conflitos agrÁrios no norte gaÚcho: indÍgenas

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1 CONFLITOS AGRÁRIOS NO NORTE GAÚCHO: INDÍGENAS, NEGROS E AGRICULTORES. JOÃO CARLOS TEDESCO Mestrado em História UPF Email: [email protected] Introdução Nosso estudo tematiza conflitos agrários contemporâneos no Norte do Rio Grande do Sul; buscamos dar ênfase a três sujeitos coletivos em particular: comunidades de índios, grupos de negros que lutam pela sua identificação como descendentes de quilombolas e, colonos que, em geral, são pequenos agricultores, estabelecidos em terras que estão sendo pretendidas pelos dois grupos anteriores. Dimensionamos questões históricas que envolveram o eixo de conflitos em torno da questão da terra desde as primeiras décadas do século XX, com as (re)demarcações de terras determinadas pela esfera pública para os grupos indígenas, os processos de colonização na região, as lutas de camponeses pela propriedade da terra nos anos 50 até meados dos anos 60. Índios e grupos de negros que habitam no meio rural possuem uma longa história de exclusão e de expropriação social, cultura e econômica. Os pequenos agricultores, entendidos como produtores familiares, além de excluídos e/ou incluídos marginalmente nas políticas de desenvolvimento, atualmente se vêem na iminência da perda de suas terras, do local de vida e de sociabilidade de até então. Áreas em conflito no norte do RS. Fonte: elaboração de Cleber Pagliochi

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Page 1: CONFLITOS AGRÁRIOS NO NORTE GAÚCHO: INDÍGENAS

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CONFLITOS AGRÁRIOS NO NORTE GAÚCHO: INDÍGENAS, NEGROS E

AGRICULTORES.

JOÃO CARLOS TEDESCO

Mestrado em História – UPF

Email: [email protected]

Introdução

Nosso estudo tematiza conflitos agrários contemporâneos no Norte do Rio Grande do

Sul; buscamos dar ênfase a três sujeitos coletivos em particular: comunidades de índios, grupos

de negros que lutam pela sua identificação como descendentes de quilombolas e, colonos que,

em geral, são pequenos agricultores, estabelecidos em terras que estão sendo pretendidas pelos

dois grupos anteriores.

Dimensionamos questões históricas que envolveram o eixo de conflitos em torno da

questão da terra desde as primeiras décadas do século XX, com as (re)demarcações de terras

determinadas pela esfera pública para os grupos indígenas, os processos de colonização na

região, as lutas de camponeses pela propriedade da terra nos anos 50 até meados dos anos 60.

Índios e grupos de negros que habitam no meio rural possuem uma longa história de

exclusão e de expropriação social, cultura e econômica. Os pequenos agricultores, entendidos

como produtores familiares, além de excluídos e/ou incluídos marginalmente nas políticas de

desenvolvimento, atualmente se vêem na iminência da perda de suas terras, do local de vida e

de sociabilidade de até então.

Áreas em conflito no norte do RS. Fonte: elaboração de Cleber Pagliochi

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Aldeamentos e colonização

Os atuais conflitos na região em tela foram constituídos historicamente pela ação e

interação de vários sujeitos; houve políticas públicas e regulamentações jurídicas que

estimularam, legitimaram e legalizaram a fragmentação e ocupação de determinados territórios

por grupos sociais e étnicos diferenciados. Foi marcante, nas primeiras décadas do século XX,

a ação do estado na formulação e efetivação de projetos de colonização da referida região,

determinando, delimitando e, consequentemente, diminuindo as terras para os indígenas e

promovendo, diretamente ou através de companhias colonizadoras, a venda de terras para

descendentes de imigrantes. Na década de 1960, novamente o Estado desenvolveu uma política

que reduziu as terras indígenas outrora demarcadas e vende lotes para agricultores-posseiros

sem terra, que se reverteu na década de 1990 com a retirada dos agricultores e a restituição dos

limites das terras indígenas demarcas no início do século XX.

Esta longa trajetória de inclusão e exclusão permanece viva nos dias atuais colocando

frente a frente, de forma conflituosa, de um lado índios e negros (embora de forma

diferenciadas), os quais ocuparam estas terras antes do processo de colonização, e os

agricultores que, há um século ou mais, construíram suas raízes sócio-culturais nestas terras.

Embora a Lei de Terras de 1850 e suas conseqüentes regulamentações e ingerências

regionais tivessem a intenção de impedir o acesso a terra por parte dos pequenos lavradores e

indígenas, a fraude promovida pelos grupos dominantes era corrente no país todo através de

mecanismos que mantinham os privilégios seculares de alguns grupos (ZARTH, 2002).

No Rio Grande do Sul os expedientes ilícitos de apropriação da terra eram largamente

utilizados. Um dos mecanismos fraudulentos, amplamente utilizado e denunciado, consistia em

pagar uma multa irrisória por não haver registro de posse, nos termos da lei de 1850. O

usurpador dizia que tinha comprado a terra de um posseiro que afirmava ter ocupado a terra de

forma mansa e pacífica antes de 1850 e que, no entanto, não havia ido ao registro paroquial

registrá-la como exigia o regulamento de 1854 (Nascimento, 2007). Desta forma, legitimava-se

a propriedade. Essas e outras formas de burlar a legislação e propiciar a apropriação da terra

por determinados grupos sociais provocaram conflitos sociais, muitos dos quais, seus reflexos

se mantêm ainda hoje (ZARTH; TEDESCO, 2009).

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Situações de sujeição, exclusão, burlagem de legislação, subalternização, contradição,

apropriação privada e concentrada, suas regulamentações etc., marcaram historicamente as

faces, as fases e os motivos dos movimentos sociais em torno da terra no Brasil (LEITE, 2001).

Aliás, é bom que se enfatize que a questão da terra e sua apropriação privada foram,

historicamente, no país e em especial no Sul do Brasil, causa de muitos movimentos e lutas

sociais os quais se estendem por mais de um século. Grupos nativos, colonizadores e

colonizadoras (algumas dessas últimas carregadas de representações de cunho étnico e racial e,

portanto, discriminadoras), imprimiram processos sociais que marcaram essa trajetória de

conflitos e subalternizações no interior do país.

Análises demonstram que o agrário e o agrícola sempre se imbricaram e continuam se

modelando em torno de políticas públicas favorecedoras de um modelo de produção altamente

excludente em termos econômicos, culturais (étnicos e raciais), sociais e políticos. As

colonizações e as colonizadoras que as promoveram simbolizavam a ação deliberada dos

homens sobre um espaço para territorializá-lo econômica e culturalmente (CASSOL, 2003).

Por isso que os conflitos se dão em vários âmbitos, conflitos esses que nos remetem a períodos

ainda anteriores a Lei de Terras e suas regulamentações regionais, às lutas de posseiros,

meeiros, caboclos e monges pelos campos abertos e ervais, grupos indígenas aldeados e

intrusados (SIMONIAN, 1981), colonos – pequenos proprietários e arrendatários -, nas suas

relações com as colonizadoras que fatiaram a terra em várias regiões do Sul do Brasil.

Sabe-se que houve compra de terras de posseiros anteriores à migração de colonos de

descendência européia na região Norte do RS. Os relatórios da Secretaria de Terras do Rio

Grande do Sul demonstram isso; os escritos (relatórios de atuação da secretaria em que Torres

Gonçalves era seu titular) sobre as colonizações e a normatização pública da terra no estado

também revelam isso (CASSOL, 2003). Numa passagem, diz o referido relatório que “era

crença generallisada, mesmo entre as pessoas que manifestavam-se interesses pelos nacionaes,

constitui fatalidade immodificável e impossibilidade de prendê-los à terra”.1

O estado, através de sua filosofia de normatização agrária, implantou formatos de

colonização pelo estado e, em particular no Norte do RS, em terras públicas, a qual também

reconheceu e presença de nacionaes (caboclos/negros) e indígenas, ainda que não nas

condições que foram oferecidas aos colonos de descendência européia, oriundo de colônias da

1 Ver RELATÓRIO. Secretaria de Estado dos Negócios e Obras Públicas, RGS, 1917, p. 41. Há muitos documentos de Torres Gonçalves nesse sentido.

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Serra ou do Vale do Taquari (KLIEMANN, 1986). No Norte do RS, em particular na Colônia

Erechim, a implantação de colônias mistas foi praticada pela esfera pública, objetivando

procesos integrativos em termos étnicos (imigrantes, luso-brasileiros e negros). Ao mesmo

tempo, é por demais conhecido a existência de intrusos no interior dessas colonias que, tinham

a pretensão de serem normatizadas pela filosofia positivista de estado aplicada à questão da

terra (NASCIMENTO, 2007). Esses intrusos poderiam ser de múltiplas descendências étnicas,

com maior expressão os nacionaes (RÜCKERT; DIEHL, 2002) sendo que esses se dedicavam

mais às atividades extrativistas (erva-mate e madeira), às pequenas lavouras em terras cedidas

por proprietários de maior extensão e, por serem os mesmos incluídos na forma marginal nos

projetos de colonização pública (CASSOL, 2003).

Além disso, esse novo formato de organização social da propriedade, pelo viés da

colonização e apropriação privada da terra, criou um cenário ofertador de força de trabalho

remunerada de formas múltiplas, capaz de, aos poucos, inserir modos e relações capitalistas de

produção e/ou de redimensionar outras de cunho tradicional (KLIEMANN, 1986). Sabe-se que

esse processo produziu exclusão social, deu vazão às emigrações esporádicas, estendeu

mercados, empregou capital e trabalho a custos baixos, modernizou espaços e relações ditas

atrasadas (CASTILHOS, 1961).

A ocupação e o esvaziamento (expulsão) tornaram-se faces de uma mesma moeda,

dinâmica essa que expressa um processo contraditório e revela o formato da constituição da

propriedade privada da terra no Brasil (MARTINS, 1993); incluir e excluir revelaram serem

estratégias para promover a normatização e a prioridade integrativa e eliminatória. Essa

realidade provocou alterações em horizontes variados, tanto do espaço, quanto da vida de

grupos sociais (GRITTI, 2004).

Reservas indígenas foram demarcadas e reduzidas em razão de políticas públicas,

principalmente as do governo Brizola (1958-62); mobilidades populacionais de negros, índios,

caboclos e mesmo de pequenos agricultores descendentes de imigrantes que vivenciavam

situações de bloqueio fundiário (quantidade de terra insuficiente para reprodução de novas

unidades familiares), com seu conseqüente empobrecimento, passaram a ser a tona dessa nova

configuração agrária.

Essa população de empobrecidos do campo ficou impedida de apropriar-se do solo (terra

para trabalho, sobrevivência e reprodução das unidades familiares) e acabou tornando-se força

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de trabalho nas estâncias ou mesmo nos projetos de colonização no Sul do Brasil, como

organizadores da infra-estrutura (estradas, desmatamento, abertura de poços de água, auxiliar

de carpinteiros, transporte de madeira e de carroças etc.). O setor extrativista, em especial o da

erva mate e o da madeira, acabou sendo um dos espaços funcionais para grande parte dos

camponeses que se estabeleceram nesses projetos de ocupação e territorialização econômica

(ZARTH, 2002).

Essa foi uma realidade complexa, dinâmica, muito em evidência nas primeiras décadas

do século XX até os anos de 1960, na região Norte do estado. Entendemos que esse formato

histórico é fundamental e está na base dos entendimentos sobre os conflitos que na atualidade

se apresentam.

Propriedade da terra e relações sociais de produção

A reconfiguração da propriedade da terra (por regulamentações e mediação de ações

públicas de colonização e de definição de terras que seriam suas - devolutas),2 a agricultura

expoente dos granjeiros, a produção moderna e sua dimensão progressista carregaram consigo

inúmeras contradições que se manifestaram na forma de conflitos sociais. Nesse cenário

localiza-se a antiga Fazenda Sarandi no Norte do estado, latifúndio regional que, em meados do

século XIX, possuía mais de 90 mil hectares e que, aos poucos, foi se fragmentando e sendo um

viveiro para outros latifúndios menores até meados do século XX (CARON, 2008). A partir da

década de 1950, a mesma foi produzindo conflitos sociais, tornando-se o pano de fundo das

questões agrárias nessa região (CARINI; TEDESCO, 2008).

Não podemos esquecer também que ainda nas primeiras décadas do século XX,

juntamente com as várias formas de apropriação privada da terra, as reservas indígenas

começavam a ser redefinidas em termos territoriais pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).

Agentes governamentais entendiam que havia muita terra para poucos índios e que era melhor

intrusar (inserção de colonos com o objetivo de produzir na terra) para alterar o quadro de

pobreza e de demanda social dos mesmos (RÜCKERT, 1997). Desse modo, passou a legitimar-

se, através da tutela público-estatal, na região uma intensa presença de colonos nas reservas

2 CARON, M. dos S. Mapear, demarcar, vender... A ação da Empresa Luce, Rosa & Cia Ltda no Alto Uruguai gaúcho – 1915-1930. Passo Fundo, UPF, 2008. Dissertação. Ver, também, KLIEMANN, L. H. S. RS: Terra e

Poder...

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indígenas de Serrinha, Monte Caseiros e Nonoai, bem como em outras de menor porte,

principalmente durante o governo Brizola (1958-62).

Essa realidade de intrusão tutelada de colonos em reservas indígenas desencadeou vários

conflitos sociais entre índios e colonos por vários anos da década de 1970, acirrados, então,

com a expulsão de colonos (da Reserva de Nonoai em 1978) e da saída dos índios (na de

Serrinha, por todas as décadas de 1950/60), retorno dos índios às terras (a partir do início da

década de 1990), lutas de grupos indígenas para reaver antigos territórios, lutas de colonos para

obter indenizações financeiras justas e reassentamentos e/ou realocações etc.; realidade essa

que vem se acirrando nos últimos anos na região.3

A denominada “crise da terra” no Brasil e sua grande expressão no Rio Grande do Sul,

iniciada já nos anos 1940, acentua-se nos anos 1950 e 1960 com a intensa contradição

provocada pela modernização da agricultura e crise da indústria madeireira. Isso tudo, aliada à

crise da economia pastoril, acabou por originar um primeiro movimento organizado,

estruturado em nível de Estado, mediado politicamente e que produziu muitos frutos no campo

político e de organização e representação camponesa que foi Master (Movimento dos

Agricultores Sem Terra) no início dos anos 60. O referido movimento social teve várias fases e

algumas faces em termos de ações, intenções, estratégias, mediações, ideologias e vínculos.

Porém era uma luta que, no início, pleiteava mais a inserção de pequenos camponeses às

benesses da modernização produtiva prometida e viabilizada aos médios e grandes produtores

rurais. No entanto, aos poucos e, sob influência de grupos mais radicais contra o latifúndio

(PCB, em particular), foi incorporando a luta pela reforma agrária em suas ações e

reivindicações. O mesmo produziu muitos efeitos na consciência de grupos sociais que lutavam

pela terra no Estado; envolveu instituições políticas e religiosas como apoiadoras e/ou em

contraposição. Foi uma luta social ampla no Estado, pois envolveu a esfera pública, forças

políticas e representações rurais, a Igreja Católica e outras agremiações urbanas, além, é

evidente, de vários grupos de camponeses em todo o Estado; o mesmo demonstrou a força de

um camponês em grande crise, num período de grande busca de terras nas ainda consideradas

fronteiras agrícolas em outros estados, de êxodo rural, ou seja, expressivo das precárias

condições de vida que caracterizavam os pequenos produtores rurais.

3 Não poderemos aqui aprofundar especificamente todos esses conflitos. Ver sobre o conflito entre índios e colonos na reserva de Serrinha, CARINI, J. J. Estado, índios e colonos..., 2005; ver, também, GEHLEN, I. Uma

estratégia camponesa de conquista da terra e o Estado: o caso da Fazenda Sarandi. Porto Alegre: UFRGS, 1983.

Dissertação; CARINI, J. J.; TEDESCO, J. C. (Org.) Conflitos agrários no norte gaúcho.., I e II.

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No caso do Rio Grande do Sul, movimentos no interior da Igreja Católica, de suas

instituições de apoio e mediação (sindicatos rurais, cooperativas agrícolas), de comunidades

que viabilizavam ações pastorais e certa oposição sindical, foram evidenciadas no período. Na

realidade, a Igreja Católica, através da Frente Agrária Gaúcha (FAG, essa, aos poucos, foi

constituindo da Fetag no início do golpe civil-militar, porém, tendo sempre a Igreja Católica

como mentora e organizadora), lutou por implementar, via cooperativismo, sindicalismo e

extensionismo rural, um grande controle político e ideológico junto aos agricultores e, em

especial, junto ao pequeno produtor, formado por descendentes de imigrantes, contribuindo

assim para sua seletivização, exclusão, migração via êxodo rural, modernização também

seletiva (BASSANI, 2009).

Durante várias décadas, as reservas indígenas tornaram-se espaço político para aliviar as

tensões sociais em prol da reforma agrária e, na realidade, não fazê-la (SIMONIAN, 1981).

Extinções de reservas (Serrinha e Ventarra), retalhamento de outras (para contemplar colonos,

sem serem extintas, como foi o caso de Nonoai, Inhacorá e Votouro), passaram a ser a tônica

por quase toda a primeira e até a segunda metade do século XX. Houve uma redução das terras

indígenas pela esfera público-estatal, principalmente também com a criação de reservas

florestais no interior das mesmas. Diz Carini (2005) que a Reserva Indígena de Nonoai, quando

demarcada, possuía uma extensão de 34.908 ha. No final da década de 40, o estado destina

quase 20 mil ha (mais de 50% da área) como reserva florestal, mas, grande parte delas, estava

ocupada por pequenos agricultores.

Nesse sentido, o conhecido e denominado conflito de Nonoai, entre colonos e índios, no

final de 1970, que resultou na expulsão de mais de mil famílias de colonos, tornou-se

paradigmático enquanto cristalização de uma situação que vinha há décadas problematizando o

cotidiano de reservas indígenas, bem como revelando processos organizativos dos mesmos em

razão de sua tendencial e histórica realidade de subalternização. Para o lado dos colonos,

revelou também os equívocos das políticas públicas que legitimaram e incentivaram sua

inserção no interior das reservas, da falta de políticas de sustentação financeira para os

pequenos agricultores. Desse modo, revelaram-se as reduzidas possibilidades de sobrevivência

para os deserdados e desamparados pelas políticas públicas. Poucas alternativas restavam ao

pequeno camponês: ou lutava por um pedaço de terra e melhores condições de vida no campo,

ou teria de migrar para a cidade; uma terceira possibilidade não havia.

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O movimento indígena, enquanto luta por direitos, pela demarcação de territórios, pela

ocupação de territórios expropriados pelos brancos, é de longa data. Os kaingang do Norte do

estado foram e continuam sendo grande expressão nisso; sua resistência ao intruso, seja contra

os bugreiros e outros exploradores brancos, ou contra os colonos-imigrantes, os madeireiros,

arrendatários e granjeiros, já dura mais de um século.

Insistimos na ideia de que os processos de intrusão de colonos nas reservas do Norte do

Rio Grande do Sul, alimentadas por políticas públicas, que aconteceu por muitas décadas, mas

com grande expressão, entre as décadas de 1940 a 1970, são centrais para a compreensão das

profundas transformações porque passaram os índios na região e em torno de suas demandas. O

estado, além de efetivar tudo isso, criou no interior de algumas reservas exploração de trabalho

em formas variadas de expressão.4 Pouca coisa, para não dizer nada, foi feito pelo SPI até

então (que, no período, já havia mais de meio século de existência) e, no final dos anos 60 em

diante, pela Funai; realidade essa que revela certa deliberação para extinção de mais terras dos

índios, desterritorializando-os. A intenção do estado era a modernização produtiva no interior

das reservas com o intuito de fazer com que os índios fossem auto-suficientes economicamente

através da produção de soja e outros produtos com características de excedentes.

A situação das reservas de Serrinha, Ventarra, Inhacorá, Monte Caseiros, Votouro e

Nonoai expressam essa tendência e diretriz de intrusão e de perda da terra por parte dos índios

no Norte do RS. Diz Carini (2005) que experiência de Serrinha foi fundamental para incentivar

colonos a adentrar para a de Nonoai, em sua reserva florestal e no interior das terras indígenas.

Na análise de Carini, uma apuração do governo do Estado e do Incra, em 1974, indicou a

existência de 974 famílias de intrusos no interior das reservas (indígena e florestal) de Nonoai e

Planalto.

A violência física acabou sendo um expediente utilizado pelas partes, uns insistindo na

retomada da terra - os índios - e outros resistindo à perda da terra como foi o caso dos posseiros

(CARINI; TEDESCO, 2007). Esse confronto entre índios e posseiros (colonos intrusados) não

só em Nonoai, mas em várias regiões do Sul do Brasil (Cacique Doble, Guarita, Chapecó, Rio

das Cobras, Tenente Portela dentre outras), fez com que, tanto a Funai, quanto entidades de

igrejas, em particular o CIMI e o COMIN (essa, da Igreja Luterana), as pastorais sociais da

4 Ver um excelente estudo sobre essa questão com os detalhamentos que o fato produziu em GHELEN, I. Uma estratégia camponesa..., 1983; ver, também, MARCON, T. Acampamento natalino..., 1979.

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CNBB, entidades do campo jurídico bem como entidades da sociedade civil, produzissem certo

engajamento pela “causa indígena”, ao mesmo tempo, em que, também tornavam-se sensíveis a

“causa camponesa”; o Estado estava sendo colocado em xeque, bem como suas políticas para o

progresso econômico no meio rural.

O “problema indígena”, aliado aos dos colonos, pequenos produtores rurais

(proprietários ou não), ganhou feição no campo público, ou seja, transferiu-se e pressionou o

estado para que fosse resolvido um problema que ele mesmo criou permitindo, no decorrer de

muitas décadas anteriores, a intrusão, o arrendamento de terras, a redução de reservas indígenas

e a ausência de representação efetiva (RÜCKERT, 1997). No entanto, órgãos dos governos

federais e estaduais ainda ficaram por muito tempo num jogo de empurra-empurra em torno da

questão, pois sabiam que poderiam resolver o problema dos índios produzindo um outro, talvez

ainda maior: o dos colonos/posseiros.

As lutas entre índios e colonos, bem como as outras que estavam se gestando para

enfrentar o latifúndio revelaram o lado perverso do processo de modernização tecnológica e

produtiva adotada e cristalizada desde então há duas décadas; viu-se que nem tudo era

modernização, o que mais havia eram contradições expressas em conflitos e tensões sociais.

O tema “questão indígena” passa a fazer parte da agenda política e social num cenário

em que aflorava cada vez mais os grandes temas do país no final do regime militar. O início

dos anos 80 passou a ser um período fértil nesse sentido e uma nova reconfiguração sobre a

“questão indígena” toma corpo. O que foi deliberado e acordado na constituição de 88, em

torno do tema, em grande parte foi resultado dos conflitos do final dos anos 70; também devem

ser correlacionadas a esses movimentos as lutas sociais de camponeses, vitimados também por

políticas públicas equivocadas e por modelos de desenvolvimento que os produziram como

excluídos.

O surgimento do MST em meados dos anos 80, inserido num grande quadro de

conflitos sociais pela terra na região Sul do Brasil (Acampamento Natalino e Annoni no RS e

vários outros em SC e no PR no mesmo período), produziu uma grande performance de

movimentos sociais num quadro conjuntural de abertura política, de redemocratização, de

demandas reprimidas para um leque amplo de categorias e grupos sociais (PASQUETTI,

2007). A região se constituiu num cenário de uma orgânica luta pela terra no fim do já quase

exaurido regime militar. As ocupações de terras da antiga Fazenda Sarandi (Macalli, Brilhante,

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Natalino, Annoni e Coqueiros), a partir de 1979, foram a mola propulsora de um longo

processo de movimentos sociais na região.

A partir de meados dos anos 80, o “Movimento Indígena”, em correlação com o

“Movimento Camponês”, esse capitaneado pelo MST e outras agremiações, passaram a lutar

por bandeiras comuns em torno da terra: condições dignas de vida, de reprodução de culturas e

de uma ética social e do trabalho, preservação e conquista de territórios, o problema da

concentração da propriedade no Brasil, os direitos indígenas e do trabalhador (a) rural, as

mazelas do capitalismo junto ao trabalhador urbano e rural, a crise da agricultura familiar, os

pobres do campo, a total ausência de políticas para sua preservação e geração de renda etc.

Legislações e várias regulamentações constitucionais foram implementadas pelos governos

legitimados democraticamente para tentar alterar os quadros do empobrecimento de grandes

contingentes de trabalhadores rurais.

Negros, indígenas e pequenos agricultores: conflitos entre subalternizados

Nos conflitos sociais entre comunidades de negros que lutam pelo reconhecimento e

identificação de remanescentes de quilombolas, e de indígenas e de colonos (agricultores

familiares), não dá para colocar um na frente do outro e afirmar com convicção: “esse é o

opressor daquele”, como nos disse um assessor que atua junto com grupos de agricultores, ou,

então, como nos disse um prefeito da região, “não dá pra compensar uma injustiça histórica

produzindo outra”.

Vimos que os conflitos e as tensões em torno da terra, envolvendo essas três

coletividades, já vêem de muito tempo e são visíveis e intensas em todo o país. No Rio Grande

do Sul e, em particular, na parte norte do mesmo, os conflitos foram e continuam sendo muito

presentes. O pano de fundo é a terra, na realidade, a propriedade da terra, seja ela organizada de

que forma for, tanto por índios, quanto por comunidades rurais negras e colonos/agricultores

familiares. A terra, para os atores sociais envolvidos nos conflitos, carrega consigo horizontes

amplos, simbólicos e materiais, econômicos e culturais; é sinônimo de patrimônio e de

reprodução; sua legitimidade se funda em múltiplos horizontes (Brandão, 1995).

No fundo, em ambos os conflitos já citados, luta-se para preservação da terra porque

ela é um fator estruturante na vida dos referidos grupos; é um fato cultural e econômico

totalizante; esse “econômico” entendido para muito além de sua dimensão de troca mercantil;

há heranças, marcas do trabalho que se cristalizam nela, as quais se referenciam ao passado,

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mas, também, ao que se projeta para o futuro. Temos a convicção de que há um conjunto de

trocas, inclusive no campo simbólico, que a mesma reproduz; suas simbologias refletem a

organização dos formatos de trabalho nela, das relações e necessidades do trabalho, as razões

práticas e simbólicas de sua utilização, tratamento e transformação); há linguagens internas

que classificam temporalmente e instrumentalizam o agir no sistema de trabalho com a terra,

reconstituindo processos de tradição e de saberes, bem como certeza de reprodução dos

grupos (BOURDIEU, 1977, p. 2).

A luta pela terra se alimenta também tendo em vista essa consciência da ruptura e da (des)

integração coletiva, comunitária e individual de ambos os grupos aqui em questão (CARINI,

2005). A organização da vida camponesa do colono, das comunidades negras do meio rural e

de grupos indígenas continua a sofrer alterações, cada um ao seu modo, em razão também dos

bloqueios fundiários, da ausência de terra, da falta de braços na terra, na pouca valorização de

quem trabalha na terra com reduzida estrutura fundiária ou de formas culturais não tão

adaptadas aos horizontes denominados de modernos. Há um desejo explícito pelos grupos

envolvidos de que a unidade familiar continue, ainda que em parte redefinida, sendo uma célula

central no processo de organização do espaço socioeconômico e cultural do meio rural, mesmo

aquele espaço rural não totalmente agrícola e as unidades que mobilizam atividades produtivas

externas e não-agrícolas.

Queremos com isso insistir no fato de que a reprodução social dos colonos-camponeses e

índios-camponeses está intimamente relacionada à produção e à reprodução das unidades

domésticas e à reprodução dos indivíduos nelas, mediante estratificações individuais e

coletivas sob o signo da terra, da propriedade privada ou coletiva da terra, ainda que essa

possa ter significados diferenciados entre os grupos envolvidos.

Os argumentos dos indígenas:

Os argumentos centrais que embasam a luta indígena5 giram em torno das ações que,

segundo eles, produziram o esbulho (expulsão pela força) e expropriação, em alguns períodos

históricos, em geral, por ações do estado, através de suas políticas de terra e de colonização, ou

por sujeitos sociais ligados à economia pastoril, à colonização privada e à indústria extrativista.

5 Uma análise mais ampla desses argumentos encontra-se no livro Conflitos agrários no norte do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/Passo Fundo: Letra & Vida/IMED Editora, 2014, vol. VII, organizado por João Carlos Tedesco;

ver também, Tedesco e Kujawa, 2012.

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Os índios kaingang, em maior número nos conflitos, defendem a sua existência imemorial no

Norte do estado. Desse modo, os mesmos entendem serem contemplados pelo direito à

tradicionalidade de ocupação, defendem e justificam a necessidade do reequilíbrio

ecossistêmico através da agricultura tradicional, sementes tradicionais, mananciais de água,

florestas etc.

Nos seus horizontes argumentativos está presente a necessidade da diversidade étnica em

condições de igualdade no país, da propriedade da terra como condição fundamental para a

reprodução de sua cultura, a compensação e ajuste de contas do estado para com os índios em

múltiplos horizontes sociais, culturais, econômicos, jurídicos e ambientais. Os índios enfatizam

a existência de registros da memória material e imaterial (marcos territoriais) presente nos

territórios demandados, expressos principalmente no horizonte cemiterial, habitativo (ocas),

árvores centenárias, passagem pelos rios e matas (ligando uma aldeia a outra), nas narrativas de

ancestrais, nos agrupamentos parentais oriundos de antigos líderes indígenas que teriam vivido

nos espaços demandados. Alegam que quando o Estado desenvolveu a política de aldemento

(segunda metade do século XIX) e demarcação dos toldos (1910-18) reduziu o espaço do

habitat indígena forçando-os a viver em pequenos espaços para liberar o restante de suas terras

para a colonização. Argumentam que mesmo com esta ação arbitrária violenta do Estado e,

muitas vezes, de proprietários particulares, não impediram dos indígenas circulares pelo seu

antigo habitat e manter vínculos memoriais com ele.

Além dos aspectos ligados ao passado, aos horizontes culturais, há também a forte

pressão sobre a terra do grande contingente de população indígena nas reservas antigas (alto

crescimento demográfico), na redefinição da terra para a cultura e reprodução social e

econômica dos mesmos. Os indígenas argumentam que, na questão da terra, historicamente,

houve favorecimento aos agricultores, a uma agricultura considerada moderna em detrimento

dos indígenas e, portanto, estaria na hora do mesmo promover ações em prol desses, os quais,

segundo eles, eram os “verdadeiros donos da terra”, de “retornar a terra nas mãos dos índios

para conservá-la”, dentre outros elementos mais secundários.

Os argumentos dos agricultores:

Como a situação dos agricultores encontra-se na defensiva, ou seja, como agrupamento

que luta para defender o que na atualidade (para muitos, mais do que centenária) é seu e está

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sendo colocado em xeque, os argumentos centrais giram em torno da temporalidade longa,

legal e legítima na aquisição da terra e da necessidade da mesma para a reprodução cultural,

econômica e social. Os mesmos também dão ênfase ao fato de serem sujeitos de direitos, pois

houve a legitimação, em ambientes legais, para a aquisição da terra, uma vez que, em sua

grande maioria, foi adquirida do Estado motivado pela sua política de colonização no início do

século XX. Os agricultores atestam a não presença indígena no período da colonização ou em

fases posteriores quando da aquisição das terras; defendem que os índios que, em algum

período histórico, tenha vivido na região, foram aldeados através da normatização da esfera

pública. Os agricultores batem na tecla de que não há nenhuma prova e/ou evidência histórica,

nem documentação, nem relatos orais, nem escritos históricos que dão ciência a algum tipo de

relação de esbulho indígena realizado pelos agricultores na região; os processos de colonização

foram efetuados pelo estado que, antes de lotear e vender as terras para os colonos já havia

demarcado as terras destinadas aos indígenas..

Os agricultores argumentam que grande parte dos acampamentos indígenas na região

constituiu-se a partir de conflitos por poder e pela posse privada da terra no interior de reservas

indígenas, de grupos dissidentes que, não encontrando mais espaços no interior das mesmas,

organizam-se em pequenos agrupamentos, os quais, aos poucos, vão ganhando grande adesão

de outros grupos de aldeias variadas, produzindo um grande grupo. Portanto, os agricultores

enfatizam que no cerne dessa luta social empreendida pelos indígenas, há outras causas e

situações que poderiam muito bem serem resolvidas pela esfera pública, sem produzir

injustiças e intensa instabilidade sócio-econômica e cultural.

Um dos argumentos que está presente em todos os conflitos gira em torno do fato de que,

na sua maioria, são agricultores familiares, produtores de alimentos e que não promovem

desequilíbrios ambientais. Os mesmos enfatizam que a produção de alimentos proveniente

desse estrato produtivo é de fundamental importância para o país, que os indígenas não o fazem

e, se o farão, será na forma de arrendamento para não índios conforme o evidenciado e

documentado em várias das atuais reservas indígenas do Rio Grande do Sul. Os agricultores

insistem em demonstrar que a realidade do Sul do Brasil é diversa na histórica relação com os

índios e na legalização dos títulos de propriedade em relação a outras regiões do país,

principalmente o Centro-oeste e Norte. Os mesmos insistem no fato de que não adianta

transferir a terra da mão dos agricultores e passar para os índios sem uma política pública de

desenvolvimento (etnodesenvolvimento). Advertem para a necessidade de uma ampla

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discussão nacional sobre o que se considera “territorialidade tradicional” e “cultura indígena”,

bem como que sejam revisados os processos e ritos de identificação, demarcação, delimitação e

julgamento nas questões que envolvem a demanda indígena pela terra e, principalmente, nas

questões administrativas envolvendo a centralidade da Funai no processo; que se discutam

melhor as noções de produção e produtividade para ambos os grupos.

Nesse sentido, os agricultores entendem que não se resolvem problemas históricos de um

sujeito, produzindo outros para outro sujeito e criando um culpado histórico e com a pecha de

intruso e de expropriador, no caso, recaindo sobre os agricultores. Os mesmos apontam

soluções para o problema, sem desapropriar os que já estão legitimamente na terra,

principalmente na criação de novas reservas com aquisição pelo estado de grandes

propriedades, sem causar danos, tensões sociais, culturais e econômicas entre os grupos que

estão em conflito, inclusive, com isso, viabilizando ações da premente e histórica reforma

agrária no país, dentre outras questões mais secundárias.

Percebe-se que os argumentos são múltiplos para ambos os envolvidos e, somados a

esses, estão também as suas polêmicas em torno do conflito, fato esse que revela a

complexidade do tema, principalmente em suas justificativas jurídicas, administrativas,

econômicas e culturais.

Enfim...

Esse processo vem produzindo inúmeras situações de tensão social, ambigüidades

jurídicas, ausência de uma séria vontade política de solução, divisões sociais (entre os que são a

favor dos agricultores e os que defendem a “causa indígena”), estratégias múltiplas de ambos

os lados, perspectivas variadas e instáveis para os dois grupos, mas principalmente para os

agricultores que temem perder suas terras e sem indenização, mediações políticas e jurídicas de

ambos os lados, dentre uma série de outras questões. Na realidade, em grande parte dos casos

na região referida (e em algumas outras partes do país), são colocados frente a frente, em luta

social, dois sujeitos coletivos subalternizados social e economicamente por políticas públicas,

principalmente em suas propostas modernizadoras.

Os atuais conflitos sociais entre indígenas e agricultores estão inseridos num contexto de

crise e indefinição de políticas indigenistas pela esfera pública, de grande tensão e conflito no

interior das reservas indígenas, de alto valor e importância social, cultural e econômica da terra

para os dois grupos, da forte densidade demográfica tanto no interior das reservas, quanto da na

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ocupação e apropriação da terra, em geral, por agricultores familiares, do fato de que a União

não assume, numa eventual desapropriação, a indenização das terras para os agricultores.

Há pressão política de um lado para mudar legislação, de outro para agilizar o processo

demarcatório da terra; há uma ampla organização e presença institucional em torno da “questão

indígena” no Brasil, realidade essa que ampliou os canais de participação indígena na esfera

política e social, principalmente no horizonte da consciência e da diversidade étnica e cultural,

no campo dos direitos e da cidadania. A terra torna-se um elemento central na reprodução

social de ambos os grupos, a mesma possui significados para além de sua dimensão econômica.

Um dos pontos mais relevantes, sobre toda essa questão de disputa pela terra, na

argumentação dos indígenas e dos agricultores é a passividade ou a omissão do governo

federal. Conforme o procurador da República em Erechim, Dr. Ricardo Gralha Massia, “os

conflitos agrários no Rio Grande do Sul têm como grande parcela de culpa o Ministério da

Justiça Federal”. Massia enfatiza que as “terras indígenas são palco de tensão no Rio Grande do

Sul. [...]. O abandono de indígenas e agricultores à própria sorte está servindo de terreno fértil

ao surgimento de ideias racistas e totalitárias, à formação de milícias, e aos atos de justiçagem

no interior do Estado”.6

Enfim, a referida luta social coloca em discussão um conjunto de processos que

dimensionam horizontes políticos, jurídicos e sociais; a mesma requer soluções não parciais

e/ou paliativas7; que seja expressiva de um grande problema social que necessita ser

enfrentado em suas raízes históricas, mas tendo presente os referenciais da sociedade atual,

não polarizando os dois sujeitos mais diretamente envolvidos (indígenas e agricultores).

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http://www.onacional.com.br/geral/49195/mpf+em+erechim+aponta+omissao+do+ministerio+da+justica 7 “Os índios que incomodam”. Texto de Moisés Mendes (articulista). Jornal Zero Hora, 25 de maio de 2014, p. 25.

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