, como as linhas do círculo, pelocentro e para o centro. Sem dúvida, une não só as partes da almareciprocamente a toda a alma, mas ainda toda a alma ao próprio uno,razão de todas as coisas. Como, entretanto, brilha pelo raio da mentedivina, contempla as ideias de todas as coisas pela mente com ummovimento estável. Visto que observa a si mesma, considera as razõesuniversais das coisas, e discorre dos princípios às conclusões atravésdo raciocínio. Como vê os corpos, revolve na sua opinião as formasparticulares das coisas móveis e imagens, aceitas pelos sentidos.Também toca na matéria, queima pela natureza, assim comoinstrumento, com o qual une, move e forma a matéria. Por isso, seoriginam gerações, crescimentos e seus contrários. Logo, percebe quecorre do uno, sobre a eternidade, para a eterna multidão, da eternidadeao tempo; do tempo ao lugar e à matéria. Corre, digo, quando daquelapureza, em que nasceu, o corpo se retira por mais tempo enquantoama.

Page 189: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 189

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 14 | Em que graus os furores divinos elevam a alma

POR ISSO, COMO POR QUATRO GRAUS desce, é necessário que suba porquatro graus. Porém, o furor divino é aquele que se eleva às coisas,como se manifesta na sua definição. Assim, quatro são as espéciesdo furor divino. Na verdade, o primeiro é o furor poético; o segundo,o misterioso; o terceiro, o do vaticínio, e, o quarto, o afeto do amor.Logo, a poesia vem das Musas; o mistério, de Dioniso; o vaticínio, deApolo, e o amor, de Vênus. De fato, o espírito não pode voltar aouno a não ser que ele próprio se torne uno. Na verdade, terminoumuitas coisas porque caiu no corpo, e, distribuído em várias operações,olha para a multidão infinita das coisas corporais. Por isso, as suaspartes superiores quase morrem, e as inferiores são por elas dominadas.Aquelas são movidas pelo torpor, estas pela perturbação. Além disso,todo o espírito é preenchido pela discórdia e pela falta de simetria.Por essa razão, o primeiro é trabalho do furor poético, que pelos tonsmusicais estimula aquelas coisas, que estão inertes; pela suavidadeharmônica consola as que estão agitadas, e, enfim, pela consonânciade diversas coisas, encontra a discórdia diferente e tempera as váriaspartes do espírito. E isto não é o bastante. De fato, o mistério, quepertence a Dioniso, por expiações sagradas e por todo o culto divino,dirige a intenção de todas as partes à mente, onde Deus é cultuado.Por isso, visto que cada parte do espírito é reconduzida à sua mente,o espírito já se fez um certo conjunto de várias outras partes. Sem

Page 190: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 190

dúvida, então, este é necessário ao terceiro furor, que reconduz amente à própria unidade, cabeça da alma. Apolo efetua isto pelovaticínio. Pois, quando a alma se ergue sobre a mente para a unidade,prevê o futuro. Por fim, quando a alma se torna uno, permanece uno,digo, está na própria natureza e essência da alma, a fim de que, semdemora, volte ao uno, que está sobre a essência, isto é, Deus. AquelaVênus celeste completa isto por amor, isto é, desejo de beleza divinae ardor do bem.

E assim, o primeiro furor se prepara com a falta de simetria edissonância. O segundo completa as coisas temperadas, que, de todasas partes, se torna uno.O terceiro se faz todo uno sobre as partes. Oquarto conduz ao uno, que está acima da essência e acima de tudo.Platão, no Fedro, chama a mente dedicada às coisas divinas de aurigado homem na alma; a unidade da alma, cabeça do auriga; a razão e aopinião, pela natureza que discorre, bom cavalo; a fantasia confusa eo desejo dos sentidos, cavalo ruim. A natureza de toda a alma, carro,porque o seu movimento, como que principia ao redor de si, e, porfim, retorna a si, quando observa a sua própria natureza. Assim, asua consideração, proveniente da alma, volta para ela mesma. Dá aoespírito asas, pelas quais é levado às coisas sublimes, das quaisjulgamos ser aquela indagação, em que a mente a toda a hora sefirma na verdade; e a outra, o desejo do bem, ao qual a nossa vontadese dispõe sempre. Estas partes da alma afastam a sua ordem, quandosão confundidas pelo corpo perturbado. E assim, o primeiro furor, obom cavalo, isto é, a razão e a opinião, se distingue do cavalo ruim, istoé, da fantasia confusa e do desejo dos sentidos. O segundo, o cavaloruim, se submete ao bom cavalo, e o bom ao auriga, isto é, à mente.O terceiro, volta o auriga à sua cabeça, isto é, à unidade, ápice damente. Por fim, a cabeça do auriga se volta à cabeça de todas ascoisas. Assim, o auriga é bem-aventurado, e leva à morada, isto é, àbeleza divina, mantendo os cavalos, isto é, acomodando todas as partesda alma sujeitas a si. Apresenta-lhes antes a ambrosia e o néctar para beber,isto é, a visão da beleza e a alegria da visão. Estas são obras dosquatro furores. Das quais se discute, em geral, no Fedro. Sem dúvida,sobre o furor poético em Íon, e sobre o amor, no Convívio. Podem sertestemunha de todos estes furores o que Orfeu tratou nos seus livros.Aceitamos principalmente do amor o que foi tomado de Safo,Anacreonte e Sócrates.

Page 191: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 191

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

VII, 15 | O amor é o mais notável de todos estes furores

O AMOR É O MAIS PODEROSO e o mais notável de todos estes; maispoderoso, digo, porque todos os outros sentem necessariamente asua falta. E nem assim seguimos a poesia, os mistérios, ou o vaticíniosem grande estudo, ardente piedade e esmerado culto da divindade.Na verdade, que outra coisa chamamos estudo, piedade e culto senãoo amor? Portanto, todos consistem na força do amor. É ainda maisnotável porque os outros a ele se referem como fim. Este, contudo,nos une mais perto de Deus. Em qualquer caso, parecem imitar semrazão estes quatro furores precisamente outros tantos sentimentosadulterinos. Em verdade, imita o furor poético esta música vulgarque persuade apenas os ouvidos; o misterioso, a vã superstição demuitos homens; o fatídico, a enganadora conjectura da prudênciahumana; o amoroso, o ímpeto do desejo. Pois, o verdadeiro amor nãoé outra coisa senão certo esforço de voar para a divina beleza,estimulado pelo aspecto da beleza corporal. Contudo, o amoradulterino é queda do aspecto ao tato.

Page 192: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 192

VII, 16 | Quão útil é o verdadeiro amante

PROCURAIS SABER A QUE O AMOR socrático é útil? Primeiramente, porcerto, é muito útil ao próprio Sócrates para recuperar as asas, com asquais voará de volta à sua pátria, depois muito útil à sua pátria paraviver de modo honesto e feliz. Sem dúvida, não as pedras, mas oshomens fazem a pátria. Na verdade, os homens de tenra idade, assimcomo as árvores, devem ser tratados quando mais jovens e levados aproduzir ótimos frutos. Os pais e os pedagogos cuidam dos filhos.Contudo, os adolescentes não transpõem mais os limites dos pais edos pedagogos do que são corrompidos pelo costume iníquo do vulgo.Pois, seguem uma norma superior de viver concebida em casa, a nãoser que pelo uso e por aquele costume se afastem dos homensímprobos, sobretudo dos que os lisonjeiam. Logo, o que fará Sócrates?Acaso permitirá que a adolescência, que é a semente da futurarepública, seja corrompida pelo contágio com dissolutos? Mas ondeestá o amor à pátria? E, portanto, Sócrates protegerá a pátria, e livraráda destruição os filhos desta, seus irmãos também. Talvez redija leis,com as quais separará os homens lascivos do costume dosadolescentes. Mas não podemos todos ser Sólons89 ou Licurgos.90 Apoucos é dada a autoridade de reunir leis; pouquíssimos obedecemàs leis promulgadas. O que fará então? Apresentará a força,descarregando a mão, e afastará da juventude os mais velhos? Masdiz-se que somente Hércules combateu com monstros; tal violência

Page 193: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 193

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

é muito perigosa para os outros. Advertirá, atacará e punirá talvez oshomens celerados? O espírito perturbado despreza as palavras dosque o advertem e, o que é pior, enfurece-se contra o conselheiro. Poresta razão Sócrates foi atingido por uma pessoa com um murro e poroutra com o pé, quando tentara isto. Uma única via de salvação restaà juventude: o costume de Sócrates. Logo, aquele mais sábio dentreos gregos, unido pela caridade, a ela se mistura por toda parte e brilhanuma grande multidão de adolescentes que o acompanha. Assim, overdadeiro amante os protege dos falsos amantes, como o pastorprotege o rebanho de cordeiros da voragem dos lobos e da peste.Pois, na verdade, os pares facilmente se juntam a seus pares, faz-separ aos mais jovens na pureza da vida, na simplicidade das palavras,brincadeiras, jogos e gracejos. E, em primeiro lugar, faz-se de velhomenino, para que algum dia, pela doméstica e alegre familiaridade,represente os meninos em velhos. A bem disposta juventude semantém num único prazer para o prazer, e evita os rígidos preceptores.Então, o nosso tutor da adolescência, para a saúde da sua pátria,quando a administração de todas as suas coisas é negligenciada,assume o cuidado dos mais jovens e, primeiramente, toma-os nasuavidade do agradável costume. Adverte os que foram assimenlaçados, depois um pouco mais severamente, por fim, castiga-oscom a censura de forma mais rígida. Deste modo, remiu daquelacalamidade o adolescente Fédon, prostituído em lupanar público, etornou-o filósofo. Coagiu Platão, dedicado à poesia, a confiar astragédias ao fogo e a escolher os estudos mais preciosos. PassouXenofonte91 da vulgar suntuosidade à sobriedade dos sábios.Representou Ésquino92 e Aristipo93 ricos dentre os mais pobres; Fedroorador, como filósofo; Alcibíades ignorante, como muito douto. FezCármides94 rígido e comedido; Teages,95 justo e forte cidadão darepública. Levou Eutidemo e Menon96 das sutilezas dos sofistas àverdadeira sabedoria. Por isso é fato que o costume de Sócrates foratão agradável quanto útil, e, como disse Alcibíades, Sócrates forapelos adolescentes muito mais amado do que amara.

Page 194: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 194

VII, 17 | Como devem ser dadas graças ao Espírito Santoque nos iluminou e anima a esta disputa

AGORA, POIS, Ó ÓTIMOS CONVIVAS, felizmente parecemos ter descobertoo que é o amor, quem é o verdadeiro amante, ou a utilidade do amante,primeiro pela vossa, e depois pela minha disputa. Contudo, julgaisem dúvida qual é a causa e o mestre desta muito feliz invenção; eleé o próprio amor, que se reconhece. Pois, assim como dissera,animados por encontrar o amor, pelo amor procuramos e encontramoso amor, a fim de que do mesmo modo deva ser dada a graça destamesma investigação e descoberta. Ó admirável nobreza destadivindade! Ó incomparável benevolência do amor! Pois que outrasdivindades com custo então, depois de as procurardes por muitotempo, pouco se mostraram. O amor ainda se apresenta aos que hãode procurá-lo. Por isso, os homens se confessam muito mais devedoresdeste que de outros. Há, entretanto, aqueles que muitas vezes ousamlançar imprecações contra o poder divino, fulminador dos nossoscrimes. Alguns ainda odeiam a sabedoria, exploradora de todas asnossas desonras. Na verdade, não podemos não amar o amor divino,que nos dá todos os bens. Contudo, cultivamos este amor de tal formaa nós propício naquela mente, que veneramos a sabedoria erespeitamos o poder, para que, assim como falei, quando o amor forguia, tenhamos Deus todo propício, e, zelosos do brilho do amor,gozemos ainda de todo o amor perpétuo de Deus.

Florença, julho de 1460.

Page 195: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 195

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

Notas1 [�] they represent the earnst and subjective enthusiasm of a man who believeshe has the key to whatever it is we are seeking, who is perfectly aware that,though he is represeting the true Plato, he is also accomplishing something whichhas never been done before: showing how Christianity and Platonism are reallyharmonious parts of the same explanation of the universe. (JAYNE, 1944, p.20)2 São eles o médico Giorgio Ciprio; o filósofo Pico dela Mirandolla;os poetas Angelo Poliziano, Carlo Marsuppini e Naldo Naldi; ossacerdotes Francesco Bandini e Francesco Castiglione; os retóricosComando Comandi, Bernardo Nuzzi e Benedetto Colucci; os músicosAntonio Serafico e Cherubino Quarquali; além de GiovanniGuicciardini, Franceso Rinuccini, Bernardo del Nero e FrancescoCastiglione.3 From the East, the philosophy of Platonic love, a masculine anda esotericphilosophy; from the West, the stream of Renaissance courtly love, traditionsof romantic, feminine, personal love, coming to Italy from Provence throughSicily; and from the South, the stream of Christian love, intellectualized by St.Augustine, and ritualized by the Roman chuch. (JANYNE, 1944, p. 20)4 O estudo que segue é uma parte da conferência realizada naUniversidade de Colônia, intitulada �Die Gegenseitigkeit der Liebebei Ficino und Camões�, realizada no Petrarca Institut num distantefevereiro de 1994.5 Tanto Kristeller como Garin mostraram brilhantemente como arenúncia de Ficino aos estudos da juventude (Lucrécio e Aristóteles)repercutem na Theologia Platonica. Penso no De rerum natura:

Sic igitur solem, lunam, stellasque putandum

ex alio atque alio lucem iactare subortu,

et primum quid flammarum perdere semper;

inviolabilia haec ne credas forte vigere.

Denique non lapides quoque vinci cernis ab aevo,

non altas turris ruere et putrescere saxa,

Page 196: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 196

non delubra deum simulacraque fessa fatisci,

nec sanctum numen fati protollere finis

posse neque adversus naturae foedera niti?

Denique non monimenta virum dilapsa videmus,

querere proporro sibi cumque senescere credas

non ruere avolsos silices a montibus altis,

nec validas aevi vires perferre patique

finiti? Neque enim caderent avolsa repente,

ex infinito quae tempore pertolerassent

omnia tormenta aetatis, privata fragore.

(LUCR. De rerum natura, 5, 302-317)6 Chacune de ses métaphores a une histoire: elle renvoie indirectement à unmythe, à une cosmologie, à un traité de morale ou à l�Évangile. La pensée sefraye ainsi un paysage à trravers des reflets et des alusions soigneusement disposés.Mias il faut encore se demander si certaines images et peut-être même le repertoireentier des figures mythologiques et des évocations rustiques n�a pas pour Ficinune valeur plus subtile et si l�on peut dire operatoire. (CHASTEL, 1954, p. 47)7 Aber diesen Streben des Bedingten zum Unbedingten entspricht auf der Seitedes letzteren kein Gegenstreben. Das Uberseiende und das uber-Eine desNeuplatonismus steht auch uber dem Leben (hýper tò zen). Die reine Objektivitätdes Absoluten steht als solche uber der Sphäre des subjektiven Bewusstseingefasst werden. Denn wie die Bestimmung des Strebens, so ist auch die desErkennes von Absoluten fernzuhalten. Alles Erkennen setzt die Beziehungauf ein anderes voraus, welche der reinen Autarkie des Absoluten seinerGeschlossenheit in sich selbxt widerstreiten wurd. Ficinos Theorie der Liebedurchbricht diesen Gedankenkreis, sofern sie den Prozess dere Liebe als einendurchaus wechselseitigen Prozess fasst. Das Streben des Menschen zu Gott,das sich im Eros darstellt, wäre nicht möglich ohne ein Gegenstreben Gotteszum Menschen. Hier ist es der Grundgedanke der christlichen Mystik, der inFicin lebendig wird, und der auch seinem Neuplatonismus eine neue Prägunggibt. (CASSIRER, 1927, p. 139)

Page 197: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 197

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

8 Centrum mundi verum Deus est, ut in libro De Amore disseruimus, quiaunus, simplex, stabilis est, et in omnibus, atque alia quaelibet omnino plura,composita, mobilia circa ipsum per naturalem ipsius appetitum perpetuorevolvuntur. Ita centrum Deus est omnium, quia sic est in omnibus, ut cuiquerei interior sit quam ipsamet sibi. Est etiam circumferentia mundi quia extracuncta existens, ita supereminet universa, ut cuiusque rei summum apicemdignitate excellat immensa. Item quanto est omnium (si dictu fas est) minimusquantitate, tanto virtute est maximus omnium. Ut est centrum quidem, est inomnibus, ut circumferentia vero, est extra omnia in omnibus, inquam, noninclusus, quia est et circumferentia. Extra omnia quoque non exclusus, quia estet centrum. Quid ergo Deus est? Ut ita dixerim circulus spiritualis, cuius centrumest ubique, circumferentiam nusquam. (Theologia Platonica, 18, 3)9 Cf. o estudo exemplar de Werner Beierwaltes, op. cit., p. 40-48.10 Político fiorentino, mantenedor de Lourenço de Médici.11 Humanista e matemático italiano, autor de uma Vida deBrunelleschi.12 Literato que tornou-se um dos primeiros membros da AccademiaFiorentina, responsável por redigir seus estatutos.13 Diotima de Mantineia foi uma sacerdotisa e filósofa grega, queteria influenciado Platão com sua teoria sobre o amor. Sua existênciareal é questionada, podendo ser tão somente uma personagem doBanquete.14 Filósofo neoplatônico, autor das Enéades, no séc. III a. C., tevecomo um de seus discípulos Porfírio.15 Arcebispo, de família nobre, dedicado às letras, considerado porFicino como um membro essencial à Academia.16 Neoplatônico, comentarista da obra de Dante.17 Considerado por Ficino como o Cícero de seus tempos por suasqualidades retóricas, Bernardo di Francesco Nuzzi foi um dos prioresde Florença.18 Discípulo de Ficino, autor de uma tradução do Pimandro, de HermesTrimegisto, baseada na versão latina de Ficino.

Page 198: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 198

19 Poeta florentino, amigo mais próximo de Ficino, a quem dedicouuma obra.20 Orador do século V a. C.21 Ao nome de Hermes Trismegisto, três vezes grande, é associada afilosofia do hermetismo, que associa saberes de doutrinas mágicas,filosóficas e alquímicas.22 Filósofo grego, cuja única obra sobrevivente constitui-se defragmentos do livro Da natureza.23 Logógrafo e mitógrafo grego do séc. VI a. C., autor das Genealogias.24 Pl. Tim. 29A-31A25 Discípulo de Aristóteles, alega que o homem é responsável por seupróprio destino e que a vida ativa é superior àquela contemplativa.26 Virg. Ecl. VIII, 75: numero deus impare gaudet. O número três éconsiderado perfeito, indivisível, atribuído ao deus supremo,correspondendo a princípio, meio e fim.27 Ou Pseudo-Dioniso, de origem desconhecida, apresentado peloapóstolo Paulo como o primeiro bispo de Atenas. Hierioteu émencionado pelo próprio Dioniso como seu discípulo, autor de umtexto teológico.28 Pl. Rep. VI, 507E.29 Dioniso II, ou o Jovem, tirano de Siracusa, após a morte de seu pai,em 367 a. C.30 Segundo JAYNE (1944: 138), provavelmente Ficino teria utilizadoaqui as edições espúrias das cartas de Platão, sem atentar para aautenticidade dos textos.31 Há duas versões para o nascimento de Vênus: na primeira, quandoUrano foi castrado, seu sêmen caiu do céu nas espumas das ondas domar, que gerou a deusa; em outra versão, ela é filha da ninfa Dionecom o deus Júpiter. Daí as duas Vênus.32 Isto é, os médicos, ou investigadores da natureza, e os filósofosmorais.

Page 199: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 199

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

33 Dois exemplos de amizade e lealdade.34 Santo Agostinho de Hipona, bispo, autor de obras como De civitateDei e Confessiones.35 Diágoras de Melos, autor do séc. V a. C., tornou-se ateu,considerando que era infundada a crença nos deuses, que não puniama ninguém. Por isso, foi condenado à morte.36 Protágoras, natural de Abdera, também foi considerado ateu; suacrença era de que não há medida para as coisas, já que estas sãomedidas pelos homens e cada um tem a sua própria medida. Foiigualmente condenado à morte.37 A doutrina epicurista, de forma geral, se caracterizava pela crençano bem supremo através do prazer, encontrado na prática da virtude.38 Filosofia que assevera que o bem supremo é adquirido pelo equilíbriona busca dos prazeres, para se alcançar a felicidade.39 Os cirenaicos acreditam numa filosofia hedonista, ou seja, o prazerindividual e imediato é o único bem.40 Marco Terêncio Varrão, romano, acreditava numa teologiatripartida: mítica, política e natural.41 Manílio poeta e astrólogo romano, autor das Astronomica, ondeexplica que os movimentos dos astros influenciam e modificam ocomportamento dos homens.42 Isto é, os filósofos naturais, que utilizam as plantas e osconhecimentos medicinais.43 Cf. ARIST. Poet. VII, 8.44 Cf. VIRG. En. VI, 129.45 III, 11.46 LV, 5.47 Anaxágoras de Clazômenas, filósofo do séc. V a. C., acusado deimpiedade, retirou-se para Lâmpsaco. Ele teria escrito uma obraintitulada Da natureza, onde expôs suas ideias acerca de uma existênciamúltipla.

Page 200: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 200

48 Musicólogo grego do séc. V a. C., um dos conselheiros de Péricles.49 O filósofo Arquelau de Atenas foi discípulo de Anaxágoras,estudava a filosofia da natureza.50 Filósofo do séc. V a. C., ensinava a ética, tendo no trabalho a curapara os males e dores da vida.51 Sofista grega, que promovia reuniões literárias em sua residência.Talvez tenha fundado uma escola para mulheres; foi amante dePéricles, a quem teria influenciado filosófica e retoricamente.52 Talvez um músico.53 Diotima de Mantineia foi uma filósofa e sacerdotisa grega que, porsua teoria sobre o amor, teve grande destaque no Banquete de Platão.54 Deus do vinho associado a Baco, que juntamente com Vênus tevepor filho Priapo, deus da fertilidade.55 Diana, deusa da lua e da caça, a deusa pura; Palas Atena ou Minervaé a deusa da sabedoria e da justiça.56 Em verdade, para Platão são seres espirituais ou sobrenaturais.57 Os gênios que inspiram cada ser, presidindo seu caráter, semconotação de bom ou mau.58 Poro seria a representação da riqueza enquanto que Pênia seria apobreza.59 Lucrécio foi um filósofo romano que seguiu a doutrina epicurista.Não se tem certeza das circunstâncias de sua morte. Alguns dizemque ele cometeu suicídio devido a ataques de loucura.60 Médico e filósofo persa do séc. I d. C., autor de diversos tratadosmédicos.61 PL. Sof. 231D.62 Filósofo neoplatônico do séc. I d. C., viajou durante muitos anospelo oriente, onde aprendeu as doutrinas mágicas. Porfírio cita suasobras na Vida de Pitágoras.63 Alcibíades Clínias, sobrinho de Péricles, nobre ateniense do séc. Va. C. Conhecido por sua beleza extraordinária, Alcibíades fora amigode Sócrates, com quem aparece em dois diálogos de Platão.

Page 201: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 201

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

64 Sobrinho de Platão e seu sucessor na direção da Academia, tendoeleito, por sua vez, a Xenócrates como seu sucessor.65 Discípulo de Platão, escreveu sobre filosofia e matemática.66 Guido Cavalcanti foi poeta do séc. XIII, amigo de Dante, citadopor este em algumas de suas obras.67 Os três acusaram a Sócrates de não reconhecer os deuses do estado,o que levaria os jovens à corrupção. Meleto era um poeta e Anitos,um orador influente, comerciante de peles. A acusação levou à mortede Sócrates. Entretanto, os três acusadores sofreram, por sua vez,represálias, sendo banidos ou mortos.68 Trasímaco foi um advogado, presente na República de Platão, quejuntamente com Polo indicava que o justo consistia naquilo que fosseútil ao mais forte. Cálias III foi um ateniense bastante rico eesbanjador, citado por Xenofonte e por Platão.69 Na comédia As nuvens, Aristófanes satiriza os sofistas por seuspensamentos sem ética.70 PL. Fed. 229.71 PL. Gorg, 494.72 Zópiro conseguiria ver através da aparência o caráter das pessoas;assim, acusou Sócrates de vários vícios, que o próprio Sócrates disseter dissipado ao dedicar à razão.73 Mársias teria encontrado a flauta inventada e abandonada pela deusaAtena. Ao se tornar exímio músico, desafiou Apolo para um duelo,pelo qual, ao perder, foi punido e esfolado.74 PL. Fed. 265.75 Cf. SUET. Div. Aug. 79.76 Cf. SUET. Tib. 68.77 ARIST. De insom. 2.78 APUL. De dogm. Plat. Filósofo do séc. I d. C., escreveu diversasobras, dentre as quais o célebre O asno de ouro e foi acusado de praticaras artes mágicas.

Page 202: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 202

79 Fedro, pertencente ao demo de Mirrinunte, frequentou o círculo deSócrates, tendo sido citado nos diálogos platônicos Protágoras eConvívio, onde discutia acerca da beleza.80 LUCR. De rer. nat. IV.81 Id. Ibid.82 Cf. Ilíada, de Homero. Pátroclo lutou na guerra de Troia ao lado deHeitor. Tendo sido golpeado pelo inimigo, mas também atingido pelopróprio companheiro, Heitor deseja se vingar de sua morte, mas éimpedido pela imagem do próprio Pátroclo que lhe pede para ter ashonras fúnebres. Heitor, então, realiza jogos fúnebres em sua honra,logo após a sua cremação.83 LUCR. De rer. nat. IV.84 Artemísia II foi irmã e esposa de Mausolo, sátrapa da Cária no séc.IV a. C. Quando o marido morreu, mandou erigir para ele ummonumento conhecido como o Mausoléu de Halicarnaso. Conta-seque ela ficou tão comovida com a morte do marido que tomou ascinzas do marido misturada a uma bebida.85 Esposa de Demofonte, Fílis comete suicídio ao ver que seu maridonão retornou de sua terra natal para ela no dia determinado.86 Cf. Eneida de Virgílio, Dido vai para a ilha de Cartago após a mortede seu marido Siqueu e lá se torna rainha. Eneias, herói troiano chegaà ilha e os dois se apaixonam; no entanto, Eneias segue seu destino,deixando Dido para trás. Ao ver os navios se distanciarem com seuamado, a ratinha comete suicídio.87 Poeta grego associado a Orfeu, considerado um dos fundadores daescola órfica de filosofia.88 LUCR. De rer. nat. IV.89 Sólon foi legislador e estadista grego, considerado um dos sete sábios.90 Legislador de Esparta, a quem foram lendariamente atribuídas asleis da cidade.91 Discípulo de Sócrates, autor de obras sobre a história de seu própriotempo, conhecida como Anábase, e por uma defesa de Sócrates.

Page 203: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 203

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

92 Orador e filósofo ateniense, discípulo de Sócrates.93 Outro discípulo de Sócrates, fundador da escola cirenaica.94 Cármides é o título de um diálogo platônico em que o personagemque dá nome ao título do livro discute sobre a moderação.95 Filho de Demódoco e personagem-título de um diálogo atribuído aPlatão.96 Eutidemo seria um sofista, igualmente personagem-título de outrodiálogo platônico em que se debatem as falácias lógicas. Menon eraum aventureiro, que se apresenta no diálogo de Platão de mesmotítulo discorrendo sobre a virtude.

Page 204: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

O Livro do Amor: Comentário sobre o Convívio de Platão | Marsilio Ficino

Sumário | 204

Referências BibliográficasALLEN, Michel J.B. The Platonism of Marsilio Ficino. California: University ofCalifornia Press, 1984.

ANICCHINI, Giuseppe. L�Umanesimo e il problema della salvezza in MarsilioFicino. Milano: Vitae Pensiero, 1937.

BAKTIN, Leonid. l�Idea di individualità nel Rinascimento italiano. Bari: Laterza,1992.

BEIERWALTES, Werner. Marsilio Ficinos Theorie des Schönen im Kontext desPlatonismus. Heidelberg: Carl Winter Universitätsverlag, 1980.

BURCKHARDT, Jacob. A civilização da Renascença italiana. Lisboa: Presença, s/d.

CARUS, Tito Lucretius. La natura (ed. bilingue). 7. ed. Milano: Rizzoli, 1988.

CASSIRER, Ernst. Individuum und Kosmos in der Philosophie der Renaissance.Leipzig/ Berlin: Teubner, 1927.

CASTELLI, Patrizia et alii. Il lume del sole: Marsilio Ficino, Medico dell�Anima. Firenze:Opus Libri, 1984.

CERULLI, Enrico et alii. L�Averroismo in Italia. Roma: Accademia Nazionale deiLincei, 1979.

CHASTEL, André. Marsile Ficin et l�art. Genève: Lille CNRS, 1954.

CORNFORD, F.M. Principium sapientiae. 3. ed. Lisboa: Calouste, 1989.

DRESS, Walter. Die Mystic des Marsilio Ficino. Berlin und Leipzig: Walter de Grutere Co., 1929.

EISENBICHLER, Konrad; PUGLIESE, Olga. Ficino and Renaissance Platonism. Toronto:University of Toronto/ Dovehouse, 1986.

FICINO, Marsilio. El libro dell�amore (a cura di Sandra Niccoli). Firenze: IstitutoNazionale di Studi del Rinascimento/ Leo Olschki, 1987.

______. De vita (a cura di Albano Biondi e Giuliano Pisano). Pordenone: Edizionidell�Immagine, 1991.

______. Marsilio Ficino�s Commentary on Plato�s Symposium. Translationand introduction by Sears Reynolds Jayne. Columbia: University of Missouri, 1944.

______. Uber die Liebe oder Platons Gastmahl (ubersetzt von Karl Paul Hasseherausgegeben und eingeleitet von Paul Richard Blum). Hamburg: Felix Meiner Verlag,1984.

GARFAGNINI, Giancarlo. Marsilio Ficino e il ritorno di Platone. Firenze: Olschki,1986.

GARIN, Eugenio. O zodíaco da vida. Lisboa: Estampa, 1988.

_______. Idade Média e Renascimento. Lisboa: Estampa, 1989.

Page 205: O Livro do Amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo · Nota sobre esta ediçªo A presente ediçªo de O livro do amor: ComentÆrio sobre o Convívio de Platªo Ø a segunda

Sumário | 205

TRADUÇÃO E COMENTÁRIOS Ana Thereza Basilio Vieira

GOMBRICH, E.H. Norma e forma. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

HÖNIGSWALD, Richard. Denker der Italienischen Renaissance, Gestalten undProbleme. Basel: Haus zum Falken Veerlag, 1938.

JÄGER, Michael. Die Theorie des Schönen in der Italienischen Renaissance. Köln:Dumont Buchverlag, 1990.

KLIBANSKY, Raymond; PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz. Saturn und Melancholie.Frankfurt am Maim: 1990.

KLUNSTEIN, Ilaná. Marsilio Ficino et la Théologie Ancienne. Firenze: Leo Olschki,1987.

KRISTELLER, O.P. Die Philosophie des Marsilio Ficino. Frankfuirt am Main: VittorioKlostermann Verlag, 1972.

______. Acht Philosophen der Italienischen Renaissance. Weinheim: ActaHumaniora, 1986.

MAHNKE, Dietrich. Unendliche Sphäre und Allmittelpunkt. 2. ed. Stuttgart: BadCannstadt, 1966.

MICHAEL, Jäger. Die Theorie des Schönen in der Italienischen Renaissance. Köln:Dumont Verlag, 1990.

MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo. São Paulo: Mestre Jou, 1971.

OEHLING, Ute. Die Philosophische Begrundung der Kunst bei Ficino. Stuttgart:Teubner, 1992.

POMPONAZZI, Pietro. De immortalitate animae (a cura di Giovanni Gentile). Messina-Roma: G. Principato, s/d.

______. Abhandlung uber die Unsterblichkeit der Seele (herausgegeben vonBurkhard Moysich). Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1990.

______. Corsi Inediti dell�Insegamento Padovano. Padova: Antenore, 1966.

ROBB, Nesca A. Neoplatonism of the Italian Renaissance. London: George Allene Unwin, 1935.

SAITTA, Giuseppe. Il pensiero italiano nell�Umanesimo e nel Rinascimento.Bologna: Cesare Zuffi, 1949.

WALKER, D.P. Spiritual and Demonic Magic from Ficino to Campanella. London:Warburg Institute, University of London, 1958.

YATES, Frances. Giordano Bruno. São Paulo: Cultrix, 1995.

ZINTZEN, Clemens (herausgegeben von). Die Philosophie des Neuplatonismus.Darmstadt: Wissenchaftliche Buchgesellschaft, 1977.