o estetoscópio e o caderno

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  • 7/25/2019 O Estetoscpio e o Caderno

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    O ESTETOSCPIOE O CADERNONARRATIVAS DA VIVNCIACLNICA DE ESTUDANTESDE MEDICINADANIELE CRISTINA GODOY E

    ANTONIO DE PDUA P. CYRINO

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    O ESTETOSCPIOEOCADERNO

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    CONSELHO EDITORIAL ACADMICO

    Responsvel pela publicao desta obra

    Adriano Dias

    Albina Rodrigues Torres

    Ana Teresa de Abreu Ramos Cerqueira

    Elen Rose Lodeiro Castanheira

    Larissa Santi Fernandes (representante discente)

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    DANIELE CRISTINA GODOYANTONIO DE PDUA P. CYRINO

    O ESTETOSCPIO

    EOCADERNONARRATIVASDAVIVNCIA

    CLNICADEESTUDANTESDEMEDICINA

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    2013 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) [email protected]

    Cip Brasil. Catalogao na publicaoSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    G532j

    Godoy, Daniele Cristina O estetoscpio e o caderno: narrativas da vivncia clnicade estudantes de Medicina [recurso eletrnico] / Daniele

    Cristina Godoy, Antonio de Pdua P. Cyrino. 1. ed. SoPaulo : Cultura Acadmica, 2013. recurso digital

    Formato: ePDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-7983-468-4 (recurso eletrnico)

    1. Estudantes de medicina. 2. Mdicos. 3. Medici-na. 3. Livros eletrnicos. I. Cyrino, Antonio de Pdua,1958-. II. Ttulo.

    13-07975 CDD: 610CDU: 617

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais daPr-Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual PaulistaJlio de Mesquita Filho (UNESP)

    Editora afiliada:

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    Aos estudantes de Medicina que,

    com sua dedicao aos pacientes e escrita reflexiva,

    permitiram a realizao deste trabalho.

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    A pesquisa que originou este livrocontou com o apoio da Capes

    (Programa Pr-Ensino na Sade)

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    SUMRIO

    Prefcio 1aedio 9Introduo 15

    1 Projetos de reforma do ensino mdicoe a comunidade 25

    2 A clnica ampliada 33

    3 A avaliao na educao mdica 374 A disciplina IUSC III 435 Narrativas no cotidiano da clnica ampliada 51

    Consideraes finais 115Referncias bibliogrficas 119

    Sobre os autores 127

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    PREFCIO1AEDIO

    Isto no significa que, contraria-mente Alice, tenhamos que saber

    o caminho, mesmo porque no exis-

    te o caminho, mas caminhos, uma

    pluralidade deles e... desconhecidos.

    Contudo, necessrio escolher algum.

    E escolher sempre um risco. Nada

    nos assegura o resultado do caminhoescolhido, que s parcialmente, e muito

    parcialmente, depende de ns.

    Garcia1

    O livro O estetoscpio e o caderno: narrativas da vi-

    vncia clnica de estudantes de Medicina resultado deum estudo que compe o projeto de pesquisa: IntegraoUniversidade, Servios de Sade e Comunidade na Facul-

    dade de Medicina de Botucatu Unesp: construindo novas

    1 GARCIA, P. B. Paradigmas em crise e a educao. In: BRAN-DO, Z. (Org).A crise dos paradigmas e a educao. 3.ed. SoPaulo: Cortez, 1999.

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    prticas de formao e pesquisa2. Este projeto conta com aparticipao de pesquisadores e alunos de ps-graduaoe graduao, que vm compartilhando, refletindo, dis-cutindo, experimentando, dialogando, avanando, cons-truindo conhecimento em torno de iniciativa de inovao,em desenvolvimento h dez anos, que est no bojo deum movimento maior, nacional e internacional, voltado mudana na formao na graduao na rea da sade.

    Trata-se do programa Interao UniversidadeServioComunidade (IUSC), criado em 2003, que se transfor-mou num conjunto de disciplinas ministradas aos trsprimeiros anos de graduao em medicina e enfermagem.

    Daniele e Antonio apresentam, neste livro, uma parterelevante desse trabalho, expondo esse processo de ensi-

    noaprendizagem e pesquisa sobre a formao no ensinosuperior na sade, que valoriza o encontro entre seres hu-manos, o compromisso com a integralidade do cuidado, amaior aproximao entre academia e servio, entre sadee educao, num encontro tico, esttico e poltico. Pormeio desse estudo, abre-se um dilogo, sabendo que abor-

    damos uma prtica social muito complexa, com a qualaprendemos a cada dia, enquanto estamos formando e nosformando, e desejando avanar na teoria e na prtica.

    O percurso no qual se insere este livro tem incio como processo seletivo do Promed3em 2003, na forte presen-a de uma diretora4entusiasmada por participar de um

    processo de mudana curricular que tivesse a marca da

    2 Projeto de pesquisa financiado pela Capes, modalidade Projeto deapoio ao ensino e pesquisa cientfica e tecnolgica em ensino nasade / Pr-Ensino na Sade / Edital n 024/ 2010.

    3 BRASIL. Ministrio da Sade. Secretaria de Polticas da Sade.Coordenao Geral da Poltica de Recursos Humanos. Programa

    de Incentivo s Mudanas Curriculares das Escolas Mdicas Promed. Braslia, 2002. 4 Profa. Marilza Vieira da Cunha Rudge, que foi diretora da Facul-

    dade de Medicina de Botucatu Unesp.

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    integrao ensino, servio e comunidade e no encontrode professores da Faculdade de Medicina de Botucatu Unesp com profissionais da sade e das humanidades quej vinham, ou no, trilhando novas passagens. Configu-rou-se um grupo mobilizado para encarar a mudana, onovo em uma escola mdica tradicional, marcada por mo-vimentos de inovao e valorizao da formao profissio-nal na graduao e na prtica dos servios pblicos. Uma

    escola mdica pblica que, ao longo dos anos, envolveu-secom o movimento da reforma sanitria e tem participadoda qualificao e do desenvolvimento do SUS.

    Enredamo-nos de forma arrojada, colocando-nos aproposta de ir alm do possvel, avanar um pouco maisno impossvel. A narrativa entra nesta histria perme-

    ando o possvel, mas tambm avanando em um terrenodesconhecido.

    Essa opo tem nos possibilitado, por um lado, estu-dar uma realidade social e coletiva por meio de narrativasindividuais e vividos singulares, e, de outro, pretenderverificar no apenas o que esses sujeitos percebem dos

    diferentes modos de produzir servios mdicos, mas aprpria existncia objetiva desses modos5. o que temosbuscado, em parte influenciados por jornalistas comoEliane Brum, por escritores como Moacir Scliar, pormdicos como Rita Sharon, por educadoras como MariaIsabel da Cunha e muitos outros. Assim, participamos

    de um movimento de formao que no se reduz ao co-nhecimento tcnico, mas que envolve diferentes saberese grandezas da vida humana intelectual, corporal, afetiva,social, esttica, tica e cultural, como parte de um projetode responsabilidade social. Poderamos usar a fotografia,

    5 SCHRAIBER, L. B. Pesquisa qualitativa em sade: reflexesmetodolgicas do relato oral e produo de narrativas em estudosobre a profisso mdica. Revista de Sade Pblica, v.29, n.1, p.63-74, 1995.

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    o desenho, a escultura, o vdeo, a dramatizao, mas opta-mos pelo trabalho com a narrativa oral e escrita, marcada

    pela captura das histrias de vida de pacientes, pessoascomuns da comunidade, usurios dos servios, e tambmdos prprios estudantes e professores, tendo como pro-posta enriquecer as relaes entre estudantes de Medici-na e Enfermagem, professores, profissionais, pacientes,familiares e as comunidades.

    A minha vida faz-se ao cont-la e a minha mem-ria fixa-se com a escrita; o que no ponho em palavrasno papel, o tempo apaga-o. [...] A escrita uma longaintrospeco, uma viagem at as cavernas mais obs-curas da conscincia, uma lenta meditao. Escrevo s

    apalpadelas no silncio e pelo caminho descubro part-culas de verdade, pequenos cristais que cabem na palmada mo e justificam a minha passagem por este mundo.(Allende, 1995)6

    Ao construir narrativas, ampliam-se espaos para

    compreender o sofrimento, o significado do processosadedoena, a necessidade de ampliar a autonomia dossujeitos frente ao cuidado e reflexo sobre estratgias deproduo de sade que considerem a realidade do outro esua relao com as prticas de ateno sade. Enfatiza--se a capacidade de adotar outras perspectivas, de se-

    guir o encadeamento de histrias complexas, por vezescaticas, tolerar ambiguidades e reconhecer os mltiplos,frequentemente contraditrios, significados dos aconteci-mentos vivenciados pelas pessoas7. Surge a possibilidadede questionar o poder institudo no contexto da formao

    6 ALLENDE, I. P. Paula.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. 7 SOUZA, A. N. de S.A narrativa na transmisso da clnica. Dis-ponvel em: http://www.forumpsi.blogspot.com.br/2006/11/narrativa-na-transmisso-da-clnica.html. Acesso em: 10 out. 2013.

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    de mdicos e enfermeiros, um poder objetivador, norma-tivo, o pragmatismo e o reducionismo da anamnese e do

    modelo de ateno que imprime ao paciente um regime desubmisso e dependncia. Como nos lembra Lobo (2012),no sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: que a medicina, empolgada pela cincia, seduzida pelatecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua facehumana e ignore a individualidade nica de cada pessoa

    que sofre. No se descobriu ainda a forma de aliviar o so-frimento sem empatia ou compaixo8.

    Entrar nesse campo das narrativas, como pesquisa-dores, estudantes, professores e profissionais da sade,significa apostar na ampliao da viso sobre o cuidado,qualificando a ateno sade que valoriza a relao entre

    humanos.

    Precisamos ocupar esse espao. E

    utiliz-lo. Quem no se arrisca no

    pode berrar. Tem muito confete no ar,

    a ironia no tem limites e as notcias

    podem correr pelo ar.

    Torquato Neto

    Eliana Goldfarb Cyrino9Braslia, novembro de 2013

    8 ANTUNES, J. L.A nova Medicina. Lisboa: Fundao Francisco

    Manuel dos Santos, 2012. 9 Professora-assistente doutora do Departamento de Sade Pblicada Faculdade de Medicina de Botucatu. Coordenadora geral deAes Estratgicas em Educao na Sade Ministrio da Sade.

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    INTRODUO

    O mdico cientfico

    Quando eu fui ao mdico cientfico

    percebi a nsia que havia nele para

    que sua chamada cincia me afetasse

    e me reduzisse ao nvel de coisa.

    Ento eu disse: Bom dia!, e deixei-o.

    D. H. Lawrence

    Nos ltimos tempos, a formao de mdicos no Brasiltem sido foco de interesse no apenas dos profissionaisda rea e dos especialistas em educao mdica. Ela vemocupando as pginas dos jornais de maior circulao no

    pas, dada a insatisfao da sociedade como um todo coma assistncia mdica. Em torno da temtica da qualida-de do profissional formado pelas escolas mdicas, tem sedestacado na imprensa a proposta de um exame nacionalpara o exerccio da medicina como uma possvel respostaa essa questo. O Conselho Regional de Medicina do Es-

    tado de So Paulo (Cremesp) j vem realizando, h algunsanos, uma avaliao, no obrigatria, dos mdicos recm--formados, a qual, desde 2013, assumiu carter com-

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    pulsrio para aqueles que querem fazer o registro nessergo. curioso que essa avaliao se proponha mediras competncias cognitivas dos estudantes, no contem-plando aquelas essenciais ao bom exerccio da medicina,tais como o saber-fazer clnico e as habilidades de comu-nicao com o paciente, pois no h uma verificao des-ses quesitos. Ao mesmo tempo, transfere-se o nus dainsatisfao social para o recm-formado, dado que no

    se preveem medidas para avaliar os profissionais que jatuam no mercado de trabalho.

    Trazer tais questes nos permite perceber ao menosparte da complexidade do tema e dos desafios colocadospara a educao mdica no sculo XXI. Por que a confian-a nos mdicos declinou em proporo inversa ao cres-

    cimento da confiana na medicina, em especial no quese refere sua tecnologia? O quanto a formao mdicaresponde pela dificuldade do profissional, na poca atual,em construir uma relao de confiana e mais pessoal comseu paciente?

    Quanto primeira questo, podemos afirmar que o

    declnio na confiana no profissional decorrncia es-sencialmente de profundas transformaes ocorridas aolongo da segunda metade do sculo XX, na passagem daMedicina liberal ou artesanal para uma Medicina tecnol-gica. Nesse perodo, houve amplas mudanas no processode trabalho do mdico, que passou a orientar sua prtica

    menos pela conversa com o paciente e mais por tecnolo-gias de diagnstico laboratorial e por imagem, esvaziandoa riqueza do encontro mdicopaciente, que se torna acada dia mais impessoal e ultratcnico.

    Para a segunda questo, o que oferecemos como res-posta ao leitor o que deve marcar o trabalho do profes-

    sor: a esperana de que uma formao mais humanizadado aluno possa produzir profissionais que valorizem aintensidade da conversa com seu paciente. A anamnese

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    um importante recurso diagnstico, e a conversa e a escutaatenta, recursos teraputicos, pois o papel do mdico no s tratar doenas, mas tambm aliviar o sofrimento.

    Nessa perspectiva, este livro um esforo de anlisedo uso de narrativas, do ponto de vista do prprio aluno,como uma aposta em um instrumento de desenvolvi-mento dele que v alm do conhecimento tcnico sobre ocorpo biolgico e sobre como intervir nele, mas que per-

    mita a apreenso do sujeito como totalidade. Cabe acres-centar que o desenvolvimento dos recursos diagnsticospor imagem quase aboliu a narrativa da doena, em parteporque o mdico tem menos tempo para ouvir (Antunes,2012, p. 30), em parte porque na formao mdica notem sido efetivamente valorizado o desenvolvimento de

    habilidades e competncias para uma comunicao eficazcom o paciente.

    Raras so as escolas mdicas no Brasil que tm seucurrculo organizado para que o estudante desenvolvauma prtica de ateno centrada no paciente, para quetenha a oportunidade de acompanhar um mesmo paciente

    em mais de uma consulta e, com isso, possa experimentare avaliar sua prtica, alm de permitir a construo de umvnculo mdicopaciente e de confiana em seu trabalhoe, assim, construir uma relao mais humana.

    As narrativas dos alunos do terceiro ano da Faculdadede Medicina de Botucatu Unesp (FMB) analisadas neste

    livro foram elaboradas num contexto pedaggico em queeles tiveram a oportunidade de acompanhar um mesmopaciente ao longo de at quatro meses, vivncia rara nasescolas mdicas. Muitas dessas narrativas expressam aintensidade do encontro com o paciente, as dificuldadespara lidar com pacientes difceis (outro tema negligen-

    ciado na formao mdica), a alegria do bom encontro,o sentimento de impotncia diante das mazelas sociais,dos claros limites da medicina, a vivncia da incerteza da

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    prtica clnica cotidiana e o desafio, na Ateno Primria Sade (APS), de lidar com aquilo que mais frequente:demandas que esto na fronteira entre os problemas davida e a patologia objetivamente definida e que, por-tanto, nem sempre esto claramente configuradas comodemandas e, assim, tero uma resposta objetivamentedefinida pelo arsenal diagnstico-teraputico da biome-dicina (Teixeira, 2005, p. 227).

    Cabe advertir o leitor que, ao nos debruarmos sobreo conjunto dessas narrativas, no procuramos uma verda-de definitiva para solucionar o problema da formaomdica. Antes de tudo, apostamos na potencialidade dosestudantes participantes desse processo, que souberamaproveitar o espao da clnica ofertado e exercitaram o que

    William Osler enunciou h mais de um sculo: Oua oseu paciente, ele est lhe dizendo seu diagnstico10(Wi-kipedia, 2013). Podemos dizer que muitos dos nossos alu-nos entenderam essa mxima de Osler e atualizaram-na,complementando: Oua atentamente o seu paciente, istopode aliviar o seu sofrimento.

    Cabe ainda observar que esse esforo em torno da me-dicina narrativa ou ateno primria baseada em narra-tiva11no algo isolado. Movimentos internacionais halgum tempo vm buscando novos caminhos para cons-truir uma formao mdica mais humana, sem deixar dereconhecer e incorporar os avanos e as conquistas da me-

    dicina enquanto prtica tcnico-cientfica.A medicina narrativa aquela praticada com a com-

    petncia narrativa para reconhecer, interpretar e ser leva-

    10 Listen to your patient, he is telling you the diagnosis (Wikipe-

    dia, 2013). 11 Para uma aproximao a essas temticas da medicina narrativa eAteno Primria baseada em narrativas, ver, respectivamente:Charon, 2006; Launer, 2002.

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    do a agir pela situao crtica dos outros12(Charon, 2001)e que permite aos mdicos olhar para alm dos mecanis-mos biolgicos no cerne das abordagens convencionaisna prtica mdica e abarcar domnios de pensamento emodos de dizer que focam na linguagem e na represen-tao, nas emoes e nas relaes que iluminam a prticados cuidados de sade (Hurwitz, 2011).

    A disciplina na qual se desenvolveu essa e outras es-

    tratgicas pedaggicas, com uma formao mais centra-da no paciente, ou clnica ampliada (Campos, 2007a),como vem sendo chamada, no uma disciplina isolada,mas faz parte de um conjunto de disciplinas articuladase sequenciais Integrao UniversidadeServiosCo-munidade (IUSC) que comearam a ser desenvolvidas

    em 2003, como inovao poltico-pedaggica, nos trsprimeiros anos do curso mdico. De modo geral, busca-seprovocar o aluno a experimentar outro olhar para o pro-cesso sadedoenacuidado, mais prximo da famliae da comunidade, em seu contexto social, econmico epoltico. Ao longo do processo, a disciplina estruturou-

    -se, nos dois primeiros anos, como uma experincia deensino interprofissional com a enfermagem. Assim,nesses dois anos, os estudantes de medicina e enfermagemdesenvolvem suas atividades conjuntamente, em peque-nos grupos, mediados por um tutor13, como um grandeesforo para formar um esprito de equipe interpro-

    fissional entre os futuros mdicos e enfermeiros.A disciplina IUSC III, ministrada no terceiro ano,

    campo do estudo que se apresenta nesta obra, difere dosoutros dois anos porque ainda desenvolvida sem essa

    12 Traduo de Isabel Fernandes. 13 Os tutores que atuam como professores na disciplina so de dife-rentes profisses, tais como: pedagogos, assistentes sociais, psic-logos, dentistas, enfermeiros, fonoaudilogos e mdicos.

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    integrao com a graduao em enfermagem e os tutores(professores e profissionais dos servios dos pequenosgrupos de cinco a seis alunos) so todos mdicos, dadoque nesse momento est envolvido o atendimento clnicoa pacientes das Unidades Bsicas de Sade.

    A Integrao UniversidadeServiosComunidaderepresenta uma iniciativa de insero dos estudantes emservios de Ateno Primria Sade, desde o incio da

    formao profissional, como um exerccio de educaopelo trabalho, no qual a aprendizagem se d como umprocesso de construo de conhecimentos a partir de ex-perincias significativas vivenciadas.

    Por meio de metodologias pedaggicas inovadoras,que procuram ter o aluno como protagonista do seu apren-

    dizado e o professor-tutor como mediador14, o processode ensinoaprendizagem busca superar a hegemonia doambiente hospitalar na formao do aluno.

    Trabalhar com metodologias problematizadoras re-quereu ainda debater o modelo dominante de avaliaodo estudante, reorientando-o para uma prtica avaliativa

    contnua, processual, que procura ir alm das dimensescognitivas do processo de aprendizagem, incluindo aque-las relacionais, afetivas e psicomotoras, de modo a acom-panhar o progresso individual dos estudantes e de cadapequeno grupo de atividades. Essa avaliao formativatem sido organizada por meio de instrumentos capazes

    de viabiliz-la, o que inclui o estmulo autoavaliao doaluno, como iniciativa que busca reforar seu papel ativoem sua formao.

    14 O papel mediador do professor na IUSC uma proposio daeducao como ato dialgico, como tratado por Paulo Freire, e

    da linguagem como principal elemento mediador no processoeducacional, segundo Vygotsky, trazendo como ponto comum acentralidade do dilogo na ao pedaggica (Marques; Oliveira,2005).

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    Um dos instrumentos utilizados no processo de ava-liao formativa do estudante o dirio de campo, ou ca-

    derno do aluno, como denominado na disciplina IUSCIII, objeto da investigao aqui apresentada, que foi pen-sado tendo em vista duas funes pedaggicas: desen-volver a competncia narrativa do aluno e facilitar suaautoavaliao.

    Nesse dirio reflexivo, como tambm pode ser cha-

    mado, os alunos relatam suas experincias dirias viven-ciadas na ateno sade prestada na Unidade Bsica deSade (UBS) / Unidade de Sade da Famlia (USF). Comele, possvel acompanhar o aluno e o professor, avaliaros processos de mudana implantados sob a perspectivadesses alunos, assim como desenvolver a sua competn-

    cia narrativa e apoiar a sua autoavaliao (Arajo et al.,2003). A narrativa como ferramenta conceitual e prticaaplicada na clnica uma possibilidade de ampliar o uni-verso discursivo e interpretativo, isto , a competncianarrativa do mdico, para alm de um modelo biomdicorestritivo (Favoreto, 2007).

    O estudo que apresentamos constitui uma anlise dasnarrativas registradas no caderno do aluno, cuja rique-za vem sendo empiricamente observada nestes dez anosde atividade da disciplina IUSC III. Tem como objetivoreconhecer as percepes e vivncias de alunos de Me-dicina com relao ao aprendizado da clnica ampliadana Ateno Primria Sade, nessa disciplina, expresso

    nos cadernos, bem como identificar os principais temasabordados nesses dirios de campo e seu potencial comoinstrumento de avaliao formativa do aluno.

    Dos procedimentos metodolgicos

    A investigao apresentada neste livro de nature-za qualitativa e documental, pois trata das percepes e

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    vivncias dos alunos registradas no caderno, caminhometodolgico adequado ao tratar uma realidade que nopode ser quantificada: valores, percepes e atitudes dossujeitos (Minayo, 2000).

    Para o estudo documental, foram utilizados mtodos etcnicas para a apreenso, compreenso e anlise dos ca-dernos (S Silva, 2009) de duas turmas de alunos em anossubsequentes: 2009 e 2010.

    Do total de 179 alunos matriculados na disciplina IUSCIII cujos cadernos foram objeto deste estudo, 83 cursaram--na em 2009 e 96 em 2010.

    Estavam disponveis para a pesquisa 114 cadernos,arquivados junto ao Ncleo de Apoio Pedaggico (NAP)da FMB, 42 deles pertencentes aos alunos do ano de 2009

    e 72 aos do ano de 2010.Os cadernos foram inicialmente trabalhados mediante

    leitura, classificao e seleo pelos pesquisadores. A lei-tura teve como objetivo obter uma viso mais geral do seucontedo, o que permitiu estabelecer uma classificao,considerando a qualidade dos registros quanto densidade

    de expresso das vivncias do cotidiano das atividades dadisciplina relativas ao prprio aluno, ao paciente e ao tutor.Dessa forma, os cadernos foram divididos em trs grupos,sendo que o grupo 1 continha aqueles de maior densidadede contedo e riqueza de temas, e o grupo 3, os de menordensidade de expresso.

    Como critrio de incluso dos cadernos no estudo,levou-se em considerao a qualidade dos registros, uti-lizando os dirios que apresentavam maior densidade deexpresso das vivncias do cotidiano das atividades dadisciplina. Foram excludos aqueles preenchidos de ma-neira inadequada, muito mecnica, como se fosse uma

    transcrio do pronturio no caderno, sem anotaes dassuas percepes em relao atividade. Portanto, optou--se por trabalhar com amostra de convenincia composta

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    pelos cadernos pertencentes aos grupos 1 e 2, com a auto-rizao dos alunos.

    Para a definio da amostra, utilizou-se o critrio dasaturao15, que foi atingido com 27 dirios, dos quais 12pertenciam aos alunos de 2009 e 15 aos de 2010.

    O conjunto dos registros, aps seu recorte e classifi-cao, foi objeto de anlise temtica de contedo (Bardin,1977), com o que identificaram-se ncleos e eixos temti-

    cos mediante os critrios de categorizao: repetio (rein-cidncia das manifestaes) e relevncia (possibilidade deconfirmao de hipteses iniciais de investigao).

    Numa etapa final de anlise dos dados, buscou-se ainterpretao do sistema de ncleos temticos e sua arti-culao com o referencial terico.

    Para a definio dos ncleos temticos, procedeu-seao desmembramento do texto em unidades temticas,reconhecendo os elementos comuns mediante sucessi-vas apreenses e reclassificaes que permitiram o seuagrupamento.

    Considerando os objetivos da pesquisa, foram iden-

    tificados, na anlise dos cadernos do aluno, os seguinteseixos temticos: Do territrio, dos servios e da equipede sade; Da relao ensinoaprendizagem; Da prticaclnica e da relao alunopaciente.

    Organizao dos captulos

    Para a apresentao desse estudo, este livro est orga-nizado em seis captulos. No primeiro captulo realiza-seum breve histrico dos principais movimentos de reforma

    15 A amostragem por saturao definida como uma ferramentaconceitual empregada [na] investigao qualitativa, usada paraestabelecer ou fechar o tamanho final da amostra em estudo (Fon-tanella et al., 2008).

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    no ensino mdico e o ensino na comunidade na atualidade,na tentativa de explicitar os desafios que as instituies deensino superior enfrentam na formao do profissionalmdico. Do segundo ao quarto captulo discutem-se osseguintes temas: a clnica ampliada enquanto estratgiade cuidado e a avaliao formativa, ambas estratgias pe-daggicas da disciplina IUSC III, a qual ser tratada emdetalhes, com nfase em suas estratgias de ensinoapren-

    dizagem relacionadas sua atividade principal: a consultamdica supervisionada e orientada pelos princpios daintegralidade e humanizao do cuidado. Tambm feitauma anlise do dirio de campo caderno do aluno ,instrumento de avaliao formativa da disciplina e objetode estudo deste trabalho. Por fim, apresentada uma car-

    tografia das narrativas registradas no caderno do alunosegundo as categorias mencionadas. Nas consideraesfinais, completa-se a anlise da cartografia das narrativase buscam-se as correlaes com a literatura.

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    1PROJETOSDEREFORMADOENSINO

    MDICOEACOMUNIDADE

    Os movimentos de reformana educao mdica

    Diante da crise contempornea da Medicina (Fou-cault, 1984), nas ltimas cinco dcadas, inmeros projetosde reforma mdica foram propostos, com forte influncia

    sobre a educao mdica, ainda que, muitas vezes, compouco impacto na formao profissional.Ao longo dessas dcadas, muitas escolas mdicas no

    mundo tm buscado reorientar seu ensino, na expectativade impactar na correo de alguns dos problemas da atualmedicina tecnolgica. No sculo XX, a medicina modernavivenciou importantes transformaes, que ampliaram demodo significativo sua capacidade de interveno sobre asade dos indivduos, o que marca a passagem da medici-na artesanal para a medicina tecnolgica. Nesse processo,novos desafios apresentaram-se para a medicina e para aformao de seus profissionais: o alto custo da assistnciamdica, a desumanizao da prtica, a fragmentao do

    ato mdico individual e a iniquidade de acesso tecno-logia mdica e aos servios de sade (Schraiber, 1993). Amedicina tecnolgica conforma-se tambm como biome-

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    dicina, em funo da sua centralidade na doena, na redu-o do humano ao corpo biolgico e na nfase aos recursos

    tecnolgicos, em detrimento da subjetividade das relaes(Rios; Schraiber, 2012).

    Tais desafios vm produzindo, desde o final da Segun-da Guerra Mundial, inmeros projetos de reforma mdi-ca, os quais, dentre outros resultados, tm influenciadopropostas de reestruturao da educao mdica. No Bra-

    sil e na Amrica Latina, tais influncias so reconhecidasdesde o final dos anos de 1950, com os movimentos damedicina integral e medicina preventiva, e no final dadcada de 1960 e incio da de 1970, com a medicina comu-nitria (Cyrino, 2002).

    Os movimentos de medicina integral e preventiva

    tinham por objetivo o aprimoramento da ateno indi-vidual, por meio da superao do seu carter fragment-rio, introduzindo uma concepo globalizadora do objetoindividual na prtica o paciente como totalidade biopsi-cossocial , enquanto o movimento de medicina comuni-tria buscava a reorientao da prtica e ensino orientados

    ao cuidado integral e mais prximo das necessidades desade das populaes (Cyrino, 2002, p.20).No Brasil, a influncia desses movimentos resultou

    num conjunto de experincias, desenvolvidas sobretudoa partir do final dos anos de 1960, que buscaram umaaproximao junto comunidade como possibilidade dereorientar o ensino centrado no hospital1.

    J na dcada de 1970, houve uma ampliao dessasexperincias de ensino, por meio de projetos de integra-o docente-assistencial, dentre os quais destacou-se,

    1 Dentre essas experincias, no estado de So Paulo destacaram--se os Centros de Sade Escola, criados mediante parceria entre

    algumas faculdades de Medicina e a Secretaria de Estado da Sade,para aprofundar a Reforma Leser, mas que tambm se consti-turam num novo cenrio de ensino na graduao mdica, maisprxima da comunidade (Cyrino, 2002).

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    na poca, o internato rural da Universidade Federal deMinas Gerais UFMG (Alves, 1996).

    Uma nova conjuntura de reforma mais relevante daeducao mdica ter lugar, a partir do final da dcadade 19902, com a implantao do Sistema nico de Sade(SUS) e a necessidade de maior articulao com as insti-tuies formadoras, em funo da nova responsabilida-de formal do Ministrio da Sade, estabelecida pela Lei

    Orgnica da Sade (Lei 8.080), que lhe atribui o papel deregulador da formao dos profissionais da sade. Papelesse que ser exercido mediante aes indutoras para areformulao do ensino mdico, por meio de diferentesprogramas: Projeto de Incentivo a Mudanas Curricu-lares para o Curso de Medicina (Promed), Programa

    Nacional de Reorientao da Formao Profissional emSade (Pr-Sade) e, mais recentemente, Programa deEducao pelo Trabalho para a Sade (PET-Sade). Umdos objetivos desses programas a exposio de estudan-tes de Medicina em cenrios de prtica, desde o incioda graduao, de modo que possam ter contato com o

    paciente, a famlia e a comunidade (Brasil, 2012).Oliveira et al. (2008) apontam o potencial desses pro-gramas em fazer que as escolas mdicas reorientem a for-mao centrada em competncias tcnicas para a formaode profissionais com vivncia sobre o acesso universal, aqualidade e humanizao na Ateno Primria Sade(APS), com controle social, resultando em integrao efe-

    tiva e permanente entre formao mdica e servios desade (p.334).

    O Promed, lanado em 2002 pelo Ministrio da Sade(MS) e pelo Ministrio da Educao (MEC), selecionou

    2 Na dcada de 1990, algumas propostas e programas podem ser

    destacados, em funo da influncia que tiveram no debate sobre aeducao mdica e outras profisses da sade, como os da ComissoInterinstitucional de Avaliao do Ensino Mdico (Cinaem) e doPrograma Universidade para Todos (Prouni) (Feuerwerker, 2002).

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    vinte escolas mdicas dispostas a adequar a formao dosmdicos realidade do [...] sistema de sade brasileiro,

    posto que o currculo das escolas de Medicina pratica-mente no sofreu alteraes nos ltimos trinta anos (Bra-sil, 2002, p.1), o que foi sintetizado na ideia de uma novaescola mdica para um novo sistema de sade (Oliveiraet al., 2008, p.336).

    O Pr-Sade, lanado em 2005 pelo MS e pelo MEC,

    diferenciava-se do Promed apenas pelo fato de incluir ou-tras profisses da sade no seu edital, como enfermagem eodontologia (Brasil, 2002; 2005).

    J o PET-Sade foi proposto, em 2008, para fortale-cer a APS, em especial a Estratgia de Sade da Famlia(ESF), a educao permanente dos profissionais de sade

    envolvidos em atividades de superviso de alunos de gra-duao das diferentes profisses de sade e o processo demudana na formao desses profissionais (Brasil, 2008).

    Nesse perodo, muitas escolas mdicas, como a Facul-dade de Medicina de Botucatu (FMB) Unesp, campodeste estudo, que participaram desses programas induto-res, reformularam seus currculos, incorporando ou am-pliando a presena dos alunos em cenrios na rede localde sade e/ou em prticas mais junto comunidade, tam-bm em outros espaos.

    Cabe, por fim, reconhecer que o estabelecimento dasDiretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cur-sos de graduao em enfermagem, medicina e nutrio

    tambm contribuiu para fortalecer o movimento de rees-truturao da graduao dessas profisses (Brasil, 2001).

    O ensino na comunidade hoje

    A insero desde o incio da graduao em cenriosde prtica, na comunidade ou na APS, uma estratgiaque vem sendo internacionalmente adotada em processos

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    de mudana na formao mdica3. Tal estratgia buscadesenvolver processos de ensinoaprendizagem dinmi-

    cos e interativos, nos quais se valoriza no s o domniocognitivo, mas tambm o afetivo, as relaes interpessoaise a aproximao com a realidade de vida da comunidade(Ferreira et al., 2007; Silveira et al., 2006).

    O ensino mdico inserido no espao da AP pode resul-tar na produo de conhecimentos para o aprimoramento

    do sistema local de sade, com interveno na realidade eformao de um profissional habilitado e comprometidocom a comunidade (Anjos et al., 2010).

    Nesse contexto, a AP no deve ser considerada apenasum espao de prtica, mas um campo de conhecimentosintegrador de abordagens disciplinares e pedaggicas po-

    tencialmente novas. O ensino na AP justificado pelo fatode constituir a principal porta de entrada da grande maioriados problemas de sade, mediante prticas de promoo,preveno, recuperao e reabilitao, alm de ser consi-derada reorganizadora das prticas individuais e coletivase reorientadora do SUS (Campos, 2007b; Campos; Fors-

    ter, 2008; Trajaman et al., 2009). Com relao a tais novoscenrios de aprendizagem, a recomendao que eles nodevem ficar restritos a espaos fsicos de prticas profissio-nais, mas devem representar para o estudante um local derelaes de trabalho, fazendo-os perceber-se como partedo processo de produo de cuidado (Ferreira et al., 2007).

    O Programa de Sade da Famlia (PSF), que se consti-

    tui como uma estratgia de mudana no modelo de ateno sade no SUS, um dos principais recursos utilizadospelas instituies de ensino superior para diversificar os

    3 A criao, em 1979, da Rede de Instituies Educacionais de Cin-cias da Sade Orientadas para a Comunidade (Network of Com-

    munity-oriented Educational Institutions for Health Sciences,hoje The Network: Towards Unity for Health A Rede: Rumo Unidade de Sade) expresso de um movimento internacionalpara o processo de ensino na comunidade (Almeida, 2011).

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    cenrios de prtica, embora no seja a nica possibilidadede ensino na APS, pois existe um conjunto de equipamen-

    tos e instituies para tanto: unidades de sade, domic-lios, organizaes no governamentais, escolas, creches,associaes de moradores, asilos, ambientes de trabalho,locais de lazer comunitrios etc. (Albuquerque, 2007).

    At a dcada de 1990, parte das experincias de ativi-dades extramuros se dava por meio de projetos de extenso

    universitria. Com a implantao das DCNs, em 2001,e diversos programas voltados induo de mudanas,promovidos pelo Ministrio da Sade, em parceria como da Educao, maior nmero de Instituies de EnsinoSuperior (IES) passou a inserir seus alunos na comunida-de no s por meio desses projetos, mas tambm de disci-

    plinas ou mdulos integradores que envolvem prticas narealidade do SUS. As atividades em geral se constituemde prticas programadas, com destaque para a consultamdica individual, o acompanhamento de famlias, visitasdomiciliares, atividades de grupo de promoo e preven-o e discusso de casos individuais e familiares, alm de

    atividades educativas na equipe e na comunidade. Dessemodo, o aluno pode estar frente a frente com situaescotidianas dos servios e de vida da populao assistida,rompendo com o paradoxo de uma prtica no reflexivae uma teoria no contextualizada (Albuquerque, 2007).

    A essncia da mudana no est simplesmente na ado-o de novos cenrios, considerando que no suficiente

    levar o aluno comunidade para ter contato com uma rea-lidade social de risco e vulnerabilidade. Ela deve ir alm,pois o que est em pauta a transformao do perfil dograduando, que deve contemplar um carter humansticoe socialmente responsvel (Feuerwerker, 2002; Vieira etal., 2007). Para tanto, a mudana no processo de formao

    deve incluir a dimenso relacional entre os vrios atoresenvolvidos (aluno, paciente, docentes, trabalhadores dosservios), alm das dimenses metodolgica e pedaggica.

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    As escolas mdicas com experincias de ensino nacomunidade tm empregado metodologias problemati-

    zadoras de ensinoaprendizagem, como a aprendizagembaseada em problemas (ABP) e a problematizao (Cyri-no; Rizzatto, 2004).

    Ao contemplar os aspectos relacionais, recomendadauma ressignificao da escola mdica, dos docentes e dosalunos, com vistas a uma articulao mais horizontalizada

    entre a universidade, os servios e a prpria comunidade.Com esse investimento na subjetividade da prtica pos-svel amenizar as resistncias que o ensino na comunidadee a diversificao de cenrios de prtica enfrentam nos de-bates sobre o ensino mdico, que incluem questes rela-cionadas inadequao da estrutura fsica desses espaose dos recursos disponveis, assim como desarticulaoentre a superviso local e o processo pedaggico do curso, resistncia dos trabalhadores dos servios de sade emreceber a universidade para dentro do seu mbito de tra-balho e pouca familiaridade dos docentes com a lgicados servios (Albuquerque, 2007).

    Alm dessas dificuldades, outras barreiras so iden-

    tificadas no que se refere ao trinmio ensinoserviocomunidade: a universidade prope como principal eixode mudana a conformao de um modelo de ateno sade centrado no usurio, porm os alunos, na maioriadas vezes, so inseridos em servios nos quais a ateno sade ainda se d sob a influncia de um modelo tecnoas-

    sistencial centrado no procedimento (Cabral et al., 2008;Albuquerque, 2007).H certa confluncia entre diferentes autores (Albu-

    querque, 2007; Blank, 2006; Ferreira et al., 2007; Marin,2007; Massote et al., 2010) quanto s recomendaes paraa prtica de ensino na comunidade, quais sejam: desen-volver-se desde o primeiro ano de graduao em pequenos

    grupos de alunos, com a superviso de um tutor; esten-der-se ao longo de todo o perodo de graduao, pormcom nveis de complexidade diferentes (inicialmente, a

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    ao do grupo deve estar voltada para o compromisso comuma microrea, passando a ter depois abrangncia maior

    na comunidade); envolver vrias disciplinas da grade cur-ricular e de maneira integrada, com nfase na formaogeneralista; proporcionar ao aluno vivenciar diferentesatividades de ateno consultas agendadas e at aes depronto-atendimento e atividades de oferta organizadaou aes programticas, tendo a prtica como elemento

    motivador do aprendizado; ampliar a habilidade profis-sional para incluir uma comunicao adequada entre ossujeitos, com respeito sua autonomia; desenvolver aesde sade na Ateno Bsica Sade (ABS), em confor-midade com os problemas em tempo real; evidenciar opapel social do aluno nessas relaes e, sobretudo, faz-lodesenvolver um novo olhar para o SUS.

    O ensino na comunidade mais recentemente tambmvem sendo valorizado para o ensino clnico, reconhecen-do-se que: estimula o protagonismo do estudante, aper-feioa sua capacidade de se comunicar e interagir comas pessoas, alm de levar aquisio de conhecimentose habilidades vinculados aos problemas de sade, pro-

    pondo uma formao mais prtica e menos conceitual.Oferece ao aluno tambm a oportunidade de conhecer asmanifestaes iniciais das doenas e vivenciar a repercus-so dos problemas de sade na vida pessoal e profissionalda pessoa por eles afetada, bem como em sua famlia e nomeio social em que vive (Trocon, 1999).

    Ao reconhecer as vantagens de um ensino mdico maisprximo da realidade de vida das populaes, as institui-es formadoras tm proposto reformas curriculares e aconstruo de novos modelos pedaggicos, acumulandoexperincias de sucesso que buscam o equilbrio entre exce-lncia tcnica e relevncia social. Na Faculdade de Medici-na de Botucatu Unesp, campo deste estudo, embora haja

    uma longa trajetria de experincias de ensino na comuni-dade, ainda hoje o hospital ocupa parte expressiva do cur-rculo mdico, com carga horria ainda reduzida na APS.

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    2A CLNICAAMPLIADA

    Tendo a integralidade e a humanizao como desafios formao de profissionais de sade, pode-se reconhecerna proposta da clnica ampliada uma referncia tcnico--poltica para apoiar prticas de ensinoaprendizagem emcenrios diversos, em especial aquele da Ateno Primria Sade (APS). Tal perspectiva pode ser empregada sem

    abrir mo dos recursos biomdicos de interveno, masreconhecendo sua insuficincia para dar conta da com-plexidade prpria da APS (Cunha, 2005; Teixeira, 2005).

    A clnica ampliada consiste num conjunto heterog-neo de prticas que, em seu direcionamento, busca maioreficincia e humanizao no atendimento e em que o

    usurio do servio de sade passa a ser visto como umsujeito biopsicossocial, e no mais como um indivduodoente (Dheim, 2010).

    Enquanto tecnologia de ateno sade, a clnica am-pliada se fundamenta nestes aspectos: singularizao doatendimento clnico; seguimento longitudinal dos casos;

    ampliao do grau de autonomia do sujeito; construode vnculo entre os sujeitos da clnica (profissionalpa-ciente); valorizao da escuta; e superao da fragmen-

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    tao do cuidado (Campos, 2007a; Cunha, 2005). Emoutras palavras, na clnica ampliada o compromisso como sujeito e a sua capacidade de produo de sua prpriavida, abrindo-se para perceber e ajudar o sujeito doentea construir sua percepo sobre a vida e o adoecimento(Cunha, 2004, p.73).

    A prtica da clnica ampliada a realizao da clnicapara alm do exame complementar, da prescrio de me-

    dicamento. a escuta, o vnculo e o afeto no cuidado dosujeito, a singularizao do olhar para o sujeito doente,a superao da fragmentao do cuidado, a responsabi-lizao em relao aos usurios dos servios de sade, avalorizao da intersetorialidade, reconhecendo os limitesdo conhecimento mdico e das tecnologias empregadas,

    abrindo espao para diferentes setores, alm de assumirum compromisso tico profundo com o sujeito da clnica(Brasil, 2007).

    A proposta dessa prtica aponta caminhos para a su-perao da clnica tradicional e o direcionamento para aclnica ampliada, mediante o estabelecimento do diagns-

    tico considerando elementos da histria de vida do sujei-to, identificando fatores de risco e proteo, valorizando opapel teraputico da escuta e da palavra, da educao emsade e do apoio psicossocial, alm dos frmacos e da ci-rurgia (Campos et al., 2007). Como tal, a clnica ampliadapode ser considerada uma proposta de orientao para o

    trabalho e ensino na APS.Na poca atual temos uma assistncia baseada na me-

    dicalizao, que ocupa o lugar da integralidade, a qual de-veria estar presente entre as prticas e o ensino de sade.Quando a integralidade est presente na assistncia, podeabrir caminho para o desenvolvimento da dimenso cui-

    dadora na prtica dos profissionais de sade, tornando-amais responsvel, vida por resultados das aes de aten-o e capaz de acolher, estabelecer vnculos e dialogar com

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    outras dimenses do processo sade-doena (CamargoJr., 2003).

    A APS, ao se constituir na principal porta de entra-da para o sistema de sade e possibilitar o seguimentolongitudinal dos casos, sugere a assistncia pautada naconstruo de vnculos entre a equipe e os pacientes e oacompanhamento integral dos usurios, caractersticasque justificam o maior incentivo hoje concedido s escolas

    formadoras para desenvolver parte do ensino na AtenoPrimria (Campos, 2007b). Enquanto cenrio de prtica,a APS abre caminho para uma relao mais vivaz entreos profissionais e os determinantes sociais e subjetivosdo adoecimento que esto relacionados diretamente comas reais necessidades de cuidado da populao assistida

    (Favoreto, 2008).A disciplina Integrao UniversidadeServiosCo-

    munidade (IUSC), ao propor o ensino na Ateno Prim-ria tendo como proposta de atuao a clnica ampliada,busca responder s questes de um ensino que contempleos princpios do Sistema nico de Sade (SUS) e o com-

    promisso com a formao voltada ao aprimoramento dosservios de sade por ele prestados (Cyrino, 2006).

    A prtica da clnica do sujeito ou clnica ampliadabeneficia-se muito da valorizao do saber generalista ehumanista, que defende a integralidade do cuidado, comvnculo afetivo e estabelecimento de dilogo entre usurio

    e equipe no centralizado na doena, mas sim na situaode vida e sade do paciente e nas suas condies psicosso-ciais (Hafner, 2010).

    Apesar dos inmeros benefcios da prtica da clnicaampliada, autores apontam algumas dificuldades paraa sua efetivao enquanto proposta de modelo de assis-

    tncia, entre elas, o conflito existente entre os mdicosgeneralistas e especialistas, os quais norteiam a assistnciapela valorizao da doena, a despeito das demandas dos

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    usurios, e dessa forma posicionam-se na contramo dalgica da integralidade pregada pela assistncia genera-lista, o que tambm est atrelado dificuldade de rupturacom o modelo tradicional biologicista e mdico centrado(Cunha, 2005; Capozzolo, 2003; Hafner, 2010). Outroaspecto limitante como vencer as tenses e poderes in-culcados na organizao das prticas em sade, a maneirafrgil e insipiente em que se coloca o paciente como sujei-

    to da clnica e se percebem as suas reais necessidades desade, como provvel consequncia da posio de poder ehegemonia ocupada pelo mdico no dilogo com o pacien-te, alm do desconhecimento da sabedoria prtica desteltimo (Favoreto, 2008).

    A clnica ampliada tem como objetivo a ampliao do

    grau de autonomia do usurio, da famlia e da comuni-dade, o que, para Campos (1999), sugere aes que pro-porcionem a promoo dos sujeitos, tornando-os capazesde compreender suas necessidades de sade e correspon-sveis no processo de produo de sade. Para o mesmoautor, outro caminho para a ampliao da clnica seria a

    construo de vnculo entre o profissional e o usurio dosistema de sade, usando-se todos os dispositivos capazesde promover essa interao.

    Dessa forma, reconhece-se na proposta da clnica am-pliada o recurso capaz de contribuir para a construo daclnica na Ateno Bsica (Cunha, 2004).

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    3A AVALIAO

    NAEDUCAOMDICA

    A avaliao somativa e formativano ensino superior

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional(LDB), de 1996, estabeleceu que a avaliao educacionalno pas seja contnua e cumulativa, que os aspectos qua-

    litativos dela se sobreponham aos quantitativos, desta-cando a importncia que deve ser dada ao desempenhodo aluno ao longo do ano, e no apenas em uma prova aofinal do curso ou da disciplina. Esse modelo de avaliao conhecido por avaliao formativa. O objetivo quedesestimule a avaliao tradicional (somativa ou classifi-

    catria) no meio educacional (Brasil, 2003).A despeito disso, a avaliao somativa a mais tradicio-

    nal e a mais empregada no ensino superior. Caracteriza-sepor: ser centrada no professor e na verificao do desem-penho dos alunos, por meio de provas e contabilizao deresultados, de acordo com os objetivos de ensino estabe-

    lecidos (Romanowiski; Wachowicz, 2006); priorizar osacertos e desvalorizar os erros (enquanto indicativos dasdificuldades a superar); limitar-se a verificar os resultados

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    obtidos pelo aluno, o que o estimula a estudar apenas paratirar nota, e no para aprender (Mendes, 2005).

    A avaliao formativa, tambm considerada um pro-cedimento de regulao permanente da aprendizagempor aquele que aprende, tem como caractersticas: serdemocrtica, holstica, emancipatria, constantementediagnstica, centrada na confiana mtua entre professore aluno e, ao invs de causar medo, desperta autoconfian-

    a (Moura, 2007).O emprego da avaliao formativa no ensino superior

    objeto de muita resistncia entre professores e alunos e,embora a teoria avaliativa tenha alcanado grandes avanos,a prtica avaliativa pouco evoluiu, conservando muitas ca-ractersticas da avaliao somativa (Perrenoud, 1999).

    A autoavaliao, nesse mtodo avaliativo, muito re-comendada como uma tcnica de valor para a aprendi-zagem e que possibilita ao aluno ter conscincia da suaprogresso, bem como identificar as falhas e os pontosfracos, alm de contribuir para o processo de aprendiza-gem contnua, sendo considerada um recurso para a habi-

    litao profissional do mdico (Domingues et al., 2007).Em sntese, a principal diferena entre a avaliao so-

    mativa e a formativa a intencionalidade: a primeira ve-rifica a aprendizagem, a segunda busca os seus limites eidentifica os problemas para corrigi-los (Mouro, 2009).

    A avaliao do estudante de Medicina

    Falar em mudanas no ensino mdico implica no sreconhecer a necessidade de adotar novas estratgias deensinoaprendizagem, como tambm assegurar a coern-

    cia dos projetos de reforma em relao aos pressupostostico-polticos e tcnicos da sade no pas. No maispossvel promover a formao do mdico fora do contexto

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    do Sistema nico de Sade (SUS), utilizando estruturastradicionais de ensino, currculos fragmentados, disci-

    plinas no integradas, e sem considerar as experinciasdo aluno como parte integrante do eixo da aprendizagem(Gomes et al., 2010).

    Nesse contexto, ressaltam questes relativas ava-liao do processo ensinoaprendizagem, com vistas formulao de novos mtodos, capazes de superar a orien-

    tao somativa ou classificatria prevalente, ainda hoje,na avaliao educacional.

    A avaliao do estudante de Medicina cumpre umpapel fundamental na sua formao, embora os mto-dos usualmente utilizados para realiz-la, quase sempresomativos, de carter punitivo ou de premiao, venham

    produzindo uma imagem negativa das prticas de ava-liao e provocando distores no processo de ensinoaprendizagem. Isto porque o processo de avaliao deveabranger no s o conhecimento adquirido, mas tambmhabilidades especficas, como as de comunicao, e ele-mentos de ordem afetiva frente aos inmeros aspectos da

    prtica profissional (Trocon, 1996).Feuerwerker (2002) aponta problemas comuns na ava-liao da aprendizagem nas escolas mdicas, na avaliaoda aprendizagem, como: a avaliao de carter cognitivo aofinal das disciplinas (valorizando a memorizao de con-tedos tericos); a valorizao da prova como mtodo ava-liativo; e o estmulo competitividade entre os estudantes.

    Gomes et al. (2010), ao discutirem as necessidades demudanas no ensino mdico, ressaltam o papel da avalia-o como elemento de ao transformadora e como gran-de colaboradora para o sucesso no uso de metodologiasativas, dentre as quais se destacam, na rea da sade, aproblematizao e a aprendizagem baseada em proble-

    mas. O que se pretende, nesse contexto, que a avaliaodeixe de ser mero espao para o exerccio de poder e passea ser utilizada como espao dialgico entre o avaliador e o

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    avaliando, que considere as particularidades dos sujeitosenvolvidos e, desta forma, ocupe um lugar como mtodo

    promotor da aprendizagem.Alguns autores propem para a avaliao do estudante

    de Medicina o emprego do mtodo formativo. Apontamcomo uma de suas caractersticas fundamentais o retornoimediato que deve ser fornecido ao aluno, consideradoaspecto fundamental da aprendizagem. No contexto da

    clnica, ao se referir ao desempenho do aluno em deter-minadas situaes ou atividades, contribui para a sua au-topercepo, bem como permite a autoavaliao (Trocon,1996; Zeferino, 2007).

    Por fim, cabe lembrar que um dos caminhos parapromover mudanas na educao mdica investir em

    transformaes no campo da avaliao, pois esta constituium elemento central no aprimoramento do processo deensinoaprendizagem (Arajo; Peixinho, 2006).

    O caderno de campo como instrumento

    de avaliao formativaQuando se fala em instrumentos de avaliao forma-

    tiva, recomendam-se aqueles que a tornem um processocontnuo, dialgico, diagnstico e participativo, contri-buindo para a responsabilizao do aluno com a sua edu-cao e permitindo s instituies acompanh-lo melhor(Silva, 2006).

    Com relao aos instrumentos mais indicados para umprocesso de avaliao nos moldes formativos, h um con-senso, entre os pesquisadores, de que no existe um mto-do perfeito e nenhum deles deve ser usado isoladamente(Moura, 2007; Domingues et al., 2007). Dentre os instru-

    mentos utilizados para a prtica de avaliao formativa, foiadotado na disciplina IUSC III o dirio de campo do aluno,fonte documental da pesquisa que deu origem a este livro.

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    O caderno do aluno foi inspirado no dirio de campoda pesquisa etnogrfica. Como tal, revela-se como umvalioso instrumento de coleta, dada a possibilidade deregistro de impresses e opinies, no cotidiano, de de-terminada vivncia, podendo potencializar o exerccio daescrita e da reflexo e se constituindo em uma fonte infi-nita de produo de sentidos (Pinho e Molon, 2011). Podetambm ser empregado, como aconteceu na disciplina

    objeto deste estudo, para o registro das observaes, co-mentrios e pensamentos reflexivos, podendo ser usadode maneira individual pelo profissional, pesquisador ealuno (Falkembach, apud Pinho e Molon, 2011, p.2). considerado um instrumento muito apropriado quandoparticipante de um processo tcnico e pedaggico que leva

    reflexo e anlise da realidade vivenciada no cotidianoprofissional (Lima et al., 2007).

    O seu uso na rea de ensinoaprendizagem, no proces-so de formao de profissionais da sade, faz que se tornemuito valioso no s pelo seu papel como instrumentoavaliativo desse processo, mas pelo seu comprometimen-

    to com a aprendizagem reflexiva e o desenvolvimento dacompetncia narrativa do aluno (Arajo et al., 2006; Frei-tas et al., 2006).

    Na disciplina IUSC III estabeleceu-se o uso de umdirio de campo caderno do aluno para o registro dasreflexes dele sobre as atividades realizadas, como uma

    das estratgias pedaggicas da disciplina. Esse cadernoconstitui um instrumento de avaliao formativa para alu-nos e professores da disciplina, e, como tal, foi objeto destapesquisa. Cabe apontar que ainda reduzida a bibliografianacional sobre experincias e estudos de uso do caderno decampo como recurso de avaliao formativa na graduao

    mdica. Em um dos estudos, os autores descrevem a ex-perincia de utilizao desse instrumento na disciplina dePropedutica na graduao mdica (Arajo et al., 2006).

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    4A DISCIPLINAIUSC III

    Estratgias pedaggicas dadisciplina IUSC III

    A disciplina Interao UniversidadeServioComu-nidade III (IUSC III), dirigida ao terceiro ano de gradua-o mdica da Faculdade de Medicina de Botucatu, integra

    um conjunto de disciplinas, ministradas nos trs primeirosanos, orientadas pela concepo da integralidade e huma-nizao do cuidado, tendo como objetivo geral propiciaraos alunos a construo de estratgias que possibilitem odesenvolvimento de aes para o cuidado e a promoo dasade junto comunidade, em parceria com a rede munici-

    pal de Ateno Bsica de Botucatu (Unesp, 2006).A IUSC III teve incio em 2005, como disciplina op-

    tativa, e passou a ser obrigatria em 2007. Possui cartereminentemente prtico, pois, exceto na abertura da dis-ciplina, todas as atividades realizam-se junto s unidadesde sade, tendo como ncleo a consulta mdica supervi-

    sionada de pacientes adultos usurios da Unidade Bsicade Sade/Unidade de Sade da Famlia (UBS/USF) domunicpio de Botucatu.

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    As principais estratgias pedaggicas adotadas na dis-ciplina so: o uso de uma anamnese ampliada, retornosfrequentes do paciente para o mesmo aluno; a visita e ocuidado domiciliar supervisionados; a discusso dos casosatendidos com os tutores; a discusso sobre a vivncia doaluno com psiclogos; e o uso do dirio do aluno.

    A anamnese ampliada foi elaborada pelo corpo do-cente da disciplina, ao longo dos primeiros anos de ativi-dade, com o objetivo de assegurar um instrumento parauso do aluno junto aos pacientes que no se reduzisse anamnese clnica tradicional. Deste modo, incorporou-se anamnese um conjunto de dimenses que buscou, de umlado, aproximar-se de uma entrevista, ampliando a escuta,

    e, de outro, abordar questes que pudessem explorar ossentimentos do paciente relacionados aos problemas desade e de avaliao da qualidade de vida do indivduo.Incluiu-se ainda, ao final da anamnese ampliada, o diag-nstico e a definio dos problemas mdicos, sociais e psi-colgicos e o plano teraputico (Cyrino; Hokama, 2009).

    Introduziram-se no Guia para orientao na AtenoPrimria Sade (Cyrino; Hokama, 2009) roteiros parao uso do aluno no atendimento de pacientes com retornoagendado e reavaliao. O retorno frequente do pacientepara o mesmo aluno, ao longo de determinado perodo, um evento pedaggico pouco frequente ou at mesmo

    ausente da vida curricular formal dele. Deste modo, des-tacou-se essa estratgia dos retornos frequentes como umrecurso de ensinoaprendizagem com potencialidade paraa percepo do tempo como tecnologia da clnica e, aomesmo tempo, o fortalecimento do vnculo e da responsa-bilizao do aluno com relao ao paciente.

    A visita e o cuidado domiciliar supervisionados pelaequipe da unidade de sade so mais uma estratgia peda-ggica da disciplina, que visa a diversificao de cenrios,

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    e na IUSC III esto dirigidos ao atendimento e prestaode cuidados a pacientes selecionados pela equipe.

    A discusso de caso clnico com a equipe da unidadebusca desenvolver uma abordagem integral dos problemase valorizar o conhecimento de cada categoria profissional,por sua relevncia para um bom cuidado. A superviso dedocentes da psicologia mdica como estratgia pedaggi-ca, que aconteceu at o ano de 2009, visava dar ao aluno,

    em especial, a possibilidade de expressar seus sentimentose dificuldades na relao com o paciente.

    A disciplina ainda propicia ao aluno maior conheci-mento sobre o modo de organizao do trabalho desenvol-vido pela equipe da UBS/USF, pois, no primeiro ms deatividade, ele observa diferentes atividades realizadas pela

    equipe da unidade, o que muitas vezes inclui acompanharreunies do Conselho de Unidade de Sade (Conus)1ouconversar com representantes da comunidade.

    O caderno do aluno um instrumento de avaliao quetem a finalidade de registro das atividades desenvolvidaspor ele no dia a dia, e ser tratado mais detalhadamente a

    seguir.Na avaliao do processo de ensinoaprendiza-

    gem, alm do dirio de campo, o tutor utiliza um ins-trumento especfico, desenvolvido pela equipe decoordenao2, com base nos objetivos da disciplina. Esteinstrumento busca sistematizar a observao diria do

    desempenho do aluno quanto assiduidade, pontuali-dade, atitudes e valores3e o contedo do trabalho porele realizado na ateno ao paciente. Neste ltimo que-

    1 O Conus est composto por funcionrios da unidade e represen-tantes da comunidade (usurios do servio).

    2 A equipe de coordenao da disciplina IUSC III contou com oapoio de assessoria externa da rea de pedagogia. 3 Responsabilidade, respeito, apresentao pessoal e trabalho em

    equipe.

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    sito, procura-se reconhecer a capacidade desenvolvidana abordagem do paciente nas seguintes dimenses: his-tria de vida e doenas; definio dos problemas do pa-ciente; iniciativa para resolver os problemas do paciente;apresentao pessoal; trabalho em equipe; atitudes e va-lores; registro do atendimento no pronturio (se realizauma boa sntese, finalizando com hiptese diagnstica eplano teraputico); interesse em conhecer o funcionamen-

    to da unidade de sade; e a maneira como feito o preen-chimento do dirio. Em cada uma dessas dimenses, huma escala com trs diferentes nveis de prtica e atitude.Assim, por exemplo, na definio dos problemas do pa-ciente constam: no define, define apenas os patolgicose alguns no orgnicos, define os principais problemas

    (orgnicos e no orgnicos), sendo atribudos ao aluno,respectivamente, os conceitos: insuficiente, suficiente eplenamente satisfatrio.

    As duas primeiras dimenses histria de vida edoenas e definio dos problemas do paciente buscamacompanhar o desenvolvimento do aluno no que se refere

    abordagem do paciente, tendo como referncia uma pr-tica compreensiva ou ampliada da ateno.

    A carga horria anual da IUSC III de oitenta horas,distribudas em vinte perodos de atividades realizadasem maio e de agosto a novembro. A classe organizadaem grupos de cinco alunos4, distribudos em onze uni-

    dades, dentre Unidades Bsicas de Sade, Unidades deSade da Famlia e o Centro de Sade Escola. Cada grupo supervisionado por um tutor mdico que, nessa ativi-dade, atua como generalista. Esses profissionais tm umperfil bastante variado quanto rea de especializao

    4 Em funo do espao limitado de algumas Unidades Bsicas deSade, um grupo foi estruturado com trs, e dois outros grupos,com quatro alunos.

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    psiquiatria, geriatria, nefrologia, oncologia, sade pbli-ca, patologia clnica e medicina de famlia e distintosvnculos institucionais (rede municipal de sade de Bo-tucatu, Hospital das Clnicas e Centro de Sade Escola,estes dois ltimos vinculados FMB).

    A vivncia proporcionada pela IUSC III aos alunospermite-lhes aplicar os conhecimentos recm-adquiridosna disciplina Semiologia, mas focalizando a atuao mdi-

    ca para alm do diagnstico/conduta. O fato de os alunoscursarem a IUSC III preferencialmente na mesma unidadeonde fizeram a IUSC I e II consolida um caminho percor-rido por eles nesses dois primeiros anos da disciplina. Comuma viso ampliada dos problemas de sade da populaocom a qual lidam, conhecem as suas condies de vida e

    sade, o que permite uma assistncia mais efetiva no pro-cesso sadedoena das pessoas que assistiro.

    O caderno do aluno na disciplina IUSC III

    O caderno do aluno na disciplina IUSC III foi insti-

    tudo j no incio das atividades pelos coordenadores doprograma, os quais, desde a sua idealizao, buscaramuma metodologia de avaliao formativa coerente com aproposta pedaggica da disciplina, que pudesse auxiliar oaluno no prprio aprendizado, trazendo um aspecto maisreflexivo sua prtica; que pudesse ser um instrumento

    para os tutores acompanharem o aprendizado do aluno,tornando-os capazes de identificar suas dificuldades atempo de serem trabalhadas e mostrando o desenvolvi-mento de cada um ao longo da disciplina, entendendo-seque seria necessria a mescla de diversos instrumentospara atingir os objetivos avaliativos propostos.

    Desde ento, o dirio de campo caderno do aluno vem sendo utilizado para o registro das suas vivncias di-rias. Tem se mostrado um rico instrumento de avaliao

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    formativa e autoavaliao do aluno, o qual incentivadoa responder, ao final das atividades, s seguintes questesnorteadoras: 1) O que aprendeu na consulta mdica (ou naatividade) de hoje? 2) Quais as dificuldades que encontrounessa prtica? 3) O que achou motivador na prtica dehoje? O aluno pode inserir, a partir dessas questes, outrastemticas reflexivas. Nesse dirio, ele relata suas experin-cias dirias vivenciadas na ateno sade, prestada na

    disciplina, como j tratado. Como tal, o dirio permiteacompanhar as atividades do aluno e a atuao didticados professores, fornecer subsdios para a avaliao do de-sempenho dos estudantes, apoiar processos de reformu-lao da prtica pedaggica a partir [da devolutiva] dosdiscentes e funciona para o aluno como um instrumento de

    autoavaliao (Arajo et al., 2003), alm de abrir espaopara que ele se coloque em relao a questes pouco traba-lhadas na graduao, como: medo, insegurana, incerteza,situaes difceis de relacionamento estudantepaciente,entre outros aspectos, como veremos no Captulo 5.

    O caderno do aluno, na disciplina IUSC III, deve ser

    utilizado, obrigatoriamente, desde o primeiro dia de ati-vidade nas unidades de sade. Esse caderno, no decorrerdo curso, fica com o aluno ou o tutor do grupo e, no final, encaminhado para arquivamento junto ao Ncleo deApoio Pedaggico (NAP) da FMB.

    Ao professor-tutor cabe a leitura semanal dos cader-

    nos de seus alunos, no s para ter uma viso de conjuntodo grupo, mas principalmente para acompanhar o pro-gresso de cada aluno quanto ao aprendizado alcanado, asdificuldades enfrentadas, os problemas experimentadoscom colegas e pacientes, os quais, muitas vezes, s vm tona nos dirios, e at mesmo sugestes de encaminha-

    mento dos trabalhos do professor, dentre outros aspectos.Numa apreenso qualitativa de um conjunto de cader-

    nos, verificou-se que apresentam cerca de trinta pginas

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    de registros das percepes dos alunos sobre as ativida-des vivenciadas, o envolvimento do tutor e, muitas vezes,comentrios sobre o prprio desempenho. As narrativasso compostas de registros que contemplam as perguntasnorteadoras citadas, sendo em geral mais curtas no inciodo caderno e tornando-se mais detalhadas, mais longase mais ricas em impresses, percepes e sentimentos apartir do incio das consultas mdicas supervisionadas.

    Os registros mostram-se homogneos quanto crono-logia do seu contedo e coerentes com o cronograma deatividades da disciplina, qual seja: reconhecer a unidadede sade, sua equipe e a rea de abrangncia; acompanhara consulta clnica feita pelo tutor; realizar a consulta clni-ca com os colegas e posteriormente de modo individual;

    participar de visitas e atendimentos domiciliares com aequipe da unidade e de atividades de discusso de caso.

    A disciplina, de maneira geral, est dividida em doismomentos: o de observao da unidade de sade (quatroa cinco perodos iniciais) e o de consulta mdica supervi-sionada (dezesseis a dezoito perodos). As narrativas, num

    primeiro momento, descrevem as caractersticas estru-turais e de organizao das unidades e da rea de abran-gncia, a observao e o acompanhamento da consultamdica, a visita domiciliar com o tutor e outros membrosda equipe.

    O segundo momento da disciplina caracteriza-se por

    uma participao mais ativa do aluno como sujeito dasconsultas mdicas supervisionadas. Nas narrativas pre-dominam descries dos pacientes atendidos, percepese vivncias. Aparecem relatos de outras atividades, acom-panhados, alm da consulta mdica, de discusses de casocom o tutor, por exemplo.

    As narrativas referentes consulta mdica descrevemessa vivncia na companhia dos colegas e depois indivi-dualmente, permitindo perceber as facilidades e dificul-

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    dades em cada situao. Alm da relao com os colegas,o caderno, nesse momento, traz descries sobre a relaoalunotutor e alunopaciente.

    Outro aspecto importante das narrativas so as descri-es sobre as habilidades adquiridas, as facilidades e difi-culdades na realizao das atividades propostas. Muitoscadernos, num primeiro momento, trazem as expectativasdo aluno com relao disciplina, assim como, num lti-

    mo registro, apresentam uma avaliao dela.

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    5NARRATIVASNOCOTIDIANO

    DACLNICAAMPLIADA

    A partir dos objetivos da pesquisa apresentada nestelivro, realizou-se a anlise temtica do contedo das nar-rativas do caderno do aluno, o que permitiu caracterizaras vivncias e percepes do aluno que cursou a disci-plina IUSC III e realizou atividades na Ateno Prim-ria Sade (APS). O conjunto do material produzido foi

    agrupado segundo trs grandes eixos temticos, apre-sentados a seguir, que tratam de vivncias e percepes:Do territrio, servios e equipe de sade; Do processode ensinoaprendizagem; Da prtica clnica e da relaoalunopaciente.

    Do territrio, servios e equipe de sade

    Hoje conheci os servios oferecidos [pela UBS],

    como a farmcia, sade do adulto, sade da mulher, ps-

    -consulta, sade mental. Alm disso, tive contato comos documentos utilizados para a solicitao de exames,

    encaminhamento, receiturio. [...] Gostei do fato de ter

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    conhecido mais de perto a unidade, preparando minhaatuao nas aulas seguintes. (45F09)1

    Esse grande eixo temtico contempla um conjunto dencleos temticos que tratam da percepo e vivncia doaluno, por meio de suas narrativas, a respeito da unidade,de sua estrutura e organizao, do trabalho da equipe e dasrelaes interprofissionais, da comunidade de sua rea de

    atuao e do sistema local de sade.Na anlise das narrativas desse eixo, construram-

    -se sete ncleos temticos que tratam de percepes evivncias:

    1. Da unidade de sade

    2. Da organizao da Ateno Primria Sade (APS)e do sistema local de sade

    3. Das novas prticas de ateno sade

    4. Do trabalho da equipe e da centralidade do mdicona equipe

    5. Da relao equipealuno

    6. Do vnculo equipepaciente7. Da comunidade

    Da unidade de sade

    Embora, na disciplina IUSC III, o aluno desenvolva

    suas atividades, todo o tempo, na unidade de sade, elasso objeto de suas narrativas sobretudo no primeiro pero-do, quando esto mais centradas na observao da prpriaunidade e da equipe. Nessas narrativas, comentam dife-rentes aspectos da estrutura fsica e do funcionamento daunidade de sade.

    1 O registro utilizado buscou assegurar o sigilo da identidade dosalunos. Apenas foi indicado o sexo: M para masculino, F parafeminino.

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    No primeiro dia da IUSC, o objetivo foi conhecera unidade do Jardim Peabiru. Pessoalmente, acheia unidade constituda por uma estrutura grande

    e bem organizada. Conhecemos de modo geral as

    salas que compem a USF:de vacinao, de medica-mentos, de consultas, de curativos, entre outras. Hojetivemos a oportunidade de acompanhar as atividadesna sala de medicamento, vacinao e de acolhimento.

    Descobrimos como funciona a ps-consulta e aquisiode medicamentos. No sabia que pacientes de outrasunidades de sade podiam [receber...] medicamentos.Estou conhecendo melhor a unidade de sade [...] osprofissionais que aqui trabalham nos explicaram sobre ocotidiano. (80F10)2

    Em algumas das narrativas, revelam surpresa com adinmica de atendimentos, a estrutura fsica ou a diver-sidade de servios oferecidos nas unidades. Tal surpre-sa talvez expresse bem o contraste entre o observado e osenso comum com que percebiam as Unidades Bsicas

    de Sade e o SUS.

    O objetivo [...] hoje foi conhecer a estrutura e fun-cionamento da USF. Fomos at a recepo, acolhimento[...] Passamos pela farmcia e ficamos surpresos como grande nmero de medicamentos retirados pelos

    pacientes. Achei muito interessante a organizao dafarmcia. Na sala de vacina acompanhamos alguns pro-

    2 O cdigo composto por dois nmeros e uma letra que aparece nofinal das narrativas identifica o aluno, mas preserva a sua identi-dade. Nesse cdigo, os nmeros 09 e 10 indicam o ano em que ele

    cursou a disciplina (2009 e 2010, respectivamente); as letras F eM informam o sexo: feminino ou masculino; e o primeiro nmero,dado aleatoriamente, identifica o aluno a partir de uma listagem comos nomes dos participantes da disciplina nos anos de 2009 e 2010.

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    cedimentos. Na sala de curativos e medicaes tivemosa chance de aplicar injees em alguns pacientes. [...]

    (11F10)

    Em diversas narrativas, os alunos relatam a maneiracomo so realizados os atendimentos, as relaes de vncu-lo na equipe, a percepo do acolhimento e da organizaona Unidade Bsica de Sade ou de uma Unidade de Sade

    da Famlia. Revelam sentimentos positivos (contenta-mento, motivao etc.) com o que deparam ao observar otrabalho realizado em algumas unidades.

    Fomos apresentados estrutura da USF, s ati-

    vidades ali realizadas e aos funcionrios da unidade,

    muitos j eram nossos conhecidos, mas achei impor-tante o estmulo criao de vnculo entre todos que

    trabalham na unidade, inclusive entre ns, estudan-

    tes, e eles [...]. Fico contenteporque essa unidade bastante organizada e realiza vrias atividades em sadevoltadas para a comunidade. (24F09)

    Hoje acompanhei o funcionamento da farmcia

    no CSE e as atividades realizadas pela equipe de sade

    mental me foram descritas pela funcionria da rea.

    A cada dia me sinto mais motivada em entrar nesta

    unidade na IUSC do 3oano, pelo fato de ser to orga-

    nizada e com tantas possibilidades de tratamento aospacientes que aqui procuram. (64F09)

    Da organizao da Ateno Primria Sade (APS) e do sistema local de sade

    Em suas narrativas, os alunos tratam do sistema localde sade e da organizao da APS. Em relao ao pri-meiro, observam aspectos do sistema de referncia e de

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    contrarreferncia, do fluxo dos exames laboratoriais reali-zados, entre outros. Esses aspectos so percebidos a partir

    da vivncia prtica da ateno aos pacientes e dos proble-mas enfrentados, que se caracterizam como potenciaiselementos de problematizao.

    Outro aspecto importante do aprendizado deste anofoi a compreenso de como organizado o atendimento

    de sade do municpio de Botucatu. Agora tenho umaviso de onde so realizados os exames, para onde voos encaminhamentos e qual a retaguarda com que

    a Ateno Bsica pode contar. Tambm aprendi umpouco sobre muitas coisas que ainda no tivemos no cur-rculo da faculdade. (68M10)

    Ao tratarem da organizao da APS, os alunos desta-cam sua capacidade resolutiva, a acessibilidade, a integra-lidade e a longitudinalidade do cuidado prestado.

    Pudemos ver quantos problemas podem ser resol-

    vidos nas Unidades Bsicas de Sade, como a hiper-tenso e o diabetes. Casos mais simples no precisam serencaminhados para servios secundrios ou tercirios.Alis, ao longo do ano vimos poucos encaminhamentossendo realizados, a no ser em casos que exigiam a opi-nio de um especialista. (35F09)

    Aprendi a valorizar a importncia do atendimento naunidade bsica, j que possibilita ao profissional acom-panhar o paciente longitudinalmente. (55M10)

    Acompanhei o[mdico da unidade...] em duas visi-tas domiciliarese pude [...ver]a progresso do pro-

    blema do paciente, [...] na prpria casa do paciente,para saber como anda a sua situao, se est estvel, semelhorou ou se piorou. (65M09)

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    Das novas prticas de ateno sade

    Os alunos descrevem, em suas narrativas, a atividadede grupo com os pacientes. Reconhecem e valorizam essaoutra maneira de fazer a ateno sade dos usurios, sejapela racionalizao da ateno demanda ou por resulta-dos no alcanveis numa consulta mdica. Alguns alu-nos consideram essa atividade um importante momento

    de comunicao, por dar ao paciente a oportunidade defalar, ser ouvido, partilhar experincias com outros par-ticipantes e, ainda, pelo carter mais integral de cuidadooferecido.

    Hoje acompanhei uma consulta em grupo de caso

    novo. [...] A dinmica[...]foi bastante diferente doque eu conhecia, ou seja, uma consulta nica, mdicoe paciente. Descobri que uma consulta mdica pode serestruturada de forma diferente do tradicional e, assim,conseguir resultados que no seriam possveis no outro

    modelo. [...] Inicialmente tive dificuldades de perceber

    qual o objetivo daquela consulta em grupo, uma vez quefoi direcionada de forma a abordar o aspecto psicolgicoprincipalmente, e no a doena em si. O que mais acheimotivador foi a experincia de acompanhar uma con-sulta em que o mdico se preocupa em saber como opaciente se sente em relao ao seu problema. (59F10)

    A percepo da consulta mdica no domiclio do pa-ciente, com acompanhamento do tutor, revela diferentesapreenses. Em uma narrativa, ela percebida como outramodalidade de consulta, distinta daquela do consultrio,enquanto em outra considerada muito limitante, dados

    os obstculos enfrentados no domiclio e com determina-dos estratos sociais para realizar uma consulta padro,mas, ao mesmo tempo, desafiadora.

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    Reproduo de pgina de caderno de aluno.

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    Hoje acompanhei o tutor em uma visita a rea rural[...]. Achei a atividade de hoje muito interessante, pois

    tivemos a oportunidade de conhecer uma realidade muitodiferente, aprender e entender como feita uma consulta[mdica]domiciliar (cujos procedimentos so muitodiferentes dos realizados em um consultrio).(32F10)

    Hoje a atividade foi um tanto inusitada [...], fomos

    zona rural [...]. Quanto consulta, observei o quantoela pode ser comprometida por diversas vertentes:deficincia [de espao] fsica para uma consulta ade-quada, conduzindo o profissional da sade a um examefsico quebra galho, o quanto difcil colher dadospara uma anamnese contundente, na medida em que

    a populao rural normalmente possui baixo nvelescolar. Tudo muito dspar da realidade encontrada

    por ns, alunos, dentro das quatro paredes de um hos-

    pital, onde tudo ou quase tudo ocorre dentro do espe-

    rado.Foi especificamente isso que me motivou a estudarmais, tornando-me dessa maneira mais preparado e capa-citado para contornar tais situaes. (17M09)

    A visita domiciliar, enquanto estratgia pedaggica dadisciplina, apresentada nas narrativas em geral de umamaneira muito significativa e positiva. Os alunos expemno caderno as potencialidades dessa atividade, em geralconsiderada muito rica pela vivncia e pelo aprendizado

    que oportuniza. Para alguns alunos, como vimos em ou-tras narrativas, faculta-lhes uma experincia afetiva fortecom seus pacientes, ao permitir que conheam a realidadedo domiclio deles, surgindo uma grande empatia graas identificao com o outro, ao se colocarem no lugar dele.

    Neste dia fomos fazer uma VD [visita domiciliar...] dona Maria, de 96 anos, que tem artrose grave nos dois

    joelhos, que a impede de levantar da cama [...] Apesar de

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    O ESTETOSCPIO E O CADERNO 59

    todos esses problemas, dona Maria me pareceu uma

    pessoa muito alegre, hospitaleira e, apesar de tudo,

    muito positiva. Em certo momento da visita, quando ocolega perguntou para ela o que mais a incomodava da

    doena, ela chorouao dizer que era muito triste ter queficar dependendo das pessoas para fazer quase tudo. [...]Nesse momento, imaginei-me em seu lugar, impossi-

    bilitada de fazer coisas com autonomia.[...] Eu acho

    que no s os alunos, mas a maioria dos profissionais desade que no tm contato com a sade da famlia ficaalgumas vezes chocado ao fazer uma visita desse tipo.Isso porque estamos acostumados a lidar com o pacientedo outro lado da mesa ou ento numa cama de enferma-ria. Temos nesses locais a sensao de que as condies

    de doente daquele paciente so passageiras. Mas quandoobservamos esse paciente dentro de sua casa e observa-mos o quanto essa doena alterou a sua vida, tenho umasensao mista de tristeza pela sua situao, com um

    sentimento de culpapor ter uma boa sade, de poderfazer coisas simples as quais ela no pode mais fazer, e

    muitas vezes reclamo da vida que tenho. (09F09)

    Do trabalho da equipe e da centralidadedo mdico na equipe

    Em suas narrativas, os alunos tratam o trabalho de

    diferentes membros da equipe em distintos momentos desua vivncia nas unidades, incluindo o tutor mdico3.

    Nas narrativas dos alunos que desenvolveram a ativi-dade em Unidades de Sade da Famlia, a figura do agentecomunitrio de sade realada, valorizada e reconhecida

    3 Como vimos na metodologia, apenas parte dos tutores integra oquadro permanente da unidade de sade; outra parte formadapor docentes ou mdicos do hospital universitrio.

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    60 DANIELE CRISTINA GODOY ANTONIO DE PDUA P. CYRINO

    por seu papel na ateno prestada comunidade e mesmono apoio atividade do aluno.

    O acesso ao posto de sade realmente muito difcilpara a maior parte da populao da zona rural, uma vezque a distncia grande e as condies da estrada no sodas melhores. Isso refora a importncia das visitas dosagentes comunitrios no local. Eles tm papel essen-

    cial na sade dos moradores da zona rural.(92F10)

    A enfermeira, assim como os outros membros da equi-pe de enfermagem, tambm sujeito de diferentes narra-tivas. Seu trabalho percebido, por alguns alunos, comorelevante para a equipe e, por outros, como importante naracionalizao e no apoio ao trabalho mdico, na orien-tao aos pacientes, alm do papel de gerenciamento daequipe de enfermagem.

    Acompanhamos o retorno da paciente que passou emconsulta com a enfermeira e pudemos perceber a impor-tncia do trabalho do enfermeiro, que ajuda a desafo-

    gar a agenda do mdico. (56M10)

    [...] nos informamos sobre a consulta de enfermagem.A enfermeira [...] acompanha os pacientes com pro-

    blemas sociais, [...] faz consultas e exames ginecol-

    gicos, como o papanicolau, alm de cuidar da funo de

    outras enfermeiras do posto. (11F10)

    Na atividade de hoje, acompanhei uma consulta commembros da enfermagem [e...] pude perceber o quanto aequipe de enfermagem otimiza o atendimento na uni-

    dade, alm de contribuir para o processo de instruoe conscientizao dos pacientes.(64F09)

    O trabalho mdico na Ateno Primria, com suas sin-gularidades, objeto de muitas narrativas, que abordam as

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    visitas e consultas domiciliares, os atendimentos de rotinae eventuais, a continuidade do cuidado ao paciente e odesafio da demanda de pacientes.

    Acompanhei o [mdico da unidade...] em duasvisitas domiciliarese pude aprender sobre esta parte dotrabalho do mdico da famlia, de acompanhar a pro-gresso do problema do paciente, de acompanhar na

    prpria casa do pacientepara saber como anda a suasituao, se est estvel, se melhorou ou se piorou. Gosteimuito e achei muito interessante conhecer esse lado dotrabalho do mdico da famlia. (65M09)

    Da relao equipealunoNos cadernos dos alunos, as referncias relao equi-

    pealuno so positivas e apontam uma boa acolhida delespela equipe da unidade de sade. Cabe aqui destacar, to-davia, que no foram encontrados registros de uma pos-svel inter-relao do aluno com a equipe nas atividades

    desenvolvidas.

    Fomos apresentados estrutura da USF, s ativida-des ali realizadas e aos funcionrios da unidade. Muitos

    j eram nossos conhecidos, mas achei importante o est-mulo criao de vnculo entre todos que trabalham na

    unidade, inclusive entre ns, estudantes, e eles. (24F09)

    Do vnculo equipepaciente

    Em diversas narrativas, os alunos expressam suaspercepes sobre a relao equipepaciente. Valorizam a

    construo do vnculo nessa dade, apontando que teriaat um papel teraputico positivo, dado um possvelincremento da adeso dos pacientes ao tratamento.

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    O ESTETOSCPIO E O CADERNO 63

    Durante a visita pelo bairro,foi legal observar a boa

    relao da equipe da unidade com os moradores. O

    vnculo estabelecido importante para a criao de uma

    relao de confiana que refletir conduta/terapu-

    tica eficazes, visto a melhor adesodo paciente ao trata-

    mento proposto. (14F10)

    Da comunidadeEm diferentes narrativas, os alunos expressam suas

    percepes sobre as condies de vida de comunidades as-sistidas pelas unidades. Muitos desses registros so mar-cados pela surpresa com a situao com que deparam. As

    percepes revelam-se polarizadas: alguns alunos apon-tam o valor intrnseco facultado por esse encontro para oseu futuro profissional, outros notam a irrelevncia delepara o seu aprendizado.

    Hoje a atividade foi um tanto inusitada, saindo dos

    padres de visita [dos] anos anteriores da IUSC; fomos zona rural de Rubio Jnior. Como no tinha presen-

    ciado tamanha mudana, inicialmente me senti des-

    locado (para no dizer perdido) quanto realidade

    enfrentada por tais moradores: distncia exagerada do

    PSF, dificultando o atendimento mdico, como quase

    que impossibilidade de atendimentos emergenciais falta de saneamento bsico e moradia um tanto fora dos

    padres (achei que j havia visto quase de tudo um

    pouco na IUSC, mas a famlia que mora em uma esta-

    o de trem abandonada, confesso que foi alm da

    minha imaginao). Aprendi a no subestimar as pos-

    sibilidades de surpresa e diferenas na prtica mdica.Certamente