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Page 1: O Filósofo do Pessimismo - Breve Estudo da Filosofia de Schopenhauer

O FILÓSOFO DO PESSIMISMObreve estudo da filosofia de Schopenhauer

SOBRE SCHOPENHAUER (1788-1860)

Arthur Schopenhauer nasceu em 1788, em Dantzig, Prússia. Iniciou seus estudos no Liceu de Weimar e prosseguiu, primeiro na Faculdade de Medicina de Göttingen, deppois, na Universidade de Berlim onde se doutorou com a tese Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio da Razão Suficiente. Aluno de Fitche, mais tarde, acusaria o mestre de ter caricaturado a filosofia de Emmanuel Kant a fim de “envolver o povo alemão com a neblina filosófica” (apud RODRIGUES TORRES FILHO, 1980). Durante a juventude e a maturidade, o filósofo Schopenhauer não era popular nos meios acadêmicos, ao contrário de Hegel, com quem manteve um clima de rivalidade intelectual durante toda a vida. Em 1819 ele havia publicado O Mundo Como Vontade e Representação e foi mau recebido em termos de crítica e público. Somente o periódico Kleine Bücherschau elogiou o trabalho. Recusado em suas tentativas de obter uma cadeira universitária, em 1833, o filósofo fixou residência em Frankfurt-sobre-o-Meno onde levou uma vida solitária trabalhando intensamente. Ali publicou vários escritos sem alcançar grande sucesso mas, em 1851, sua coletânea de ensaios Parerga e Paralipomena alcançou um êxito, a àquela altura, inesperado e muito expressivo. Schopenhauer entrava, finalmente, para a galeria dos reconhecidamente notáveis da filosofia ocidental. O livro foi editado em vários países europeus. Filósofos franceses viajavam até Frankfurt para visitá-lo. Enquanto isso, na Alemanha, a filosofia do antigo rival, Hegel, entrava em declínio. “Schopenhauer era o ídolo das novas gerações” (RODRIGUES TORRES FILHO, 1980).

     

 

PENSAMENTO DE SCHOPENHAUER

O pensamento de Schopenhauer parte da filosofia de Kant, analisando as relações entre os fenômenos e as "coisas em-si" e conclui que a realidade ou o mundo somente existe enquanto representação gerada pelas percepções de um ser consciente; representação como síntese mental operada por uma consciência que realiza a passagem expressiva do subjetivo ao objetivo. Nas palavras do filósofo em O mundo como vontade e representação:

"(...) por mais maciço e imenso que seja este mundo, sua existência depende, em qualquer momento, apenas de um fio único e delgadíssimo: a consciência em que aparece." (apud RODRIGUES TORRES FILHO, 1980).

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A COISA EM SI é um dos conceitos mais complicados da filosofia. A questão é saber se existe alguma coisa em qualquer lugar ou mesmo se existe lugar ou tempo sem a presença ou a existência de um ser, um sujeito capaz de perceber tais COISAS, conhece-las, enfim, ter plena consciência delas. Kant acreditava que as "coisas em-si", em pureza ontológica, de ser, são sempre inacessíveis ao conhecimento humano. A consciência perceptiva produz representações referenciais das coisas mas não é capaz de exatidão de conhecimento, porque tal exatidão implicaria experiência objetiva do sujeito de deixar de ser sujeito para se confundir no ser do próprio objeto de conhecimento. Em outras palavras, conhecer verdadeira e inteiramente a realidade "ÁRVORE", por exemplo, exige a experiência subjetiva e indizível de ser ÁRVORE, experiência cuja tradução ou representação em signos quaisquer, é impossível.

Schopenhauer entende que não existem "COISAS", antes, existe UMA SÓ COISA que determina a existência de todas as outras ou ainda, uma só fonte de onde emanam todas as expressões objetivas de realidade. O próprio ser consciente, um homem, por exemplo, é uma objetivação dessa COISA-FONTE-Única que o filósofo identificou como sendo VONTADE. Mesmo o corpo humano seria uma objetivação da vontade e a percepção física que temos de nós mesmos não se confunde com aquele nós que percebe esse "nós mesmos".

VONTADE - eis o princípio fundamental da Natureza, para Schopenhauer; porém, não Vontades individuais; não Vontade fragmentada em seres diversos. Sob a exuberante diversidade do mundo perceptível existiria uma força diretora única, uma VONTADE SUPERIOR, "de caráter metafísico e presente igualmente na planta que nasce e cresce e nas complexas ações humanas." (RODRIGUES TORRES FILHO, 1980). A essência de todas as coisas (as coisas em-si) seriam inacessíveis à razão ou ao estado de consciência normal. A mente, é muito mais ampla que a consciência ordinária - ou, o Ego. Na filosofia de Schopenhauer, a consciência trabalha somente com percepções supericiais da mente que, de fato, se extende muito além no terreno do inconsciente, normalmente fechado ao conhecimento. Neste ponto, Schopenhauer antecipa as idéias de Freud, como reconheceu o próprio Pai da Psicanálise.

A VONTADE SUPERIOR rege o macrocosmo; entretanto, analogicamente, é a VONTADE INFERIOR, do Ego, que predomina no microcosmo. Essa vontade inferior é a vontade dos seres, em especial dos homens. Schopenhauer é geralmente apontado como o filósofo do pessimismo. Isso acontece porque, no desenvolvimento de sua teoria sobre "o mundo como representação", a Vontade humana, sempre limitada pela percepção enganosa, não é uma faculdade que pode ser exercida livremente; ao contrário, a Vontade é uma força que o homem comum não sabe controlar e por isso, é controlado por ela. A Vontade deseducada é apenas um querer irracional movido por paixões inconscientes e sempre não saciadas. É um "mal inerente à existência do homem", fonte de dor constante pelos anseios intermitentes que são a sua manifestação (da Vontade) porque não existe satisfação durável. Todo prazer é ponto de partida para novas aspirações e por isso, "viver é sofrer".

Nesta situação, a única saída para uma existência humana suportável, tão fortemente destinada ao sofrimento, seria o controle da Vontade Inferior através de esforços que conduzam a uma Vontade Superior, esta, capaz de dominar os desejos da consciência objetiva, do Ego. O primeiro passo seria a superação do egoísmo, no sentido de entender o si mesmo como algo mais que a personalidade condicionada pela cultura. As "vontades" meramente pessoais tentem a entrar em conflito com as outras vontades pessoais que interagem na coexistência dos homens. Para escapar aos sofrimentos dos desejos contínuos, o homem necessita superar sua individualidade renunciando às solicitações do mundo e dos instintos, entregando-se aà realidade última que é o NADA - o nada querer, o nada desejar.

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CURIOSIDADES DA VIDA DE SCHOPENHAUER

- Schopenhauer era filho de comerciante e a vontade de seu pai, Heinrich Floris Schpenhauer, era que o filho seguisse tocando os negócios. Para isso, chegou a forçar seu ingresso em uma escola comercial. Porém, com a morte de Herr Heinrich, que teria se suicidado, O jovem Arthur pôde dedicar-se à sua vocação filosófica.

- Viúva, a mãe de Schopenhauer, Johanna, resisdindo em Weimar, lançou-se como novelista e alcançou considerável sucesso de público. Isso irritava Schopenhauer que ridicularizava os trabalhos dela até que Johanna declarou publicamente que a tese de seu filho não passava de "tratado de farmácia".Em retaliação, o filósofo profetizou que a história não reconheceria Johana como romancista mas, sim, como mãe do grande Schopenhauer.

- Em 1820, na Universidade de Berlim, como professor, Schopenhauer era rival de Hegel. Ensinando "A Filosofia Inteira ou Ensino do Mundo e do Espírito Humano", escolheu para suas aulas o mesmo horário do desafeto. Perdeu a briga porque apenas quatro ouvintes assistiam suas aulas enquanto Hegel tinha o auditório lotado.

- Em 1821 envolveu-se em uma briga de vizinhos que acabou em polícia, tribunal e condenação. Schopenhauer morava em uma pensão, ocupada em maioria por senhoritas maduras que costumavam espionar a vida do filósofo, controlando suas visitas, entre as quais, algumas amantes. Certa noite, Schopenhauer surpreendeu a costureira Caroline-Louise Marquet bisbilhotando sua porta. Discutiram, a solteirona e o filósofo, enfim, perdendo a paciência, atirou a fofoqueira escada abaixo. Instaurado processo judicial, o réu foi condenado a pagar trezentos thalers de despesas médicas e sessenta thalers anuais pelo resto da vida da vítima. Caroline morreu vinte anos depois e Schopenhauer entrava em profunda depressão sempre que chegava a época de fazer o pagamento.

 

ESCRITOS

1813 - Quádrupla raiz do princípio de razão suficiente1816 - Sobre a visão e as cores1819 - O mundo como vontade e representação1841 - Os dois princípios fundamentais da ética1851 - Parerga e Paralipômena

 

PARERGA E PARALIPÔMENAcapítulos V, VIII, XII e XIV

trechos selecionados

 

DEUS

Contra o panteísmo,sustento principalmente que ele não diz nada. Chama Deus ao Mundo não significa explicá-lo, mas apenas enriquecer a língua com um sinônimo supérfluo da palavra Mundo (...) com isso não se diz nada, ou ao menos que se explica ignotum per ignotius (o desconhcido pelo mais desconhecido). - p 185 | 186

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A ninguém ocorrerá de imediato e despojadamente considerar este mundo como um deus. Pois deveria se tratar de um deus muito mal esclarecido, incapaz de algo melhor do que se transformar num mundo como este, tão faminto, e para aqui suportar, na figura de inumeráveis milhões de seres vivos, porém aterrorizados e maltratados, que em sua totalidade conseguem existir momentaneamente apenas um devorando ao outro, a miséria, a necessidade e a morte, sem medida nem objetivo, por exemplo, na figura de seis milhões de escravos negros a receber diariamente em média sessenta milhões de chicotadas sobre o corpo nú, e para vegetar debilmente na figura de três milhões de tecelões europeus, com fome e desgosto, em catres obscuros ou sinistras salas de fábricas, etc.. Que passatempo para um deus! (...) Muito mais correto seria identificar o mundo com o demônio, o que aliás fez o autor da Teologia Alemã, ao afirmar na p. 93 de sua obra imortal: "Por isso o espírito da mal e a natureza são unos, e onde a natureza não foi subjugada, também o atroz inimigo não o foi." (p 186)

Estes panteístas conferem ao Sansara o nome Deus. Por outro lado, os místicos dão o mesmo nome ao Nirvana. Deste, porém, contam mais do que podem saber: o que não fazem os budistas; motivo porque seu Nirvana é precisamente um relativo nada.

 

DIGNIDADE E COMPAIXÃO

Falando sobre ética, Shopenhauer assinala que a natureza humana não se distingue pela dignidade, por um conjunto de valores morais mas pela compaixão.

Quid superbit homo, cujus conceptio culpa,Nasci poena, labor vita, necesse mori?

(Por que há de se orgulhar o homem?Sua concepção é uma culpa,

o nascimento, um castigoa vida, uma labuta

a morte, uma necessidade!)

 

Por isto desejo (...) estabelecer a seguinte regra: com cada pessoa com quem tenhamos contato, não empreendamos uma valorização objetiva da mesma conforme valor e dignidade,não consideremos portanto a maldade de sua vontade, nem a limitação de seu entendimento, e a incorreção de seus conceitos (...) mas observemos somente seus sofrimentos, suas necessidades, seu medo, suas dores. Assim, sempre teremos com ela parentesco, simpatia, e, em lugardo ódio ou dodesprezo, aquela compaixão que unicamente forma a agapé (amor), pregada pelo evengelho. (p 189)

 

VÍCIO E VIRTUDE

Neste trecho, observa-se a influência filosófico-religiosa oriental, em especial a indiana, no pensamento de Schopenhauer. É uma influência que aparece com freqüência, como, por exemplo, na apologia da libertação dos sofrimentos por meio da aceitação do Nada e da anulação da personalidade. Sobre os budistas, comenta que em sua busca de perfeição espiritual não atentam somente para as virtudes mas enfatizam a necessidade de bem conhecer os vícios e as condutas características que os identificam. O vício deve ser conhecido para ser superado.

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"Conforme a História dos mongóis orientais (SCHMIDT, 1819), os vícios cardinais (principais) budistas são: volúpia, indolência, ira e avareza." (SCHOPENHAUER, 1980 - p 189).

Shopenhauer corrige a lista lembrando a SOBERBA e a INVEJA e refere-se à doutrina dos Sufis, "certamente sob a influência do bramanismo e do budismo. Estes também dispõem os mesmos vícios cardinais, e mui propriamente o fazem aos pares, de modo a associar a VOLÚPIA e a AVAREZA, a IRA e a SOBERBA. Volúpia, Ira e Avareza já as encontramos na Bhagavat Gita situados como vícios cardinais, o que comprova a grande antiguidade da doutrina. Também no Prabodha-Chandrodaya, esse drama filosófico alegórico (da) filosofia vedanta, encontram-se estes três vícios (...) como os três chefes militares do rei da paixão em sua guerra contra o rei da razão. As virtudes cardinais opostas àqueles vícios cardinais seriam a CASTIDADE e a GENEROSIDADE, ao lado da BRANDURA e da HUMILDADE." (p 189).

Em Platão, as virtudes cardinais são: JUSTIÇA, BRAVURA, MODERAÇÃO E SABEDORIA. Schopenhauer questiona esta concepção. A Sabedoria é um atributodo intelecto, da inteligência alimentada e exercitada; Moderação ou Temperança, "é uma expressão inteiramente indeterminada (...) de significado múltiplo (...) tais como ponderação, lucidez, manter a cabeça no lugar. (...) A bravura não é uma virtude, não obstante às vezes aja como serviçal ou instrumento desta, mas da mesma forma se presta aos serviços da maior indignidade. Ela constitui mais uma propriedade do temperamento. (...) Os chineses nomeiam cinco virtudes cardinais: COMPAIXÃO, JUSTIÇA, CORDIALIDADE, SABEDORIA E SINCERIDADE. (...) O Cristianismo não possui virtudes cardinais, mas teologais: FÉ, AMOR e ESPERANÇA."

A predominância de virtude ou vício depende da mentalidade, ou sua disposição emocional, em relação uns aos outros. A todos é inevitável a escolha entre inveja e compaixão "Pois todo homem porta estas qualidades diametralmente opostas em seu interior (...) provenientes da inevitável comparação do seu próprio estadocom o do outro (...) A inveja fortalece o muro entre o Tu e o EU (...) a compaixão (...) o derruba, quando então a distinção entre eu e não-eu desaparece." (p 190)

AVAREZA E DESPERDÍCIO

Não é a avareza que constitui um vício, mas seu oposto, o desperdício (...) limitação aimal ao presente (...) e repousa na ilusão de um valor positivo e real dos prazeres dos sentidos. Assim, a miséria e a carência futuras são o preço com que o esbanjador adquire estes prazeres vazios (...) Por isso deve-se fugir dele (do esbanjador) como de um empesteadoe, descoberto seu vício, dele se afastar a tempo, para que, quando mais tarde ocorrerem as conseqüências, não se tenha que ajudar a sustentá-las (...) também não há por que esperar que aquele que desperdiça futilmente sua própria fortuna, deixe intata a de um outro, apresentada a suas suas mãos; mas sui profusus, alieni appetens (Tendo desperdiçado o seu, cobiça o de outrem), nos corretos dizeres de Salústio (...) Assim o desperdícionão só conduz ao empobrecimento, mas, por intermédio deste, ao crime: os criminosos das camadas abastadas quase todos assim se tornaram em conseqüência do desperdício.(p 192)

AVAREZA NÃO É VÍCIO

A avareza, ao contrário, tem como companheira a abundância e resulta em boas conseqüências. Por que a avareza parte do princípio de que os prazeres são atos de dissipassão, dispersão e a felicidade, sempre fugidia, é uma quimera; as dores, em

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oposto, são muito reais. Assim ele (o avarento) recusa prazeres para melhor se rpevenir das possíveis dores; sua máxima (do avarento): sustine et abstine (Retenha e abstenha-se). E por saber quão inegotáveis são as possibilidades de infelicidade e inumeráveis os caminhos do perigo, acumula os meios contra isso (...) Quem pode afirmar quando a prevenção contra acidentes se torna excessiva? Somente aquele que soubesse onde a malícia do destino atinge seu fim. E mesmo que esta prevenção fosse exagerada, este erro não prejudicaria a outros, mas apenas a ele próprio (ao avarento). Se ele nunca necessitar das riquezas que acumula, entas servirão em proveito de outros, menos prvenidos pela natureza. (...) a amizade, ou mesmo o parentesco com o avarento, não somente é destituída de perigo como também é benéfica, pois pode trazer grande proveito. Porque certamente os que lhe são mais próximos colherão após sua morte os frutos de seu autodomínio e mesmo ainda durante sua vida, em caso de grande necessidade, pode-se esperar algo dele, ao menos sempre mais do que se poderia esperar do esbanjador despojado, desamparado, endividado. (...) Em conseqüência disto tudo, a avareza não constitui um vício. (p 192)

SOBRE MALDADE

(...) mesmo o maior dos gênios é decididamente limitado numa esfera qualquer do conhecimento, fundamentando assim seu parentesco com a espécie humana essencialmente errada e absurda; assim, qualquer um possui algo de moralmente mau, e mesmo o melhor e mais nobre caráter nos surpreenderá ocasionalmente com traços isolados de maldade. (...) Pois justamente por forças deste seu componente mau, deste princípio mau, foi obrigado a tornar-se homem. (p 194)

 

OS CÃES E A MASCARADA

(...) a diferença entre as pessoas é inavariavelmente grande e muitos se assustariam se vissem o outro tal como ele é efetivamente. (...) o véu do disfarce, da falsidade, da dissimulação, da careta, da mentira e da fraude (...) sobre tudo se estende (...) por trás de todas as virtuosas exterioridades. Daí provêm as amizades quadrúpedes. Como suportaríamos a infinita dissimulação, falsidade e malícia dos homens se não houvesse os cães, em cuja face honesta podemos mirar sem desconfiança? Nosso mundo civilizado não passa de uma imensa mascarada. Ali encontramos cavaleiros, padres, soldados, doutores, advogados, sacerdotes, filósofos, e o que não mais! Porém estes não são o que representam: são simples máscaras. (...)

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A escolha das mulheres é menor: mais freqüentemente se utilizam da máscara da decência, do pudor, das qualidades domésticas e da modéstia. Existem ainda as máscaras gerais, (...) entre estas se contam a justiça rígida, a cortesia, a participação sincera e a amistosidade risonha. (...) É muito importante já ser informado cedo, na juventude, de que estamos na mascarada. Caso contrário, não compreenderemos nem conseguiremos muitas coisas, mas nos situaremos frente a elas estupefatos. (...) Portanto (...) que o jovem já seja informado que nesta mascarada as maçãs são de cera, as flores de seda, os peixes de papelão, e que tudo, tudo é futilidade e brincadeira: e que, daqueles dois, vistos ali a negociar tão seriamente, um fornece somente mercadoria falsa, e outro a paga com meras fichas. (p 195)

O homem no fundo é um animal selvagem e terrível. Nós o conhecemos unicamente no estado subjugado e domesticado, denominado civilização (...) Porém, onde e quando a trava e a cadeia da ordem jurídica se rompem (...) o homem não deve crueldade e intransigência a nenhum tigre ou hiena (...) à inveja, egoísmo de nossa natureza aindase alia um estoque existente de ódio, ira, raiva e maldade reunidos, como o veneno no receptáculo do dente da cobra aguardando apenas a oportunidade para vir à tona (...) qual um demônio libertado a bramir sua fúria produzindo devastação."O ódio constitui de longe o prazer mais insistente; os homem amam às pressas, mas detestam longamente". (...) Gabineau, (...des races humaines), denominou o homem l'animal méchant par excellence (O animal perverso por excelência), o que desagrada as pessoas, porque se sentem atingidas; contudo ele tem razão, pois o homem é o único animal que incute dor a outro sem nenhum outro fim a não ser este mesmo. (...) nenhum animal maltrata apenas por maltratar, mas o homem sim, e isto constitui o caráter demoníaco, muito mais grave do que o simplesmente animal. (p 195 a 197)

(...) é o querer-viver, que, amargurado mais e mais pelo contínuo sofrimento da existência, procura aliviar seu próprio padecimento causando o dos outros. (...) A pior feição da natureza humana permanece sendo o deleite pela desgraça alheia (...) estreitamente aparentada à crueldade (...) a satisfação na desgraça alheia é demoníaca e seu escárnio, o riso do inferno. (p 198)

INVEJA

É natural e mesmo inevitável que o homem, na contemplação do prazer e da propriedade alheios, sinta amargamente sua própria carência; apenas, isto não deveria erguer seu ódio contra o felizardo mas precisamente nisto consiste a inveja. (...) quando a inveja é produzida somente pela riqueza, posição social ou opder, freqüentemente é atenuada pelo egoísmo considerando que, do invejado, (...) se pode esperar ajuda, prazer, amparo, proteção, promoção etc., no contato com ele, iluminado pelo reflexo de sua distinção (...) Porém, a inveja orientada para as dádivas naturais e vantagens pessoais como é a beleza para as mulheres e o espírito para os homens, para esta inveja não há consolo ; nada mais lhe resta senão odiar os assim privilegiados. (...) da sua escuridão, o invejoso lançara sobre o invejado a censura, o escárnio, zombaria e calúnia, igual ao sapo que do interior de um buraco lança o seu veneno. (p 198-199)

Não há vício de que um homem pode ser culpado,nenhuma maldade, nenhuma baixeza, nenhuma indelicadeza

que excita tanta indignação entre seus contemporâneos,amigos, vizinhos, como o sucesso. Este é o crime imperdoável,

que a razão não pode defender nem a humildade mitigar.A genialidade é obrigada a pedir perdão. (p 199)

 

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FATALIDADE DO SER

Aqui merece ser recordado que Platão apresenta a individualidade (personalidade) de cada um como um ato pessoal livre, na medida em que cada um nasce tal como é, por meio da metempsicose, em conseqüência de seu coração e de seu caráter (Fedro, cap. 28 - Leis X). Também os bramanes expressam miticamente a determinação invariável do caráter inato dizendo que Brama, durante a criação de cada homem, gravou em escrita seu agir e seu sofrer sobre sua testa conforme o curso de sua vida. Apontam como sendo esta escrita, o formato das suturas dos ossos do crânio. Nestas suturas estariam os registros da vida passada, presente e futura. (p 207)

MAU CARÁTER

Assim como um botânico conhece a planta inteira por ma folha, e Cuvier construiu o animal inteiro por um osso, é possível a partir de uma ação característica de uma pessoa atingir um conhecimento correto de seu caráter (...) inclusive quando esta ação se refere a algo insignificante (...) Quem é desprovido de consideração nos negócios pequenos, será infame nos negócios grandes. Quem não atenta para os traços menores do caráter, deverá culpar a si mesmo quando em seguida aprende a conhecer o caráter correspondente, pelo seu prejuízo. De acordo com o mesmo princípio, deve-se romper imediatamente memsmo com os assim chamados bons amigos, quando revelam caráter perverso, mau ou vulgar, mesmo em relação a insignificâncias, prevenindo assim seus golpes de maldade, apenas à espera da oportunidade para se instaurarem. O mesmo vale para os criados. Que o pensamento seja sempre: melhor sozinho do que entre traidores. (p 209)

SOBRE O ESPÍRITO DE IMITAÇÃO

(...) o homem possui muito pouca capacidade de juízo, e freqüentemente também muito pouco conhecimento para explorar seu próprio caminho, motivo pelo qual gosta de trilhar as pegadas de outros (...) a estrela que orienta a maior parte das pessoas é o exemplo de terceiros, e todo seu agir e fazer, em grande e pequena escala, se remete à simples imitação; não realizam nem a coisa mais insignificante conforme ao parecer próprio. Motivo para tanto é seu medo frente a toda e qualquer meditação e sua acertada desconfiança quanto ao juízo próprio. Ao mesmo tempo, este surpreendentemente forte instinto de imitação no homem também testemunha seu parentesco com o macaco. Imitação e hábito são as molas mestras da maioria das ações humanas. (p 214)

SOBRE O SOFRIMENTO HUMANO

Falando sobre o sofrimento da existência como ser humano, Schopenhauer chama a atenção para o fato de que as dores físicas e emocionais impressionam muito mais aos sentidos, entendimento e memória que os prazeres, estes, fugidios e facilmente esquecidos.

"... tudo o que é desagradável e dolorido, nós o percebemos diretamente, de imediato e mui claramente. Como nós não sentimos a saúde de todo o nosso corpo, mas apenas o pequeno local onde o sapato nos aperta, assim também não pensamos na totalidade de nossos interesses que vai perfeitamente bem e nos atemos a qualquer insignificância que nos aborrece." (p 216)

TRABALHO, AFLIÇÃO, ESFORÇO E NECESSIDADE constituem durante toda a vida a sorte da maioria das pessoas. Porém , se todos os desejos, apenas

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manifestados já estivessem de antemão resolvidos, satisfeitos, o que preencheria a vida humana, com que se gastaria o tempo? (p 217)

(...) a felicidade de um determinado curso de vida não se estima segundo suas alegrias e prazeres, porém pela ausência dos sofrimentos (... p 218)

HOMENS & ANIMAIS

(...) a sorte dos animais parece mais suportável do que a do homem.(...) a base material que determina a felicidade ou infelicidade, o prazer e a dor, limita-se a uns poucos fatores: saúde, alimento, proteção do frio e da umidade e satisfação sexual. (...) Por conseguinte, o homem, quanto a prazeres físicos reais, não possui mais do que o animal (...) Mas quão mais poderosas são as afecções nele excitadas, comparadas às dos animais! Com que profundidade e intensidade superior é mobilizada sua sensibilidade! Para, por fim, atingir um resultado idêntico: saúde, alimento, abrigo etc..

[Além disso o homem amplia suas necessidades no contexto da cultura e assim ambiciona ao] ... luxo, iguarias, tabaco, ópio, bebidas alcoólicas, pompas e tudo o mais.

[Por outro lado, o homem, porque pensa, porque reflete sobre si mesmo em relação aos outros que o circundam ainda acumula necessidades geradas por simples ambição, anseio de honras, além das dores causadas pelas situações que produzem o sentimento de vergonha]

(...) mediante a ação do pensamento (...) ergue-se o alto e extenso edifício da felicidade e da infelicidade humana (...) sua disposição emocional está entregue a afecções, paixões e abalos tão intensos se podem ser vistos em traços permanente que ficam no rosto.

[Diferente do animal, o homem está exposto à constante intranquilidade por conta de seu saber, de sua consciência cujos pensamentos são consumidos em "pre-ocupações"]

(...) a capacidade cognitiva superior (...) faz a vida do homem mais cheia de sofrimento do que a vida do animal (...) o conheimento, por mais imperfeito, é o verdadeiro caráter da animalidade. Na medida em que sobre a escala da animalidade, cresce proporcionalmente a dor. (...) nos animais mais inferiores, ainda é bem restrita: por isto, p. ex., insetos que arrastam atrás desi o corpo arrancado preso apenas por um fio, ainda são capazes de comer. Porém mesmo nos animais mais superiores, ao lado da ausência de conceitos e do pensamento, a dor ainda não se compara à experiência do homem. (... p 218 e 221)

A VIDA

Na infância, nos situamos frente ao curso futuro de nossa vida (...) Sorte que não sabemos o que efetivamente virá. (...) Todos desejam para si uma idade avançada, portanto, um estado em que a situação é: "Hoje está mal, e doravante, o amanhã será pior até sobrevir o mal definitivo". (p 222)

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Podemos também perceber nossa vida como um episódio inutilmente perturbador na ditosa paz do nada (...) mesmo aquele que viveu suportavelmente (...) nitidamente se dá conta de que no todo é um disapoitment (frustração), nay (nada, a cheat (trapaça)... - p 222

Quem viveu duas ou três gerações é tomado pela impressão dos espectadores das representações dos charlatães de feira (...) É de enlouquecer a contemplação dos esforços exagerados, das inumeráveis estrelas fixas no espaço infinito, com nenhuma outra obrigação a não ser iluminar mundos que são palco da necessidade e da miséria e que no melhor caso nada oferecem senão tédio (...) Imaginemos que o ato da procriação não fosse uma necessidade, nem acompanhado de prazer, mas um assunto de pura reflexão racional; a humanidade então ainda subsistiria? Não possuiria, pelo contrário, cada um compaixão suficiente para com a geração vindoura, a ponto de lhe poupar o fardo da existência? (...) Agora terei que ouvir novamente que minha filosofia é desesperada somente porque me expresso conforme a verdade (... p 222/223)

DEUSES

Brama cria o mundo por meio de uma espécie de pecado original (...) mas ele próprio permanece nele até sua expiação. Muito bem! No budismo, o mundo surge em conseqüência de um turvamento inexplicável após uma paz duradoura, na claridez celeste do estado de bem-aventurado do Nirvana. [Ou seja, no budismo, segundo Schopenhauer, o mundo surge por uma espécie de fatalidade] ... como conseqüência de falhas morais (...) se torna gradualmente pior até assumir o triste aspecto do presente. Excelente! Para os gregos o mundo e os deuses eram obra de uma necessidade misteriosa: isto é tolerável (...) Ormuzd vive em luta contra Ahriman: perfeitamente admissível. Mas um tal deus Jeová, que animi causa e de gaité de coeur (por própria vontade e livremente) produz este mundo de necessidade e miséria, e feito isso ainda aplaude a si mesmo, com pánta kalá lían ("Todas as coisas são realmente belas"), isto é INTOLERÁVEL! (...) contra uma tal visão do mundo como da obra bem sucedida de um ser onisciente, de bondade infinita e ao mesmo tempo onipotente, clama demasiado forte, de um lado a miséria, de que está pleno este mundo, e de outro a visível imperfeição e mesmo a distorção burlesca do mais perfeito de seus fenômenos, o humano. Aqui repousa uma dissonância insolúvel.

O MUNDO

(...) para a orientação na vida (...) nada se presta melhor do que o hábito de considerar este mundo como local de penitência, (...) Como instituição penal, a penal colony, (...) concepção esta que também encontra sua justificativa teórica e objetiva não somente na minha filosofia, mas na sabedoria de todas as épocas, ou seja, no bramanismo, no budismo, em Empédocles e Pitágoras; como também Cícero afirma (em Fragmenta de Philosophia), que ensinavam os antigos sábios, por ocasião da iniciação nos mistérios: Nos ob aliqua scelera suscepta in vita superiore, poenarum luendarum causa natus esse (Nascemos para expiar as penas de alguns crimes contraídos na vida anterior). (...) Mesmo no cristianismo genuíno e bem compreendido, nossa existência é concebida como conseqüência de uma culpa, um passo em falso. (...) Partindo desse ponto de vista, poder-se-ia pensar que o tratamento apropriado entre os homens, em lugar de Monsieur, Sir, etc,. deveria ser "companheiro de infortúnio", compagnos de misères, my fellow-sufferer. Por mais estranho que possa parecer, corresponde à coisa, lança sobre o outro a luz apropriada e recorda o necessário, a tolerância, paciência, piedade, amor ao próximo. (... p 225)

SEXO

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Page 11: O Filósofo do Pessimismo - Breve Estudo da Filosofia de Schopenhauer

(...) o cerne do querer-viver é o ato da geração. (...) A participação da mulher na geração é, em certo sentido, bem mais isenta de culpa que a do homem; na medida em que este fornece ao ser gerado a vontade, que constitui o primeiro pecado e portanto é a fonte detodo o mal e perversidade; a mulher, porém, fornece o conhecimento, que abre o caminho para a redenção. (p 230)

(...) enquanto uma mulher é surpreendida durante o ato da geração, ela se envergonha terrivelmente; mas apresenta sua gravidez sem o menor vestígio de vergonha [AQUI SCHOPENHAUER DISTANCIA-SE DA REALIDADE. EM MUITAS SOCIEDADES, GRAVIDEZ NÃO "LEGALMENTE" AUTORIZADA, CAUSA GRANDES CONSTRANGIMENTOS E DISCRIMINAÇÃO) e mesmo com certo orgulho. (...) Isto há que explicar por ser (...) a gravidez, em certo sentido, uma expiação da culpa, contraída pelo coito (...) o coito porta toda a desonra e vergonha do ato enquanto a gravidez permanece pura e inocente. (p 231)

Alguns anciães da igreja ensinaram que mesmo o coito matrimonial deveria ser permitido somente quando destinado à procriação (...) como afirma Clemente de Alexandria, que também atribui este ponto de vista aos pitagóricos. Isto, porém, analisado detidamente, é errado. (...) sem qualquer paixão subjetiva, sem desejos e impulsos físicos, somente por pura reflexão e fria intencionalidade, colocar uma pessoa no mundo (...) isto seria uma atitude moralmente bastante duvidosa (... p 231)

CELIBATO E CLAUSURA

Um convento constitui uma reunião de pessoas que fizeram voto de pobreza, castidade e obediência, i.e., renúncia à vontade própria, e que procuram pela vida em conjunto, facilitar, em parte, a própria existência (...) na medida em que a visão de pessoas de inteções semelhantes e abstenções análogas fortalece sua decisão (...) O espírito e o sentido interno da genuína vida enclausurada (...) é que nos reconhecemos dignos e capazes de uma existência melhor (...), rejeitando prazeres destituídos de valor, praticando, assim, o desprezo convicto pelas coisas que este mundo oferece. (p 232)

O número de trapistas (monges mendicantes) regulares certamente é pequeno; em contrposição, a metade da humanidade, seguramente, é constituída de trapistas involuntários: pobreza, obediência, carência detodos os prazeres e emsmo dos meios de alívio mais necessários, e freqüentemente também a castidade forçada constituem sua sorte. (p 232)

(...) aqueles que consideravam com seriedade sua salvação eterna, escolheram a pobreza de livre vontade quando o destino não a proporcionara. Assim como Buda Schakya Muni, que, nascido príncipe, voluntariamente adotou o bastão da mendicância; e o fundador da ordem mendicante, Francisco de Assis, que como jovem nobre, no baile em que se apresentavam as filhas dos notáveis, e questionado: "E então, Sr. Francisco, não ireis brevemente eleger alguma entre essas belas?" - retrucou, "Elegi para mim umamuito mais bela: La Porvetá (A Pobreza). (p 233)

 

BIBLIOGRAFIA

SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paralipômena In Coletânea de textos. São Paulo: Abril Cultural, 1980.[col. Os pensadores]

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