“o filho do homem É senhor do sÁbado”: memÓria e...

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO MARCELO DA SILVA CARNEIRO “O FILHO DO HOMEM É SENHOR DO SÁBADO”: MEMÓRIA E IDENTIDADE NOS EVANGELHOS SINÓTICOS SÃO BERNARDO DO CAMPO 2014

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

    FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO

    MARCELO DA SILVA CARNEIRO

    O FILHO DO HOMEM SENHOR DO

    SBADO: MEMRIA E IDENTIDADE NOS

    EVANGELHOS SINTICOS

    SO BERNARDO DO CAMPO

    2014

  • MARCELO DA SILVA CARNEIRO

    O FILHO DO HOMEM SENHOR DO SBADO:

    MEMRIA E IDENTIDADE NOS EVANGELHOS

    SINTICOS

    Tese apresentada em cumprimento s exigncias do

    Programa de Ps-Graduao em Cincias da

    Religio da Universidade Metodista de So Paulo,

    para obteno do grau de Doutor.

    rea de Concentrao: Linguagens da Religio

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia

    SO BERNARDO DO CAMPO

    2014

  • A tese de doutorado sob o ttulo O FILHO DO HOMEM SENHOR DO SBADO:

    MEMRIA E IDENTIDADE NOS EVANGELHOS SINTICOS, elaborada por

    MARCELO DA SILVA CARNEIRO, foi defendida e aprovada em 20 de outubro de 2014,

    perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia

    (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira (Titular/UMESP), Prof. Dr.

    Jos Adhemar Kaefer (Titular/UMESP), Prof. Dr. Jonas Machado (Titular/FTBSP) e Prof. Dr.

    Joo Leonel (Titular/Mckenzie).

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia

    Orientador e Presidente da Banca Examinadora

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Helmut Renders

    Coordenador do Programa de Ps-Graduao

    Programa: Cincias da Religio

    rea de Concentrao: Linguagens da Religio

    Linha de Pesquisa: Literatura e Religio do Mundo Bblico

  • Aos meus pais e aos meus filhos,

    por quem a vida se inicia e se eterniza.

  • AGRADECIMENTOS

    Este perodo do doutorado foi marcado por duas fases. Como uma jornada de heri

    tive um primeiro de queda em foi necessrio lutar para prosseguir, mas fui continuamente

    renovado na jornada na pesquisa rumo ao doutorado. No fim, fui amadurecido como ser

    humano, e consequentemente como pesquisador, seja pelo contato com pessoas maravilhosas,

    seja pelo prprio ato de pesquisar, to apaixonante e com um horizonte to imenso. Ambas as

    fases tm pessoas e situaes que foram importantes, de uma forma ou de outra, e que devem

    ser citadas.

    Primeiramente, ao meu orientador e amigo, prof. Dr. Paulo Roberto Garcia, da

    Universidade Metodista de So Paulo, por acreditar em mim antes mesmo do incio do

    doutorado, e nos momentos mais difceis ter sido meu conselheiro e incentivador. Obrigado

    pela cenoura na ponta da varinha. Sua perspectiva sobre os evangelhos foi o que mais me

    motivou a enveredar por esse caminho de pesquisa.

    Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico) agradeo

    por ter me permitido dar continuidade e encerrar a tese, com bolsa integral de janeiro de 2013

    a julho de 2014. Agradeo tambm coordenao do programa de Ps-Graduao pela

    oportunidade de estar nos quadros de doutorandos, sendo enriquecido e contribuindo da

    mesma forma, e o apoio pesquisa.

    Aos professores do programa de Ps-Graduao, especialmente ao prof. Dr. Paulo

    Augusto Nogueira, por suas aulas intrigantes e motivadoras para novas abordagens de

    pesquisa, e pela amizade que facilitou os momentos de dificuldade na caminhada, agradeo

    sabendo que no poderei retribuir altura. Tambm agradeo aos colegas de classe,

    companheiros de jornada, com quem pude aprender muitas coisas, em especial ao Anderson

    Lima, cujos dilogos tericos e leituras dissonantes me ajudaram a rever diversos aspectos de

    minha pesquisa.

    Agradeo tambm s pessoas que no cotidiano do doutorado foram fundamentais para

    que a jornada fosse possvel, nos atendendo, resolvendo problemas ou tirando dvidas. Em

    especial a Eliane Taylor Quintela, Regiane Vitalino da Silva e Camilla da Costa Silva devem

    ser destacadas.

  • Ao Pedro Rodriguez Jnior, companheiro de ltima instncia, que foi um leitor crtico,

    mas parceiro, para que o texto se tornasse o mais fluente e relevante possvel. Obrigado por

    me ajudar neste processo.

    Aos meus pais e meus filhos, duas pontas de um grande ciclo no qual me vejo como

    intermedirio, obrigado por existirem, pois me deram foras quando eu j no sabia de onde

    tirar. Especialmente Seu Jos, porque no meio de suas tantas dificuldades e limitaes, torce

    e vibra com cada conquista minha. Sua teimosia em viver me anima a prosseguir na jornada.

    Alexandra, por seu apoio incondicional minha jornada, que me sustentou nos

    momentos de desnimo, e me deu foco para prosseguir. Obrigado por ser minha companheira

    na fase mais difcil de minha vida.

    Aos amigos do curso de Teologia da Faculdade Metodista Bennett, turma 1998, com

    quem sempre pude contar e considerar como parceiros, meu sincero agradecimento,

    especialmente ao Jones, Sandro, Eduardo, Nelson e Waldemar (in memoria), porque sei que

    torceram muito para que esse momento chegasse.

    Finalmente, Mrian e ao bispo Paulo Lockmann, alm de todas as pessoas do Rio de

    Janeiro e So Paulo que de algum modo me apoiaram nas decises que me fizeram chegar ao

    doutorado.

    Soli Deo Gloria

  • Aquele que foi j no pode mais no ter sido;

    doravante, esse fato misterioso, profundamente

    obscuro de ter sido o seu vitico para a

    eternidade.

    Vladimir Jankelevich

  • RESUMO

    Esta pesquisa versa sobre memria e identidade nos Evangelhos Sinticos, luz de Mc 2.23-

    28, Mt 12.1-8 e Lc 6.1-5, que trata do conflito entre Jesus e os fariseus sobre pegar espigas

    num campo em dia de Sbado. Procura-se demonstrar que as narrativas dos evangelhos so

    indicirias da identidade das comunidades que as geraram, no mundo greco-romano, onde

    oralidade e textualidade tinham a mesma influncia. Para tanto, ser estudada a memria

    coletiva como formadora da tradio oral, bem como da relao entre oralidade e textualidade

    nas narrativas e memrias dos Evangelhos Sinticos. A escolha da percope se justifica pelos

    textos indicarem uma identidade vinculada cultura judaica, onde o Sbado era um dos

    marcos identitrios mais importantes dos judasmos do sc. 1 d.C. Desse modo as

    comunidades protocrists tinham argumentos para se defender de acusaes e ao mesmo

    tempo estabelecer fronteiras para definir o seu lugar em relao aos demais grupos

    intrajudaicos. Por fim, na elaborao de seu documento, cada comunidade optou por um

    gnero literrio especfico, mais adequado ao objetivo de seu texto. Torna-se possvel, desse

    modo, identificar qual Evangelho est mais vinculado ao ambiente judaico e qual deles est

    mais distante. Em suas narrativas, os evangelistas desejam afirmar tambm quem Jesus para

    a comunidade, estabelecendo assim sua identidade messinica. Na percope em questo, o dito

    mais importante o que afirma que Jesus o Filho do Homem - Senhor do Sbado. Jesus

    passa a ser o prottipo da comunidade, enquanto os fariseus, adversrios de Jesus, passam a

    representar aqueles no tem qualquer preocupao com o prximo, tentando se justificar pela

    observncia rigorosa da Lei mosaica.

    Palavras-Chave: Evangelhos Sinticos Sbado Memria Identidade Tradio Oral

  • ABSTRACT

    This research is about Memory and Identity in the Synoptic Gospels, in the view of Mk 2.23-

    28, Mt 12.1-8 and Lk 6.1-5, that read the conflict between Jesus and the Pharisees, about

    Plucking of the Grain on the Sabbath. We try the demonstrate that the Gospels narratives are

    indiciary of the communities identity that generate them, in the Greek-roman World, that

    orality and textuality has the same influence. Therefore, will study the colletive memory as

    oral tradition formative, as well the orality and textuality relation in Synoptic Gospels

    narratives and memories. The choice of the pericope is justified by the texts indicate a identity

    linked to Judaic culture, in that the Sabbath was a most important identity symbol of the

    Judaism of 1th Century. In this way the Protochristians communities has arguments to defend

    of accusations and in the same time define boundaries to insert their place in relation to other

    intrajudaic groups. Finally, in the elaboration of this document, each community choice a

    specific literary genre, closer to text purpose. In this way is possible identify which Gospel is

    closer to Judaic environment and which them is so far. In their narratives, the Evangelists

    want affirm whom is Jesus to the community as well, establishing his messianic identity. In

    the specific pericope, the most important logia is that affirm Jesus Son of Man as Lord of

    the Sabbath. Jesus assumes the community prototype, while the Pharisees, Jesus opponents,

    assume the role of their that dont have any concerned about the neighbor, try the justify

    themselves by the strict observance of the mosaic Law.

    Keywords: Synoptic Gospels Sabbath Memory Identity Oral Tradition

  • SIGLAS E ABREVIATURAS

    ATeo Atualidade Teolgica

    BTB Biblical Theology Bulletin

    CBQ The Catholic Biblical Quaterly

    CH Church History

    DEB Dicionrio Enciclopdico da Bblia

    DITN Dicionrio Internacional do Novo Testamento

    EstBibs Estudos Bblicos

    HTR Harvard Theological Review

    JBL Journal of Biblical Literature

    JSNT Journal of Studies of The New Testament

    JTS Journal of Theological Studies

    JSP Journal for the Study of the Pseudepigraphia

    LB Linguistica Biblica

    NTS New Testament Studies

    NvmT Novum Testamentum

    PHS Politeia: Histria e Sociologia

    Ribla Revista de Interpretao Bblica Latino-Americana

    RImm Revista Immanuel.

    LIVROS DA BBLIA

    Am Ams

    Dt Deuteronmio

    x xodo

    Ez Ezequiel

    Dn Daniel

    Gn Gnesis

    Is Isaas

    Jl Joel

    Jo Joo

    Jr Jeremias

    Lc Lucas

    Lc-At Lucas-Atos

    Lv Levtico

    Mc Marcos

    Mt Mateus

    Mq Miquias

    Nm Nmeros

    Os Oseias

    Sl Salmos

    Sf Sofonias

    Zc Zacarias

    1Co Primeira Epstola aos Corntios

    1Cr Primeiro Livro de Crnicas

  • DOCUMENTOS ANTIGOS

    EH Escrituras Hebraicas

    GJ Guerra Judaica

    LXX Septuaginta

    Q Fonte Q

    RQ Rolo de Qumran

    mShab Mishn Shabbat

    OUTRAS ABREVIAES

    a.C. Antes de Cristo

    apud citado por

    AT Antigo Testamento

    c. cerca de

    Cap. Captulo

    Cf. conforme, conferir

    Comp. comparar

    d.C. Depois de Cristo

    Ed. Editor/a/es/as

    ed. Edio (a partir da segunda)

    et al e outros autores

    Idem mesma obra citada antes

    n. nmero

    NT Novo Testamento

    Org. Organizador/a/es/as

    p., pp. pgina, pginas

    v., vv. versculo, versculos

    Vol. Volume

    Trad. Traduo

  • SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................ 15

    CAPTULO I MEMRIA COLETIVA E TRADIO ORAL NOS

    EVANGELHOS SINTICOS....................................................................................

    20

    1.1. MEMRIA E TRADIO NO PROCESSO IDENTITRIO DOS

    SINTICOS..................................................................................................................

    21

    1.1.1. Memria coletiva e tradio na elaborao da identidade do grupo................... 21

    1.1.2. Os Evangelhos Sinticos como memria coletiva ou social............................... 27

    1.2. A TRADIO DE JESUS NOS SINTICOS: TRADIO ORAL E

    TEXTUAL ...................................................................................................................

    36

    1.2.1. Debates sobre a tradio sintica........................................................................ 36

    1.2.2. Novo conceito da tradio de Jesus nos Sinticos.............................................. 38

    1.2.3. A tradio oral nos Evangelhos: contexto e concepo...................................... 42

    1.3. MEMRIA ENTRE ORALIDADE E TEXTUALIDADE NOS

    EVANGELHOS SINTICOS......................................................................................

    51

    1.3.1. Os Evangelhos Sinticos entre oralidade e textualidade..................................... 51

    1.3.2. Evidncias de oralidade e textualidade nos Evangelhos: estruturas

    mnemnicas nas narrativas...........................................................................................

    59

    1.4. CONCLUSO....................................................................................................... 70

    CAPTULO II O SBADO E A IDENTIDADE DOS GRUPOS

    INTRAJUDAICOS DA PALESTINA DO SCULO 1 D.C....................................

    72

    2.1. JUDASMO DO SCULO 1 D.C. E IDENTIDADE SOCIAL............................ 73

    2.1.1. Identidade nos grupos da Antiguidade................................................................ 73

    2.1.2. O judasmo plural do sculo 1 d.C...................................................................... 80

    2.1.3. O conflito como elemento formador de identidade: proposta de abordagem

    para a sociedade siro-palestinense do sculo 1 d.C.......................................................

    89

    2.2. COMUNIDADES PROTOCRISTS INTRAJUDAICAS NA PALESTINA....... 92

  • 2.2.1. A discusso sobre cristianismo e judasmo no sculo 1 d.C............................... 92

    2.2.2. A definio do grupo de Jesus no judasmo e o termo protocristianismos.......... 99

    2.2.3. Os Evangelhos Sinticos e os conflitos intrajudaicos......................................... 106

    2.3. O SBADO COMO MARCO IDENTITRIO DOS JUDASMOS DO SC. 1

    D.C................................................................................................................................

    114

    2.3.1. Marcos identitrios do judasmo do sculo 1 d.C............................................... 114

    2.3.2. O Sbado como marco identitrio....................................................................... 121

    2.4. CONCLUSO....................................................................................................... 125

    CAPTULO III RELAO COM O JUDASMO NOS SINTICOS: O

    CONFLITO SABTICO............................................................................................

    127

    3.1. A RECEPO DO DITO SOBRE O SBADO NAS NARRATIVAS DE

    MARCOS 2.23-28, MATEUS 12.1-8 E LUCAS 6.1-5................................................

    129

    3.1.1. O Sbado em Marcos 2,23-28: o Sbado por causa do homem.......................... 129

    3.1.2. O Sbado em Mateus 12,1-8: misericrdia quero e no sacrifcio.................. 142

    3.1.3. O Sbado em Lucas 6,1-5: o Filho do Homem o Senhor do Sbado............... 155

    3.2. A QUESTO DO SBADO: ANLISE SINTICA........................................... 166

    3.2.1. Anlise sintica: mtodo e objetivo.................................................................... 166

    3.2.2. Anlise sintica de Mc 2.23-28, Mt 12.1-8 e Lc 6.1-5........................................ 167

    3.3. O CONFLITO DO SBADO NA MEMRIA DOS EVANGELHOS

    SINTICOS..................................................................................................................

    174

    3.3.1. Avaliao dos indcios de oralidade.................................................................... 174

    3.3.2. O conflito sobre o Sbado a partir da tipologia identitria................................. 180

    3.3.3. O papel dos fariseus nas narrativas sinticas: o discurso sobre o outro.............. 182

    3.4. CONCLUSO....................................................................................................... 185

    CAPTULO IV A TRADIO DE JESUS NOS EVANGELHOS

    SINTICOS: IDENTIDADE E MEMRIA...........................................................

    187

  • 4.1. A IDENTIDADE MESSINICA DE JESUS NOS EVANGELHOS

    SINTICOS..................................................................................................................

    188

    4.1.1. Narrativas messinicas como marcos identitrios cristos................................. 188

    4.1.2. A tradio da Paixo: a memria protocrist primordial..................................... 192

    4.2. GNERO E LOCUS DOS EVANGELHOS SINTICOS.................................... 201

    4.2.1. O gnero Evangelho: causa ou consequncia?.................................................... 201

    4.2.2. O locus literrio: as comunidades geradoras dos Evangelhos............................ 207

    4.2.3. Soluo para a questo de gnero e locus literrio............................................. 212

    4.3. MEMRIA E IDENTIDADE NOS EVANGELHOS SINTICOS A PARTIR

    DO SBADO................................................................................................................

    219

    4.3.1. Marcos e a comunidade de seguidores de Jesus Cristo....................................... 219

    4.3.2. Mateus e o novo Israel........................................................................................ 222

    4.3.3. Lucas e o cristianismo de fronteira..................................................................... 226

    4.4. CONCLUSO....................................................................................................... 230

    CONSIDERAES FINAIS............................................................................... 233

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...................................................................... 238

    ANEXO - TABELA SINTICA DA DESCRIO DA RELAO COM O

    JUDASMO NOS EVANGELHOS SINTICOS..................................................

    253

  • 15

    INTRODUO

    avmh.n de. le,gw umi/n( o[pou eva.n khrucqh/| to. euvagge,lion eivj o[lon to.n ko,smon(

    kai. o] evpoi,hsen au[th lalhqh,setai eivj mnhmo,sunon auvth/j

    Em verdade digo a vocs,

    em qualquer lugar do mundo onde o Evangelho seja pregado

    o que ela fez tambm ser contado

    para sua memria.

    Mc 14.9

    O tema de nossa pesquisa a memria e a identidade das comunidades que geraram os

    evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. Estes trs evangelhos ficaram conhecidos como os

    Evangelhos Sinticos desde que, no sc. 18, J.J. Griesbach (1745-1812) elaborou uma

    pesquisa sintica dos evangelhos para estudo comparativo. A partir da, diversas pesquisas

    foram desenvolvidas, tanto sobre os Evangelhos e sua formao literria quanto sobre o Jesus

    que era descrito neles.

    A nossa proposta nesta pesquisa toma como ponto de partida metodolgico alguns

    elementos que hoje so considerados importantes no estudo das sociedades e grupos da

    Antiguidade: primeiro, o fato de que a oralidade fazia parte da sociedade greco-romana e do

    mundo judaico, tanto quanto a textualidade. Por isso o estudo de grupos como os seguidores

    de Jesus no pode desconsiderar que a elaborao dos textos dos Evangelhos Sinticos foi

    influenciada por essa dupla dimenso, oral e escrita. A oralidade precisa ser estudada com

    mais afinco, pois o modelo da Teoria das Duas Fontes, elaborado a partir do sc. 19, se

    mostrou marcado pela abordagem textual, um anacronismo do mundo impresso para com o

    mundo manuscrito.

    Tendo em mente essa perspectiva, possvel desenvolver uma teoria da tradio sobre

    Jesus que rena elementos orais e escritos, no de forma evolutiva ou linear, um aps o outro,

    mas em relao mtua, com uma dinmica fluda na sociedade onde as comunidades

    seguidoras de Jesus estavam. Os feitos e ditos de Jesus, e especialmente as narrativas que

    demonstravam ser ele o Messias foram memorizadas e divulgadas comunitariamente, em

    ambientes em que a oralidade tinha a mesma fora do texto escrito.

    Outro ponto importante para nossa pesquisa est relacionado com a motivao para

    transformar essas memrias sobre Jesus em texto escrito, no fragmentos, mas uma narrativa

  • 16

    contnua que recordasse de maneira cronolgica quem foi Jesus. A abordagem que

    escolhemos para essa pesquisa a de que os Evangelhos Sinticos representam memrias

    coletivas cujas narrativas apontam a identidade das comunidades. Esses textos foram

    motivados por situaes concretas em que a existncia comunitria est em risco ou sendo

    questionada, e se tornaram produo cultural para os crentes em Cristo do mundo greco-

    romano. Por isso nossa abordagem no tem a perspectiva redacional, como usualmente se faz

    no estudo dos Sinticos. Se levarmos em conta que a oralidade e a textualidade eram foras

    fludas, em torno da memria coletiva, ento possvel dizer que mesmo havendo textos

    escritos era possvel que as comunidades reelaborassem as memrias, segundo novas

    situaes e preocupaes. Isso se dava inclusive pela performance oral do texto escrito, com

    isso a abordagem redacional clssica, que coloca os autores dos evangelhos como leitores de

    suas fontes, interferindo no texto, torna-se incoerente.

    Cabe nossa pesquisa demonstrar de que modo essa memria foi elaborada, e que

    elementos tornavam possvel a manuteno dela. Por outro lado, a identidade tambm tem a

    ver com a memria do grupo, pois a memria forja o conceito que tanto o indivduo quanto o

    grupo tem sobre si mesmo. Ento, como os Evangelhos trabalham essa correlao entre

    memria e identidade? Que indcios de identidade eles apontam?

    Reconhecemos tambm que a identidade resultado de outros fatores, dentre eles o

    conflito entre grupos que tem proximidade de ideais, mas que se confrontam em busca de

    espao de legitimao e poder. Possivelmente, os Evangelhos Sinticos nasceram em

    situaes de muito conflito e necessidade de controlar a tradio, para que a comunidade

    tivesse clareza quanto sua identidade, e consequentemente, o seu lugar no mundo greco-

    romano. E o conflito das comunidades seguidoras de Jesus era com o mundo judaico no qual

    viviam, com diferentes matizes e compreenses sobre as Escrituras, todas em busca de

    significado.

    Por isso destacamos o conflito em torno do Sbado por ser importante elemento de

    marca identitria para os grupos judaicos. A forma como as comunidades seguidoras de Jesus

    interpretaram e vivenciaram o Sbado, marca este embate. Segundo os textos que sero

    estudados aqui, elas se baseavam no prprio mestre delas, que interpretou a guarda do Sbado

    numa nova perspectiva, pelo menos em relao a alguns grupos radicais que primavam pela

    rigorosa observncia da Lei mosaica. Em contrapartida, percebe-se que os textos de Marcos,

    Mateus e Lucas apontam para diferenas na forma de tratar o problema, inclusive com verses

    prprias daquilo que Jesus falou. Neste sentido ser o Sbado um elemento identitrio para as

    comunidades seguidoras de Jesus? Em que ponto essas comunidades esto em relao ao

  • 17

    mundo judaico do qual fazem parte? Esse um dos pontos mais importantes que estudaremos

    na pesquisa.

    Para analisar essas questes dividimos a tese em quatro captulos, que elaboram esses

    aspectos de modo progressivo e orgnico. O captulo 1 ter como foco o estudo sobre a

    memria coletiva ou social e sua relao com a tradio oral, tanto na sociedade greco-

    romana em geral quanto no ambiente das comunidades protocrists. O conceito de memria

    oral seguir a teoria de Maurice Halbwachs, Jel Candau e outros, alm dos pesquisadores

    sobre os Evangelhos que se apoiaram neles para desenvolver novas abordagens. Considerando

    a importncia da tradio oral para as comunidades protocrists, e como os Evangelhos

    Sinticos fixaram, de certo modo, essa tradio, ser analisado o conceito de tradio

    inventada elaborada por Eric Hobsbawn, que permite enxergar a situao sob um novo

    prisma.

    A partir da, o captulo 1 tratar da tradio oral, que aqui ser denominada de tradio

    de Jesus, levando em conta os elementos de oralidade e textualidade que desenvolvemos

    acima, de forma mais contundente e elaborada. Um aspecto importante contextualizao

    poltico-social na qual se deu essa tradio, pois levamos em conta que as circunstncias tm

    efetivo peso sobre a vida humana, individual e coletiva, e sobre a produo intelectual

    derivada dela. A partir da estudaremos a dinmica entre oralidade e textualidade, perceber o

    quanto um pesa sobre o outro, inclusive na intertextualidade, fenmeno normalmente

    relacionado apenas ao texto escrito, mas que tomar aqui uma dimenso mais ampla.

    Metodologicamente, sero mapeados diversos textos dos Sinticos onde dois elementos

    indicirios o uso do Antigo Testamento e a memria de ditos de Jesus conhecidos como

    aforismos so utilizados para definir o ethos comunitrio.

    No captulo 2, estudaremos o tema da identidade, focando os grupos intrajudaicos.

    Essa abordagem toma como princpio os estudos de Jacob Neusner e o conceito de judasmo

    formativo, que compreende o judasmo do sc. 1 d.C. como uma pluralidade de movimentos

    vinculados entre si por elementos ou marcos identitrios comuns, dentre eles a Tor, a

    circunciso e a guarda do Sbado. Considerando que identidade um tema universal e

    abrangente, primeiro vamos analisar o conceito elaborado por Zygmunt Bauman, Peter Burke

    e Jan Stetz sobre identidade social. Outra vez necessrio diferenciar um conceito: a ideia de

    invidualidade como conhecida hoje nasceu na modernidade; no mundo da Antiguidade o

    que define a identidade de algum a pertena, no a essncia. Por isso pertencer a um grupo

    era to importante, para defend-lo da ameaa de esvaziamento ou dissolvio fundamental.

    O conflito torna-se eixo para compreenso da motivao do grupo, por isso ser objeto de

  • 18

    estudo, especialmente pela vertente de Louis Kriesberg e Jonh G. Gager. Isso ocorre em

    especial com o judasmo plural do sc. 1 d.C., denominado por alguns de judasmos.

    Com esse aporte terico elaborado, faremos uma anlise do lugar do grupo de Jesus

    como parte do mundo intrajudaico e no margem dele. Tomando por base os estudos

    sociolgicos clssicos sobre seita e faco, ser possvel delimitar o lugar das comunidades

    seguidoras de Jesus e at mesmo definir uma nomenclatura que atribua-lhes o melhor

    significado no mundo judaico-romano. Em termos metodolgicos, ser o momento de analisar

    os textos evanglicos sobre o conflito com os demais grupos judaicos, pelos mais diversos

    motivos. Em grande parte pode-se adiantar que a busca de legitimidade um dos motivadores

    de vrios conflitos.

    Ainda no captulo 2, apresentaremos o objeto de estudo principal, os elementos

    identitrios que nos ajudaro a compreender a posio das comunidades protocrists dentro

    dos Evangelhos. Os marcos identitrios do judasmo tinham como principal funo

    estabelecer as fronteiras, para definir que era ou no judeu. A delimitao das fronteiras uma

    das maneiras mais eficazes de definir a identidade do grupo. E dentre os marcos identitrios

    que os judeus tinham para estabelecer suas fronteiras estava o Sbado.1 Demonstraremos sua

    importncia e delimitando seu lugar na vida dos judeus do sc. 1 d.C., especialmente aps o

    ano 70, quando o Templo de Jerusalm foi destrudo pelos romanos.

    Se o Sbado era to importante para a identidade judaica, ento preciso estudar o

    quanto as comunidades de Jesus estavam ligadas ou no guarda desse dia sagrado. Esse o

    tema do captulo 3, e para isso faremos uma leitura acurada da memria dessas comunidades

    sobre como Jesus lidou com o Sbado, e os conflitos em torno dele. As percopes separadas

    para tal estudo so Mc 2.23-28, Mt 12.1-8 e Lc 6.1-5, a partir das quais procuraremos

    responder questes centrais para nossa tese: o que as comunidades de Marcos, Mateus e Lucas

    afirmaram a respeito do Sbado? Como lidaram com a memria dos ditos de Jesus a respeito

    do assunto? Qual o marco identitrio que cada comunidade quer indicar ao lidar com o tema?

    O que as diferenas entre as memrias indicam?

    Metodologicamente, cada percope ser analisada em quatro passos: (1) o texto grego

    e sua traduo; (2) uma anlise narrativa, a partir do conceito que alguns autores tm

    defendido, isto , a ideia da Bblia como literatura; (3) uma anlise do uso das memrias de

    1 Tenho aqui que reconhecer minha dvida com o prof. Dr. Paulo Roberto Garcia, pois sua pesquisa sobre o

    Sbado em Mateus foi de enorme contribuio para o desenvolvimento da minha pesquisa, a comear por me

    indicar o objeto de pesquisa central da tese. Evidentemente que a abordagem da presente pesquisa faz outros

    caminhos e utiliza outras fontes, mas isso tambm proposital para que eu no repita a pesquisa j realizada por

    ele. Nesta pesquisa, alm de ampliar a leitura para os Evangelhos de Mateus e Lucas, desejamos identificar a

    relao entre memria e tradio, e como elas apontam a identidade das comunidades geradoras desses textos.

  • 19

    cada comunidade no texto, ao situar cada percope dentro da obra e uma estrutura geral desta;

    (4) uma anlise semntico-teolgica do texto, destacando os aspectos que representam as

    ideias centrais de cada escrito em sua particularidade. A respeito da anlise narrativa e

    redacional de cada Evangelho, como j destacado, ser levado em conta um dinamismo entre

    oralidade e textualidade que possivelmente moldou a forma como os textos foram elaborados,

    alm da motivao de cada um em seu escrito.

    Num segundo momento do captulo, faremos uma anlise sintica dos textos, para

    apontar os fluxos de oralidade e intertextualidade que esto presentes nos textos.

    Posteriormente, uma anlise global sobre o conflito a respeito do Sbado nos Sinticos,

    especialmente na perspectiva identitria, nos ajudar a perceber que identidade os textos

    apontam. Para tanto, ser usada uma tipologia identitria, da qual faz parte a maneira como o

    outro descrito. No caso do texto em questo, so os fariseus foco da crtica.

    Finalmente, o captulo 4 pretende consolidar a anlise, considerando que as memrias

    das comunidades elaboraram a identidade messinica de Jesus a partir de narrativas que sero

    mapeadas no primeiro tpico. Mais uma vez, diversas anlises sinticas sero feitas, de forma

    menos aprofundada, para demonstrar os indcios de memria comum aos Sinticos, inclusive

    outros escritos cristos; como esse conjunto de memrias veio a ser tornar textos completos,

    com gnero prprio, relacionados identidade do grupo gerador do texto.

    Os estudos sobre gneros literrios e origem geogrfica do escrito ou locus literrio

    , passam a ter destaque para que perceba o contexto dos Evangelhos no mundo literrio do

    sc. 1 d.C. O gnero literrio define o leitor implcito da obra, bem como seu objetivo como

    tal, por isso importante investiga-lo. Diversos autores trabalharam a pertena dos

    Evangelhos a um gnero ou outro, mas no h um consenso definitivo. A partir da poderemos

    fazer uma aproximao terica sobre a identidade das comunidades protocrists siro-

    palestinenses nas trs expresses identificadas pelos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, a

    partir de suas narrativas sobre Jesus. Esperamos assim, colaborar com a pesquisa e o

    conhecimento na rea do Novo Testamento, compreendendo melhor o papel dos Evangelhos

    para as comunidades que os geraram, e que deixaram suas narrativas para levar ao mundo a

    memria de annimos e annimas, como a mulher que ungiu Jesus com leos (cf. Mc 14.3-

    11), vivendo sua f no mundo judaico e greco-romano. Sem essas pessoas e suas memrias o

    prprio Evangelho perderia o sentido.

  • 20

    CAPTULO I

    MEMRIA COLETIVA E TRADIO ORAL NOS

    EVANGELHOS SINTICOS

    A memria social frequentemente um tipo de narrativa da memria.

    Samuel Byrskog, Story as History History as Story

    A anlise da identidade nos Evangelhos Sinticos tem seu ponto de partida no estudo

    sobre memria coletiva e a tradio oral que ajudou a forjar os textos sinticos como obras

    literrias. Por isso, esse captulo far uma exposio sobre esses dois temas, tomando como

    ponto de partida o conceito de memria coletiva segundo cunhada por Maurice Halbwachs e

    outros pensadores sociais, e como foi recebida por pesquisadores da rea do Novo

    Testamento. O conceito de memria coletiva acaba evocando a ideia de tradio, que tem

    efetiva relao com a formao dos Evangelhos Sinticos, o que leva ao conceito j

    consolidado de tradio inventada de Eric Hobsbawm. A partir da, ser possvel fazer a

    correlao desses conceitos das cincias sociais com a anlise dos textos do Novo Testamento,

    considerando novas pesquisas sobre o tema, mas compreendendo que a maneira como os

    Evangelhos Sinticos so entendidos tm grande influncia da pesquisa histrico-crtica e de

    pressupostos que foram elaborados por ela para cada evangelho.

    O segundo momento da anlise deste captulo ter como foco a tradio oral, que pode

    tambm ser denominada tradio de Jesus, pois tem relao especialmente com o que ele

    disse. O debate sobre a tradio oral antigo e ser exposto de maneira sucinta, com o intento

    de demonstrar novos conceitos sobre o tema, como ele hoje explica o processo que se deu nas

    primeiras dcadas aps Jesus criar seu movimento, at o registro nos Sinticos. Para tanto,

    feita uma descrio da situao poltica e social que fomentou a tradio oral a elaborar os

    Evangelhos e a concepo efetiva de como essa oralidade se deu ser fruto de exposio e

    anlise.

    Por fim, o captulo ter como estudo a dinmica entre oralidade e textualidade, para

    que se perceba de que modo a tradio oral se constituiu texto, e qual a relao entre ambos. A

    pesquisa far uma avaliao da discusso em torno do tema na Antiguidade, suas implicaes

  • 21

    para o estudo dos Sinticos, bem como apontar nos textos, efetivamente, elementos que

    indiquem o fenmeno da oralidade e da intertextualidade, demonstrando o quanto os

    Sinticos esto permeados de memria coletiva. Para tanto, sero utilizados dois recortes: o

    uso da tradio escrita judaica, o Antigo Testamento e os ditos de Jesus denominados

    aforismos, que tm como objetivo definir o ethos comunitrio de seus seguidores.

    1.1. MEMRIA E TRADIO NO PROCESSO IDENTITRIO DOS SINTICOS

    1.1.1. Memria coletiva e tradio na elaborao da identidade do grupo

    A identidade est relacionada com a memria do grupo que gera uma tradio,

    especialmente sobre sua gnese. A tradio oral na transmisso dos logia (ditos) de Jesus foi

    fundamental na formao da identidade das comunidades protocrists, considerando que Jesus

    pregou numa sociedade iletrada, fundamentalmente rural. Levando-se em conta que a

    oralidade depende da memorizao, pode-se afirmar que essa memria fundante foi a

    responsvel pela tradio que gerou os Evangelhos. Por isso, iniciamos este captulo com o

    conceito de memria coletiva ou memria social.

    No prefcio da obra seminal de Maurice Halbwachs, La Memire Collective (1950),

    Jean Duvignaud afirma que a memria est cercada de significados a partir de situaes de

    crise vividas pela coletividade, vinculados sociedade como um todo, no de forma isolada.

    Isto explica talvez porque razo, nos perodos de calma ou de rigidez momentnea das

    estruturas sociais, a lembrana coletiva tem menos importncia do que dentro dos perodos

    de tenso ou crise e l, s vezes, ela torna-se mito.2 Essa formulao se fundamenta no

    conceito de memria social, o que trata a memria a partir das estruturas sociais que

    compem a vivncia individual. A abordagem de Halbwachs fundamenta o estudo da relao

    entre tradio oral, memria e o uso do passado. Seu estudo toma como ponto de partida o

    fato de que a memria um fenmeno social, mesmo no mbito individual. Todas as nossas

    memrias esto implicadas socialmente com as memrias do grupo com o qual convivemos

    ou do qual nos originamos. Ainda que uma pessoa se afaste de um grupo, h uma memria

    comum entre eles, que influencia decididamente na forma como o passado ser lembrado.

    Alm disso, quando o grupo se divide, as partes no conseguem reproduzir o todo da memria

    comum, assim, ocorre um fenmeno coletivo em que vrios quadros do passado comum no

    coincidem e dos quais nenhum verdadeiramente correto.3 Dentro de uma comunidade, o

    indivduo est atrelado por dois movimentos de memria diferentes, s vezes divergentes: a

    2 HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 1990, p.14.

    3 HALBWACHS, Maurice. Idem, p.35.

  • 22

    memria viva dos acontecimentos passados e a reconstruo dos eventos passados a partir do

    presente.

    Outras abordagens sobre o passado e a forma como ele contado podem ser indicadas

    para a compreenso da memria coletiva. o caso de Paul Thompson em seu estudo de

    histria oral, que reafirma o fato de que a histria sempre tem um propsito social, cuja

    premissa se verifica igualmente na histria oral, em que a memria social est em constante

    ao e transformao. Em seu trabalho, Thompson considera a histria oral to relevante

    quanto histria escrita, especialmente para a memria das famlias e grupos menores dentro

    do todo social, o que significa o registro das memrias de curto prazo, quando membros de

    um grupo ainda esto presentes.4

    Halbwachs destaca tambm a ideia de depoimento, que seria uma narrativa que s tem

    sentido em relao ao grupo do qual a pessoa faz parte, pois supe acontecimentos reais

    vividos em comum no passado, dependendo da evoluo do grupo e da pessoa que o atestam.

    Curiosamente, para ele, a memria de um grupo s colocada por escrito quando a memria

    de uma seqncia (sic) de acontecimentos no tem mais por suporte um grupo, aquele mesmo

    em que esteve engajada ou que dela suportou as conseqncias (sic),5 porque o texto escrito

    no se perde e seria a nica maneira de guardar as lembranas. Para o estudo dos grupos

    protocristos, isso significaria um problema sobre a natureza dos escritos evanglicos; haveria

    um grupo que os suportasse ou de fato esses textos no representam a memria de uma

    coletividade, sendo ento uma histria sobre Jesus escrita por algumas pessoas interessadas

    em preservar sua memria? O prprio Halbwachs indica uma resposta: para ele, h uma

    distino entre memria coletiva e histria, na qual a primeira uma corrente de pensamento

    contnuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, j que retm do passado somente

    aquilo que ainda est vivo ou capaz de viver na conscincia do grupo que a mantm.6

    Somente um perodo especfico interessa ao grupo; quando h mais de um perodo retratado

    na memria, na verdade h dois grupos envolvidos. Neste sentido, a influncia do tempo na

    formao da memria coletiva considerada preponderante para Jan Assmann: uma memria

    de curta durao, ou de um perodo contemporneo ao grupo que a elabora, deve ser

    considerada uma memria comunicativa. A memria cultural, que estaria vinculada ao

    processo da memria coletiva pesquisada por Halbwachs, demanda um tempo imemorial,

    4 THOMPSON, Paul. The Voice of the Past, Oral History. 3

    a ed. Oxford: Oxford University Press, 1988, p.8ss.

    Importante no estudo de Thompson que as fontes orais so subjetivas, porque so geradas pelo testemunho

    falado, cf. p.118. 5 HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva, p.80.

    6 HALBWACHS, Maurice. Idem, p.81s.

  • 23

    ligado a tradies ancestrais que se tornaram cristalizadas na vivncia do grupo,

    especialmente nas sociedades onde a oralidade o principal meio de comunicao social.7

    Tambm, Halbwachs defende que a durao da vida das pessoas influencia

    decisivamente esse mecanismo de registro; se as pessoas vivessem menos tempo no haveria

    essa dificuldade, pois haveria constantes mudanas. Alm disso, no h memria coletiva

    que no se desenvolva num quadro espacial,8 sendo o espao o lugar social da memria para

    os diferentes grupos. Os Evangelhos de forma alguma podem ser categorizados como histria,

    porque no retratam um perodo de longa durao, nem foram escritos parte da vivncia

    comunitria daqueles que so retratados direta ou indiretamente nas narrativas, eles guardam

    em si diversas caractersticas relacionadas com a memria coletiva, como veremos adiante.

    Para o antroplogo francs Jel Candau, a memria coletiva inscreve-se no conceito

    de metamemria, em que a pessoa constri sua identidade pela afiliao ao seu passado:

    De fato, em sua acepo corrente, a expresso memria coletiva uma

    representao, uma forma de metamemria, quer dizer, um enunciado que

    membros de um grupo vo produzir a respeito de uma memria

    supostamente comum a todos os membros desse grupo.9

    No pensamento de Candau, fundamentado nos conceitos de habitus e estrutura

    estruturante de Bourdieu, a metamemria uma representao da faculdade da memria, em

    que esto em ao a protomemria (relacionada ao habitus, seria uma memria imperceptvel)

    e a memria de alto nvel (que so as lembranas individuais). Para Candau, memria coletiva

    est no mbito das comunicaes geradoras da retrica holista, responsveis pelas narrativas

    que compem a identidade de um grupo, embora haja dificuldades em relacionar os diferentes

    elementos subjetivos e objetivos nesse mecanismo. Isso ocorre, porque fcil confundir a

    capacidade de recordar os fatos comuns com a condio real de transcrever essas lembranas,

    como se o texto pudesse dar conta de toda a memria envolvida. Desse modo, o texto

    resultante no a total expresso da memria coletiva, mas uma plida manifestao dessa.10

    Candau expressa essa ideia da seguinte forma:

    a existncia de um discurso metamemorial um indicador precioso,

    revelador de uma relao particular que os membros de um grupo

    considerado mantm com a representao que eles fazem da memria desse

    7 ASSMANN, Jan. Cultural memory and Early Civilization. Writing, Remembrance, and Political Imagination.

    Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p.41. 8 HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva, p.143. No desenvolvimento desse conceito espacial Halbwachs

    faz distino entre o espao econmico e o espao religioso. A distino conceitual tem sua razo de ser na

    sociedade contempornea, onde esses espaos podem ser vivenciados de forma separada. No entanto, para o

    estudo das sociedades antigas, essa separao bastante tnue, em alguns casos inexistente, acrescentada ainda a

    estas a dimenso poltica na dinmica social dos grupos, conforme os estudos recentes tm demonstrado. Sobre

    isso, ver as consideraes iniciais de Richard Horsley em sua obra Jesus e o Imprio, p.12ss. 9 CANDAU, Jel. Memria e Identidade. So Paulo: Contexto, 2011, p.24.

    10 CANDAU, Jel. Idem, pp.31-34.

  • 24

    grupo, e, de outro lado, esse discurso pode ter efeitos performativos sobre

    essa memria, pois, retomado por outros membros, esse discurso pode reuni-

    los em um sentimento de que a memria coletiva existe e, por esse mesmo

    movimento, conferir um fundamento realista a esse sentimento.11

    Semelhantemente, Jeanette Rodriguez compreende que a metamemria a capacidade

    coletiva de dar significado ao cotidiano, o que torna a memria cultural um bem comum que

    estabelece significado e auxilia na compreenso de mundo.12

    Entretanto, importante

    perceber que se trata de representaes da memria, no a totalidade dela. Tais representaes

    podem ser subscritas em categorias verificveis, quais sejam representaes factuais (as

    representaes relativas existncia de certo fato) e as representaes semnticas (relativas

    ao sentido dado a esses mesmos fatos). Em relao s primeiras, o grau de pertinncia ou

    seja, a unidade da memria do grupo em relao s representaes bastante grande. J as

    da segunda tendem a ser menores. Os critrios para avaliar o grau de pertinncia nas

    representaes do grupo variam segundo a frequncia da repetio dessas e depender do

    tamanho do grupo (quanto menor o grupo maior a pertinncia), tanto para as representaes

    factuais quanto para as semnticas. Estas, contudo, estaro consideravelmente sujeitas

    permeabilidade da dvida que depender de fatores internos (capacidade da liderana atravs

    de seu carisma de manter e organizar as representaes) e externos (interao com outros

    grupos, diferentes ou semelhantes).13

    Em relao ao estudo do Novo Testamento, j existem algumas abordagens que levam

    em conta as pesquisas sobre a memria coletiva. o caso da pesquisa de Alan Kirk e Tom

    Thatcher, em que aproximam as pesquisas de Halbwachs e outros socilogos com os estudos

    do Novo Testamento, pelo vis da memria em sua estrutura social e seus efeitos sobre a

    identidade do grupo.14

    Paralelamente, Samuel Byrskog tem pesquisado o tema, procurando

    demonstrar os mecanismos orais que perpassam o texto escrito, ele tem como base a histria

    oral. Byrskog concorda com Kirk quanto ao fato dos pesquisadores do Novo Testamento

    11

    CANDAU, Jel. Memria e Identidade, p.34 12

    RODRGUEZ, Jeanette; FORTIER, Ted. Cultural Memory. Resistance, Faith & Identity. Austin: University of

    Texas Press, 2007, p.109. 13

    CANDAU, Jel. Idem, p.44. Candau faz questo de afirmar que discorda de Halbwachs na sua abordagem

    sobre a memria individual em relao coletiva, como sendo a instncia em que o indivduo deposita suas

    lembranas pessoais. E deixa entrever que o conceito de memria coletiva de Halbwachs falho em sua

    concepo, quando comparado ao conceito de metamemria, p.36. Optamos pelo uso da terminologia de

    Halbwachs, que tem sido amplamente aceita e utilizada nas pesquisas, considerando, todavia, a ideia de que so

    representaes da faculdade da memria, segundo o conceito deste autor. 14

    KIRK, Alan; THATCHER, Tom (Ed.). Memory, Tradition, and Text. Use of the Past in Early Christianity.

    Semeia Studies 52. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2005.

  • 25

    terem ignorado a relevncia e potencial dos estudos sobre oralidade para os textos bblicos,

    especialmente dos Evangelhos.15

    Em seu trabalho sobre a tradio oral, considerada como memria social, Kirk e

    Thatcher avaliam que o desaparecimento da memria como categoria analtica na pesquisa

    bblica pode ser atribuda a vrios fatores, mas especialmente aos efeitos da crtica das

    formas, que tende a se prender no texto escrito e definido rigidamente como tradio recebida.

    Na verdade, deve-se pensar num movimento coletivo em que a compreenso do passado por

    meio da celebrao est em negociao com as vivncias presentes. Dessa maneira, tradio e

    memria no podem ser desmembradas, mas esto em constante relao de influncia

    mtua.16

    O conceito de tradio que advm da memria coletiva no pode ser confundido com a

    ideia de algo rgido e fixado segundo normas coletivas bem definidas. Pelo contrrio,

    preciso avaliar a compreenso acerca do conceito de tradio, como na abordagem de Eric

    Hobsbawm que indicou como as tradies so construdas historicamente ou, segundo sua

    definio, inventadas. Conforme ele mesmo declara,

    O termo tradio inventada utilizado num sentido amplo, mas nunca

    indefinido. Inclui tanto as tradies realmente inventadas, construdas e

    formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais

    difcil de localizar num perodo limitado e determinado de tempo s vezes

    coisa de poucos anos apenas e se estabeleceram com enorme rapidez.17

    Numa perspectiva literria, porm, pode-se falar dessa tradio fixada textualmente

    como narrativa realista, no dizer de Ched Myers, a partir da qual elementos da memria

    coletiva so preservados e fixados, talvez com o fim de no sofrerem outras alteraes que

    interfiram no significado comum f. Segundo Myers, a narrativa realista requer

    simultaneamente a autonomia da literatura e plausibilidade da redao histrica; ela ao

    mesmo tempo contempornea e afastada do leitor.18

    Hobsbawm conceitua a tradio inventada segundo alguns princpios reguladores,

    como um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcitas ou abertamente

    aceitas; (...) visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o

    15

    BYRSKOG, Samuel. Story as History History as Story, The Gospel Tradition in the Context of Ancient Oral

    History. Boston: Brill Academic Publishers, Inc., 2002. Ele faz um levantamento dos pesquisadores do Novo

    Testamento que tm analisado os textos pelo vis da histria oral. A base terica apontada por ele de Paul

    Thompson e o princpio da histria oral, p.33ss. 16

    KIRK, Alan; THATCHER, Tom (Ed.). Memory, Tradition, and Text, p.1ss. 17

    HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Org.). A inveno das tradies. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002,

    p.9. 18

    MYERS, Ched. O evangelho de So Marcos. So Paulo: Edies Paulinas, 1992, p.140.

  • 26

    que implica, automaticamente, uma continuidade em relao ao passado.19

    Isso se aplica a

    aspectos das sociedades os mais generalizados, mas sempre relacionados organizao social,

    que tenham uma importncia ideolgica na estrutura social, sem a qual o grupo ou instituio

    corre o risco de perder sua identidade e funo. Para Hobsbawm, a repetio do passado, que

    gera a inveno de uma tradio, pode gerar novas tradies: o passado pode ser

    reinterpretado, ou ter um novo uso, segundo as necessidades que a sociedade exige, fazendo

    uso, inclusive, de velhos elementos com novo significado. Esse confronto entre o novo e o

    velho, que gera a inveno de tradies, se d no porque os velhos costumes no estejam

    mais disponveis nem sejam viveis, mas porque eles deliberadamente no so usados, nem

    adaptados.20

    Isso gera rupturas e ressignificaes que passam agora a fazer parte do

    repertrio das instituies que acolheram essas mudanas.

    Os estudos de Hobsbawm e os demais autores da pesquisa aprofundaram-se nas

    tradies de costumes e prticas relacionadas com a Inglaterra e demais pases do Reino

    Unido, especialmente nos ltimos sculos. Todavia, essas pesquisas podem ser aplicadas aos

    estudos sobre o protocristianismo, a se considerar os aspectos apontados acima. Esta

    abordagem traz tona uma indagao sincera: seriam os Evangelhos um grupo de escritos que

    fixou uma srie de tradies inventadas em relao a Jesus de Nazar? Sobre isso, a pesquisa

    debater mais adiante. Halbwachs tambm tratou do tema da tradio em sua pesquisa, ao

    contrapor a memria coletiva com a histria. Para ele, a memria coletiva responsvel por

    gerar as tradies que tornam o grupo coeso, enquanto a histria apenas pretende relacionar os

    eventos dentro de um contexto cronolgico maior.21

    Werner Kelber questionou exatamente a viso monoltica sobre tradio, baseada

    quase totalmente nos textos como base para a sua formao. Ele prope uma abordagem que

    segue a linha de pensamento de Hobsbawm e usa o conceito de biosfera para indicar as

    dinmicas que perpassam a tradio. Segundo ele,

    Tradio (...) uma contextualizao socioambiental ou biosfera na qual

    oradores e ouvintes vivem. Isso inclui textos e experincias transmitidas

    atravs ou derivadas de textos, mas que no pode m ser reduzidas intertextualidade. Tradio em seu sentido mais amplo quase totalmente

    um nexo invisvel de referncias e identidades pelas quais um povo delineia

    seu sustento, no qual vive, e em relao com ela estabelecem sentido para

    19

    HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Org.). A inveno das tradies, p.9. [Destaques nossos] 20

    HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Org.). Idem, p.16. 21

    HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva, pp.85,108. O conceito dele a respeito de histria bastante

    convencional e crtico em relao aos estudos da microhistria. Afirma: reprovamos ainda algumas vezes, ao

    labor histrico esse excesso de especializao e o gosto extremo pelo estudo detalhado que se desvia do conjunto

    e toma de alguma forma a parte pelo todo (p.85).

  • 27

    suas vidas. A biosfera invisvel de fato o mais fugidio e fundamental trao

    da tradio.22

    Dessarte, quando se fala da tradio a respeito de Jesus, que fundamentou as

    comunidades protocrists, h uma referncia a essa dinmica entre oralidade e textualidade,

    num ambiente social em que ambas tinham igual importncia na formao da memria do

    passado em termos de autoridade e relevncia. A respeito dessa abordagem sobre as tradies,

    Alan Kirk considera que seja uma poltica de memria, o fato dos eventos lembrados

    tornarem-se parte da construo da sociedade, onde a memria serve no para reconstituir o

    passado, mas para reconstru-lo a partir das novas vivncias, agindo, assim, definitivamente

    na identidade da comunidade. Neste sentido, deve-se falar em re-construo da identidade, a

    partir da re-construo do passado.23

    Levando-se em conta que as evidncias que existem hoje da memria e tradio do

    protocristianismo so os relatos dos Evangelhos Sinticos dentre outros textos, cannicos

    ou no , toma-se o papel das narrativas como registro das memrias. Baseando-se em Roland

    Barthes, os pesquisadores Jeanette Rodrguez e Ted Fortier defendem que um grupo s existe

    a partir de suas narrativas. Dessa maneira, pode-se afirmar que as comunidades so

    constitudas de narrativas; elas evidenciam o grupo como ele , o que legitima seus ideais e

    aspiraes, provm importantes fronteiras com aqueles que no fazem parte dele e

    estabelecem sua identidade cultural como grupo.24

    Cabe verificar at que ponto os

    Evangelhos Sinticos so narrativas que expressam a memria coletiva de grupos

    protocristos judaicos.

    1.1.2. Os Evangelhos Sinticos como memria coletiva ou social

    Se a identidade do grupo est vinculada ao discurso dele sobre si mesmo e sobre o

    outro, ento h uma relao intrnseca entre os Evangelhos Sinticos e as comunidades

    protocrists. Entretanto, ao tom-los como representao da memria coletiva de

    comunidades protocrists, no se pode ignorar que desde o sc. 2 eles foram associados aos

    apstolos e por causa disso vistos como escritos autorais. Os manuais e tratados mais

    tradicionais de introduo ao Novo Testamento normalmente tm esse conceito em mente

    quando falam da redao dos Evangelhos Sinticos, por conta das abordagens histrico-

    22

    KELBER, Werner. Jesus and Tradition: Words in Time, Words in Space, In: DEWEY, Joanna. Orality and

    Textuality in Early Christian Literature. Semeia 65. Atlanta: SBL, 1995, p.159. [Traduo e destaques nossos] 23

    KIRK, Alan; THATCHER, Tom. (Ed.) Memory, Tradition, and Text, p.13. 24

    RODRGUEZ, Jeanette; FORTIER, Ted. Cultural Memory. Resistance, Faith & Identity, p.8.

  • 28

    crticas.25

    Na verdade, boa parte dos manuscritos mais antigos j apresentavam de uma forma

    ou de outra as associaes com Marcos, Mateus e Lucas.26

    Justino Mrtir, em sua Primeira

    Apologia, apresenta os escritos evanglicos como apomnh/moneumata tw/n apostolw/n

    traduzida em geral por memria dos apstolos , que se tornaram conhecidos como

    Evangelhos.27

    O termo apomnh/moneumata significa lembrana, daquilo que foi lembrado a

    partir de, ou ainda fazer a memria de alguma coisa. Ao mesmo tempo, Justino associou

    essa memria com os Evangelhos que surgiram para anunciar as boas coisas que Deus fez em

    favor das pessoas, aspecto que foi mais destacado na recepo de seu texto. Curiosamente, a

    citao dos evangelhos como as lembranas a partir dos apstolos no foi motivo de grande

    pesquisa. A histria da pesquisa sobre os evangelhos passou pelo desenvolvimento dos

    mtodos histrico-crticos, que permitiram analisar os textos dos evangelhos a partir de uma

    crtica racional histrica. Mtodos como a Anlise das Formas [Formgeschichte], segundo as

    pesquisas de Martin Dibelius (Die Formgeschichte des Evangeliums 1933), bem como de

    Rudolph Bultmann (Die Geschichte der Synoptischen Tradition 1921), alm de outros

    similares, foram o principal ponto de motivao das pesquisas que se deram a partir da.28

    Algumas dessas ferramentas utilizadas pelos mtodos mostraram-se eficazes para

    discutir questes como antiguidade dos textos, localizao e at mesmo pano de fundo

    histrico, desde que no se confunda narrativa e histria. Nesse caso, pode-se destacar o papel

    da Redaktiongeschichte (Histria ou Crtica da Redao), aplicada primeiro por Bornkamm,

    1948, ao evangelho de Mateus e por H. Conzelmann (1954), a Lucas.29

    A crtica da redao

    estabeleceu a ideia de que os evangelistas no so meros copistas, mas que interferiram nas

    tradies e fontes as quais tiveram acesso.

    25

    Dentre as obras que consideram os evangelistas autores individuais (sejam annimos ou concordantes com os

    nomes atribudos a eles) citamos: BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. Massachussets:

    Hendrickson, 1968 ; BUTTRICK, George A. et al (Ed.). The Interpreters Bible, Vol. VII, VIII. New York,

    Nashville: Abingdon Press, 1951; KMMEL,Werner G.. Introduo ao Novo Testamento; mais recentemente

    MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodrguez. Evangelios sinpticos y Hechos de los

    Apstolos. Navarra: Editorial Verbo Divino, 1992; MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos Sinticos. Formao,

    Redao, teologia. 2 ed. So Paulo: Paulinas, 2004. (entretanto, Marconcini leva em conta tambm a

    comunidade por trs do texto). 26

    Para Mateus, os pergaminhos atestam: kata Maqqaion (a, B), euaggelion katta Matqaion (D, W, f 13, 33, M, bo), agion euaggelion katta M. (f 1, al (boms), arch suv qew tou k. M. (1241 al), ek tou k. M. (L al). Para Marcos, os pergaminhos atestam: Kata Markon (a, B, pc), euaggelion k. M. (A, D, L, W, Q, f 13, 1. 33. 2427 M lat, to k. M. agion euaggel. (209. 579 al, vgcl). Para Lucas, os pergaminhos atestam: kata Loukan (a, B, pc vgst bo

    ms), eauggelion k. L. (A, D, L, W, Q, X, Y, 33, M, lat, samss bopt), to k. L. agion euagg. (209, 579, al), arch

    tou L. agiou euaggeliou (1241, pc). 27

    The First Apology, Cap. LXVII. In: ROBERTS, Alexander, DONALDSON, James (Ed.). Ante-Nicene

    Fathers, Vol. I, Buffalo: Public Domain, 1885, p.185. 28

    Sobre o panorama da pesquisa a respeito dos Evangelhos Sinticos ver a obra de MONASTERIO, Rafael A.;

    CARMONA, Antonio R. (Ed.). La investigacin de los Evangelios sinpticos y Hechos de los Apstoles en el

    siglo XX. Navarra: Editorial Verbo Divino, 1996. 29

    KMMEL, G. Werner. Introduo ao Novo Testamento. 17 ed. So Paulo: Paulus, 1982, p.54.

  • 29

    Neste caminho, desenvolveu-se o conceito de que o evangelista ao mesmo tempo

    intrprete e transmissor de uma tradio. Isso, porque entendeu-se que a redao indica uma

    intencionalidade no processo de formao do texto, diretamente vinculada ao ambiente

    vivencial dos evangelistas (Sitz im Leben), e expressa a identidade da comunidade

    representada no evangelho. Como diz Marconcini:

    Os evangelistas fazem parte de uma comunidade, para a qual se propem

    escrever e pela qual desempenham um papel de servidores da Palavra. Por

    isso, mais que a identidade do autor (Mateus, Marcos, Lucas) sobre a qual se

    fundamentava tanto a apostolicidade dos escritos como a veracidade dos

    contedos, procura-se agora privilegiar a identidade do escrito.30

    Desse modo, percebe-se que o foco da pesquisa passa do autor para a comunidade

    geradora do texto. Ao pensar numa comunidade, em vez de um autor individual, h um salto

    metodolgico, no qual o sentido teolgico do texto divide espao com o sentido poltico,

    social, econmico e simblico, com o mundo social no qual ele est localizado. Tudo indica

    que em muitos casos como os resultados da pesquisa da crtica da redao o uso dessa

    compreenso acerca da autoria dos evangelhos se deve ao fato desses nomes estarem ligados

    tradio da patrstica, desde Papias a Justino Mrtir. So utilizados muito mais por costume e

    didatismo do que por definio historiogrfica.31

    Na pesquisa recente, h uma tendncia em reforar o papel da comunidade na gerao

    do texto. Ainda que um escriba tenha sido responsvel por confeccionar o texto, ele

    considerado o resultado de um influxo coletivo de memria, a partir de situaes especficas

    que tornaram necessria a fixao da tradio oral em texto escrito. J em relao autoria,

    no h uma defesa sobre uma tendncia especfica: Richard Beaton, por exemplo, afirma que

    no quer reforar a existncia de uma escola de Mateus, ou que os documentos tenham sido

    escritos por uma comunidade ou comit coletivo, entretanto, no se pode negar que o

    documento tenha um grau de memria, interesses e linguagem comunitria, o que torna a

    pesquisa mais instigante.32

    Ento, o influxo coletivo est presente no texto, segundo a ideia de

    Beaton. Mas como possvel diferenciar as ideias individuais da influncia coletiva se s

    temos em mos o texto final dos Evangelhos? Samuel Byrskog aponta para uma soluo, em

    sua anlise do Evangelho de Mateus pelo vis da memria social; segundo ele,

    os grupos do cristianismo antigo podem ser vistos como comunidades

    mnemnicas emergentes que negociaram seu senso de pertena em relao

    ao ambiente largamente mnemnico do povo judeu. H uma batalha

    30

    MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos Sinticos, p.70. 31

    Como na anlise do Evangelho de Marcos proposta por MYERS, Ched. O Evangelho de So Marcos. So

    Paulo: Edies Paulinas, 1992, especialmente nas pp. 71-95. 32

    BEATON, Richard C. How Matthew writes. In: BOCKMUEHL, Markus; HAGNER, Donald A. The Written

    Gospel, p.116.

  • 30

    mnemnica a respeito do que se deve lembrar e o que se deve esquecer.

    Nesse processo, a memria social tinha meios efetivos de controle e

    formao da identidade.33

    A dificuldade, entre saber se o escrito fruto de um autor individual ou de uma

    comunidade geradora do texto, demonstra que necessrio fazer uma escolha, seja por uma

    autoria personalizada, seja pelo registro da memria coletiva. Optamos pela segunda vertente,

    ao considerar a ideia de que o texto reflete uma comunidade criadora, baseada na pesquisa j

    citada de Alan Kirk e Tom Thatcher, alm de Samuel Byrskog. Fundamentando-se em

    Maurice Halbwachs, Kirk e Thatcher afirmam que na ao recproca entre passado e

    presente, as realidades sociais atuais propiciam uma estrutura para a apropriao do

    passado.34

    Para os pesquisadores, essa metodologia justifica-se por conta de sete pontos de

    interseco entre a teoria da memria social e as origens do Cristianismo:35

    (1) Memria como categoria analtica mostrando a relao entre a formao da

    identidade de um grupo e as lembranas do passado a partir da situao do presente;

    (2) Formao da tradio e Transformao tradio aqui considerada a

    "substncia da memria". Isso, porque a tradio teria sua origem em atividades celebrativas

    da comunidade, em que h uma interao semntica entre fatos passados e as exigncias

    atuais das realidades sociais.

    (3) Tradio oral como memria cultural seguindo alguns especialistas de tradio

    oral, como Parry, Lord e Foley, a tradio oral no contedo mas modo de atuao, pois

    textos tradicionais so atualizados em contextos de recepo sob a restrio s normas e

    expectativas da audincia.

    (4) Evangelhos Escritos como artefatos celebrativos essa formulao ajudaria a

    responder questes como de que modo os Evangelhos so atos de recepo, recebendo

    tradio dentro das estruturas de memria condicionadas pelas condies sociais? Nesse caso

    os textos poderiam ter o papel de estabilizar o grupo, diante da presso interna e externa?

    (5) Celebraes crists antigas a ideia de que as comunidades identificam,

    determinam e interpretam seu passado, atravs de uma srie de atividades e prticas

    celebrativas, pode ser aplicada ao protocristianismo, demonstrando que as prticas distintivas

    dos cristos instruo, ritos, liturgias, credos, Evangelhos escritos, entre outras, evocam a

    memria de Jesus. Desta forma, possvel ter um modelo em que memria, tradio, rituais e

    os Evangelhos escritos podem ser analisados paralelamente.

    33

    BYRSKOG, Samuel. A New Quest for the Sitz im Leben: Social Memory, the Jesus Tradition and the Gospel

    of Matthew. In: NTS, 52, 2006, pp.323. [Traduo e destaques nossos] 34

    KIRK, Alan; THATCHER, Tom (Ed.). Memory, Tradition, and Text, p.33. 35

    KIRK, Alan; THATCHER, Tom (Ed.). Idem, p.40-42.

  • 31

    (6) Memria normativa a teoria da memria social se posiciona como sendo crucial

    conexo entre comemorao e formao mora, pois h uma relao entre gneros de

    discurso e memria, e funes integradas entre textos formativos e normativos. As narrativas

    que tipificam comportamentos, subordinadas aos ditos e pronunciamento nos Evangelhos,

    podem demonstrar um forte investimento na dimenso normativa da comemorao de Jesus,

    apontando para a construo tica da comunidade.

    (7) Continuidade e mudana no Cristianismo Antigo as posies tradicionais sobre a

    relao entre passado e presente no protocristianismo tendem a ser extremas: ou o presente

    replica a tradio do passado, ou reinventa o passado dentro do presente. A teoria da memria

    social permite compreender esse fenmeno com fluidez, entendendo que h continuidade e

    mudana na atualizao da memria.

    Os aspectos levantados por Kirk e Thatcher so relevantes, especialmente porque

    levam em conta o a memria como um fenmeno coletivo que influencia a formao das

    tradies. Alguns pontos, contudo, podem deixar novas questes em aberto, especialmente

    quanto possibilidade de analisar cada texto e definir claramente o que memria e o que

    tradio (memria normativa). O foco na presente pesquisa no est nessa distino, mas na

    percepo de que foi a memria coletiva que gerou os Evangelhos Sinticos. Se o texto foi

    produzido a partir da coletividade, tambm teve como objetivo a coletividade. Quanto a isso

    h pouca divergncia entre os pesquisadores. Em geral, todos concordam que os Evangelhos

    surgiram a partir de comunidades especficas; a discordncia est na localizao e

    caracterizao desses grupos.36

    A pesquisa tradicional toma como referncia alguns aspectos

    centrais no estudo dos Evangelhos Sinticos:

    a) O Evangelho de Marcos

    A concepo tradicional, a partir da Teoria das Duas Fontes, estabelece Mc como o

    texto mais antigo dentre os trs Sinticos, no h como refazer o caminho de sua construo

    por meios literrios. O pesquisador se obriga, ento, a pensar na tradio oral, que narra o fato

    se que a narrativa reporta a um fato ocorrido concretamente. Alguns autores, como

    Halford Luccock, defendem uma fonte escrita, talvez em grego. Segundo ele, por exemplo, a

    seo de 2.1-3.6 uma fonte prpria, qual ele chama de fonte da controvrsia. 37

    36

    Esse ser o foco do captulo 4, que analisar as comunidades a partir do recorte da memria e identidade. 37

    LUCCOCK, Halford E. The Gospel According to St. Mark. In: The Interpreter's Bible, Vol. VII, p.677.

    Apesar do carter conservador da obra The Interpreters Bible, em alguns aspectos ela segue as correntes

    histrico-crticas.

  • 32

    Uma posio que outros tm defendido a de que Marcos se baseou numa fonte

    aramaica, ou um Marcos primitivo, do qual fez o texto em grego. Maurice Casey um que

    defende essa perspectiva: ele chega mesmo a reconstruir o texto aramaico da percope de

    Mc 2.23-28, para provar sua tese.38

    Posteriormente, a aplicao foi efetiva a todo o Evangelho

    de Marcos. Neste trabalho, ele prope como mtodo traduzir o grego do evangelho para o

    aramaico por algumas razes: (1) apesar de a lngua franca do imprio romano ser o grego, h

    diversas evidncias documentais de que na Palestina, tanto o hebraico quanto o aramaico

    eram muito utilizados. O texto do Targum e vrios manuscritos encontrados nas cavernas de

    Qumran foram escritos em aramaico e hebraico, respectivamente; (2) segundo Casey, Jesus se

    comunicou em grego com seus ouvintes algumas vezes, que no tinham nacionalidade

    palestinense, bem como alguns discpulos seus tinham nomes gregos. Ainda assim, Jesus deve

    ter ensinado em aramaico e no em grego. (3) A evidncia interna dos textos, nos diversos

    momentos em que a fala de Jesus traduzida textualmente, indica que as palavras dele em

    aramaico foram conservadas. A partir disso, ele toma o vocabulrio aramaico encontrado nos

    rolos de Qumran, alm de outros textos judaicos, para reconstruir um possvel aramaico que

    originou o Evangelho de Marcos.39

    Essa pesquisa tende a se enveredar pelo mesmo caminho

    da pesquisa do Jesus Histrico: tenta refazer os passos at a ipsissima vox Iesu, como

    pretendia, pelo mesmo vis, Joachim Jeremias, nas dcadas de 1960-70.40

    De fato, mais adequada a posio de Helmut Koester que, em seu trabalho

    introdutrio do Novo Testamento, procurou demonstrar uma teoria confivel para as fontes de

    Marcos. Ele fez um levantamento da formao literria dos escritos do Novo Testamento,

    vinculados ao contexto sociocultural no qual se originaram. No caso dos evangelhos sinticos,

    ele os trata a partir de tradies agrupadas ao movimento cristo inicial, partindo da

    problematizao referente s fontes e teorias literrias. A teoria da formao dos evangelhos

    tratada por ele de forma complexa, considerando as etapas de colees e posteriormente

    agrupamentos literrios que geraram os livros, com Marcos e a hiptese literria Q como

    fontes primrias para Mateus e Lucas, alm de outras fontes para esses ltimos.

    Especificamente sobre as fontes de Marcos, ele afirma que devem ter havido diversas, entre

    elas: a narrativa da Paixo (Mc 11.1-16.8), uma fonte tambm utilizada por Joo; a fonte dos

    38

    CASEY, Maurice. Culture and historicity: the plucking of the grain (Mark 2.23-28). In: NTS, Vol. 34, 1988,

    pp.1-23. 39

    CASEY, Maurice. Aramaic Sources of Marks Gospel. New York: Cambridge University Press, 2004, pp.73-

    110. Em 2002, ele utilizou igual mtodo para reconstruir o texto de Q, fontes de Mt e Lc: An Aramaic approach to Q. Sobre a Fonte Q ver abaixo nota no Evangelho de Mateus. 40

    Como se v no clssico Teologia do Novo Testamento. So Paulo: Teolgica, Paulus, 2004 (original

    Neutestamentliche Theologie, 1. Teil: Die Verkndigung Jesu, 1970).

  • 33

    milagres, que compartilha duas narrativas que esto presentes na fonte dos sinais joaninos, e

    pouco material de ensino, que teria valor secundrio na perspectiva de Marcos, que, em

    alguns casos, em que h paralelismo com Q, deve haver acolhimento de tradio oral de ditos

    isolados. Ensinos com maior volume de material (como as parbolas em Mc 4 e o Apocalipse

    Sintico, em Mc 13) devem ter advindo de fontes escritas.41

    Sobre a data da origem do Evangelho de Marcos como texto final, a opinio

    tradicional pensa na composio dele como resultado de uma tradio petrina em Roma, no

    perodo entre 40-70 d.C. A pesquisa mais recente apoia uma datao entre 65-70 d.C., isto ,

    no perodo da Guerra Judaico-Romana que culminou com a destruio de Jerusalm.42

    Essa

    datao expressa bem o estilo enxuto e rspido do Evangelho de Marcos; nele, Jesus no tem

    muito tempo para grandes discursos nem meditaes, mas sim uma ao enrgica que mova a

    conscincia das pessoas rumo grande revelao: Jesus Cristo [VIhsou/ Cristou/], tema que

    abre (1.1 afirmao do narrador) e praticamente encerra com Filho de Deus [ui`o.j qeou/]

    (15.39 declarao de um centurio diante da cruz) a obra.43

    b) O Evangelho de Mateus

    Parte-se do pressuposto que Mateus teve Mc como fonte seja o texto cannico ou um

    texto primitivo e que reelaborou esse material. Alm disso, Mateus utilizou outras fontes,

    sendo que uma delas tambm foi usada por Lucas, a fonte chamada Q.44

    Uma informao

    curiosa a respeito de Mateus a citao de Papias presente na Histria Eclesistica de

    Eusbio de Cesareia.45

    Ele afirma que o evangelho cannico uma traduo para o grego de

    41

    KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento, Vol. 2, p.182s. 42

    A datao de c. de 40 d.C. proposta por CROSSLEY, James A. The Date of Mark's Gospel: Insight from the

    Law in Earliest Christianity. London/New York: JSNT Sup., 2004, em que o autor defende uma datao mais

    antiga pela discusso em torno da observncia da Tor presente no livro. Uma datao mais prxima do ano 70

    d.C. defendida por vrios autores, dentre eles GRANT, Frederick C. The Gospel According to St. Mark. In:

    The Interpreter's Bible, Vol. VII, p.630s; KMMEL, Werner G. Introduo ao NT, p.117; KOESTER, Helmut.

    Idem, Vol. 2, p.182 (apesar de que ele pensa numa datao ainda mais tardia, entre 70 e 80 d.C.). 43

    MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos Sinticos, p.97s. Em diversos manuscritos aparece ui`o.j qeou em Mc 1.1, procurando criar uma relao ainda mais clara entre a introduo da obra marcana e seu desfecho. Omanson

    discute a possibilidade de ser parte do original, mas a crtica se divide pelo critrio do texto mais curto ser o mais

    antigo. Cf. OMANSON, Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento. Barueri: Sociedade Bblica do Brasil,

    2010, p.56. 44

    Segundo KOESTER o testemunho mais importante para a teologia escatolgica das comunidades que

    transmitiram as palavras de Jesus. Idem,Vol. 2, p.162. A fonte Q Quelle em alemo uma hiptese literria que consiste nos textos comuns a Mt e Lc que no aparecem em Mc. Para muitos ela pode ter existido

    separadamente dos Evangelhos, antes de ser inserida neles, mesclada com o material de Mc. Seu contedo

    basicamente formado de ensinos e ditos de Jesus. Por isso alguns a denominam de Evangelho dos Ditos

    Sinticos. Teria sido composto ainda pelo ano 50 d.C. com base em colees porventura existentes de ditos que

    haviam sido reunidos para fins catequticos, polmicos e homilticos. Idem. 45

    Maqaioj Hhbrai,di diale,kto ta. lo,gia suneta,xato hrmh,neusen dauta. ~oj en dunato.j h,kastoj. Apud KMMEL, Werner G. Idem, p.146.

  • 34

    um texto mais antigo, em aramaico. Entretanto, seja por falta de evidncias materiais, ou

    mesmo por questes de estilo, nada pode se afirmar a respeito. Koester levanta tambm a

    ideia de que poderia se tratar de um original aramaico do Evangelho de Ditos Q a fonte Q ,

    similar aos Ditos de Tom. O que se pode pensar na existncia prvia de materiais em

    aramaico que teriam sido traduzidos sob a autoridade de Mateus.46

    Nessa controvrsia sobre

    Mateus, tem de se levar em considerao ainda o material prprio que s consta em sua obra,

    nada desprezvel, pois o mesmo material que ele compartilha com Marcos num total de 330

    versculos.

    Mateus tem diversos elementos que o aproximam de uma origem judaica: a diviso em

    cinco discursos, assemelhando-se a um Pentateuco de Jesus; um estilo escribal muito prximo

    daquele desenvolvido na Palestina; muito mais textos tratam a discusso a respeito da

    observncia da Lei (cf. 5.17) do que os demais evangelistas, alm da evidncia externa de

    Papias que o associa a um texto aramaico mais primitivo. Por tudo isso, Mateus tem sido o

    evangelho mais associado a um background judaico.47

    Mesmo assim, em geral, a localizao

    do Evangelho de Mateus foi associada Sria ou alguma cidade da regio oriental fora da

    Palestina.

    c) O Evangelho de Lucas

    O Evangelho de Lucas , na verdade, a primeira parte de uma obra maior, em conjunto

    com o livro dos Atos dos Apstolos. Acredita-se que inicialmente era uma obra nica, mas

    pela extenso dela foi seccionada em duas, com um arranjo redacional no fim do Evangelho e

    no incio de Atos, a fim de criar a vinculao entre as obras, ao mesmo tempo que possvel

    l-las separadamente.48

    Segundo alguns autores, tambm o evangelho mais prximo da tradio paulina, em

    termos de perspectiva da salvao e ao do Esprito sobre a comunidade. Segundo Koester,

    no fim do discurso da destruio do templo, repleto de detalhes, que Marcos no tem, se

    encontram algumas advertncias escatolgicas, reminiscentes da terminologia de Paulo

    46

    KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento, Vol. 2, p.188s. 47

    JOHNSON, Sherman E. The Gospel According to St. Matthew. In: Interpreter's Bible, Vol. VII, p.239ss;

    WILLS, Lawrence M. Scribal Methods in Matthew and Mishnah Abot. In: TCBQ, pp.241-257. Luz refora a

    tese de um ambiente judaico, ao afirmar que el evangelio de Mateo surge cuando esta comunidade

    judeocristiana se encontraba en una encrucijada. El Evangelio Segn San Mateo, I, p.85. Entretanto, h os que

    colocam Mt exatamente na vertente oposta, como David Flusser. Ele diz que o antijudasmo presente no

    evangelista aponta para uma certeza de que o redator final de Mateus era um cristo gentio e que foi

    responsvel pelo virulento antijudasmo contido nesse Evangelho. FLUSSER, David. Jesus. So Paulo: Editora

    Perspectiva, 2002, p.174. 48

    KOESTER, Helmut. Idem, 2, p.328ss.

  • 35

    (21,34-36).49

    O destaque dado a Paulo em Atos dos Apstolos sugere no mnimo uma

    admirao pela autoridade apostlica de Paulo.

    Entretanto, Fitzmyer lembra que o Paulo de Atos bastante distinto do retrato que o

    apstolo faz de si mesmo nas cartas, por isso mesmo Lucas foi considerado inferior

    teologicamente ao suposto patrono. Fitzmayer tambm questiona essa afirmao, pela

    importncia de Lc-At no cnon do NT (Novo Testamento), contendo mais de um quarto do

    seu contedo.50

    Neste sentido, Loveday Alexander afirma que Lucas era conhecido desde

    Jernimo como o evangelista que melhor escrevia o grego, e utiliza fontes variadas. Ao

    estudar o sumrio inicial do Evangelho (1.1-4), ele percebe que Lucas trabalhou com

    testemunhas oculares, tradio oral e textos fixados (aparentemente no s Marcos), o que

    mostra essa relao do evangelista com o mundo literrio greco-romano.51

    Quanto datao, Fitzmyer afirma que h bastante controvrsia: por causa do final de

    Atos, com o apstolo Paulo ainda vivo, diversos pesquisadores do sculo XX afirmaram uma

    data anterior a 70, ou ainda a 60 d.C., como, por exemplo, Jernimo, F.; Blass, J.; Cambier,

    L.; Cerfaux, E. E.; Elias, A.; von Harnack, W.; Michaelis, J. A. T. Robinson.52

    O problema

    est na reelaborao do Sermo Apocaltico de Mc 13, que d detalhes sobre a destruio de

    Jerusalm ausentes no primeiro evangelho. C.H. Dodd trabalha com uma hiptese de datao

    antiga, justifica-a afirmando que uma composio pessoal, tecida inteiramente de

    expresses vtero-testamentrias.53

    Como Fitzmyer soluciona o problema? Primeiramente,

    aponta a surpresa dos pesquisadores ante a escassez de informaes sobre a destruio de

    Jerusalm nos evangelhos, tendo em vista a importncia desse fato para os judeus da

    Palestina. Em segundo lugar, ainda que se considere a possibilidade de que os evangelistas

    tenham tido acesso independente s fontes o que Fitzmyer tem dificuldade em aceitar ou

    numa proposta da teoria das duas fontes modificada, deve-se levar em conta a releitura lucana

    para as narrativas de Marcos. Por fim, Fitzmyer analisa que o final de Atos no se preocupa

    com os acontecimentos posteriores a Paulo, seu autor se considera satisfeito por narrar a

    histria das comunidades crists da origem at sua priso. Ento, Fitzmayer considera a

    49

    KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento, 2, p.337. 50

    FITZMYER, Joseph A. Evangelio Segn Lucas, I, p.59ss. Outra obra importante para uma estruturao da

    teoria literria de Lucas The Composition of Lukes Gospel (1999) de David E. Orton, uma reunio de artigos

    anteriormente publicados no peridico Novum Testamentum, com um panorama sobre aspectos literrios a

    respeito do Evangelho de Lucas, at do livro de Atos no artigo The Book of Acts the confirmation of the

    Gospel, de W. C. van Unnik. 51

    ALEXANDER, Loveday. Lukes preface in the context of Greek preface-writing. In: ORTON, David E.

    (Comp.). The Composition of Lukes Gospel. Selected Studies from Novum Testamentum. Leiden, Boston: Brill,

    1999, pp.90-96. 52

    FITZMYER, Joseph, Idem, I, p.101s. 53

    DODD, C.H. apud FITZMYER, Joseph. Idem, I, p.102.

  • 36

    melhor datao como posterior a 70 d.C., antes do sculo 2 d.C. Assim, ele aceita a datao

    mais corrente de 80-85 para a obra lucana. Outros que concordam com essa datao: Werner

    G. Kmmel54

    , Helmut Koester55

    , Eduard Lohse56

    , e mais recentemente Paulo Lockmann57

    .

    Nestas pesquisas no h consenso quanto ao local de origem do Evangelho.

    1.2. A TRADIO DE JESUS NOS SINTICOS: TRADIO ORAL E TEXTUAL

    1.2.1. Debates sobre a tradio de Jesus nos Sinticos

    As memrias que marcaram as comunidades e que depois foram estruturadas de forma

    coerente, denominadas Evangelhos, podem ser descritas como a tradio de Jesus. Esse

    fenmeno tambm denominado de tradio sintica, por entender que os Evangelhos

    Sinticos foram constitudos a partir do mesmo processo de transmisso oral e efetivo registro

    escrito. Desde a pesquisa de Rudolf Bultmann sobre a tradio sintica, a maioria dos

    pesquisadores compreendeu a tradio de Jesus como uma entidade inerentemente plstica,

    em ltima anlise comparada com as lembranas em primeira mo dos seguidores de Jesus.58

    A repetio das narrativas em situaes semelhantes, que gerou a condio para o estudo das

    formas e definio do Sitz im Leben dos textos, foi apontada como fixa e estvel e a tradio

    de Jesus fez amplo uso. Sendo assim, no haveria lugar nem para o dinamismo social das

    comunidades, frente a novos desafios e problemas, nem para a criatividade autoral do escriba

    ou escribas responsvel pela edio final do texto, aquela que foi recebida pelos cristos

    das geraes posteriores.

    A questo a ser respondida : se os Evangelhos refletem a mesma tradio oral fixa,

    por que resultam em narrativas diferentes? De onde vm essas diferenas, seja incorporando

    novos elementos ou subtraindo os existentes, quando comparados uns com os outros? Essa

    interpretao que os textos fazem da tradio de Jesus representa uma verso inventada, ou de

    forma mais extrema, significa que a tradio de Jesus uma tradio inventada?

    54

    KMMEL, Werner. Introduo ao Novo Testamento, p.188. 55

    KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento, 2, p.332. Porm, ele admite uma data posterior, no

    incio do sculo 2 d.C. 56

    LOHSE, Eduard. Introduo ao Novo Testamento, p.163. 57

    LOCKMANN, Paulo T de O. Jesus, o Messias Profeta (Lucas 9.51-19.48). So Bernardo do Campo:

    EDITEO, 2011, p.20. 58

    BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. Massachussets: Hendrickson, 1968. Bultmann

    concluiu que os Evangelhos no so um gnero literrio, seno algo novo, criado pelas comunidades helensticas

    a partir de tradies palestinenses, que poderia ser denominado como lendas cultuais ampliadas, centradas no

    querigma da morte e ressurreio, dos milagres e do messianismo de Jesus Cristo, sem preocupao com o Jesus

    Histrico. Ademais, seu estudo da crtica das formas aponta para os evangelistas como compiladores da tradio,

    no criadores do texto. A pesquisa crtica tem adotado mais o conceito de redatores desde a

    Redaktionsgeschichte.

  • 37

    Este um tema que tem sido amplamente debatido desde o incio do sc. 20.

    Bultmann concluiu que diversos textos dos Evangelhos foram na verdade elaboraes

    posteriores da Igreja, a partir de ditos originais de Jesus. Mesmo algumas narrativas podem

    ser consideradas vinculadas ao Jesus histrico. No entanto, a maior parte do material narrativo

    est vinculada ao querigma cristo: que Jesus morreu e ressuscitou. As narrativas de milagres

    e os textos messinicos apontam para esse objetivo mximo, como uma re-compilao da

    tradio palestinense pelas comunidades helensticas.59

    Por isso, os pesquisadores adotaram

    uma dupla forma de analisar a tradio de Jesus: por um lado, como a transmisso fiel das

    palavras de Jesus, e, por outro, como a elaborao da Igreja Primitiva desses ditos. No texto

    dos Evangelhos, os dois movimentos estariam preservados, por vezes, de forma facilmente

    perceptvel, em outras, mascarados no processo redacional.60

    Tendncias mais conservadoras da exegese, especialmente a protestante, admitiram

    essa possibilidade, considerando que no incio havia o evangelho oral, caracterizado nos

    textos pelas palavras de Jesus (cf. Mc 1.14,15) e a tradio apostlica (cf. At 1.1,2).

    Posteriormente, a pregao missionria, de forma mais presente o querigma da ressurreio,

    o ensino cristo, mesmo o culto cristo, centrado na Eucarista, tambm no querigma da

    ressurreio, so considerados a base para os materiais que depois se tornaram o texto

    escrito.61

    No Novo Testamento, encontramos a palavra tradio como transmisso de memria

    normativa de Jesus em poucos textos. Em 1Co 11.23, Paulo fala daquilo que recebeu,

    indicando