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nova Economia_Belo Horizonte_15 (2)_11-34_maio-agosto de 2005 O império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso: a política mercantilista durante a Época Pombalina, e a sombra do Tratado de Methuen Francisco José Calazans Falcon Professor Titular (aposentado) da Universidade Federal Fluminense Resumo O autor analisa no presente artigo as relações entre Portugal e Inglaterra no século XVIII, com ênfase no período correspondente ao rei- nado de D. José I, durante o qual afirmou-se o poder de seu Secretário de Estado, Sebas- tião José de Carvalho e Melo (depois Conde de Oeiras e Marquês de Pombal). Tendo o Tratado de Methuen (1703) como pano de fundo, o texto enfoca, ao longo de sucessivos períodos, as questões que marcaram as ten- sões e conflitos no âmbito das relações eco- nômicas e diplomáticas anglo-lusitanas com especial atenção ao exame de documentos de época existentes na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Academia de Ciências de Lisboa. Ao contrário do que nos ensina uma tradição já um tanto cristalizada, as relações anglo-lusi- tanas à época de Pombal se revelam bastante ambíguas, oscilando entre a dependência de Portugal em relação aos interesses econômi- cos e o apoio político britânico e a defesa dos interesses mercantis, manufatureiros e agríco- las do reino luso e de seu império ultramarino. Abstract In this paper, the author analyzes the relations between Portugal and England during the 18 th century, with emphasis on the period corresponding to the reign of D. José I, during which the Marquis of Pombal, his Secretary of State, wielded considerable power. With the Treaty of Methuen (1703) as a backdrop, the text addresses the issues which, over successive periods, marked the tensions and conflicts in the economic and diplomatic relations between England and Portugal. Special attention is given to the review of documents of the era, from the National Library of Lisbon and the Lisbon Academy of Sciences. Contrary to what a rather crystallized tradition teaches us, the British- Portuguese relations during Pombal’s period are rather ambiguous, fluctuating between Portugal’s dependence with regard to economic interests and British political support, and the defense of trade, manufacturing and agricultural interests of the Portuguese crown and its overseas empire. Palavras-chave mercantilismo, pombalismo, protecionismo, tratados comerciais anglo-lusitanos, companhias de comércio. Classificação JEL N43, N46. Key words mercantilism, Pombal era, protectionism, Anglo-Portuguese trade treaties, trade companies. JEL Classification N43, N46.

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O império luso-brasileiro ea questão da dependência inglesa – um estudo de caso:a política mercantilista durante a Época Pombalina,e a sombra do Tratado de Methuen

Francisco José Calazans FalconProfessor Titular (aposentado) da Universidade Federal Fluminense

ResumoO autor analisa no presente artigo as relaçõesentre Portugal e Inglaterra no século XVIII,com ênfase no período correspondente ao rei-nado de D. José I, durante o qual afirmou-seo poder de seu Secretário de Estado, Sebas-tião José de Carvalho e Melo (depois Condede Oeiras e Marquês de Pombal). Tendo oTratado de Methuen (1703) como pano defundo, o texto enfoca, ao longo de sucessivosperíodos, as questões que marcaram as ten-sões e conflitos no âmbito das relações eco-nômicas e diplomáticas anglo-lusitanas comespecial atenção ao exame de documentos deépoca existentes na Biblioteca Nacional deLisboa e na Academia de Ciências de Lisboa.Ao contrário do que nos ensina uma tradiçãojá um tanto cristalizada, as relações anglo-lusi-tanas à época de Pombal se revelam bastanteambíguas, oscilando entre a dependência dePortugal em relação aos interesses econômi-cos e o apoio político britânico e a defesa dosinteresses mercantis, manufatureiros e agríco-las do reino luso e de seu império ultramarino.

AbstractIn this paper, the author analyzes the relationsbetween Portugal and England during the 18th

century, with emphasis on the periodcorresponding to the reign of D. José I, duringwhich the Marquis of Pombal, his Secretary ofState, wielded considerable power. With theTreaty of Methuen (1703) as a backdrop, thetext addresses the issues which, over successiveperiods, marked the tensions and conflicts in theeconomic and diplomatic relations betweenEngland and Portugal. Special attention isgiven to the review of documents of the era, fromthe National Library of Lisbon and the LisbonAcademy of Sciences. Contrary to what a rathercrystallized tradition teaches us, the British-Portuguese relations during Pombal’s period arerather ambiguous, fluctuating between Portugal’sdependence with regard to economic interests andBritish political support, and the defense oftrade, manufacturing and agricultural interestsof the Portuguese crown and its overseas empire.

Palavras-chavemercantilismo, pombalismo,protecionismo, tratadoscomerciais anglo-lusitanos,companhias de comércio.

Classificação JEL N43, N46.

Key words

mercantilism, Pombal era,protectionism, Anglo-Portuguesetrade treaties, trade companies.

JEL Classification N43,N46.

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1_ Recordando uma discussãojá antiga: o impacto de Methuensobre o desenvolvimentoeconômico português

Não é intenção nossa refazermos aqui olongo itinerário historiográfico das dis-cussões e interpretações a respeito doTratado de Methuen (dezembro de 1703).Trata-se apenas de mencionar algumasobras e autores que possam exemplifi-car em termos contemporâneos a per-manência dos debates sobre a dependênciainglesa e o papel aí desempenhado peloreferido tratado.

O Tratado de Methuen, ou, me-lhor dizendo, os tratados firmados em1703 entre Portugal e Inglaterra (além daHolanda, no caso do primeiro tratado)resultaram dos problemas trazidos para apolítica externa portuguesa pela questãoda sucessão da coroa espanhola, após amorte de Carlos II.

Entre nós, foi provavelmente Fer-nando Novais quem melhor examinou ascircunstâncias político-diplomáticas e osproblemas econômicos que levaram Por-tugal a ceder às pressões anglo-holande-sas e tomar partido contra a França e aEspanha (Novais, 1979, p. 22-31). Antese após a tese de Novais, no entanto, a alu-são ao Tratado de Methuen é uma cons-tante entre os historiadores luso-brasilei-

ros, ora para afirmar, ora para negar suainfluência sobre os rumos e as caracterís-ticas da história econômica de Portugal edo seu império.

Na verdade, o Tratado de Methu-en foi objeto de críticas e debates desde odia seguinte à sua assinatura, tanto naInglaterra quanto em Portugal. Tais polê-micas intensificaram-se durante o séculoXIX e entraram pelo século XX, caben-do então ao historiador João Lucio deAzevedo, ao escrever, nos anos 20 do sé-culo passado, seu conhecido livro Épocasde Portugal Econômico, dar ao VII e últimocapítulo da referida obra o título bastantesignificativo de “No signo de Methuen”.João Lucio, tal como outros autores an-tes ou depois, associou as cláusulas co-merciais de Methuen – seus prós e con-tras – à nova conjuntura resultante dachegada do ouro brasileiro:

O oiro das minas, que através da Inglater-ra se espalhava pela Europa, preenchiaa diferença (o déficit comercial) (Azevedo,

1947, p. 405).

Esse tipo de associação – entre ascláusulas de Methuen e o afluxo auríferodas minas do Brasil – estava destinadoa uma longa existência, conforme aí sepunha em relevo uma série de conse-qüências econômicas decisivas atribuídasàquele afluxo: sua importância para a

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expansão da economia britânica – inclu-sive, como querem muitos, para a reali-zação da Revolução Industrial; seu papel de-cisivo para o equilíbrio das finanças régiase da balança comercial anglo-lusitana e,finalmente, seu impacto sobre o desen-volvimento da própria colônia (Furtado,1961, p. 46-47 e 97-101).

Nessa linha interpretativa, embo-ra de maneira mais sistemática e baseadaem ampla pesquisa documental, merecedestaque o livro de Virgilio Noya Pinto –O ouro brasileiro e o comércio anglo-português–, sobretudo às páginas 24 a 38, uma vezque, segundo o mesmo autor, o impactoteria sido não apenas ibérico, mas, acimade tudo, mundial, além, é claro, da in-fluência que teve a mineração sobre aeconomia da própria colônia (Pinto, 1979).

Em Portugal, em 1972, ArmandoCastro publicou um livro intitulado A do-minação inglesa em Portugal, na realidade umbreve estudo seguido de uma Antologia detextos dos séculos XVIII e XIX. Interes-sa-nos aqui o primeiro desses textos, inti-tulado “Profecia política, verificada noque está sucedendo aos portugueses pelasua cega afeição aos Ingleses”.

Declara-se ainda, na folha de ros-to, que a referida obra foi escrita depoisdo Terremoto do ano de 1755, e publica-da por ordem superior no ano de 1762,

em Madri. Logo a seguir, após as duaspáginas iniciais da Profecia, tem inícioo “Discurso Político das utilidades quePortugal pode tirar das suas desgraças”,vindo a seguir uma “Relação histórica doterramoto de Lisboa”.

Todos esses textos foram duran-te muito tempo atribuídos ao Marquêsde Pombal, havendo somente duas exce-ções importantes quanto à tal atribuiçãode autoria na historiografia pombalina:João Lucio de Azevedo e Jorge Borgesde Macedo, conforme assinala José Bar-reto num estudo intitulado “O DiscursoPolítico falsamente atribuído ao Marquêsde Pombal” (Barreto, 1982-1983).

Aliás, parece-nos um tanto inútil ainsistência em se atribuir a Pombal um tex-to como esse do Discurso Político, quando,desde 1904, um artigo de G. C. Wheeler jáhavia analisado atentamente a questão edemonstrado que o verdadeiro autor foraum conhecido escritor e aventureiro cha-mado Ange Goudar, autor de diversasobras interessantes no contexto setecen-tista (Wheeler, 1904). Na verdade, é atépossível que o Discurso tenha sido escritopor encomenda de Pombal, numa práticapor ele utilizada em várias oportunida-des, como iremos referir mais adiante.

Jorge Borges de Macedo, no livroProblemas de história da indústria portuguesa

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no século XVIII, questiona as corriquei-ras interpretações que fazem do Tratadode Methuen o fator responsável pelo in-sucesso do desenvolvimento das manu-faturas em Portugal no Setecentos. Nocapítulo I, ao analisar “A concorrência in-glesa no mercado português, do Condeda Ericeira ao Tratado de Methuen”, Ma-cedo rejeita a tendência de analisar-se aquestão da indústria portuguesa antes e de-pois de Methuen, uma vez que tal perspecti-va não parece corresponder às condiçõesem que se desenrolou a economia daépoca, já que o Tratado não cria para a in-dústria portuguesa uma situação nova.Ainda segundo o mesmo historiador,

o acesso a Portugal do ouro brasileiro e,depois, dos diamantes, criaram uma situ-ação muito mais compressiva para a in-dústria do que a difusão dos tecidos ingle-ses de lã, parcialmente compensada com aexportação de vinho (Macedo, 1963, p. 55).

Também o historiador Jorge Mi-guel Viana Pedreira, no livro intituladoEstrutura industrial e mercado colonial. Portu-gal e Brasil (1780-1830), discute, no capí-tulo I – “Surtos e crises. Manufaturas,Conjuntura e Política Econômica (1670-1790)”, onde retoma e aprofunda a aná-lise empreendida por Macedo e, apesarde algumas discordâncias com relaçãoa esse último, desenvolve sua explicação

no sentido de minimizar bastante a in-fluência da chamada dependência britâ-nica para a compreensão dos problemasestruturais e conjunturais da economia lu-so-brasileira no final do século XVIII ecomeços do XIX (Pedreira, 1994).

Por intermédio dessas referênciasum tanto pontuais, convenhamos, quise-mos apenas chamar a atenção dos nossosleitores para a natureza da polêmica acercado impacto do Tratado de Methuen, de de-zembro de 1703. Do ponto de vista dopresente trabalho, trata-se somente de si-tuar as idéias e práticas propriamente pom-balinas no curso dessa corrente historiográ-fica que se prolonga até o tempo presente.

2_ A questão da dependência/dominação inglesa na segundametade do século XVIII– as relações anglo-lusasdurante a Época Pombalina

Convém aqui, em primeiro lugar, encararcom cautela certas interpretações que ten-dem a caracterizar a política pombalinacomo radicalmente antibritânica e marcadapor uma espécie de nacionalismo econômicohostil à presença inglesa na economia dePortugal. Como tivemos oportunidadede assinalar em A Época Pombalina, a atri-buição a Pombal de um intuito nacionali-

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zante, hostil à Grã-Bretanha, como fezKenneth Maxwell, parece-nos um poucoexagerada e um tanto anacrônica (Fal-con, 1982; Maxwell, 1968). Conformedestacamos naquele nosso trabalho, deacordo aliás com outros historiadores tan-to portugueses como brasileiros, é neces-sário relativizar bastante a interpretaçãodo sentido das idéias e práticas pomba-linas concernentes às relações anglo-lu-sitanas, pois, na verdade, elas atendema exigências político-econômicas bastan-te contraditórias.

Os textos produzidos por Sebas-tião José de Carvalho e Melo constituemuma documentação extremamente ricae que nos oferece uma visão bastanteampla de toda uma constelação de pro-blemas em relação aos quais o futuroMarquês de Pombal foi levado a se mani-festar mesmo antes de chegar ao poder.

Cronologicamente, tais textos abran-gem o período situado entre 1738-1739 e1777-1782, isto é, desde a chegada deCarvalho e Melo a Londres, em outubrode 1738, até o período que se seguiuà sua demissão, em 1777, quando escre-veu suas Inspeções e Apologias, a fim de de-fender-se dos ataques e das acusaçõesde seus inimigos.

Entre os sete grupos em que clas-sificamos os textos pombalinos (Falcon,1982, p. 280-281), interessa-nos aqui o

primeiro deles, ou seja, o das relações eco-nômicas anglo-lusitanas, assim como, em ca-ráter complementar, o sétimo e último,relativo ao material produzido após 1777.Inclui-se no primeiro grupo uma grandevariedade de textos, em geral produzidospor Carvalho e Melo, correspondentes aoperíodo de 1738 até 1777. O que unificaou confere sentido a essa variedade detextos é a permanente contradição queneles se observa entre a antiga aliança in-glesa e o crescente choque de interesseseconômicos entre Portugal e Inglaterra.

Do ângulo que aqui mais nos inte-ressa – as formulações mais tipicamenteeconômicas – os textos selecionados foramreunidos em fases ou etapas cronologica-mente sucessivas, ao mesmo tempo emque buscamos selecionar, no âmbito decada uma delas, aqueles documentos queconsideramos como os mais representa-tivos das idéias econômicas, ou político-econômicas, de Pombal. Teríamos entãoas seguintes fases:

a. Londres (1738-1742) e Viena(1745-1749);

b. os primeiros anos da governação:1750-1762;

c. a governação entre 1762 e 1774;d. apogeu e crise da governação –

1775-1777;e. queda e exílio em Pombal –

1777-1782.

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2.1_ A primeira fase – Londres(1738-1742) e Viena (1745-1749)

Destaca-se nesse período a correspon-dência diplomática londrina, na qual Car-valho e Melo registra minuciosamente suasconversações com os ministros ingleses,assim como os rumores mais diversosacerca de ameaças aos interesses portu-gueses na América e na Índia. Queixas ereivindicações expostas em longas expo-sições misturam-se às elucubrações doenviado de D. João V acerca das reais ousupostas maquinações britânicas contra oslegítimos interesses e aos direitos de Portugal.

Selecionamos aqui, como dos maisrepresentativos, dois textos constantes doCódice 635 da Coleção Pombalina da Bi-blioteca Nacional de Lisboa (fls. 236-274):a Relação dos Gravames que ao Comércio e Vas-salos de Portugal se tem inferido e estão atualmenteinferindo por Inglaterra com as infrações que dospactos recíprocos se tem feito por este Segundo Rei-no; assim nos atos do Parlamento que publicou, co-mo nos costumes que estabeleceu; e nos outros diver-sos meios de que se serviu para fraudar os Tratadosdo Comércio entre as Duas Nações.

Vem em segundo lugar, a Exposi-ção dos Fundamentos porque El Rei N. S. seacha hoje desobrigado da observância dos artigos,a saber 11º do Tratado de 1654 e 11º e 13º doTratado de 1661, que permitem os navios e mer-

cadores ingleses nos portos do Brasil e que emInglaterra é hoje impraticável a redução da tarifada Alfândega aos termos artigo secreto de 1654.

Acrescente-se, ainda, que, em umadas cópias dos Gravames, consta “Feitono ano de 1740 em Londres”, enquantoque a Exposição dos Fundamentos tem a datade 6 de janeiro de 1741. José Barreto, em1986, publicou, em edição da BibliotecaNacional (de Lisboa) uma coletânea dosEscritos Econômicos de Londres (1741-1742),de Sebastião José de Carvalho e Melo, daqual constam várias cartas de oficio eparticulares dirigidas por Carvalho e Me-lo a Marco Antonio de Azevedo Couti-nho e ao Cardeal da Mota. A Relação dosGravames está anexada à carta de oficiodirigida a Marco Antonio de AzevedoCoutinho, em 2 de janeiro de 1741 (Car-valho e Melo, 1986, p. 33-95).1

Podemos acrescentar a esses doistextos polêmicos alguns dos temas abor-dados por Carvalho e Melo em sua cor-respondência com Azevedo Coutinhoe com o Cardeal da Mota, tais como: adesconfiança em relação às verdadeirasintenções e aos planos da Inglaterra emrelação às disputas luso-espanholas emtorno da Colônia do Sacramento; as sus-peitas nutridas pelo enviado portuguêsem relação à fidelidade dos cristãos-no-

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1 A Relação dos Gravames...e a Exposição dos fundamentos...aparecem em váriosmanuscritos, os mais antigosem versões integrais e,os mais recentes, sob o títulode Substancia dos gravames...Após compará-los,resolvemos reuni-losconforme a seguinte ordem:BNL (Biblioteca Nacional deLisboa), Códice 635,fls. 216-231 e 236-274; Códice687, fls. 275-282; F.G. (FundoGeral) 10.513 e 10.514.

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vos portugueses, ou judeus, como pre-fere tratá-los, sobretudo diante do fatode estarem o Brasil e as conquistas espa-nholas cheias de judeus cuja vinculaçãofamiliar com Londres e Amsterdã tor-naria bastante suspeita sua fidelidade àscoroas de Portugal e Espanha; as enor-mes diferenças, em termos de custos,entre as manufaturas inglesas e aquelasinstaladas em Portugal, com evidentesdesvantagens para os portugueses; o pro-jeto para a criação de uma Companhia(de Comércio) da Índia Oriental elabo-rado pelo Cavaleiro Clealand, em 1743,e por ele (Carvalho e Melo) remetido aoCardeal da Mota.

A Relação dos Gravames compreen-de quatro partes principais:

1. apresentação do problema das re-lações entre Portugal e Inglaterra– enquanto o primeiro arca comtodos os ônus e as desvantagens,a segunda usufrui de tudo aquiloque lhe parece vantajoso, semprealegando, para eventuais quebrasdos compromissos firmados, asoberania do parlamento inglês eo respeito a costumes intocáveis, oque, no entender de Carvalho eMelo, constitui verdadeira fraudedas convenções recíprocas.

2. enumeração de algumas Máximasgerais do comércio, a fim de que sepossa avaliar o “verdadeiro obje-tivo dos Atos do Parlamento e osdanos que padecemos nos grava-mes que se lhes seguiram”.

3. os tratados que estabelecem a na-vegação dos vassalos de Portugalpara os domínios da Inglaterra,livre e sem limitação, acompa-nhados de uma análise dos impe-dimentos opostos pelos inglesesàquela navegação e os conseqüen-tes prejuízos causados a Portugal.

4. a Exposição dos Gravames.

Observe-se, logo de saída, que oschamados Gravames, bastante reais por si-nal, têm, pelo menos, um lado positivopara Portugal: o descumprimento pelosingleses das cláusulas relativas ao acessode vassalos portugueses aos portos britâ-nicos justifica a proibição de entraremnavios e mercadorias da Inglaterra nosportos do Brasil, isto é, os impedimentosao gozo de direitos geram prejuízos, que,por sua vez, justificam o não-cumpri-mento também dos tratados pelos portu-gueses naquilo que lhes seria prejudicial.

Querendo expor às autoridades deLisboa a verdadeira natureza dos com-portamentos das autoridades britânicas,Carvalho e Melo tenta apresentar-lhes

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aquelas que, no seu próprio entendimen-to, constituem as Máximas gerais do comér-cio que formam o espírito da Nação Inglesa:

1. não é a quantidade absoluta senãoa respectiva (relativa) que decidedas riquezas e das forças de qual-quer Nação;

2. entre dois Estados que têm umaBalança desigual no negócio re-cíproco, se considera que aquelede cuja parte está a diminuição fa-ria um notório interesse quandoanualmente lançasse ao mar emouro um peso competente à pro-porção da vantagem ou da maioriaque sobre ele ganha o outro Esta-do com quem faz o comércio;

3. o puro ganho que pode provir dequalquer Ramo do comércio nãoé o único objeto de quem neletrafica. Principal ou juntamente sedeve atender à navegação que omesmo comércio pode ocasionar.E com grande razão porque a na-vegação mercantil é a fonte de on-de derivam as riquezas dos povos;

4. ensina pela experiência com umaparente paradoxo que o comér-cio de mercadorias grosseiras evolumosas é mais vantajoso a umEstado do que o dos gênerosmais finos e preciosos no seu va-

lor intrínseco. Contra o que pa-rece à primeira vista, se provaesta Máxima por muitas razõesque são demonstrativas;

5. toda Nação deve procurar no co-mércio que faz receber os gênerosalheios em materiais indigestose crus e transportar os própriospara os introduzir nos domíniosestranhos depois de serem digeri-dos e beneficiados pelas manufa-turas. São muitas as razões e inte-resses que provam esta Máxima;

6. sendo tão grandes os interesses docomércio com os estrangeiros,são ainda maiores os seus lucrosquando ele se faz para as pró-prias colônias. Não só é este ocomércio mais útil mas tambémo menos arriscado.2

Depois de haver assim decifradoos princípios que norteiam a política bri-tânica, Carvalho e Melo passa a analisaros impedimentos e os prejuízos causados aosportugueses e que constituem a própriaessência dos Gravames.

Os impedimentos consistiam em ve-xações e discriminações impostas pelosingleses aos navios, mercadorias, mari-nheiros e comerciantes lusos que aporta-vam à Inglaterra, ou que de seus portostentavam extrair algum produto – o que

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2 BNL, Códice 635,fls. 216-231 e 236-274; Códice687, fls. 275-282.

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tornava impossível a utilização de barcosportugueses no tráfico com os portosbritânicos, donde se conclui que:

A falta de nossa navegação, ou impossibi-lidade que para ela constituíram os impe-dimentos acima referidos, foi a verdadei-ra causa da ruína do nosso comércio e nãosomente o Tratado de 27 de dezembro de1703, causando aquela impossibilidadegravíssimos e essenciais prejuízos à Coroae aos particulares deste Reino.

A seguir, são expostos em seqüên-cia numérica os referidos prejuízos, osquais poderíamos assim sintetizar: os co-missários levaram para fora do Reino oouro que resultou dos seus ganhos à cus-ta dos comerciantes e armadores lusos,na medida em que eles se apropriaramdos fretes e seguros, obtiveram lucroscomo fornecedores e também comocompradores dos produtos locais, finan-ciando assim e dominando a produçãoagrícola, impedindo por todos os meiosa construção de navios em Portugal, e,em suma, especulando tanto em Lisboaquanto em Londres com o sacrifício dapobreza dos lavradores e comerciantesnacionais, com reflexos até mesmo notráfico da metrópole com as colônias.

13° prejuízo: Faltaram por aqueles prin-cípios os frutos que deviam ir passar aoBrasil por conta dos lavradores portugue-

ses e irem estes por conta dos comissáriosingleses debaixo dos navios emprestados,com o que perdemos ali a parte do comércioque sempre nos tratados se reservou precí-pua a respeito dos vassalos deste Reino.3

A exposição dos fundamentos dá se-qüência ao discurso dos gravames, adu-zindo, porém, novos argumentos. Emprimeiro lugar, há as circunstâncias quecomandaram a assinatura dos já referidostratados com a Inglaterra – na verdade,extorquidos à fraqueza e à necessidadecompletas em que se achava mergulhadaa nação portuguesa –, tanto assim que,com o passar do tempo, foram os mes-mos ingleses percebendo a exorbitânciadaquelas convenções e não quiseram exi-gir o seu cumprimento, mesmo porque,também caberia aos portugueses, peloTratado de 1703, exigir acesso à Américainglesa. O comportamento inglês não se-ria fruto apenas da eqüidade, mas tam-bém da conveniência política, já que nãodesejavam perder o seu tradicional ami-go e aliado; por razões muito parecidas,aliás, Portugal teria rejeitado as ofertasde alianças feitas pela França e pela Es-panha. Argumenta, ainda, o mesmo dis-curso com o fato de terem mudado ascircunstâncias que haviam levado aos re-feridos tratados, uma vez que, com asdescobertas de ouro e diamante no Bra-sil, mudaram também as bases do co-

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3 BNL, Cód. 635, fls. 236-274.

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mércio anglo-lusitano. Finalmente, argu-menta o autor do texto que os Atos doParlamento, ao infringir diversas cláusu-las daqueles tratados, acabaram por alte-rar-lhes a substância, visto que “os Tra-tados são como que corpos cujas partescompõem um todo não se podendo mu-dá-las sem modificar ao mesmo tempoaquele todo”.4

Quanto à correspondência, há sem dú-vida um número razoável de tópicos inte-ressantes a destacar, especialmente algunsque parecem estar sempre presentes àspreocupações do Enviado de D. João V:

1. os receios quanto a um supostoprojeto inglês para ocupar Bue-nos Aires, cuja realização traria in-contáveis prejuízos para Portugal– aumento do contrabando, amea-ça para o Rio Grande, controlesobre a erva-mate consumida nasminas peruanas –, daí ser reco-mendável a rejeição das ofertas deauxílio armado da Inglaterra con-tra a Espanha, no caso da disputada Colônia do Sacramento;5

2. certa imagem negativa a respeitodo judeu cuja presença universalem todas as nações cristãs, sobre-tudo na Inglaterra e na Holanda,ou disfarçados de cristãos nospaíses católicos, sempre errantes,eles e os seus cabedais, atuando

como comerciantes, banqueiros,advogados, médicos, tudo enfimque leva Carvalho e Melo a escre-ver: “Não duvido que haja algunsCristãos-Novos muito bons cató-licos, mas estes são raros, comoos milagres e os auxílios eficacís-simos”.6 Daí então a grande sus-peita do autor: estando o Brasil eas conquistas de Espanha cheiasde judeus, certamente eles dariamapoio aos ingleses, quando maisnão fosse em função das suas vin-culações familiares e pessoais comLondres e Amsterdã;

3. em carta particular ao Cardeal daMota (29/9/41), Carvalho e Melocompara as manufaturas inglesasao exemplo da Real Fábrica dasSedas, de Lisboa, e sublinha al-gumas diferenças importantes, acomeçar pelo dimensionamentono seu entender excessivo de taisempreendimentos em Portugal.Temos aí na realidade uma inte-ressante análise empírica das di-ferenças entre o sistema inglêsdas manufaturas dispersas, emfunção do trabalho doméstico edo putting out system, e o sistemacolbertista, baseado em grandesedificações, concentração de arte-sãos, isto é, de manufaturas con-

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4 BNL, Cód. 687, fls. 275-282.5 BNL, Seção Pombalina,Cód. 655 , fls. 6 v. a 18.6 BNL, Códice 656, fl. 13 v.

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centradas. Curiosamente, Carva-lho e Melo critica os comercian-tes lusos por não se darem aotrabalho de estudar as Máximase Regras do Negócio, razão do insu-cesso de todos os projetos emPortugal, já que seria incompatí-vel a dimensão excessiva com abusca do lucro pelos negociantes.

Só o patrocínio régio pode por isso mes-mo levar a bom termo uma iniciativacomo aquela (fábrica das sedas) que jácausava inveja entre ingleses e france-ses, desejosos de arruiná-la. Deve-se,portanto, zelar pelo seu abastecimentode seda crua, proibindo exportações pa-ra a Inglaterra e intermediando a vendadesse mesmo material de Castela paraLondres, inclusive com lucros, naquelaconjuntura altista.7

No entanto, anos mais tarde seriaexatamente esse modelo que ha-veria de preponderar nas iniciati-vas mais importantes de Pombal,tendo como objetivo o desen-volvimento manufatureiro sob opatrocínio régio.

2.2_ A segunda fase – os primeirosanos da “governação”: 1750-1762

Período dos mais agitados e decisivos,pois foi então que tiveram lugar o Terre-moto de Lisboa, em 1755; a repressão vio-

lenta aos motins ocorridos na cidade doPorto, em 1757, contra a criação da Cia.Geral da Agricultura dos Vinhos do AltoDouro; o atentado contra D. José I, em1758, e o processo dos Tavoras e de ou-tros membros da alta nobreza acusadosde participar da conspiração regicida; aexpulsão dos padres da Cia. de Jesus, em1759, e, ainda, as complicações causadas àpolítica portuguesa pela Guerra dos SeteAnos (1756-1763), uma vez que esse con-flito veio agravar as disputas com a Espa-nha, sobretudo na região do rio da Prata, eacabou por provocar a invasão do territó-rio português em 1762, forçando o gover-no luso, mais uma vez, a recorrer ao auxí-lio militar e financeiro da Inglaterra.

A criação de companhias de co-mércio para o Grão-Pará e Maranhão epara Pernambuco e Paraíba provocou rea-ções não apenas de setores mercantis lu-sos, mas, sobretudo, dos comerciantesingleses. A questão do abastecimento decereais também agravou as relações an-glo-lusitanas, já que constantes mano-bras de especulação e açambarcamentode grãos foram postas em prática porcomerciantes britânicos, contrariando odisposto no Regulamento do Terreiro doTrigo. A esse respeito, aliás, é significati-vo um texto atribuído a Carvalho e Meloe intitulado Compêndio histórico do que tem

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7 BNL, Cód. 635, fls. 228.

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passado em Lisboa sobre a insistência de algunsnegociantes ingleses e holandeses que de acordocom outros portugueses pretenderam em diferen-tes ocasiões fazer na mesma cidade um violentomonopólio do Pão (1753).8

A fim de melhor ilustrarmos a si-tuação em que se achavam então as re-lações com a Inglaterra, selecionamosaqui dois documentos muito significati-vos: a Instrução para D. Luiz da Cunha(Manuel) que partiu para Londres9 e as Me-mórias Secretíssimas para o Ministério de Lon-dres,10 sendo ambos os textos datados de12 de agosto de 1752.

A Instrução para D. Luiz da CunhaManuel arrola alguns princípios gerais, ti-picamente mercantilistas, acoplados a di-versas considerações e recomendaçõesrespeitantes às relações entre Portugale Inglaterra. Ao primeiro tipo pertence,por exemplo, a seguinte máxima:

Sendo certo que a Balança do Comércio é aque hoje regula a Balança do poder da Eu-ropa; e que do individual conhecimento doestado do comércio de cada potência depen-de a justa estimação que se pode fazer desuas forças presentes e empresas futuras;aplicareis um especial cuidado em averi-guar e me informareis por vias particulares.

Ao segundo grupo acima mencio-nado correspondem algumas recomenda-ções interessantes: o enviado deve “não só

conservar mas estreitar a amizade entreMim e El Rei Britânico”, sem perder devista que o interesse inglês é maior pelo fa-to de gozarem os seus negociantes gran-des privilégios em Portugal e que sem eles“padeceria grande quebra o comércio e oconceito publico da Nação Inglesa”.

Em nota escrita à margem do do-cumento, o próprio Carvalho e Melorecomenda que o enviado fique muitoatento ao que se passa no Parlamento deLondres a respeito do que ali procurareminovar ou tiverem inovado em prejuízodo comércio desses Reinos e dos vassa-los deles. No entanto, logo a seguir, vemuma observação taxativa:

Deveis saber que a Aliança entre esta Co-roa e a da Inglaterra é tão antiga comonatural e que se acha firmada pelo Trata-do da Grande Aliança do ano de 1703,pelo qual se estipulou uma liga perpétuaque se acha na sua observância.

As memórias secretíssimas para o Mi-nistério de Londres seguem o mesmo ca-minho tortuoso, aparentemente contra-ditório, da Instrução acima: oficialmente,deve-se persuadir aos ingleses que Portu-gal deseja conservar sua amizade e alian-ça, dada a existência de interesses recí-procos; em segredo, porém, Carvalho eMelo aponta a verdadeira natureza dapolítica inglesa e, a seguir, indica os remé-dios mais adequados.

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8 BNL, Seção Pombalina,Códice 639.9 BNL, Seção Pombalina,Cód. 610, fls. 74-77.10 BNL, Seção Pombalina,Cód. 610, fls. 78-97.

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A verdadeira natureza da políticainglesa consiste em intrigar Portugal con-tra a Espanha, fazendo-nos crer que estaé a maior inimiga de Portugal, e assim osingleses nos persuadem aos seus fins, já que,sob a sua dependência, tida como neces-sária, o que fazem é abusar dos portugue-ses, tomando-lhes o comércio externo eo interno, ou seja, a própria substância dasforças do Reino. Assim, em face desse gran-de mal de que Portugal “enfermou desdeos princípios deste século”, os únicos re-médios possíveis são os seguintes:

1. deixar transpirar com muita habili-dade que o comércio e os portosde Portugal não têm equivalentesna Europa para a Inglaterra, aopasso que a sua aliança pode sersuprida (pelos portugueses) coma da França. Caso repiquem comameaças à América, deve-se res-ponder que jamais poderão esta-belecer-se permanentemente, porvários motivos, como bem o de-monstrou a tentativa holandesa.Deve-se acenar com o desejo fran-cês de firmar um tratado seme-lhante ao de 1703, o que arruina-ria a venda dos panos e mais lani-fícios ingleses, porque “os france-ses são de melhor gosto e maisbaratos”, além do “receio de que

as vexações que os ingleses nosfazem nos cansem de sorte quenos obriguem a buscar os france-ses, é outro bom motivo para quea Corte de Londres se modere nasvexações que costuma fazer e per-mitir aos seus vassalos contra osinteresses de S. Majestade”;

2. é preciso levar em conta, por outrolado, a conjuntura política inter-nacional, e, nesse caso, “as cir-cunstâncias em que hoje se acha anosso respeito a Corte de Lon-dres são mais para emudecer doque para falar” (referência indire-ta aos recentes acordos da Ingla-terra com a França e a Espanha,os quais tornavam menos neces-sária, por ora, a aliança lusa);

3. a importância (e urgência) dosproblemas relativos à Índia Orien-tal para as relações anglo-lusita-nas, dado o fato de serem cons-tantes as usurpações praticadaspelos britânicos da CompanhiaOriental Inglesa contra as posi-ções portuguesas;

4. “as violências que Inglaterra temfeito ao comércio deste Reino ne-cessitaria de um grosso volumepara se exprimirem”. O discursorepete nesse passo os argumen-

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tos já apresentados na Relaçãodos Gravames, ou seja, em sínte-se, enquanto cabe a Portugal aparte onerosa dos tratados, a In-glaterra “sem algum encargo esem a menor despesa percebe ointeresse de que os mesmos tra-tados são susceptíveis”;

5. mas, acima de tudo, é preciso“conservar a boa inteligência en-tre as duas Cortes... fazer o Mi-nistro ver pelas suas práticas epela regularidade dos seus proce-dimentos que deseja conservar arecíproca amizade”;

6. enfim, é preciso zelar por aquelesque são protegidos em Londresde S. M. Fidelíssima: os primei-ros seriam os mestres de naviose mercadores nacionais, embora,conforme reconhece o autor des-sas Memórias, se trate de uma ta-refa quase impossível por causade “quatro insuperáveis impedi-mentos que necessitariam de umalonga dissertação para se deduzi-rem”; os segundos seriam os por-tugueses que residem em Lon-dres e são obrigados a pagar osimpostos e até contribuições paraas paróquias, quando em Portu-gal os súditos ingleses gozam detotal isenção.11

2.3_ A “governação” entre 1762 e 1774Talvez tenha sido esse espaço de tempoo mais difícil das relações anglo-lusasdurante o período pombalino. Em termosestruturais, o que mais contribuiu para es-se fato foi a evidência, cada vez maior parao governo português, do progressivo de-clínio dos rendimentos coloniais como umtodo, a começar pela diminuição da pro-dução do ouro e dos diamantes do Brasil.Tal fato repercutiu seriamente sobre a es-trutura das finanças da Coroa, sobretudodo ponto de vista do sistema tributário, edas atividades mercantis, afetando seria-mente o comércio com a Inglaterra, namedida em que cada vez mais se restringiaa capacidade lusa de importar produtosbritânicos, visto que, até então, o déficitda balança comercial vinha sendo ampla-mente compensado através das remessasem metal precioso.

Enquanto os comerciantes ingle-ses, sobretudo aqueles estabelecidos emPortugal, reagiam às medidas tomadaspela governação pombalina para fazer fa-ce à crise, atribuindo todos os problemasàs práticas protecionistas e de fomentoimplementadas por Pombal, a invasão es-panhola, em 1762, forçou Portugal a re-correr ao auxílio militar e financeiro bri-tânico. Mesmo depois de terminado oconflito na Europa, persistiram as ten-sões na região do Prata, levando Pombal

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11 BNL, Seção Pombalina,Cód. 610, fls,78, 80, 91, 93 e 95.

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a pressionar os ingleses a prestar ajudamais efetiva contra o perigo espanhol, talcomo se pode verificar através da corres-pondência entre Carvalho e Melo e Mar-tinho de Melo e Castro.12

Em 1766, apareceu em Londresum documento contra a política pom-balina com o seguinte título: Memorialsof British consul and factory at Lisbon.13 Osantecedentes e as características desse do-cumento, assim como sua inserção no lon-go debate travado entre os porta-vozesda Feitoria Britânica e as autoridades lu-sas, entre 1752 e 1766, foram analisadospor Sir Richard Lodge (1933).

O descontentamento dos comer-ciantes ingleses vinha já de muito tempoe nele se misturavam as queixas contraações mais ou menos esporádicas das au-toridades contra a saída do ouro dos por-tos lusitanos, e a insatisfação dos comer-ciantes britânicos em face dos privilé-gios concedidos às recém-criadas com-panhias de comércio, os quais logo foramdenunciados como discriminações con-tra os mercadores ingleses.

Na realidade, no entanto, a ques-tão fundamental, embora nem sempreexplicitamente mencionada, era a saídados metais preciosos de Portugal. Emboralegalmente proibida, tal extração jamaisdeixou de ocorrer, constituindo-se em

garantia do comércio anglo-lusitano. Adiscussão sobre a imunidade usufruídapelos comerciantes ingleses tem a vercom a forma pela qual se dava a saca doouro, em geral por intermédio do packetboat – o navio que fazia a ligação direta eregular entre o porto de Lisboa e o deFalmouth. Quanto às companhias de co-mércio, é provável que o endividamentode comerciantes lusos para com colegasingleses incluísse a participação de capi-tais destes últimos nas compras de açõesefetuadas por aqueles – embora esse sejaum ponto a respeito do qual não existeconsenso entre os historiadores. Temiamtambém os ingleses a perda dos ganhosauferidos com a intermediação, caso ascompanhias fossem adquirir na Inglaterra,diretamente, as mercadorias que deveriamvender no Brasil. A política monopolistadas companhias tenderia sempre a man-ter sob controle o volume geral do co-mércio, prejudicando o possível cresci-mento das exportações de manufaturasbritânicas, além de excluir os barcos in-gleses do tráfico com as áreas coloniais.

Há, ainda, alguns outros pontos asublinhar nesse verdadeiro discurso antilu-sitano: temiam os ingleses a perda do con-trabando do Prata, e, portanto, a perdado fornecimento da prata; ora, se tal vies-se a ocorrer, a balança comercial seria

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12 BNL, Seção Pombalina,Códice 612.13 BNL, Seção Pombalina,Códices 93 e 94.

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alterada, uma vez que as companhias areduziriam ao par, fazendo cessar prova-velmente as exportações de ouro para aInglaterra; enfim, tinha-se como provávelque a elevação dos preços das mercado-rias importadas pelas companhias para ascolônias far-se-ia acompanhar de um au-mento equivalente dos produtos coloniais,em detrimento dos lucros dos ingleses.

Convém aqui lembrar, talvez comosimples curiosidade, que foram os ingle-ses que nesse documento fizeram refe-rência a uma suposta intenção pombalinade criar ainda mais duas companhias decomércio, uma para a Bahia e outra parao Rio de Janeiro, alegação essa não com-provada através de fontes lusas. Aliás, ocontrário parece ser muito mais exato,visto que, em 1769, nas respostas às 24queixas do governo inglês, a 8ª delas, con-tra as companhias do Grão Pará e Ma-ranhão e de Pernambuco e Paraíba, queteriam provocado um endividamento ge-ral, tanto de portugueses quanto de ingle-ses, teve a seguinte resposta:

[...] é fato notório que a Corte de Lisboanão teve alguma intenção de esterilizar oudiminuir o comércio com o estabelecimentodas companhias, pois, não as formou paraa Bahia e o Rio de Janeiro onde o mesmocomércio estava florescente para o comumbenefício; mas sim para os Países onde o

mesmo Comércio, ou não tinha nascido, ouse achava quase inteiramente arruinado.

Continuando, o documento con-clui que a alegação era inverídica e, ainda,se as companhias não tinham acionistasingleses, foi por culpa do desinteressedos próprios vassalos britânicos, umavez que elas não os excluíram da sua ins-tituição (Carvalho e Melo, 1823, tomoIII, p. 192 et seq.).

Em 1767, uma enxurrada de pan-fletos que eram autênticos libelos forampublicados pela Bolsa de Londres contraa política econômica pombalina, tendoum deles um título muito sugestivo: Pen-samentos ocasionais sobre o comércio português ea inexperiência de conservar a Casa de Bragançano trono de Portugal, com uma completa discus-são da perniciosa natureza de algumas novas leisPragmáticas concernentes ao comércio moderna-mente feitas neste Reino.14

Em 1768, foi publicado em Lon-dres, no London Chronicle, um artigo inti-tulado O presente estado da nação britânica,15

no qual o autor destaca o declínio do co-mércio com Portugal, declínio esse que éatribuído às medidas econômicas lusas,prejudiciais aos comerciantes britânicos,o que estaria a exigir prontas providên-cias do governo inglês.

Em 1769, provavelmente, foramredigidas as Respostas que o Marquês de

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14 Academia das Ciênciasde Lisboa, Ms. 167,Série Vermelha.15 BNL, Códice 636, fls.57v-62v.

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Pombal, então Conde de Oeiras, deu às 24Queixas que o governo inglês fez ao de Portu-gal (Carvalho e Melo, 1823, tomo III,p. 182 et seq.). As respostas lusas têm sem-pre como principal argumento a tese deque os procedimentos do governo portu-guês estiveram sempre de acordo com asleis do Reino e não desrespeitaram, aocontrário das alegações inglesas, os legíti-mos direitos dos comerciantes britânicos.

Às constantes reclamações britâ-nicas respondeu, em 1770, Carvalho eMelo com o chamado Discurso Anglo-Lu-sitano,16 o qual o próprio Oeiras mandou“verter para o idioma inglês e publicarem Londres”.17

Logo de início, o leitor é devida-mente informado das reais intenções ecaracterísticas do Discurso Anglo-Lusitano:um “honesto e imparcial” comercianteanglo-lusitano, revoltado com as acusa-ções então difundidas contra “as notá-veis brechas que se teriam feito ao co-mércio britânico em Portugal”, apura osfatos, como “zeloso patriota certo do útilcomércio e dos recíprocos interessesque unem a ambas as ditas nações” econclui então que, primeiro, não houveraqualquer alteração das pragmáticas de D.Pedro II, exceto aquelas que beneficia-ram precisamente a Inglaterra e a Holan-da pelo Tratado de 1703. Em segundo lu-

gar, a alegada diminuição do comércio dePortugal com a Inglaterra também nãoprocede, pois:

1. “foi verificado, com certeza numé-rica e física que tem crescido onúmero de habitantes de Portu-gal, e nas suas ilhas não há falta,mas redundância de gente, o mes-mo ocorrendo no Brasil”;

2. cresceu assim o consumo das fa-zendas de comércio, com ele,portanto, a entrada de mercado-rias estrangeiras, o que se provapelos registros da Alfândega deLisboa e do Consulado de Saída,entre 1766 e 1770.

Quanto às fábricas estabelecidaspelos lusitanos, a primeira coisa a ser ob-servada é que:

os Estabelecimentos Econômicos que Por-tugal tem feito para dar ocupação aos seusVassalos ociosos foram fundados naqueleDireito Divino, Natural, e das Gentes queautoriza qualquer particular Pai de Famí-lia para empregar os seus familiares e cul-tivar suas terras como julga que é mais con-veniente ao bem de sua família e casa semque haja quem tenha a menor ação paralho impedir, Direito do qual nenhuma Na-ção culta duvidou até agora e que é reconhe-cido pelo citado panfleto de 1768.

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16 BNL, Códice 636, fls.5-23v., 70v. e 77-80.17 BNL, Códice. 635, fl.449v.,e Códice 692, fl. 82-95.

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Ora, prossegue o mesmo Discur-so, bastaria o uso da Razão natural paracompreenderem que não podia haverchegado à imaginação do governo sériode Portugal a extravagante idéia de fazerindependentes das Nações Estrangeirasos seus fornecimentos:

1. por uma impossibilidade física, vis-to que, com suas fábricas, Portugalpoderia, quando muito, atender aum ou dois doze avos do seu con-sumo (metrópole e domínios);

2. porque depois daquele ano de1766 tem mostrado o tempo ami-go (posto que lento) da verdadecom certeza numérica e física, oassim muito que é inatendível adiferença que se quis persuadirque as referidas Fábricas faziamcontra o Comércio geral, comoa insubsistência da notável dimi-nuição que se ameaçou aos seusInteressados ausentes (o que seprova pelos mesmos registros ci-tados anteriormente);

3. na verdade, aliás, não teria sidosurpreendente se realmente hou-vesse ocorrido aquela diminui-ção do comércio, tendo em vistaos danos causados pelo terremo-to, as despesas da reconstruçãode Lisboa e da Guerra de 1762;

mas isso não ocorreu, e a melhorprova, acrescenta o Discurso, sãoas quantias em dinheiro sonanteque continuaram a chegar ao Ban-co de Londres, pois apenas a quan-tia transportada nos packet boatsfoi igual (em Libras) a 3 552 574,em quatro anos. Logo, trata-se deuma impostura marcada pela in-gratidão e engendrada por inte-resses mercantis e pecuniários.

Prosseguindo, o Discurso refuta aquestão dos alegados prejuízos causadospelas companhias de comércio ao co-mércio inglês, demorando-se em minu-ciosas explicações sobre a atuação tantoda Cia. do Grão Pará e Maranhão quantoda Cia. de Pernambuco e Paraíba, che-gando sempre à conclusão de que elas sótrouxeram “prosperidades e progressos”tanto para o Comércio de Portugal quan-to para o da Inglaterra.

Diante da alegação de que Portu-gal pretenderia criar mais duas compa-nhias, uma para a Bahia e outra parao Rio de Janeiro, fazendo ao comércio inglêsgrande estrago, o texto repete os argumen-tos já mencionados: “Não tem el Rei dePortugal nenhum interesse em estabele-cer para elas uma Companhia como sequer supor”, já que a situação dos seusterritórios é totalmente diversa daquela

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que existia nas áreas abrangidas pelascompanhias já instituídas, e a melhorprova dessa afirmativa foi a supressãodas frotas e a declaração do comércio li-vre para os vassalos de S. M. entre aque-les lugares e o Reino.

Finalmente, a questão dos chama-dos comissários volantes. A proibição de co-missários particulares, ou volantes, irem nasfrotas para o Brasil, tida pelos ingleses co-mo prejudicial aos seus interesses, justifi-ca-se em função dos danos causados portais comissários aos comerciantes hones-tos do Brasil e do Reino, uma vez que elesnão passavam de aventureiros a serviço decasas de segunda categoria em Portugal.Acrescente-se, ainda, que os ingleses sãoos primeiros a temer e opor dúvidas quan-to à ida de comissários portugueses aosportos da Inglaterra para adquirir direta-mente mercadorias para as companhiasde comércio, conforme rumor que circu-lara e logo provocara protesto britânicosao tempo de Lord Kinnoul (1760).

Já implícita em diversas queixasanteriores sobre a proibição dos comissá-rios volantes, a questão dos impedimentosimpostos pelos portugueses à ida de na-vios estrangeiros aos portos de suas co-lônias, reacendeu-se na década de 1770,18

por ocasião da chegada a Lisboa de Ro-bert Walpole, como embaixador extra-ordinário. No entanto, o motivo ostensivode tal visita foi a disputa dos exportado-res de vinhos do Porto, ingleses em mai-oria, com a Cia. Geral da Agricultura dasVinhas do Alto Douro acusada de práti-cas nocivas ou discriminatórias em rela-ção aos interesses do comércio britânico– é claro, contrárias aos tratados em vigor.19

Bem no estilo da governação pombalina,respondeu-se aos ingleses através de umaDedução Compendiosa do que a Junta da Com-panhia Geral da Agricultura das Vinhas doAlto Douro praticou sobre as ordens respectivasà qualificação e vendas dos Vinhos da ultima co-lheita do ano próximo passado de 1771.20

Nesse último texto – Dedução Com-pendiosa... – há uma análise das verdadei-ras intenções dos comerciantes ingleses,as quais seriam contrárias ao espírito e àletra do Tratado de 1703, com base no ar-gumento de que a compra dos vinhos éa contrapartida da entrada dos lanifícios,logo, não podem eles pretender arrui-nar a agricultura e o comércio dos vi-nhos sem causar sérios prejuízos à eco-nomia de Portugal e, por conseguinte, aocomércio dos lanifícios, atingindo assima própria Inglaterra.

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18 Arquivo HistóricoUltramarino, Cód. 1193,e Arquivo Nacional da Torredo Tombo, Manuscritosda Livraria, 3.19 BNL, Seção Pombalina,Códices 637-638.20 ANL, Códice 692, fls. 69-81.

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2.4_ Apogeu e crise da“governação” – 1775-1777

A partir de 1772, aproximadamente, asquestões econômicas foram aos poucosperdendo o lugar de destaque que haviamocupado até então nas relações anglo-lu-sas, uma vez que, com o agravamento dastensões luso-espanholas na América meri-dional, sobretudo na Colônia do Sacra-mento, se tornou cada dia mais urgentecontar com a aliança inglesa para fazer fa-ce às pretensões hispânicas. Temos aíuma tendência das mais evidentes na cor-respondência diplomática entre Lisboa eLondres, pelo menos até 1777.21

Por outro lado, em 1775, por oca-sião da inauguração da Estátua Eqüestrede D. José I, Pombal, nas suas ObservaçõesSecretíssimas, ao exaltar na verdade seus pró-prios feitos, assinala com júbilo os grandesprogressos realizados na esfera do comér-cio externo em benefício dos vassalos deS. M. (Azevedo, 2004, p. 333 et seq.).

Do ponto de vista de sua avaliaçãoda economia lusa, o discurso pombalinodesdobra-se em três partes principais: oestado das artes fabris ou ofícios mecânicos, quesão os braços e as mãos de todos os Estados; o es-tado do comércio interno; e o estado do comércioexterno. Na primeira parte, o balanço nãopoderia ser mais otimista: passou-se daimportação de tudo do estrangeiro aoatendimento de todas as necessidades

internas, graças ao florescimento dasmanufaturas; na segunda parte, a prospe-ridade do comércio interno é vista comoum fato que se baseia nos produtos dasmanufaturas nacionais, das quais o co-merciante-empresário é o principal agen-te impulsionador, assegurando, além domais, o total aproveitamento da capaci-dade profissional inegável dos artíficesportugueses; por último, vem o estadodo comércio externo no qual só se en-contram saldos extremamente positivosa mencionar: a extração e a comercializa-ção dos diamantes, a solução dos proble-mas do açúcar e do tabaco, a valorizaçãodo sal, do couro, dos atanados, da solae das vaquetas, o surto espetacular dosvinhos do Douro, os gêneros do Paráe do Maranhão (cacau, café, arroz, algo-dão, gengibre, cravo), a “restituição docomércio da Ásia aos vassalos do dito Se-nhor, sem sujeição ao monopólio de umaCompanhia e sem desembolso da moedanacional”, e, em conclusão, afirma Pom-bal no mesmo discurso, “S. M. fez o co-mércio externo mais opulento do que naépoca de D. Manuel e de D. João III,mostrando-se que as especiarias daquelaépoca se acham com muitas vantagensexcedidas pelas referidas preciosíssimasproduções da América” (Carvalho e Me-lo, 1823, tomo III, p. 12-24).

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21 BNL, Seção Pombalina,Códices 637 e 638.

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2.5_ A queda e o exílio emPombal – 1777-1782

Após a morte de D. José I, Carvalho eMelo pediu a D. Maria I a dispensa dosseus serviços (concedida pelo Decreto de4 de março de 1777) e recolheu-se à suapropriedade em Pombal. Desencadearam-se então os ódios, os processos contra osatos por ele praticados, assim como con-tra os bens que teria indevidamente acu-mulado. No intuito de defender-se, a si ea sua administração, o Marquês de Pom-bal produziu extensos documentos – asApologias e as Inspeções.22 Nas primeiras,ele se defende de cada uma das acusaçõescontra ele assacadas pelos seus inimigos– são cerca de 15 apologias, a respeitode assuntos os mais variados, constantesdo Códice 695 da BNL. Quanto às Ins-peções, num total de oito, trata-se de ba-lanços minuciosos sobre cada um dossetores abrangidos pela governação pom-balina, entre os quais se destacam:

_ lª Inspeção – Do governo interior e doReal Erário;

_ 4ª Inspeção – Sobre o Comércio Na-cional;

_ 5ª Inspeção – Sobre o Estabeleci-mento das Artes Fabris e Manufatu-reiras do Reino;

_ 7ª Inspeção – Dedução Compendio-sa dos Contratos da Mineração dosDiamantes.

Tais escritos oferecem ao leitor umaperspectiva bastante pessoal das grandeslinhas que formam o desenho das práti-cas pombalinas ao mesmo tempo quenos dão acesso a muitas das idéias que astinham norteado, do ponto de vista dopróprio Pombal.

Já quase ao findar o ano de 1777,aparecem as chamadas Cartas Inglesas, oumelhor, Cartas que escreveu o Ilmo. e Exmo.Sr. Marquês de Pombal, Sebastião José de Car-valho e Melo, estando no seu retiro de Pombal:em que descreve todo o governo do Sr. Rei D. José I.As quais cartas o mesmo Marquês quer afe-tar não serem suas, e serem-lhe mandadas deLondres no idioma inglês.23 Ao tomar co-nhecimento (sic), alguns meses mais tar-de, do teor dessas cartas, o Marquêsapressou-se em redigir um Compêndio his-tórico e analítico do Juízo que tenho formado...no qual comenta os temas por elas abor-dados, sempre concordando com a subs-tância das afirmações, mas negando quefosse ele o seu autor.

Continuamente assediado por ca-lúnias e processos de seus desafetos, Pom-bal respondeu com violência a algunsdeles, como foi o caso do Libelo Famoso deLesão Enormíssima, movido pelo Benefi-ciado Jacinto de Oliveira de Abreu e Lima,antigo Provedor do Tabaco, e tambémo Libelo Infame, de Francisco Caldeira Ga-lhardo de Mendonça. Pombal adotou co-

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22 As Apologias encontram-seno Códice 695, BNL, SeçãoPombalina, fls. 44-180; asInspeções encontram-se, as seteprimeiras, no mesmo Códice,fls. 19-31 e 232-380; a últimaencontra-se no Códice 691,BNL, fls. 74-88.23 Códice 470, BNL,Seção Pombalina.

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mo principal pressuposto da sua defesa atotal identificação de seus atos com avontade de D. José I, não lhe competin-do, portanto, assumir a responsabilidadepor eles. Tal identificação, real ou apenasalegada, entre Pombal e o falecido mo-narca, teve ainda o inconveniente de tra-zer a público matérias que constituíam se-gredo de Estado, especialmente no casoda Contrariedade com que contestou aque-le Libelo Infame, daí resultando, por deter-minação de D. Maria I, a abertura de pro-cesso contra o antigo ministro, em 26 desetembro de 1779. O processo arrastou-se ao longo de dois anos e concluiu pelaculpa de Pombal e sua condenação; toda-via, atendendo ao precário estado de saú-de do velho Marquês dos serviços por eleprestados ao seu falecido pai, a Rainhaassinou Decreto perdoando Pombal, em6 de agosto de 1781, mas obrigando-o amanter total silêncio.

Desse conjunto de textos produzi-dos por Pombal após seu afastamento dopoder, vamos aqui destacar somente doisdeles: a 4ª Inspeção – Sobre o Comércio Na-cional, e as Dezessete Cartas em associaçãocom o respectivo Compêndio Histórico.

Na Inspeção sobre o Comércio Na-cional, afirma Pombal:

Nada pode ser mais útil e necessário a umEstado do que o Comércio. Porque ele é amais caudalosa e inexaurível Fonte de que

emanam todos os cabedais que podem fazerum reino opulento, rico e respeitado semnunca se diminuir a torrente das riquezas eprosperidades que dele se derivam.

E ainda:

Sendo o ouro o mais importante de todos osgêneros, porque em si contém cabedal apu-rado, sólido, perpétuo e independente de to-das as contingências e perigos do comércio;porque a estimação uniforme e universal detodas as Nações do Mundo estabeleceu nelea medida mais justa para regular os preçosde todas as mercadorias; e porque é o nervomais forte de todos os Estados para susten-tar o vigor enquanto dure nos seus tesourosa segurança deles...24

Quanto às Dezessete Caras e ao Com-pendio Histórico que as comenta e respon-de, parece certo admitir-se que aquelasforam escritas sob a orientação de Pom-bal, sendo obra inteiramente sua o segun-do. Em termos gerais, esses textos reite-ram a visão pombalina a respeito da suamaneira de caracterizar a situação da agri-cultura, do comércio e das manufaturasantes e após as providências por ele to-madas. Lembra bastante o teor das Obser-vações Secretíssimas e repete em muitos pas-sos o que se encontra nas Inspeções. Atônica permanece a mesma:

o negócio e o comércio de Portugal foi outroobjeto da atenção do Ministro: ele sabia

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24 BNL, Seção Pombalina,Cód. 695, fls. 232-380.

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que um país, cujas constantes importaçõesexcediam tanto as exportações, como Por-tugal, devia evidentemente vir a perecer(Carvalho e Melo, 1823, tomo II, p. 149).

3_ Observações finaisDa Relação dos Gravames ao Compêndio His-tórico desenvolve-se o discurso da gover-nação pombalina na perspectiva das re-lações político-econômicas de Portugalcom a Inglaterra. Temos aí um discursorepetitivo, assistemático, no qual ficamna sombra aquelas questões que não seousa dizer, ou que não podiam ser ditas.Na realidade, trata-se de dois discursosmais ou menos imbricados: o discursoanglo-lusitano e o discurso mercantilista.

O discurso anglo-lusitano envol-ve uma dupla conotação: certa visão doatraso da economia portuguesa diantedas nações mais ricas e a ambivalênciaque caracteriza toda a teoria e a prática daaliança inglesa.

O discurso mercantilista está emdia com os componentes principais darespectiva ideologia em diversas partesda Europa. Seu ponto principal é a refe-rência à balança comercial, entendidano seu sentido mais amplo de balançode pagamentos.

Confrontando-se esses dois dis-cursos, algumas contradições aparecemcomo inevitáveis: no discurso anglo-lusi-tano, as medidas mercantilistas devemsempre ser equacionadas em função dasua necessária compatibilização com asexigências dos compromissos assumidoscom a Inglaterra; já no discurso mercan-tilista, a quebra da dependência econô-mica e a auto-suficiência aparecem comoobjetivos prioritários, numa clara oposi-ção à Inglaterra.

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Referências bibliográficas

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