o fantasma e a canção -...

2
O Fantasma e a Canção Castro Alves Orgulho! desce os olhos dos céus sobre ti mesmo, e vê como os nomes mais poderosos vão se refugiar numa canção. BYRON — Quem bate? — "A noite é sombrio!" — Quem bate?-"É rijo o tufão!... Não ouvis? a ventania Ladra à lua como um cão. " — Quem bate?-"O nome qu'importa? Chamo-me dor... abre a porta! Chamo-me frio... abre o lar! Dá-me pão... chamo-me fome! Necessidade é o meu nome!" — Mendigo! podes passar! "Mulher, se eu falar, prometes A porta abrir-me?"-Talvez. — "Olha... Nas cãs deste velho Verás fanados lauréis Há no meu crânio enrugado O fundo sulco traçado Pela c'roa imperial. Foragido, errante espectro, Meu cajado — já foi cetro! Meus trapos — manto real!" — Senhor, minha casa é pobre... Ide bater a um solar! — "De lá venho... O Rei-fantasma Baniram do próprio lar. Nas largas escadarias, Nas vetustas galerias, Os pajens e as cortesãs Cantavam!... Reinava a orgia!... Festa' Festa! E ninguém via O Rei coberto de cãs!" — Fantasmas! Aos grandes, que tombam,

Upload: dinhlien

Post on 21-Mar-2018

216 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: O Fantasma e a Canção - sanderlei.com.brsanderlei.com.br/PDF/Castro-Alves/Castro-Alves-O-fantasma-e-a... · O Fantasma e a Canção Castro Alves ... Baniram do próprio lar

O Fantasma e a CançãoCastro Alves

Orgulho! desce os olhos dos céussobre ti mesmo, e vê como os nomesmais poderosos vão se refugiar numa

canção.

BYRON

— Quem bate? — "A noite é sombrio!"— Quem bate?-"É rijo o tufão!...

Não ouvis? a ventaniaLadra à lua como um cão." — Quem bate?-"O nome qu'importa?Chamo-me dor... abre a porta!Chamo-me frio... abre o lar!Dá-me pão... chamo-me fome!

Necessidade é o meu nome!"— Mendigo! podes passar!"Mulher, se eu falar, prometesA porta abrir-me?"-Talvez.— "Olha... Nas cãs deste velhoVerás fanados lauréis

Há no meu crânio enrugadoO fundo sulco traçadoPela c'roa imperial.Foragido, errante espectro,Meu cajado — já foi cetro!Meus trapos — manto real!"

— Senhor, minha casa é pobre...Ide bater a um solar!— "De lá venho... O Rei-fantasmaBaniram do próprio lar.Nas largas escadarias,Nas vetustas galerias,

Os pajens e as cortesãsCantavam!... Reinava a orgia!... Festa' Festa! E ninguém viaO Rei coberto de cãs!"— Fantasmas! Aos grandes, que tombam,

Page 2: O Fantasma e a Canção - sanderlei.com.brsanderlei.com.br/PDF/Castro-Alves/Castro-Alves-O-fantasma-e-a... · O Fantasma e a Canção Castro Alves ... Baniram do próprio lar

É palácio o mausoléu!— "Silêncio! De longe eu venho...Também meu túmulo morreu.O séc'lo-traça que medraNos livros feitos de pedra —Rói o mármore, cruel.

O tempo, Átila terrívelQuebra cota pata invisívelSarcófago e capitel."Desgraça então para o espectro,Quer seja Homero ou Sólon,Se, medindo a treva imensa

Vai bater ao Panteon...O motim — Nero profano—No ventre da cova insanoMergulha os dedos cruéis.Da guerra nos paroxismosSe abismam mesmo os abismos

E o morto morre outra vez!'Então, nas sombras infindas,S'esbarram em confusãoOs fantasmas sem abrigoNem no espaço, nem no chão...As almas angustiadas,

Como águias desaninhadas,Gemendo voam no ar.E enchem de vagos lamentosAs vagas negras dos ventos,Os ventos do negro mar!"Bati a todas as portas

Nem uma só me acolheu!...— "Entra!: Uma voz argentinaDentro do lar respondeu.— "Entra, pois! Sombra exilada,Entra! O verso é uma pousadaAos reis que perdidos vão.

A estrofe: é a púrpura extrema,Último trono: é o poema!Último asilo: a Canção!..."