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Dhyan Shanasa O Livro de TUNES

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O Livro de Tunes Volume I

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Dhyan Shanasa

O Livro de

TUNES

Dhyan Shanasa

O Livro de

TUNES

Volume I

são paulo - 2010

editora

Ao adquirir um livro você está remunerando o trabalho de escritores, diagramadores, ilustradores, revisores, livreiros e mais uma série de profissionais

responsáveis por transformar boas idéias em realidade e trazê-las até você.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser copiada ou reproduzida por qualquer meio impresso, eletrônico ou que venha a ser criado, sem

o prévio e expresso consentimento dos editores.

Impresso no Brasil. Printed in Brazil.

editora

© Editora Lexia Ltda, 2010. São Paulo, SPCNPJ 11.605.752/0001-00

www.editoralexia.com

Editores-responsáveisFabio Aguiar

Alexandra Aguiar

Projeto gráficoFabio Aguiar

DiagramaçãoEquipe Livronovo

CapaDhyan Shanasa

Se um livro pudesse conter impresso uma música para acompanhá-lo, aqui eu colocaria o Allegro do Concerto de Brandenburgo No.3 em G de Johann Sebastian Bach; deve-se ouví-lo para entender...

Dedico esta pequena obra primeiramente à minha me-nina, minha Flor, aquela que tanto amo, Isabella, que mesmo tão ocupada com seus afazeres, leu com a!nco estes textos. E também àqueles que, tal como o Mundo Atual, estão carentes de uma Fantasia Substancial, tão rara neste tempo como ar puro. Por último, e não menos importante, dedico à montanha que me inspirou severamente em minha adolescência: o Pico das Agulhas Negras, lugar ímpar dentre todos os que morei...

Agradecimentos à Jivan Latif por ter lido, compreendido e sentido a obra ao ponto de poder criticá-la...

Sumário

Introdução

Livro I CAP. I – O CasteloCAP. II – No Jardim de BeceusCAP. III – Lalín FeäCAP. IV – O caminho até Barädir-Sorontär

Livro IICAP. I – Do rumo tomado pelos sete cavaleirosCAP. II – A Torre do Falcão e o Mensageiro do VentoCAP. III – SombrasCAP. IV – CollgânCAP. V – O Guardião da Cúpula do Sol

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Livro IIICAP. I – Dóruin retorna CAP. II – Novamente o Guardião da Cúpula do Sol CAP. III – O Anúncio de BeceusCAP. IV – O Regresso dos Val-atärCAP. V – A Batalha TempestuosaCAP. VI – RuínasCAP. FINAL – O Destino de TunesMAPAS

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Introdução

Por séculos a literatura, bem como todo o tipo de escrita, traz consigo o sabor e frescor das mentes e almas jovens. A lite-ratura não é algo que deva ser tomado como mero instrumento de contar histórias; deve, antes de tudo, transmitir algo.

Victor Hugo dizia que na Idade Média a arquitetura era a expressão do Espírito Humano e que, já em sua época, com a invenção e amplidão da escrita, a literatura substituía tal fato. Então, presumimos que qualquer escritor seja tomado e impelido a sentar-se e rascunhar de forma estranha e familiar uma história, que, antes de querer ele contar um conto, ou um romance, algo atrás de si força-o a escrever de forma mui-tas vezes fantástica e alegórica para que todos os pormenores dos dizeres !quem nas entrelinhas. O escritor escreve sobre si mesmo a todo o tempo.

Tal é o fato. Entretanto, ao longo do tempo, gênios de potência ini-

gualável surgiram e !zeram de nossa literatura um belo espe-

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táculo. Grandes mestres contaram casos que jamais esquecere-mos. Desconhecidos, surgiam e tornavam-se verdadeiros mitos da escrita. Uma vasta gama de sentidos e histórias formou-se em todas as direções.

Ouvi, certa vez, um maestro dizer que nada mais precisa-va ser criado na Música; “após Beethoven, que mais pode vir?”, ra-lhava ele com um aluno que preferia Bach. Observando isso, faço então o mesmo questionamento: que mais pode ser escrito depois de Balzac, Victor Hugo, Cervantes, Gorki, Tolstoi e tantos outros in!nitos mestres que, nos perdoem os adoradores, esquecemos ou não podemos citar aqui? Certamente que nada mais.

Mas não é bem assim. Cada pessoa tem o seu papel; cada indivíduo é uma po-

tência em si mesmo assim como cada "or tem o seu perfume. Dizer de forma tão prematura que nada pode ser genialmente escrito depois de tantos sujeitos notórios é, em suma, o mesmo que a!rmar que o Sol de hoje será mais belo que o de amanhã. E acaso o Sol muda?

O que se altera é a pré-disposição do observador; para não dizer o próprio observador.

Esta pequena obra trás em si a vontade que impeliu-me durante anos mas que, por obra de meu destino, foi severamente impedida de agir . Se há em mim, como há noutros, tal potência criadora, usei-a da forma que pude nestas linhas. Escrever não é simples como beber água, bem sabem. Contundo, não é de todo impossível. “Disciplina” era a palavra de ordem de Balzac.

Toda a forma desta história alterou-se com o decorrer do tempo e de minhas idas e vindas. Escrevi-a à máquina a pri-meira vez aos 15 anos — quando ainda morava em Penedo, sul do estado do Rio de Janeiro —; mas aquilo era demasiado cansa-tivo e lento; e a história era muito longa e sem prumo. Somente os mapas que desenhei na época não se alteraram, bem como os nomes das terras e personagens.

O Livro de Tunes tornou-se, acidentalmente, o desfecho de outros dois livros e contos que dei início nos meus 15 anos e, obviamente, não terminei. São claramente parte de uma mesma história — interligados, mas não dependentes um do outro, e se passam num mundo mítico chamado Mürios, o Reino Criado. Mas o Livro de Tunes, que era chamado por outro nome, sem-pre foi a parte mais cativante da história — ao menos para mim-, pois era mais simples, focado apenas na vida de um garoto tolo que se vê envolvido em grandes feitos épicos. A objetividade deste guerreava com a complexidade dos outros dois; talvez por isso não tenha conseguido terminar os primeiros e sim este. Ao menos por enquanto.

Passei toda minha adolescência reescrevendo-o a pu-nho — pois não possuía computador -, ou mantendo-o na me-mória para não ser abandonado; até que tomou a forma atual de seus dois primeiros capítulos quando já residia nesta linda cidade de Pirenópolis, Goiás. Então prometi a mim mesmo que só retornaria a escrevê-lo quando tivesse um computador em mãos. Terminei-o somente este ano — dez anos depois! -, e mesmo assim apenas o Primeiro Volume... Não é, nem de longe, uma obra-prima, e nem gostaria que fosse, a!nal, diriam: “de-pois deste, que virá?”. Assim, é preferível que não escrevamos obras perfeitas para que o gênio humano possa crescer enquan-to durar o mundo.

Breve como uma brisa é esta história, mas traz consigo a fragrância de um indivíduo sincero.

Dhyan Shanasa, 13 de Maio de 2009

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LIVRO I

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I O CASTELO

“Uma visão que deixaria Luís XI rubro.”

O Sol erguia-se tímido entre as colinas. Era uma manhã fria de outono, e naquela região, à beira mar, um vento terrível soprava insistente. Por entre a mata que sustentava os tons ocres típicos da estação surgiram sete cavaleiros. Vinham montados em altos ginetes, bem armados e de longas capas surradas pelo tempo. Ostentavam elmos cor de bronze com insígnias sulistas.

O grupo era guiado por um duende do bosque que vinha à frente, montado num cervo. O duende, que atendia pelo nome de Dóruin e tinha pouco mais de um metro e meio de altura, parou de repente e ergueu a mão direita. Todos estacaram em silêncio enquanto faziam um semi-círculo ao redor do cavaleiro Asnár que trazia alguém na garupa. Era uma bela manhã aquela. Ouvia-se o farfalhar das árvores sobre suas cabeças.

Dóruin desceu de sua montaria e lépido caminhou até uma escadaria que erguia-se a poucos passos. Foi acompanhado pelo mais alto dentre os que ali estavam e, sem dizer uma palavra, subi-ram os degraus, os quais estavam invadidos pelas trepadeiras, com

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cuidado, até atravessar um arco feito de branca pedra. Tudo com ar de muito antigo. Após atravessarem o arco, seus olhos caíram em algo que poucos mortais vislumbraram: o Galboriä das Mil Torres, o Castelo de Itíris-Daöirin, a antiga Terra dos Senhores do Vento.

Por um longo tempo, o cavaleiro com elmo de bronze, !cou parado observando aquele imenso colosso que se erguia ao longe, bem adentro do oceano. O castelo sustentava-se sobre um pilar gigantesco talhado por algo para além da compreensão dos homens. O duende, tratando a visão com adversa naturali-dade, debruçou-se sobre o penhasco e olhou cuidadosamente para baixo, como que procurando por algo. Foi então que o cavaleiro se deu conta de algo inusitado: não havia ponte entre a terra e o castelo.

Acompanhou com os olhos a construção daquele imen-so arco; tão grandioso em sua composição quanto o Galboriä em sua grandeza no horizonte. Após o arco, seguia-se uma plata-forma que avançava cinco metros além da encosta. Sustentava-se por meio de uma estrutura bem feita e planejada para resistir às intempéries do tempo. Todo aquele lugar — a escadaria, o arco, a plataforma — eram feitos de grandes pedras quadradas em tom mar!m; em outros tempos deveriam cintilar ao contato com a luz do sol, resplandecendo assim toda a suntuosidade e majestade dos Val-atär, os Senhores do Vento. Todavia, agora estavam foscas e cobertas por trepadeiras poderosas que as en-goliam de forma ruidosa.

Os pássaros cantavam alto naquela região. Gaivotas plai-navam ao sabor do vento úmido deixando a paisagem mais leve, apesar do sentimento geral ser a seriedade estampada em seus rostos. E os homens, !rmes em seus cavalos, nada diziam e só observavam atentamente o duende debruçado. Alguns minutos depois ele se ergueu para aquele que o acompanhava e disse:

— Encontrei a trilha. — apontou para a direita e fez sinal aos outros.

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Estes, por sua vez, deixaram seus cavalos na plataforma e acompanharam o guia pelo tortuoso caminho que se incrustava no paredão. Asnár carregava em seu colo uma criança - aquele que vinha à garupa anteriormente -, e ela estava com venda nos olhos, as mãos amarradas e um elmo colocado com a viseira abaixada. O líder dos homens usava um capuz e longa barba branca. Era uma pessoa de idade avançada, incumbida de uma tarefa amarga.

Levaram quase a manhã toda para descer até uma curta praia que sustentava a base do imenso rochedo atrás deles. E por todo o caminho nada disseram ou sequer se olhavam. Manti-nham um ar austero e simplesmente seguiam o duende.

Ao chegar à praia olharam-se mutuamente. Dóruin apontou uma grande coluna na base do castelo que se via de forma embaçada pelas brumas do mar.

— Naveguem em linha reta até lá. — disse ele num tom áspero — Haverá uma caverna aos pés do Galboriä, entre duas pilastras partidas. Do resto vocês já sabem, não?

— Creio que não nos acompanhará, não é mesmo, mes-tre duende? — indagou o velho de capuz.

Dóruin nem se deu ao trabalho de respondê-lo; girou nos calcanhares e começou a longa subida de volta. Os demais olharam-no e ignoraram o fato de que seguiriam uma trilha cega dali por diante.

— Peguem o barco. — disse o velho aos outros apon-tando para um aglomerado de pedras no canto esquerdo da pequena praia. De lá tiraram uma diminuta e precária embar-cação, anteriormente apontada por Dóruin e colocaram-na na água às pressas. Ali não havia muitas ondas; antes uma bacia calma e indolente a uma praia de fato. Não puderam ir todos no barco e, por isso, três cavaleiros voltaram para junto dos ginetes no topo do rochedo.

Duas horas mais tarde estavam beirando os pilares contorcidos do Galboriä. Haviam navegado quietos por muito

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tempo e mesmo a criança amarrada não demonstrava querer se soltar. Os quatro cavaleiros retiraram cada qual seu elmo e olharam demoradamente para o castelo que se erguia por cerca de quinhentos metros acima deles. Era uma construção absurda. Centenas de torres surgiam como agulhas apontadas para o céu, outra centena de pequenos pilares eram vistos sus-tentando um emaranhado de armações quase que em pleno ar. Havia ainda pedaços de outras estruturas, antigos pilares de sustentação, bases, torres — partidos, corroídos, demolidos — abandonadas à chuva e ao vento de séculos intermináveis. Viam-se gigantescos arcos que se atiravam entre abismos ver-tiginosos, cujo fundo era o oceano, ligando uma ala a outra do castelo; tudo isso sobre um inimaginável pilar central que parecia esculpido pelos deuses do mar.

Prevenimos os leitores de que não nos prologaremos nos detalhes daquela visão que tiveram para que não se torne enfadonho. Todavia, para que tenham uma ideia, faremos uma alusão com a nossa arquitetura: imaginem uma centena de ca-tedrais de Notre-Dame per!ladas lado a lado em tamanho; em-pilhem agora, na sua comparação imaginativa, duas centenas da mesma catedral colocadas uma sobre a outra afunilando-se até o topo em espiral com suas torres góticas espetando o céu. Imaginaram? Dupliquem. Terão então uma menção do que era o Galboriä às vistas daqueles pequenos homens. Uma visão que deixaria Luís XI rubro.

Voltemos então.Os homens iam assombrados, pois seus olhos jamais di-

visaram tamanha coisa. Mesmo nas histórias e costumes daquele povo, onde o Grande Castelo era citado aqui e ali, poder-se-ia ter a verdade sobre aquela construção. Era algo além do pensamento dos homens e talvez até mesmo dos elfos. Entretanto, somente o velho não parecia admirado e mantinha-se impassível observan-do o garoto sentado com as mãos atadas à frente do corpo.

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Chegaram à boca da caverna ladeada pelos pilares que o duende havia lhes dito. As ondas rugiam furiosas nos rochedos negros. Ouvia-se o canto de inúmeros pássaros que saudavam a preguiçosa manhã, indiferentes com aqueles que adentravam ali. Observando o mar furioso nos rochedos, passaram cautelo-sos e por isso sem grandes delongas.

Ao avançarem pelo estreito e escuro canal, o cavaleiro que ia à proa do barco sacou um anel rubro e ergueu-o. Imedia-tamente fez-se uma luz tenuemente rósea. Um silêncio abismal invadiu o coração de todos e, ao sentir o frio da gruta, o menino demonstrou ligeiro incomodo.

— Asnár, — disse o velho voltando-se ao cavaleiro forte que vigiava o garoto — segure-o !rme agora.

Viram um velho píer em frente e, ao desembarcar, a luz rósea do anel mostrou-lhes um imenso pilotis que sustentava um teto cinquenta metros acima da suas cabeças.

— Tudo aqui é tão exagerado! — observou o homem do anel.

— Não, Lanuino, — disse o velho — exagerado não seria o termo. Grandioso, talvez. Grandioso como os reis de outrora que aqui viviam. — Virando-se para o quarto cavaleiro — Traga a Espada, Ëve, e seja breve.

Ëve pegou o anel de Lanuino e subiu aos saltos uma escada sombria que esgueirava-se à direita deles serpente-ando tortuosa na escuridão. Os outros, mergulhados nas trevas daquele lugar, apenas esperavam sendo acompanha-dos pelo sonoro brandir das ondas do mar. Asnár segurava o menino firmemente.

Pouco depois, Ëve regressou com uma grande espada envolta num manto lilás. Todos tornaram a colocar seus elmos e fecharam as viseiras. À frente deles erguia-se uma estreita passa-gem; atrás, o barco balançava melancólico nas ondas. Atraves-saram a passagem que dava para um grande salão redondo, que

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mais parecia o fundo de um buraco. Havia uma espécie de pas-sarela, que cruzava sobre uma água rasa e mal cheirosa, ligan-do a estreita passagem a uma torre centralizada ali. O menino tentava sentir o cheiro do lugar; seu olfato distinguiu um odor de morte por toda parte. Seu coração estremeceu e disparou. Debateu-se tentando se livrar pela primeira vez. Asnár rosnou-lhe algo ao pé do ouvido e, tão súbito havia se assustado, que com a mesma instantaneidade acalmou-se .

— Você é ótimo em lidar com revoltas, Asnár! — co-mentou Lanuino num tom zombeteiro sem olhar para trás.

— Silêncio! — disse o velho abruptamente — Este não é o lugar para conversas.

Os outros assentiram. O velho caminhava com ar pesa-roso; parecia arrastar um fardo com o peso do céu. Fez então um sinal para Ëve e apontou uma grande porta que barrava o cami-nho. A porta possuía um sol desenhado em seu centro; do lado esquerdo um cavalo e no direito uma espada; todos feitos por reentrâncias bem de!nidas e nada gastas pelo tempo. Pararam um momento. Não havia teto naquele lugar; ou ao menos não o enxergavam. Ëve desenrolou a espada do manto sem demora e ergueu-a. Da lâmina emanou uma luz terrível e, branca que ao tocar a porta, fez um estrondo que ecoou no silêncio do poço.

Com um grande rangido a porta escancarou-se. Os quatro cavaleiros viram-se num tipo de elevador. O velho girou uma alavanca em 360° até ouvir um ‘clic’, em seguida empurrou-a para frente. Um estampido surdo foi sentido nas paredes e no subsolo; a alavanca ativou um mecanismo com-plexo de engrenagens, que fez subir lentamente pelo túnel o elevador . Conforme iam subindo, a luz ia aumentando e o ar tornando-se mais leve.

Lanuino tirou o anel do dedo e tornou a guardá-lo num pequeno bolso por debaixo de sua armadura. Logo conseguiram enxergar lá no alto um teto cinzento.

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O elevador ligava a parte baixa do castelo à parte média. Mais precisamente ao hall de entrada do Galboriä. Entretanto, havia sido construído muito tempo depois da saída dos Senho-res do Vento, pois eles haviam abandonado aquelas terras há eras incontáveis.

O hall era amplo para todos os lados; possuía grandes vitrais coloridos no teto, nas paredes do lado leste e oeste e em uma determinada área do chão. Era divido em três ní-veis: o Inferior, que possuía um longo corredor adjacente aos cômodos baixos do castelo; o Médio, onde encontrava-se a Grande Sala com várias estátuas de reis antigos; e o Nível Superior, que era alcançado através de duas escadas-curvas, uma à direita, outra à esquerda.

O elevador parou fazendo o hall estremecer por comple-to. A escada-curva da direita rangiu pesada e, em sua base, os degraus se moveram lentamente desencaixando-se para cima. Então, com um estrondo que chegou a partir um vitral no teto, toda a parte baixa da escada ergueu-se dando passagem ao ele-vador. Fez-se ali o Acesso ao Subterrâneo, pois este era o nome daquela entrada secreta.

A porta abriu-se. O velho saiu rápido e, acompanha-do de Ëve, foi até um casulo de cerca de dois metros de al-tura que estava à esquerda deles juntamente com centenas de outros. A cápsula estava aberta, e nela havia a insígnia de um olho.

— Traga-o. — disse o velho quase num sussurro.Asnár carregou o menino que, depois de tantos barulhos

e gemidos de pedra, debatia-se furiosamente, mas, com efeito, sem o menor êxito. O cavaleiro arrastou-o entre o Nível Médio quase inteiro, indo ter com os outros dois que o esperavam. La-nuino continuou no elevador segurando com di!culdade a ala-vanca para que o elevador não retornasse ao ponto de origem; o que deixaria todos presos no hall.

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O velho colocou o garoto dentro do casulo prendendo suas mãos a dois buracos do diâmetro exato do pulso de uma criança. Era assim para que não tivesse chance alguma de esca-par. Como se não bastasse estar amordaçado, com as mãos pre-sas, vendado e com um elmo na cabeça, Ëve empurrou a porta com um pontapé, pois que ouvia Lanuino queixando-se de não aguentar mais segurar a alavanca, e ergueu a espada que ema-nou a luz branca lacrando o casulo.

Feito isso os três correram até o elevador. Lanuino, que já estava vermelho pelo esforço, soltou a alavanca que girou inversa fazendo o elevador descer rápido pelo corre-dor vertical. A escada da direita voltou a sua posição natural vagarosamente. O garoto ainda debatia-se dentro do casulo jogando seu pequeno corpo de doze anos de idade contra as paredes, que lembravam vagamente um sarcófago. A sensa-ção de que havia sido deixado sozinho ali era terrível.

No elevador todos mantinham um silêncio constrange-dor. Foi Lanuino, ainda bufando, quem falou primeiro dirigin-do-se ao velho.

— É para o bem do Povo do Sul, Narti.— Já aconteceu com vários, caro amigo, não se abata. —

emendou o grandalhão Asnár.— De certa forma, — falou Ëve — desde o início

você sabia que isso teria de ser feito; que ele deveria ser trazido para cá.

— Sim... — respondeu Narti segurando uma lágrima que precipitava — Mas mesmo sabendo, mesmo que seja para o bem de todos os povos deste maldito mundo... Ainda assim meu coração partiu-se ao ver meu !lho entregue a ela...

O elevador parou. Eles saíram em silêncio. Coube a Ëve lacrar as passagens atrás deles e depois, subindo a tortuosa esca-daria, deixou a espada em seu devido lugar. Ao retornar o barco já estava pronto e eles partiram.

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Era quase noitinha quando deixaram o Galboriä na-vegando nas escuras águas daquele mar. As gaivotas se reco-lhiam em seus ninhos no alto de penhascos costeiros ou das torres abandonadas do castelo. O vento soprava frio acima daquelas torres. Ao longe puderam enxergar um fraco pon-to luminoso; possivelmente uma fogueira acesa pelos outros três que ficaram.

Mas algo aconteceu. Um daqueles acasos da vida.

Quando o elevador desceu, a escada voltou ao seu lugar, vagarosa. Ao encaixar-se no eixo sentiu-se novamente o mesmo estrondo pelo hall. A estrutura do casulo abalou-se de forma tão abrupta que, com a ajuda dos movimentos do garoto, balançou, pendeu e caiu ao chão trincando-se e rolando até bater numa ro-cha e partir-se de vez. O menino, sentindo os pedaços do casulo em cima de si, chutou-os como pode percebendo uma leve brisa no rosto. Estava livre. Ao menos do casulo.

Tirou então a mordaça e a venda, pois que suas mãos estavam soltas. Seus olhos eram vermelhos como fogo e ele ves-tia uma !na casaca de lã com uma calça de couro negro e botas até quase os joelhos. Jogou o elmo furioso no chão caindo em pranto, recostado numa parede. Respirou fundo e erguendo-se se pôs a observar onde estava. Não se ouvia nada; nem vento, nem pássaros, nem pensamentos sequer ele percebeu ter. Havia ali um vazio de tudo.

Observou cuidadoso o hall reparando que o casulo onde estava era apenas um de centenas espalhados por espécies de colossais prateleiras per!ladas por toda a extensão do hall. Além do seu casulo, três outros haviam caído e se quebrado, mas, mes-mo de longe, viu que estavam vazios. Todos eles tinham sím-bolos em suas faces ovaladas; a maioria possuía o símbolo de chifres em uma cabeça, outros carregavam asas e pouquíssimos ostentavam olhos.

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Não havia nada ali. E ele mesmo nada sabia sobre o por-quê de ter sido levado até aquele lugar estranho, tão longe de seu reino. Lembrava que estava numa caçada com o pai e seus acompanhantes, e que, quando beiravam os sopés das Monta-nhas Brancas, apagou. Acordara sobre um cavalo, amarrado, amordaçado e vendado. Pensara que tinham sido capturados por um bando de orcs que os espreitavam nas montanhas, e como havia aprendido com o pai, jamais se tentava fugir de uma captura orc. Deveria esperar para que tirassem a venda, assim poderia ver onde estava e detalhar um plano melhor. Percebera também que todos do grupo estavam ali, e que aquele que o carregava era Asnár.

Parou de pensar nisso. Não ajudaria muito agora. Tentou lembrar de algo que tivesse feito para valer ser largado como um bandido numa prisão. Onde estava? Por que o trancaram ali? Seu próprio pai... E seu pensamento perdeu-se entre o cansaço de seu pequeno corpo. Adormeceu recostado na parede pen-dendo a cabeça sobre os joelhos.

A noite desceu depressa. Os cavaleiros armaram acam-pamento à beira do precipício a pedido do duende Dóruin que, dizia ser mais seguro naquelas terras, beirar um barranco do que entrar na mata. O duende mantinha seus olhos profundos no castelo que, à luz da lua outonal, parecia uma visão num so-nho distante.

— Precisamos dormir. — comentou o velho aos demais, — Montemos guarda com revezamento de uma em uma hora. Temos uma longa e triste jornada.

Os outros assentiram e Narti, o velho, jogou-se no chão dormindo no mesmo instante; combinou-se que Lanuino faria a primeira hora da ronda, e os demais trataram de dormir; so-mente o duende manteve-se agachado numa rocha sem desgru-dar os olhos do Galboriä.

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O sol nem havia se erguido e os sete cavaleiros, guiados pelo duende do bosque, partiram sem olhar para trás penetran-do na densa "oresta. Estavam num país que os homens chama-vam Terras de Ninguém; o extremo Leste do Mundo Conhecido e um lugar onde outrora grandes reinos existiram. Agora haviam apenas "orestas e bosques sombrios, circundados por planícies desertas e montanhas íngremes. Lugares estes que até mesmo os elfos evitavam, pois temiam o encontro com criaturas antigas. Seguiram seu caminho então, mas Dóruin, o duende, vinha com um estranho brilho no olhar.

O garoto acordou sobressaltado. Olhou-se e olhou es-pantado ao redor. Viu o sol invadir os vitrais dando um ar po-ético ao hall. Ergueu-se com di!culdade, havia cavalgado por dias sem !m até ali, e estava exausto, mesmo depois do longo sono. Esticou as pernas, espreguiçou, coçou-se até acordar de vez; então, para sua desilusão maior, lembrou-se exatamente o que ocorrera e onde estava, e que não possuía água e tampouco comida.

Depois de subir e descer escadas, tentar e descobrir que praticamente todas as portas do hall estavam barradas ou tranca-das, o garoto achou uma aberta onde teve coragem de se en!ar. Na verdade, era uma pequena passagem situada abaixo da escada esquerda. Caminhou algum tempo por um longo corredor num lusco-fusco, tropeçando em seus pés e tateando a fria parede. O corredor desembocou numa praça — assim julgou — com vá-rias rampas de acesso acima e abaixo de onde estava. As rampas subiam e desciam freneticamente em todas as direções possíveis dando livre movimento a quem, por acaso, soubesse onde ir.

Como não era este o caso, o menino caminhou igno-rando tanta vertigem e seguiu linha reta. Admirava a grandeza do lugar. Observou que abaixo de onde estava havia um imenso jardim. O corredor onde estivera tornara-se uma ponte. No jar-

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dim várias árvores erguiam-se frondosas ao sol, "ores aos mon-tes faziam belos canteiros, crescia uma grama de dar inveja ao vizinho. Haviam estátuas postas aos cantos; algumas destruídas claramente pelo tempo, outras derrubadas por forças diversas. Atravessou assim aquele magní!co lugar entrando noutro cor-redor. Parou, hesitante em abandonar a luz do sol, mas viu não ter outra escolha.

Em determinado ponto encontrou uma bifurcação: o corredor da direita subia alto para a escuridão, e o da esquerda descia para uma luz tênue onde sentia uma brisa soprar. Como de costume ele escolheu o óbvio: o da esquerda.

Pouco depois, surpreendeu-se ao deparar com o que pa-recia a entrada do castelo. O túnel dava numa ante-sala enorme cuja frente era de vitrais. Estes vitrais traziam !guras com asas; mas o menino não as reconheceu. No centro dos vitrais duas portas altas assomavam dez metros acima dele e estavam escan-caradas. O garoto atirou-se para fora e deu noutro jardim, mas este, mais estreito, porém muito longo. O jardim era cercado por muros intransponíveis a qualquer ser sem asas. As muralhas er-guiam dois pesados portões de pedra, brancos e absolutamente lacrados. Era bem gramado este jardim; entretanto, com poucas "ores e apenas uma árvore; no canto esquerdo, no encontro das muralhas. Havia uma alameda que levava até os portões e ele a seguiu.

O sol estava ainda morno e, com a altura das muralhas, o vento não era incômodo. Soprava apenas uma brisa leve. Per-!lando a alameda, estranhas lápides jaziam estendidas no chão. Estranhas mesmo, pois não tinham inscrições e tampouco tra-ziam algo em cima. O garoto julgou serem apenas ‘gracejos’ no jardim. Duas tochas de prata marcavam o !m da alameda, cada qual num lado. Parou diante dos portões e empurrou-os. Ridí-culo esforço aquele. Cada face do portão possuía mais de cin-quenta metros de altura. Nada, a não ser um bando de dragões

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enfurecidos, poderia mover aquilo. Fez-se silêncio. Os pássaros pararam de cantar nos ninhos adjacentes às torres próximas.

Olhou então ao redor esperançoso em achar algo útil. Estava com fome. A sede cortava seus lábios. Viu assim todo o tamanho do Galboriä; obviamente não todo, pois não ima-ginava que embaixo dos seus pés havia quinhentos metros de construções emaranhadas na rocha do mar. Mas algo chamou sua atenção: observou que em cada lado dos portões havia uma torre, e estas torres erguiam e sustentavam heroicamente duas esferas gigantescas, como tudo naquele lugar.

“Não há saída por aqui”, disse de si para si, “Preciso subir naquelas torres para ver onde estou.”

Seguiu com os olhos toda a extensão das muralhas, cal-culando todo o caminho que teria de percorrer. O garoto tinha uma mente viva. Sua atenção era primorosa e não deixava ne-nhum detalhe passar. Viu que, de onde estava, a torre esquerda parecia mais próxima e decidiu ir até lá. Correu de volta pela alameda indo novamente ao interior do Galboriä. Na ante-sala esbarrou com uma pequenina porta à esquerda; porta esta que sua atenção “magní!ca” ignorou anteriormente. Todavia, sem saber, o garoto percorria um caminho que não levava onde que-ria. No Galboriä há destas coisas; onde os cálculos nada valem e as previsões são inúteis. De quando em quando parava e olhava para trás. Algo estava errado. Pela medida de sua vista, já deve-ria esbarrar com uma porta ou algo assim. Seu peito disparou. O silêncio ali era sepulcral. O medo o invadiu.

“Mas que diabo de lugar!”, pensou, “Como tal castelo, imen-so assim, pode não ter ninguém?!”. De fato uma boa indagação.

Continuava a reparar e questionar quando percebeu que o sol mostrava-se numas janelinhas do corredor. Olhou para fora e qual não foi a surpresa ao notar que havia descido ain-da mais ao invés de subir. Porém, agora via o lado de fora das muralhas, mas, evidente, ainda de dentro do castelo. Continuou

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por insistência a caminhada, apressado. Então, num desespero que lhe invadiu o corpo, correu até suas pernas se perderem de cansaço. Correu até !car sem ar e ser cegado pelo forte choque da luz nos olhos.

Quando acostumou-se, ambientou-se depressa. Fez um muxoxo ao notar que encontrara outro jardim. Mas este diferia dos anteriores.

Haviam duas semelhantes escadas que subiam quase sem-!m girando em torno de uma torre cuja passagem era-lhe vista. Abaixo delas uma rampa curta levava a um gramado es-peço e bem cuidado, se é que pode-se dizer isso de semelhante lugar. Os pássaros cantavam sem medo ali, fortes. Ouvia-se um murmúrio de água a passar pelo lugar.

Esqueceu o cansaço e correu até o barulho descendo a rampa curta e atravessando a passos largos — de criança! — o gramado. Encontrou um riacho canalizado numa vala em ‘V’ que vinha de uma curva do caminho à direita. A vala era limpa e a água cristalina. Meteu a cabeça na água e bebeu vigorosa-mente. Quando cessou, sentou-se na grama esquecendo-se até mesmo da horrenda fome que sentia.

Ouviu então uma leve música, mais leve que o próprio ar. Ergueu-se rápido e com os olhos argutos procurou de onde vinha a música. A melodia movia-se capciosamente penetrando onde não deveria. As notas aproximaram-se, mas não podia ver nada. O vento sussurrava entre as paredes espessas. O sol surgiu por entre as muralhas do jardim. Súbito, uma voz suave e limpa falou-lhe ao ouvido:

— O que faz em meu jardim, criança?Foi quando, de susto, desmaiou de cara na água.

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