o gaúcho de josé de alencar e a nação como projeto

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Jocelito Zalla. O gaúcho de José de Alencar e a nação como projeto: “romantismo político” à brasileira? [página 1/11] Nau Literária: crítica e teoria de literaturas • seer.ufrgs.br/NauLiteraria ISSN 1981-4526 PPG-LET-UFRGS Porto Alegre Vol. 06 N. 02 jul/dez 2010 Artigos da seção livre O gaúcho de José de Alencar e a nação como projeto: “romantismo político” à brasileira? Jocelito Zalla * Resumo: O romantismo literário vigente no século XIX no Brasil deu os primeiros passos na longa caminhada em direção à nação. Nesse sentido, podemos citar o escritor José de Alencar como um dos precursores da tarefa, seguida por gerações de intelectuais, de conferir à unidade política do país imagens de um passado comum, diverso, mas integrado. O objetivo desse trabalho é testar os apontamentos de Michael Löwy e Robert Sayre sobre o “romantismo político” para o projeto de invenção da nação posto em prática na literatura de José de Alencar, através da leitura do livro O Gaúcho, publicado, originalmente, em 1870. Tais autores definem o termo como uma “crítica da sociedade burguesa que se inspira em uma referência ao passado pré-capitalista”. Trata-se, então, de averiguar e analisar os índices políticos do texto, expressos em sua composição formal, como a crítica ao progresso, a nostalgia do tempo perdido, a construção do “bom selvagem” pampiano e a projeção romântica de futuro baseada no passado mítico. Palavras-chave: José de Alencar, O gaúcho, romantismo político, nacionalismo literário. Abstract: The Brazilian literary romanticism current in XIX century began our long journey to the nation. Thus, we can mention José de Alencar as a precursor of the task to create images of a common past, varied but integrated, to the political unity. This article aims to test the validity of Michael Löwy and Robert Sayre’s notes about “political romanticism” to interpret Alencar’s project of inventing the nation through reading his book O Gaúcho, published in 1870. The term is defined like a critique of bourgeois society, inspired in the precapitalist past. Then, I intend to investigate and to analyze the political indices of the text, expressed in formal composition, like the critique of progress, the nostalgia for lost time, the construction of the Pampas’“noble savage” and the romantic projection of future based in mythical past. Keywords: José de Alencar, O gaúcho, political romanticism, literary nationalism. O “Estado-nação” é um artefato social desenvolvido no século XIX, com a expansão do capitalismo industrial e das experiências liberais de democratização política. Para Benedict Anderson, a queda dos antigos sistemas culturais, como o reino dinástico e a comunidade religiosa, permitiu que nos imaginássemos enquanto nações politicamente limitadas e, ao mesmo tempo, soberanas. 1 O período final daquele século e o início do próximo (1875-1914) * Licenciado, bacharel e mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, cursa bacharelado em Letras na mesma instituição. Pesquisa relações entre literatura, história e identidade. 1 Aqui me refiro à sua conceituação já clássica de “nação” como “comunidade imaginada”. Para o autor, a substituição dos antigos sistemas culturais pelos nacionalismos como estruturas de referência só foi possível graças, de um lado, às transformações nos modos de apreender o mundo e, de outro, à expansão do capitalismo. Primeiro, devido ao surgimento da noção de simultaneidade, marcada pela “coincidência temporal” e “medida pelo relógio e pelo calendário”. Segundo, porque imaginar-se como nação exigiu das diversas sociedades

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Análise da obra "O gaúcho", de José de Alencar.

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    O gacho de Jos de Alencar e a nao como projeto: romantismo poltico brasileira?

    Jocelito Zalla*

    Resumo: O romantismo literrio vigente no sculo XIX no Brasil deu os primeiros passos na longa caminhada em direo nao. Nesse sentido, podemos citar o escritor Jos de Alencar como um dos precursores da tarefa, seguida por geraes de intelectuais, de conferir unidade poltica do pas imagens de um passado comum, diverso, mas integrado. O objetivo desse trabalho testar os apontamentos de Michael Lwy e Robert Sayre sobre o romantismo poltico para o projeto de inveno da nao posto em prtica na literatura de Jos de Alencar, atravs da leitura do livro O Gacho, publicado, originalmente, em 1870. Tais autores definem o termo como uma crtica da sociedade burguesa que se inspira em uma referncia ao passado pr-capitalista. Trata-se, ento, de averiguar e analisar os ndices polticos do texto, expressos em sua composio formal, como a crtica ao progresso, a nostalgia do tempo perdido, a construo do bom selvagem pampiano e a projeo romntica de futuro baseada no passado mtico.

    Palavras-chave: Jos de Alencar, O gacho, romantismo poltico, nacionalismo literrio.

    Abstract: The Brazilian literary romanticism current in XIX century began our long journey to the nation. Thus, we can mention Jos de Alencar as a precursor of the task to create images of a common past, varied but integrated, to the political unity. This article aims to test the validity of Michael Lwy and Robert Sayres notes about political romanticism to interpret Alencars project of inventing the nation through reading his book O Gacho, published in 1870. The term is defined like a critique of bourgeois society, inspired in the precapitalist past. Then, I intend to investigate and to analyze the political indices of the text, expressed in formal composition, like the critique of progress, the nostalgia for lost time, the construction of the Pampasnoble savage and the romantic projection of future based in mythical past.

    Keywords: Jos de Alencar, O gacho, political romanticism, literary nationalism.

    O Estado-nao um artefato social desenvolvido no sculo XIX, com a expanso do capitalismo industrial e das experincias liberais de democratizao poltica. Para Benedict Anderson, a queda dos antigos sistemas culturais, como o reino dinstico e a comunidade religiosa, permitiu que nos imaginssemos enquanto naes politicamente limitadas e, ao mesmo tempo, soberanas.1 O perodo final daquele sculo e o incio do prximo (1875-1914)

    * Licenciado, bacharel e mestre em Histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, cursa

    bacharelado em Letras na mesma instituio. Pesquisa relaes entre literatura, histria e identidade. 1 Aqui me refiro sua conceituao j clssica de nao como comunidade imaginada. Para o autor, a

    substituio dos antigos sistemas culturais pelos nacionalismos como estruturas de referncia s foi possvel graas, de um lado, s transformaes nos modos de apreender o mundo e, de outro, expanso do capitalismo. Primeiro, devido ao surgimento da noo de simultaneidade, marcada pela coincidncia temporal e medida pelo relgio e pelo calendrio. Segundo, porque imaginar-se como nao exigiu das diversas sociedades

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    responsvel, segundo Eric Hobsbawm, pela transformao do contedo ideolgico da nao e pela sua configurao compsita, que uniu elementos polticos e novos marcos

    lingsticos e tnicos.2 Conforme Anne-Marie Thiesse, a concepo romntica de nao, de vertente alem, aliou-se, assim, acepo poltica, ligada aos ideais da Revoluo Francesa e do Iluminismo, para construir, tendo por base mais de um sculo de trocas intelectuais internacionais, um modelo nico de produo da diferena (THIESSE, 2001/2002, p. 8-9). Contudo, considerando os apontamentos de Michael Lwy e Robert Sayre, poderamos entender o nacionalismo de inspirao romntica, ao mesmo tempo, como produto e reao expanso do capitalismo. Tais autores caracterizam o romantismo pelo seu aspecto poltico, ou seja, como uma crtica da sociedade burguesa que se inspira em uma referncia ao passado pr-capitalista (LWY, SAYRE, 1993, p. 13). O prprio nascimento do movimento romntico deveria ser compreendido, assim, como resposta ao advento do sistema capitalista. No entanto, medida que se ope ao seu desenvolvimento, o romantismo, como viso de mundo, estaria presente na histria do pensamento ocidental contemporneo atravs das mais variadas expresses, unificadas pela convico de que falta ao real presente certos valores humanos essenciais que foram alienados. Dessa forma, o romantismo volta-se s origens quase imemoriais da nao, desenhadas por pintores e literatos com tintas e cores mais vibrantes que aquelas de seu passado histrico: Deseja-se ardorosamente reencontrar o lar, retornar ptria, e justamente a nostalgia [grifo dos autores] do que foi perdido que est no centro da viso romntica anticapitalista (LWY, SAYRE, 1993, p. 22). Nessa tica, inventar a nao e o nacional um empreendimento conservador, mas crtico s mesmas condies sociais em transformao que, segundo Anderson, paradoxalmente, o possibilitam. No Brasil, como sabemos, o romantismo literrio vigente, tambm, no sculo XIX, deu os primeiros passos na longa caminhada em direo nao. Nesse sentido, podemos citar o escritor Jos de Alencar como um dos precursores da tarefa, seguida por geraes de intelectuais, de conferir unidade poltica do pas (por muito tempo frgil e, portanto,

    determinado nvel de desenvolvimento econmico e tecnolgico, prefigurando o que o Anderson denominou capitalismo tipogrfico: a inveno da imprensa e a organizao capitalista dos produtos culturais, aliadas ao aparecimento do vernculo administrativo, da alfabetizao em massa e da formao de um mercado consumidor letrado (ANDERSON, 2008, p. 54). 2 Quatro aspectos dessa nova configurao chamam a ateno de Hobsbawm: primeiro, a adoo do

    nacionalismo e do patriotismo como ideologia tambm pela direita poltica; segundo, a pressuposio de que o direito de autodeterminao nacional aplicava-se no somente s unidades que demonstrassem viabilidade econmica, poltica e cultural, mas a toda comunidade que reivindicasse o ttulo de nao; terceiro, a tendncia a admitir que tal autodeterminao nacional corresponderia plena independncia do Estado; quarto, a nova propenso em definir uma nao em termos tnicos e de linguagem (HOBSBAWM, 2006, p. 206).

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    contestvel) imagens de um passado comum, diverso, mas integrado.3 O objetivo desse breve ensaio testar os apontamentos de Lwy e Sayre para o projeto romntico de inveno da nao posto em prtica na literatura de Jos de Alencar, atravs da leitura do livro O Gacho, publicado, originalmente, em 1870. Tributrio das teses de Karl Mannheim sobre o romantismo, o trabalho de Lwy e Sayre, de certa forma, atualiza a anlise poltica do movimento e, acredito eu, nos permite refletir inclusive sobre a sobrevivncia de ideias romnticas em formas e modelos literrios subseqentes e, mesmo, filosoficamente opostos, como, por exemplo, no Rio Grande do Sul, a prosa realista da gerao de 1930. Segundo Alfredo Bosi, a interpretao de Mannheim indica que as atitudes saudosistas ou reivindicatrias que pautam o romantismo expressam os sentimentos daqueles sujeitos alijados (nobreza) ou no contemplados (pequena burguesia) pelas novas estruturas da sociedade capitalista europeia do sculo XIX (BOSI, 1983: 100). O projeto romntico no Brasil, como sabemos, adaptou os padres de literatura do velho continente realidade local avessa aos ideais liberais da nova burguesia industrial. O fenmeno, designado em ensaio clssico de Roberto Schwarz como ideias fora do lugar, no admite que negligenciemos, como apontado pelo crtico, a funo do iderio europeu no cho social encontrado no Brasil (SCHWARZ, 2002, p. 9-31). Dessa forma, a repulsa romntica sociedade burguesa ganha fora e apelo num pas de estruturas pr-industriais, que se referenda esteticamente, mas se ope socialmente civilizao urbana europeia sua contempornea. Numa sociedade escravista, dividida entre a) senhores, b) escravos e c) homens livres, mas dependentes dos primeiros, a importao do romance atendeu s necessidades de justificao poltica do Estado independente nela assentado/construdo. dessa forma que podemos compreender, seguindo Antonio Candido, a literatura oitocentista no pas como empenhada: Depois da Independncia o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade literria como parte do esforo de construo do pas livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciao e particularizao de temas e modos de exprimi-los (CANDIDO, 2007, p. 28). Portanto, pesem as desconformidades de situao material, conforme Bosi, pode-se dizer que se formaram em nossos homens de letras configuraes mentais paralelas s respostas que a inteligncia europia dava a seus conflitos ideolgicos (BOSI, 1983, p. 101).

    3 O romantismo literrio do sculo XIX apontado por Alexandre Lazzari como a origem da forma renitente de

    representar a nao pela diversidade regional. O autor desenvolve, em sua tese, a anlise da elaborao, neste perodo, dos artefatos culturais apropriados, mais tarde, pelo regionalismo gacho (cf. LAZZARI, 2004).

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    Alencar era consciente da misso histrica da literatura no Brasil. Alm disso, como apontado por Lucia Helena, concomitantemente consolidao de uma noo esttica de identidade nacional na Europa, em que o romance se aliava construo do mundo liberal e de seus sustentculos, como o voto, a educao e o sistema de assistncia social, emergia em toda a Amrica um projeto de fundao de naes que desenvolveu uma frmula narrativa cuja finalidade era resolver conflitos culturais contnuos, atravs da criao de um gnero hbrido que encontrou na histria de amor um forte aliado metafrico. Nascia, ento, o national romance, na nomenclatura de Doris Sommer (HELENA, 2009, p. 63). O romantismo poltico europeu encontrava, assim, no novo mundo correspondncia formal e, no tocante ao nacionalismo, ideolgica. Os textos indianistas de Alencar valendo-se da diviso tradicional de sua obra em trs fases/preocupaes (ao indianismo seguiria o romance urbano e o regionalismo) , como O guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874), teriam manifestado com plenitude, segundo Helena, seu ambicioso projeto de fundao nacional, o qual previa o preenchimento do vazio de estruturas scio-polticas e o consenso entre classes, raas e interesses hierarquicamente divergentes. (HELENA, 2009, p. 64). Mas o projeto alencariano de inveno da nao no pode ser resumido aos motivos indgenas. De certa forma, a visada nacionalista e romntica, que buscava fundar em um passado mtico a nobreza recente do pas, estava presente em todos os textos do autor: De resto, Alencar, ainda fazendo romance urbano, contrapunha a moral do homem antigo grosseria dos novos-ricos; e fazendo romance regionalista, a coragem do sertanejo s vilezas do citadino (BOSI, 1983, p. 101). Seguindo a caracterizao de romantismo poltico de Lwy e Sayre, poderamos dizer que toda a obra de Alencar perpassada por oposies ideolgicas equivalentes, como passado/presente, antigo/moderno, campo/cidade, com desdobramento poltico semelhante, ou seja, a crtica ao progresso a partir de valores tidos como tradicionais. Da o aproveitamento como tema, to bem abordado por Schwarz, da condenao da mercantilizao das relaes sociais nos romances urbanos. Da, tambm, o empenho na descrio e elogio de uma pampa mtica, geograficamente distante dos grandes centros, e regida por leis quase naturais, no por acaso consonantes com as grandes questes do romance europeu, como a vingana, no livro O Gacho.

    Tal obra configura, nesse sentido, mais um argumento contra a diviso esquemtica e superficial dos textos de Alencar. Se esses compunham parte de um projeto mais amplo de escrever a Amrica, o regionalismo talvez a manifestao mais concreta da inteno de escrever o Brasil. O epteto, semanticamente atrelado aos movimentos literrios

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    geograficamente localizados das primeiras dcadas do sculo XX, no pode apagar a relao de continuidade de livros como O Gacho e o Sertanejo (1875) com os textos ditos indianistas. Num pas ainda jovem, de propores continentais e de contornos polticos fluidos e contedos culturais em definio, inventariar os tipos locais era a maneira mais palpvel de acessar/imaginar o nacional. Iniciar tal empreendimento pelas margens extremas, ou seja, espacial e simbolicamente mais afastadas da cultura urbana do pas, vista como sucednea local das imperfeies da sociedade burguesa europeia, indicativo do quanto de romantismo poltico havia no pensamento de Alencar: o projeto de nao passava pelo resgate da pureza inicial do brasileiro, ainda vigente, nessa perspectiva, nas periferias intocadas da civilizao. Romantismo e nacionalismo foram, alis, os pontos de encontro, quando da publicao do livro O Gacho, entre o projeto alencariano e a produo literria da ento Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, representada, em grande parte, pelos conscios da Sociedade Partenon Literrio, de Porto Alegre, fundada em 1868.4 Foi na revista do grupo de intelectuais em sua maioria nacionalistas e republicanos, mesmo veculo em que se defendiam ideais como o abolicionismo, que Apolinrio Porto Alegre publicou, em 1872, seu romance O Vaqueano, considerado, por muito tempo, pela crtica especializada, uma resposta obra de Alencar, devido s impropriedades por ele cometidas na caracterizao do gacho social e do Brasil meridional e as conseqentes deturpaes das tradies locais.5 Longe disso, como mostrado por Alexandre Lazzari, havia sim grande simpatia desse autor pela obra de Alencar: todas as falhas de verossimilhana externa, por exemplo, causadas pela falta de contato do escritor cearense com a realidade sulina criticadas por Franklin Tvora, sob o pseudnimo de Sempronio, no famoso debate com o autor, ou por escritores locais, como o pelotense Bernardo Taveira Jnior , poderiam ser relevadas, j que a arte, para Porto Alegre, no deveria ser refm da cincia e da observao rigorosa da natureza (cf. LAZZARI, 2004, p. 141). Em biografia literria de Jos de Alencar traada para as pginas da revista do Partenon, Apolinrio Porto Alegre reconhecia a existncia de problemas no livro O Gacho, mas estes

    4 Segundo Regina Zilberman, as criaes literrias dos escritores da agremiao podem ser reunidas em duas

    vertentes temticas: a) textos da linhagem romntica, que exploravam temas como a infncia, a morte e o amor desenganado; b) apropriao de motivos regionais, atravs da utilizao pica do modelo humano rio-grandense oriundo dos pampas ou do cultivo da memria do passado glorioso da Provncia, exaltando-se o ndio como matriz do campeiro e a Revoluo Farroupilha, marco da Histria local (ZILBERMAN, 1980, p. 14). 5 Sabe-se, todavia, que a obra de Porto Alegre foi redigida anteriormente publicao do livro de Alencar. Se a

    repercusso desse texto entre os escribas da provncia pode ter levado o sul-rio-grandense a repensar O Vaqueano, hiptese tambm carente de comprovao, tal livro no pode ser considerado, a exemplo dos textos de Bernardo Taveira Jnior, reao prosa alencariana; pelo contrrio, seria justamente uma tentativa de adequao do modelo indianista realidade sulina.

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    se deviam a questes de estilo ou de construo dos personagens. A inadequao de Manuel Canho, protagonista do enredo, ao gacho mtico, centauro da pampa, desenhado pelo prprio Alencar, seria o motivo de maior insatisfao: excessivamente misantropo, pese a paixo avassaladora por Catita, avesso ao convvio social e politicamente alheado, dado o envolvimento nos prembulos da Guerra dos Farrapos ser mero fruto de vnculo pessoal com o padrinho Bento Gonalves, no condizia com o tipo planejado pelo escritor nem com o idealismo com que o professor Apolinrio Porto Alegre desejava educar as novas geraes (LAZZARI, 2004, p. 143). O pecado de Alencar, para os intelectuais do Partenon, foi, ento, o de no atender totalmente s exigncias romnticas de mitificao do gacho nacional.6 De fato, a longas digresses do escritor sobre a pampa e seus habitantes, que precedem e medeiam o enredo, conflitam com a caracterizao de seus personagens. Se o modelo de heri enunciado remete ao ufanismo indianista precedente, a altivez inicial de Manuel Canho acaba minorada perto de sua introspeco excessiva e ojeriza social, em nada lembrando a nobreza de carter algo abnegado de um Peri. Mais do que isso, tudo se passa como se a narrativa de Alencar se dividisse em dois tempos, ao contrrio do desejado, formalmente irreconciliveis, o do mito e o da histria: se o primeiro remete a um passado primordial, ele tambm momento de suspenso, em que o gacho idealizado se dilui no meio, comungando com a natureza sua vocao ao perene; j o segundo o tempo da ao, em que o entrecho se desenrola e o mito, teoricamente, se materializa, ganha vida, ou seja, o momento de concretude, em que os fatos conhecidos da histria local do ritmo e sustentao aos eventos narrados. no primeiro, cabe ressaltar, que o romantismo poltico de Alencar mais latente. Assim, a descrio exagerada da paisagem se encontra com o ideal nacionalista da cor local, estabelecendo um clima geral de nostalgia do ainda no perdido ou pesar pelo pouco que j se perdeu: Nas margens do Uruguai, onde a civilizao j babujou a virgindade primitiva dessas regies, perdeu o pampa seu belo nome americano. O gacho, habitante da savana, d-lhe o nome de campanha (ALENCAR, 1971, p. 15). As incongruncias internas, porm, no param por a. A obra traz consigo tenses ideolgicas no resolvidas, como um General Bento Gonalves, em breve lder da Guerra dos Farrapos (1835-1845) 7, cioso de sua brasilidade, defensor do Imprio na fronteira sul, mas imerso em relaes duvidosas com o elemento castelhano. O tratamento dado ao cone sul- 6 A caracterizao do campesino cantado por Apolinrio Porto Alegre, segundo Lus Augusto Fischer, nos d a

    dimenso de ufanismo do autor: apresentado como livre, altivo, insubmisso, leal, amigo de seu cavalo, vigia da fronteira, monarca das coxilhas (FISCHER, 2004, p. 36). 7 O enredo se situa temporalmente no ano de 1832, trs anos antes da ecloso de uma das maiores revoltas

    provinciais do perodo regencial, que, na dcada de 1870, comeava a ser recuperada pela memria histrica local.

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    rio-grandense, que desempenha, vale lembrar, papel secundrio na narrativa, parece fruto da mesma avaliao que levou Alencar a caracterizar o gacho como espcie de casta social transnacional. Tal indistino implica na figurao de um Manuel Canho em muitos sentidos mais prximo da cultura hispnica no Prata do que do mundo brasileiro construdo tambm em sua obra. A percepo dessa tenso evidentemente contribuiu para o descontentamento dos romnticos da provncia com o texto do escritor. Para Carla Renata de Souza Gomes, a questo reveladora da posio desde fora de Alencar em relao ao habitante da regio, marcada, assim, pelo imaginrio da corte, como uma terra de gachos e caudilhos: um territrio fora do alcance da lei e do rei, por isso valhacouto de rebeldes estrangeiros, onde por suposto impera o mando do mais forte (GOMES, 2009, p. 240). De certa forma, essa viso, tambm mediada por leituras de textos da tradio platina8, que permite a utilizao do termo gacho, ento fortemente carregado de tom pejorativo na cultura local, como sinnimo de rio-grandense. O processo de gentilizao do vocbulo no Rio Grande do Sul passa, portanto, como mostrado por Carla Renata Gomes, irremediavelmente pela obra de Alencar.

    Quero chamar a ateno, com essa discusso, para a existncia de fissuras ainda mais profundas na narrativa: no mais entre o mito e sua personificao no enredo, mas aquelas de ordem interna construo do prprio centauro. Como vimos acima, seu desenho marcado pelo romantismo poltico, dado que a exaltao do gacho se justifica por sua posio geogrfica e moral de distncia com a civilizao. Tal operao implica a ressemantizao de seu designativo, pela via da positivao de seus atributos, fundados, no texto, atravs da comunho com o espao: Quantos seres habitam as estepes americanas, sejam homem animal ou planta, inspiram nelas uma alma pampa. Tem grandes virtudes essa alma. A coragem, a sobriedade, a rapidez so indgenas da savana (ALENCAR, 1971, p. 14). A vida no campo reabilita, assim, a condio humana denegrida pelas relaes mercantis e transmuta o gacho de pria social a ser dotado de distinta fidalguia (GOMES, 2009, p. 252): Nenhum ente, porm, inspira mais energicamente a alma pampa do que o homem, o gacho [grifo do autor]. De cada ser que povoa o deserto, toma ele o melhor; tem a velocidade da ema ou da cora; os brios do corcel e a veemncia do touro (ALENCAR, 1971: 14). A conquista das distncias exige desse homem mais do que o uso do cavalo a sua irmandade com o animal: Havia entre o gacho e os cavalos verdadeiras relaes sociais.

    8 Nas notas publicadas no final da obra, Jos de Alencar cita a leitura de Apuntes para la historia de la Republica

    Oriental (1832), de Antonio Diodoro de Pascual. possvel que o escritor tambm tenha tido contato com ensaios literrios sobre a figura do gacho platino.

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    Alguns faziam parte de sua famlia; outros eram seus amigos; aos mais tratava-os como camaradas ou como simples conhecidos (ALENCAR, 1971, p. 34). A figura do centauro emerge quase que naturalmente do meio:

    O peixe carece dgua, o pssaro do ambiente, para que se movam e existam. Como eles o gacho tem um elemento, que o cavalo. A p est sem seco, faltam-lhe as asas. Nele se realiza o mito da antiguidade: o homem no passa de um busto apenas; seu corpo consiste no bruto. Uni as duas naturezas incompletas; este ser hbrido, o gacho, o centauro da Amrica.

    (ALENCAR, 1971, p. 35)

    Mas esse mesmo mito, fundador de uma sociedade magiar fronteiria, em certos momentos respinga em brasileiros e castelhanos tanto a altivez quanto o barbarismo da vida livre, sem lei nem rei. No captulo IV da quarta parte do livro, por exemplo, a personagem Catita, frente ao assdio do chileno D. Romero, desilude-se com Canho e lamenta o sentimento dedicado a ele: O homem por quem ela se estremecia era o gacho terrvel; o carter indmito que afrontava o cu e desdenhava do perigo; o filho da pampa, que avassalava o deserto e calcava o mundo com a pata de seu corcel (ALENCAR, 1971, p. 156). Parece que o mesmo romantismo poltico responsvel pela exaltao do bom selvagem pampiano tambm o coloca inevitavelmente no plano do brbaro, do gaucho malo platino, legenda negra combatida na pena de Sarmiento9: Afinal, o pampa o plaino[grifo da autora], o desrtico, o inculto, o agreste, enfim, o incivilizado... (GOMES, 2009, p. 260).

    No obstante mais essa incoerncia lgica, pautada pelo olhar estigmatizante do centro sobre a periferia, o atraso da pampa continua sendo sua maior virtude. Se a distncia geogrfica e simblica da civilizao permite o barbarismo, ela tambm recupera aquelas caractersticas humanas naturalmente boas sufocadas pelo progresso: Com isso se explica o paradoxo aparente de que o passadismo [grifo dos autores] romntico pode ser e, genericamente, de certa maneira, ele o tambm um olhar para o futuro; pois a imagem de um futuro sonhado para alm do capitalismo se inscreve numa viso nostlgica de uma era pr-capitalista (LWY, SAYRE, 1993, p. 23). O filho do deserto , assim, o produto do novo mundo, quer dizer, do encontro entre a sociedade europeia viciada e o ambiente curativo, que lhe possibilita um novo comeo e um futuro promissor: Regenerar a misso da Amrica nos destinos da humanidade. Foi para esse fim, que Deus estendeu de um plo a outro este vasto continente, rico de todos os climas, frtil em todos os produtos, e o escondeu por tantos sculos sob uma prega de seu manto inconstil (ALENCAR, 1971, p. 99). Nesse

    9 Uma das obras fundadoras da gauchesca argentina, Facundo, de Domingos Faustino Sarmiento, publicada em

    1845, creditou figura do gaucho o atraso e a barbrie, segundo o autor, ainda vigentes no interior daquele pas.

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    sentido, a pampa indmita surge no romance como um microcosmo exacerbado do continente e uma espcie de osis s avessas, materialmente agreste, mas moralmente profcuo:

    - Fujamos deste mundo infame! Vamos para o deserto, onde o homem fera como tigre. L ningum h de ser enganado pelo amigo e trado pela mulher. Cada um s conta consigo; se quer um irmo tem o seu cavalo fiel. Noiva, encontra-se no primeiro rancho: de manh no se conhecia, noite j se esqueceu. Vamos, amigos, vamos aos pampas! L, somente l, naquela imensidade, poderei matar esta sede que eu sinto nalma, esta sede de espao, que me sufoca. Correr!... Quero correr! Correr sem parar, correr sem fim, at que se abra o inferno para nos devorar!...

    (ALENCAR, 1971, p. 179)

    As tenses lgicas e incoerncias formais do texto de Alencar nos permitem, portanto, perceber e apreender seu projeto de inveno discursiva do Brasil, fundamentado na crtica do velho mundo, civilizado porm desumano, bem como da lgica mercantil que se instalava na corte. Se os mesmo olhos de corteso, todavia, lhe levariam, em alguns momentos, a trair o mito do centauro, grosso modo, o gacho, como arqutipo e casta social, visto como elemento regenerador. Seu arcasmo intrnseco, que torna o passado presente, se mostra um possvel remdio para os males do progresso e salvaguarda do porvir: Para o romantismo, tanto os indivduos quanto os povos so feitos da substncia do que aconteceu antes; e a frase de Comte, que os mortos governam os vivos, exprime esse profundo desejo de ancorar o destino do homem na fuga do tempo (CANDIDO, 2007, p. 544).

    Consideraes finais Flvio Loureiro Chaves iniciou seu ensaio sobre Simes Lopes Neto, publicado

    originalmente em 1982, dissecando o livro O gacho. Suas crticas lembram aquelas de Apolinrio Porto Alegre, centrando o tom no descompasso entre o mito do centauro descrito por Alencar e o protagonista da trama. A avaliao formal apontava, assim, para a pobreza esttica do texto. Todavia, Chaves nos mostra que o trabalho do crtico se desdobra em pelo menos duas frentes: a) o juzo que se pode emitir sobre a obra literria enquanto discurso autnomo, b) as conseqncias que ela desencadeia no plano histrico ou sociolgico (CHAVES, 2001, p. 34). Dessa forma, a relevncia do livro recai sobre o estabelecimento de um modelo narrativo, baseado na figura do monarca das coxilhas, nominalmente identificada, pela primeira vez na histria literria brasileira, com o at ento pejorativo gacho. Tal padro foi seguido em grande medida pelos literatos nacionalistas do sculo XIX e pelo regionalismo gauchesco do sculo XX:

    sejam quais forem as deficincias da narrativa alencariana, a tradio posterior abrigou e conservou o modelo proposto no livro de 1870, que a surge pela primeira vez, e todas as

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    representaes ulteriores do gacho podem no corresponder personagem falhada de Manuel Canho, mas derivam direta ou indiretamente do tipo idealizado por Alencar, j no importa se com base concreta na realidade ou infiel a esta.

    (CHAVES, 2001, p. 34)

    A partir da breve discusso aqui apresentada, espero contribuir para a compreenso da histria da produo (e reproduo) do modelo predominante no regionalismo literrio sulino, bem como do apelo identitrio de narrativas sociais mais amplas centradas na figura do gacho. Em um texto hbrido, entre memria e interpretao histrica, o escritor e folclorista Luiz Carlos Barbosa Lessa chamou a ateno para a recorrncia quase cclica (de cerca de trinta anos) dos motivos gauchescos e da exaltao do passado na cena intelectual do Rio Grande do Sul: a gerao da Sociedade Partenon Literrio de 1868, o Grmio Gacho de Cezimbra Jacques criado em 1898, o conto regionalista da dcada de 1920, o movimento tradicionalista gacho inaugurado em 1947 e, finalmente, o nativismo musical dos anos 1980 (cf. BARBOSA LESSA, 1985). Se o mito do centauro esteve presente em todas essas iniciativas literrias, culturais e cvicas, h algo alm da plasticidade formal: a meu ver, sua composio poltica e sua funo, parafraseando Schwarz, no cho social. A potencialidade crtica, ainda que conservadora, do modelo permite sua utilizao por projetos distintos, entre os quais poderamos acrescentar, em relao lista de Lessa, mesmo a obra de Simes Lopes Neto ou, como dito acima, pela via negativa, a crtica realista do gacho a p da gerao de Cyro Martins, ambas nascidas em contextos de desestabilizao da ordem agrria tradicional no estado.10 Isso no significa reduzir a criatividade autoral s foras estruturais contemporneas, nem tomar a literatura como mero reflexo ideolgico das condies scio-econmicas, mas atentar para o eco social do modelo alencariano: sua formulao encontrou ressonncia na histria sul-rio-grandense. Se verdade que seus contornos possibilitam uma pluralidade de sentidos, eles esto irremediavelmente formatados pela crtica do progresso, do moderno, do civilizado. Enquanto o desenvolvimento e disseminao do capitalismo e dos signos da modernidade no estado implicar em conflitos com o arcaico, ou dessa maneira o for sentido, o centauro encontrar um lugar.

    10

    Para estender a lgica do argumento aos eventos citados por Lessa, lembro que as dcadas de 1860-1870 so responsveis pelos cercamentos das terras no Rio Grande do Sul e a introduo da lgica capitalista nas estncias; o comeo do sculo XX marcado pela ascenso econmica do complexo urbano-imigrante litorneo, frente decadncia da tradicional metade sul do estado; j a organizao do movimento tradicionalista foi justificada como reao ao american way of life e imposio da cultura cosmopolita na capital Porto Alegre. Tanto o movimento original quanto o nativismo musical dos anos 1980 encontraram grande recepo nas cidades justamente entre a parcela perifrica da populao, produto do xodo rural, o que levou a historiadora Letcia Nedel a classificar o tradicionalismo gacho, e suas variantes, como diasprico (cf. NEDEL, 2005).

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