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1 Ana Luiza Berg Barcellos O Estado Liberal de Direito e suas influências sobre o caráter educativo dos movimentos sociais: as ações do ANDES-SN frente à Reforma da Previdência Social de 2003 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Professor Doutor Avelino da Rosa Oliveira Pelotas, 2007

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Ana Luiza Berg Barcellos

O Estado Liberal de Direito e suas influências sobre o caráter educativo dos movimentos

sociais: as ações do ANDES-SN frente à Reforma da Previdência Social de 2003

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

da Faculdade de Educação da UNIVERSIDADE

FEDERAL DE PELOTAS, como requisito parcial à

obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientador: Professor Doutor Avelino da Rosa Oliveira

Pelotas, 2007

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Banca Examinadora:

Professor Doutor Avelino da Rosa Oliveira

Professor Doutor Emil Sobottka

Professor Doutor Gomercindo Ghiggi

Professor Doutor Hans-Georg Flickinger

Professor Doutor Ruy Barbedo Antunes

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DEDICATÓRIA

Dedico o presente trabalho a todos

aqueles que se percebem incomodados

com a impotência dos movimentos sociais

diante de situações que gostariam de vê-

los capazes romper.

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AGRADECIMENTOS

Muito Obrigado

A Deus, por guiar meus passos.

Aos meus pais, José Luiz Abreu Barcellos e Carmen Maria Berg Barcellos, pelo esforço que

sempre fizeram para propiciar a melhor educação aos seus filhos; pela compreensão diante da

minha ausência e pela preocupação diante da lenta caminhada para o alcance de meus

objetivos profissionais.

Ao meu irmão, Cássio Berg Barcellos, pelo exemplo no estudo incessante do Direito e na

perseverança para o alcance de seus objetivos.

Ao querido Daniel Brod Rodrigues de Sousa, pelo amor e estímulo nos momentos em que

pensei não ser capaz.

Ao caro Professor Orientador, Doutor Avelino da Rosa Oliveira, pelas preciosas orientações

ao longo desta caminhada. Sem o seu incentivo, o seu vasto conhecimento e a sua

objetividade ao apontar os melhores caminhos, nada disso seria possível.

Aos Professores do Mestrado em Educação e, em especial, da linha de pesquisa Filosofia e

Educação, Doutores Gomercindo Ghiggi e José Fernando Kieling, pelas inigualáveis aulas e

discussões promovidas, sem as quais os horizontes não teriam sido ampliados.

A todos que, de qualquer forma, contribuíram para o presente trabalho. Em especial, ao

Doutor Alberto Rufino Rosa Rodrigues de Sousa, pela disposição em traduzir o texto de

Joachim Raschke, e à Adufpel (Associação dos Docentes da Universidade Federal de

Pelotas), por fornecer os materiais produzidos pelo ANDES-SN no período de tramitação da

Reforma da Previdência de 2003.

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RESUMO

BARCELLOS, Ana Luiza B. O Estado Liberal de Direito e suas influências sobre o caráter educativo dos movimentos sociais: as ações do ANDES-SN frente à reforma da Previdência Social de 2003. 2007. 200f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas.

O trabalho versa sobre as relações entre os Movimentos Sociais, a Educação e o Estado Liberal de Direito. Visa analisar as influências da lógica do Estado Liberal sobre o desempenho do caráter educativo dos movimentos sociais. Para o alcance de tal objetivo utiliza-se de um estudo de caso: a atuação do ANDES-SN (Associação dos Docentes do Ensino Superior-Sindicato Nacional) e as ações implementadas na tentativa de impedir, ou atenuar, os efeitos da proposta de Reforma da Previdência Social de 2003. Analisa-se, a partir disso, quais os resultados de suas práticas, em especial, o caráter educativo de suas ações e como a lógica do Estado Liberal atua sobre tais questões. A fim de propiciar o alcance dos objetivos propostos, pesquisa-se acerca do conceito de movimento social, apresentando-se argumentos que permitem situar os sindicatos enquanto movimentos sociais, e, desta forma, enquadrar-se o ANDES-SN nessa categoria. Ademais, estuda-se o Estado Liberal de Direito, destacando-se as relações entre as normas, o parlamento e a legitimidade, utilizando-se, como referência, Carl Schmitt e outros autores. Além disso, demonstra-se o conteúdo da Reforma da Previdência Social de 2003 e as ações implementadas pelo ANDES-SN. À luz de todos os elementos pesquisados e considerando o objetivo a que se propôs o presente estudo, conclui-se que o Estado Liberal de Direito, principalmente pela posição de destaque ocupada pela legalidade em sua lógica, influencia os movimentos sociais tanto em relação às ações escolhidas diante de situações relativas aos interesses da categoria que representam, como em relação ao seu resultado educativo. Palavras-Chave: Educação. Estado Liberal de Direito. Movimentos Sociais.

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ABSTRACT

BARCELLOS, Ana Luiza B. The Liberal Law-based State and its influence upon the educational role of social movements: the actions of ANDES-SN towards the Social Welfare Reform of 2003. 2007. 200p. Dissertation (Master’s Degree in Education) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas. The work concerns the relations between Social Movements, Education, and the Liberal Law-based State. It aims to analyze the influences of the Liberal State’s logic upon the accomplishment of the educative role of social movements. In order to reach this objective, a case study research has been conducted about the Association of Higher Education Professors - National Labor Union (Andes-SN) and the actions implemented as an attempt to avoid or to attenuate the effects of the Social Welfare Reform proposed in 2003. Based on that, both the results of their practices, especially the educational role of their actions, and the way how the Liberal State’s logic acts upon these issues are analyzed. To achieve the goals proposed, a research was conducted about the concept of social movements, presenting reasons that enable us to see labor unions as social movements, and therefore to identify Andes-SN under this category. The Liberal Law-based State is also studied, highlighting the relations between norms, the parliament and legitimacy, taking Carl Schmitt and other authors as references. Besides that, the content of the Social Welfare Reform of 2003, as well as the actions carried out by Andes-SN are reported. In light of the elements studied, and taking into account the purpose of the present research, it is possible to conclude that the Liberal Law-based State, especially because of the eminent position occupied by legality in its logic, influences the social movements, not only in what concerns to the actions chosen to perform in situations related to the interests of the groups they represent, but also concerning their educational outcomes. Key words: Education. Liberal Law-based State. Social movements.

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SUMÁRIO

Introdução 8 CAPÍTULO 1 - Os Movimentos Sociais: em busca de um conceito 11

1.1 Conceito de Movimentos Sociais 13 1.1.1 Alain Touraine 15 1.1.2 Alberto Melucci 20 1.1.3 Claus Offe 27 1.1.4 Outros autores marxistas 31

1.2 “Velhos” Movimentos Sociais x Novos Movimentos Sociais 36 1.3 Sindicatos: são movimentos sociais? 39

1.3.1 Sindicatos e Educação 54 1.3.2 Sindicalismo no Brasil – breve histórico 65 1.3.3 Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior-Sindicato Nacional (ANDES-SN)

70

CAPÍTULO 2 - Do Estado de Direito 76 2.1 Do Estado Liberal de Direito e sua evolução 78 2.2 Estado Liberal de Direito e Carl Schmitt 97

2.2.1 As normas no Estado Liberal 102 2.2.2 O Parlamento, a Legalidade e a Legitimidade no Estado Liberal 107

CAPÍTULO 3 - A Reforma da Previdência Social de 2003, a Associação Nacional dos Docentes de Ensino Superior – Sindicato Nacional (ANDES-SN) e as implicações do Estado Liberal de Direito

122 3.1 A Previdência Social e a Emenda Constitucional nº41/2003 123 3.2 A posição do ANDES-SN frente à Reforma da Previdência 133 3.3 Possíveis implicações do Estado Liberal de Direito sobre atuação do ANDES-SN

152

3.4 O Papel Educativo do ANDES-SN frente à Reforma da Previdência Social de 2003

175

Considerações Finais 184 Referências 190 Referências Documentais 199

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Introdução

Esse trabalho teve como provocação para o seu desenvolvimento, a Reforma da

Previdência Social iniciada em 2003, que culminou nas Emendas Constitucionais nº41 (em

2003) e nº47 (em 2005). A motivação para a pesquisa decorreu da expectiva de que, para

impedir tal Reforma, haveria atitudes firmes e resultados positivos por parte dos movimentos

sociais, especialmente daqueles relacionados aos servidores públicos, pois esta categoria foi o

alvo principal (quase exclusivo) das alterações constitucionais propostas. No entanto, foi

facilmente percebido na época que, apesar das severas alterações pretendidas pelo governo, os

movimentos sociais pareciam não estar sendo capazes de impedir, ou promover mudanças nas

propostas reformistas.

Diante de tais circunstâncias, foram eleitas algumas categorias para o

desenvolvimento da pesquisa: Movimentos Sociais, Estado Liberal de Direito e Educação,

destacando-se o desempenho do caráter educativo dos movimentos sociais sob a lógica do

Estado Liberal de Direito.

No estudo da primeira categoria realizou-se, preliminarmente, uma investigação

acerca do conceito de movimentos sociais, utilizando-se autores como Alberto Melucci, Alain

Touraine, Claus Offe, entre outros, visando enquadrar os sindicatos na categoria de

movimento social e, por conseqüência, também a Associação Nacional dos Docentes do

Ensino Superior – Sindicato Nacional (ANDES-SN), cuja importância para este trabalho está

em servir para o estudo de caso, como adiante se explicita.

A busca por uma definição de movimento social necessariamente impôs a análise dos

“velhos” e dos “novos” movimentos sociais e, além disso, o aprofundamento da questão do

sindicalismo no Brasil, de modo a encontrar elementos para fundamentar os sindicatos como

espécie de movimento social. Da mesma forma, a história da constituição do ANDES-SN

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também se fez necessária pois, a partir do conhecimento de suas origens e evolução,

possibilitou-se caracterizar sua condição enquanto movimento social.

A seguir, procedeu-se a um estudo sobre o Estado Liberal de Direito. Inicialmente,

comentou-se a evolução do Estado de Direito. Após, analisaram-se algumas questões para

apreciar as eventuais influências do Estado Liberal de Direito sobre a atuação dos

movimentos sociais e propor reflexões acerca das normas no Estado de Direito, o parlamento,

a legalidade e a legitimidade. Para tais reflexões utilizou-se a referência teórica de Carl

Schmitt e de outros autores que comentam suas obras.

A fim de avaliar as relações entre Estado Liberal de Direito e Movimentos Sociais,

realizou-se um estudo de caso, o qual compreendeu a apuração do entendimento do ANDES-

SN acerca da Reforma Previdenciária de 2003, as práticas desenvolvidas no sentido de

impedir/atenuar os efeitos reformistas, os objetivos almejados e o que, de fato, foi

concretizado. Nesse ponto, então, teve-se a possibilidade de verificar, concretamente, se há

influência do Estado Liberal de Direito sobre o desempenho das ações reivindicativas de um

sindicato (movimento social), a partir do que se pôde proceder a algumas generalizações a

respeito da relação entre Estado Liberal de Direito e Movimentos Sociais.

É relevante destacar a existência, ainda, de uma terceira categoria temática: a

Educação, pois a questão educativa está presente em diferentes momentos. Primeiramente,

quando se aborda o conceito de movimentos sociais, pois o papel pedagógico dos movimentos

é um dos fatores de sua caracterização. Assim, tanto ao pesquisar sobre os movimentos

sociais e a conceituação destes, como ao avaliar as ações do ANDES-SN frente à Reforma da

Previdência Social, foi perquerido, também, o caráter educativo presente em tais condições.

Além disso, a questão educacional está fortemente presente no estudo porque este utilizou

como referência de pesquisa, um sindicato cuja base formadora são docentes de ensino

superior e, ademais, porque se avaliou o potencial educativo das ações do ANDES-SN frente

à Reforma Previdenciária.

Importou, também, pesquisar acerca dos efeitos da Reforma Previdenciária de 2003,

especialmente a Emenda Constitucional nº41, isto porque apenas a partir do conhecimento

dos efeitos dessa reforma foi possível compreender o valor da atuação dos movimentos

sociais, bem como a relevância da posição adotada pelo ANDES-SN frente à reforma.

Destaca-se, assim, a importância das três categorias centrais de estudo, pois dizem

respeito ao dia-a-dia de toda a sociedade. Veja-se que, embora um cidadão não esteja

vinculado diretamente a um determinado movimento social, de alguma forma, os interesses

defendidos por qualquer movimento atingem a sociedade como um todo e, mais do que isso,

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as ações de qualquer movimento têm a capacidade de alertar os cidadãos para o que ocorre

nos mais diversos campos, provocando-os à reflexão.

Também é do interesse da sociedade compreender a lógica do Estado Liberal de

Direito e pesquisar seus elementos, como as normas, o parlamento, o conflito entre a

legalidade e a legitimidade, pois se procura possibilitar a visualização de questões do mundo

atual, as quais não são tratadas com freqüência. Na verdade, abordar a lógica do Estado

Liberal é promover o pensar e provocar o refletir.

Pesquisar a posição do ANDES-SN frente à Reforma da Previdência de 2003 e as

possíveis influências do Estado Liberal de Direito foi o caminho eleito para analisar

concretamente a relação mais ampla do Estado Liberal com os movimentos sociais. Realizar

uma pesquisa sem delimitar o campo de análise seria impraticável. Por conseguinte, elegeu-se

para a imperiosa limitação da temática, o estudo do caso concreto das ações do ANDES-SN

frente a um episódio importante: a Reforma da Previdência Social de 2003, detendo-se o

estudo nas eventuais influências que pode ter sofrido o movimento no desempenho do seu

papel educativo.

A partir de todos esses elementos de estudo o trabalho divide-se em três capítulos.

No primeiro, trabalha-se sobre os movimentos sociais e se busca um conceito para tal

categoria, bem como se diferenciam os “velhos” dos “novos” movimentos sociais e, ainda

nele se enquadram os sindicatos enquanto espécie de movimento social, incluindo o ANDES-

SN. O segundo versa sobre o Estado de Direito, procedendo-se a uma avaliação breve de sua

evolução histórica e expondo-se o entendimento de Carl Schmitt sobre o Estado Liberal de

Direito e as categorias utilizadas pelo autor para formular considerações sobre a temática: as

normas, o parlamento, a legalidade e a legitimidade. O terceiro diz respeito à Reforma da

Previdência de 2003, à posição do ANDES-SN frente à Reforma e às suas ações para impedir

ou atenuar os seus reformistas, mostrando, a seguir, as possíveis implicações do Estado

Liberal de Direito sobre as ações do sindicato e o papel educativo desempenhado pelo

ANDES-SN em tal episódio. Procede-se, ainda, a uma análise preliminar acerca da situação

previdenciária antes da reforma, de modo a avaliar os efeitos das alterações promovidas.

Por fim, nas considerações finais, visa-se explicitar as relações entre as categorias de

estudo: Movimentos Sociais, Estado Liberal de Direito e Educação, destacando-se que a

pesquisa baseou-se em dados bibliográficos de diversos autores, a partir dos quais se

fundamenta a análise do estudo de caso do ANDES-SN e suas ações perante a Reforma

Previdenciária de 2003, bem como as possíveis influências da lógica do Estado Liberal de

Direito no desempenho do papel educativo dos movimentos sociais.

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CAPÍTULO 1

Os Movimentos Sociais: em busca de um conceito

A expressão “movimentos sociais” desponta na primeira metade do século XIX,

aproximadamente em 1840, quando havia na Europa fortes mobilizações da sociedade, em

especial do proletariado francês, dos defensores do comunismo, bem como dos socialistas.

Assim, no campo da Sociologia Acadêmica, Lorenz Von Stein foi responsável pelo

surgimento do termo “movimentos sociais”, defendendo a construção de teorias científicas

que estudassem tais fenômenos sociais. Ainda no século XIX tem-se Karl Marx que, com seus

escritos acerca da organização da sociedade em classes, contribui para a visão de movimentos

sociais sob a ótica da organização de classes em torno de interesses comuns a cada uma delas,

visando, pois, a mudanças na forma de estrutura da sociedade. No entanto, apenas no século

XX as teorias de Marx são incorporadas aos estudos específicos sobre movimentos sociais e

também nele se dá a intensificação do interesse pelo estudo desta área, destacando-se autores

como Mac-Iver, R. Heberle, G. Rocher e, especialmente, Alain Touraine, cujos estudos até os

dias atuais são freqüentemente retomados (SCHERER-WARREN, 1987, p. 12-13).

Além de Marx e Von Stein, já no início do século XX, o francês Gustave Le Bon

trabalhou a questão da “psicologia de massas”, que enfatiza as alterações no comportamento

do indivíduo “quando este é subsumido à massa, deixando de ser racional e comedido para se

transformar em irracional, animalesco, que age segundo seu medo e seus instintos”

(SOBOTTKA, 2002, p. 6).

Analisando comparativamente a tese de Marx e de Le Bon, refere Hellmann tratar-se

de teorias opostas pois, para Marx, os movimentos sociais são concebidos como ação coletiva,

“com uma racionalidade própria fundamentada na contradição intrínseca das relações

sociais”, enquanto para Le Bon, os movimentos sociais apresentam um comportamento

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coletivo essencialmente irracional, “conduzido por medos e afetos, sem objetivos claros ou

autocontroles suficientes” (HELLMANN, 1999, p. 94 apud SOBOTTKA, 2002, p. 7). Le Bon

aborda a temática sob a visão da “psicologia das massas”, segundo a qual “las masas se

convierten en la agencia de cambio social por excelencia, ya que su surgimiento e importancia

van a generar la liquidación de las civilizaciones envejecidas”.

Segundo Laraña, a teoria da psicologia das massas de Le Bon constrói-se a partir da

teoria elitista da sociedade, afirmando que as civilizações foram criadas e guiadas por uma

aristocracia intelectual reduzida. Essa ordem foi destruída pela erupção das massas, ao

fazerem desaparecer os atributos da civilização, com suas regras fixas, disciplina etc. Pela

teoria de Le Bon, a transformação social pelo coletivo ocorre por dois fatores: um sentimento

de potência invencível, fruto da condição de anonimato dos indivíduos quando na

coletividade, o que permite ceder a instintos e abandonar o sentimento de responsabilidade e,

ainda, pela dinâmica de contágio social proporcionada pelo grupo, tornando mais fácil o

sacrifício de interesses individuais em favor do coletivo (LARAÑA, 1999, p. 45). Na verdade,

“al estar inmerso en una masa, la personalidad consciente del individuo es sustituída por la

inconsciente y actúa como si estuviese hipnotizado” (LE BON, 1986, p. 32 apud LARAÑA,

1999, p. 46).

A teoria de Le Bon, no entanto, com o avanço dos estudos nesse campo, deixou de

ser utilizada de forma absoluta, embora aproveitada em alguns de seus aspectos pelos

estudiosos mais modernos. A desconsideração à sua totalidade se dá em face da generalização

que o autor efetuava, aplicando suas regras a qualquer situação de coletividade (LARAÑA,

1999, p.46).

Com o passar dos tempos, outras abordagens ganharam destaque, sendo relevante, a

fim de abordar-se o tema dos movimentos sociais, conceituar o assunto de modo a propiciar a

compreensão do sentido emprestado à expressão em comento e, portanto, promover o

conhecimento das idéiais dos autores que apresentam o tema. Esclareça-se, porém,

contrariamente ao que se poderia pensar em um primeiro momento, que localizar um conceito

para “movimentos sociais” não é tarefa simples, sendo extremamente variável a definição

exposta pela doutrina conforme o referencial teórico no qual se embasam os autores para a

construção de suas teses.

No entanto, a busca de um conceito acerca dos movimentos sociais, segundo os

pesquisadores deste campo de estudo, faz-se imprescindível para o presente trabalho, na

medida em que se visa verificar se os sindicatos enquadram-se, ou não, na categoria de

movimentos sociais. A partir disso, objetiva-se, também, avaliar se a Associação Nacional dos

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Docentes do Ensino Superior – Sindicato Nacional (ANDES-SN) pode ser considerada como

um movimento social e, neste caso, quais as conseqüências educativas extraídas de suas ações

perante a Reforma da Previdência Social de 2003.

Diversos autores serão utilizados como embasamento teórico para a busca dos

conceitos necessários, inclusive teóricos, a seguir especificados, que abordam a questão nos

Novos Movimentos Sociais (NMS). Com isso, quiçá seja possível, a partir de considerações

acerca desta temática (NMS), localizar fundamentos para a definição dos movimentos sociais,

do enquadramento sindical e do ANDES-SN.

1.1 Conceito de Movimentos Sociais

Começa-se com a definição trazida por Gianfranco Pasquino, para o qual os

movimentos sociais caracterizam-se por comportamentos coletivos que buscam, por meio de

práticas sociais, alterar situações sociais. Os comportamentos do grupo estão fundamentados

em valores e concepções dos membros do respectivo conjunto, o qual origina uma nova

coletividade. Esta não ocorre, porém, se há a junção de um significativo número de pessoas

nas situações sem um ideário comum, ou seja, sem estarem unidas em nome de uma

determinada causa e visando a resultados específicos.

O autor ressalta o posicionamento de Ortega y Gasset, para quem o comportamento

expressado pela coletividade representa a irracionalidade, podendo acarretar “um rompimento

perigoso da ordem existente”(PASQUINO, 1992, p. 787-788). Tal posicionamento (de Ortega

Y Gasset) se assemelha ao entendimento referido de Le Bon, mas parece ser mais adequado

aos comportamentos coletivos identificados por multidão e sem organização e propósitos

previamente definidos.

Pasquino frisa o entendimento esposado por Marx, Durkhein e Weber, os quais,

apesar de nuances distintas:

[...] vêem nos movimentos coletivos um modo peculiar de ação social, variavelmente inserida ou capaz de se inserir na estrutura global da sua reflexão, quer eles denotem transição para formas de solidariedade mais complexas, a transição do tradicionalismo para o tipo legal-burocrático, quer o início da explosão revolucionária. (PASQUINO, 1992, p. 787)

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Assim, a partir das referências anteriores, segundo Pasquino, os movimentos sociais

são grupamentos de pessoas motivadas para o alcance de um determinado resultado,

previamente estabelecido à luz dos valores do grupo, visando a transformações, mudanças nas

situações sociais existentes. No mesmo sentido localiza-se a definição de Ilse Scherer-Warren,

que apresenta expressamente um conceito em sua obra “Movimentos Sociais: um ensaio de

interpretação sociológica”, entendendo os movimentos sociais como:

[...] ação grupal para transformação (a práxis) voltada para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua direção). (1987, p. 20)

Veja-se que a compreensão de Scherer-Warren tem sua origem a partir de quatro

categorias: práxis, projeto, ideologia e organização, estando todas presentes nas teorias de

Marx. Desta feita, trata-se de uma conceituação construída à luz das idéias marxistas.

Contudo, ela apresenta um outro conceito, em obra mais atual1, na qual entende os

movimentos sociais como

um conjunto mais abrangente de práticas sociopolítica-culturais que visam à realização de um projeto de mudança (social, sistêmica ou civilizatória), resultante de múltiplas redes de relações sociais entre sujeitos e associações civis. É o entrelaçamento da utopia com o acontecimento, dos valores e representações simbólicas com o fazer político, ou com múltiplas práticas efetivas (1999 apud

MARTELETO; RIBEIRO e GUIMARÃES , 2002, p. 74).

Segundo Maria da Glória Gohn, há diferentes formas de compreender este fenômeno

social conforme o enfoque manifestado. A autora apresenta, na obra “Teoria dos Movimentos

Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos” (2004), diversos autores, a partir dos quais

se visa convergir para a conceituação dos movimentos sociais.

Muitos dos autores abordados por Gohn, na verdade, tratam de uma categoria

singular de estudo: os Novos Movimentos Sociais. Nessa linha, segundo Gohn, há três

correntes européias de destaque: francesa, italiana e alemã, respectivamente lideradas pelos

pesquisadores Alain Touraine, Alberto Melucci e Claus Offe. De qualquer forma, ainda que

tais autores abordem a temática dos Novos Movimentos Sociais, em face dos respectivos

históricos acerca do estudo da temática, buscam-se referências em suas teorias para a

caracterização geral dos movimentos sociais (clássicos).

Frise-se que o fenômeno dos Novos Movimentos Sociais não indica,

necessariamente, a extinção dos antigo modelo de movimentos sociais, tratando-se o seu 1 Trata-se da obra “Cidadania sem fronteira; ações coletivas na era da globalização”. São Paulo: Hucitec, 1999, citada por MARTELETO; RIBEIRO e GUIMARÃES, 2002.

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surgimento, na verdade, de uma decorrência das mudanças estruturais ocorridas na sociedade.

Há autores que entendem, inclusive, que os Novos Movimentos Sociais foram, de alguma

forma, influenciados pelos movimentos de trabalhadores, e, portanto, não haveria

verdadeiramente qualquer ruptura. Por outro lado, existem aqueles que contestam inclusive a

concepção de haver efetivamente uma nova forma de integração social. Essas são as

ponderações apresentadas por Marcelo Solervicens:

Respecto de la asignación de un carácter “nuevo” a los movimientos sociales existe mayor polémica. La designación de nuevos, en comparación con viejos movimientos sociales parece discutible aún cuando se incorporan aspectos que influyen sobre la constitución y la acción de los movimientos sociales en una historicidad determinada. En las sociedades desarrolladas la distinción entre viejos movimientos obreros reivindicativos y nuevos movimientos sociales identitarios o referidos a una condición (pacifistas, ecologistas, mujeres, homosexuales, etc) corresponde a cambios estructurales en la sociedad. En el caso latinoamericano y chileno esta distinción es más difícil porque los “viejos” movimientos sociales no reflejaban la complejidad de las sociedades latinoamericanas (por la exitencia de la problemática indígena, por ejemplo). En cuanto a los “nuevos” movimientos sociales hay dudas sobre la existencia de un nuevo marco estructural por la manutención de la segmentación económica y la marginación social en América Latina. Los movimientos sociales urbanos, adscritos al territorio reconocen una influencia de la experiencia del movimiento obrero, lo que podría revelar una línea de continuidad y no de ruptura de movimiento social popular. Finalmente, algunos autores niegan incluso la existencia de nuevos movimientos sociales porque la nueva forma de integración social luego de transformaciones en la estructura de la sociedad privilegian una integración individual y no en términos de movimientos sociales (1993. p. 3).

Apesar do entendimento de Solervicens, o qual resume alguns posicionamentos

localizados na doutrina acerca dos Novos Movimentos Sociais, apresentar-se-á, na

classificação de Maria da Glória Gohn, a posição dos autores antes referidos: Touraine,

Melucci e Offe, os quais contribuem para o entendimento da temática dos movimentos sociais

em geral, utilizando-se, ademais, outros autores.

1.1.1 Alain Touraine

A partir dos escritos de Gohn, vê-se que Alain Touraine apresenta uma longa

trajetória de estudo dos movimentos sociais, destacando ao passar do tempo (desde 1960)

diferentes aspectos dos movimentos. O autor constrói sua teoria tendo como referencial o

chamado paradigma acionalista que, conforme explicita Maria da Glória Gohn, utiliza um dos

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elementos basilares do funcionalismo, segundo o qual “toda ação é uma resposta a um

estímulo social” (2004, p.142).

Para Touraine, os movimentos sociais, para assim se caracterizarem, dependem de

três elementos: “o ator, seu adversário e o que está em jogo no conflito”. Logo, os

movimentos sociais, segundo esse autor, são voltados “para uma ação crítica, que repousa

sobre a contradição e não sobre o conflito” (GOHN, 2004, p.145). Enfim, para Touraine, os

movimentos sociais nascem a partir da vontade coletiva, sendo

(...) agentes de liberdade, de igualdade, de justiça social ou de independência nacional, ou ainda como apelo à modernidade ou à liberação de forças novas, num mundo de tradições, preconceitos e privilégios (Touraine, 1978, p.35 apud GOHN, 2004, p. 145).

Apesar dessa visão dos movimentos sociais, Touraine entende ser um equívoco

vislumbrar os movimentos sociais como agentes de transformação social, ou seja, ele sustenta

que os movimentos sociais não são instrumentos para a construção do futuro, mas sim, “fruto

de uma relação de produção e organização social”, tendo, outrossim, segundo Gohn, “o papel

mais de agentes de pressões sociais do que de atores principais das transformações sociais

propriamente ditas” (2004, p.146-147).

Maria da Glória Gohn ressalta que Touraine, ao longo do tempo, alterou a análise

acerca dos movimentos sociais, mas permaneceram alguns itens a partir dos quais se podem

caracterizar os movimentos sociais segundo este autor. Sustenta Gohn:

Trata-se de ações orientadas para interações entre adversários em conflito, de interpretações e modelos societais opostos, assim como de campos culturais divididos, separados. Os movimentos sociais são ações coletivas que se desenvolvem sob a forma de lutas ao redor do potencial institucional de um modelo cultural, num dado tipo de sociedade (2004, p.149).

Conforme Ilse Scherer-Warren, Alain Touraine vê os movimentos sociais como os

comportamentos coletivos mais relevantes, pois “são maneiras permanentes no coração da

vida social (...) são a trama da sociedade”, ou seja, “são as forças centrais que lutam umas

contra as outras para dirigir a produção da sociedade por ela mesma, a ação de classe2 pela

direção da historicidade” (1987, p. 90-91).

2 Quando Touraine fala em ação de classe refere-se às classes sociais sob o prisma dialético. O primeiro é de uma “ classe (que se identifica com a historicidade) e que luta contra uma classe contestatória (que se opõe à ordem estabelecida em nome de uma nova historicidade e pela sua libertação); e aquela de uma classe dominante (que transforma a direção da historicidade em ordem e em mecanismo de sua reprodução e de sua defesa como tal) que se contrapõe à classe dominada (e expropriada em função de ordem social que se estabelece). Portanto,

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Para Touraine, os movimentos sociais representam a vida social antes de se

caracterizarem como fenômenos sociais. Tal representação vem sendo revista ao longo dos

tempos na medida em que os conflitos sociais também têm seu foco alterado. Basta verificar-

se que, no século XIX até meados do século XX, os conflitos nasciam especialmente nas

relações de produção, entre os trabalhadores e a burguesia. Hoje, embora tais conflitos ainda

estejam presentes, ficaram minimizados diante da era globalizada, na qual o individualismo

ganha relevo, não havendo questões centrais de preocupação da sociedade, pois os indivíduos

estão centrados em si próprios (GOHN, 2004, p. 151).

Segundo Gohn, Touraine coloca-se em contraposição às idéias de Marx entendendo

que “a noção de movimento social deve tomar o lugar da noção de classe social”. Afinal,

atualmente, “não se trata mais de lutar pela direção dos meios de produção e sim pelas

finalidades das produções culturais, que são a educação, os cuidados médicos e a informação

de massa” (TOURAINE, 1994: 257, 260-262 apud GOHN, 2004, p. 152).

Assim, para Touraine, nos termos de Scherer-Warren, os movimentos sociais são:

(...) agentes históricos que expressam, em cada momento, as formas históricas de opressão, de miséria, de injustiça, de desigualdade, etc., mas expressam também muito mais do que isto, pois expressam o devir, através de sua crítica, de suas formas de contestação, de lutas na busca de novas alternativas, para o comando de uma nova historicidade (1987, p. 94).

No século XIX, os movimentos manifestavam-se enfatizando as relações entre as

classes sociais, entre os detentores dos meios de produção e os trabalhadores, explorados em

sua mão-de-obra. Procuravam, na verdade, outros caminhos para a sociedade, a fim de

eliminar o referido conflito. Nesse campo estão os sindicatos que, na condição de

representantes dos trabalhadores (ou dos detentores dos meios de produção), têm como

característica a implementação de ações conforme o momento histórico vivenciado, visando à

defesa dos interesses dos representados e, em muitos momentos, mais do que isso, agindo

com objetivos de concretizar mudanças ou manter o contexto socioeconômico, conforme os

interesses defendidos.

Os sindicatos de trabalhadores, em vista de sua organização e, na verdade, em face

daqueles que representam (os obreiros), bem como daqueles a que se opõem, denotam

claramente a luta de classe em que estão envolvidos. Luta de classe que compreende a

tentativa de superar essa divisão social, a partir da qual poucos detêm os meios de produção e,

as classes se situam tanto num campo cultural quanto num campo de conflito de relações de produção. São tanto atores políticos, quanto agentes econômicos” (Scherer-Warren , 1987, p. 91-92).

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utilizando-se da mão-de-obra e da mais-valia, logram angariar mais meios de produção,

perpetuando-se nessa condição, enquanto o trabalhador, por mais que desempenhe as

atividades imputadas, dificilmente obterá, com a remuneração obtida, os meios de produção.

Na atualidade, porém, os sindicatos já não se restringem à representação de

trabalhadores vinculados aos detentores dos meios de produção, eles abrangem, também,

outras categorias, como a dos servidores públicos, cujo vínculo está com o próprio Estado,

que utiliza sua mão-de-obra para o cumprimento das obrigações que lhe cabem, visando, desta

forma, atender às necessidades sociais.

Entre os sindicatos dos servidores públicos encontra-se a Associação Nacional dos

Docentes do Ensino Superior – Sindicato Nacional (ANDES-SN), cujo histórico constitutivo

e de lutas sociais será abordado adiante, visando, então, destacar as distinções em relação aos

demais sindicatos, representativos de trabalhadores da iniciativa privada, para os quais há um

conflito intrínseco à condição de dependência aos detentores dos meios de produção, o que,

de certa forma, não ocorre com servidores públicos.

Atualmente, além da questão relativa ao surgimento de outros tipos sindicais, como o

dos servidores públicos, novos conflitos foram nascendo, impondo, assim, o aparecimento de

novas lutas, que despontaram organizadas por Novos Movimentos Sociais, com

características próprias, distintas dos outros movimentos sociais, especialmente no tangente à

forma de organização (menos centralizada, visando à participação democrática das bases e

autogestão da coletividade) e aos objetivos (que passam a ser imediatos e pontuais, e não mais

a mudança global da sociedade, como nos antigos movimentos sociais). Além disso, há a

contestação do poder com a denúncia das relações de dominação, e não apenas a afirmação de

uma identidade (SCHERER-WARREN, 1987, p. 96-97). Para Touraine, então, confirma-se o

já referido: “os movimentos têm o papel mais de agentes de pressões sociais do que de atores

principais das transformações sociais propriamente ditas” (GOHN, 2004, p. 147).

No entanto, não se pode descartar que, atuando como “agentes de pressões sociais”,

os movimentos sociais acabam por ser potenciais transformadores da sociedade, na medida

em que exercem pressões diante de situações concretas. Essa conclusão pode ser obtida

quando se vê o próprio Touraine afirmar:

um movimento social nunca se reduziu à defesa dos interesses dos dominados; sempre quis abolir uma relação de dominação, fazer triunfar um princípio de igualdade, criar uma sociedade nova em ruptura com as formas antigas de produção, de gestão e de hierarquia (2003, p. 115).

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Segundo Gianfranco Pasquino, Alain Touraine afirma: “os movimentos sociais

pertencem aos processos pelos quais uma sociedade cria a sua organização a partir do seu

sistema de ação histórica, através dos conflitos de classe e dos acordos políticos”

(TOURAINE, 1975, p. 397 apud PASQUINO, 1992, p. 789).

Os movimentos nascem na própria sociedade em vista das condições históricas,

fazendo explodir conflitos, havendo a partir disso a capacidade de influenciar as estruturas

sociais, preocupando-se Touraine com os conflitos de grande relevo. Diz Pasquino:

O sociólogo francês se desinteressa pelos comportamentos coletivos e se ocupa quase exclusivamente dos Movimentos Sociais, mais particularmente dos movimentos sociais capazes de influir profundamente na estruturação de um sistema social. Com tal procedimento, porém, parece indicar que um sistema social só muda mediante conflitos de grande relevo e não igualmente mediante adaptações de breve duração, marginais, incompletas, de pequena importância, mas que deixam marcas (PASQUINO, 1992, p. 789).

Mas, há alguns itens acerca dos movimentos sociais, apresentados por Alain

Touraine, que não podemos desconsiderar para efeitos de uma adequada noção acerca do

tema

A noção de movimento social só é útil se permitir pôr em evidência a existência dum tipo muito particular de ação coletiva, aquele tipo pelo qual uma categoria social, sempre particular, questiona uma forma de dominação social, simultaneamente particular e geral, invocando contra ela valores e orientações gerais da sociedade, que ela partilha com seu adversário, para privar este de legitimidade. Pode-se inverter a fórmula e reconhecer também a existência de movimentos conduzidos por categorias dominantes e dirigidos contra categorias populares consideradas obstáculos à integração social ou ao progresso econômico. Em ambos os casos, porém, o movimento social é muito mais do que um grupo de interesses ou um instrumento de pressão política. Ele questiona o modo de utilização social de recursos e de modelos culturais (2003, p. 113).

Como se vê acima, o autor frisa a posição delicada em que se encontra o

entendimento acerca dos movimentos, pois os conflitos existentes são distintos daqueles de

outros tempos, quando a relação capitalismo x trabalhadores era forte. Hoje, na verdade, tem-

se uma sociedade mundializada e, mantendo-se a compreensão dos movimentos sociais tal

como se fazia na época da industrialização, há o risco de não se localizarem movimentos

sociais na sociedade atual. A partir dessas colocações, Touraine denomina, então, os

movimentos sociais como “movimentos societais”, indicando que estes “questionam

orientações gerais da sociedade”. Essa nomenclatura diferenciada se dá porque Touraine

discorda da atribuição, a qualquer tipo de ação coletiva, do nome de movimento social,

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frisando, assim, que a utilização desta denominação é demasiada e facilmente empregada em

situações em que não se enquadra (2003, p.113).

Em síntese, extrai-se de Touraine a afirmativa de os movimentos societais

defenderem “um modo de emprego social de valores morais em oposição ao que defende e

tenta impor seu adversário social”, sendo as facetas de um movimento “as referências morais

e a consciência de um conflito com um adversário social” (2003, p. 119). Ao efetuar tais

defesas, os movimentos desejam, sim, transformar valores e buscar alterações sociais.

No caso específico do ANDES-SN, na condição de representante dos docentes do

ensino superior, destaca-se a defesa da universidade pública, da valorização dos docentes, da

necessidade de investimentos na estrutura de ensino para proporcionar melhores condições de

trabalho etc, enfim, a luta pela manutenção e concretização, de valores nem sempre

apreciados pelos responsáveis públicos (governantes). Nesse ponto, então, tem-se o ANDES-

SN na condição de um movimento social, nos termos do conceito de Touraine, especialmente

em face da defesa de valores dos quais, muitas vezes, os ocupantes do poder distanciam-se ao

implementarem suas ações políticas.

1.1.2 Alberto Melucci

Já a corrente italiana dos movimentos sociais, referenciada por Alberto Melucci, tem

o movimento social como “uma construção analítica”, a partir da qual se têm “formas de ação

coletiva que invocam solidariedade, manifestam um conflito e vinculam uma ruptura (ou

quebra) nos limites de compatibilidade do sistema onde a ação tem lugar”. Melucci elege em

sua terminologia a expressão “ação coletiva” ao invés de movimentos sociais, isto porque

questiona o conceito de movimentos sociais por considerá-lo reducionista, prefere, pois, ações

coletivas, que entende ser mais abrangente (GOSS e PRUDENCIO, 2004, p. 75).

Nesse ponto observa-se, desde logo, a oposição entre Melucci e Touraine quanto à

terminologia, ou seja, enquanto Touraine entende aplicar-se demasiadamente o termo

“movimento social” a qualquer ação coletiva, Melucci prefere trabalhar a questão de forma

mais aberta, ou seja, utilizando-se da expressão “ação coletiva”, o que permite a ampliação do

campo de análise.

Conforme Melucci, a ação coletiva é

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Um conjunto de práticas sociais que envolvem simultaneamente certo número de indivíduos ou grupos que apresentam características morfológicas similares em contigüidade de tempo e espaço, implicando um campo de relacionamentos sociais e a capacidade das pessoas de incluir o sentido do que estão fazendo (1996, p.20 apud GOHN, 2004, p. 154).

A ação coletiva é vista pelo autor, nos termos expostos por Gohn, como “a união de

vários tipos de conflitos baseados no comportamento dos atores num sistema social” (2004,

155). O comportamento dos atores resulta de múltiplos processos, a partir dos quais dá-se a

criação da identidade coletiva do grupo; são as ações grupais que promovem a constituição e a

transformação dos atores coletivos, proporcionando-lhes a aquisição de identidade nova, que

passa a fazer parte do coletivo.

Os tipos de ações coletivas referidas por Melucci são “as revoluções, a violência, o

comportamento da multidão e os conflitos decorrentes da participação em ações diretas”, não

se confundindo as ações coletivas “com os lugares da práxis social, onde aquelas ações têm

lugar (instituições, organizações, associações etc.)” (GOHN, 2004, p. 154-155).

A questão frisada por Melucci quanto aos movimentos sociais é a da identidade dos

atores e a interação destes com o coletivo, o que, de certo modo, acaba por não auxiliar em

uma definição precisa de movimentos sociais, porém, permite o conhecimento acerca da

questão estrutural destes, com especial destaque para a identidade coletiva, vista como

envolvente de três mecanismos:

“a definição cognitiva concernente a fins, meios e campo da ação; a rede de relacionamentos ativos entre os atores que interagem, comunicam-se, e influenciam uns aos outros, negociam e tomam decisões; e, finalmente, a identidade coletiva requer um certo grau de investimento emocional, no qual os indivíduos sintam-se, eles próprios, parte de uma unidade comum” (MELUCCI, 1995, P. 44-45 apud GOHN, 2004, p. 159) (grifo nosso).

Aliada à questão da identidade segundo o conceito de Melucci, tem-se uma “elevada

integração simbólica”, conforme Joachim Raschke, significando: “o grupo que se constitui

como movimento social é caracterizado por um sentimento de nós” (RASCHKE, 1987, p.78).

Segundo Melucci, os movimentos sociais são, em face da questão da identidade

coletiva, instâncias educativas, pois com a coletividade há aprendizagem do sistema de

relações e representações que compõem as ações coletivas; além disso, existe auto-reflexão a

respeito das ações implementadas.

O aspecto educativo também está presente para fora do movimento social, o que se

depreende de Melucci quando o mesmo afirma: os “movimentos são um sinal; eles não são

meramente o resultado de uma crise”, ou seja, eles indicam transformações no processo da

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sociedade, comportando-se, na verdade, como profetas, pois “falam antes: anunciam o que

está tomando forma mesmo antes de sua direção e conteúdo tornarem-se claros” (MELUCCI,

1996, p.1 apud GOHN, 2004, p. 157).

Assim, os movimentos sociais podem apresentar-se como organizações educativas na

justa medida em que propiciam à sociedade o conhecimento daquilo previsto por eles no

âmbito das transformações sociais. Coloca Gohn que Melucci concorda com Touraine quando

“vêem os movimentos sociais como uma lente por meio da qual problemas mais gerais podem

ser abordados”. Ocorre a partir da atuação dos movimentos, “uma transformação na cultura”,

além de haver a institucionalização de práticas sociais e a mudança de linguagem cultural de

uma época. Por fim, diz Gohn que o autor conclui: “os movimentos têm capacidade de

produzir novas formas de nomeação da realidade e desmascarar velhas maneiras de agir”

(MELUCCI, 1994 apud GOHN, 2004, p. 157-158).

Com base em tais afirmativas pode-se dizer, então, que segundo Melucci os

movimentos sociais desenvolvem ações cujo resultado pode ser educativo, pois dão

conhecimento à sociedade de uma série de aspectos sociais em que estão envolvidos por sua

luta. A questão educativa aparece como uma das finalidades dos movimentos sociais, ou, pelo

menos, como resultado de suas ações. Evidentemente, não se trata de educação no sentido

ordinário, ou seja, nas instâncias escolares, mas em plano muito mais amplo, pois pode

alcançar tanto quem está envolvido nas práticas do movimento, como a sociedade em geral.

A amplitude do alcance do movimento social em relação à sociedade dependerá, em

muitos casos, da estrutura organizacional e de pessoal — militantes — de que é portador. Um

dos movimentos sociais destacável por ações de caráter educativo no âmbito social é a

Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior – Sindicato Nacional (ANDES – SN),

porque apresenta um histórico de luta que, inequivocamente, contribuiu para a restauração da

democracia no Brasil, tendo sido esta bandeira uma das principais ao tempo de sua fundação3

(DIAS, 2005, p.27). A organização dos docentes no âmbito universitário, diante das

necessidades existentes tanto no ambiente das próprias universidades, como frente à realidade

política vivenciada na década de 70, fez nascer a idéia de constituição do ANDES-SN, de

modo a facilitar o conhecimento público dos anseios da classe docente (OTRANTO, 2000, p.

217). Isso também fez nascer o sentido da coletividade, do nós enquanto docentes vinculados

pelos mesmos interesses. Assim, o caráter educativo de tal movimento, não se pode negar, foi

3 A abordagem relativa ao histórico da Andes, sua origem e desenvolvimento ao longo dos anos será abordada de forma mais específica no subcapítulo 2.3.3, localizado no item 2.3, no qual será trabalhada a questão dos sindicatos como movimentos sociais (item 2.3).

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alcançado em alguns momentos, especialmente na luta pela restauração democrática

brasileira.

O questionamento surgido hoje diz respeito a um suposto enfraquecimento desse

importante movimento social, destacado por sua composição: educadores das instituições

superiores de ensino, mas que aparenta encontrar-se um tanto apático (ou efetivamente

impotente) diante de reformas constitucionais/legislativas ofensivas às garantias

constitucionais arduamente conquistadas, como foi o caso da Reforma da Previdência Social

de 2003, temática a ser aprofundada em capítulo próprio.

Para Melucci, as ações coletivas são “a união de vários tipos de conflitos baseados no

comportamento dos atores num sistema social”. As formas ordinárias de ações sociais

conflituosas são aquelas representadas pela violência, pelos comportamentos da multidão,

revoluções e outras ações diretas. Contudo, a simples existência de algum conflito com a

inobservância de regras e normas não identifica a ação como própria de um movimento social,

pois este, de fato, identifica-se quando há a “luta entre dois atores por uma mesma coisa”. Isto

porque os movimentos sociais são “uma construção analítica e não um objeto empírico ou um

fenômeno observável” (GOHN, 2004, p. 155). Dita construção analítica “designa formas de

ação coletiva que invocam solidariedade, manifestam um conflito e vinculam uma ruptura (ou

quebra) nos limites de compatibilidade do sistema onde a ação tem lugar” (MELUCCI,

1996,p. 28 apud GOHN, 2004, p. 155).

Conforme expõe Gohn, para Melucci, os “movimentos são sistemas de ações, redes

complexas entre os diferentes níveis e significados da ação social”. Para ele, a questão da

organização não é elemento chave para a existência de um movimento social:

Ao contrário, Melucci se respalda mais nas teses dos interacionistas simbólicos, mais preocupados com o nível ideacional e com o conjunto de representações que um movimento cria ao longo de sua existência. O movimento como uma organização poderá ter decrescido ou até mesmo desaparecido, mas existirá na sociedade por meio das representações que criou e que passam a mediar ou servir de parâmetro para as relações sociais cotidianas (GOHN, 2004, p. 155). (grifo nosso)

À luz das colocações acima, pode-se afirmar que, para Melucci, alguns itens são

irrelevantes quando o objetivo é caracterizar os movimentos sociais. Entre tais aspectos, a

questão da organização do movimento pois, independente deste elemento, ele poderá estar

vivo na sociedade. Da mesma forma, aponta ser desprovida de importância a questão das

formas de ação, se baseadas na violência e no comportamento de multidão, pois as ações

assim caracterizadas podem, ou não, ser implementadas por um movimento social.

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A partir das palavras de Gohn transcritas acerca de Melucci, pode-se suscitar

exatamente a questão do ANDES-SN, destacado por sua organização institucional e inserção

no sistema legal enquanto pessoa jurídica e, portanto, na condição de instituição

representativa, podendo o movimento docente propriamente dito ter sido absorvido pela

organização ANDES-SN. Se isso efetivamente tiver ocorrido, quais as causas geradoras e

conseqüências é tema a ser abordado mais adiante no presente trabalho, juntamente com os

fatores que supostamente causam o enfraquecimento dos movimentos.

A questão da identidade coletiva é muito forte para Melucci a ponto de Pasquino

afirmar que, para o teórico em comento, os primeiros grupos sociais a rebelarem-se não são

aqueles considerados em situações de opressão ou desagregação, “mas os que experimentam

uma contradição intolerável entre a identidade coletiva existente e as novas relações sociais

impostas pela mudança”. A principal justificativa para tal acontecimento está no aspecto de

tais grupos já contarem com experiência quanto aos procedimentos e métodos de luta e

disporem de líderes e recursos organizativos, entre outros aspectos que facilitam a

mobilização (PASQUINO, 1992, p. 791).

Pasquino explicita, ademais, a relevante relação existente entre os agentes

participantes das mobilizações e o tipo de movimento social formado. Diz, seguindo os

estudos de Touraine e Melucci, ser possível vislumbrar movimentos reivindicativos, políticos

e de classe, dando-se as distinções conforme os objetivos perseguidos:

No primeiro caso, trata-se de impor mudanças nas normas, nas funções e nos processos de destinação de recursos. No segundo, se pretende influir nas modalidades de acesso aos canais de participação política e de mudança das relações de força. No terceiro, o que se visa é subverter a ordem social e transformar o modo de produção e as relações de classe (PASQUINO, 1992, p. 791).

Embora se possa verificar, pelos estudos de Melucci, a classificação de movimentos

de classe, conforme expõe Pasquino, há de se considerar que Alberto Melucci nega a tradição

marxista no sentido dos movimentos sociais como “meras expressões de condições estruturais

da classe e de suas contradições”, refutando, ainda, a idéia de existir uma análise marxista a

respeito dos movimentos sociais, embora reconhecendo haver “análises da crise de produção

capitalista e suas transformações” (MELUCCI, 2001, p. 30).

Especificamente em relação aos estudos de Alberto Melucci, importa considerar que

este apresenta na obra “A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades

complexas” uma classificação dos movimentos sociais um pouco distinta da apontada por

Pasquino, entendendo que, conforme as condutas adotadas, os movimentos podem ser

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reivindicativos, políticos e antagonistas. O movimento reivindicativo está caracterizado “se o

conflito e a ruptura das regras ocorrem no interior de um sistema organizativo, caracterizado

por papéis e funções” (2001, p.41). Sendo sistema organizativo aquele no qual as relações

asseguram “o equilíbrio de uma sociedade e a sua adaptação ao ambiente, através de

processos de integração e de troca entre as partes do sistema”. Os comportamentos que

compõem o próprio sistema estão regulados normativamente (2001, p.39). No caso do

movimento reivindicativo

O ator coletivo reivindica uma diversa distribuição dos recursos no interior da organização, luta por um funcionamento mais eficiente do aparato, mas se confronta também com o poder que impõe as regras e as formas de divisão do trabalho. A ação pode referir-se à defesa das vantagens de uma categoria, pode mobilizar um grupo de trabalhadores marginalizados, pode reivindicar uma diversa distribuição dos papéis e das recompensas, mas tende a ultrapassar os limites de uma organização e do seu quadro normativo (MELUCCI, 2001, P. 41).

Já o movimento político destaca-se pelo aspecto político das ações coletivas, pois

luta pela superação dos limites do sistema político, busca a “ampliação da participação nas

decisões e se bate contra o desequilíbrio do jogo político que privilegia sempre certos

interesses sobre outros” (MELUCCI, 2001, p.41).

No terceiro tipo, os movimentos antagonistas têm as ações coletivas voltadas contra

o modo pelo qual os recursos de uma sociedade são produzidos, colocando “em questão os

objetivos da produção social e a direção do desenvolvimento”. O autor afirma que tais

movimentos não existem de per si, mas associados aos movimentos reivindicativos ou

políticos, sendo de qualquer forma importante a classificação, pois os grupos dominantes

tendem a “negar a existência de conflitos que atingem a produção e a apropriação dos

recursos sociais”. Ademais, “é necessário reconhecer que nem todas as formas de ação

coletiva são portadoras de conteúdos antagonistas(...)” (MELUCCI, 2001, p. 42).

O ANDES-SN, por sua vez, parece enquadrar-se, prioritariamente no tipo de

movimento reivindicativo, pois suas ações estão centradas exatamente na luta por um melhor

funcionamento do aparato público, incluindo, nesse ponto, a busca por melhores condições de

trabalho para os docentes do ensino superior, o que inclui melhorias individuais, como

salários, e melhorias coletivas, relacionadas ao âmbito estrutural universitário. A partir dos

seus objetivos, destaca-se também como movimento político, pois busca a “ampliação da

participação nas decisões e se bate contra o desequilíbrio do jogo político que privilegia

sempre certos interesses sobre outros” (MELUCCI, 2001, P.41).

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Mas seja qual for o tipo de movimento social comentado, é relevante frisar que

Melucci não vê os movimentos sociais como meras respostas às crises econômicas (GOHN,

2004,p.158-160), pois, se assim fosse, a luta histórica da classe operária contra a exploração

econômica seria facilmente resolvida com melhores condições salariais aos trabalhadores,

contudo, de fato, o conflito existente na sociedade industrial dizia respeito à própria lógica da

produção (MELUCCI, 2001, p. 34). Assim o autor considera os movimentos sociais como

expressão de um conflito cuja origem é “a luta de dois atores pela apropriação de recursos

valorizados por ambos” (MELUCCI, 2001, p.33).

Os movimentos sociais são vistos por Melucci como “fenômenos simultaneamente

discursivos e políticos, localizados na fronteira entre as referências da vida pessoal e política”

(MELUCCI, 1994, p.185 apud GOHN, 2004, p. 160). A ideologia é de extrema relevância

para a análise dos movimentos sociais, isto porque “ela não é estática, atua num campo de

conflitos e tensões entre os diferentes grupos e facções de um movimento e seu controle é

uma fonte importante de liderança”. Ademais, é fornecedora dos “marcos que os atores usam

para representar suas ações e é uma das principais ferramentas para garantir integração, além

de consolidar a identidade do grupo”, pois é a ideologia que inclui a “definição do ator, a

identificação do adversário e a indicação de fins/objetivos e metas para os quais se luta”

(GOHN, 2004, p. 160).

Alberto Melucci explicita que os movimentos sociais representam a mobilização dos

atores coletivos, os quais lutam pelo controle de recursos valorizados por si e pelos

adversários, manifestando-se a ação coletiva “através da ruptura dos limites de

compatibilidade do sistema dentro do qual a ação mesma se situa”, entendendo o autor como

limite de compatibilidade o conjunto de elementos e de relações que identificam o próprio

sistema. Assim, sustenta o autor:

Um movimento não se limita, portanto, a manifestar um conflito, mas o leva para além dos limites do sistema de relações sociais a que a ação se destina (rompe as regras do jogo, propõe objetivos não-negociáveis, coloca em questão a legitimidade do poder, e assim por diante) (2001, p. 35).

Por outro lado, ressalta o autor que apenas a ruptura dos limites de compatibilidade

do sistema é insuficiente como referência para identificar e qualificar uma ação como de

movimento social, pois com isto não há, necessariamente, o conflito entre os atores por um

mesmo objeto:

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Neste caso, teremos condutas desviantes: aqui o ator é definido por sua marginalidade no que se refere a um sistema de normas e reage ao controle que essas exercitam sem, todavia, colocar em discussão a sua legitimidade, sem individuar um adversário social e um conjunto de recursos ou valores pelo qual se luta (MELUCCI, 2001, p. 37).

Resumidamente para Melucci, as principais características dos movimentos sociais

são a implementação de ação coletiva com a manifestação de um conflito, ou seja, a

coletividade implementando ações e expondo um determinado embate com a finalidade de

ruptura das condições em que o mesmo se dá. A implementação das ações coletivas tem, em

sua origem, segundo Melucci, a identidade coletiva como elemento essencial, porque o

sentimento de identificação do indivíduo com o todo promove a unidade e, em conseqüência,

propicia a luta dos atores em torno do objeto conflituoso.

Diante dessas características, de certa forma semelhantes às expostas por Touraine,

pois ambos destacam o embate dos atores frente a um determinado objeto, verifica-se a

situação do ANDES-SN e sua identificação enquanto movimento social à luz da teoria de

Melucci, porque há, no grupo (coletividade) do ANDES-SN, a identidade coletiva dos

docentes que pertencem ao ensino superior e, ainda, um conflito da categoria com quem está

do lado oposto, conflito expresso pelas exigências de melhores condições de trabalho,

valorização do profissional, defesa da universidade pública, enfim, embate destacado quanto

aos valores defendidos pela coletividade docente. Em vista de tais elementos já referidos,

enquadra-se o ANDES-SN como movimento reivindicativo, além de movimento político em

vista do histórico de luta neste campo, nos termos a serem aprofundados em capítulo a ser

desenvolvido.

1.1.3 Claus Offe

Há, também, abordando o tema dos movimentos sociais, Claus Offe, pertencente à

corrente alemã, visto como autor de linha marxista e considerado uma das referências quanto

aos Novos Movimentos Sociais. Ele ganha destaque por centralizar-se nas questões políticas,

efetuando uma análise política, ao contrário de Alain Touraine e Alberto Melucci, que

priorizam, respectivamente, uma análise sociocultural e uma análise psicossocial (GOHN,

2004, p. 164).

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Offe argumenta que os Novos Movimentos Sociais, na verdade, destacam-se em

vista das mudanças sociais ocorridas (conforme afirma Solervicens) as quais, por

conseqüência, proporcionaram a origem de novos elementos e, a partir deles, busca-se o

alcance de objetivos de difícil obtenção sob as formas anteriores. Os valores defendidos pelos

movimentos são os mesmos; alterada, entretanto, é a forma de ação:

(...) os movimentos sociais são elementos novos dentro de uma nova ordem que estaria se criando. Eles reivindicam seu reconhecimento como interlocutores válidos, atuam na esfera pública e privada. Objetivam a interferência em políticas do Estado e em hábitos e valores da sociedade, articulando-se em torno de objetivos concretos. O que é novo é o paradigma da ação, que tem caráter eminentemente político. Os valores defendidos pelos movimentos em si não contêm nada de novo, pois eles se referem “aos princípios e exigência morais acerca da dignidade e da autonomia da pessoa, da integridade das condições físicas da vida, de igualdade e participação e de formas pacíficas e solidárias de organização social (...)” (GOHN, 2004, p. 167). (grifo nosso)

Com tal afirmativa, sintetizadora do pensamento de Claus Offe, pode-se atestar que

todas as características apontadas por outros teóricos e atribuídas aos Novos Movimentos

Sociais pertencem, de alguma forma, também aos “velhos” movimentos.

Para este autor, a diferença substancial dos “novos” para os “velhos” movimentos

sociais encontra-se em relação aos atores sociais e ao modo de atuação. Relativamente aos

atores dos movimentos, afirma Offe:

Finalmente, en lo que respecta a los actores de los nuevos movimientos sociales, lo que más llama la atención es que en su autoidentificación no se refieren al código político establecido (izquierda/derecha, liberal/conservador, etc), ni a los códigos socioeconómicos parcialmente correspondientes (tales como clase obrera/clase media, pobre/adinerado, población rural/urbana, etc.). se codifica más bien el código del universo político en categorías provenientes de los planteamientos del movimiento, como sexo, edad, lugar, etc., o en el caso de movimientos ecologistas y pacifistas, el género humano en conjunto. La insistencia sobre la irrelevancia de códigos socioeconómicos (como la clase) y de códigos políticos (como las ideologías) que encontramos al nivel de autoidentificación de los nuevos movimientos sociales (y a menudo de sus oponentes), y que constituyen parte de su verdadera “novedad” (y les de los “viejos” movimientos sociales), no significa, sin embargo, en modo alguno que de hecho la base social y la práctica política de tales movimientos sean tan amorfas y heterogéneas en términos de clase y de ideología (1996, p. 180).

Offe apresenta um quadro comparativo acerca das características principais dos

paradigmas “velho” e “novo”, transcrito a seguir (1996, p. 182):

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“viejo paradigma” “nuevo paradigma”

Actores Grupos socioeconómicos actuando como grupos (en interés del grupo) e involucrados en conflictos de distribución.

Grupos socioeconómicos no actuando como tales, sino en nombre de colectividades atribuidas

Contenidos Crecimiento económico y distribución; seguridad militar y social, control social.

Mantenimiento de la paz, entorno, derechos humanos y formas no alienadas de trabajo.

Valores Libertad y seguridad en el consumo privado y progreso material.

Autonomía personal e identidad, en oposición al control centralizado etc.

Modos de actuar a) interno: organización formal, asociaciones representativas a gran escala.

b) externo: intermediación pluralista o corporativista de intereses; competencia entre partidos políticos, regla de la mayoría.

a) interno: informalidad. Espontaneidad, bajo grado de diferenciación horizontal y vertical.

b) externo: política de protesta basada en exigencias formuladas en términos predominantemente negativos.

Em síntese, para Offe, os valores defendidos pelos Novos Movimentos Sociais não

são, verdadeiramente, novidades da cultura atual, pois já estavam presentes anteriormente,

afirmando, assim, que:

En lo que respecta al problema de los “nuevos” valores, puede empezarse afirmando que lo menos “nuevo” de los movimientos sociales de hoy son sus valores. Ciertamente no contienen nada “nuevo” los principios y exigencias morales acerca de la dignidad y la autonomia de la persona, de la integridad de las condiciones físicas de la vida, de igualdad y participación y de formas pacíficas y solidarias de organización social. Todos estos valores y normas morales propugnados por los mantenedores del nuevo paradigma político están firmemente enraizados en las filosofías políticas (así como en las teorías estéticas) modernas de los dos últimos siglos, y han sido herdados de los movimientos progresistas tanto de la burguesía, como de la clase obrera. Esta continuidad sugeriría que los nuevos movimientos sociales en lo que respecta a sus orientaciones normativas básicas, no son ni “posmodernos” en el sentido de que enfaticen nuevos valores que (aún) no han sido asumidos por la sociedad más amplia, ni tampoco “premodernos” en el sentido de hacer propios los residuos de un pasado romantizado prerracional (1996, p.213).

Em relação às ações dos Novos Movimentos Sociais, conforme Offe, destacam-se

pelo caráter extra-institucional, no entanto, tal característica não se dá em face da adoção de

uma política revolucionária, mas sim por entenderem que há uma falta de capacidade de

resposta por parte das instituições estabelecidas (1996, p.212). As ações ressaltam-se também

pela tática de manifestação na presença física de grande número de pessoas, visando, desta

forma, atrair a opinião pública através de mecanismos legais, ainda que não convencionais

(1996, p. 178). Outra questão que ganha relevo nas ações dos Novos Movimentos Sociais diz

respeito aos termos de negociações e táticas de pressão, pois diante das reivindicações que

postulam não há espaço para negociar, sendo tal postura bastante condenada. Pondera Offe:

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A menudo ven los críticos las acciones de los nuevos movimientos sociales como algo debido a actitudes irracionales, afectivas, estrechas, cortas, inmaduras, incompetentes e irresponsables políticamente; y consideran como contraproducentes sus táticas, aun cuando reconocen que son legítimas algunas de las reivindicaciones de los movimientos. La objeción principal es que los movimientos son incapaces de negociar y elaborar compromisos y que no tienen voluntad de ello (1996, p.179).

Considerando a intolerância dos Novos Movimentos Sociais quando o assunto é

negociar suas reivindicações, cabe referir a situação dos sindicatos, enquanto movimentos sob

a lógica do antigo paradigma, os quais, não há dúvidas, são um dos tipos de movimento social

mais sujeitos a negociações, especialmente nas situações em que discutem melhores

condições econômicas aos representados. Ainda quanto aos sindicatos, pondera Offe

exatamente o aspecto da negociação, destacando haver espaço em relação a estes para

negociar, pois “pueden prometer (o al menos practicar) moderación en sus exigências

salariales a cambio de garantias de empleo” (1996, p 179).

Como se depreende das colocações de Offe, os sindicatos são movimentos sociais

assim caracterizados pelos elementos do antigo paradigma, sendo, portanto, nesta lógica, o

ANDES-SN, enquanto sindicato, um movimento social.

Importante frisar que Offe não aponta diferença substancial em relação aos valores

defendidos pelos novos e “velhos” movimentos sociais, destacando, outrossim, que a

distinção ocorre quanto à forma de ação eleita pelos diferentes paradigmas. Afirma, então,

que as exigências morais acerca da dignidade e da autonomia das pessoas, a integridade das

condições físicas de vida, a igualdade e a participação da vida social pertencem tanto ao novo

quanto ao “velho” modelo dos movimentos sociais.

Nesse caso, nos termos expostos por Offe, mais uma vez observa-se o

enquadramento do ANDES-SN como movimento social pois, embora em um primeiro

momento, ele se destaque pela defesa dos interesses diretos daqueles vinculados a si como,

por exemplo, lutando por melhores condições de trabalho e pela valorização dos profissionais,

tais bandeiras estão vinculadas à dignidade e à autonomia dos indivíduos, nesse caso, os

docentes. Mais do que isso, o ANDES-SN posicionou-se, na fase de redemocratização

brasileira, pela defesa da democracia e da igualdade, enfim, pela possibilidade de participação

política do povo. Em face disso, bem como pela forma de atuação, por meio de uma

organização formal, à luz das reflexões de Offe tem-se o seu enquadramento enquanto

movimento social sob a roupagem do “viejo paradigma”.

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1.1.4 Outros autores marxistas4

Entre outras correntes a respeito dos movimentos sociais, tem-se o paradigma

marxista, o qual refere serem estes representantes das lutas sociais, destinados à

“transformação das condições existentes na realidade social, de carências econômicas e/ou

opressão sociopolítica e cultural”. Impõe-se frisar que Marx não trabalhou o tema específico

dos movimentos sociais. Porém, a partir da compreensão marxista da questão relativa à luta

de classes, tem-se o perfil da sociedade capitalista, sendo analisadas as relações entre a classe

operária e a burguesia, das quais surge o conceito de práxis social, constando nas obras de

Marx como elemento de transformação da sociedade e aplicando-se aos movimentos sociais

em vista de sua interpretação (GOHN, 2004, p. 171):

A práxis significativa refere-se à práxis transformadora do social, que se realiza em conexão com a atividade teórica, por meio da atividade produtiva e/ou da atividade política. No campo da produção teórica, o conceito de práxis é fundamental no marxismo, como articulador da teoria à prática. A práxis teórica é aquela que possibilita a crítica, a interpretação e a elaboração de projetos de transformação significativos. A práxis fruto da atividade produtiva é a mais importante no mundo social (GOHN, 2004, p.176).

Ilse Scherer-Warren diz que Karl Marx

(...) foi um dos mais importantes criadores de um projeto de transformação radical da estrutura social, projeto este de superação das condições de opressão de classe. Para sua realização, além do amadurecimento de condições estruturais propícias, exige-se também uma práxis revolucionária das classes exploradas. A efetivação desta práxis, porém, requer a formação da consciência de classe e de uma ideologia autônoma de forma organizada, para as quais sugere o partido de classe (1987, p.34 apud GOHN, 2004, p. 177).

Gohn destaca a existência de alguns escritores que desenvolveram uma releitura do

marxismo ortodoxo, entre eles Manuel Castells e Claus Offe. Segundo a autora, uma das

questões centrais abordada por esses autores são os fatores políticos, sendo a política

(...) enfocada do ponto de vista de uma cultura política, resultante das inovações democráticas, relacionadas com as experiências dos movimentos sociais, e tem papel tão relevante quanto a economia no desenvolvimento dos processos sociais históricos. (2004, p.173)

4 Neste subcapítulo abordar-se-ão outros autores que tratam da temática dos movimentos sociais, utilizando-se, como referência, a obra “Teoria dos Movimentos Sociais: Paradigmas Clássicos e Contemporâneos”, de Maria da Glória Gohn.

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Nessa releitura do marxismo há duas referências que a fundamentam: a teoria da

alienação e a relativa à hegemonia. Lukács e a Escola de Frankfurt tratam da alienação “em

termos da dominação dos sujeitos por forças alheias que impedem o pleno desenvolvimento

de suas capacidades humanas e a emancipação como a libertação das garras destas forças

alheias, sejam elas ‘forças da natureza’ ou advindas da organização da sociedade” (Assies,

1990, p.24 apud GOHN, 2004, p.173). Gramsci, por sua vez, aborda a teoria da hegemonia e

tem tido suas obras utilizadas pelas mais diferentes correntes, em face da amplitude de seus

escritos e em decorrência da fragmentação de suas obras. Maria da Glória sustenta, quanto a

este autor, que:

o debate abrange perspectivas que vão do poder paralelo e da via revolucionária pela luta armada no acesso ao poder do Estado à transição gradual para o socialismo por meio da democracia e de uma visão ampliada do Estado. Na América Latina, Gramsci foi um autor de referência básica para a análise dos movimentos populares e a leitura destacada e mais utilizada de seus trabalhos adveio de interpretações da filosofia humanista contidas em sua obra (2004, p. 186-187).

Para Gramsci, os movimentos sociais seriam agentes do processo de transformação

social, a qual consiste na mudança da classe titular do poder, o que ocorre a partir da

construção de uma contra-hegemonia à ordem dominante (GOHN, 2004, p. 187).

Os movimentos sociais seriam o fermento básico de tais mudanças, agentes catalisadores dos elementos novos e inovadores. A questão se complica quando entra em cena a relação destes movimentos com o Estado. Não há consenso nas interpretações, mesmo nas que buscam citações específicas em Gramsci. Os conceitos de sociedade política e sociedade civil ajudam a esclarecer a problemática. Se o Estado não é uma instância específica mas um conjunto de instituições que se diluem entre a sociedade civil e a sociedade política, ainda que o poder de coerção e de dominação esteja localizado predominantemente num dos pólos (sociedade política), a sociedade civil possui mecanismos que forçam as alterações na correlação das forças em luta. Isto faz com que o Estado atue por meio da coerção e também por meio da busca do consenso. Portanto, em determinadas conjunturas políticas, o Estado teria de alterar suas políticas, incorporar ou abrir espaços novos às forças sociais que o pressionam (de forma contestatória ou não). Este aspecto tem sido erroneamente interpretado por alguns analistas que atribuem ao Estado o poder de indutor de mudanças sociais, mas esta não é posição de Gramsci. Ele assinala que se trata de um processo dialético, conflituoso e contraditório (GOHN, 2004, p. 188).

A partir das teorias marxistas acerca dos movimentos sociais, estes são concebidos

como “organizações de cidadãos, de consumidores, de usuários de bens e serviços que atuam

junto a bases sociais mobilizadas por problemas decorrentes de seus interesses cotidianos.

Eles não existem a priori, tornam-se movimentos pelas ações práticas dos homens na

história” (GOHN, 2004, p. 174).

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Seguindo a classificação de Maria da Glória Gohn, vê-se que, dentro do paradigma

marxista, ela menciona a contribuição de outros autores sobre os movimentos sociais, entre

eles Lênin, para quem os movimentos sociais encontram-se no cerne das transformações da

realidade social. (2004, p. 179). No mesmo sentido há Rosa Luxemburgo, que forneceu

elementos para grande parte das abordagens relativas à transformação social pela

participação dos grupos nos movimentos sociais, destacando-se alguns itens, conforme

apresenta Gohn:

a ‘espontaneidade das massas’ e suas iniciativas criadoras; ‘a possibilidade de vencer etapas do desenvolvimento do capitalismo pelo ‘desenvolvimento gradual’ de suas contradições; a revolução é vista como um processo relativo à ‘consciência dos homens’; é o produto de suas ‘experiências’, surge em função delas e atua como sua força integradora; age em defesa e transmutação dessas mesmas experiências; fiel ao marxismo humanista e libertário, Rosa acreditava no ‘idealismo’ das massas (2004, p. 181-182).

Citam-se, ainda, as contribuições de Trotsky quanto aos movimentos sociais,

segundo o qual há dois elementos centrais: “a revolução permanente e o sistema de correlação

de forças de uma sociedade”. Sua posição relativamente ao processo de transformação social

é semelhante à de Lenin, ou seja, entendendo-a pela necessidade da “via revolucionária, do

partido e do papel vital da direção destes pelas vanguardas”. Trotsky também não aborda a

questão específica dos movimentos sociais, mas defende a “necessidade de um trabalho

contínuo, pedagógico, junto às massas” (GOHN, 2004, p. 183).

Gohn ressalta ser a partir dos momentos de crise das regras existentes que surgem

condições políticas para avanços ou repressão dos movimentos sociais. Contudo, para Trotsky

não é a sociedade como um todo que cria as oportunidades de manifestação política, mas “o

partido, os operários e os intelectuais é que devem estar permanentemente criando aquelas

oportunidades políticas, por meio do contínuo questionamento e luta contra o poder

econômico da burguesia, representadas pelos poderes estatais” (2004, p. 184).

Encontram-se, ainda, outros autores com análises neomarxistas, entre eles Castells,

Jordi Borja, Jean Lojkine, filiando-se todos à concepção de os movimentos sociais serem

capazes de operar mudanças sociais. Castells, apesar das críticas existentes ao seu

pensamento, tornou-se, na abordagem dos movimentos sociais, o paradigma dominante

(GOHN, 2004, p. 191). O autor explicitava que os movimentos sociais não seriam os únicos

agentes capazes de implementar mudanças urbanas, entendendo, outrossim, que seriam um

dos caminhos para transformações qualitativas, embasando suas idéias nas referências

marxistas. Entretanto, nos anos 80, o autor começa a alterar o referencial teórico, passando,

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então, a utilizar-se de Touraine, embora não adotando integralmente alguns conceitos. O

trabalho de Castells destaca a articulação entre experiência, produção e poder para a formação

da sociedade e da história: “a experiência está basicamente estruturada ao redor de relações de

sexo e gênero, a produção é organizada em relações de classes e o poder está estabelecido a

partir do Estado” (CASTELLS, 1983, p.278 apud GOHN, 2004, p. 192).

Conforme Gohn, então, Castells vê os movimentos sociais através de três tipos de

protestos urbanos: sindicais, comunitários e movimentos de cidadãos. Os sindicais, segundo a

definição do autor, versam acerca de “questões de consumo coletivo, tais como infra-estrutura

urbana ou questões relativas ao uso da terra”. Os comunitários “buscam identidade cultural e

objetivam a criação ou manutenção da autonomia de culturas locais”, enquanto os de cidadãos

“objetivam um aumento de poder local, descentralização das áreas de vizinhança e auto-

administração urbana” (2004, p. 192).

Ainda segundo Gohn, para Castells os movimentos “são os verdadeiros

diagnosticadores das necessidades coletivas” e, a partir das pressões que exercem à luz do

conhecimento das necessidades existentes, viabilizam a reforma urbana. Em vista disso, o

autor passou a apontar uma “interdependência entre movimentos e Estado”, mudando o seu

posicionamento quanto à potencialidade transformadora dos movimentos, entendendo, pois,

pela sua não-existência, apesar de reconhecer a relevância dos movimentos sociais.

Jordi Borja é outro autor com teoria produzida acerca dos movimentos urbanos,

enquadrada como neomarxista. A sua definição sobre os movimentos reivindicatórios urbanos

é de que

são ações coletivas da população enquanto usuária da cidade, quer dizer, de habitações e serviços, ações destinadas a evitar a degradação de suas condições de vida, a obter a adequação destas às novas necessidades ou a perseguir um maior nível de equipamento. Estas ações dão lugar a efeitos urbanos (modificação da relação equipamento-população) e políticos (modificação da relação da população com o poder no sistema urbano) específicos, que podem chegar a modificar a lógica do desenvolvimento urbano (BORJA, 1975, p.12 apud GOHN, 2004, p. 196).

Borja classifica os conflitos sociais em três tipos, a partir dos quais surgem os

movimentos sociais urbanos. Para Gohn, o primeiro tipo de conflito envolve principalmente o

Estado e os usuários da cidade, versando sobre os equipamentos coletivos e a moradia. A

segunda espécie ocorre “entre o Estado e os capitalistas privados em relação à reprodução de

meios de produção para a vida cotidiana, como infra-estrutura, custos da reprodução da força

de trabalho, uso da terra urbana e políticas urbanas etc.”. Já a terceira modalidade de conflito

se dá entre os capitalistas, em vista da competição existente entre eles (GOHN, 2004, p.196).

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Os movimentos sociais, para Borja, têm o impacto de suas ações diretamente

relacionado à sua organização interna e à reação dos aparelhos de Estado, frisando, entretanto,

que, na sua visão, os movimentos sociais não são elementos motores de processos

revolucionários, esquecendo-se, quem assim os vê, do papel da ideologia dominante (GOHN,

2004, p. 197). Também para ele os movimentos urbanos são classificados como

reivindicatórios, democráticos e de situação dual de poder

Os primeiros são movimentos baseados em uma ou mais contradições específicas, de resistência ao capital mas de impacto mínimo na estrutura urbana. Os segundos envolvem uma série de demandas ao redor do consumo e da administração urbana, assim como em torno do sistema produtivo. Reivindicam políticas democráticas urbanas, democratização de instituições locais, reformas urbanas, acesso democráticos à moradia etc. O terceiro é um tipo especial e só ocorre em determinadas situações, como na Rússia em 1917. Eles têm a capacidade de transformar a estrutura urbana e dão origem a novas formas de administração, como a democracia comunal, a justiça popular etc. Surgem ou correspondem a períodos de crise social e também têm bases territoriais. Por isso necessitam estar articulados, e subordinados, a lutas unificadas do proletariado, assim como precisam de muitas alianças políticas (GOHN, 2004, p. 197).

Jean Lojkine é outro escritor classificado como neomarxista, para quem os

movimentos sociais seriam a

(...) combinação de dois processos sociais, a saber: primeiro, um processo de ‘pôr-se em movimento’ de classes as frações de classes e camadas sociais. Este processo define a intensidade e a extensão (o campo social) do movimento, dadas pelo tipo de combinação que une a base social e a organização do movimento. Esta primeira dimensão define a natureza sociológica das classes sociais que se puseram em movimento, assim como sua força social, resultante da ação da organização sobre uma dada base social. Segundo, um processo que define a dimensão do movimento social como o ‘desafio político do qual é portador’. (GOHN, 2004, p. 198).

Para Lojkine, os movimentos urbanos estão dotados de capacidade para contestar

tanto o poder econômico da classe dominante, como o modo de reprodução da sociedade.

Maria da Glória Gohn apresenta, ainda, outros escritores com abordagens históricas

contemporâneas na temática marxista: Eric Hobsbawm, E.P. Thompson e George Rude.

Desses destaca-se Hobsbawm porque efetua distinção entre os movimentos revolucionários e

os reformistas, entendendo adotarem os primeiros a concepção da necessidade geral de

transformação do sistema social, enquanto os segundos aceitam a estrutura geral do sistema,

admitindo, porém, aperfeiçoamentos e reformas em pontos específicos quando há abusos.

Tais tipos de movimentos diferenciam-se, ademais, pelo comportamento apresentado a partir

das distintas modalidades de ações, decorrentes de suas próprias organizações e estratégias de

atividade. Essa classificação pode ser comparada à já apresentada por Gianfranco Pasquino,

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de movimentos reivindicativos, políticos e de classe, estando os últimos classificados por

Pasquino de forma semelhante aos movimentos revolucionários de Hobsbawn, visando ambos

à transformação do sistema social.

Diante da compreensão dos autores marxistas quanto aos movimentos sociais,

especialmente em face de alguns elementos caracterizadores, visualiza-se o ANDES-SN como

movimento social. Veja-se que, para os autores marxistas, um dos pontos centrais deles é o

objetivo de promoverem mudanças sociais, destacando-se como agentes de transformações

sociais. O ANDES-SN tem, em sua origem, o objetivo de promover mudanças no âmbito

universitário, bem como nas relações entre universidade e sociedade, conforme será abordado

no item 1.3.3 do presente trabalho, enquadrando-se, portanto, em tal aspecto, na concepção

marxista de movimentos sociais.

Conforme afirma Gohn, ao comentar Gramsci, os movimentos sociais seriam

“agentes catalisadores dos elementos novos e inovadores” (2004, p. 188). O ANDES-SN,

enquanto coletividade reunida em torno de interesses comuns, visa à concretização de novas

condições para o meio universitário, lutando, também, por questões mais amplas, como foi o

caso da redemocratização brasileira.

É necessário, no entanto, ao abordar a temática dos movimentos sociais como

agentes de transformação social, ter-se claro que eles não são os únicos capazes de promovê-

la e muito provavelmente, incapazes de a concretizarem isoladamente. Porém, destacam-se

como um dos caminhos para transformações qualitativas, sendo exatamente este o caso do

ANDES-SN. Enquanto sindicato representativo de uma categoria profissional, obviamente é

incapaz de promover mudanças sociais de forma isolada, sendo, na verdade, um agente

coletivo estimulador, provocador, catalisador, ao menos em termos teóricos quanto aos seus

objetivos.

1.2 “Velhos” Movimentos Sociais x Novos Movimentos Sociais

A partir de todas as colocações apresentadas, utilizando-se referências relativas aos

novos e aos clássicos movimentos sociais, cabe questionar: afinal, qual a distinção entre os

“velhos” e os Novos Movimentos Sociais? Há efetivamente diferenças substanciais?

Devido ao apontado pelos autores pesquisados parece, na verdade, decorrer essa

dicotomia do interesse imediato dos estudiosos em analisarem novas formas de organizações

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sociais, abandonando os movimentos sociais clássicos, isso em virtude de uma fase histórica

quando os efeitos da política econômica atingiram violentamente os movimentos sociais,

dando origem à sua propalada crise.

Emil Sobottka traça um resumido histórico a respeito dos acontecimentos

econômicos e políticos que influenciaram a situação dos movimentos sociais e o destaque nos

estudos científicos para as organizações não-governamentais/ONGs (enquadradas como

modalidade dos Novos Movimentos Sociais):

(...) ao mesmo tempo em que a temática movimentos sociais parecia estar consagrada no cânone acadêmico, as mudanças sociais colocaram-na em questão. Difícil seria dizer o que mudou mais radicalmente: se foi o fenômeno como tal ou se foram as abordagens mais consagradas sobre ele. De qualquer modo, no Brasil o rompimento com este novo ciclo dos movimentos sociais deu-se no contexto das eleições presidenciais de 1989: com a derrota eleitoral da candidatura apoiada por eles, a sociedade brasileira optou majoritariamente por um projeto que se opunha radicalmente aos anseios de emancipação e inclusão cultivados pelos movimentos sociais. As políticas de universalização do acesso a direitos sociais foram substituídas pelo focalismo assistencial; o estado de bem-estar social foi reformado mediante privatizações e ampliação de parcerias com organizações privadas; o foco da vida estatal-pública deslocou-se dos cidadãos para os investidores, em especial os internacionais. Com reduzida aceitação pública e poucos resultados, além de ostensiva política de descrédito feita pelo governo, os movimentos sociais entraram em crise. Nas universidades brasileiras, sensibilidade e um certo apego a modismos provocaram uma reação rápida e praticamente baniram os movimentos sociais da agenda acadêmica, substituindo-os por outras modas. (...) Iniciou-se, então, um período de destaque para as organizações (SOBOTTKA, 2002, p.8-9).

Segundo Sobottka é visível que o papel até então desempenhado pelos movimentos

sociais migrou para as organizações “e destas para uma pluralidade de agentes cada vez mais

informes, perdendo seu ímpeto com estas passagens significativamente em intensidade”

(2002, p. 9).

Nesse mesmo sentido Scherer-Warren e Lüchmann frisam que, na década de 90, em

vista de o processo de globalização começar a ser implementado, a questão dos movimentos

sociais passou a sofrer novos desafios. As relações entre o Estado e a sociedade foram

revistas, sendo adotada a concepção da necessidade de parcerias público-privadas em vista

das idéias de responsabilidade social e filantropia empresarial. Assim, nasceu a idéia do

“terceiro-setor”. As Organizações Não-Governamentais (ONGs) ganharam destaque e

passaram a atuar na execução de programas sociais.

Diante de todos esses acontecimentos, conforme colocam as autoras, impôs-se uma

“renovação das análises no campo dos movimentos sociais”, interpretada por muitos autores

como crise dos movimentos sociais. Talvez essa “crise” possa ser assim identificada em vista

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da alteração da forma como os novos setores comportam-se na sociedade. Segundo Scherer-

Warren e Lüchmann, houve a ruptura da dicotomia público/privado, pois a sociedade civil

passou a atuar sobre os problemas e injustiças sociais detectadas, atuando, dessa forma, sobre

problemas que deveriam ser solucionados pelo Estado (2004, p. 17).

Com isso, observa-se a minimização do Estado com a transferência para a sociedade

daquelas ações que deveriam ser praticadas por ele. Trata-se do neoliberalismo, política

introduzida no Brasil na época de Fernando Collor de Mello.

Constata Michaela Hellmann, então, que os movimentos sociais vêm perdendo a

importância apresentada em outros tempos, pois “suas formas típicas de mobilização, pelo

menos, sumiram quase que completamente, como se pode constatar, por exemplo, nas poucas

manifestações”, parecendo “cada vez mais difícil mobilizar as massas, de modo que a

influência dos movimentos sociais ficou cada vez mais reduzida”5 (1995, p. 22).

A partir das considerações de todos os autores já comentados, seja a respeito dos

“velhos” ou dos Novos Movimentos Sociais, extraem-se pontos em comum dessas duas

instâncias de movimentos: existência de conflito entre dois atores em face de um interesse

comum; a expressão desse conflito através de ações coletivas, as quais reúnem o grupo de

interessados em comum com o escopo de contestação e, em alguns casos, com a finalidade de

transformação social6.

Assim, a denominação de Novos Movimentos Sociais (NMS), se dá para efeitos de

diferenciação dos movimentos sociais considerados clássicos: os de operários e de mulheres,

nos quais “a pertinência ao grupo se definia por critérios objetivos como classe e gênero, e só

posteriormente era buscada também a adesão subjetiva”, daqueles chamados “novos”, nos

quais, contrariamente, “a identidade, a integração e a ação coletiva passaram a ser destacadas

como condição e, simultaneamente, como atos criadores” (SOBOTTKA, 2002, p. 7).

Os Novos Movimentos Sociais são, assim, respostas à nova realidade econômica e

social que passa a se apresentar7. Segundo Jorge Riechmann, os movimentos sociais são

5 Uma das justificativas apontadas para o “enfraquecimento” dos movimentos sociais é a influência neoliberal sobre suas ações, tema este que será abordado no desenvolvimento da presente dissertação em capítulo próprio, quando for analisada a questão do Estado Liberal de Direito. 6 Seguindo a linha de que os movimentos sociais têm entre as suas finalidades de existência a transformação social, encontra-se Jorge Riechmann, entre outros autores antes referidos, sendo para Riechmann o movimento social “un agente colectivo que interviene en el proceso de transformación social (promoviendo cambio, u oponiéndose a ellos)” (1994, p.47). 7 Segundo Michaela Hellmann os movimentos sociais no Brasil (antes da introdução das políticas neoliberais) sofreram dois momentos distintos: “o primeiro, que vai dos anos 70 até 1988, cobre o intenso debate centrado na descoberta dos movimentos sociais como sujeitos políticos, e a tarefa do debate é qualificá-lo como agentes de uma ação coletiva inédita no cenário histórico da sociedade brasileira. O segundo momento, inaugurado com o

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fenômenos históricos que implementam ações conforme a fase vivenciada pela sociedade nos

aspectos econômico-sociais, exemplificando com a divisão da Idade Moderna em fase pré-

industrial, industrial e pós-industrial e, por conseguinte, as formas de mobilização que daí

decorrem:

(...) a la movilización por medio de organizaciones burocráticas que predomina en la fase industrial se opone la “movilización según proyectos”, desarrollada en estructuras laxas que a veces se han descrito como redes de redes, características de la fase “postindustrial”. Si los primeros movimientos burgueses son todavía típicos de la fase preindustrial-modernizante, el movimiento obrero o la “primera oleada” del feminismo son movimientos característicos de la fase industrial, y los NMS lo son de la fase “postindustrial” (1994, p. 54).

Por conseguinte, os NMS distinguem-se dos movimentos clássicos, das fases pré-

industrial e industrial, em face das ações e modo de organização que passam a adotar, sendo

as novas formas exigência das alterações socioeconômicas ocorridas, mas sem ter ocorrido,

necessariamente, “dizimação” dos antigos modelos de movimentos sociais. Tanto é assim que

existe entre os movimentos clássicos, o de trabalhadores, o qual enfatiza “o estabelecimento

de uma nova estrutura produtiva, capaz de promover uma eqüitativa redistribuição dos bens e

serviços” (LUCAS, 2001, p. 85), e, embora não mais destacados pela potência ativa de outros

tempos, ainda permanecem no corpo social.

O movimento de trabalhadores está historicamente expresso pelos sindicatos, com

longa e significativa trajetória em inúmeros países e influência sobre a história política de

muitas nações. Essa é a temática abordada no item a seguir, destacando-se a questão relativa à

organização administrativa dos sindicatos e de outros movimentos sociais, e as dificuldades

disso nascidas em relação à efetiva mobilização deles, dificuldades capazes de pôr em dúvida

a condição dos sindicatos enquanto movimentos sociais.

1.3 Sindicatos: são movimentos sociais?

A origem dos movimentos sociais se dá, preponderantemente, em face dos interesses

em comum de um determinado grupo de pessoas, reunidas a partir deste elo de ligação. No

movimento operário, é facilmente identificado o fator que proporciona o relacionamento entre

processo constituinte, assinala a entrada dos movimentos em sua inserção peculiar no espaço político instituído (partidos políticos, governos e negociações participativas de cidadania)” (1995, p. 30).

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seus membros: a busca por maior valorização e melhores condições de trabalho, sendo estes

os objetivos principais e de interesse direto dos obreiros, sem prejuízo de outros de maior

alcance social.

Os sindicatos são expressão das relações de trabalho, pois estão presentes tanto para

representar a categoria de trabalhadores, como dos detentores do poder econômico (patrões).

A doutrina trabalhista de Amauri Mascaro Nascimento apresenta algumas definições acerca

dos sindicatos, entre elas a do jurista francês Paul Durand, segundo o qual o sindicato

É um agrupamento no qual várias pessoas que exercem uma atividade profissional convencionam pôr em comum, de uma maneira durável e mediante uma organização interior, suas atividades e uma parte dos seus recursos para assegurar a defesa e representação da sua profissão e melhorar suas condições de existência (DURAND in NASCIMENTO, 1999, p. 823).

Nascimento traz ainda outros conceitos, vistos a seguir:

Segundo Botija, sindicato “é uma associação, de tendência institucional, que reúne pessoas de um mesmo ofício para a defesa dos seus interesses profissionais”. Abellán o define como “o agrupamento institucional de produtores para o fim de ordenar as profissões, defendê-las e representá-las juridicamente, em regime de autogoverno e colaboração com o Estado no que respeita à sua ação econômica e político-social” (1999, p.823).

O sindicalismo pode ser definido, ainda, como “ação coletiva para proteger e

melhorar o próprio nível de vida por parte de indivíduos que vendem a sua força-trabalho”

(ALLEN, 1968, p. 1 apud REGINI, 1992, p. 1150). Regini ressalta ser o sindicalismo um

fenômeno complexo que, muitas vezes coloca-se, inclusive, de forma contraditória.

Ele nasce, de fato, como reação à situação dos trabalhadores na indústria capitalista, mas constitui também uma força transformadora de toda a sociedade. Traduz-se em organizações que gradualmente se submetem às regras de uma determinada sociedade, mas é sustentado por fins que transcendem as próprias organizações e que freqüentemente entram em choque com elas. Gera e alimenta o conflito dentro e fora da empresa, mas canaliza a participação social e política de grandes massas, contribuindo para integrá-las na sociedade (1992, p. 1150). (grifo nosso)

O sindicalismo origina-se, segundo Regini, em quase todos os países ocidentais por

dois fatores distintos: “de solidariedade e defesa de um lado; de revolta contra o modo de

produção capitalista e a sociedade burguesa, do outro lado”, embora não se possa

desconsiderar que tais fatores preexistem aos sindicatos propriamente ditos. A expressão da

solidariedade já existia com as sociedades de mútua ajuda e ligas de resistência, enquanto a

revolta contra a exploração decorrente do sistema capitalista era expresso nas fábricas com

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sabotagens e, na sociedade, pela luta por direitos políticos. De qualquer forma, tanto a questão

da solidariedade, quanto a revolta contra a exploração capitalista, visavam ao fim do trabalho

assalariado e, por conseqüência, dos elementos de exploração social daí decorrentes,

defendendo o desenvolvimento de cooperativas de produção administradas pelos próprios

operários (1992, p. 1153).

A partir dessas proposições surgem as primeiras organizações sindicais de base

territorial, as quais refletem a estrutura produtiva do período, com “pluralidade de pequenas

empresas e por uma elevada mobilidade geográfica dos operários; de outro lado, a orientação

para a ação política mais do que para a ação contratual com as empresas”(REGINI, 1992, p.

1153).

A partir da segunda metade do século XIX a organização sindical deixa de ser

organizada territorialmente, passando-se a ter o “Sindicalismo de profissão”. Nesse caso,

explicita Regini:

Os sindicatos organizam somente as camadas superiores da classe operária, que gozam de uma situação privilegiada no mercado de trabalho. Estes desenvolvem uma “consciência do produtor” que é em si ambivalente, porque leva, de um lado, à ideologia do socialismo gerencial e, do outro, a uma reação defensiva de tipo proprietário. “A reação do operário profissional polivalente, privado de seus instrumentos de produção, continua sendo uma reação de proprietário: ele defende como seu bem mais caro a única propriedade que lhe ficou, a do seu mister...O

socialismo representa...a reapropriação dos meios de produção de que o artesão

tinha sido privado (Mallet, 1967: 232-4). Estas camadas operárias constituem, em suma, uma aristocracia privilegiada e, ao mesmo tempo, uma vanguarda politizada” (1992,p. 1153).

Já no fim do século XIX e início do século XX, com o crescimento da

industrialização e a adoção, pelo processo industrial, de pessoal sem qualificação profissional

e sem tradição operária, há o predomínio do “Sindicalismo de indústria”. A hegemonia desta

modalidade sindical apenas é alcançada com a introdução de novas tecnologias para fins de

racionalizar a produção, pondo “em crise o profissionalismo em que se baseava a força do

operário profissionalmente qualificado”. Com isso, então, há o rompimento do monopólio

profissional. Conclui Regini:

Se a tecnologia e a racionalização rompem os limites do monopólio profissional, permitindo a organização de vastos grupos operários até então excluídos, a proveniência camponesa das novas massas urbanas rompe também os limites da subcultura operária, com o seu velho projeto revolucionário e a sua cultura política autônoma. Ao mesmo tempo em que o peso do sindicato na sociedade se estende enormemente, sua tensão ideológica entra em crise. A atividade que prevalece, ao lado ou em lugar da atividade política, é a da contratação. Estas novas funções, junto com o alargamento da base representativa, é que provocam o desenvolvimento da

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força organizadora do sindicato. Surgem os problemas de sua burocratização e tecnização. Salvo poucas exceções, a atividade sindical se torna em toda parte mais centralizada. Contribuem para isto a fraqueza dos operários no mercado de trabalho e o maior número de funções que o sindicato é chamado a desempenhar. Tudo isso leva ao progressivo predomínio do aspecto organizacional sobre o aspecto do movimento (1992, p. 1153).

No decorrer do século XX, após o auge dos fins do século XIX e início do próprio

século XX, o sindicalismo deixa de apresentar crescimento e começa uma fase de declínio,

embora com picos de mobilização de operários em alguns momentos históricos (REGINI,

1992, p. 1154).

No Brasil, no século XIX, surgem as primeiras mobilizações de trabalhadores de

forma organizada; a primeira greve se deu em 1858, no Rio de Janeiro, tendo sido promovida

pelos tipógrafos que, inconformados com a situação trabalhista, se rebelaram, objetivando

aumento salarial. A seguir, outras categorias passaram a mobilizar-se. Mas as primeiras

formas de organização dos trabalhadores foram as Sociedades de Socorro e Auxílio Mútuo,

cujo objetivo era auxiliar os obreiros em momentos de dificuldades, como greves ou crises

econômicas. Após, surgiram as Uniões Operárias, que passaram a organizar os trabalhadores

conforme o ramo de atividade desenvolvida, originando os sindicatos, com o objetivo de

conquistar melhores condições de trabalho, compreendendo tanto aumento salarial como

redução de jornada de trabalho etc (ANTUNES, 1986, p. 48-49).

A partir da origem dos sindicatos, compreende-se, perfeitamente, a sua condição

como movimentos sociais, formados pelo agrupamento de pessoas que, organizadamente,

promovem ações coletivas a partir de um interesse em comum, objetivando o alcance de

melhores condições econômicas e sociais, destacando-se a mobilização pelo caráter

contestatório da sociedade vigente. O enquadramento dos sindicatos enquanto movimentos

sociais se dá na medida em que se verifica a coincidência de características de ambos,

conforme destacado pelos autores referidos.

Segundo Touraine, a caracterização dos movimentos sociais depende dos atores, dos

adversários e do objeto em conflito, estando os três elementos facilmente identificados no

caso dos sindicatos: os trabalhadores como atores; aqueles para quem trabalham como

adversários e o conflito, que varia desde a valorização da mão-de-obra, até melhores

condições de trabalho, embora, muitas vezes, desloque-se esse campo específico para o

Estado e a regulamentação de direitos sociais. No caso dos sindicatos de servidores públicos,

não há diferenças: os servidores são os atores; o Estado, o adversário e o conflito, a

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valorização de suas atividades e melhores condições de trabalho. Nesses casos parece ser

ainda mais evidente o conflito por estar em pauta o interesse público.

Considerando-se as reflexões de Melucci, não é diferente a situação dos sindicatos,

ainda que suas observações sejam enfocadas sob o aspecto psicossocial (da identidade

coletiva). Isto porque há, nos sindicatos, seja de trabalhadores, seja de empregadores, um

sentimento de coletividade, de grupo em uma mesma condição: trabalhadores do ramo “A” ou

“B”; empresários do ramo de atividade ”X” ou “Y”.

Entretanto, há nos sindicatos um elemento capaz de fazer alguns estudiosos

questionarem a natureza deles como movimentos sociais: o relativo à organização

administrativa, pois estão os sindicatos sujeitos a uma série de exigências legais decorrentes

da condição jurídica de representantes de uma determinada classe.

A questão organizacional dos sindicatos, ao mesmo tempo é utilizada como elemento

caracterizador dos movimentos sociais e criticada por outros estudiosos, pois descaracterizaria

os sindicatos enquanto movimentos sociais. Os defensores da organização coletiva o fazem

por entenderem que a simples ocorrência de comportamentos em multidão, por exemplo, em

protestos, não se caracteriza como ação de movimentos sociais, os quais se destacam pela

questão da racionalidade e organização das ações coletivas implementadas. Exatamente isso

leciona Gusfield, destacando que os fenômenos de comportamento esporádico e

desorganizado se diferenciam claramente dos movimentos sociais, pois não têm relação com

os processos de mudanças sociais, e, além disso, os participantes carecem de consciência da

condição de pertença ao grupo, movendo-se pelo impulso do coletivo (GUSFIELD, 1970

apud LARAÑA, 1999, p. 109). Já a outra corrente critica, na verdade, a organização

burocrática, ou seja, a institucionalização de alguns movimentos, que passam a atuar nos

limites institucionalizados. A questão, no entanto, é: até que ponto é possível estar dotado de

uma séria organização administrativa sem a questão da institucionalização?

A partir das colocações de Riechmann anteriormente apresentadas, observa-se que a

questão da organização burocrática não desfaz a condição de movimento social, pois ocorre,

muitas vezes, a necessidade de institucionalização para os objetivos políticos poderem ser

alcançados8:

8 No entanto, hoje, os NMS já perceberam que a obtenção de reivindicações pelos canais institucionalizados não vem sendo o caminho mais eficaz, tanto assim que, conforme refere Claus Offe, antes comentado, preferem meios não-institucionais para mobilizar a opinião pública e pressionar pelo atendimento de suas reivindicações. Contudo, tal constatação apenas se tornou viabilizada pela experiência dos movimentos institucionalizados que recorrem aos canais institucionais.

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Para obtener al menos el apoyo pasivo de la mayoría de la población, un MS tiene a menudo que diluir radicalidad de sus formas de acción y de sus contenidos: el denominador común de los pacifismos europeos en el momento de su clímax, en 1983, no era ya la desnuclearización de Europa “desde los Urales hasta Portugal”, sino el más modesto objetivo de impedir el despliegue de los mísiles Cruise Y Pershing II. Para lograr objetivos políticos específicos, las alianzas con fuerzas políticas establecidas, o incluso emprender una vía parlamentaria, puede ser necesario: acaso ello conduzca a la institucionalización del movimiento. Las exigencias de la movilización de masas pueden favorecer tendencias burocratizadoras en el movimiento (grifo nosso) (1994, p.56).

A questão de institucionalizar os movimentos sociais é mais explorada por

Riechmann quando este apresenta algumas considerações de Joachim Raschke e analisa o

conceito de movimentos sociais apresentados por tal autor. Segundo Raschke movimento

social

es un agente colectivo movilizador, que persigue el objetivo de provocar, impedir o anular un cambio social fundamental, obrando para ello con cierta continuidad, un alto nivel de integración simbólica y un nivel bajo de especificación de roles, y valiendo-se de formas de acción y organización variables (Raschke, 1985, p. 77 apud Riechmann, 1994, p. 48).

Dissecando tal conceito tem-se que, para Raschke, os agentes coletivos dos

movimentos sociais não são, necessariamente, homogêneos quanto às ações e instrumentos

organizativos utilizados, dando-se suas práticas com continuidade e baixo índice de

regramento, destacando-se os aspectos da coletividade e da mobilização.

Quanto à proposta dos movimentos sociais, esta deve ser de transformar ou impedir

transformações das estruturas sociais relevantes. Aliado à proposta, deve estar claramente

definido o outro, o oponente, aquele contra o qual o movimento dirigirá suas ações de

oposição. Os movimentos podem ser assim caracterizados quando apresentam continuidade

em suas ações, ou seja, não se expressam como meros episódios coletivos decorrentes de um

interesse momentâneo, pois aí seriam meras manifestações/protestos.

Diferenciam-se, ainda, das tendências sociais que, segundo Laraña, carecem de

dimensão grupal e organizativa, bem como de elementos cognitivos e intencionais, nos quais

está radicada a orientação no sentido da transformação social. Diferenciam-se, também, dos

“públicos”: “conjuntos de personas que comparten una posición común sobre una cuestión de

controversia pública”, mas não estão dotados de proposição para transformação social e, por

isso, não podem ser conceituados como movimentos sociais, embora sejam um campo fértil

para formação deles. A questão, no entanto, é serem capazes de dar o passo seguinte na

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motivação do grupo como seguidores do movimento (SNOW y BENFORD, 1988, 1992 apud

LARAÑA, 1999, p. 108)

Riechmann comenta, ainda, como característica dos movimentos sociais, o alto nível

de integração simbólica, detectada pelo sentimento dos membros do grupo de pertencerem ao

mesmo, ou seja, a identificação do indivíduo com o coletivo. Também pode ocorrer a baixa

exigência de aspectos formais para a manifestação dos movimentos, o que autoriza formas

não-convencionais de militância, havendo, na verdade, um “paralelismo de formas de acción

institucionales y no institucionales (acción directa)” (1994, p. 50).

Exige-se, por fim, para caracterizar os movimentos sociais que estes sejam

“movilizadores”, entendendo-se mobilização como “la activación de recursos para alcanzar

los fines del movimiento”. Os recursos mais valiosos que um movimento pode conseguir são

os ativistas e o trabalho voluntário destes, cabendo-lhes a busca constante por apoio ativo dos

membros da sociedade. Apenas com tais recursos propicia-se o seu fortalecimento, o qual,

segundo Riechmann, não ocorre através da “institucionalización excesiva”, pois nesse caso se

estaria diante de uma instituição. Com tal afirmativa há de se considerar que Riechmann não

está rechaçando os movimentos sociais institucionalizados da categoria de movimentos

sociais, mas alertando para o risco da “institucionalización excesiva”, pois os movimentos

devem estar sempre em busca de apoio efetivo da sociedade (1994, p. 48).

A dúvida surgida é de saber até que ponto há incompatibilidade entre a busca de

apoio social e a condição de movimento institucionalizado. Afinal, de alguma forma, talvez,

estando o movimento social formalizado, pode haver facilidades para obtenção de apoio

social, exatamente em face da estrutura formada. Anteriormente, o mesmo autor já afirmara

existir, muitas vezes, a necessidade de formar alianças específicas ou buscar a via

parlamentar, o que talvez conduza à institucionalização do movimento para os objetivos

almejados serem obtidos. O importante nesta questão é Riechmann não descartar da condição

de movimentos sociais os grupos institucionalizados e destacar, outrossim, a relevância da

institucionalização sob alguns aspectos, na otimização dos meios utilizados pelos movimentos

sociais para alcance de seus objetivos.

As ações de protesto são vistas como instrumentos mais eficazes de publicidade,

dando-se, a partir desta, o conhecimento social das causas defendidas e surgindo,

conseqüentemente (em tese), o apoio esperado. Tal efeito ocorre de forma mais significativa

principalmente quando a mídia encarrega-se da divulgação, por se tratar, na atualidade, do

meio mais propício ao alcance das pessoas, pois a publicidade geralmente é maior quanto

menos usuais os métodos de manifestação. A questão da publicidade tem suma importância

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para efeitos da sensibilização dos ocupantes de postos políticos, os quais, em vista do

interesse em satisfazer seu eleitorado, buscam satisfazer os anseios dos que ganham

publicidade, assim afirmam Dieter Rucht e Friedhelm Neidhardt:

The protest actions of social movements possess much newswothiness for the mass media; indeed, the more unconventional, the better. Attracting mass-media attention is one of the most effective ways for social movements to attain political influence, at least on strategically important and potentially large minorities. Because political parties, parliaments and governments are dependent on mass support and electoral success, they react quire sensitively to shifts in public opinion, even if they occasionally disregard the public mood (2002, p. 22).

Apesar das ponderações acerca da possibilidade de institucionalização dos

movimentos sociais, deve-se considerar não serem muitos os autores que abordam tal

problemática ao apresentarem os elementos utilizados para a construção de um conceito de

movimento social, especialmente aqueles com os quais se trabalhou anteriormente. Mais do

que isso, segundo Antonio Carlos Wolkmer, a questão central dos movimentos sociais não

está na circunstância de estarem ou não institucionalizados, mas no poder que os mesmos

detêm de romper com os limites impostos por tal condição:

(...) ponto essencial dos movimentos sociais e das demais organizações comunitárias não-estatais não está na problemática de serem ou não institucionalizadas, mas na capacidade de romperem com a padronização opressora e de construírem nova identidade coletiva, de base participativa, apta a responder às necessidade humanas fundamentais (2001, p. 143).

Wolkmer afirma que a institucionalização, embora apresente algumas limitações ao

papel transformador dos movimentos sociais, não precisa ser erradicada, mas deve respeitar

“a natureza, a autonomia, a identidade e a dinâmica dos grupos coletivos e comunidades

alternativas”. Afirma, outrossim, que, de fato, os movimentos se opõem às formas de

institucionalização, mas isto se dá contraditoriamente, pois eles se encontram

institucionalizados, ainda que em “baixo nível” (2001, p.144).

Para Maria da Glória Gohn, autora com várias obras sobre o tema, filiada ao

entendimento de não haver uma definição universal, existem algumas características básicas

dos movimentos sociais, incluindo-se a questão da institucionalização. Os aspectos destacados

pela autora são: presença de atores sociais coletivos; articulação diante de cenários

socioeconômicos em face de conflitos e problemas vivenciados; inovação na esfera pública e

privada; contribuição para o desenvolvimento e transformação da sociedade civil;

participação na mudança social histórica; embasamento em entidades e organizações da

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sociedade civil, além de política e espaço coletivo de compartilhamento dos valores culturais

e políticos não-institucionalizados.

Afirma Gohn, então, serem os movimentos sociais:

ações sociopolíticas construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política de um país, criando um campo político de força social na sociedade civil. As ações estruturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em conflitos, litígios e disputas vivenciadas pelo grupo na sociedade. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos interesses em comum. Esta identidade é amalgamada pela força do princípio da solidariedade e construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo, em espaços não-institucionalizados. Os movimentos geram uma série de inovações nas esferas pública (estatal e não-estatal) e privada; participam direta ou indiretamente da luta política de um país, e contribuem para o desenvolvimento e a transformação da sociedade civil e política. Essas contribuições são observadas quando se realizam análises de períodos de média ou longa duração histórica, nos quais se observam os ciclos de protestos delineados. Os movimentos participam portanto da mudança social e histórica de um país e o caráter das transformações geradas poderá ser tanto progressista como conservador ou reacionário, dependendo das forças sociopolíticas a que estão articulados, em suas densas redes; e dos projetos políticos que constroem com suas ações. Eles têm como base de suporte entidades e organizações da sociedade civil e política, com agendas de atuação construídas ao redor de demandas socioeconômicas ou político-culturais que abrangem as problemáticas conflituosas da sociedade onde atuam (2004, p. 251-252).

Cabe destacar, no conceito de Maria da Glória Gohn, a questão da institucionalização

dos movimentos sociais, frisando-se o fato de a autora afirmar que as ações dos movimentos

desenvolvem um processo social e político-cultural capaz de promover a criação de uma

identidade coletiva e esta “é amalgamada pela força do princípio da solidariedade e construída

a partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo, em

espaços não-institucionalizados”. Quando a autora refere-se a espaços não-institucionalizados,

entende aqueles situados “na esfera pública não-governamental, ou não-estatal, possibilitando

aos movimentos dar visibilidade às suas ações” (2004, p. 253), portanto, estando situados em

campos distintos daqueles vinculados ao poder estatal ou governamental. Entretanto, destaca

Gohn:

Mas os movimentos não são simples idéias ou entes fantasmas. Eles têm uma concretude, e para viabilizar e operacionalizar suas pautas e agendas de ação se apóiam em instituições e em organizações da sociedade civil e política. Muitas vezes a proximidade desta interação é tamanha, ou o conflito que permeia suas ações se regulamentou de tal forma, que ele deixa de ser movimento e se transforma numa organização. Na realidade, usualmente a trama que tece relações entre movimento e as organizações precede a própria existência do movimento. Este dado é importante porque muitos analistas têm uma concepção linear dos movimentos, afirmando que nasceriam em função das carências e interesses e depois marchariam para institucionalização por meio de sua transformação em organização. (2004, p. 254).

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Ressalte-se o trecho em que Gohn afirma: “usualmente a trama que tece relações

entre movimento e as organizações precede a própria existência do movimento”, ou seja, não

haveria exatamente como distinguir uma coisa de outra, pois as organizações promovem a

concretude dos movimentos, propiciam sua operacionalização, sem o qual dificilmente eles

teriam capacidade de mobilização. Segundo Gohn, o desenvolvimento dos movimentos não os

faz marchar, necessariamente, rumo à institucionalização. Mas, o fato de caminharem à

institucionalização não os desconstituiria enquanto movimentos sociais.

A definição dos movimentos, como já dito diversas vezes, é tarefa abrangente. O

enquadramento dos sindicatos nesta categoria, por sua vez, pode complicar-se quando se

verifica uma outra categoria: os grupos de interesse ou grupos de pressão.

Todos os elementos até aqui expostos relativamente aos movimentos sociais

permitem colocar os sindicatos neste campo. Contudo, simultaneamente, podem ser, também,

considerados como grupos de interesse quando se vêem os conceitos expostos no Dicionário

de Política de Norberto Bobbio. Nessa obra, tal conceito é apresentado por Gianfranco

Pasquino, segundo o qual, citando Truman, grupo de interesse é

qualquer grupo que, à base de um ou vários comportamentos de participação, leva adiante certas reivindicações em relação a outros grupos sociais, com o fim de instaurar, manter ou ampliar formas de comportamento que são inerentes às atitudes condivididas (1992, p. 564)

Tal definição, segundo Pasquino, apresenta-se substancialmente genérica, em virtude

do que surgem alguns problemas: vários autores consideram “muito genérica a noção de

interesse, e, por isso, analiticamente insersível, de tal modo que, praticamente, cada grupo

crescente numa sociedade se torna um grupo de interesse”. Outros autores, no entanto,

limitam a expressão a “interesse meramente econômico, deixando de lado outros interesses

presentes e organizados, como os interesses culturais, religiosos e outros” A fim superar essa

questão Truman usaria a expressão “grupos de interesse político”. Contudo, também não é

satisfatória tal utilização “na medida em que interesses não-políticos podem levar à

necessidade de pesquisa de decisões políticas favoráveis, com o fim de se adotar, manter ou

ampliar” (1992, p. 564).

Destaca Pasquino, porém, que a definição de grupos de interesse dada por Truman

não permite evoluir na construção de um conceito que realmente permita identificar tais

grupos (1992, p. 564). Na verdade, a partir dos elementos identificadores, especialmente a

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questão da reunião do grupo em torno de um determinado interesse, vê-se similitude entre os

movimentos sociais e os grupos de interesse. Maria Luisa Ramos Rollón trabalha exatamente

a questão da distinção dos grupos de interesse e dos movimentos sociais, abordando os

problemas conceituais e afirma:

Los movimientos sociales se han ubicado teóricamente en esa tierra de nadie que separa la esfera social de la política. Este escoramiento hacia la dimensión política puede, sin embargo, producir una colisión con esquemas analíticos que, desde planteamientos claramente ubicados en la esfera política, pueden reflejar quizá los mismos fenómenos. Me refiero, en concreto, al enfoque de la representación de intereses y a los conceptos de grupo de interés y grupo de presión. El caso de los movimientos sindicales refleja de forma clara la pertinencia de este ejercicio de contraste de esquemas analíticos en la medida en que es un caso de estudio que se incluye tanto en los análisis sobre movimientos sociales como en los que parten de las teorías de grupos de interés. (grifo nosso) (1997, p. 248)

Rollón destaca três situações que podem justificar a confusão conceitual em questão.

A primeira delas estaria no campo de estudo em que se dá o uso das terminologias, ou seja, o

conceito de movimentos sociais seria, basicamente, próprio das análises sociológicas,

enquanto a representação de interesses estaria no campo da ciência política. A segunda

explicação seria pelo local onde tais conceitos foram mais trabalhados, quer dizer, “la

utilización del concepto de grupo de interés se ha difundido en la academia anglosaja y

especificamente norte-americana. Por el contrario, el grueso de los trabajos sobre

movimientos sociales es europeo”. E, por fim, a terceira explicação estaria na carga valorativa

de ambos os conceitos, ou seja, “la supuesta ‘bondad’ de los movimientos sociales con la

ausencia de altruísmo que caracterizaría a los grupos de interés, caracterizados, precisamente,

por perseguir y defender intereses de carácter lucrativo”. Por conseguinte, as ações coletivas e

os grupos que as realizam se enquadrariam no esquema conceitual dependendo do conteúdo

valorativo de suas reivindicações e não de sua caracterização teórica (1997, p. 253-254).

De qualquer modo, a autora destaca que

desde el enfoque pluralista del análisis de los grupos de interés no hay grandes problemas en referirse a los llamados movimientos sociales como grupos de interés si cumplen los dos requisitos señalados de representar intereses y de tratar de influir en la toma de decisiones públicas (1997, p. 255).

Diante da ponderação de Maria Luisa Rollón pode-se afirmar que os sindicatos,

enquanto movimentos sociais, e por cumprirem o papel de representarem interesses e

tentarem, na defesa desses interesses, influenciarem nas decisões públicas, podem ser

considerados também como grupos de interesse. Observa-se que o conceito de movimento

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social e de grupo de interesse para essa autora não é contraditório, confluindo, em alguns

casos, no mesmo sentido. A partir de todas as considerações apresentadas até este momento,

analisando-se o posicionamento dos diversos autores citados, verifica-se poderem os

sindicatos ser vistos enquanto movimentos sociais, estando, outrossim, dotados de

caraterísticas dos grupos de interesse. É relevante destacar que, mesmo quando Rollón

pretende apontar elementos de diferenciação entre os movimentos sociais e os grupos de

interesse, acaba por reafirmar as semelhanças entre essas duas categorias.

Primeiramente, a autora destaca o entendimento de alguns estudiosos no sentido de

os grupos de interesse perseguirem objetivos mais limitados, interesses econômicos

especializados, enquanto os movimentos sociais buscam objetivos capazes de beneficiar a

comunidade em seu conjunto (1997, p. 257). No entanto, segundo Joachim Raschke, “se debe

prescindir de los añelados cambios estructurales del Estado y/o de la sociedad como

característica de los movimientos sociales” (1994, p. 125). Diante de tal afirmativa, então, o

objetivo de mudanças estruturais na sociedade deixa de ser um diferencial entre movimentos

sociais e grupos de interesse.

Um segundo elemento diferenciador de grupos de interesse dos movimentos sociais

estaria na racionalidade das ações, ou seja, no primeiro caso, as ações praticadas seriam

racionais e, no segundo, irracionais (1997, p. 258). Este é um critério nada seguro para tal

distinção, porque há quem defenda que a irracionalidade das ações não necessariamente

caracterizará determinado grupo enquanto movimento social, pois, em muitos casos, pode

representar mera ação de protesto, sem outro elemento essencial, da identidade coletiva

(GUSFIELD, 1970 apud LARAÑA, 1999, p. 109). Além disso, segundo os autores já

apresentados, os movimentos sociais destacam-se pela organização e racionalidade de suas

ações.

Um terceiro item utilizado por Rollón para a diferenciação em questão diz respeito

aos métodos empregados para o alcance das reivindicações pelos movimentos sociais e pelos

grupos de interesse:

Los grupos de interés utilizan métodos institucionalizados con el fin de conseguir sus fines, en tanto que los movimientos sociales se caracterizarían por la utilización de la protesta o la movilización, hasta el punto de que la mayoría de los estudios sobre movimientos sociales se utilizan como sinónimos los términos movilización, protesta, acción colectiva y movimiento social (1997, p. 258).

No entanto, novamente a autora pondera que este critério não parece adequado para

diferenciar os dois fenômenos, porque os movimentos sociais também se utilizam de métodos

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institucionalizados. Raschke leciona exatamente que “los movimientos sociales tampoco están

fijados por principio a una forma de acción determinada, sea del tipo institucionalizado o del

tipo de acción directa”, não obstante haja afinidade entre os movimentos sociais e as forma de

ação não-convencionais (1994, p. 126). Portanto, este também não é um criterio razoável para

a diferenciação entre grupos de interesse e movimentos sociais.

Um quarto elemento apontado por Rollón está na estruturação dos grupos de

interesse e dos movimentos sociais, no sentido de os primeiros serem “fundamentalmente

organizaciones formales bien estructuradas”, enquanto os segundos “se definen por su

informalidad, por su espontaneidad”. Entretanto, tal criterio também não serve exatamente

porque “los movimientos se sitúan en la zona ambigua en que no son ni episodios, como

sinónimo de movilizaciones, ni son organizaciones” (1997, p. 259).

Por fim, um quinto elemento para diferenciar os grupos de interesse dos movimentos

sociais, mas também não encaixado exatamente em um ou outro conceito, é o fator trajetória,

ou seja, “un movimiento social puede llegar a ser un grupo de interés, es decir, que puede

recorrer un camino que desemboca en su consideración como grupo de interés”. Os

movimentos sociais percorrem em sua trajetória um caminho, o qual os leva à

institucionalização, cooptação ou desaparecimento, sendo difícil permanecerem puros. Na

verdade, “entre sus múltiples aspectos y acciones se combinan las que se consideran

específicas de los movimientos sociales y las propias de los grupos de presión” (1997, p. 259-

260).

Diante de todas as considerações, constata-se que ao tentar distingüir grupos de

interesse de movimentos sociais acaba-se por encontrar muitas semelhanças, as quais

inviabilizam a dicotomia. As categorias não são fechadas, apresentam características em

comum e, mais do que isso, características se vão agregando conforme a trajetória de

desenvolvimento. É perceptível todos os elementos apontados como identificadores dos

movimentos sociais ou dos grupos de interesse, na verdade, acabarem por ser localizados nas

duas categorias, impedindo uma divisão clara.

Os sindicatos, por sua vez, agregam características de ambos os lados. A seguir,

referem-se elementos dos movimentos sociais que permitem enquadrar os sindicatos nesta

categoria, apesar das considerações sobre os grupos de interesse, cujo conceito, como

exposto, tem muitos itens de que também estão dotados os movimentos sociais, especialmente

em vista da trajetória percorrida no desenvolvimento de suas lutas.

Sandra Maria Marinho Siqueira, ao abordar o aspecto conceitual e o projeto dos

movimentos sociais expõe o seu posicionamento quanto a tal definição, dizendo que estes

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(...)representam o conjunto de ações coletivas dirigidas à reivindicação de melhores condições de trabalho e vida, de caráter contestatório, quanto inspirado pela construção de uma nova sociabilidade humana, o que significa, em última análise, a transformação das condições econômicas, sociais e políticas fundantes da sociedade atual (2002, p..7).

Maria Célia Paoli traz considerações a respeito dos movimentos sociais como

referencial empírico, afirmando estes abrigarem

(...) ações coletivas diversas, com diferentes significados, alcances e durações, formadas por atores coletivos cuja especificidade é a de reivindicarem exatamente sua diferença e o direito de proclamá-la como base de sua própria constituição como coletivo em movimento. As diferentes mobilizações coletivas não estão interligadas por terem uma mesma natureza ou as mesmas características, mas sim porque podem estabelecer um espaço comum numa rede de operações com sentido político, na medida em que são engendradas, e portanto referenciadas, a uma mesma sociedade. Mesmo assim, sua interligação não é obrigatória e, de fato, é de difícil construção. Daí decorre que não se pode deduzir, ou problematizar, o espaço comum dos movimentos sociais como se fosse uma somatória de traços comuns próprios à existência concreta destes (origem, funções, estruturas, formas de organização e efeitos políticos), pois isso seria confundi-los com o seu conceito analítico – o que equivale a dar mais realidade ao conceito do que às trajetórias de seu acontecimento (PAOLI, 1995, p.26-27).

Joachim Raschke, já citado, considera os movimentos sociais como agentes coletivos

cujo objetivo é provocar, impedir ou anular transformações sociais fundamentais, utilizando-

se, para tanto, de diferentes ações e organizações, mas com grau não-significativo de regras a

serem observadas. Ele afirma que, quanto mais organizado o movimento, mais regras tem a

observar, exemplificando tal questão de forma comparativa entre o movimento de

trabalhadores e os NMS: aqueles têm maior grau de organização e, portanto, mais normas a

serem observadas (RIECHMANN, 1994, p. 49). Leonie Wagner, ao comentar o

posicionamento de Raschke, coloca que, segundo este, os NMS surgiram a partir do final dos

anos 60, diferenciando-se dos movimentos “tradicionais” ativos no século XIX e primeira

metade do século XX, por cinco aspectos principais:

ausência de uma ideologia unitária fechada; multiplicidade temática e troca rápida de issue

9; baixo grau de estruturação organizacional, de burocratização e de

centralização, aliado a uma rejeição a lideranças; grande variabilidade das formas de ação com ênfase na ação direta; grande número de movimentos parciais autônomos mas altamente interligados (RASCHKE, 1988, p.412 apud WAGNER, 2002, p. 35).

9 A expressão issue encontra-se traduzida, entre outras opções, como “questão, assunto de debate”(Dicionário Yázigi, 1974, p. 256), sendo estas as definições mais adequadas ao contexto apresentado por Leonie Wagner.

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Há de se ressaltar, a partir dos itens de diferenciação dos NMS em relação aos

movimentos “tradicionais”, o quesito da estruturação organizacional e burocratização, dado

nos NMS, segundo Raschke, em nível inferior. Disso se pode aferir que, mesmo nos casos de

índice elevado de burocratização, os movimentos não deixam de serem movimentos sociais,

ou seja, não passam desse status para organizações ou entidades. Entretanto, deve-se

considerar que seu agir passa a ter prioridade para as questões organizacionais, podendo ser a

causa para a apatia (“fim”) de alguns movimentos, conforme Raschke. Todavia, Leonie

Wagner frisa até esta assertiva poder ser verdadeira para uma parte dos movimentos na

Alemanha, porém, não se aplica a outros, cujas causas de transformação são diversas, sendo

tais distinções decorrentes da “dinâmica própria dos movimentos e de sua interação com a

política estatal” (WAGNER, 2002, p. 37).

Ainda quanto à caracterização dos movimentos sociais, eles são instâncias

provocadoras de mudanças sociais, ou mesmo impeditivas de alterações em áreas

consideradas essenciais, sendo este um dos elementos caracterizadores, segundo o conceito de

Raschke:

Movimento social é uma mobilizadora atuação coletiva que, com certa continuidade, sob a base de elevada integração simbólica e pequena especificação de papéis e mediante variáveis formas de organização e atuação, persegue a meta de, ou introduzir fundamentais mudanças sociais, ou impedi-las ou fazê-las retroceder (grifo nosso) (RASCHKE, 1987, p.77).10

Nesse mesmo sentido Turner e Killian afirmam serem os movimentos sociais

“colectividades que actúan con cierta continuidad para promover o resistir un cambio en la

sociedad o en el grupo del que forman parte” (1987, p. 222 apud LARAÑA, 1999, p. 95).

Macpherson, ao comentar as relações entre as associações de trabalhadores e o Estado,

destaca as ações implementadas por aquelas no sentido de

(...) forçar o estado (através de seu poder político e econômico) a admitir o dever de sustentar e, gradualmente, melhorar o nível de benefícios socioeconômicos através de salários mínimos, condições de trabalho, pensões, seguro-desemprego, enfim, situações de bem-estar social e mínimo sociais maiores, operacionalizando essas condições de tal forma a se tornarem universalmente aplicáveis. Em outras palavras, não se trataria de o trabalho substituir o capital como o interesse social dominante, mas, antes, gradualmente procurar diminuir sua estável e intocada dominação sobre a vida social (OLIVEIRA, 2004, p.62).

10 Tradução realizada por Alberto Rufino Rosa Rodrigues de Sousa do original: “Soziale Bewegung ist ein mobilisierender kollektiber Akteur, der mit einer gewissen Kontinuität auf der Grundlage hoher symbolischer Integration und geringer Rollenspezifikation mittels variabler Organisations – und Aktionsformen das Ziel verfolgt, grundlegenderen sozialen Wandel herbeizuführen, zu verhindern oder rückgängig zu machen” (RASCHKE, 1987, p. 77).

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Há, no entanto, quem critique o entendimento de os movimentos sociais

caracterizarem-se pelo aspecto da transformação social, porque, neste caso, estaria abrangida

pelo conceito de movimentos sociais uma série de manifestações coletivas com intenção de

produzir alterações revolucionárias, com a criação de uma nova ordem social, até mesmo

transformações no sistema de normas, significados e relações sociais (HEBERLE, 1975;

GUSFIELD, 1970, 1979, 1981 apud LARAÑA, 1999, p. 95). Diante disso, Laraña defende

es más adecuado afirmar que existe una relación entre movimientos sociales y procesos de cambio social que dar por hecho que los primeros son aquellas formas de acción colectiva destinadas a producir determinada clase de cambios en la sociedad (1999, p.96).

De qualquer forma, seja defendendo o entendimento de relação intrínseca entre

movimentos sociais e transformação social, ou apenas considerando haver uma aproximação

entre ambos11, exsurge a potencialidade educativa dos movimentos sociais de que estão

dotados os sindicatos em face do seu enquadramento enquanto movimentos sociais, nos

termos expostos. Assim, no tópico seguinte, aborda-se a estreita relação entre os sindicatos e o

caráter educativo que podem apresentar para a sociedade em geral, bem como para os

participantes das atividades sindicais.

1.3.1 Sindicatos e Educação

Em virtude dos elementos caracterizadores dos movimentos sociais, observa-se, de

forma intrínseca, o seu aspecto educador, o qual, ainda que sucintamente, já havia sido

referido ao se tratar da temática da conceituação dos movimentos sociais à luz das

considerações de Alberto Melucci.

Maxwel Monteiro Bastos ressalta tal questão relativa à categoria dos sindicatos.

Enquanto movimentos sociais, eles podem caracterizar-se como espaços de formação do

profissional da educação, por serem “momento e espaço de se fazer/pensar a prática política

11 Em relação a esta temática, há duas teorias: funcionalista e interacionista. Para a teoria funcionalista, o movimento social é uma reação às mudanças sociais, tendo suas raízes nas perturbações psicológicas e nas tensões sociais geradas pelas mudanças. Já para a teoria interacionista, os movimentos são agentes de transformação social, sendo este aspecto intrínseco à sua natureza (LARAÑA,1999, p. 53).

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coletiva”, sendo este, inequivocamente, um aspecto na função educativa dessa espécie de

movimento (BASTOS, 2000, p.20 in GARCIA, 2000, p. 17-43).

Segundo o autor, mesmo com todas as transformações ocorridas no mundo do

trabalho ao longo das últimas décadas, os sindicatos mantiveram-se ativos, embora com uma

série de dificuldades, sendo influenciados pelas novas características dos movimentos sociais,

que fazem surgir os Novos Movimentos Sociais. Nesses, a orientação para atuar passa a ser

“de uma participação em redes mais amplas de pressão e resistência”, com sujeitos sociais

diversos, considerando-se sua multidimensionalidade e as múltiplas redes envolvidas, como

família, comunidade, partido, escola etc (2000, p.30-33 in GARCIA, 2000, p. 17-43). Com

todas essas alterações, segundo Bastos, possibilitaram-se

(...) articulações entre atores e movimentos sociais de forma diversificada, que vão desde a cooperação regional e internacional entre as entidades, com discussão de prioridades e estratégias de luta, até a solidariedade econômica, possibilitando um pluralismo organizacional e ideológico, no qual concepções ideológicas e partidárias convivem na mesma organização ou rede, atuando como força de pressão ao já institucionalizado, aos padrões dominantes e à opinião pública, na tentativa de revertê-la ou de dialogar com ela (2000, p. 33-34 in GARCIA, 2000, p. 17-43).

O dia-a-dia do sindicato, com as ações produzidas, proporciona saberes igualmente

relevantes àqueles considerados científicos. Tanto é assim que não há como fazer qualquer

distinção hierárquica, visto cada um ser dotado de características próprias. Em vista disso,

pode-se afirmar que tal modalidade de movimentos sociais está dotada de caráter educativo,

pois está apta a produzir conhecimento em face do cotidiano. Para isso, no entanto, é “de vital

importância que o movimento sindical passe a fazer parte da vida cotidiana dos trabalhadores”

(BASTOS, 2000, p.39-40 in GARCIA, 2000, p. 17-43).

Gohn também adota o posicionamento no sentido de os movimentos sociais

apresentarem caráter educativo, compreendendo, portanto, não estar o conceito de educação

restrito “ao aprendizado de conteúdos específicos transmitidos através de técnicas e

instrumentos do processo pedagógico”, havendo duas dimensões para a construção do caráter

educativo: dimensão da organização política e dimensão da cultura política (2001, p. 17).

Quanto à organização política, ela se torna de fundamental importância para a

viabilização das demandas do movimento, pois há necessidade de agregar informações para

serem apropriadas pelos participantes do movimento. Elas se transformam em conhecimento

sobre as técnicas que precisam ser implementadas, tanto em termos de ações coletivas, como

em efeitos de acesso às instâncias públicas, a fim de obter, por exemplo, verbas.

Quanto à dimensão da cultura política destaca Gohn

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(...) aprende-se a elaborar discursos e práticas segundo os cenários vivenciados. E aprende-se, sobretudo, a não abrir mão de princípios que balizam determinados interesses como seus. Ou seja, elaboram estratégias de conformismo e resistência, passividade e rebelião, segundo os agentes com os quais se defronta. Isso tudo porque ocorre a identificação do processo de ocultamento das diferenças sociais existentes e, conseqüente, a identificação dos distintos interesses de classes pertinentes (2001, p.19).

Gohn ressalta a importância de atentar para os aspectos ocorridos no movimento

social, porque, em muitos casos, há atitudes consideradas conservadoras por observadores

ditos revolucionários mas que são, na verdade, parte do processo pedagógico (2001, p.19). À

luz de tais afirmativas têm-se os movimentos sociais como instâncias não-formais de

educação. Isso, inequivocamente, é relevante em termos de desenvolvimento social, pois

amplia a abrangência educacional, não se restringindo apenas à escola, embora com dinâmica

e enfoque visivelmente distinto.

Tal visão é perfeitamente aferida quando se examina a atuação dos movimentos

sociais como instrumentos de pressão para a construção legislativa, havendo inúmeras

circunstâncias exemplificativas, destacando-se, entre elas, o atual Código de Defesa do

Consumidor, Lei 8.078/90, certamente caracterizada como um expressivo avanço na proteção

dos direitos relativos às relações de consumo.

Maria da Glória Gohn destaca:

O que geram os movimentos sociais são organizações de cidadãos, de consumidores, de usuários de bens e serviços que atuam junto a bases sociais mobilizadas por problemas decorrentes de seus interesses cotidianos. Eles não existem 'a priori', tornam-se movimentos pelas ações práticas dos homens na história. Organização e consciência serão fatores decisivos para explicar o seu desenrolar. (1997, p.74) 12

A partir deste singelo exemplo, observa-se que a atuação dos movimentos sociais,

sem dúvida, exerce relevante função educacional ao conscientizar os cidadãos para se

sentirem e se comportarem como titulares de direitos e obrigações e, a partir disso,

promoverem as reivindicações necessárias. Tais reivindicações — embora acima se tenha

colacionado exemplo ocorrido diante do Poder Público (Legislativo) — também se

12 Todavia, impõe-se considerar que não são necessariamente os movimentos sociais respostas às circunstâncias sociais, políticas e econômicas em que está envolvida a sociedade. A partir dos ensinamentos de Melucci, nos termos expostos por Maria da Glória Gohn os movimentos sociais não são "simples resposta às crises

econômicas (como em algumas análises de cunho marxista ortodoxo) ou como meros efeitos de desvios e

marginalidades (como abordagem funcionalista clássica)." (GOHN, 1997, p. 160)

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concretizam, em muitos casos, por ações dos vários setores da sociedade civil, por exemplo,

no caso dos sindicatos de trabalhadores perante um segmento da iniciativa privada.

Assim, as mobilizações sociais, independentemente das instâncias, dos objetivos e

das metas a que estejam direcionadas, caracterizam-se, inequivocamente, como uma forma de

educação. Embora não seguindo o sistema formal instituído e mantido pelo Estado e por

grupos privados, nem por isso mostram-se menos relevantes, pois propiciam a provocação dos

membros da sociedade para a reflexão acerca da realidade em que estão inseridos.

Nas lições de Paulo Freire, observa-se claramente o apelo insistente feito por esse

mestre para a educação ser capaz de conduzir o homem à auto-reflexão e ao exame crítico e

racional do momento histórico-social em que se encontra, uma vez que apenas após a

compreensão de si mesmo e da realidade circundante estará apto a buscar alternativas, outros

caminhos que não aquele que acredita ser o traçado para si. Pontua, ainda, que:

Quando o homem compreende sua realidade, pode levantar hipóteses sobre o desafio dessa realidade e procurar soluções. Assim, pode transformá-la e com seu trabalho pode criar um mundo próprio: seu eu e suas circunstâncias.(1979, p.30)

Desta feita, considerando a potencialidade dos movimentos sociais para a

transformação social a partir das formas de ação adotadas, impõe-se reconhecer, como já

referido, também a sua capacidade educativa, com alcance tanto para os membros dos

movimentos — militantes — como para a sociedade em geral.

Sônia Azevedo, ao comentar sobre os sindicatos, referenda tais afirmativas. A autora

entende os sindicatos como lugares de aprendizagem em face de todas as circunstâncias

vivenciadas nesse ambiente, especialmente no tangente à luta do dia-a-dia, ao diálogo

desenvolvido e às lições daí decorrentes (2000, p. 65-80).

Por outro lado, há de se considerar que as alterações ocorridas nos últimos tempos

em relação aos movimentos sociais podem ter minorado o caráter educativo interno,

especialmente quando se trata dos NMS, especificamente as ONGs, pois ao promoverem suas

campanhas têm o assessoramento profissional para obter maior impacto sobre a opinião

pública (WAGNER, 2002, p. 36). O aspecto educativo externo, entretanto, mantém-se mesmo

sendo as mobilizações orientadas por profissionais, já que o alcance do público é

concretizado.

O caráter educativo dos movimentos sociais se dá especialmente em face da

participação política que proporcionam, pois são espaços democráticos e, por conseqüência,

espaços de participação, sendo tal experiência, segundo Carole Pateman, capaz de tornar “o

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indivíduo psicologicamente melhor equipado para participar mais no futuro”. Há, entretanto,

quem se oponha a essa tese, como Sartori, para quem não há comprovação de que alguém

“aprende a votar, votando” (PATEMAN, 1992, p.65).

Os sindicatos representantes dos operários têm especial importância ao

proporcionarem a participação política dos trabalhadores nas questões de sua alçada, isto

porque, segundo Pateman:

(...) é o grupo dos indivíduos de condição socioeconômica inferior que tem as menores oportunidades de participação, especialmente no local de trabalho. Já faz quase parte da definição de ocupação do indivíduo de baixo status socioeconômico que ele tenha pouca margem para o exercício da iniciativa ou do controle sobre o seu trabalho e sobre as condições de trabalho, que ele não participe da tomada de decisões da empresa e receba instruções sobre o que fazer por seus superiores na organização (1992, p.71).

Se, no ambiente profissional, tais trabalhadores não têm oportunidade de

participação, diálogo e reflexão a respeito (ao menos) do desenvolvimento de suas atividades,

não há dúvidas que a possibilidade de, no âmbito dos sindicatos, refletirem a respeito das

questões sociais, econômicas e políticas a que estão vinculados, é de suma importância. Para

John Stuart Mill, assim como para Cole, a função educativa da participação é crucial,

afirmando ambos ser “apenas pela participação a nível local e em associações locais que o

indivíduo poderia ‘aprender democracia’” (COLE, 1919, p. 157 apud PATEMAN, 1992, p.

55).

Mill defende exatamente ampliar a participação no ambiente de trabalho como forma

de educação e aperfeiçoamento. Porém, para viabilizar a “participação” no local de trabalho

(...) a relação de autoridade na indústria teria de transformar-se da habitual relação de superioridade-subordinação (empresários e homens) em uma de cooperação ou de igualdade, com administradores (governo) eleitos por todo o corpo de empregados, da mesma forma que são eleitos os representantes a nível local (PATEMAN, 1992, p.51).

A participação está, conforme Rousseau, estreitamente vinculada à liberdade, pois a

sensação de ser livre e a concretização efetiva da liberdade variam conforme o grau de

participação na tomada de decisões, “porque tal participação dá a ele um grau bem real de

controle sobre o curso de sua vida e sobre a estrutura do meio em que vive” (ROUSSEAU

apud PATEMAN, 1992, p. 40).

Segundo Rousseau, a participação apresenta três funções centrais: “aumentar o valor

da liberdade para o indivíduo”; permitir que “as decisões coletivas sejam mais aceitas pelo

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indivíduo” e fornecer a “sensação de que cada cidadão isolado ‘pertence’ à sua comunidade”

(PATEMAN, p.40-41).

As funções da participação decorrem, segundo Pateman, de haver “uma inter-relação

entre as estruturas de autoridade das instituições e as qualidades e atitudes psicológicas dos

indivíduos; e do argumento relacionado a este, de que a principal função da participação tem

caráter educativo” (1992, p. 42).

As conclusões de Pateman se dão à luz das teorias de Rosseau. Conforme a autora,

também John Stuart Mill apresenta entendimento no mesmo sentido, destacando serem as

instituições de caráter popular participativo que proporcionam a participação política em

esfera menor e, por conseguinte, desempenham tarefa educativa para a participação política

em escala de maior amplitude (PATEMAN, 1992, p. 45-46). Entretanto, diferencia-se a tese

de Mill daquela de Rousseau relativamente à forma de participação política. Segundo

Rousseau, o sistema representativo é extremamente vulnerável, pois não autoriza a

participação direta nas decisões políticas. Mill não apresenta esta defesa e, por conseqüência,

segundo Pateman, parece não perceber a inconsistência de alguns itens de sua teoria. Em um

nível restrito, de instituições locais, Mill defende sim, a participação direta, porém, não em

âmbito maior. Aí está seu pecado, conforme Pateman:

O ponto importante a respeito do paradigma rousseauniano de participação direta é que o processo participativo seria organizado de tal maneira que os indivíduos estariam, por assim dizer, psicologicamente “abertos” a seus efeitos. Mas nada disso é encontrado em Mill. A maioria é estigmatizada pelo sistema de sufrágio como politicamente inferior e não pode resistir à implementação de políticas desvantajosas; se uma elite predeterminada deve alcançar o poder político, por que motivo deveria a maioria se interessar pela discussão? Mill não parece se dar conta de qualquer inconsistência nos vários componentes de sua teoria, mas é difícil perceber de que forma a concepção de participação pode vir a realizar-se. Mesmo com o sufrágio universal e com o poder de deliberação dos representantes, não haveria um ambiente educativo “tão forte” como aquele fornecido pelo sistema de participação direta de Rousseau; o problema de como reproduzir o modelo de Rousseau nas condições modernas vai ser examinado mais adiante. No momento, deve-se notar que o nível político local abordado por Mill, crucial do ponto de vista da educação, poderia propiciar a participação direta na tomada de decisões (1992, p. 49).

A questão da forma de participação (direta ou por representação) é destacada por

Cole, para quem o sistema representativo é uma ilusão quanto à efetiva existência de

participação. Isto porque os eleitores não fazem um controle efetivo sobre as instituições

parlamentares e seus representantes. Conforme Cole, “ao escolher seu representante, o

homem comum, de acordo com essa teoria, não tem outra opção exceto deixar que outros o

governem” (COLE apud PATEMAN, 1992, p. 54).

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Macpherson posiciona-se nesse mesmo sentido, elegendo, para concretizar uma

verdadeira democracia participativa, “um sistema piramidal com democracia direta na base e

democracia por delegação em cada nível depois dessa base”. Em tal sistema, ter-se-ia

democracia direta ao nível da fábrica, por exemplo, e a “eleição de delegados que formariam

uma comissão no nível mais próximo seguinte”. É relevante destacar a importância por

Macpherson concedida à questão da responsabilidade dos representantes, responsabilidade

presente exatamente por não agirem em nome próprio, mas em representação. Aduz

Macpherson, então:

Os delegados teriam de ser suficientemente instruídos pelos que os elegessem, e responsáveis para com eles de modo a tomar decisões em nível de conselho em caráter razoavelmente democrático. Assim prosseguiria até o vértice da pirâmide, que seria um conselho nacional para assuntos de interesse nacional, e conselhos locais e regionais para questões próprias desses segmentos territoriais (1978, p.110).

Por fim, então, defende Macpherson que a democracia do sistema de representação

depende da responsabilização daqueles eleitos quando atuam de forma desvirtuada.

Entretanto, mesmo assim, destaca o autor as dificuldades para o controle democrático pois,

ainda com alguns instrumentos de controle, não há garantia de efetiva participação

democrática (1978, p. 111), sendo necessário, desde logo, banir a apatia política do povo

(1978, p. 113).

De qualquer modo, Macpherson pondera diversas dificuldades para o êxito de tal

sistema, entre elas, “se haverá algum meio de combinar uma estrutura de conselho piramidal

com um sistema partidário em competição” (1978, 113-114). A irrealidade do sistema

piramidal se dá, assim, pela incompatibilidade com os partidos políticos e, especialmente,

porque, para as nações ocidentais no final do século XX e subseqüentes, é impensável cogitar

de um sistema sem partidos políticos, ou, que haja a tomada de poder por um partido único.

Por outro lado, sob o prisma da sociedade ideal, por exemplo, sem a divisão em

classes sociais e não-exploradora, haveria viabilidade de convivência entre o sistema

piramidal e os partidos políticos, porque as principais funções desempenhadas pelo sistema

partidário nas sociedades de classe tem sido “disfarçar o antagonismo de classes e a

composição permanente de conciliações ou aparentes conciliações entre as exigências das

classes em conflito” (MACPHERSON, 1978, p.114).

De qualquer forma, em nível nacional, defende Macpherson, “deve haver certo tipo

de sistema representativo, e não democracia completamente direta” (1978, p.99). O autor

justifica tal posicionamento da seguinte forma:

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A iniciativa popular poderia certamente formular claras questões sobre certos assuntos simples, por exemplo, pena de morte ou legislação sobre tóxicos, sobre aborto – questões que exigem respostas simples, sim ou não. Mas pelas razões acima apresentadas, a iniciativa popular não poderia formular adequadas questões sobre os grandes problemas inter-relacionados de política social ou econômica em geral. Isso teria de ficar a cargo de algum órgão governamental. E a menos que esse órgão fosse ou eleito ou responsável para com o eleitorado, tal sistema de contínuas consultas não seria realmente democrático: pior ainda, dando uma aparência de ser democrático, o sistema esconderia a real posição do governo e permitiria assim que governos “democráticos” fossem mais autocráticos do que são agora. Nada podemos sem políticos eleitos. Devemos confiar, embora não devamos confiar exclusivamente, na democracia indireta. O problema é tornar responsáveis os políticos (1978, p. 101). (grifo nosso)

A partir disso, então, defende Macpherson a possibilidade de coexistência dos

partidos políticos e de uma verdadeira democracia participativa, dando-se a participação dos

mesmos através de uma estrutura parlamentar ou de congresso13 (1978, p. 115). Segundo

Pateman, no entanto, a verdadeira democracia participativa é aquela em que se vislumbram

indivíduos e instituições em conjunto, de forma não-isolada. Assim afirma Pateman:

A existência de instituições representativas a nível nacional não basta para a democracia; pois o máximo de participação de todas as pessoas, a socialização ou “treinamento social”, precisa ocorrer em outras esferas, de modo que as atitudes e qualidades psicológicas necessárias possam se desenvolver. Esse desenvolvimento ocorre por meio do próprio processo de participação. A principal função da participação na teoria da democracia participativa é, portanto, educativa; educativa no mais amplo sentido da palavra, tanto no aspecto psicológico quanto no de aquisição de prática de habilidades e procedimentos democráticos. Por isso, não há nenhum problema especial quanto à estabilidade de um sistema participativo; ele se auto-sustenta por meio do impacto educativo do processo participativo. A participação promove e desenvolve as próprias qualidades que lhe são necessárias; quanto mais os indivíduos participam, melhor capacitados eles se tornam para fazê-lo. As hipóteses subsidiárias a respeito da participação são de que ela tem um efeito integrativo e de que auxilia a aceitação de decisões coletivas (1992, p.61).

Porém, para fins de um sistema participativo, segundo Macpherson, são necessários

alguns requisitos, dois em especial: consciência do povo e diminuição da desigualdade social

e econômica. Em relação à consciência, diz o autor tratar-se da visão e ação do povo como

consumidores, executores e desfrutadores da execução, demonstrando, dessa forma, suas

capacidades. Entretanto, o desfrute das capacidades deve dar-se em conjunto, considerando a

comunidade, e não isoladamente pois, neste caso, não haveria senso de comunidade.

13 A questão ponderada pelo autor é se, no caso de um sistema representativo, estar-se-ia diante da democracia liberal. Defende Macpherson que sim, isto porque há a existência de partidos alternativos, “sendo concebível que após algumas décadas eles desapareçam, em condições de grande prosperidade e generalizada oportunidade à participação pelo cidadão por outros meios que não os partidos políticos” (1978, p. 115).

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Relativamente à diminuição da desigualdade social e econômica, argúi Macpherson

que, para tal fim, é necessária maior participação mas a maior participação também depende

da redução das desigualdades:

A redução da desigualdade social e econômica é improvável sem forte ação democrática. E tudo indica, se acompanharmos Marx ou Mill, que só mediante envolvimento completo na ação política conjunta pode o povo ultrapassar sua consciência de si mesmo como consumidor e apropriador Daí o círculo vicioso: não podemos conseguir mais participação democrática sem uma mudança prévia da desigualdade social e sua consciência, mas não podemos conseguir as mudanças da desigualdade social e na consciência sem aumento antes da participação democrática (1978, p. 103).

A idéia de participação acima exposta aponta estreito vínculo com a concepção de

práxis de Karl Marx, porque a práxis é considerada, segundo Ilse Scherer-Warren, como “toda

ação para a transformação do social”, sendo esta, exatamente, a finalidade da participação, ou

seja, integração com a realidade para fins de aprendizado e percepção do contexto social e

econômico e, em conseqüência, a transformação (1987, p 15).

Aponta Scherer-Warren que a práxis em Marx é enfocada sob três prismas: em

conexão com a atividade teórica; através da atividade produtiva e por meio da atividade

política. Na primeira hipótese, da práxis em conexão com a atividade teórica, Marx defende

ser a teoria por si só inoperante, bem como a práxis isolada também, porque é necessário que

“o proletariado adquira consciência de sua situação, de suas necessidades radicais e da

necessidade e condições de libertação”, sendo a teoria um elemento de formação desta

consciência (VAZQUEZ, 1977, p. 129 apud SCHERER-WARREN, 1987, p.25).

Na segunda hipótese, da realização da práxis através da atividade produtiva, defende

Marx ser “através do trabalho produtivo que o homem se produz, transforma a si mesmo e a

natureza”. Porém, frente ao capitalismo (que promove a alienação da mão-de-obra) o produto

do trabalho humano transforma-se em mercadoria, enquanto “deveria ser o resultado de uma

verdadeira práxis social”. Há, entre as pessoas, a “reificação” de suas relações, ou seja, são

tratadas como coisas. A forma defendida por Marx para a superação da “reificação” das

relações pessoais é a práxis política (SCHERER-WARREN, 1987, p.29).

A práxis política é, na verdade, o instrumento de realização do projeto ideológico de

Marx, perpassado pelo socialismo e, ao final, pelo comunismo. Consiste na construção da

consciência coletiva das classes oprimidas, promovendo a percepção da alienação e da

“possibilidade da ação humana consciente de intervir nos rumos da transformação social”,

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culminando, a partir disso, na transformação da sociedade (SCHERER-WARREN, 1987,

p.32).

Constata-se, pois, os três ângulos de práxis terem por fim alcançar a práxis

revolucionária, com a transformação da estrutura social. As fases para o alcance desta

finalidade seriam, conforme esquema apresentado por Scherer-Warren (1987, p. 39):

alienação do homem produtor

identidade de interesses de classe

consciência de classe e ideologia autônoma

organização de classe

luta revolucionária e transformação histórica

Karl Marx, contudo, não especificou, segundo Sidney Tarrow, como efetivamente

ocorreria a conscientização da classe obreira acerca das reais condições em que estão

envoltos, ou seja, não apresentou um conceito claro de liderança, a partir da qual seria

possível sustentar a mobilização revolucionária:

Desprovido de un concepto claro del liderazgo y de la cultura de la clase obrera, Marx dejó sin especificar las condiciones políticas que suministrarían las oportunidades para la movibilización revolucionaria (TARROW, 1998, p. 35).

Lênin propunha, para fins de atender os anseios dos obreiros, os chamados

“revolucionarios profesionales”, que atuariam como guardiões dos verdadeiros interesses dos

trabalhadores, buscando o alcance do poder para concretizar tais interesses. Porém, na prática,

Lênin foi um fracasso na efetivação de suas teorias pois, ao assumir o poder na Rússia, passou

a atentar para os interesses do partido, e não da classe obreira (TARROW, 1998, p.36).

Assim, considera-se ser um dos instrumentos para a concretização do ideal marxista

a organização sindical, que congrega trabalhadores na mesma situação socioeconômica, e, por

conseqüência, reunidos por ideais em comum, especialmente, no caso da classe operária, a

transformação social para superar as relações de reificação. A organização sindical tem a

possibilidade de estimular a classe trabalhadora na luta pela transformação, especialmente

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através da conscientização. Neste sentido está o posicionamento de Antonio Gramsci. Embora

tenha assumido o leninismo, ele compreendeu que

(...)la organización no era suficiente para llevar adelante una revolución y que era necesario desarrollar la conciencia de los propios trabajadores, razón por la cual consideraba el movimiento de los trabajadores como un intelectual colectivo, una de cuyas principales tareas era la creación de una cultura de clase (TARROW, 1998, P. 36).

Os movimentos sociais são, por conseguinte, importante instrumento de mobilização

das classes sociais, proporcionando conscientização. Exatamente isto afirma Macpherson, ao

referir-se aos movimentos comunitários e de vizinhanças que, embora incapazes de

promoverem rupturas significativas no sistema de elites, atraem muitas pessoas à participação

política, sobretudo aqueles pertencentes aos estratos econômicos inferiores (1978, p. 106).

No âmbito dos sindicatos não é diferente, ou seja, diante dos problemas sociais

enfrentados pelos trabalhadores, estes buscam nos sindicatos mecanismos de ação, a partir dos

quais se torna visível o aumento da participação política dos obreiros, sendo esta um dos

instrumentos para o recrudescimento da consciência de classe (MACPHERSON, 1978, p.

108).

Destaca-se disso o caráter pedagógico dos movimentos sociais (sindicatos) pois, pelo

processo de convivência (participação), pelo resgate histórico, bem como pela busca de

concretização de sonhos e, por conseqüência, da construção de estratégias de ação, nasce o

caráter pedagógico dos sindicatos. Afirma Schütz:

A unidade entre a realidade e o possível, entre teoria e prática, é a organização e a vida concreta dos movimentos. É, pois, na construção dos instrumentos, das metodologias, formas de relação e ação que vai se constituindo, enquanto processo, o inédito. Pois é ali que se constitui o capital cultural/social, nossas estruturas de sentimentos, e, portanto, de conduta em relação aos outros, aos meios e conosco mesmos. São dimensões não simplesmente ensináveis por teorias, mas que também não emergem espontaneamente a partir da realidade reificada (2004, p. 145). (grifo nosso)

Schütz destaca, ainda, a questão pedagógica dos grupos e das sociedades humanas,

porque todo ser humano tem capacidade de inovar, adaptar e agir reflexiva e

teleologicamente, com engajamento em espaços sociais e históricos, “explicitando

contradições e num permanente processo de reflexão-ação permeado pelo diálogo coletivo”, a

partir do que há a denúncia das situações injustas e a abertura de novas possibilidades” (2004,

p.146). O caráter pedagógico dos movimentos sociais (sindicatos) exsurge, ainda, com as

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mobilizações e reivindicações, viabilizadoras da constatação das debilidades dos sistema, com

a explicitação das estruturas de poder, forçando, conseqüentemente, a tomada de posições,

subsidiando processos sociais de transformação (2004, p. 149-151).

1.3.2 Sindicalismo no Brasil – breve histórico

Os sindicatos encontram-se, atualmente, regulamentados por normas específicas.

Trata-se da chamada institucionalização dos movimentos sociais, a qual apresenta,

historicamente, justificativas e objetivos. Talvez a principal explicação para regulamentar

normativamente os movimentos de trabalhadores diga respeito à postura histórica adotada por

eles mesmos: de contestação não apenas das condições sociais que diretamente os afetava,

mas também da estrutura social e econômica vigente.

A seguir, expõe-se um breve histórico do sindicalismo no Brasil, destacando-se

especialmente as normas vigentes em diferentes períodos. No século XX, em 1903, tem-se o

Decreto nº 979, a primeira norma a regulamentar a atividade sindical, prevendo a criação de

sindicatos com a função de estudo, custeio e defesa dos interesses de seus integrantes. Em

1907, um novo Decreto, de nº 1.637, completou o Dec. nº 979, fixando, entre as finalidades

dos sindicatos, “o estudo, a defesa e o desenvolvimento dos interesses gerais da profissão e

dos interesses profissionais de seus membros” (BATALHA, 1994, p. 37).

Entretanto, quanto à efetiva mobilização dos obreiros, apenas em 1906 houve a

primeira mobilização nacional deles, com o Congresso Operário Brasileiro, visando à

organização sindical de âmbito nacional. Nesse evento constatavam-se claramente duas

correntes do movimento sindical: anarco-sindicalista e socialismo reformista. A primeira, e de

maior expressão, defendia que a mobilização operária deveria privilegiar a luta dentro da

fábrica, enquanto a segunda corrente entendia ser necessário reformar a sociedade, utilizando-

se, para tanto, de organização partidária dos trabalhadores. A corrente do anarco-sindicalismo

acabou por ser superada, pois suas reivindicações eram exclusivamente econômicas e

dirigidas à iniciativa privada, não visando, perante o Estado, à criação de uma legislação

trabalhista para regular as relações, porque se posicionava contrária às leis do Estado.

Antunes, resumidamente, coloca a posição dos anarco-sindicalistas:

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As limitações do movimento anarco-sindicalista se refletiam nas suas reivindicações exclusivamente econômicas, negando sempre a luta propriamente política e sequer exigindo do Estado uma legislação trabalhista, dado que os anarquistas eram contrários às leis do Estado.Também não admitiam a existência de um partido da classe operária, assim como não aceitavam a política de aliança de classes com os demais setores subalternos da sociedade, o que acarretou um isolamento da luta operária, tornando-a presa fácil do Estado e de sua força policial repressiva. Pode-se inclusive dizer que os anarquistas não conseguiram, na atuação concreta, ir além dos “reformistas amarelos”14 pois, repudiando a participação da luta pelo controle do Estado, limitavam-se ao terreno econômico, enquanto os “amarelos”, embora conciliassem com o Estado, também não o questionavam, limitando sua participação ao nível das reivindicações econômicas (1986, p. 54).

Assim, os militantes anarquistas (entendidos como aqueles que eram contra as leis do

Estado e reivindicavam melhores condições apenas perante a iniciativa privada, e não frente

ao Estado) romperam com tal concepção e fundaram, em 1922, o Partido Comunista

Brasileiro (PCB), disso decorrendo uma longa trajetória do sindicalismo brasileiro a que não

se fará referência por não ser exatamente o objeto do presente trabalho.

Importa frisar que o sindicalismo no Brasil, desde suas origens, sempre esteve

atrelado ao Estado, sob controle do Governo. Exemplo claro desta situação está no II

Congresso Operário, realizado em 1912, do qual foi presidente honorário Hermes da Fonseca,

Presidente da República na época e que criou lideranças governistas em alguns sindicatos

(ANTUNES, 1996, p. 51-52).

As restrições realizadas pelo Estado aos sindicatos objetivavam atender os interesses

patronais, estando representadas por “prisões arbitrárias, expulsões de estrangeiros sem

processo regular, repressões a manifestações” (LAIMER, 2003, p. 22). Não apenas no âmbito

político existia controle, também era exercido por meio de normas com escopo restritivo e

controlador. Como exemplo, o Decreto 19.770, de 1931, denominado “Lei de Sindicalização”,

que criou os pilares do sindicalismo brasileiro, estabelecendo o controle dos recursos dos

sindicatos pelo Ministério do Trabalho. Os sindicatos eram considerados órgãos de

colaboração do Estado, proibindo atividades políticas e ideológicas, negando direito de

sindicalização aos funcionários públicos, bem como limitando a participação de operários

estrangeiros, entre outras medidas que asseguravam a vinculação dos sindicatos ao Estado.

Como benefício direto aos trabalhadores, esta lei garantia o sindicato único por categoria

(ANTUNES, 1986, p. 59).

A subordinação dos sindicatos ao Estado foi reforçada em 1939, através do Decreto

nº1.402, de 1939, que instituiu o enquadramento sindical; uma categoria, para ser reconhecida

14 Os amarelos eram denominados os sindicatos cujas lideranças eram governistas, ou seja, conciliavam com o Estado e suas ações, como as greves, não questionavam o sistema, pois comportavam-se com obediência e subordinação ao governo; os amarelos são os precursores do sindicalismo “pelego” (ANTUNES, 1986, p. 52)

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enquanto tal, teria de ser aprovada pela Comissão de Enquadramento Sindical, órgão

governamental vinculado ao Ministério do Trabalho.

Ademais, essa norma criou o imposto sindical, cujo valor é equivalente a um dia de

trabalho por ano, sendo de pagamento compulsório pela classe trabalhadora, gerando,

evidentemente, um aporte financeiro robusto aos sindicatos. Isso lhes propiciou se tornarem

prestadores de serviços assistencialistas, deixando, segundo Antunes, de se caracterizarem

como órgãos de luta de classe (ANTUNES, 1986, p. 62-63).

A subordinação dos sindicatos ao Estado era também expressa pelos textos

constitucionais. A Constituição Federal de 1946 previu que uma lei ordinária a ser editada

deveria fixar a forma de constituição e representação dos trabalhadores. Quanto às funções

dos sindicatos, elas deveriam ser delegadas pelo Poder Público. Em contrapartida, admitia a

CF, expressamente, a liberdade dos trabalhadores para a realização de greve, colocada no

status de um direito.

Ao longo da história do sindicalismo, a classe operária passa a reconhecer a

necessidade de romper com a vinculação dos sindicatos ao Estado15, lutando, assim, para

conquistar a liberdade sindical, efetivamente ocorrida com a atual Constituição Federal,

denominada de Constituição Cidadã.

Em relação às questões trabalhistas, no art. 7º da CF tem-se o rol de garantias desta

natureza e, no art. 8º, as disposições basilares acerca da organização sindical16. Destaca-se o

15 Segundo Moacir Gadotti, as lutas para tal rompimento ocorrem desde a década de 30, sendo apenas em 1946 criada a Confederação dos Trabalhadores do Brasil – CTB, fechada em 1947. Já na década de 60 foi criado o Comando Geral dos Trabalhores – CGT, proibido em 1964, mas retomado em 1978 em face do movimento sindical do ABC Paulista. A seguir, em 1983 foi instituída a Central Única dos Trabalhadores – CUT, cuja proposta central era “romper com a tutela dos sindicatos” (GADOTTI, 1996. p. 8). 16 Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: I - a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical; II - é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município; III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas; IV - a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei; V - ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato; VI - é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho; VII - o aposentado filiado tem direito a votar e ser votado nas organizações sindicais; VIII - é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei. Parágrafo único. As disposições deste artigo aplicam-se à organização de sindicatos rurais e de colônias de pescadores, atendidas as condições que a lei estabelecer.

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direito de organização sindical (autonomia sindical) e liberdade sindical 17; unicidade sindical

com a autodeterminação das bases territoriais, não sendo, todavia, admitida a criação de um

sindicato se já existente outro na mesma base e categoria; livre criação de sindicatos,

independente da autorização prévia do Estado; livre administração dos sindicatos; livre

estipulação em assembléia do valor da contribuição devida pela categoria ao sindicato, sendo

esta descontada em folha, sem prejuízo da contribuição prevista em lei (art. 578, CLT);

liberdade individual de associação; adotadas garantias aos dirigentes sindicais (estabilidade

desde o registro da candidatura até um ano após o mandato) (art. 543, §3º, CLT); direito de

greve; entre outros.

Assim, com a CF de 1988 houve um redimensionamento das relações entre o Estado

e os sindicatos em virtude do princípio da liberdade sindical, princípio que compreende não

apenas a possibilidade de criação de sindicatos, como a liberdade de associação, organização

e administração.

Tal modificação normativa é explicitada por Amauri Mascaro Nascimento ao dizer:

Com a Constituição Federal de 1988 (art. 8º, I), o sistema foi bastante simplificado, não sendo necessária a autorização do Estado para a criação de sindicatos, com o que é desnecessária a prévia criação de associações, a investidura sindical pelo Ministério do Trabalho e Emprego e o reconhecimento deste. Basta o registro. (...) A regularização de um novo sindicato deve atender as seguintes exigências: a) assembléias de empresas da categoria econômica; b) aprovação do estatuto social; c) registro em Cartório de Títulos e Documentos; d) registro no Cadastro Brasileiro de Entidades Sindicais (1999, p. 832).

Contudo, apesar das novas disposições da Constituição Federal de 1988, que

asseguraram a liberdade sindical e outros direitos relativos aos trabalhadores, tem início na

década de 90 uma fase de inércia dos sindicatos, conforme relatam alguns escritos. Tal

situação parece até mesmo contraditória pois justo após a regulamentação e a asseguração em

nível normativo da liberdade sindical, eles parecem entrar em uma fase de declínio. Há

registro, inclusive, de esgotamento da militância sindical, podendo isso, segundo alguns

estudiosos, indicar a crise dos sindicatos como um todo. Célia Regina Otranto aponta: “A

partir da década de 90, nota-se o desgaste de um tipo de engajamento que tira a liberdade, as

escolhas, e os momentos, cada vez mais valorizados, da vida pessoal”. Talvez passe a existir a

percepção dos momentos da vida pessoal que tenham sido deixados de lado em outras

17 Até a CF/88 os sindicatos: - deveriam ser reconhecidos e registrados nos órgão oficiais; - deveriam submeter as eleições sindicais e a gestão do sindicato a fiscalização estatal; - havia a possibilidade de afastamento de dirigentes sindicais por intervenção ministerial.

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oportunidades e, em vista disso, esta passa a ser preponderante. Otranto coloca, referindo-se a

Jaques Ion:

Para esse autor, o modelo de engajamento no qual as necessidades do sindicato, ou partido, ou associação são colocadas em primeiro plano, em detrimento das expectativas individuais, vai sendo paulatinamente superado por outro modelo no qual o indivíduo adquira maior visibilidade. Considera, ainda, que a necessidade de restringir a militância para investir na esfera pessoal está relacionada aos indícios de uma maior demarcação entre militância e vida privada (2000, p.223).

Claudia Vianna apresenta sete pontos de referência para tal crise:

1) as sucessivas decepções docentes; 2) o medo difuso de repressão; 3) a ausência de prática de participação; 4) os mecanismos de controle exercidos pelas diferentes instâncias da educação pública, com destaque para as direções de escolas; 5) as disputas internas no Sindicato; 6) o isolamento do professorado; e 7) o desgaste do modelo de dedicação integral à militância (VIANNA, 1999, p. 3 apud OTRANTO, 2000, P.221).

Outro fator capaz de justificar a minoração na mobilidade dos movimentos sociais

diz respeito à introdução das políticas neoliberais na década de 90, conforme apontam autores

já comentados. Entretanto, essa temática será abordada adiante, no capítulo relativo ao Estado

Liberal de Direito, suas diretrizes e possíveis influências sobre os movimentos sociais.

A partir da história de construção dos sindicatos, é possível aferir sua condição de

movimento social, talvez com características distintivas de outros movimentos. Assim, Jorge

Riechmann, ao comentar a respeito do conceito dos movimentos sociais refere que, conforme

o momento histórico, destacam-se diferentes tipos de movimentos sociais (1994, p.55). Na

fase industrial, têm-se os movimentos de trabalhadores, enquanto os Novos Movimentos

Sociais são da fase pós-industrial. Junto ao movimento obreiro estão os sindicatos, os

representantes da coletividade de trabalhadores: trata-se da organização burocrática,

caminhando ao lado do conjunto de trabalhadores.

Em vista da possibilidade formal de criação de sindicatos, mesmo estes estando na

condição de representantes de uma pequena, e muitas vezes insignificante, parcela de

trabalhadores, há posicionamentos no sentido de haver distinção entre os movimentos de

trabalhadores e os sindicatos enquanto pessoas jurídicas formais. Entretanto, embora a origem

de um determinado sindicato ocorra com baixo índice de adesão dos obreiros, nem mesmo por

isso perde a condição de movimento social. Trata-se apenas – e infelizmente – de uma

possibilidade legislativa atrelada à questão da formalidade, desconsiderando os aspectos da

representatividade com legitimidade. Conforme diz Mattos:

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mesma forma, as organizações sindicais efetivamente representativas dos trabalhadores esbarram em antigos e novos sindicatos “de carimbo” (entidades sem representatividade que adquirem o registro sindical e se apresentam a assinar acordos e a recolher imposto sindical) e em federações e confederações pelegas, cuja garantia de existência não está numa adesão das bases ou numa tradição de lutas, mas na legislação que atribui o monopólio da representação aos sindicatos reconhecidos pelo poder público (MATTOS, 2005, p. 244).

No tópico a seguir, passa-se a abordar a origem do ANDES-SN, visando, desta

forma, reforçar a afirmativa do seu enquadramento enquanto movimento social, objetivando,

assim, avaliar a possibilidade de influência da lógica do Estado Liberal de Direito sobre a

atuação do caráter educativo dos movimentos sociais.

1.3.3 Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior – Sindicato

Nacional (ANDES-SN)

O ANDES-SN (Associação Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino

Superior – Sindicato Nacional), é o representante legal, conforme sua denominação, dos

docentes do ensino superior. A base desse sindicato (antes mera Associação de Docentes) é o

conjunto de docentes do ensino superior, componentes do movimento social organizado, em

conjunto com as associações docentes regionais e locais, as quais têm o contato mais direto

com os trabalhadores, visto o ANDES-SN realizar a representação, organização e mobilização

em nível nacional, reunindo, pois, as demais Associações. Assim, o movimento social de

docentes do ensino superior em nível nacional está simbolizado através do ANDES -

Sindicato Nacional, representante oficial deste movimento.

Muitos afirmam que esta modalidade de associação sindical não pode ser

considerada um movimento social em face de seu estado de institucionalização. Porém, a

institucionalização é, ao mesmo tempo, um instrumento capaz de proporcionar a identificação

externa do movimento, porque estabelece formalmente quem se enquadra na coletividade

específica. E, mais do que isso, segundo Jorge Riechmann, para o alcance da via parlamentar

e de objetivos políticos, bem como para estabelecer alianças com forças políticas, a

institucionalização pode ser importante, até mesmo essencial (1994, p. 56).

Para se poder fundamentar a afirmação do ANDES-SN como um movimento social é

imprescindível analisar a história que enseja a sua constituição. O movimento docente do

ensino superior nasce nas universidades através das Associações de Docentes, constituídas em

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face da proibição de criar sindicatos de servidores públicos. Logo no início, as Associações

destacam-se pelo caráter assistencialista e recreacionista, tanto que eram bem aceitas pela

Administração das Universidades (Reitorias), sem atritos significativos ou conflitos de maior

profundidade.

Na segunda metade da década de 70, as Associações de Docentes passaram a mudar

significativamente sua posição, pois reduziram o papel assistencialista e propuseram-se “a

influir para a mudança da universidade, bem como das relações entre universidade e

sociedade”, promovendo, assim, já ao final da década de 70, a consolidação do movimento

docente em diversos pontos do país (OTRANTO, 2000, p. 214). Posicionavam-se e atuavam,

então, nessa época, como verdadeiros sindicatos, no dizer de Edmundo Fernandes Dias, “eram

sindicatos, de fato, ainda que não pudessem sê-lo oficialmente”, isto porque “debatiam

democracia e salários, condições de vida e formas de trabalho, papel dos trabalhadores com a

sociedade” (2005, p.27).

Conforme consta no preâmbulo do Estatuto do ANDES-SN, a criação das

Associações de Docentes foi a melhor forma encontrada pelos docentes “para preservar a

universidade dos ataques da ditadura militar, defendendo a Instituição e fazendo avançar as

propostas de luta que pudessem também garantir o espaço democrático”. Havia evidente

caráter educativo das Associações Docentes na época, pois se posicionavam na defesa da

democracia, em especial no espaço universitário. A democratização das Instituições de Ensino

Superior era, e ainda hoje é, bandeira do movimento docente na tentativa de corrigir as

distorções existentes como o autoritarismo administrativo, que compreende a falta de

participação da comunidade universitária nas decisões relativas aos seus interesses; a tomada

de decisões não-submetidas a critérios públicos e transparentes; as discriminações políticas,

partidárias, entre inúmeras outras distorções (Preâmbulo Estatuto ANDES, obtido em

www.andes.org.br/secretaria/arquivo/default-estatuto.asp).

Nas décadas de 70 e 80 as universidades, em vista da ampliação do número de

alunos, que cresceu significativamente, passaram a ter em seus quadros de pessoal novos

professores, muitos portadores apenas do título de graduados, passando a freqüentar cursos de

pós-graduação concomitantemente ao exercício profissional. Segundo Otranto, “isso acabou

fazendo com que a questão salarial e de carreira dos docentes das Instituições Federais de

Ensino Superior passasse a ter importância fundamental para a consolidação do M.D., nos

anos 80” (2000, p. 215).

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É no início da década de 80 que se fortalece a idéia de criar uma Associação

Nacional de Docentes18, porque o valor real dos salários dos professores vinha sendo

significativamente reduzido, situação causada pela política econômica e educacional do

governo, contra a qual o movimento docente se opunha. Portanto, uma Associação Nacional

poderia transmitir para a sociedade brasileira, em nível nacional, os anseios do grupo docente.

Em 1981, no Congresso realizado em Campinas, denominado III Encontro Nacional das

Associações Docentes, foi aprovada a criação de uma Associação Nacional, denominada

ANDES (Associação dos Docentes do Ensino Superior) e reconhecida como:

Uma Associação de âmbito nacional, autônoma relativamente ao Estado e à administração universitária, democrática e representativa dos professores das Instituições de Ensino Superior (IES) de todo o Brasil, e não apenas das diretorias de Associações Docentes (Boletim Andes, nº1, mar/81 apud OTRANTO, 2000, p217).

A fundação da Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior (ANDES), em

1981, concretiza-se ao tempo do “processo de radicalização da luta pela democracia, da

definição de uma estrutura de carreira e da recuperação salarial” (DIAS, 2005, p. 27).

Conforme consta no preâmbulo de seu estatuto:

A ANDES – Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior, fundada em fevereiro de 1981, teve seu processo de criação calcado em uma firme organização na base, a partir das ADs – Associações Docentes, que surgiram em várias Universidades brasileiras, já em 1976, na perspectiva de defesa destas Instituições seriamente abaladas pelas constantes intervenções do regime militar, e na defesa dos interesses dos seus docentes.19

Conforme expõe Moacir Gadotti, a fundação da ANDES apresenta-se com três eixos

fundamentais de luta: “contra a privatização da educação fomentada pelos governos

brasileiros desde 1964; rejeição da estrutura universitária, imposta pela reforma de 1968;

combate à deterioração das condições de trabalho dos docentes” (MORAES, 1992, p. 200

apud GADOTTI, 1996, p. 11).

Mais do que isso, o movimento docente passou a apresentar mobilização em três

patamares: primeiro, o da luta política em geral pela democracia, compreendendo a

reintegração de professores cassados pelo regime autoritário, a revogação das leis de exceção

18 Nessa época existia uma Coordenação Nacional das Associações de Docentes, fundada em 1979, mas esta era insuficiente para atender aos anseios do movimento docente, sendo necessária a criação de uma Associação Nacional representativa de todos os docentes das Instituições de Ensino Superior do país. 19 Preâmbulo do Estatuto do Andes-SN, acessado em www.andes.org.br/secretaria/arquivo/default-estatuto.asp em 12.12.2006.

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com anistia ampla e irrestrita; segundo, o da luta sindical e, terceiro, o da luta em torno do

ensino público e gratuito, contraposto ao surgimento das universidades privadas, que, na

década de 70, constituíram-se maciçamente no país em face da política oficial privatizante

(MACIEL, 1991 apud OTRANTO, 2000, p, 215).

A luta de maior destaque desde as origens do movimento docente diz respeito à

democratização das universidades, objetivo sempre vinculado à concepção de democracia

social. Com o decorrer do tempo, especialmente no período de 1985 a 1988, passou a ser

visível a caracterização do movimento docente enquanto movimento sindical, tanto assim que

em 1988, com a Constituição Cidadã, a ANDES transformou-se de “Associação Nacional”

em “Sindicato Nacional”(ANDES-SN), sendo, portanto, concretizado legalmente aquilo, na

prática já legitimado (OTRANTO, 2000, p. 217).

Ao longo de sua trajetória, o ANDES-SN destacou-se por sua atuação não apenas

reivindicativa dos interesses daqueles representados mas também por suas ações educativas.

Entre elas está a elaboração de documentos dirigidos ao Ministério da Educação e à sociedade

em geral quanto à situação do ensino superior, com propostas concretas para a Universidade

Brasileira. No preâmbulo de seu estatuto, ao tempo da atuação apenas como Associação de

Docentes, verifica-se a realização de alguns encontros de discussão acerca de temas de

interesse geral da sociedade relacionados às universidades. O ano de 1986 é um exemplo,

como se transcreve de seu estatuto:

Durante o 1º semestre letivo de 1986, por decisão do V Congresso da ANDES, realizado em Salvador, as Associações de Docentes retomaram a discussão da Reestruturação da Universidade. Nos dias 6 e 7 de maio, foi realizada a “Jornada Nacional pela Reestruturação da Universidade Brasileira”. Fruto dessas discussões, o XIII CONAD, realizado em São Paulo, em junho, ratificou todo o documento aprovado em Olinda. O objetivo deste documento foi levar ao Ministério da Educação, ao governo, à sociedade civil organizada e à opinião pública a posição crítica dos professores sobre o ensino superior no país e as propostas concretas para a Universidade Brasileira.20

Observa-se, na trajetória do ANDES-SN, mesmo antes de sua sindicalização, sempre

ter tido a intenção de tornar conhecida a situação das universidades brasileiras, reivindicando,

do Poder Público, medidas para melhoria, investimentos estruturais, na qualificação e

valorização dos docentes.

20 Preâmbulo do Estatuto do Andes-SN, acessado em www.andes.org.br/secretaria/arquivo/default-estatuto.asp em 12.12.2006.

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O processo de sindicalização, autorizado a partir da Constituição Federal de 1988, foi

a concretização formal daquilo que já vinha ocorrendo na prática: a representação dos

interesses dos docentes do ensino superior, organizados por meio das Associações Docentes e

sintonizados nacionalmente pela Associação Nacional. Assim, em novembro de 1988, no II

Congresso Extraordinário, realizado no Rio de Janeiro, foi ele aprovado por mais de 80% das

Associações Docentes e dos delegados participantes da transformação da ANDES em

ANDES- Sindicato Nacional.21

Na atualidade, é destacada por Otranto a crise do movimento docente, questionando

se está representada pela diminuição de participação docente ou pela alteração da forma de

atuar. Ela sinaliza estarem os problemas mais centrados nas dificuldades de constituição das

ações coletivas em geral. Entretanto, em vista da necessidade de aprofundamento a respeito

dos fatores apontados como responsáveis pela crise do movimento sindical, especificamente

da crise do ANDES-SN, serão estes analisados em capítulo adiante, no qual se pretende

avaliar também as eventuais influências da lógica do Estado Liberal de Direito sobre os

movimentos sociais.

Reitera-se, finalizando o presente capítulo, a condição do ANDES – Sindicato

Nacional como uma organização, juridicamente constituída, que atua na condição de

representante dos docentes do ensino superior e, juntamente com esta coletividade (de forma

intrínseca), encontra-se na posição de um movimento social. A relação entre a coletividade de

professores e a Associação enquanto ente abstrato no mundo real, mas concreto no mundo

jurídico, é dialética e interdependente para efeitos da existência do movimento social dos

docentes.

Conforme leciona Joachim Raschke, os movimentos sociais têm entre seus elementos

caracterizadores, o aspecto da organização. Mas o movimento não se esgota na organização, é

muito mais. Exatamente isto se afirma do ANDES-SN, ou seja, a parte organizada (na

verdade, institucionalizada) do movimento tem, na condição de aliado — como parte do

movimento como um todo — a base de docentes vinculados. Além disso, os movimentos

sociais destacam-se pelas ações coletivas direcionadas para alterar estruturas mais ou menos

relevantes das sociedades. São atuações que interferem ativamente no curso dos

acontecimentos, visando influenciá-los. Também esta é uma das características do ANDES-

SN, manifestada diante das circunstâncias sociais quando não concorda com elas, na tentativa

de impedir a concretização ou de promover mudanças.

21 Preâmbulo do Estatuto do Andes-SN, acessado em www.andes.org.br/secretaria/arquivo/default-estatuto.asp em 12.12.2006.

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No capítulo seguinte será abordado o tema do Estado de Direito, tecendo-se algumas

considerações quanto ao Estado Liberal e ao Estado do Bem-Estar Social. Igualmente, serão

tecidas algumas considerações sobre democracia e sistema de representação na lógica do

liberalismo. Tais análises têm grande relevância para compreender as questões relativas ao

ANDES-SN na Reforma da Previdência de 2003, avaliando-se, a partir disso, as implicações

do Estado Liberal frente aos movimentos sociais.

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CAPÍTULO 2

Do Estado de Direito

Nesse capítulo serão apresentados alguns itens a respeito do Estado de Direito,

buscando-se teoricamente a sua definição e apresentando questões relativas ao Estado do

Bem-Estar Social (Welfare State) e ao Estado Liberal de Direito, abordando-se a partir deste

as relações entre Direito e Estado, Espaço Político, Parlamentarismo e Democracia na lógica

do liberalismo. Buscar-se-á, ademais, no decorrer do texto, fazer algumas referências à ação

dos movimentos sociais no contexto do Estado Liberal, embora o aprofundamento dessas

relações venha a ser realizado em item específico da dissertação.

Salienta-se, desde logo, que tratar do tema do Estado de Direito e de questões

específicas a ele é de fundamental importância para uma compreensão mais ampla da temática

proposta, justificando-se, em virtude disso, este capítulo, cujo conteúdo abordará

preponderantemente tal assunto.

Impõe-se iniciar pela definição de Estado. No entanto, a apresentação de um

conceito preciso de Estado configura-se extremamente complexa em vista das diferentes

visões filosóficas, jurídicas e sociológicas a partir das quais os autores constroem seus

entendimentos. Para Sturzo, o Estado associa-se a “uma sociedade à base territorial, dividida

em governantes e governados, e que pretende, nos limites do território que lhe é reconhecido,

a supremacia, sobre todas as demais instituições” (1951, p.12). Com isso, o Estado

proporciona a ordem e a defesa social, concedendo segurança aos membros da sociedade,

embora com esta não se confunda; pois é, na realidade, a “forma política da socialidade”

(STURZO apud AZAMBUJA, 1951, p.13).

Para Kant, o Estado seria a expressão do Direito incidente sobre a multidão de

homens que a ele devem sujeitar-se. A tentativa de Kant de definir o Estado sob o ponto de

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vista jurídico foi objeto de críticas por ser considerado um conceito extremamente lacunoso.

Afinal, um agrupamento de homens sujeitos a determinadas normas (Direito) pode

concretizar-se não apenas em um Estado, mas nas cidades também, bem como em instituições

fechadas, como penitenciárias (BONAVIDES, 1967, p.36-37).

Segundo expõe D’ Entrevés, a partir das concepções expostas por Aristóteles, “el

Estado es, por consiguiente, un ordenamiento jurídico, una estructuración de las relaciones

entre los hombres según reglas manifiestas, cognoscibles y determinables” (2001, p.99). Ele

pode ser visto como uma instituição suprema, localizada, abstratamente, acima dos membros

individuais e coletivos de uma sociedade, impondo-lhes obrigações e fiscalizando o

cumprimento delas. É, também, titular de direitos, destacados como poderes, estando,

outrossim, sujeito a deveres, contrabalanceados pelas prerrogativas que autorizam a prática de

seus atos. Sob tal aspecto, tem-se o Estado de Direito, o qual, segundo Streck e Bolzan de

Moraes, “carrega em si a prescrição da supremacia da lei sobre a administração” (2003, p.87).

Uma das finalidades do Estado é a manutenção da paz social, observando-se ser ele

titular do poder de coerção e assim dotado de “força” na medida em que é autorizado a criar e

impor deveres aos indivíduos. Contudo, não se trata de força no sentido comum, mas daquela

oriunda de um embasamento legal. Enfim, é força revestida de conteúdo normativo, servindo

para regular a conduta do próprio Estado nas suas relações com os indivíduos e, também,

destes entre si.

Na verdade, o conteúdo legal do Estado surge com o escopo de atenuar a própria

discricionariedade e arbítrio pois, sem controle e limitações, pode levar ao cometimento de

abusos. Assim, como expõe Dallari, das faculdades nascidas com o poder político surge a

necessidade de “criar limites jurídicos ou de fazer com que o próprio povo exerça o poder

político, para redução dos riscos” (1991, p.109). Dallari coloca, ainda, a noção de Cassirer a

respeito da política: este a vê de forma neutra, definindo-a como “a arte de unificar e

organizar as ações humanas e dirigi-las para um fim comum” (CASSIRER apud DALLARI,

1991, p.110).

A concepção de Estado até a Idade Média estava centrada na idéia de o poder

pertencer ao homem (Estado Absoluto). No decurso da história, dando-se início à etapa do

Constitucionalismo, passa-se a compreender o poder como pertencente às leis, tendo-se, a

partir de então, o Estado Constitucional. Nele, “a legalidade é a máxima de valor supremo e se

traduz com toda energia no texto dos Códigos e das Constituições” (BONAVIDES, 2003,

p.29).

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Com isso, no Estado Constitucional estão previamente definidos aos membros dele

quais os seus direitos e os seus deveres, bem como as penalidades incidentes na hipótese de

inobservância das regras já estipuladas. A lei é, desta forma, o instrumento para “fixar os

limites da liberdade individual, a fim de que seja possível a coexistência das liberdades,

segundo as exigências da vida em sociedade” (FERREIRA FILHO, 2004, p. 19).

Entretanto, o Estado Constitucional apresenta três modalidades, denominadas por

Bonavides como Estado Liberal ou Estado Constitucional da Separação de Poderes, Estado

Social ou Estado Constitucional dos Direitos Fundamentais e Estado Democrático-

Participativo ou Estado Constitucional da Democracia Participativa (BONAVIDES, 2003,

p.30).

O surgimento dessas diferentes “modalidades” de Estado, na verdade, decorre,

historicamente, das necessidades sociais apresentadas. A seguir, aborda-se a questão do

Estado Liberal de Direito, sem, no entanto, deixar de referir algumas características dos

demais, pois o nascimento de um tipo diferenciado de Estado ocorre a partir das exigências ou

carências do primeiro, mas sob a lógica do anterior. Mais do que isso, no interior da lógica do

Estado Liberal estão os movimentos sociais, sendo de extrema relevância a análise proposta

no próximo item na tentativa de compreensão das diretrizes do Estado Liberal, e, por

conseqüência, como se concretiza a ação dos movimentos sociais e se dão os efeitos de suas

práticas sob tal lógica.

2.1 Do Estado Liberal de Direito e sua evolução

Cabe deter-se daqui para a frente na análise do Estado Liberal de Direito, porque é a

partir deste tema, que se desdobram os demais itens a serem abordados, como as inter-

relações entre Direito, Estado, Espaço Político e Parlamentarismo, além das questões da

legalidade e da legitimidade; da atuação dos movimentos sociais e do desenvolvimento do

caráter educativo de suas ações. Inicialmente, há de se considerar a necessidade de se

buscarem elementos caracterizadores do Estado Liberal, que efetivamente permitam

compreendê-lo.

Existe, no entanto, significativa dificuldade no exercício de tal tarefa visto a questão

relativa ao liberalismo encontrar diversos entendimentos. Conforme diz Marcelo Figueiredo,

“o termo liberalismo na ciência política é dotado de grande plasticidade e multissignificado”.

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A dificuldade aumenta “em virtude da ‘confusão’ de métodos ao se analisar de forma

compactada períodos históricos e desdobramentos do liberalismo como se estivéssemos diante

‘de um só liberalismo’ ”. Os problemas residem exatamente no fato de a concepção de

liberalismo alterar-se conforme o período histórico, pois sofre influências ideológicas,

sociológicas e políticas (2001, p.69).

O Estado Liberal (ou Constitucional da Separação dos Poderes) teve sua constituição

delineada, como o próprio nome diz, pela teoria da separação dos poderes de Montesquieu, a

qual, juntamente com a obra Contrato Social, de Rosseau, embasou a Declaração dos Direitos

do Homem, documento fundante do Estado de Direito. Este, por sua vez, tem como elementos

caracterizadores: o asseguramento e a concretização da liberdade; a limitação dos poderes dos

governantes; a preservação dos direitos fundamentais como garantia da cidadania, enfim,

compromisso com os direitos políticos e civis. Tudo isso deve estar alicerçado nos

balizamentos impostos aos governantes, evitando-se o poder ilimitado da autoridade, caso

contrário está-se sob “o risco de recair nos regimes de exceção e arbítrio” (BONAVIDES,

2003, p.31). Segundo Bonavides, tem-se o Estado Liberal configurado como “o antigo e

clássico Estado de Direito da primeira época do Constitucionalismo” (2003, p.34).

Conforme Streck e Bolzan de Moraes, o Estado Liberal de Direito, visto como

modalidade do Estado de Direito, caracteriza-se pela separação entre Estado e Sociedade Civil

mediada pelo Direito, sendo este o ideal de justiça. Destaca-se, outrossim, pela garantia das

liberdades individuais, sendo os direitos dos homens mediadores de suas relações com o

Estado; pela democracia, que representa o ideal de soberania. Esta, por sua vez, é controlada

pelo sistema hierárquico das normas (controle de constitucionalidade), tendo-se, ainda, o

caráter reduzido do papel do Estado, “apresentando-se como Estado Mínimo, assegurando,

assim, a liberdade de atuação dos indivíduos”, expressando-se, em vista disso, como Estado

Liberal (2003, p.90).

Portanto, é da própria lógica do Estado de Direito, fundada na lei, que “traduz a justa

restrição da liberdade, reconhecida pela vontade geral”, que se procede a “articulação entre a

liberdade e a sociedade política, entre a liberdade natural do indivíduo e a liberdade de cada

um e de todos os indivíduos, integrados na vida social” (FERREIRA FILHO, 2004, p.20). E,

a partir de tais características, Streck e Bolzan de Morais concluem haver “a consubstanciação

do conteúdo político do liberalismo na forma jurídica do Estado ou Estado Liberal de Direito”

(2003, p.90).

E o Estado Liberal, então, embasado nas concepções liberais, desempenha um papel

negativo, ou seja, abstém-se de intervenção na sociedade, devendo esta regular-se

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autonomamente, apenas com a proteção do Estado, que regulamenta as liberdades para

poderem ser exercidas por seus membros. Trata-se, pois, da concepção minimalista do Estado,

atuando tão somente para fins da segurança individual, de modo a todos poderem exercer suas

liberdades. Segundo Streck e Bolzan de Morais, o ideal liberal teve como efeitos “o progresso

econômico; a valorização do indivíduo, como centro e ator fundamental do jogo político e

econômico; técnicas de poder como poder legal, baseado no direito estatal (...)” (2003, p.62).

Sob a garantia do exercício da liberdade estão os movimentos sociais, livres para a

implementação das ações que entendem pertinentes na defesa dos interesses por eles

representados, mantidos, porém, os limites legais de suas liberdades, tendo-se o conflito

intrínseco ao Estado Liberal entre as categorias de liberdade, legalidade e legitimidade. Veja-

se que o Estado Liberal preconiza a liberdade dos indivíduos, porém, limitada ao conteúdo

legal, estando a atuação dos movimentos sociais, portanto, também restrita, sujeita à

legalidade.

Ao tempo do nascimento do Estado Liberal, suas idéias eram compatíveis com

aquelas então dominantes, destacando-se a realização do conceito de direito natural, do

humanismo e do igualitarismo político. Estas concepções eram extraídas pelos escritores do

século XVIII da natureza racional do homem, observada a fórmula conclusiva de que “os

homens nascem livres e iguais em direitos; a única forma de poder que se reveste de

legitimidade é a que for estabelecida e reconhecida pela vontade dos cidadãos” (MALUF,

1995, p.129).

Segundo Figueiredo, o liberalismo apresenta-se em duas etapas: a primeira, nascida

no século XVIII, salienta-se pela concepção do individualismo, reconhece ao indivíduo

direitos inatos, bem como a existência de um pacto entre Estado e indivíduo. Ademais,

caracteriza-se pelo combate à intervenção do Estado na economia. Já a segunda fase, iniciada

no século XIX, origina-se nos questionamentos surgidos relativamente aos posicionamentos

anteriores. Isso se dá especialmente por novas teorias, destacando-se, entre elas, a de

Rousseau, segundo a qual a liberdade está garantida quando há obediência à lei. Do século

XIX em diante, o liberalismo passa a apresentar uma série de transformações, ganhando

destaque, a partir de 1905, um “novo liberalismo”, no qual o ideal de Estado abstencionista é

um pouco afastado e surge a “noção econômica e cultural das liberdades e direitos

constitucionais”, passando-se a admitir regulamentações legais (2001, p. 70-71).

Mas, apenas a adoção da idéia de legalização não é suficiente para atender os anseios

da época, também avança a defesa de participação total e indiscriminada do homem na

formação da vontade estatal: trata-se do princípio da democracia (BONAVIDES, 2004, p.43).

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Observa-se, portanto, que o cerne do tema do liberalismo diz respeito à “liberdade contra o

poder” (FIGUEIREDO, 2001, p.72). Ainda quanto aos elementos norteadores da concepção

de Estado Liberal cabe citar Sahid Maluf:

Quer sob a forma de monarquia constitucional, quer sob a forma republicana, a organização traduzia os ideais que empolgaram o mundo ao tempo das revoluções populares inglesa, norte-americana e francesa: soberania nacional, exercida através do sistema representativo de governo; regime constitucional, limitando o poder de mando e assegurando a supremacia da lei; divisão do poder em três órgãos distintos (Legislativo, Executivo e Judiciário) com limitações recíprocas garantidoras das liberdades públicas; separação nítida entre o direito público e o direito privado; neutralidade do Estado em matéria de fé religiosa; liberdade, no sentido de não ser o homem obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; igualdade jurídica, sem distinção de classe, raça, cor, sexo, ou crença; igual oportunidade de enriquecimento e de acesso aos cargos públicos, às conquistas da ciência e à cultura universitária; não-intervenção do poder público na economia particular...(1995, p.129).

Nessa seara estão as explicações de Streck e Bolzan de Morais, para quem o Estado

de Direito tem, como ícone, a questão do Direito, a partir do qual se apresentam os limites de

ação, sem com isto limitar-se o conteúdo dessa modalidade estatal à forma da lei pois, na

verdade, é imprescindível a presença de um ideário, sob pena de ter-se um Estado Legal;

surge, então, na defesa do direito de liberdade, o Estado Liberal de Direito. Assim, conforme

tais autores:

O que se observa, portanto, é que no seu nascedouro o conceito de Estado de Direito emerge aliado ao conteúdo próprio do liberalismo, impondo, assim, aos liames jurídicos do Estado a concreção do ideário liberal no que diz com o princípio da

legalidade –ou seja, a submissão da soberania estatal à lei – a divisão de poderes ou

funções e, a nota central, garantia dos direitos individuais (2003, p.89).

Sabe-se que a questão do liberalismo, apresenta diferentes compreensões,

colaborando para algumas confusões a ausência de distinção entre propósitos filosóficos,

políticos e econômicos do Estado. Conforme aduz Figueiredo, muitas vezes

(...) analisando o cenário político (nacional) e não raro o internacional, a verdadeira “confusão” (propositada ou não) na utilização de tais categorias e idéias políticas como se estivéssemos a analisar o mesmo fenômeno. A opinião pública é iludida e ludibriada, sobretudo a camada da população menos culta e menos preparada politicamente, a imprensa não distingue (propositadamente ou não, tudo dependerá do momento político vivido) em que medida tais fatos são manipulados pela imprensa internacional pelos movimentos antagônicos, de modo a prevalecer a opinião desse ou de qualquer outra corrente ideológica ou política. O tema é realmente muito árduo e pleno de dificuldades. Em parte porque os conceitos “socialismo”, “capitalismo”, “democracia”, “liberalismo”, são plurissignificativos (2001, p. 73).

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Dessa confusão conceitual, talvez a mais evidente em relação ao liberalismo diz

respeito aos problemas econômicos, associando-se, e até mesmo responsabilizando-se, o ideal

liberal pelas mazelas sociais decorrentes das dificuldades econômicas, podendo isso ser

conseqüência da distância existente entre a doutrina liberal e a realidade vivida.

Não há dúvidas de o desenvolvimento social, político e econômico de um Estado

depender da união de uma série de fatores, porém, atribuir-se a responsabilidade pelas

mazelas sociais à concepção liberal pode ter como origem a confusão conceitual referida. Isto

porque o liberalismo, segundo alguns autores pesquisados, é uma doutrina política cujo

escopo é a “melhoria das condições materiais do gênero humano”, propondo-se reduzir a

pobreza e a miséria através da concepção de liberdade (STEWART JÚNIOR, 1990, p.69). Por

tal lógica, então, parece contraditório atribuir-se à concepção liberal a responsabilidade pelos

problemas sociais.

A principal característica do liberalismo é a liberdade, presente para todos os efeitos.

Por exemplo, liberdade na relação entre os indivíduos; liberdade quanto à propriedade, desta

decorrendo a liberdade na detenção dos meios de produção. Igualmente liberdade na

economia22, regulando-se o mercado conforme o interesse de usuários em bens e serviços;

liberdade de contratações, inclusive nas relações de trabalho; liberdade política, consistindo

na liberdade de escolher quem exerce as funções de governo etc.

A possível confusão existente devido ao vínculo entre a concepção de Estado Liberal

e problema econômico é explicitada por Linares Quintana:

A dinâmica econômica do liberalismo se funda na seguinte premissa: um homem faminto é um inimigo da ordem social; um povo faminto é um inimigo da humanidade. Para evitar o primeiro problema, deve implantar uma economia ordenada sobre a base da iniciativa e do aniquilamento do Estado comerciante e competidor. Para prevenir o segundo, deve-se combater os egoísmos econômicos das nações que sacrificam as conquistas de paz dos povos e as conquistas dos mercados (QUINTANA, 1956, p. 225 apud FIGUEIREDO, 2001 p. 75).

A doutrina liberal está embasada em três pilares: liberdade, propriedade e paz,

seguindo valores como a tolerância em relação a outras doutrinas e idéias, porque, segundo o

liberalismo, “apenas a tolerância pode criar e preservar as condições para a paz social”

22 A liberdade na economia, segundo Quintana, não se confunde com “(...) permissividade e descontrole, e crer que fora da órbita do dirigismo não existe senão a liberdade absoluta e ilimitada, quando o certo é que a liberdade econômica, de cada um e liberdade jurídica unicamente existem e operam com sujeições a uma série de limitações constitucionais e legais encaminhadas a garantir seu exercício harmônico e congruente com a liberdade dos demais e com o interesse e bem-estar da comunidade” (QUINTANA, 1956, p. 225 apud FIGUEIREDO, 2001 p. 75).

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(STEWART JÚNIOR, 1990, p.71). Destaca-se a questão da liberdade pois, de forma

imanente a ela, tem-se a possibilidade da propriedade, bem como da paz social. Na verdade, o

Estado Liberal oferece uma

(...) concepção teórica de limitação de poder, de liberdade individualista, no passado, de liberdade de direito (asseguramento de direitos constitucionais), e hoje, com o neoliberalismo, oferece um modelo misto, intermediário, em que a intervenção é desejada, se controlada eficazmente e de acordo com a necessidade social e as demandas do Estado (FIGUEIREDO, 2001, p.74).

A limitação do poder de que fala Figueiredo é concretizada pela separação dos

poderes, visando a “servir de escudo aos direitos da liberdade, sem embargo de sua

compreensão rigorosamente doutrinária conduzir ao enfraquecimento do Estado, à dissolução

de seu conceito, dada a evidente mutilação a que se expunha o princípio básico da soberania”.

A separação de poderes é uma arma utilizada para combater os sistemas de opressão política

(BONAVIDES, 2004, p.72). Está nesse ponto a lição de Montesquieu, considerada de grande

relevância para a compreensão do Estado, e cujo pensamento, conforme explicita Bonavides,

“serviu ao liberalismo puro, deu-lhe o substrato de idéias com a formulação de um conceito

de liberdade, junto da melhor técnica de ampará-la – a divisão de poderes, o sistema

representativo, as formas lícitas de governo –(...)” (2003, p.199) e, quanto a separação de

poderes, tem-se23:

Os três poderes são o legislativo, o executivo e o judiciário, ou, na linguagem de Montesquieu, o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes (executivo) e o poder executivo das coisas que dependem do direito civil (judiciário). Ao poder legislativo compete elaborar as leis, corrigir ou ab-rogar as que se fizeram. O poder executivo tem na sua esfera de competência a política externa e a promoção da segurança. O poder judiciário incumbe-se de punir os crimes e julgar as pendências entre particulares (BONAVIDES, 2003, p. 216).

23 Essa questão da separação de poderes é bastante instigante, entretanto, trata-se de seara na qual não se pretende adentrar sob pena de desvirtuar a temática proposta, sendo relevante frisar que, na verdade, há impossibilidade da efetiva separação de poderes como pretendia a antiga doutrina liberal, tanto assim que há mecanismos constitucionais que demonstram tal situação, pois há a possibilidade de interferência de um poder sobre o outro através de alguns instrumentos. Trata-se do sistema de freios e contrapesos, a partir dos quais se equilibram os poderes. Bonavides exemplifica tais situações, por exemplo, com a questão do veto nas relações entre Legislativo e Executivo; o julgamento político relativamente ao Legislativo e Judiciário, bem como, ainda, o uso das atribuições pelo Legislativo para organizar, através das normas, o Poder Judiciário. Nota-se, assim, a influência, interferência de um poder sobre o outro em circunstâncias específicas, o que de certa forma os limita no exercício de suas funções. Diz Bonavides: “Com esses institutos oriundos precisamente da impossibilidade de manter os poderes distanciados e construir entre eles paredes doutrinárias que os conservassem rigorosamente insulados, como queria a antiga doutrina, na palavra de seus mais acatados corifeus, o que ora se nos depara perante a realidade constitucional contemporânea é a verdade de que muitas portas se abriram à intercomunicação dos poderes” (BONAVIDES, 2004, p.75).

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Em relação à liberdade, enquanto pilar do Estado Liberal, impõe-se ressaltar que,

analisando a Constituição Federal Brasileira, observa-se o quanto há garantia de liberdade sob

diferentes ângulos, embora sofrendo limites pelo próprio ordenamento jurídico. Veja-se a

Constituição Federal, norteadora de todo o sistema normativo, prever, como um dos objetivos

da República, a construção de uma sociedade livre. Reza o art. 3º da CF:

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

No capítulo acerca dos direitos e das garantias fundamentais localizam-se inúmeras

outras referências à liberdade. No caput do art. 5º consta:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: (...) (grifo nosso)

Os incisos componentes do dispositivo em comento apresentam várias referências à

liberdade, como “livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (inciso IV);

“(...)liberdade de consciência e de crença(...)” com livre exercício de cultos religiosos (inciso

VI); “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,

independente de censura ou licença” (inciso IX); “é livre o exercício de qualquer trabalho,

ofício ou profissão(...)” (inciso XIII); “é livre a locomoção no território nacional(...)” (inciso

XV); “é plena a liberdade de associação(...)” (inciso XVII), entre outros. Existe, ainda, por

exemplo, liberdade na criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos,

observados os preceitos constitucionais, conforme dispõe o art. 17 da CF, juntamente com

inúmeras outras previsões do direito de liberdade – nos mais variados sentidos – em nível

constitucional e infraconstitucional.

Pelos poucos dispositivos legais aqui referidos, tem-se uma idéia da amplitude do

direito de liberdade na República Brasileira, observando-se a sua garantia em diversos

campos, desde o do pensamento até o relativo à garantia de livre mobilidade no território

nacional. Ao analisar-se a questão da liberdade sob o ponto de vista jurídico, encontra-se o

direito de liberdade caracterizado como um direito fundamental.

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Conforme Ruy Barbedo Antunes, os direitos fundamentais significam os direitos

“básicos”, aqueles estreitamente vinculados aos homens, “os mais apanagicamente próprios

da pessoa humana, a qual se reveste da especial condição de integrar a humanidade, desde

logo uma espécie privilegiada no mundo da natureza e, também, no mundo da Criação”.

Destaca o autor que o direito fundamental mais primacial é o direito à vida, apontando,

também, para o direito à liberdade, os quais ocupam, ainda, o status de direitos humanos

(2005, p. 332).

Segundo a lição do jurista hispânico Pérez Luño, os direitos fundamentais

caracterizam-se como um “conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos

e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado”. Conforme o autor, são “direitos

delimitados espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao seu caráter básico e

fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito” (PÉREZ LUÑO apud SARLET,

2005, p. 37). Também Ingo Sarlet defende que os direitos fundamentais têm seu nascedouro e

desenvolvimento junto com as Constituições que os asseguram (SARLET, 2005, p. 41),

destacando o autor a lição de Perez Luño, segundo o qual

a positivação dos direitos fundamentais é o produto de uma dialética constante entre o progressivo desenvolvimento das técnicas de seu reconhecimento na esfera do direito positivo e a paulatina afirmação, no terreno ideológico, das idéias da liberdade e da dignidade humana (PÉREZ LUÑO

apud SARLET, 2005, p. 43-44).

À luz do direito de liberdade é que nasce, no seio da sociedade, o sentimento de

garantia de os indivíduos serem livres para elegerem os caminhos a seguir no sistema no qual

estão insertos. A liberdade, então, dentro de uma sociedade organizada sob a lógica das

normas, é um direito a ser exercido com base no conteúdo legal e nos limites desse, de modo

a propiciar-se a manutenção da ordem social. Por tudo isso, os movimentos sociais devem

atentar para os limites da própria liberdade, desempenhando ações, cujo conteúdo educativo

está implícito, sob observância das normas vigentes. Ao agirem dentro dos limites das leis,

podem ter atenuada a força reivindicativa de suas práticas, pois se tornam reféns do conteúdo

legal para manter a ordem social

Veja-se, dessa forma, que o Estado preconiza a previsão expressa do direito de

liberdade, juntamente com outros direitos (e deveres), visando evitar a existência de conflitos

de modo que a liberdade assegurada legalmente seja efetivamente gozada (nos limites do

próprio ordenamento). Flickinger provoca a reflexão acerca do direito de liberdade em

contrapartida à realidade social ao ponderar:

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Orgulhamo-nos de um sistema de direito que garante a todos a liberdade e igual chance de participar, tanto nos bens comuns e decisões políticas, quanto na construção do espaço social do mundo da vida. Até hoje, nenhuma outra sociedade conseguira instaurar estrutura de liberdade tão abrangente quanto a nossa. Por outro lado, é inegável que essa mesma sociedade alcança estágio de disparidade social extremo (2003, p. 12)

Impõe-se frisar que a liberdade, no Estado Constitucional da Separação do Poderes

(Estado Liberal), segundo Montesquieu, apresenta-se sob dois aspectos: o filosófico e o

político. Sob o prisma filosófico, a liberdade “consiste no exercício da vontade”, enquanto no

prisma político, concretiza-se diante do respeito ao cidadão e à Constituição, mantendo-se a

liberdade política em face da separação dos poderes, apresentada como ponto de manutenção

desse prisma de liberdade:

Respectivamente ao cidadão, é livre quem tem o direito de fazer tudo o que as leis permitem. A liberdade política aí se traduz na segurança ou no juízo que cada homem faz acerca de sua segurança. O cidadão conhece pois a liberdade política, segundo as observações de Montesquieu, quando desfruta aquele estado de tranqüilidade de espírito decorrente do sentimento de certeza conferido pela ordem jurídica. Respectivamente à Constituição, há liberdade quando a organização do poder se faz à base de certa distribuição dos três poderes, já referidos (BONAVIDES, 2003, p.217).

Mas, afinal, no que consiste o direito de liberdade? Diante desse questionamento,

cabe fazer algumas breves considerações quanto à concepção da liberdade, elegendo-se, para

embasar os argumentos, a produção teórica de Karl Marx, responsável pela concepção

econômica da origem do Estado.

Na visão de Marx, em tese, e independente da ótica jurídica da liberdade, o ser

humano é "essencialmente livre devido ao fato de ser capaz de determinar-se por si mesmo”.

No entanto, o homem, enquanto sujeito localizado dentro de uma sociedade, conforme a

concepção de Hegel, apresentada por Marx, depende, para concretizar essa liberdade, da

convergência das condições objetivas nas quais busca realizá-la, eis que, na sociedade

burguesa, a liberdade apenas ocorre no plano conceitual pois, no mundo dos fatos, estão

ausentes as condições concretas propiciadoras da liberdade em nível material (OLIVEIRA,

1997, p.54-65).

Assim, conforme esclarece Oliveira, ao mesmo tempo que a sociedade moderna tem

por fundamento o capital e sustenta ser guardiã do princípio da liberdade, apenas consegue

constituir-se e reproduzir-se plenamente na medida da negação de tal princípio (1997, p. 49).

Para alcançar tal conclusão, Marx opera uma análise crítica da sociedade, aprofundando-se na

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realidade material, sem limitar-se à realidade aparente aos olhos, mas desvendando as "forças

ocultas" que interferem nos fenômenos sociais.

Marx demonstra o estado de submissão do trabalhador frente ao sistema de

produção, uma vez que a força de trabalho transforma-se em mercadoria, à qual é atribuído

determinado valor. Tem-se, assim, não apenas o resultado do trabalho completamente sem

liberdade, pois está alienado ao capital, como a força de trabalho do homem também, visto

este integrar o processo de produção.

Com tais constatações, verifica-se que a propriedade privada é atingida com o

emprego da força de trabalho do homem, constituindo-se, assim, pelo resultado do trabalho

alienado. Mas o mais grave dos reflexos da alienação do trabalho pelo homem é o que Marx

passa a investigar: a "estrutura interna do capital enquanto relacionamento social". A partir

disso, foi possível demonstrar a deformação dos homens em seus relacionamentos sociais

(OLIVEIRA, 1997, p. 91).

Essas conclusões de Karl Marx constam, de forma esclarecedora, no texto

denominado “O Trabalho Alienado”. Nesse escrito o autor desmascara a suposta liberdade do

homem ao demonstrar que os fatores materiais dominantes na sociedade capitalista

determinam processar-se o trabalho do homem de modo a produzir coisas imediatamente

desligadas dos interesses e do alcance de quem as produziu, transfigurando-se,

indistintamente, em simples mercadoria. Essa separação afeta não apenas o objeto produzido,

como o próprio processo de produção e termina por atingir, também, as condições espirituais

possibilitadoras da vinculação do trabalhador com seu contexto social: “a afirmação de que o

homem se encontra alienado da sua vida genérica significa que um homem está alienado dos

outros, e que cada um dos outros se encontra igualmente alienado da vida humana” (1963,

p.166). Tudo isto se dá em face da condição do homem como trabalhador, gerador de bens

destinados àquele que o remunera pelos serviços prestados, e das restrições impostas ao

homem exatamente em face da sua condição (1963, p.157 e seg.).

Marx frisa a impossibilidade de o homem ser efetivamente livre. Embora ainda

pretenda escolher o caminho da não-alienação de seu trabalho, não logra êxito diante das

necessidades de sobrevivência no dia-a-dia. Ou seja, na sociedade de base capitalista, impõe-

se o recebimento do dinheiro para o atendimento, ao menos, das exigências físicas como a

alimentação. A partir de tais constatações, Marx destaca a dependência do trabalhador, que

não labora por vontade própria, mas forçosamente, representando isso a prática da violência

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contra si mesmo, pois se vê compelido a desempenhar atividades que não necessariamente lhe

fornecem satisfação pessoal.24

Diante das circunstâncias envolventes dos sujeitos na sociedade, Karl Marx formula

críticas ao Estado Alemão e às condições socioeconômicas vigentes em seu tempo, as quais

não se diferenciam substancialmente das atuais, sendo, portanto, criticáveis à luz das suas

teorias, pois o fundamento da sociedade moderna não se alterou mesmo com a passagem de

todo este tempo: segue sendo o capital.

Talvez, exatamente em virtude dos fatores referidos, e detectados desde o século

XIX por Karl Marx, a concepção liberal (ao menos sob sua forma originária/pura) não

consegue consolidar-se no transcurso do tempo. Conforme Sahid Maluf, os idealizadores do

Estado Liberal desconheceram um dos episódios históricos mais relevantes: a revolução

industrial, responsável pela modificação da realidade em todos os países. Assim, “o

liberalismo que se apresentara perfeito na teoria bem cedo se revelou irrealizável por

inadequado à solução dos problemas reais da sociedade”. Ele demonstrou tratar-se de ficção,

“com cidadãos teoricamente livres e materialmente escravizados” (1995, p.130).

Com a revolução industrial, mudam as relações sociais, especialmente no mundo do

trabalho, no qual a substituição dos operários por máquinas torna-os mercadorias, descartáveis

diante da utilização da tecnologia que surge. Por conseguinte, sobra mão-de-obra, impondo a

aceitação de qualquer quantia para o exercício do trabalho e forçando toda a família a buscar

meios de sobrevivência, inclusive as crianças. O trabalhador, quando impossibilitado de

buscar por sua própria força de trabalho meios de subsistência, vê-se à mercê da caridade

pública. Por outro lado, verifica-se o acúmulo de riquezas pelos detentores dos meios de

produção.

Enquanto isso, o “Estado liberal a tudo assiste de braços cruzados, limitando-se a

policiar a ordem pública”. Trata-se do Estado-Polícia: posicionado de forma “indiferente ao

drama doloroso da imensa maioria espoliada, deixa que o forte esmague o fraco, enquanto a

igualdade se torna uma ficção e a liberdade uma utopia” (MALUF, 1995, p.130):

Sem dúvida, eram anti-humanos os conceitos liberais de igualdade e liberdade. (...) porque os indivíduos são naturalmente desiguais, devendo, por isso, ser tratados desigualmente, em função do justo objetivo de igualizá-los no plano jurídico. Além

24 Neste campo, sustenta Marx que “A actividade vital consciente distingue o homem da actividade vital dos animais. Só por esta razão é que ele é um ser genérico. Ou melhor, só é um ser consciente, quer dizer, a sua vida constitui para ele um objecto, porque é um ser genérico. Unicamente por isso é que sua actividade surge como actividade livre. O trabalho alienado inverte a relação, uma vez que o homem, enquanto ser consciente, transforma a sua actividade vital, o seu ser, em simples meio da sua existência” (MARX, 1963, p. 165). (grifo nosso)

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disso, não basta que o Estado proclame o direito de liberdade, é preciso que ele proporcione aos cidadãos a possibilidade de serem livres. Em menos de meio século, tudo o que o liberalismo havia prometido ao povo redundou em conquistas e privilégios das classes economicamente dominantes. As multidões espoliadas, oprimidas, sem lar, sem agasalhos, sem pão, sem a fé em Deus, que o infortúnio faz desaparecer do coração dos homens, começam a reagir violentamente contra as injustiças sociais, já agora arregimentadas sob a bandeira do socialismo materialista, levando o Estado ao dilema do reformar-se ou perecer. (MALUF, 1995, p.131)

Diante de tais circunstâncias, pondera Maluf:

Se a função primordial do Estado consiste em assegurar condições gerais de paz social e prosperidade pública, cumpre-lhe, efetivamente, intervir na ordem socioeconômica, impor restrições ao capital, prevenir os litígios, remover as injustiças, edificar um mundo melhor onde a felicidade seja possível a todos os homens e o império da justiça seja uma realidade. (...) A crítica demonstrou sempre, e com exuberante evidência, a inconsistência dos princípios teóricos do liberalismo, mas não chegou ainda a uma conclusão definitiva quanto à solução do problema. O socialismo comunista, de um lado, o fascismo e o nazismo, de outro lado, foram as mais destacadas tentativas de reestruturação básica do Estado moderno. (...) Todos esses movimentos reacionários, entretanto, importam, praticamente, numa transposição dos erros do liberalismo para o plano coletivista. (...) De qualquer forma, ameaçado pelas duas extremas totalitárias, o Estado liberal foi colocado ante o dilema de reformar-se ou perecer. Efetivamente, onde ele pareceu fraco e inerte, ocorreu a transformação violenta, surgindo o Estado revolucionário, como na Rússia, na Itália, na Alemanha, na Polônia e em vários países (...). Quando não, o Estado liberal se transformou de maneira pacífica evoluindo para a forma social-democrática, através de reformas constitucionais e medidas legislativas. Tornou-se evolucionista, intervindo na ordem econômica, colocando-se como árbitro nos conflitos entre o capital e o trabalho, superintendendo a produção, a distribuição e o consumo (1995, p.133). (grifo nosso)

Em face a tais elementos nasce outra modalidade de Estado, denominada como

Estado Social, ou do Bem-Estar Social, cujo objetivo é a concretização de justiça social,

visando propiciar, por meio de ações positivas, o alcance de direitos sociais, como moradia,

saúde, educação, entre outros.

Assim, a concepção individualista sofre transformações, buscando-se mudanças no

perfil do Estado, o qual, em meados do século XIX inclina-se, com tarefas positivas, a favor

do povo. Existe, então, participação ativa do Estado, o qual passa a atuar no campo

econômico e social, reduzindo a liberdade contratual e atuando diretamente na consolidação

de direitos através da legislação, como solicitado pelos movimentos operários. Mais do que

isso, há interferência do Estado no campo econômico pela regulação das relações produtivas,

inclusive com participação efetiva no mercado capitalista, como agente deste. Exige-se que a

propriedade, exemplo do individualismo, desempenhe sua função social, assim como, no

âmbito contratual, a liberdade de vontades já não basta, pois o pacto deve atender a sua

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função social também. Apesar de tais mudanças, a substância do Estado Liberal mantém-se,

ou seja, “a separação entre os trabalhadores e os meios de produção, gerando mais-valia, de

apropriação privada pelos detentores do capital” (STRECK E BOLZAN DE MORAIS, 2003,

p.68).

O processo de mudança do Estado Liberal para Social, conforme Streck e Bolzan de

Morais, é caracterizado nos seguintes termos:

Em resumo, pode-se dizer que, ao longo do século XIX, os liberais e os movimentos e partidos liberais mudaram a estrutura econômica, social e política da Europa, e modificaram drasticamente a comunidade internacional, quando, então, terminaram a escravidão e incapacidades religiosas, garantiu-se a tolerância, a liberdade de imprensa de manifestação e de associação; a educação foi estendida; o direito de voto ampliou-se – universalizou-se – até as mulheres; elaborações constitucionais limitando e responsabilizando os governos foram escritas. Por outro lado, na medida em que o sufrágio se estendeu a novos setores sociais, os partidos políticos começaram a surgir, buscando votos de modo a governar na base do que ofereciam ao eleitorado, tornando os governos suscetíveis às solicitações populares, o que vai impor uma mudança de rota no projeto do Estado Mínimo no sentido da intervenção do poder público estatal em espaços até então próprios à iniciativa privada. (2003, p. 59-60)

Os autores explicitam, ainda, que os efeitos das idéias liberais foram

exacerbadamente concretizados, ocasionando o ultra-individualismo, comportamento egoísta

e “concepção individualista e formal da liberdade onde há o direito, e não o poder de ser

livre”, ensejando as transformações do Estado Liberal (2003, p. 62), arrolando, entre as causas

para tal mudança, a Revolução Industrial, a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra

Mundial, a mobilização dos movimentos sociais, que rechaçam a idéia da livre força de

mercado.

Mas o Estado Social, embora mantendo a substância liberal, reveste-se de

preocupação com a justiça, entendendo já não bastar haver-se garantido o direito à liberdade,

como no Estado Liberal. Algo mais se fazia necessário: os direitos fundamentais e o caráter

social das instituições do Estado. Bonavides explicita que, nessa segunda modalidade de

Estado Constitucional “seu ponto de apoio e traço de identidade são o tecido social dos

direitos fundamentais”, consolidando-se sua legitimidade conforme os direitos sociais se

concretizam (2003, p.36). Observa-se que o Estado Constitucional contemporâneo está

embasado nos direitos fundamentais, na justiça e nos princípios.

Segundo Streck e Bolzan de Morais, o Estado Social tem sua origem atribuída a duas

razões principais, de ordem política e econômica. Na primeira está a luta pelos direitos

individuais (Terceira Geração), políticos e sociais; na segunda, encontra-se a transformação

da sociedade agrária em industrial. Os mesmos autores destacam, ainda, tal modelo de Estado

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caracterizar-se “como aquele que garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde,

habitação, educação, assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como direito

político” (2003, p. 71)

Vê-se, pois, comparativamente ao Estado Liberal, tratar-se de uma revolução no

entendimento do alcance do Estado em relação à sociedade, pois outros valores começam a

destacar-se, transmudando, inclusive, o ordenamento jurídico, que passa a abranger as

questões sociais. O item duvidoso diz respeito à efetividade dos preceitos desse Estado,

nascido sobre a solidez do Estado Liberal e, portanto, impregnado de seus elementos.

Bonavides refere exatamente essa questão, frisando ser o Estado Social no capitalismo mais

uma forma de organização política, não havendo modificações substanciais em postulados

econômicos e sociais25 (2004, p.184).

Na verdade, o Estado Social apresenta-se como um passo da burguesia no

reconhecimento de direitos ao proletariado, buscando, dessa forma, amenizar as nefastas

conseqüências da própria estrutura vigente. Bonavides sobre o tema esclarece:

Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social. (...) Tudo isso, porém, não se confunde com o Estado socialista, que exige para sua concretização muito mais que apenas o reconhecimento de direitos, impõe, por exemplo, a efetiva participação do Estado nos campos de ação da iniciativa privada, caso contrário mantém-se a organização capitalista (2004, p.186).

Trata-se, de fato, da busca de caminhos pelos quais seja viável conciliar a idéia

liberal com os problemas sociais existentes, visando, pois, à solução deles. Diante das

disfunções do modelo de liberalismo clássico, este é revisto e enseja o ideal de Estado Social,

para quem a lei não serve apenas para manter a ordem social e a paz, como no Estado Liberal,

mas também como instrumento de atuação, por exemplo, para assegurar direitos sociais e

promover Justiça Social. Isto não significa o abandono do ideal liberal, mas apenas o

25 No Estado Liberal são os direitos individuais que ganham destaque, já no Estado Social são os direitos coletivos, havendo uma demonstração de suposta preocupação com a coletividade.

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acréscimo de outras idéias que venham possibilitar o incremento do próprio Estado. Conforme

explicitam Streck e Bolzan de Morais:

Transmutado em social, o Estado de Direito acrescenta à juridicidade liberal um conteúdo social, conectando aquela restrição à atividade estatal a prestações implementadas pelo Estado. A lei passa a ser, privilegiadamente, um instrumento de ação concreta do Estado, tendo como método assecuratório de sua efetividade a promoção de determinadas ações pretendidas pela ordem jurídica (2003, p. 94).

Não se pode desconsiderar, entretanto, serem tais aspectos ambíguos pois, de um

lado, estão os direitos fundamentais que, conforme afirma Vieira, são “pressupostos

inexoráveis da plena realização da economia capitalista, enquanto fundamento material da

sociedade liberal moderna, estruturada sobre o princípio da liberdade individual”. De outro,

têm-se os direitos sociais “pressupostos do ideal de participação no poder, igualmente

defendido pelo liberalismo político, bem como a bandeira da distribuição das riquezas

socialmente produzidas”. Este ideal foi incorporado ao cenário político pelas lutas sociais,

passando, assim, a compor o sistema político-econômico contemporâneo. A ambigüidade

entre tais questões é tão evidente que “a integração entre direitos fundamentais burgueses e

direitos sociais só tem geralmente ocorrido em nível legislativo e administrativo” (2004, p.

272-273).

De qualquer modo, trata-se de uma forma de política social, a qual visa, segundo

Claus Offe, “garantir a lealdade dos cidadãos ao sistema político”, de modo a não

questionarem “a forma de reprodução material da comunidade, defendendo o próprio modo de

produção de uma possível implosão resultante dos conflitos inerentes a sua natureza

constitutivamente contraditória”. Certo, segundo o autor, é o Estado estar defendendo “os

interesses do conjunto de membros de uma sociedade capitalista de classe” (OFFE, 1984. p.

123-124 apud VIEIRA, 2004, p. 282-283).

Após a ênfase nas questões sociais, existe ainda, a tomada, pelo Estado, dos aspectos

democráticos, quando, então, destaca-se, como centro, a igualdade, a ser alcançada pelas

normas, a partir das quais se permite assegurar condições mínimas de vida aos cidadãos. O

Estado passa a ter por tarefa a transformação do status quo, utilizando, como instrumento, as

leis e desempenhando o papel de manter o espaço vital da humanidade (STRECK E

BOLZAN DE MORAIS, 2003, p.98).

Dizem, ainda, Streck e Bolzan de Morais:

A novidade do Estado Democrático de Direito não está em uma revolução das estruturas sociais, mas deve-se perceber que esta nova conjugação incorpora

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características novas ao modelo tradicional. Ao lado do núcleo liberal agregado à questão social, tem-se com este novo modelo a incorporação efetiva da questão da

igualdade como um conteúdo próprio a ser buscado garantir através do asseguramento jurídico de condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade (2003, p.97).

Mais do que isso, o Estado Democrático indica a necessidade de transpor o aspecto

meramente formal do Estado de Direito, alcançando-se a questão da Justiça e, também, da

legitimidade, a qual abarca a necessidade de o Estado ter por fim ideais manifestados

livremente pelo povo. É o que prega Miguel Reale ao analisar os Anais da Constituinte

Brasileira, podendo-se, assim, transportar essas referências ao conceito geral de Estado

Democrático, não apenas o brasileiro. Diz, assim, Reale:

Pela leitura dos Anais da Constituinte infere-se que não foi julgado bastante dizer-se que somente é legítimo o Estado constituído de conformidade com o Direito e atuante na forma do Direito, porquanto se quis deixar bem claro que o Estado deve ter origem e finalidade de acordo com o Direito manifestado livre e originariamente pelo próprio povo, excluída, por exemplo, a hipótese de adesão a uma nova Constituição outorgada por uma autoridade qualquer, civil ou militar, por mais que ela consagre princípios democráticos (1999, p. 2).

O Estado da Democracia Participativa, caracterizado como a terceira modalidade de

Estado Constitucional na classificação apresentada por Paulo Bonavides, tem por preceito

basilar o direito à democracia, o qual se enquadra entre os direitos fundamentais de quarta

geração26. Isso não significa terem sido abandonados os demais direitos fundamentais,

26 Localiza-se na doutrina que aborda o tema dos direitos fundamentais uma classificação em gerações (dimensões) de tais direitos. Trata-se, na verdade, de uma explicitação de diferentes tipos de direitos fundamentais que vão sendo consagrados legalmente com a evolução dos tempos, sem que isso implique na substituição daqueles previstos na geração anterior. Utilizando-se de Ingo Wolfgang SARLET (2005, p. 54-60) tem-se um subsídio esclarecedor das mencionadas gerações de direitos fundamentais, exposto brevemente para justificar o porquê de a democracia constar como direito fundamental de quarta geração. Os direitos de primeira geração têm seu nascedouro nas Constituições escritas a partir do século XVIII, afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, no sentido de que o Estado tem limites diante do indivíduo, gozando este de uma esfera de autonomia. Destacam-se como direitos de 1a. geração “os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei”. Quanto ao direito de liberdade não se tem apenas a liberdade individual, mas a de expressão coletiva também, identificando-se, nesse caso, as liberdades de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação, direitos de participação política, que compreende o direito ao voto e de ser votado. Nos direitos de segunda geração enquadram-se os chamados direitos econômicos, sociais e culturais. O nascimento desta geração decorre da preocupação da sociedade com a justiça social, exigindo do Estado maior intervenção neste sentido, apesar de no campo dos direitos de primeira geração buscar-se exatamente a liberdade dos indivíduos com a abstenção da interferência do Estado. Trata-se aqui da busca das liberdades através do Estado, já que sem a intervenção deste a concretização da justiça social verificou-se quase impossível, passando-se, então, a exigir do Estado prestações sociais. Enquadram-se como direitos de segunda geração a assistência social, saúde, educação, trabalho, bem como as chamadas “liberdades sociais”, expressadas através do direito de sindicalização, de greve, férias, repouso semanal remunerado, salário mínimo, limite da jornada de trabalho etc, todos estes direitos dirigidos ao indivíduo. Os direitos de terceira dimensão afastam-se da idéia do homem-indivíduo, estando destinados a proteger o coletivo, enquadrando-se dentre eles os “direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e

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pertinentes às outras espécies de Estado (Liberal e Social), na modalidade de Estado da

Democracia Participativa. Ao contrário, eles estão juntos ao direito à democracia, que se

agrega aos demais, estando todos concentrados na idéia de liberdade e justiça.

Bonavides, então, explicita:

Com a Democracia participativa a soberania passa do Estado para a Constituição, porque a Constituição é o poder vivo do povo, o poder que ele não alienou em nenhuma assembléia ou órgão de representação, o poder que faz as leis, toma as decisões fundamentais e exercita uma vontade que é a sua, e não de outrem, porque vontade soberana não se delega senão na forma decadente da intermediação representativa dos corpos que legislam, segundo ponderava Rousseau, com absoluta carência de legitimidade em presença do vulto e significado e importância da matéria sujeita. (...) O Povo é posto aí no interior e na cabeça da Constituição como instância concreta e material das supremas decisões coletivas da Nação, isto é, como ente político organizado e autodeterminativo que deixou de ter morada em regiões abstratas e metafísicas de puro simbolismo. Constituição, povo e soberania desse modo exprimem o caráter e a qualidade do poder superlativo em termos contemporâneos de legitimidade. O Povo é a Constituição, a Constituição é o Povo; os dois, com o acréscimo da soberania, compõem a santíssima trindade política do poder. Mas não de qualquer poder, senão daquele que traz a inviolabilidade, a grandeza ética, a fundamentalidade da Democracia participativa. (2003, p. 44-45).

No Brasil, com a Constituição Federal de 1988 foi inaugurada a fase da democracia

participativa, expressa pela asseguração de três instrumentos que a promovem: plebiscito,

referendo e iniciativa popular. Contudo, na prática, tais instrumentos são muito pouco

utilizados. Tem-se, no campo teórico, uma democracia participativa mas, de fato, a

perpetuação da democracia representativa. Bonavides esclarece que o diploma legal (Lei

9.709, de 18.11.98) regulamentador de tais instrumentos de democracia participativa apenas

foi editado dez anos após a promulgação da Carta Constitucional, nascendo “ultrapassado em

termos de legitimidade relativos à instauração de uma democracia participativa, em virtude da

redução do papel atribuído à eficácia da vontade popular nas decisões de império e soberania”

cultural e o direito de comunicação” (p.57). Destacam-se, pois, pela titularidade coletiva, que em muitos casos é indeterminável, sendo exatamente por isso classificados como direitos de solidariedade ou fraternidade, pois exigem um comprometimento global para o seu respeito, como é o caso em especial do direito ao meio ambiente. Conforme expõe SARLET, há referências a outros direitos que se enquadrariam como de terceira geração, como aqueles relativos à morte com dignidade, e à possibilidade de mudança de sexo. Já no campo dos direitos de quarta geração, quanto aos quais, na verdade, ainda se questiona sua efetiva existência, uma vez que, enquanto as demais instâncias de direitos fundamentais estão consagradas ou em nível da Constituição Pátria, ou de normas internacionais, o que seria a quarta geração carece de normatização, mas efetivamente existe, estando composta – segundo Paulo Bonavides – pelos direitos à democracia, à informação e pelo direito ao pluralismo. Quanto à democracia trata-se da democracia direta, de efetiva participação e não apenas de representação. Ruy Antunes refere, ademais, uma quinta geração de direitos fundamentais, em situação de incompletude doutrinária, relativa “à manipulação genética de seres humanos e outras questões vinculadas à biologia da vida humana” (2005, p. 334).

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(2003, p. 57). Assim, predomina o aspecto da representação na maioria das situações, sendo

excepcionais as circunstâncias nas quais são adotadas as formas de democracia participativa.

Hans-Georg Flickinger destaca que, na verdade, tanto a visão liberal de Estado, como

o ideal do bem-estar social, ou, ainda, as políticas da social democracia, são incapazes de

concretizar a justiça material e “garantir a sobrevivência da comunidade de acordo com a

natureza do Estado moderno”. Isto porque,

Em ambos os casos, o princípio da legalidade do agir político não confere uma base satisfatória capaz de legitimar materialmente o agir do Estado; e inversamente, a legitimidade material enraizada no ideal de justiça social não consegue respeitar o espaço legal do agir dos indivíduos que nele buscam o direito de realizar seus interesses subjetivos (1998a, p.61 apud VIEIRA, 2004, p. 281)

Para Flickinger, a estrutura estatal está posta de tal forma que qualquer ato a ser

praticado no Estado Liberal de Direito depende, para a sua “aceitação social”, da previsão

normativa (2003, p. 156-157). A fixação normativa dos atos possíveis ou vedados de prática

no Estado serve tanto para a sociedade, como para o próprio Estado, garantindo segurança

para ambas as partes. Assim, há uma necessária vinculação do agir institucional às regras

jurídicas, sendo a legalidade do agir a marca do Estado Liberal de Direito. Logo, suas ações,

necessariamente, estão adstritas ao espaço autorizado pelo legislador. Nesse sentido está a

lição de Luiz Vicente Vieira, ao referir entendimento de Carl Schmitt:

O agir do Estado fica condicionado ao pressuposto da lei. O sistema legal passa a ser organizado na Constituição, a qual é, assim, considerada, de acordo com a concepção liberal do Estado, como um limite real ao poder do Estado. Daí a importância dos ‘freios e contrapesos’ constitucionais no funcionamento do Estado. (2004, p. 234)

Desse modo o legislador desempenha a função de representante da vontade do povo

no Poder Legislativo, pois lá se encontra em virtude da escolha popular operada por meio do

voto, garantia fundamental assegurada igualmente aos homens e às mulheres. Ele legitima os

ocupantes do poder a criarem, revogarem e transformarem as leis a que se submetem os

cidadãos e o próprio Estado.

Neste ponto, então, os movimentos sociais apresentam-se como importantes

instrumentos para o alcance de antigas e relevantes reivindicações de determinados grupos,

propiciando modificações especialmente nas estruturas de ordem social e jurídica,

representadas, por exemplo, pela edição de normas que asseguram direitos para determinadas

categorias sociais.

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Detecta-se, desta forma, a inter-relação entre Direito e movimentos sociais, os quais

desenvolvem suas atividades não apenas com o escopo de assegurar direitos relacionados de

forma direta aos seus interesses, mas também relativos aos interesses em geral da sociedade,

como é o caso dos direitos sociais. Exemplo marcante de concretização de reivindicações nos

anos oitenta foi a garantia, em nível constitucional, da igualdade entre homens e mulheres, e,

por conseqüência, a revogação de inúmeras normas que consagravam discriminações

inadmissíveis frente à modernidade da sociedade e à realidade vivenciada. A solidificação de

inúmeros direitos na Constituição da República Federativa do Brasil, chamada Constituição

Cidadã, caracteriza a forte mobilização social do período em busca da garantia, pela Carta

Suprema, de direitos sociais basilares, como educação, saúde, moradia, trabalho, Previdência

Social etc, ampliando-se, desse modo, as garantias constitucionais, de estritamente

individualistas para sociais.

Por outro lado, no entanto, tem-se a vinculação do agir dos movimentos às regras

vigentes, o que pode ser elemento de risco para a potencialidade de suas ações, como antes

referiram Flickinger e Vieira e, conforme será aprofundado no capítulo 3.

Ao mesmo tempo que a democracia representativa parece ser excelente alternativa

para o alcance das reivindicações sociais, também parece não fugir das ciladas da legalidade,

talvez até mesmo as agrave visto as normas editadas pelo sistema representativo estarem

legitimadas por suas próprias regras de representação, que priorizam a questão meramente

formal da maioria. Nesse sentido, Ruy Antunes destaca:

a democracia que historicamente resultou da expressão das maiorias, fecha-se em um bloco de direitos sobre os quais não permite aos cidadãos qualquer interferência, um bloco de direitos que sujeitos à decisão das maiorias, até das unanimidades, violaria a própria democracia! (2005, p.349)

Antes de adentrar na temática das relações entre movimentos sociais (ANDES-SN) e

Estado Liberal de Direito, impõe-se apresentar algumas críticas de Carl Schmitt ao Estado

Liberal, por acreditar que explicitarão a lógica dessa modalidade estatal e, com isso, se dará a

compreensão de algumas circunstâncias a ela relativas, como se pretende demonstrar

oportunamente.

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2.2 Estado Liberal de Direito e Carl Schmitt

Nesse item trabalhar-se-á com algumas referências de Carl Schmitt ao Estado Liberal

de Direito, visando, assim, apesar das considerações feitas anteriormente, obter elementos

capazes de promover a compreensão do Estado Liberal e, por conseguinte, a situação dos

movimentos sociais e o desempenho do caráter educativo deles sob tal lógica.

Carl Schmitt é, inequivocamente, um autor do século XX, cuja adoção para tratar o

tema do Estado Liberal pode causar algumas surpresas em face de sua conduta ao participar

da fase nazista alemã e apoiá-la, inclusive filiando-se ao partido nacional-socialista. Contudo,

conforme destaca Juan Carlos Corbertta, no prefácio da obra de Julien Freund, não se pode

desconsiderar a condição de Schmitt anteriormente à fase nazista, época na qual se

posicionava como defensor de um sistema presidencialista forte, alertando para os riscos das

eleições ocorridas naquela época, e, inclusive, defendendo o voto contra o nazismo

(FREUND, 2002, p.31).

Assim, pondera-se que Schmitt dispõe de vários trabalhos anteriores à fase nazista,

os quais servem para explicitar, de forma clara, o sistema político liberal. Em vista disso,

adiante expõem-se algumas considerações acerca do liberalismo político, utilizando para

tanto, as referências teóricas de Carl Schmitt, bem como de outros autores que comentam suas

teorias.

De início, é relevante esclarecer a existência de alguns pontos de destaque em

Schmitt, conforme expõe Renato Lessa, ao prefaciar a obra de Bernardo Ferreira: a forte

oposição ao liberalismo, a crítica ao romantismo político, bem como às premissas

individualistas do Estado de Direito, aos fundamentos do parlamentarismo e à crise da ordem

e das instituições liberais (FERREIRA, 2004, p.20).

Carl Schmitt atuou de 1922 a 1928 na Universidade de Bonn, onde se consolidou

entre os intelectuais como um dos “representantes da oposição intelectual ao positivismo e ao

formalismo jurídicos dominantes na Alemanha”, posicionando-se, ainda, como “crítico das

instituições e do pensamento liberal” (FERREIRA, 2004, p.26).

A biografia de Schmitt destaca-o como defensor do fortalecimento dos poderes do

presidente e do esvaziamento do sistema parlamentar, defendendo, também, o uso dos poderes

de exceção do presidente. Em vista de sua postura, então, passou a ser “consultor jurídico do

grupo envolvido na consolidação do governo presidencial por decretos extraparlamentares”. A

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controvérsia em torno de Schmitt se dá, ainda, por ter, aparentemente, adotado de uma postura

contraditória, pois,

(...) ao mesmo tempo em que defendia a consolidação de uma ordem autoritária através da ampliação dos poderes presidenciais, alertava para o risco de se conceder igualdade de chances aos partidos contrários à constituição republicana. Para ele, a ascensão de nazistas e comunistas representava uma ameaça de derrubada legal da própria ordem constitucional e, em última instância, uma radicalização das lutas políticas e o risco de uma guerra civil. Em julho de 1932, com a aproximação das eleições que acabaram por garantir maioria parlamentar aos nazistas, Schmitt advertia para o risco do voto no Partido nacional-socialista. No entanto, quando os seus temores se confirmaram e os nazistas chegaram ao poder pela via legal, em janeiro de 1933, ele se tornou um ativo colaborador do novo regime (FERREIRA, 2004, p.27).

Segundo Ferreira, Schmitt foi um adversário da ordem constitucional de 1919, sendo

sua obra de extrema importância enquanto crítica à política de uma civilização, que

compreende

(...) a democracia representativa, o pluralismo, o Estado de direito, o pacifismo humanista, a defesa das liberdades individuais, a autonomia da sociedade civil em relação ao Estado, os partidos políticos, o voto individual universal, a crença na possibilidade de algum tipo de regulação racional da vida política (2004, p.31).

Para Schmitt, segundo Luiz Vicente Vieira, a noção de Estado de Direito apresenta

alguns critérios orgânicos como o de a caracterização enquanto Estado de Direito depender de

“competências rigorosamente circunscritas” de modo que todas as manifestações do poder do

Estado sejam mensuráveis. Segundo Vieira, referindo-se à Schmitt, tal exigência

(...) decorre do princípio de distribuição próprio do Estado Burguês de Direito, (...), mediante o qual a liberdade individual é, em princípio, ilimitada, e a capacidade de ação do Estado, em princípio, limitada, o que significa, mensurável (SCHMITT, 1992b, p. 142 apud VIEIRA, 2004, p. 228).

Como segundo critério orgânico, o de a ingerência no campo da liberdade individual

apenas ocorrer se embasada em uma lei, visto imperar o princípio da legalidade e, por fim, a

independência judicial, que implica um “controle judicial da administração e dos meios de

poder próprios do governo”, caracterizando-se como uma conquista da burguesia liberal

contra o absolutismo monárquico (VIEIRA, 2004, p. 228). Assim, explicita Vieira:

O ideal do Estado Burguês de Direito pretende, enfim, uma conformação judicial geral, assentada, sem dúvida, na norma legal. Para tanto, ele haverá, contudo, de contar com um conceito próprio de lei. “O Estado Burguês de Direito se baseia no império da lei. Por isso, é um Estado legalitário. Porém, a lei há de guardar uma conexão com os princípios do Estado de direito e da liberdade burguesa, se houver

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de subsistir o Estado de direito” (SCHMITT, 1992b, 149 apud VIEIRA, 2004, p. 228).

O Estado é visto por Schmitt como “o status político de um povo organizado numa

unidade territorial” (1992, p.43). Nasce, desta definição, o conceito de “político”, questão de

extrema relevância no pensamento de Carl Schmitt, esclarecendo o autor estar ela

intrinsecamente relacionada ao Estado, como em um círculo vicioso:

Em geral, “político” é equiparado, de alguma forma, a “estatal” ou, pelo menos, relacionado ao Estado. O Estado surge então como algo político, o político, porém, como algo estatal; evidentemente um círculo que não satisfaz (SCHMITT, 1992, p. 44).

O “político” é apresentado por Schmitt como o

grau de intensidade de uma associação ou dissociação de homens, cujos motivos podem ser religiosos, nacionais (no sentido étnico ou cultural), econômicos ou de outro tipo e que em diferentes épocas produzem diferentes vínculos e separações (BP, 38-39 apud FERREIRA, 2004, p. 41).

Böckenförde apresenta um conceito do “político” a partir da teoria de Carl Schmitt,

afirmando:

Lo político no tiene un objeto material limitable, representa más bien un campo de relaciones público entre personas y grupos de personas, el cual puede ser caracterizado por un determinado grado de intensidad de asociación que puede llegar hasta la distinción amigo-enemigo, y cuyo material puede ser tomado de todos los ámbitos o materias de la vida humana (BÖCKENFÖRDE, pp.284-285 apud CORBETTA, p. 241 in DOTTI y PINTO, 2002).

Na associação ou dissociação de homens existe a relação amigo-inimigo, destacada

por Schmitt, pois na vida política a hostilidade entre os grupos humanos está presente de

forma inerente, sendo, ainda, a existência política marcada pela “possibilidade-limite da

guerra” (FERREIRA, 2004, p. 37). Esclarece Ferreira, no entanto, que “a concepção belicosa

do político oferecida por Carl Schmitt não significa nem a redução da vida política à

dissociação e ao conflito nem a renúncia a toda e qualquer dimensão normativa” (2004, p.46).

A existência do inimigo, na concepção de Schmitt, decorre da existência do outro,

com concepções morais apresentadas “para mim como uma ameaça à minha forma de vida”.

Esclarece Ferreira, outrossim, a inimizade surgir como “expressão mais radical da experiência

da alteridade, ou seja, a circunstância em que a diferença é percebida como uma negação

absoluta” (FERREIRA, 2004, p. 42-43). Assim, o inimigo

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é precisamente o outro, o estrangeiro, e basta à sua essência que ele seja, em um sentido particularmente intenso, existencialmente algo de outro e estrangeiro, de forma que no caso extremo sejam possíveis conflitos com ele (BP, 27 apud FERREIRA, 2004, p. 42).

Tais conflitos com o inimigo, no entanto, seriam aqueles que “não podem ser

decididos mediante uma normatização geral previamente estipulada, nem pelo veredicto de

um terceiro ‘desinteressado’, e, portanto, ‘imparcial’” (SCHMITT, 1992, p.52). Por outro

lado, porém, ressalta Schmitt:

A situação não se coloca, de forma alguma, como se a existência política nada mais fosse que uma guerra sangrenta, e cada ação política, uma ação militar de guerra, como se, ininterruptamente, cada povo estivesse constantemente confrontado à alternativa amigo ou inimigo, e como se o politicamente correto não residisse justamente no evitar a guerra. A definição aqui fornecida do político não é belicista nem militarista, imperialista ou pacifista. Também não representa uma tentativa de colocar a guerra vitoriosa ou a revolução exitosa como “ideal” social, pois guerra e revolução não são algo “social”, nem “ideal” (SCHMITT, 1992, p. 59)

De fato, afirma Schmitt que todo enfrentamento religioso, moral, econômico, étnico,

ou de outro tipo, se transforma em enfrentamento político se for bastante forte para reagrupar

os homens em amigos e inimigos. Ademais, aduz o mesmo valer, por exemplo, para uma

associação de homens com fundamentos econômicos, o trust industrial, ou, ainda, um

sindicato. Uma classe, no sentido marxista, também se converte em uma entidade política se

toma a sério a luta de classes e trata o adversário de classe como inimigo real, combatendo-o.

A questão para Schmitt, é, na verdade, que a “luta deixa então, necessariamente, de

desenrolar-se segundo leis econômicas, mas tem - além dos métodos de luta no sentido

técnico estrito – suas necessidades e orientações, coalizões e compromissos políticos”

(SCHMITT, 1992, p. 64).

No movimento sindical a relação amigo-inimigo é clara, pois o conflito de classes é

flagrante entre os detentores dos meios de produção e os portadores da mão-de-obra que,

embora remunerados em contrapartida ao trabalho prestado, promovem a manutenção dos

meios de produção em poder dos outros. Contudo, a perpetuação dessas condições e dos

conflitos talvez seja propiciada pelo próprio Estado Liberal de Direito, pois sua lógica

imanente dificulta a superação das contrariedades na medida que as reduz à legalidade.

Para Schmitt, no período de 1920 a 1930, em seus escritos antecedentes à

aproximação nazista, constata-se claramente quem era o principal inimigo presente em seus

pensamentos: o liberalismo.

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Tal visão schmittiana do liberalismo enquanto inimigo decorre da visão liberal de ser

possível despolitizar a vida social, pois para Schmitt as idéias e as instituições liberais

“permanecem submetidas à medida do político”. Assim, segundo Ferreira, “Carl Schmitt

obtém uma imagem do liberalismo oposta à idéia deste sobre si mesmo e uma representação

da vida política que é o reverso da ordem pacificada do mundo liberal” (2004, p. 55). Nesse

ponto, afirma Schmitt:

Pelo liberalismo do século passado foram alteradas e desnaturadas todas as representações políticas, de uma maneira singular e sistemática. Como realidade histórica, o liberalismo não escapou ao político, tampouco como qualquer outro movimento humano importante, e mesmo suas neutralizações e despolitizações (da cultura, da economia etc) têm um sentido político. Os liberais de todos os países fizeram política como outros homens também e se coligaram das mais variadas maneiras com elementos e idéias não-liberais, como Nacional-Liberais, Social-Liberais, Conservadores liberais, Católicos liberais e assim por diante. Eles se ligaram especialmente com forças dirigentes da democracia totalmente antiliberais, porque essencialmente políticas e até mesmo tendentes ao Estado total. A questão consiste porém em saber se a partir do conceito puro e conseqüente do liberalismo individualista pode ser tirada uma idéia especificamente política. A isto se deve responder pela negativa. Pois a negação do político que está contida em todo e qualquer individualismo conseqüente conduz sem dúvida a uma práxis política da desconfiança frente a todos os poderes políticos e formas de Estado imagináveis, porém jamais conduz a uma própria e positiva teoria do Estado e da política. Por conseguinte, existe uma política liberal enquanto oposição polêmica frente a restrições, estatais, eclesiásticas ou outras, da liberdade individual, enquanto política de comércio, política eclesiástica e educacional, política cultural, mas nenhuma política liberal pura e simplesmente, e sim apenas e sempre uma crítica liberal da política (SCHMITT, 1992, p. 96-97).

Segundo Schmitt, então, observa-se a tentativa do liberalismo de subtrair o aspecto

político da vida social, no entanto, tal objetivo, conforme o autor, está dotado de fim político.

Vieira, comentando essa questão, refere que a existência do Estado de Direito “depende

permanentemente de evitar que o elemento político, inerente a qualquer forma de Estado,

jamais venha a se manifestar, reduzindo este último a um mero ordenamento jurídico” (2004,

p. 235).

Dentro das questões relativas ao liberalismo, Schmitt ocupa-se, também, do

problema da norma e da ordem, nos termos que a seguir aborda-se, sendo tais questões no

Estado Liberal de abordagem extremamente importante para fins da compreensão da lógica

liberal e suas conseqüências para os movimentos sociais.

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2.2.1 As normas no Estado Liberal

A norma, na concepção liberal, tem por finalidade restringir os poderes do Estado,

obstaculizando-o e controlando-o na defesa da liberdade individual e da propriedade privada:

A teoria sistemática do liberalismo refere-se quase que só à luta da política interna, contra o poder estatal, e fornece uma série de métodos para obstaculizar e controlar este poder do Estado para a proteção da liberdade individual e da propriedade privada, para transformar o Estado em um “compromisso” e as instituições estatais em um “ventil”, e de resto “contrabalançar” a monarquia com a democracia e esta com a monarquia, o que em tempos críticos – especialmente no ano de 1848 – levou a uma atitude tão contraditória que todos os bons observadores, como Lorenz von Stein, Karl Marx, Fr. Julius Stahl, Donoso Cortés se desesperavam de encontrar aí um princípio político ou uma coerência lógica. O pensamento liberal contorna ou ignora, numa maneira sumamente sistemática, o Estado e a política e em vez disso se movimento em uma polaridade típica, que sempre retorna, de duas esferas heterogêneas, a saber, de ética e economia, espírito e negócio, cultura e propriedade. (SCHMITT, 1992, p. 97)

Justo para garantir a liberdade individualista e a propriedade privada, o sistema

liberal, no Estado de Direito, preocupa-se substancialmente com a questão das normas, que

apresentam uma relevância ímpar. Schmitt destaca, entretanto, a ausência de universalidade

das normas porque não há na sociedade uma uniformidade de valores. E, em face da ausência

de um consenso em torno de critérios universais, faz-se necessária uma instância de validação

das normas, pela qual se revista o conteúdo normativo de uma interpretação específica.

Porém, é exatamente essa necessidade interpretativa, necessidade de criar condições para

vigência da norma, que, para Schmitt, transfere a questão “do plano de um juízo ético ou

jurídico – incondicionado e puramente normativo – para o plano do conflito político”

(FERREIRA, 2004, p. 100).

Carl Schmitt destaca, de forma substancial, a questão da efetividade das normas em

casos de exceção, dizendo, assim:

quem parte da idéia de estar em presença de uma situação anormal – ou porque contempla o mundo em um estado de anormalidade radical, ou porque apenas considera uma dada situação como anormal – resolverá o problema da política, da moral, e do direito de forma distinta de quem está convencido da sua normalidade de princípio, somente transtornada por pequenas perturbações (1926 apud FERREIRA, 2004, p. 100).

Por isso, então, afirma: “todo direito é ‘direito situacional’ [“Situationsrecht”]” (PT,

19 apud FERREIRA, 2004, p. 101), ou seja, a aplicabilidade das normas depende das

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circunstâncias em que é interpretada, se em momentos normais ou anormais, vistos estes sob

o aspecto político. Ainda, observa Schmitt:

na realidade concreta, a ordem e a segurança públicas se apresentam das mais diferentes formas, dependendo, por exemplo, se é uma burocracia militar, uma administração autônoma dominada pelo espírito comercial ou uma organização partidária radical quem decide quando existe essa ordem e segurança e quando ela está perturbada ou sob ameaça (PT, 16 apud FERREIRA, 2004, p. 101).

Na verdade, para Carl Schmitt, a questão da validade das normas não se resolve pelo

conteúdo das mesmas, mas em vista de um ordenamento capaz de dar sentido ao ordenamento

jurídico. Porém, “norma jurídica e ordem política vêm a ser conceptualmente separadas”, da

mesma forma que “se estabelece uma dependência estreita entre as regras do direito e uma

‘configuração normal das relações de vida’”. De fato, para Schmitt, segundo Ferreira, é a

“impossibilidade de esgotar o direito na imanência do sistema de legalidade”. Afirma Schmitt,

então:

a norma ou a regra não cria a ordem; ao invés disso, ela tem apenas, com base em uma dada ordem e no interior dela, uma certa função reguladora, cuja validade é, em uma medida relativamente restrita, autônoma e independente da situação das coisas (DarD,11 apud FERREIRA, 2004, p. 102).

No Estado de Direito tem-se uma norma hierarquicamente acima das demais: a

Constituição, dotada de uma série de princípios, os quais, na verdade, devem nortear as

relações na lógica do próprio Estado de Direito.

Conforme Schmitt, a Constituição, no Estado de Direito visa garantir a liberdade do

indivíduo frente ao próprio Estado, limitando, assim, os poderes do Estado, limites

concretizados em face da ordem jurídico-política. Desta feita, há dois princípios do

constitucionalismo liberal denotativos de seu ideal de liberdade: os princípios de repartição e

de organização:

Em primeiro lugar, um princípio de repartição [Verteilungprinzip]: a esfera da liberdade do indivíduo é pressuposta como um dado anterior ao Estado, e a liberdade do indivíduo é, por princípio, ilimitada, enquanto a competência [Befugnis] do Estado de intervir nessa esfera é, por princípio, limitada. Em segundo lugar, um princípio de organização (...) o poder [Macht] estatal (por princípio, limitado) é dividido e compreendido em um sistema de competências [Kompetezen] circunscritas (VL, 126; grifos do autor apud FERREIRA, 2004, 130).

Porém, ao mesmo tempo que a liberdade individual é vista como anterior ao próprio

Estado, sendo, portanto, enquadrada entre os direitos fundamentais, estes são fundamentos da

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própria ordem estatal. Isso porque “o Estado encontra o seu ‘direito à existência

[Existenzberechtigung]’ (VL, 164) no fato de que está a serviço da proteção da liberdade

individual” (FERREIRA, 2004, p. 131).

A preocupação do Estado Liberal com as liberdades individuais é tão significativa

que tal concepção do constitucionalismo liberal tem um “princípio de organização” associado

à teoria da divisão dos poderes, cujo escopo é exatamente equilibrar o próprio Estado. Com a

regulação das competências do Estado “o ideal de constituição do liberalismo tentaria recusar

a ‘plenitude do poder estatal’”, visando, outrossim, reprimir o político, que nada mais é do

que “a unidade política de um povo” (VL, 125 apud FERREIRA, 2004, p. 132).

Diante disso, explicita Ferreira:

Enquanto os princípios liberais teriam em vista a limitação do Estado em nome da liberdade individual, a dimensão política da constituição se organizaria em torno de princípios de forma política que teriam por objetivo definir a forma do Estado (Staatsform). Por essa razão, Schmitt acredita que a constituição do Estado de direito é sempre uma “constituição mista”, estruturada segundo princípios contrapostos (2004, p. 132).

Tem-se, assim, uma flagrante controvérsia nas constituições modernas, representada

pela oposição entre liberalismo e espaço político, mas isto tudo com a finalidade de exercer o

controle sobre o Estado, o que se concretiza a partir de normas estabelecidas previamente, a

partir das quais se tem previsibilidade da atuação estatal. Com tais circunstâncias, se levadas

às últimas conseqüências

o constitucionalismo liberal resultaria em uma formalização e neutralização do conceito de “Estado de direito” em um sistema de legalidade estatal que funciona de maneira calculável, sem consideração a conteúdos de fins e de verdade e de justiça (LSTH, 106 apud FERREIRA, 2004, p. 134).

Com isso, então, o Estado de Direito seria “Estado de lei”, pois estaria sob a

“dominação da lei”, a partir do que estaria o indivíduo no limite e na própria razão de ser da

ordem legal. Assim, “onde a lei impera, ‘o legislador está vinculado à sua própria lei, e a sua

competência legislativa não é o meio de uma dominação arbitrária’ (VL, 139)” (FERREIRA,

2004, p. 135).

No entanto, a visão liberal de dominação da lei coloca como certa a “possibilidade de

substituir a soberania do Estado pela soberania da lei”. Existe a crença de ser possível

subsumir a existência estatal em um sistema de normas, cujo resultado seria a “transformação

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da própria constituição na ‘lei fundamental desse sistema de leis’” (FERREIRA, 2004, p.

137). Dessa visão liberal decorre, segundo Schmitt, uma idéia de ficção:

(...) primeiro, constituição nada mais é do que um sistema de normações [Normierungen] legais, segundo, de que esse sistema é fechado, e, terceiro, de que ele é ‘soberano’, ou seja, não pode em ponto algum ser rompido ou sequer influenciado com base nas razões e necessidade da existência [Existenz] política (VL, 131 apud FERREIRA, 2004, p. 137).

Se, por um lado, há uma crítica à visão do sistema de leis como soberano e, por tal

condição, não poder ser rompido mesmo diante de necessidades da existência, não se pode

olvidar de destacar que o sistema normativo concede segurança às relações sociais e jurídicas.

Assim, aceitar a sua modificação por “necessidade da existência” impõe questionar a efetiva

necessidade das alterações normativas.

Sem dúvida, conceber o sistema normativo como “imutável” não parece digno de se

desejar, pois as sociedades, com o passar dos tempos, alteram os comportamentos, a forma de

pensar as relações sociais, econômicas etc. Por conseqüência, as normas que regem tais

modalidades de relações, necessariamente, devem acompanhar tal evolução. A questão,

entretanto, é até qual ponto as modificações legislativas, que ocorrem a partir das proposições

dos componentes do sistema representativo, conforme adiante se comentará, correspondem às

reais necessidades da sociedade. Por outro lado, quais serão os interesses da sociedade? Aqui,

certamente, há grandes conflitos, pois a sociedade não tem interesses uniformes, fato

facilmente perceptível quando se observam, por exemplo, as relações de trabalho, pois

trabalhadores e empregadores posicionam-se notoriamente em lados opostos. Em outros

casos, no entanto, os conflitos não são tão facilmente detectáveis, mas estão, de qualquer

modo, presentes, sendo sempre fatores de influência no parlamento.

Luiz Vicente Vieira também destaca os esclarecimentos de Schmitt quanto ao

esforço do Estado de Direito de “deslocar o conceito político de lei, visando colocar uma

‘soberania da lei’ no lugar de uma ‘soberania existente, concreta’”. Dessa forma, conforme

Schmitt:

Para a concepção do Estado de direito, a lei é, em essência, norma, e uma norma com certas qualidades: regulação jurídica (reta, razoável) de caráter geral. Lei, no sentido do conceito político de lei, é vontade e mandato concretos, e um ato de soberania. Lei em um Estado de princípio monárquico é, por isto, a vontade do Rei; lei em uma democracia, é a vontade do povo; lex est quod populs jussit (SCHMITT. 1992b, 155 apud VIEIRA, 2004, p. 231).

Segundo Vieira:

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O agir do Estado fica condicionado ao pressuposto da lei. O sistema legal passa a ser organizado na Constituição, a qual é, assim, considerada, de acordo com a concepção liberal do Estado, como um limite real ao poder do Estado. Daí a importância dos “freios e contrapesos” constitucionais no funcionamento do Estado (2004, p. 234).

A lei é, assim, para o liberalismo, diretamente relacionada com as noções de Justiça e

Verdade, dissociada, no entanto, da concepção de vontade. Explicita Ferreira, então, “o

conteúdo racionalista de lei da tradição liberal teria como pressuposto a crença em uma

correspondência entre a norma jurídica e as noções de Justiça e Verdade”. Assim, para Carl

Schmitt, “a dissociação entre lei e vontade deriva da imagem de que a lei é em primeiro lugar

‘algo de geral-racional; não é voluntas, mas sim ratio” (VL, 139 apud FERREIRA, 2004, p.

138).

Na relação “voluntas” e “ratio” estaria implícito o contraste entre o ser e o dever-ser,

então, “a validade da lei estaria associada ao fato de que ela seria a expressão de princípios

justos e racionais, ‘que tem validade anterior e acima de qualquer ser político’ (VL, 9)”

(FERREIRA, 2004, p. 138). Contudo, para a lei tornar-se, efetivamente, garantia das

liberdades, ela deve ser “uma norma geral, estabelecida antecipadamente, a partir da qual toda

ingerência na liberdade do indivíduo pode ser concebida como uma ‘exceção regulamentada

de forma geral, por princípio delimitada e mensurável’ (VL, 166)”. Caso assim não seja, a

norma poderá ser “instrumento do arbítrio de uma vontade particular, capaz de discriminar

uns indivíduos em relação a outros” (FERREIRA, 2004, p. 139).

Em vista das brechas possivelmente existentes no sistema legal do Estado de Direito,

Carl Schmitt aborda as ”insuficiências e contradições do conceito liberal de legalidade”,

visando expor os fundamentos ideais do Estado de Direito, criticando, outrossim, os

princípios da ordem jurídico-política liberal ( FERREIRA, 2004, p. 140).

O autor pondera que a aplicação da lei por si só não corresponde à realização da

justiça, tanto assim que uma decisão judicial não é simples conformidade com a lei, ou seja, a

legalidade não basta para legitimá-la, pois desse modo se reduz o juiz a um autômato. A

questão hermenêutica para as decisões justas é de suma importância, havendo justiça apenas

quando a prática jurídica é atividade autônoma (FREUND, 2002, p.54-55). No entanto, nem

sempre, no Estado de Direito, há preocupação quanto a aplicar o direito de forma não restrita

ao conteúdo legal, tanto assim que, conforme referido, confunde-se justiça com norma.

Nesse ponto, surge questão interessante a ser ponderada: a greve de servidores

públicos. Trata-se de um direito assegurado constitucionalmente, embora pendente de

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regulamentação. No entanto, sendo garantia constitucional, admite-se a sua realização,

segundo a justificativa de não se poder reprimir o exercício de um direito constitucional em

virtude da inércia dos legisladores em regulamentá-lo. Por outro lado, tem-se a

inadmissibilidade da paralisação total de serviços considerados essenciais. Nesse ponto, então,

se estabelece o conflito entre direitos, de um lado dos trabalhadores e, de outro, da população

necessitada de tais serviços. Este conflito, em muitos casos, acaba no Poder Judiciário, a

quem cabe dirimir a lide, aplicando a lei, porém, também realizando justiça. Esta tarefa é

extremamente complexa, afinal, como refere Schmitt, nem sempre aplicar a lei corresponde à

realização de justiça.

Mas afinal, por que o legislador não toma as providências legislativas para pôr termo

ao conflito acerca da possibilidade ou não de realizar greve pelos servidores públicos? Talvez

esta seja uma situação clara dos conflitos de interesse que tomam conta do Parlamento,

dificultando a edição de normas para finalizar o embate. Contudo, ao mesmo tempo, parece

favorável que tal situação não seja reduzida à lei, pois permite um campo maior de discussão

e não somente aquele limitado ao conteúdo normativo.

Então, passa-se a expor algumas considerações acerca da situação do Parlamento no

Estado Liberal de Direito, a partir do que se impõe a referência às questões da legalidade e da

legitimidade. Carl Schmitt, em virtude das críticas por ele apresentadas à lógica do Estado

Liberal, permanece sendo autor de referência para o tópico seguinte.

2.2.2 O Parlamento, a Legalidade e a Legitimidade no Estado Liberal

Nesse item, buscar-se-á analisar qual a condição do Parlamento no Estado Liberal de

Direito e como, com base nele, verificam-se as condições das categorias de legalidade e de

legitimidade.

Conforme Schmitt:

O legislador, e o procedimento legislativo por ele empregado, é o último guardião de todo Direito [Rechts], a última garantia da ordem existente, a última segurança e a última fonte de toda a legalidade, a última segurança e a última proteção contra o que não é direito [Unrecht]. O abuso do poder legislativo e do procedimento legislativo tem que permanecer, na prática, fora de consideração (LL, 21 apud FERREIRA, 2004, p.142).

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Explicita Ferreira, então, “a confiança no legislador se apresenta como a garantia de

que a legalidade continue a ser mecanismo de controle do poder, em lugar de se transformar

em um instrumento do seu arbítrio”. Na verdade, segundo ele, “com a formalização da lei, a

racionalidade e a justiça da ordem legal passam a depender da confiança na racionalidade e na

justiça do legislador e do procedimento legislativo”. Tal situação é um processo de

esvaziamento e funcionalização do sistema de legalidade do Estado de Direito, com algumas

implicações relevantes (2004, p. 142).

A primeira diz respeito à assimilação do direito à ordem legal, dando-se a realização

do direito no sistema de legalidade do Estado. Com isso, há um esvaziamento do conteúdo da

legitimidade e a tendência à sua absorção na legalidade, com a “transformação da

legitimidade em legalidade”. Mais do que isso:

A identificação entre lei estatal e direito significaria a eliminação de todas as justificações associadas ao dever-ser da legalidade: as normas legais já não valem pela sua correspondência ao Direito, à Justiça ou à Razão, mas pelo simples motivo de que existem como uma realidade positiva (cf. DarD, 26). Dessa forma, o problema da justificação da ordem legal se reduz à questão da validade de um “mero fato” (DarD, 30, apud FERREIRA, 2004, p.143).

A segunda implicação do laço entre legalidade e direito seria a condição do direito de

estar despojado da capacidade de ordenação do real, porque

quanto mais ‘a lei se tornou um instrumento técnico destinado a tornar calculável o manejo do poder [Macht] do Estado’ (LSTH, 99-100), tanto mais o direito pôde ser concebido como algo de imanente ao funcionamento do sistema de legalidade. Com isso, acredita ele, o direito perde a sua abertura para a realidade concreta, pois vem a ser pensado a partir da ‘ficção normativística de um sistema de legalidade fechado’ (LL, 10), ou seja, da ficção de que seria possível abranger a totalidade das situações concretas no interior da ordem legal (FERREIRA, 2004, p. 144).

Conforme Ferreira, para Carl Schmitt, o fato de o liberalismo crer na possibilidade da

plena realização do direito através do sistema de legalidade faz ser ignorado o problema da

“realização do direito como um processo jamais plenamente concluído de ordenação e

conformação da realidade”. Assim, diante do caráter abstrato do sistema de legalidade, há

“uma tendência à ‘mecanização da concepção do Estado’ (LSTH, 53)”, mecanização que faz

resultar

(...) na imagem de que o Estado nada mais é que um instrumento cuja razão de ser consiste em estar a serviço da liberdade privada dos indivíduos. Assim, a relativização do poder do Estado contida no ideal constitucional do Estado de direito anda par a par com a sua instrumentalização e, finalmente, com a sua tecnificação. (...) À medida que o Estado se transforma em um aparato técnico, ele vem a ser

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objeto de uma concepção incapaz de realizar qualquer mediação entre a realidade imediata da existência social e a sua constituição em uma ordem unitária; de uma concepção que acaba por reduzir a realidade do Estado e da política à “dimensão técnico-organizacional [Technisch-Organisatorischen]” (FERREIRA, 2004, p. 145-146).

O ideal constitucional de Estado, na visão liberal, acaba por gerar todas as

dificuldades apontadas por Carl Schmitt, porque a ordem constitucional caracteriza-se por ser

um conjunto de disposições cujo escopo é controlar o poder do Estado, propiciando, assim,

sua previsibilidade. Então, “a forma do sistema de legalidade do Estado de Direito seria,

portanto, essencialmente não-política” ou, mais precisamente, antipolítica (FERREIRA, 2004,

p. 146).

A terceira implicação do vínculo entre legalidade e direito, para Schmitt, é a

possibilidade de “eliminação da diferença entre lei e medida”, decorrendo disso o extermínio

das garantias oferecidas pelo ideal constitucional liberal, relativamente às liberdades. Pondera

Ferreira:

(...) o esvaziamento da lei em relação aos seus significados substantivos e o predomínio de uma concepção formalista da ordem legal tenderiam a transformar a legislação em um instrumento técnico e reduzir a legalidade ao simples procedimento. Transformada em procedimento, despojada dos seus pressupostos, desvinculada de toda e qualquer associação com o Direito e a Justiça, a legalidade se converteria na mera expressão da maioria parlamentar do momento (2004, p. 147) (grifo nosso).

De fato, a posição de destaque ocupada pelo Parlamento no Estado de Direito o

transforma em Estado Legislativo, sendo este entendido por Schmitt como

un determinado tipo de comunidad política, cuya peculiaridad consiste en que ve la expresión suprema y decisiva de la voluntad común en la proclamación de una especie cualificada de normas que pretenden ser derecho, y las que, en consecuencia, son reducibles todas las demás funciones, competencias y esferas de actividad del dominio público. Lo que, desde el siglo XIX, se ha entendido entre los estados de Europa continental como “Estado de derecho” era, en realidad, el Estado legislativo y, concretamente, el Estado legislativo parlamentario. El lugar preeminente y central que en este Estado ocupa el Parlamento se debe a que éste constituye el “cuerpo legislativo”, que tiene a su cargo la elaboración de estas normas, con toda la dignidad que corresponde al legislador, al législateur (SCHMITT, Legalidad y Legitimidad in AGUILAR, 2001, p. 259).

O Estado legislativo é, assim, um Estado dominado por normas impessoais, gerais e

predeterminadas, com finalidade duradoura e cujo conteúdo é mensurável e determinável,

estando, outrossim, o legislador sem o exercício do poder soberano de interpretar e aplicar as

leis. Tal circunstância, destaca Schmitt, não ocorre apenas com o escopo de limitar os poderes

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dos homens em face da ganância de poder desses, mas porque, no Estado legislativo, não

imperam os homens, mas as leis. Portanto, “la forma específica en que se manifiesta aquí el

derecho es la ley, y la justificación específica del poder coercitivo del Estado es la legalidad”

(SCHMITT, Legalidad y Legitimidad in AGUILAR, 2001, p. 259).

Com tal situação, na verdade, detecta-se a ausência de um verdadeiro Estado

jurisdicional, porque neste, a decisão dos casos concretos, com a manifestação imediata, sem

a mediação de normas gerais e previamente elaboradas, evita “el normativismo de la mera

legalidad”, sendo exatamente a questão de se elaborarem antecipadamente normas de forma

geral e abstrata, com decisões judiciais que meramente as aplicam, característica do Estado de

legalidade. O Estado jurisdicional, por sua vez, conforme expõe Schmitt, parece estar mais

próximo do Estado de Direito, pois nele é o próprio juiz quem pronuncia imediatamente o

direito, prevalecendo este direito frente ao legislador normativo e frente às suas leis. Há,

ainda, outras modalidades de Estado explicitadas por Schmitt, como o “Estado gubernativo” e

o “Estado administrativo”. Tal classificação é posta por Schmitt considerando estados

embasados no princípio da legitimação (SCHMITT, Legalidad y Legitimidad in AGUILAR,

2001, p. 260-262). Porém, na realidade histórica,

Se encuentran continuamente combinaciones y mezclas de estos tipos, porque de cada comunidad política forman parte tanto la legislación como la jurisdicción, el gobierno y la administración. En todo Estado no sólo se ordena y se manda, sino que también se establecen legalmente normas y se administra legalmente con medidas para atender a la gestión de los negocios (SCHMITT, Legalidad y Legitimidad in AGUILAR, 2001, p. 261).

Assim, se a realidade histórica demonstra que os diferentes tipos de Estado

apresentados por Schmitt, na verdade, não existem de forma pura, mas se mesclam, então o

Estado de Direito pode aparecer tanto como um Estado legislativo quanto um jurisdicional, a

questão central está na interpretação feita da expressão “direito”, bem como das organizações

que chamamos de Estado:

Tanto el Estado legislativo como el Estado jurisdiccional pueden hacerse pasar sin más por un Estado de derecho; pero también pueden hacerse pasar por tales todo Estado gubernativo y todo Estado administrativo, si se imponen como misión realizar el derecho, sustituir el antiguo derecho injusto por un nuevo derecho justo y, sobre todo, crear la situación normal, sin la cual todo normativismo es un engaño. La expresión “Estado de derecho” puede tener tantos significados distintos como la propia palabra derecho y como organizaciones a las que se aplica la palabra Estado (SCHMITT, Legalidad y Legitimidad in AGUILAR, 2001, p. 269).

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Nos termos de Ferreira, seguindo Carl Schmitt: “o legislador faz no procedimento

legislativo o que ele quer; é sempre uma ‘lei’ e sempre cria ‘direito’” (LL, 25 apud

FERREIRA, 2004, p. 147). No entanto, diante da redução do direito à questão da legalidade, a

qual passa a ser mera expressão da maioria parlamentar, acaba por haver “negação do próprio

ideal de legalidade do Estado de direito”. Com isso, então, torna-se possível uma vontade

particular e contingente tomar a forma de lei e reivindicar para si a “dignidade e a força

imperativa que uma norma legal possui na ordem constitucional do liberalismo”. Tal

acontecimento é, na verdade, visto por Schmitt como um “desdobramento extremo das

aporias da própria ordem liberal e que estaria contido nas suas premissas individualistas”

(FERREIRA, 2004, p. 148).

Schmitt detecta que as contrariedades existentes no sistema liberal decorrem de dois

fatores simultaneamente: a insustentabilidade e a incapacidade de o liberalismo governar a

realidade política, bem como a condição historicamente ultrapassada diante das condições do

século XX. Afirma Ferreira que, para Schmitt:

A falência das instituições políticas do liberalismo é tanto o resultado das suas contradições internas quanto o produto da sua superação pela história. Mais ainda, a emergência de novas experiências políticas, distintas daquelas que haviam dado o tom dos regimes liberais-parlamentares do século XIX e, em particular, a constituição de democracias de massa teriam tornado evidente o quanto o liberalismo dependia de condições muito especiais de normalidade para se sustentar. Com a formação de democracias de massa, a natureza neutralizadora, despolitizante e, justamente por isso, contraditória da ‘política’ liberal teria se revelado em todo o seu alcance e risco (2004, p. 157).

A preocupação em preservar os aspectos individualistas na ordem liberal é de

extrema importância, tanto assim que há preocupação quanto a não-interferência estatal na

determinação dos rumos de vida do indivíduo, de modo a não ser bem visto o estabelecimento

de valores e padrões de comportamentos. Evitando-se, dessa forma, a “transformação da

liberdade privada em princípio da ordem pública”, porque, “dos pressupostos individualistas

do liberalismo resulta uma ordem constitucional que pretende ser ao mesmo tempo neutra e

aberta, formal e inclusiva” (FERREIRA, 2004, p. 150-151).

Quanto à neutralidade no sistema de legalidade liberal, surge o problema da posição

inconsciente do Estado, ou seja, o fato de não estabelecer diferenciações, tendo-se, assim, a

neutralização da ordem legal, que é uma forma de despolitização, expressada não apenas pelo

não-reconhecimento dos conflitos, mas também pela lacuna na expressão pública dos valores,

evitando, assim, a determinação da ordem e da justificação normativa da existência comum

(FERREIRA, 2004, p.152):

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A transformação da legitimidade em legalidade e a formalização e a neutralização do sistema de normas legais se apresentam, para Schmitt, como as duas faces de um mesmo movimento através do qual a ordem jurídico-política seria privada do seu fundamento de validade. Com isso, direito, lei e legalidade acabam por se transformar em uma mesma função de “concepções aritméticas da maioria” (LL, 28 apud FERREIRA, 2004, p. 152).

O legislador é, portanto, o elemento central da ordem liberal, desempenhando papel

determinante pois é a “garantia de uma correspondência entre a racionalidade da vida social e

a ordem legal e estatal”. Porém, “a confiança no legislador estaria associada a certos

requisitos de normalidade que garantissem à atividade legislativa um terreno homogêneo e a

preservação de sua racionalidade” (FERREIRA, 2004, p. 154).

Em síntese, conforme Ferreira, tem-se o pensamento de Schmitt:

Quando ele afirma que uma constituição que contivesse apenas os dispositivos de segurança da liberdade individual seria impensável; que os princípios do Estado de direito são apolíticos; que, enfim, ‘a liberdade não constitui nada’, está sendo coerente com a idéia, apresentada em O conceito do político, de que não existe uma política liberal, mas apenas uma crítica liberal da política. A seu ver, o liberalismo e o seu projeto de ordem não representam, no fundo, uma ‘idéia política’ ou um ‘princípio de construção político’ (BP, 61), mas sim uma tentativa de suprimir a dominação do homem pelo homem e instituir as bases de uma convivência social pacífica, fundada no exercício irrestrito da liberdade individual (2004, p. 156).

Para Schmitt, a relação entre o liberalismo e o político é significativa, tanto que as

mudanças ocorridas no século XX, especialmente o surgimento das democracias de massa,

proporcionaram a exposição dos aspectos contraditórios da “política” liberal, realçando os

conflitos entre liberalismo e democracia e demonstrando, assim, “o quanto o liberalismo

dependia de condições muito especiais de normalidade para se sustentar” (FERREIRA, 2004,

p. 157-158). Com isso, o Estado passa a estar de forma mais presente na vida social, nela

intervindo. Não há, no processo de democratização, uma distinção precisa entre Estado e

Sociedade, surgindo, assim, alguns fenômenos: a estatização e a despolitização da sociedade,

ferindo, dessa forma, o sistema democrático (FREUND, 2002, p. 30).

Schmitt considera de suma importância a dualidade Estado e Sociedade, pois “a

representação popular, o parlamento, o corpo legislativo foi pensado como o palco no qual a

sociedade se apresentava e fazia frente ao Estado. Aqui ela deveria se integrar no Estado (ou o

Estado nela)” (HV, 74 apud FERREIRA, 2004, p. 161).

A discussão pública através do parlamento é “vista como o instrumento por

excelência de integração da sociedade no Estado”. No entanto, trata-se de discussão cujo

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objetivo é “encontrar o justo e o verdadeiro através do confronto de argumentos e contra-

argumentos”. Para isso, ressalta Carl Schmitt a necessidade de uma postura imparcial, na qual

os interesses egoísticos não prevaleçam (GLhP, 9 apud FERREIRA, 2004, p. 162). Segundo

ele:

o parlamento deve ser o palco de um processo de comutação, por meio do qual a multiplicidade de contraposições, interesses e opiniões sociais, econômicas, culturais e confessionais se transforma na unidade da vontade política (HV, 87-88 apud FERREIRA, 2004,p. 164))

A partir das discussões e debates ocorridos no parlamento, manifesta-se sua condição

de representante do país, promulgando, em face dessa condição, as normas gerais, segundo as

quais é regulada a vida no Estado. Então se vê a relevância do papel desempenhado pelo

parlamento, sendo “lugar de transformação da lei em uma expressão da capacidade de

autodeterminação racional da sociedade”. Trata-se da manifestação da vontade geral do povo,

“forma por excelência de emancipação da sociedade em relação ao poder do Estado”

(FERREIRA, 2004, p. 164). Com tais aspectos, a “dominação da lei longe de ser algo que se

imporia de fora, sobre a vida social, se apresentaria com um fato surgido dela mesma”,

decorrendo disso “a crença na possibilidade de uma emancipação em face do Estado e das

relações de poder, realidades exteriores e estranhas à dinâmica auto-regulada da sociedade”

(FERREIRA, 2004, p. 165).

Observados tais aspectos do parlamento liberal, poderia concluir-se que o indivíduo

liberal é orientado pela razão, renunciando às suas preferências particulares e deixando-se

“persuadir pela evidência do justo e verdadeiro” (FERREIRA, 2004, p. 165). Não há dúvidas

de o sistema parlamentar, por se caracterizar como uma assembléia eleita pelo povo com os

seus representantes, pode ser visto como democrático, pois é “capaz de realizar uma mediação

entre a vontade do povo manifestada diretamente através das eleições e o exercício do poder”

(FERREIRA, 2004, p. 169). Trata-se, assim, de um instrumento para expressão da opinião

pública. Dessa forma, afirma Schmitt:

enquanto todas as concepções políticas e da teoria do Estado estiveram dominadas pela luta contra um governo não-democrático, é natural que a concepção do governo como algo que se subordina à representação popular fosse considerada democrática. Assim, se construiu uma dupla relação de supra-ordenação e subordinação [Über-und Unterordnung]: o povo (os eleitores com direito de voto) está acima da representação popular (o parlamento), a representação popular acima do governo (VL, 266 apud FERREIRA, 2004, p. 169).

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Conforme esclarece Ferreira, o parlamentarismo, primeiramente, teria cumprido a

tarefa de “integrar ao Estado monárquico então existente a burguesia, ou seja, o grupo da

população caracterizado por dois traços distintivos: propriedade e cultura [Bildung]”.

Contudo, com as transformações ocorridas no século XIX (a formação das democracias de

massa) a função parlamentar teria deixado de promover a integração da burguesia, para

“integrar em uma unidade política o proletariado, uma massa não-proprietária e não-

cultivada”. Assim, alteradas as condições históricas, a partir das quais o parlamentarismo

obteve sucesso, aponta Ferreira para a situação de crise das instituições parlamentares:

Nesse novo contexto, noções que, ao longo da bem-sucedida trajetória dos sistemas parlamentares do século XIX, teriam se aproximado precisariam ser dissociadas. Tal seria o caso de idéias como liberalismo, parlamentarismo e democracia. O quadro que Schmitt irá traçar da crise da ordem parlamentar toma como referência o esgotamento da sua efetividade histórica, a perda da sua ‘força de convencimento’ e procura pensar a emergência do povo democrático em evidente contraposição à sociedade liberal’. (...) Sendo assim, a perda da efetividade histórica parlamentar se deveria à impossibilidade de sustentar a posição intermediária da burguesia liberal e ao fato de que a sua metafísica do compromisso ‘não está à altura de uma época de lutas sociais’ (PT, 64 apud FERREIRA, 2004, p. 171).

A perda da efetividade do parlamentarismo está atrelada às dificuldades enfrentadas

pelo próprio liberalismo, vítima de suas premissas ao buscar a criação de condições

institucionais para a expansão da liberdade individual (FERREIRA, 2004, p. 172).

Os pressupostos individualistas, segundo Schmitt, teriam origem na própria ordem

liberal em face da sua abstração e do formalismo. A abstração resulta da idéia do “homem

individual livre”, este “entendido como uma realidade anterior à existência social e

independente de determinações históricas e sociais concretas”. Tal compreensão do homem

livre faz a ordem liberal desligar-se das condições concretas da vida em sociedade em nome

da garantia da liberdade individual e igualdade universal, tendendo a “assumir um caráter

cada vez mais formal” (FERREIRA, 2004, p. 174-175). Logo,

para permanecer fiel ao seu propósito de preservação de uma esfera de liberdade individual irrestrita e anterior ao Estado, esta ordem vem a ser concebida como um conjunto de procedimentos e reduzida a regras do jogo que, por princípio, não podem excluir nenhum jogador. A sua formalização implicaria não só um esvaziamento de conteúdo, mas também um progressivo distanciamento em relação às condições sociais e históricas da sua própria criação. Dessa forma, para Schmitt, a ordem liberal assumiria um caráter auto-referido, ignorando o problema da exceção e da situação anormal (FERREIRA, 2004, p. 175).

A importância conferida à formalidade do Estado Liberal traz à tona a questão do

desempenho do papel educativo dos movimentos sociais e do espaço de atuação destes. Se a

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ordem liberal é cada vez mais impregnada de aspectos formais, representados pelas leis

promulgadas pelo Parlamento, o conteúdo das ações dos movimentos sociais resta totalmente

irrelevante, conferindo-se importância apenas ao procedimento, se atende ou não às regras do

jogo. Verifica-se, assim, claramente, a dissociação entre as condições sociais e históricas e a

posição do Estado Liberal diante dos conflitos, o qual mantém firme o propósito de

observância das regras existentes.

Observa-se, então, que o papel da ordem legal seria tornar previsível a atividade

estatal, de modo a estar abrangida por “uma teia de normas capazes de reger o conjunto da

vida política de acordo com a lógica de uma funcionalidade operacional”. Trata-se, segundo

Ferreira, de uma crença “na possibilidade de eliminação do arbítrio humano”, o que resulta na

coisificação do sistema de legalidade, ou seja, na “imagem de que em lugar do governo de

homens sobre outros homens, existiria um governo de normas que se aplicariam, se

interpretariam e se sancionariam a si mesmas” (FERREIRA, 2004, p. 177).

A sociedade “é o lugar por excelência da produção da ordem”, a qual “surge da

própria dinâmica da vida social como o produto espontâneo das interações que os indivíduos

estabelecem uns com os outros”. Com tal entendimento, reforça-se a concepção de que “a

política e o Estado poderiam ser, se não suprimidos, pelo menos reduzidos a um mínimo

indispensável” (FERREIRA, 2004, p. 177-178). Schmitt, no entanto, entende que “na

realidade social não existe ordem [Ordnung] sem supra-ordenação e subordinação [Über-und

Unterordnung]”. Assim, “a constituição é a forma particular de dominação [Herrschaft] de

cada Estado (VL, 5; grifo do autor, apud FERREIRA, 2004, p. 179-180). O autor destaca

estar a ordem liberal fundada em um dualismo estrutural, o que lhe acarreta problemas.

Conforme coloca Ferreira:

Ele reproduziria a dissociação entre realidade e pensamento, sujeito e objeto, real e ideal, ser e dever-ser característica da experiência moderna do mundo, dando uma ênfase unilateral a um dos pólos da oposição. Assim, na ordem liberal, as regras abstratas do direito se opõem às relações concretas de poder, a universalidade da lei ao particularismo da medida, a racionalidade da vida social à irracionalidade da dominação estatal, o dever-ser da norma jurídica ao ser da realidade política, o caráter geral da ratio à natureza circunstancial da voluntas (2004, p. 180).

Em decorrência dessas circunstâncias, Schmitt aponta para a crise do sistema liberal,

segundo ele, diretamente associada à crise do sistema constitucional da República de Weimar.

Entretanto, sua análise não está limitada às questões conjunturais da República de Weimar,

pois ele defende, conforme expõe Ferreira, que “os impasses da política alemã se confundem

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com as aporias do racionalismo liberal e estas, por sua vez, não se distinguem do problema do

político na modernidade” (2004, p. 193).

As mudanças ocorridas com as modernas democracias de massa introduziram

questões ao liberalismo que este imaginara ser capaz de solucionar. Bernardo Ferreira

apresenta o pensamento de Schmitt no tangente às suas considerações relativamente às

deficiências da ordem liberal, ou seja, à “incapacidade do liberalismo de governar a vida

política”, porque há incapacidade “de relativizar os antagonismos internos surgidos com a

politização democrática da vida social”. Na verdade, a neutralidade despolitizante e a crítica

do Estado formulada pela ordem liberal agravam dita incapacidade, que seria mais facilmente

perceptível pelo “esgotamento da ‘força da idéia parlamentar’” (2004, p.194):

Como já sabemos, na análise de Schmitt, a sobrevivência da ordem parlamentar depende da possibilidade de manter em suspenso o problema da decisão. O parlamentarismo, nos diz ele, pressupõe a idéia de que, através da discussão pública, as coisas podem se resolver e se decidir por si mesmas. Além disso, o parlamento, em tese, representaria o conjunto da nação e não apenas uma parte dela, o parlamentar agiria em nome da “vontade geral” e, na condição de representante do todo, estaria disposto a se deixar convencer pela evidência do melhor argumento. Segundo Schmitt, essas crenças teriam sido a principal fonte do prestígio do sistema parlamentar. Porém, com a emergência das democracias de massa já não seria possível sustentá-las (FERREIRA, 2004, p. 194).

Os elementos que dão conta da chamada crise do parlamentarismo são vários,

especialmente por ter-se o parlamento transformado em um campo meramente formal.

Schmitt destaca que, na verdade, o lugar de debate ocupado pelo parlamento passou a ser

mera formalidade, pois as decisões relevantes são tomadas em comissões, ou nos escritórios

dos partidos políticos, antes de serem expostas no parlamento. Afirma Ferreira:

O debate público cede lugar a um governo de antecâmara e, com o predomínio das máquinas partidárias e dos interesses econômicos, torna-se cada vez mais difícil sustentar a imagem do parlamento como uma representação da “vontade da nação” (2004, p. 194).

Diante dessa constatação, o parlamentar deixa de ser verdadeiramente representante

do todo e independente para deliberar conforme a sua consciência e razão, passando a

apresentar-se como “um agente do partido e dos seus acordos e decisões extra-parlamentares”.

Afirma Schmitt, assim, que “as decisões essenciais são tomadas fora do parlamento”, sendo

este apenas “um escritório para a comutação técnica na máquina administrativa do Estado”

(VEL, 319 apud FERREIRA, 2004, p. 195). Diz Ferreira:

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(...) ao ser despojado da “crença ideal” (GLhP, 9) que o sustentava, o parlamento se converte numa “maquinaria artificial” (GLhP, 23) e o que era “uma instituição dotada de uma verdade evidente se transforma num mero meio prático-técnico” (GLhP, 13) (2004, p. 195).

Com isso, então, muitas leis podem ser promulgadas sem representarem efetivamente

os anseios sociais, sendo, pois, meros instrumentos para o alcance de interesses particulares

de uma minoria, com a qual os parlamentares estão comprometidos. Isso denota, portanto, que

em muitos casos, mesmo frente às ações dos movimentos sociais contra um determinado

projeto de lei, dificilmente estes terão força suficiente para retirá-lo da pauta de votação do

parlamento. Com o caso da Reforma da Previdência Social de 2003, tal situação é visível na

medida que os movimentos sociais, especialmente relacionados aos servidores públicos,

principais atingidos por tal reforma, não obtiveram êxito na tentativa de retirar a então PEC

40 de votação. Concretamente, tem-se o caso do ANDES-SN e de todas as medidas tomadas

ao tempo da tramitação da referida reforma, conforme será demonstrado no próximo capítulo.

Diante da situação parlamentar, verifica-se a crise da democracia, pois esta, segundo

Schmitt, não pode ser definida a partir da existência do voto universal, visto este servir para

promover a igualdade perante a lei, e não igualdade substancial, que seria “o pressuposto

essencial da democracia” (VL, 235 apud FERREIRA, 2004, p. 200). Assim, “a extensão do

direito de voto e a ampliação progressiva do número de cidadãos seriam expressões de uma

igualdade presumida entre membros de um povo, jamais o seu conteúdo” (FERREIRA, 2004,

p. 200).

A relação entre democracia e igualdade surge, ainda, quando Schmitt destaca,

segundo Ferreira, que

a democracia não se resume a suas práticas institucionais e regras de procedimento, ela pressupõe uma realidade substantiva anterior, da qual aquelas instituições e procedimento seriam, em última análise, derivadas. Tal seria o caso da identidade entre governante e governado na democracia. Para Schmitt, ela não é o mero resultado das normas de funcionamento da vida política, mas a expressão de um dado real, ou seja, “da identidade englobante do povo homogêneo” (VL, 235). No caso extremo da “democracia pura ou direta” (cf. VV e VL), esta identidade encontraria a sua realização máxima na “presença imediata (VL, 206) do povo (FERREIRA, 2004, p. 201).

Para Schmitt, a efetiva participação do povo se dá com sua “presença imediata”,

sendo o voto nada mais do que mero “procedimento de adição” (VV, 35), pois não representa

uma forma efetiva de expressão do povo, a qual apenas se dá com “o grito de aprovação ou

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recusa da multidão reunida, a aclamação” (VL, 83, cf. tb. VV, 34-35). Conforme ressalta

Ferreira:

Na aclamação, o povo alcançaria o mais alto grau de identidade possível (cf. VL, 243), ao tornar manifesta uma vontade unívoca de um coletivo de fato existente – concretamente reunido em assembléia ou sob a forma da moderna opinião pública. Já a absolutização dos métodos eleitorais da democracia liberal desembocaria na tentativa de circunscrever e conter as possibilidades de expressão política da vontade popular no interior de uma funcionalização normativa (2004, p. 202).

A “presença imediata” dos movimentos sociais, como diz Schmitt, seria

perfeitamente possível caso não estivessem atrelados à ordem legal, no entanto, é a existência

das normas que lhes concede algumas garantias desejáveis. Exemplo disso são os movimentos

sindicais que, protegidos pela sua formalização, tornam-se reféns dela, vendo suas ações

reivindicativas completamente sem efeitos porque submetidos a mecanismos formais, ou seja,

dependentes da mediação da estrutura parlamentar.

Exatamente essa ambigüidade decorrente da lógica do Estado de Direito, é destacada

por Vieira da seguinte forma:

Pois, de um lado, com a emergência da idéia de Estado de direito, podemos desfrutar de inúmeras vantagens, não só em relação à liberdade individual, como também da oportunidade de os grupos sociais se manifestarem e virem a participar da vida do Estado, mediante a garantia jurídica de um espaço livre de atuação. De outra parte, no entanto, pelo fato de os mecanismos jurídicos, que estruturam o Estado de direito, consistirem apenas em “mecanismos formais e técnica de organização”, na expressão de Hermann Heller, ele poderá vir a servir indistintamente a objetivos e interesses diversos (2004, p. 143).

A questão da legalidade destaca-se no Estado de Direito, estando, junto com ela, a

questão da legitimidade. O sistema parlamentar, por ser adotado sob a roupagem da

legalidade, tem as normas editadas a partir do Parlamento consideradas, já que legais, como

legítimas. Trata-se, conforme expõe Flickinger, da “identificação da legitimidade dos

conteúdos materiais com a legalidade do procedimento” e, mais do que isso, de impulsos

legítimos que se vêem dissolvidos pelo manejo legal (2003, p. 144). Tem-se, assim, a

desvinculação dos aspectos materiais, enfatizando-se as questões formais, de legalidade. Em

vista disso, então, pondera Flickinger:

Qualquer que seja o objetivo concreto visado pelas suas intervenções, os movimentos sociais posicionam-se em atitude de enfretamento contra os limites do sistema vigente da legalidade, o que impede, ou pelo menos dificulta sobremaneira o reconhecimento legal da legitimidade material de novas demandas sociais emergentes (2004, p. 156).

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A aproximação entre legalidade e legitimidade decorre da identificação do direito à

legalidade estatal, conforme diz Ferreira: “a progressiva assimilação do direito à ordem legal

teria como conseqüência um esvaziamento do conteúdo da legitimidade e a tendência à sua

absorção na legalidade(2004, p. 143). Da aproximação entre a lei estatal e o direito, ou seja,

da identificação entre ambos, há

a eliminação de todas as justificações associadas ao dever-ser da legalidade: as normas legais já não valem sua correspondência ao Direito, à Justiça ou à Razão, mas pelo simples motivo de que existem como uma realidade positiva (cf. DarD, 26 apud FERREIRA, 2004, p. 143).

A aproximação da legitimidade à legalidade decorre da própria lógica do liberalismo,

que considera ter o legislador um papel determinante, capaz de garantir “uma correspondência

entre a racionalidade da vida social e a ordem legal e estatal” (FERREIRA, 2004, p. 154).

Ademais, porque “direito, lei e legalidade acabam por se transformar em uma função de

‘concepções aritméticas da maioria’ (LL, 28)”. Trata-se do “princípio da chance

incondicionalmente igual para todas as opiniões, direções e movimentos concebíveis

alcançarem essa maioria” (LL, 30; grifos do autor apud, FERREIRA, 2004, p. 152). Afirma

Ferreira, então:

Este princípio seria a garantia de que a vontade política e a sua expressão suprema, a legalidade, se formariam em um sistema de livre concorrência e sem a exclusão prévia de qualquer participante em potencial. Porém, para que semelhante “princípio de justiça material” seja efetivo, é preciso pressupor que o exercício do poder legislativo se manterá dentro dos limites previstos na idéia de igualdade de chance, ou seja, é preciso pressupor que cada concorrente, uma vez no poder, respeitará o direito alheio de participar em igualdade de condições de competição política. Somente assim seria tolerável a renúncia ao direito de resistência por parte da minoria derrotada. Em última análise, para Schmitt, a legalidade liberal só se sustenta na medida em que encontra condições políticas favoráveis, isto é, condições que não ponham em xeque os seus próprios princípios e a idéia de normalidade a eles associada (2004, p. 153).

Caso não haja o respeito à igualdade de chance, é perfeitamente possível e legal, que

a maioria de 51% reduza as chances da minoria alcançar o poder. É o que refere Flickinger:

O simples fato de a maioria dispor de 51% dos votos faria com que essa lei devesse ser respeitada enquanto legítima, embora a idéia da democracia se fundamente na igual chance de todas as correntes políticas de chegar ao poder. Quantas vezes já se percebeu o abuso da maioria parlamentar visando manter-se no poder! (2003, p. 65).

Carl Schmitt destaca essa questão afirmando:

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El requisito de una cantidad de votos a añadir a la mayoría simple no puede, pues, justificarse con principios democráticos y menos aún con la lógica de la justicia, de la humanidad y de la razón, sino solamente mediante consideraciones de carácter técnico y práctico sobre la situación actual. Toda democracia, incluyendo la parlamentaria, descansa fundamentalmente sobre el presupuesto de la homogeneidad plena e indivisible. Como se ha dicho, el único sentido del escrutinio es servir de medio para verificar una conformidad, no para declarar una victoria opresora de la mayoría, sino para descubrir la unidad que siempre tiene que existir en un estrato más profundo, sin la cual se acabaría la democracia (SCHMITT, Legalidad y Legitimidad in AGUILAR, 2001, p.282).

Observa-se, assim, a relação entre liberalismo e democracia e a vinculação destes ao

sistema parlamentar, porque o último “contenta-se com o respeito às formas legais do

procedimento, aceitando os resultados como conteúdo por si legítimos”(FLICKINGER, 2003,

p. 65).

Da questão da legalidade e da legitimidade no Estado de Direito nascem algumas

ponderações de Vieira quanto às ambigüidades desse modelo estatal, especialmente em face

do surgimento incontrolável das desigualdades sociais:

Se a conexão estabelecida por este conceito de estado entre legalidade e legitimidade, como foi indicado anteriormente, consegue até certo ponto apresentar-se como um remédio contra a arbitrariedade e o uso abusivo do poder pelos seus titulares, na contrapartida, porém, a restrição da ação do estado à mera formalidade do agir e à própria dependência do Estado da lógica imanente da Economia, tem permitido o crescimento incontrolável das desigualdades, o qual resulta num incontido processo de exclusão social. A partir dessa observação é que se atinge a problemática que encerra a restrição da idéia do estado de direito enquanto simples caráter técnico-formal, sem referência a valores substanciais. Uma vez que o mesmo torna-se impotente e incapaz para realizar uma mínima justiça material que pudesse conduzir à solução de suas crises recorrentes (2004a, p. 33).

Tem-se, pois, a condição “superior” da legalidade em detrimento da efetiva

concretização dos interesses sociais, não obstante estejam estes assegurados enquanto direitos

pelas mesmas leis. Nota-se, pois, a ambigüidade na própria legalidade, verificando-se a sua

incapacidade de dar conta, no mundo dos fatos, de todos os aspectos que detém formalmente,

ou seja, por exemplo, embora garanta direitos sociais, não consegue dar efetividade a eles.

Em face da estrutura do Estado Liberal de Direito, então, destaca Vieira a existência

de uma tensão em suas estruturas, acabando por gerar efeitos no campo do agir político, pois

“o Político pode ser tanto identificado como a esfera da eticidade, onde ocorreria a

legitimação substancial de posições, da mesma forma que pode ser reduzido à mera legalidade

do procedimento”. No caso da redução do político à legalidade, esta se torna o único critério

de legitimidade, criando problemas aos movimentos sociais, visto não serem “reconhecidos

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enquanto portadores de uma função política objetiva”, embora “independente dos interesses e

demandas particulares que eles representam, perseguem continuamente esta intenção, qual

seja, de se tornarem fatores de articulação ao que ainda não foi dado voz em nível político”

(2004a, p.36).

Observa-se, portanto, a condição delicada em que se encontram os movimentos

sociais pois, embora dotados de caráter educativo, com uma visão transformadora, vêem-se

atrelados à legalidade e alijados do caráter político.

No capítulo seguinte apresentam-se os efeitos da Reforma Previdenciária de 2003,

analisando-se as suas conseqüências para os servidores públicos que já se encontravam no

quando de pessoal na época, bem como as regras que incidem para aqueles que ingressaram

no serviço público a contar da aprovação da EC nº41. Além disso, faz-se um estudo acerca

das ações implementadas pelo ANDES-SN, na época desta reforma, objetivando impedi-la,

avaliando-se, outrossim, os seus efeitos e, a partir disso, à luz das considerações apresentadas

neste capítulo, será viabilizada a avaliação acerca dos eventuais efeitos do Estado Liberal.

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CAPÍTULO 3

A Reforma da Previdência Social de 2003, a Associação Nacional dos Docentes de

Ensino Superior – Sindicato Nacional (ANDES-SN) e as implicações do Estado Liberal

de Direito

Nesse capítulo analisar-se-á a Reforma da Previdência Social de 2003, representada

pela EC nº41, bem como serão feitas algumas considerações acerca da Emenda Paralela, EC

nº47/05. Apresentar-se-á, brevemente, a Reforma da Previdência Social de 1998,

implementada pela Emenda Constitucional nº20, na época do governo de Fernando Henrique

Cardoso, a fim de viabilizar a explicitação dos principais efeitos da Reforma Previdenciária

posterior, em relação aos servidores públicos.

Considerando as suas conseqüências, a partir dos relatórios do Conselho da

Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior – Sindicato Nacional (ANDES-SN) e

outros documentos, será explicitado o entendimento desse sindicado quanto ao conteúdo da

proposta de emenda constitucional (PEC 40, que culminou na Emenda Constitucional

nº41/03), bem como as medidas tomadas na defesa dos interesses da categoria.

A partir dessas análises verificar-se-á o resultado das ações do ANDES-SN quanto

ao atendimento das eventuais reivindicações realizadas e, a partir disso, as possíveis

influências da lógica do Estado Liberal.

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3.1 A Previdência Social e a Emenda Constitucional nº41/2003

Relativamente à questão previdenciária, é importante destacar que o sistema

previdenciário brasileiro – compreendendo tanto o Regime Geral de Previdência Social,

aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada, como os Regimes Próprios, relativos aos

servidores públicos – vem sofrendo ao longo dos últimos anos algumas alterações,

especialmente acerca dos requisitos para a concessão dos benefícios, principalmente das

aposentadorias, visando retardar a possibilidade de os segurados inativarem-se, pretendendo,

assim, mantê-los como contribuintes a fim de atenuar a causa apontada como responsável pela

necessidade das reformas: o déficit financeiro da Previdência Social.

Em 1998, foi implantada a primeira Reforma Previdenciária de maior vulto, com

reflexos tanto para os servidores públicos, como para os trabalhadores da iniciativa privada.

Através dela, representada pela Emenda Constitucional nº20, de 15.12.1998, inúmeros

obstáculos foram impostos para a concessão das aposentadorias em ambos os regimes

previdenciários.

Em 2003, houve uma segunda Reforma Previdenciária, pela Emenda Constitucional

nº41, de 19.12.2003, a qual trouxe diversos outros obstáculos para obtenção das

aposentadorias, bem como regras aplicáveis para os já aposentados e aos futuros pensionistas,

entre outras disposições, sendo praticamente todas incidentes sobre a condição dos servidores

públicos.

Este subcapítulo tem por foco a Emenda Constitucional nº41/03, a qual terá os seus

efeitos analisados em relação aos atuais e aos futuros servidores públicos. Mas, antes disso,

deve-se proceder a um brevíssimo retrospecto quanto às exigências legais para a concessão da

aposentadoria aos servidores públicos, pois apenas dessa forma será possível apreciar as reais

conseqüências do novo ordenamento implantado.

Veja-se que, até a promulgação da Emenda Constitucional nº20, a concessão da

aposentadoria para os servidores públicos poderia ser por idade ou por tempo de serviço. A

por idade dependia do alcance de 65 anos para os homens e 60 anos para as mulheres, sendo

os proventos da inatividade apurados conforme o tempo da prestação de serviço. Por tempo de

serviço, poderia ser com proventos integrais, equivalentes ao salário do último cargo ocupado

pelo servidor, com 35 anos de serviço para os homens e 30 anos de serviço para as mulheres

ou proporcional, sendo os proventos apurados conforme o tempo de serviço, no mínimo de 25

anos para mulheres e 30 anos para os homens. Além disso, havia a aposentadoria especial,

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com proventos integrais para os professores de ensino infantil, fundamental, médio e superior

quando atendidos 30 anos de serviço pelos homens e 25 anos pelas mulheres.

A partir da Emenda Constitucional nº20, de 15.12.1998, as regras foram

substancialmente alteradas, destacando-se a exigência de tempo de contribuição e não mais de

tempo de serviço. Com isso, ganhou destaque um dos princípios que rege o sistema

previdenciário: o da contributividade.

A possibilidade da aposentadoria por idade, aos 65 anos para os homens e 60 para

mulheres, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição (não mais sendo adotado

como critério o tempo de serviço) restou mantida. Quanto à aposentadoria cujo único critério

era o tempo de serviço, passou a ser por tempo de contribuição e a exigir alguns pressupostos

de forma cumulativa. Ou seja, além do tempo de contribuição de 35 anos para os homens e 30

para as mulheres exigiu-se a idade mínima de 60 anos para os homens e 55 anos para as

mulheres, com 10 anos de efetivo exercício no serviço público e, ainda, 5 anos no mesmo

cargo. Manteve-se a aposentadoria especial dos professores, ou seja, a redução de 5 anos em

relação à idade e ao tempo de contribuição necessários, contudo, não mais para todos os

professores, mas apenas para os que desenvolvem atividade na educação infantil, ensino

fundamental e médio, excluindo-se os professores universitários do rol de beneficiários da

aposentadoria especial.

Como antes da EC nº20/98 as exigências para a concessão da aposentadoria aos

servidores públicos não apresentava maiores restrições e, após a norma constitucional novas

exigências foram inseridas no texto legal, foi adotado um sistema de regras de transição, pelo

qual disposições intermediárias foram fixadas aos servidores públicos em atividade ao tempo

da promulgação da emenda (em 15.12.1998), ou seja, esses servidores poderiam optar por

cumprir as novas normas – muitas vezes extremamente oneroso em relação ao tempo que

ainda deveriam trabalhar – ou observar a regra de transição.

A regra de transição dispunha que os homens deveriam atender cumulativamente

idade mínima de 53 anos, 35 anos de contribuição, 5 anos de efetivo exercício no cargo em

que se daria a aposentadoria e, ainda, pedágio de 20%. Segundo o sistema de pedágio, o

servidor deveria apurar, ao tempo da promulgação da emenda (15.12.98), quanto tempo

faltava para completar os 35 anos exigidos para a inativação e, sobre o tempo faltante,

acrescer 20%. Assim, por exemplo, se faltavam 5 anos para o servidor completar os 35

exigidos aumente-se aos 5 anos 20%, resultando na majoração de mais 1 ano de tempo de

contribuição, sem prejuízo dos demais requisitos. Para as mulheres, os pressupostos centrais

são os mesmos, exigindo-se apenas, em relação à idade e ao tempo de contribuição, 5 anos a

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menos, ou seja, 48 anos de idade e 30 anos de contribuição, além dos 5 anos no cargo e

pedágio de 20%.

A EC nº20 extinguiu a aposentadoria especial para os professores universitários,

contudo, a fim de não prejudicá-los de forma absoluta, fixou uma regra para o tempo de

exercício de magistério anterior a 15.12.98 computado com acréscimo de 17% para os

homens e 20% para as mulheres.

Quanto à aposentadoria com proventos proporcionais, foi mantida pela EC nº20/98,

contudo, neste caso, o pedágio fixado foi de 40%, mantendo-se as exigências da idade de 53

anos para os homens e 48 para as mulheres, 35 anos de contribuição para os homens e 30 para

as mulheres, além de 5 anos no cargo.

A reforma levada a efeito pela Emenda Constitucional nº20, nos termos sucintamente

colocados, trouxe grande polêmica no serviço público em vista da imposição de, mesmo os

servidores já em atividade, se sujeitarem às novas regras (exceto aqueles que tivessem

alcançado completamente os pressupostos vigentes anteriormente, protegidos pela garantia do

direito adquirido). Não faltaram vozes na época, especialmente as de oposição ao então

Governo de Fernando Henrique Cardoso, para opor-se aos termos da reforma. Enquanto isso,

a corrente governista apresentava, como justificativa para sua implantação, o déficit do

sistema previdenciário dos servidores públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada

(Regime Geral de Previdência Social), também submetido a alterações na época, não

comentadas por não serem objeto de análise do presente estudo.

Como se vê das sucintas colocações até aqui realizadas, a EC nº20/98 teve, como

principal elemento norteador, a implantação de mecanismos pelos quais os servidores

públicos permanecessem mais tempo em atividade, evitando-se, assim, aposentadorias

prematuras, onerosas para o sistema previdenciário por ter de efetuar o pagamento de um

benefício a quem ainda se encontra em plena capacidade laborativa. O peso de situações como

essa fica ainda mais evidente quando se observa, na sociedade atual, o alargamento da

expectativa de vida, fazendo, em muitos casos, o segurado perceber o benefício por um tempo

até mesmo superior ao que contribuiu. No entanto, prejudica-se substancialmente aqueles

trabalhadores que começam a atividade produtiva mais cedo, pois a esses, impondo-se o

requisito da idade mínima, alarga-se demasiadamente o tempo de atividade.

A Emenda Constitucional nº41, objeto de análise deste capítulo, promulgada no ano

de 2003, já na era do Governo Lula, teve, tal qual a EC nº20, como principal argumento

motivador para a sua proposição a questão relativa ao equilíbrio financeiro do sistema

previdenciário, sendo aplicável quase exclusivamente aos servidores públicos, ao contrário da

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anterior, que dispunha tanto a respeito do Regime Geral de Previdência quanto em relação ao

Regime Previdenciário dos Servidores Públicos.

A proposta de Reforma Previdenciária, enviada ao Congresso Nacional em 30 de

abril de 2003, era a concretização da “Carta de Intenções”, de fevereiro de 2003, na qual o

Governo Lula ratificou o acordo firmado com o Fundo Monetário Internacional em setembro

de 2002 pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Nesse acordo o Brasil

comprometia-se a realizar rapidamente as reformas tributária, financeira e da previdência27.

Diante das evidências do pacto firmado, vê-se que a reforma talvez não tenha priorizado os

interesses da nação brasileira, antes disso, visou atender as exigências internacionais,

impostas pelo FMI:

A proposta de ‘Reforma da Previdência’, portanto, não vem desvinculada de um contexto e de um conjunto de outras medidas, que possa relegá-la à condição de equívoco isolado, a ser desfeito mediante convencimento de seus proponentes e de eventual proposição de emendas. A ‘Reforma’ é peça inaceitável que se coaduna perfeitamente com um programa de governo que tem, até agora, exacerbado agudamente tudo o que antes vinha sendo feito. Jamais FHC propôs um esforço fiscal para pagamento da dívida como o divulgado pelo governo Lula. Tampouco veio à luz até hoje uma ‘Reforma’ que promovesse um tal desmonte do serviço público, incluído aí o respectivo impacto na pesquisa e no ensino, em todos os graus.28

A fim de proporcionar o conhecimento das conseqüências da EC nº41 é relevante

apresentar alguns itens de maior repercussão, relativos aos critérios de concessão dos

benefícios e cálculo dos proventos. Em termos de inovações, a EC nº41 trouxe para os novos

servidores públicos o fim da integralidade dos proventos de aposentadoria, ou seja, a

importância a ser percebida durante a inativação não será idêntica ao último salário recebido

no cargo em que estava o servidor em atividade. Ademais, terminou a paridade entre ativos e

inativos, ou seja, a desvinculação dos reajustes dos proventos de aposentadoria daqueles

concedidos para os servidores em atividade, devendo tudo ser disciplinado em lei específica.

O argumento apresentado para as novas medidas diz respeito ao tratamento

igualitário entre trabalhadores vinculados ao Regime Geral de Previdência Social (INSS) e

servidores públicos, já que aqueles recebem suas aposentadorias em valores calculados a

partir da média de suas contribuições, e quanto aos reajustes dos benefícios inexiste

27 FERREIRA JÚNIOR, Amarílio et alii. A Reforma da Previdência do governo Lula in Cadernos de Textos: Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória - ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 213. 28 FERREIRA JÚNIOR, Amarílio et alii. A Reforma da Previdência do governo Lula in Cadernos de Textos: Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória - ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 214.

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vinculação em sua concessão, sendo o critério a preservação, em caráter permanente, do valor

real do benefício.

No entanto, a extinção das vantagens da paridade e da integralidade trouxe ao serviço

público o grande problema existente para os trabalhadores da iniciativa privada, qual seja o de

se inativarem com um determinado padrão de remuneração e, ao longo do tempo, verem-se

com os proventos achatados, pois os reajustes concedidos aos aposentados, via de regra, são

irrisórios, não dispondo estes sequer de meios de pressão para a cobrança de percentuais

maiores, embora em muitos casos, mesmo com instrumentos de pressão como a greve, os

servidores em atividade nada (ou quase nada) obtenham.

A questão do cálculo das aposentadorias de forma proporcional às contribuições

realizadas parece extremamente coerente com o caráter contributivo da Previdência Social,

gerando justiça nos pagamentos na medida em que retribuirão da mesma proporção em que

houve pagamento ao sistema. Por outro lado, a questão do fim da paridade entre servidores

ativos e inativos traz aos servidores públicos não o fim de privilégios como divulgaram os

defensores da reforma, mas o empobrecimento dos aposentados do serviço público, tal como

ocorre com os aposentados do INSS, inativados com o equivalente, por exemplo, a quatro

salários mínimos e, após três ou quatro anos, recebem pouco mais de dois salários mínimos!

Trata-se de igualar empobrecendo a todos!

Quanto às exigências para concessão dos benefícios para os novos servidores há

requisitos cumulativos de idade (60 anos para os homens e 55 para as mulheres), tempo de

contribuição (35 anos para os homens e 30 para as mulheres), tempo no serviço público (10

anos) e tempo no cargo (5 anos), mantendo-se as normas inseridas pela EC nº20/98, conforme

o art. 40 da CF.

Contudo, é para os servidores já em atividade ao tempo da promulgação da EC

nº41/03 que são sinalizados os efeitos mais significativos da reforma, havendo algumas

opções para a obtenção da aposentadoria, todas, porém, com algum aspecto de prejuízo ao

funcionário público. As exigências para obtenção da aposentadoria, em alguns casos, são

maiores do que para os futuros servidores, embora haja possibilidade de opção pelas regras do

art. 40, CF, com prejuízo da paridade e da integralidade.

Segundo o art. 6º da EC nº41, quem ingressou no serviço público até janeiro de 2004

pode aposentar-se desde que observados os requisitos cumulativos de idade (60 anos para os

homens e 55 para as mulheres), tempo de contribuição (35 anos para os homens e 30 para as

mulheres), 20 anos de efetivo exercício no serviço público, 10 anos na carreira na qual

pretende jubilar-se, 5 anos no cargo. Reza o artigo em comento:

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Art. 6º, EC nº41. Ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normas estabelecidas pelo art. 40 da Constituição Federal ou pelas regras estabelecidas pelo art. 2º desta Emenda, o servidor da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, que tenha ingressado no serviço público até a data de publicação desta Emenda poderá aposentar-se com proventos integrais, que corresponderão à totalidade da remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria, na forma da lei, quando, observadas as reduções de idade e tempo de contribuição contidas no § 5º do art. 40 da Constituição Federal, vier a preencher, cumulativamente, as seguintes condições: I - sessenta anos de idade, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade, se mulher; II - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; III - vinte anos de efetivo exercício no serviço público; e IV - dez anos de carreira e cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se der a aposentadoria. Parágrafo único. Os proventos das aposentadorias concedidas conforme este artigo serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, na forma da lei, observado o disposto no art. 37, XI, da Constituição Federal.

A partir dessa previsão, observa-se que os servidores em atividade, salvo se optarem

pelas outras hipóteses referidas no dispositivo abordado adiante, devem dispor de 20 anos de

efetivo exercício no serviço público e, ainda, dez anos na carreira e mais cinco no cargo,

exigências estas muito mais severas que para os futuros servidores públicos, para os quais

bastam 5 anos no cargo e 10 anos de efetivo exercício no serviço público. Os professores

(servidores públicos) do ensino infantil, fundamental e médio podem optar por esse tipo de

aposentadoria com redução de 5 anos no tempo de contribuição e na idade, vantagem esta

inexistente para os professores universitários desde o tempo da EC nº20/98.

Pelo teor do parágrafo único citado, observa-se a garantia de revisão dos proventos

de aposentadoria na mesma data e proporção em que for realizado para os servidores em

atividade. Com isso, denota-se a garantia parcial da paridade entre inativos e ativos, pois não

foi assegurada a extensão aos aposentados e pensionistas dos benefícios e vantagens

concedidos aos ativos. Em virtude disso, a Emenda Constitucional nº47 (“Emenda paralela”),

de 05.07.2005, através do seu art. 5º29, revogou o referido parágrafo único, assegurando,

assim, no seu art. 2º, a incidência do art. 7º30 da EC nº41 no caso de quem se aposentar com

29 Art. 5º, EC 47/05. “Revoga-se o parágrafo único do art. 6º da Emenda Constitucional nº41, de 19 de dezembro de 2003”. 30 Art. 7º, EC 41/03. “Observado o disposto no art. 37, XI, da Constituição Federal, os proventos de aposentadoria dos servidores públicos titulares de cargo efetivo e as pensões dos seus dependentes pagos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em fruição na data de publicação desta Emenda, bem como os proventos de aposentadoria dos servidores e as pensões dos dependentes abrangidos pelo art. 3º desta Emenda, serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão, na forma da lei”.

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base no art. 6º da EC nº41/03. Portanto, foi assegurada a paridade total, ou seja, a concessão

de reajustes e a data de revisão dos proventos de aposentadoria ocorrerá juntamente com os

servidores em atividade, dando-se, ainda, a extensão de benefícios e vantagens concedidas a

quem estiver em atividade para aqueles que se aposentarem na forma do art. 6º da EC nº41.31

A Emenda Constitucional nº47/05, denominada na época de “emenda paralela”, na

verdade, foi fruto da negociação no Senado Federal para a aprovação da EC nº 41/03, ou seja,

a aprovação célere da EC nº 41 dependia do comprometimento do governo quanto ao envio da

EC nº47 ao Congresso Nacional.32

A hipótese do art. 6º da EC nº41 é, sem dúvida, onerosa aos já servidores na data de

promulgação dessa reforma, comparativamente às regras até então vigentes. Em vista disso, o

art. 2º da EC nº41 previu outra possibilidade de inativação (para aqueles com ingresso no

serviço público até 15.12.98), reduzindo a idade mínima necessária para inativação,

transformando a exigência dos 10 anos na carreira e 20 anos no serviço público em 5 anos no

cargo e pedágio de 20% sobre o tempo de contribuição faltante em 15.12.98 (EC nº20) para

completar 35 anos de contribuição (homens) e 30 anos (mulheres) e ainda, idade mínima de

53 anos (homens) e 48 anos (mulheres).

Se, por um lado tais requisitos para aposentadoria parecem mais simples do que os

do art. 6º da EC nº 41, existem algumas desvantagens nessa regra: o fim da paridade em

relação aos servidores em atividade, o cálculo dos proventos considerando as remunerações

utilizadas para fins da contribuição ao Regime Geral de Previdência (isto, evidentemente, no

caso daqueles servidores que computarão, para aposentar-se no serviço público, o tempo de

contribuição relativo ao regime anterior) e, ainda, a redução dos proventos de aposentadoria

para cada ano de idade antecipado em relação às idades de 60 e 55 anos de idade. Essa

redução de proventos está prevista na EC nº41 no percentual de 3,5% ou 5% conforme a data

de o servidor atender aos requisitos para inativação, ou seja, se o servidor atendeu os

31 Explicitando melhor: A questão da paridade, como se vê das alterações pelas Emendas Constitucionais 41/03 e 47/05 apresenta dois eixos, expressos no §8º do art. 40, CF, já que o mesmo assegurava aos servidores públicos aposentados, até tais reformas, a revisão dos proventos de aposentadoria e pensões na mesma proporção e na mesma data sempre que modificada a remuneração dos servidores em atividade, bem como estendendo aos aposentados e pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidas aos servidores em atividade. Assim, a EC 41/03 tentou assegurar apenas a primeira hipótese, ou seja, a revisão dos proventos de aposentadoria e pensões na mesma proporção e na mesma data sempre que modificada a remuneração dos servidores em atividade, deixando de garantir a extensão dos benefícios e vantagens concedidos aos ativos aos inativos, o que apenas ocorreu com a EC nº47/05. 32 Conforme Jornal Diário Popular de 28 de março de 2004, p. 25: “A PEC Paralela foi elaborada como forma de atender às reivindicações dos senadores que queriam alterar a proposta de Reforma Previdenciária principal que já tinha sido aprovada pela Câmara. O Governo tinha pressa em promulgar a reforma e qualquer alteração iria obrigar o retorno da emenda à Câmara para novas votações. A emenda da reforma da previdência foi promulgada em dezembro do ano passado. Para evitar demora, o Governo concordou em fazer as modificações dos senadores em uma outra proposta de emenda, elaborando a chamada PEC Paralela.”

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requisitos até 31.12.05, a redução nos proventos será de 3,5%. Se o alcance dos pressupostos

ocorreu a partir de 01.01.06, a redução dos proventos é de 5% para cada ano antecipado em

relação à idade de 60 ou 55 anos. Isto tudo quer dizer que, se o servidor quiser realmente

aposentar-se com 53 anos (homens) e 48 anos (mulheres), poderá ter seus proventos reduzidos

em até 35%, conforme as circunstâncias.

Para ilustrar a questão, cabe mencionar um exemplo: o servidor com 53 anos de

idade em fevereiro de 2006 e dispondo, na mesma época, dos demais requisitos exigidos, se

pretender aposentar-se, terá aplicado o redutor de 5% para cada ano de idade faltante para

completar 60 anos de idade, o que poderia totalizar 35% de redução. Se completou os 53 anos

de idade em dezembro de 2005, o redutor a ser aplicado será 3,5% para cada ano antecipado,

totalizando até 24,5% de redução, sem prejuízo do cálculo dos proventos conforme as

contribuições vertidas para os sistemas previdenciários ao qual o servidor esteve vinculado ao

longo de sua vida laborativa.

Reza o art. 2º e o seu §1º da EC nº41:

Art.2º. Observado o disposto no art. 4º da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, é assegurado o direito de opção pela aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o art. 40, §§ 3º e 17, da Constituição Federal, àquele que tenha ingressado regularmente em cargo efetivo na Administração Pública direta, autárquica e fundacional, até a data de publicação daquela Emenda, quando o servidor, cumulativamente: I - tiver cinqüenta e três anos de idade, se homem, e quarenta e oito anos de idade, se mulher; II - tiver cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se der a aposentadoria; III - contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de: a) trinta e cinco anos, se homem, e trinta anos, se mulher; e b) um período adicional de contribuição equivalente a vinte por cento do tempo que, na data de publicação daquela Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea a deste inciso. § 1 º O servidor de que trata este artigo que cumprir as exigências para aposentadoria na forma do caput terá os seus proventos de inatividade reduzidos para cada ano antecipado em relação aos limites de idade estabelecidos pelo art. 40, § 1º, III, a, e § 5º da Constituição Federal, na seguinte proporção: I - três inteiros e cinco décimos por cento, para aquele que completar as exigências para aposentadoria na forma do caput até 31 de dezembro de 2005; II - cinco por cento, para aquele que completar as exigências para aposentadoria na forma do caput a partir de 1º de janeiro de 2006.

Na hipótese da aposentadoria com idade antecipada, ou seja, aos 53/48 anos de

idade, a partir do momento em que o funcionário público completar as exigências para tal

modalidade de aposentadoria, passa a fazer jus ao chamado abono de permanência, ou seja,

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uma quantia equivalente ao valor que contribui para o Regime Previdenciário, conforme §5º33

do art. 2º da EC nº41.

Nesse ponto, interessa frisar que se trata de uma medida com a finalidade de

estimular o servidor a permanecer em atividade, retardando, assim, a sua inserção enquanto

inativo no Sistema Previdenciário. O abono de permanência não foi nenhuma novidade da EC

nº41, sendo apenas alterado o nome do já previsto pela EC nº20, em 1998, quando se

assegurou aos servidores que atendessem aos pressupostos para se aposentarem a isenção da

contribuição previdenciária, resultando – para o servidor - na mesma conseqüência do

chamado abono de permanência.

Importante destacar que, segundo entendimento já pacificado no mundo do Direito,

não há direito adquirido a regime jurídico, ou seja, se o servidor não completou as regras

previstas em determinado período de tempo para a sua aposentadoria, não tem direito a obter

o benefício pelas regras anteriores, devendo submeter-se às novas disposições. Em vista disso,

muitos servidores públicos, ao tempo da EC nº41/03, próximos de se aposentarem pelos

requisitos até então vigentes, permanecem em atividade. Exemplo claro desta situação se dá

em relação aos servidores que pretendiam a inativação com proventos proporcionais, extinta a

partir da EC nº41/03.

A aposentadoria proporcional, assegurada pela EC nº20 no art. 8º, §1º, exigia idade

mínima de 53/48 anos de idade, 30/25 anos de contribuição e pedágio de 40% sobre o tempo

faltante em 15.12.98, bem como 5 anos no cargo em que se daria a aposentadoria, sendo

revogado o art. 8º pelo art. 10 da EC nº41. Os servidores com os requisitos para esse tipo de

aposentadoria até 19.12.2003, evidentemente, poderão inativar-se sob tais regras em face da

garantia do direito adquirido, contudo, os demais deverão sujeitar-se às novas normas.

Em virtude dessas circunstâncias, as reformas previdenciárias, com alterações nos

critérios de concessão de benefícios, são um golpe nas expectativas de direito dos segurados.

Quando iniciam sua vinculação ao Regime de Previdência, o fazem movidos pela expectativa

de alcançar uma das regras previstas àquele tempo e, no decorrer da pactuação, vêem

mudanças profundas nas normas. Também em virtude disso, a EC nº20/98 assegurou regras

de transição, não sendo o caso da EC nº41/03 e da EC nº47/05 já referidas.

33 § 5º O servidor de que trata este artigo, que tenha completado as exigências para aposentadoria voluntária estabelecidas no caput, e que opte por permanecer em atividade, fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria compulsória contidas no art. 40, § 1º, II, da Constituição Federal.

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Assim, a terceira possibilidade de aposentadoria para os servidores em atividade ao

tempo da EC nº41/03, com ingresso no serviço público até 16.12.1998, é a prevista pelo art.

3º da EC nº47/05:

Art. 3º, EC 47/05. “Ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normas estabelecidas pelo art. 40 da Constituição Federal ou pelas regras estabelecidas pelos arts. 2º e 6º da Emenda Constitucional nº41, de 2003, o servidor da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, que tenha ingressado no serviço público até 16 de dezembro de 1998 poderá aposentar-se com proventos integrais, desde que preencha, cumulativamente, as seguintes condições: I – trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; II – vinte e cinco anos de efetivo exercício no serviço público, quinze anos de carreira e cinco anos no cargo em que se der a aposentadoria; III – idade mínima resultante da redução, relativamente aos limites do art. 40, §1º, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal, de um ano de idade para cada ano de contribuição que exceder a condição prevista no inciso I do caput deste artigo.

Parágrafo único. Aplica-se ao valor dos proventos de aposentadoria concedidas com base neste artigo o disposto no art. 7º da Emenda Constitucional nº41, de 2003, observando-se igual critério de revisão às pensões derivadas dos proventos de servidores falecidos que tenham se aposentado em conformidade com este artigo

Observa-se serem os requisitos para inativar-se os 35 anos de contribuição (homens)

e 30 anos de contribuição (mulheres), 25 anos de serviço público, 15 anos na carreira e 5 anos

no cargo. Há também exigência da idade de 60 anos (homens) e 55 (mulheres), sendo

reduzida a exigência de um ano da idade em relação a cada ano que o servidor ultrapasse o

tempo de contribuição, ou seja, se o homem tiver 36 anos de contribuição, poderá aposentar-

se com 59 anos de idade e assim sucessivamente. Nesse caso, embora a fração redutora da

idade, não há redução de proventos de aposentadoria, mas existe o “agravante” do tempo no

serviço público (25 anos) e na carreira (15 anos).

A partir das opções de aposentadoria expostas, vê-se claramente a imposição de mais

requisitos para a concessão das aposentadorias, exigências atingindo não apenas os futuros

servidores mas, especialmente, aqueles inseridos no Regime Previdenciário, o que,

inequivocamente, foi fator de maior indignação pois, conforme afirma o próprio ANDES-SN,

a reforma trouxe aos servidores públicos conseqüências muito maiores do que aquelas

assumidas pelo governo com o FMI. Ao tempo da EC nº20/98, a regra dos 53/48 anos de

idade e pedágio34 foi uma medida intermediária para os servidores em atividade, evitando

34 Art. 8º, EC 20/98. Observado o disposto no art. 4° desta Emenda e ressalvado o direito de opção a aposentadoria pelas normas por ela estabelecidas, é assegurado o direito à aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o art. 40, § 3°, da Constituição Federal, àquele que tenha ingressado regularmente em cargo efetivo na Administração Pública, direta, autárquica e fundacional, até a data de publicação desta Emenda, quando o servidor, cumulativamente:

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igualá-los aos futuros servidores, bem como àqueles com direito adquirido. No caso da EC

nº41, este tipo de preocupação foi quase inexistente, o que, vindo de um governo cujas bases

estavam na luta pelos direitos dos trabalhadores, causou surpresas.

Em vista disso, os protestos contra a Reforma Previdenciária foram inúmeros, de

vários segmentos da sociedade, destacando-se especialmente os sindicatos representantes dos

servidores públicos, expondo-se, no tópico seguinte, a posição do ANDES-SN e as medidas

implementadas frente à proposta de Reforma Previdenciária.

3.2 A posição do ANDES-SN frente à Reforma da Previdência

Inúmeros foram os sindicatos mobilizados na luta contra a Reforma da Previdência

de 2003, entre eles o ANDES-SN, que produziu diversos protestos e mobilizações da classe

representada contra dita Reforma, conforme dados obtidos nos relatórios dos encontros

I - tiver cinqüenta e três anos de idade, se homem, e quarenta e oito anos de idade, se mulher; II - tiver cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se dará a aposentadoria; III - contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de: a) trinta e cinco anos, se homem, e trinta anos, se mulher; e

b) um período adicional de contribuição equivalente a vinte por cento do tempo que, na data da publicação desta Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea anterior.

§ 1º O servidor de que trata este artigo, desde que atendido o disposto em seus incisos I e II, e observado o disposto no art. 4° desta Emenda, pode aposentar-se com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, quando atendidas as seguintes condições: I - contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de: a) trinta anos, se homem, e vinte e cinco anos, se mulher; e

b) um período adicional de contribuição equivalente a quarenta por cento do tempo que, na data da publicação desta Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea anterior; II - os proventos da aposentadoria proporcional serão equivalentes a setenta por cento do valor máximo que o servidor poderia obter de acordo com o caput, acrescido de cinco por cento por ano de contribuição que supere a soma a que se refere o inciso anterior, até o limite de cem por cento. § 2º Aplica-se ao magistrado e ao membro do Ministério Público e de Tribunal de Contas o disposto neste artigo. § 3º Na aplicação do disposto no parágrafo anterior, o magistrado ou o membro do Ministério Público ou de Tribunal de Contas, se homem, terá o tempo de serviço exercido até a publicação desta Emenda contado com o acréscimo de dezessete por cento. § 4º O professor, servidor da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, que, até a data da publicação desta Emenda, tenha ingressado, regularmente, em cargo efetivo de magistério e que opte por aposentar-se na forma do disposto no caput, terá o tempo de serviço exercido até a publicação desta Emenda contado com o acréscimo de dezessete por cento, se homem, e de vinte por cento, se mulher, desde que se aposente, exclusivamente, com tempo de efetivo exercício das funções de magistério. § 5º O servidor de que trata este artigo, que, após completar as exigências para aposentadoria estabelecidas no caput, permanecer em atividade, fará jus à isenção da contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria contidas no art. 40, § 1°, III, a, da Constituição Federal.

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promovidos pelo ANDES-SN no período de tramitação da PEC 40/03. Desde a proposta

inicial de Reforma Previdenciária, no ano de 2002, o ANDES-SN começou a planejar

medidas para a sua discussão junto à base de servidores do ensino superior.

No 45º Conselho do ANDES-SN, CONAD, realizado de 1º a 3 de novembro de 2002

em Belém (PA), já houve manifestação da necessidade de debater a proposta de Reforma da

Previdência anunciada pelo novo governo, embora ainda não houvesse publicidade quanto aos

detalhes da modificação a ser proposta. Foi entendimento do CONAD a imprescindibilidade

de discussões que promovessem o conhecimento e os esclarecimentos necessários para

clareza das conseqüências da Reforma pretendida.35

Já no 46º CONAD, realizado de 27 a 29 de junho de 2003 em Vitória (ES), quando a

proposta de reforma já se encontrava no Congresso Nacional, enviada em 30 de abril de 2003,

a posição do ANDES-SN foi expressamente contrária aos termos das mudanças pretendidas

na Previdência Social dos Servidores Públicos, inclusive com a aprovação de medidas para

exercer pressão sobre o Congresso Nacional, sendo a temática do encontro: “Reforma da

Previdência: o medo vencerá a esperança?”.

Exatamente nessa época, inúmeros grupos sociais também se mobilizavam na

tentativa de assegurar as garantias até então usufruídas, sendo exemplo disso os magistrados

que, no Rio Grande do Sul, manifestaram-se publicamente contra a Reforma, inclusive

questionando o déficit previdenciário, apontado como justificativa para as alterações na

Previdência Social36.

No campo do ensino, na educação superior, as universidades sofreram redução

severa do quadro de docentes em face do temor deles em relação aos efeitos da Reforma

Previdenciária, tanto que, até abril de 2003, algumas universidades haviam aposentado

significativo número de professores. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS), entre 1º de janeiro e 30 de abril de 2003, estavam em tramitação 86 processos de

35 Plano de Lutas. 45º CONAD - Conselho do ANDES-Sindicato Nacional – Belém -PA, 1º a 3 de novembro de 2002, p. 27.: item 38- “Indicar às seções sindicais a promoção de seminários, encontros, debates, atos etc, com o objetivo de: 1 – desvelar a falácia do governo sobre o “déficit” da Previdência Social e de apreender o real significado da Reforma da Previdência proposta pelo novo governo; 2 – denunciar o assistencialismo presente nas ações focalistas, fragmentadas e pontuais que mistificam a Política de Assistência Social, engendrando programas como a “Universidade Solidária”, os “Amigos do Transplante”, os “Amigos da Escola”e outros criados pelo governo FHC, que procuram desresponsabilizar o Estado das suas reais funções sociais, e 3 – combater a mercantilização da saúde, que contraria os princípios de universalidade, equidade e integralidade, conforme o art. 196 da Constituição Federal de 1988)”. (grifo nosso) 36 Artigo “Magistratura e Previdência Social”, de Cláudio Baldino Maciel, Desembargador no RS e presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, publicado em Zero Hora, em 24 de junho de 2003, afirmando que “(...) face á notória juvenilização dos juízes, apresenta a magistratura a melhor relação entre profissionais em atividade versus inativos (aproximadamente 4,5 para 1), de tal modo que as despesas com a previdência dos magistrados são custeadas, com sobras, pelas contribuições dos próprios juízes, desde que considerada a óbvia e singela obrigação de o ente estatal recolher a parte que lhe cabe”.

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aposentadoria, sendo 31 concedidas, correspondendo, aproximadamente, a 41% do total das

76 aposentadorias outorgadas no ano de 2002. Na Universidade Federal de Santa Maria, até

abril de 2003, o número de inativações já havia superado 50% do total do ano de 2002: 24

aposentadorias contra 42 de 2002. Na Fundação Universidade de Rio Grande (FURG), em

abril de 2003, o número de aposentados era 80% superior ao total do ano de 2002, ou seja, 18

aposentados contra 10 do ano anterior37.

É impossível desconsiderar que, se já havia déficit previdenciário no serviço público,

os efeitos do anúncio da Reforma Previdenciária só fizeram agravá-lo, por ser majorado o

número de inativos diante da corrida à aposentadoria, sem a correspondente reposição de

servidores para a atividade, em face do comportamento omissivo do Estado na realização de

concursos públicos para preenchimento das vagas.

O ANDES-SN durante o 46º CONAD já se posicionara em sentido contrário à

Reforma Previdenciária, defendendo a Previdência Social Pública, os serviços públicos e os

salários dos servidores. Entre os planos de lutas localiza-se, no relatório do 46º CONAD, item

45, a decisão de “intensificar a luta pela manutenção da Previdência Social Pública única,

assegurando a aposentadoria integral para todos os trabalhadores, de forma a garantir esse

princípio tanto aos trabalhadores do setor público quanto aos do privado”38.

A forma de intensificar a luta contra a Reforma da Previdência é apontada com a

indicação às seções sindicais que se articulassem com os servidores de outras entidades

nacionais e das esferas estadual e municipal, permanecendo mobilizadas a fim de

promoverem uma resposta imediata à iminente possibilidade de aprovação da Reforma

Previdenciária39.

O principal instrumento utilizado para demonstrar a contrariedade da classe com a

Reforma foi a greve, tendo sido indicado pelo 46º CONAD a convocação de greve por tempo

indeterminado, com deflagração em 08.07.2003, sendo a bandeira de tal mobilização a

retirada da PEC 40/03 (posterior Emenda Constitucional nº41) de tramitação. A aprovação

desses itens se deu por ampla maioria, com 34 votos favoráveis e apenas 3 abstenções, duas

delas justificadas pela votação já ocorrida na respectiva base sindical, na qual, em assembléia,

37 Dados obtidos da Reportagem Especial do Jornal Zero Hora de 07 de maio de 2003, p. 4-5. 38 Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 30. 39 Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 31.

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os servidores optaram por não realizar a greve40. Na Carta de Vitória, presente no relatório do

46º CONAD, constam justificativas da drástica decisão da greve:

Portanto, as condições políticas gerais, os atos e mobilizações realizados nos seis últimos meses, em todo o país, esclarecendo a população sobre os impactos das reformas propostas pelo governo Lula, pactuadas com o FMI, bem como as conseqüências das medidas de contenção de investimentos nos serviços públicos, no pífio reajuste salarial de 1% + R$ 59,86 na política salarial, nos apontam o passo seguinte na nossa luta que representa um patamar superior do enfrentamento da política de destruição de direitos - a deflagração da greve dos servidores públicos, por tempo indeterminado, indicada para o dia 8 de julho de 2003. A esperança depositada nas urnas converte-se em convicção política para a luta em defesa de direitos e conquistas de toda a classe trabalhadora.41

O 46º CONAD formulou outras indicações às seções sindicais, entre elas a

“intensificação de seminários, encontros, debates, atos e a produção de documentos de

distribuição em massa, com o objetivo de desvelar a falácia sobre o déficit da Previdência

Social, apreender o real significado da Reforma da Previdência”, demonstrando os efeitos da

mudança sobre os servidores públicos e sobre a economia da União, dos Estados e dos

municípios. A realização de tais seminários visava, também, através da publicidade dos

efeitos da Reforma, mobilizar outros servidores públicos, nos âmbitos estaduais e municipais

para ampliação das greves42.

Ademais, foi deliberada a indicação de as seções sindicais, entre outras atividades,

deverem: “pressionar os parlamentares de cada Estado da Federação, por meio de telegramas;

debates, e-mails, cartas e visitas, a não aprovarem a PEC 40/03”. Além disso, “reunir-se com

as lideranças locais dos partidos de base governista e pressioná-las por um posicionamento

público sobre os seguintes itens: proposta da Reforma da Previdência, defesa dos serviços

públicos, ataques do governo Lula aos servidores públicos” 43.

O ANDES-SN deixou muito claro o seu entendimento em relação à PEC 40/03:

tratava-se de um projeto de “desmantelamento da seguridade social e de privatização da

Previdência Pública com a possível regulamentação de fundos de pensão (...)”44. Registrou,

40 Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 31. 41 Carta de Vitória: Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 44. 42 Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 32. 43 Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 35. 44 Carta de Vitória: Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 42.

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assim, grande manifesto realizado em Brasília na tentativa de evitar tal Reforma, constando na

Carta de Vitória (elaborada no 46º CONAD):

Frente à intransigência do governo Lula de manter tramitando a Reforma contida na PEC 40, que introduz definitivamente a previdência complementar privada e abre o caminho da privatização integral da previdência, estabelece um vasto terreno para a rapina das seguradoras, colocando sob as perversas "leis" do mercado financeiro especulativo o presente e o futuro da classe trabalhadora, reagimos juntamente com as demais entidades de classe, e realizamos o ato do dia 11 de junho de 2003, em Brasília, com 40 mil pessoas protestando contra a reforma e exigindo a retirada da PEC 40, como condição para negociação para ampliar direitos. Apelo ao qual o governo Lula mostrou-se indiferente, mantendo também o constrangimento imposto a parlamentares com tradição de luta e fidelidade aos interesses da classe trabalhadora.

Outro item objeto de discussão no 46º CONAD diz respeito à posição adotada pela

CUT – Central Única dos Trabalhadores. Ao contrário do que se imaginava diante do

conteúdo da Reforma Previdenciária, não se posicionou de forma veemente em sentido

contrário, mas apoiou o teto remuneratório e a Previdência Complementar, manifestando-se o

ANDES-SN no seguinte sentido:

O 46º CONAD avaliou ser necessário exigir da CUT o seu inequívoco apoio à greve, no respeito à autonomia e independência sindical, em face dos governos e dos partidos políticos, bem como do respeito à soberania das assembléias e fóruns dos servidores; posicionou-se contrário a ações que dividam a classe trabalhadora, e que tenham como objetivo enfraquecer o movimento sindical combativo, recompor práticas pelegas, corporativistas e atrasadas entre os servidores públicos, e ganhar espaços para negociações setoriais, pessoais e de interesse duvidoso junto aos governos, como a iniciativa de fundação da autodenominada CUSP - Central Única dos Servidores Públicos.

Não concordamos com a deliberação do último CONCUT acerca da Reforma Previdenciária, nem com a nota da executiva nacional que defende o teto previdenciário e a previdência complementar, mas nossa divergência não é motivo para semear a divisão entre os trabalhadores.

Reconhecemos a CUT como a única entidade que ainda tem condições de unificar e dirigir as organizações sindicais dos trabalhadores, na defesa e conquista de seus direitos. Por isso, chamamos a CUT a unificar os trabalhadores brasileiros, na trilha aberta pelos trabalhadores franceses, que colocaram na rua 3 milhões de trabalhadores contra uma reforma da previdência, que restringe direitos e pelos trabalhadores de outros países que lutam no mesmo sentido. A CUT está chamada a ocupar seu lugar estratégico na luta sindical e cumprir as tarefas do sindicalismo classista, independente e autônomo que, na atual conjuntura, assumem um caráter necessário, urgente e vital. O papel da CUT, independentemente das diferenças de apreciação que existem entre as entidades, é o de edificar a unidade imprescindível para que se retire o PEC 40/03, apoiar e expandir a greve convocada para 8 de julho de 2003, barrar a pretensão do capital de fazer dos países endividados os financiadores da guerra e, fazer dos direitos duramente conquistados, em anos de luta, fonte de lucros do capital especulativo.45

45 Carta de Vitória: Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 44.

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Observa-se, desta manifestação do ANDES-SN, o conflito existente na época entre

as posições adotadas pela CUT e as críticas formuladas pelo ANDES-SN, sendo as

controvérsias anteriores à própria Reforma da Previdência, porque, já no 22º Congresso do

ANDES-SN, no plano de lutas da categoria, constou expressamente a luta:

Pela liberdade e autonomia de organização e prática sindicais garantindo a existência de sindicatos autônomos e independentes. Com relação a este aspecto, o 22º Congresso do ANDES-SN deliberou contra a participação da CUT (Central Única dos Trabalhadores), da qual é filiado, no Conselho de Desenvolvimento Social e Econômico (CODES), por tratar-se de um órgão assessor do Governo Federal.46

A partir de todos os itens discutidos no 46º CONAD, foi traçado o plano de lutas da

categoria contra a Reforma da Previdência. O objetivo das manifestações do ANDES-SN,

conforme se observa dos textos do 46º CONAD, foi promover a retirada da PEC 40/03 de

tramitação. Para tanto, tem-se o “eixo do plano geral de lutas”, no qual foram fixados os

pontos de luta da categoria, versando sobre diversos assuntos, entre eles a questão da Reforma

da Previdência em dois eixos diferentes: da luta internacional contra o imperialismo e da luta

em relação aos direitos humanos, sindicais e trabalhistas. No primeiro eixo consta, em relação

à Previdência Social, um item assim especificado:

Combater a política de submissão e subserviência do Brasil às orientações de organismos internacionais, como o FMI, o Banco Mundial e a OMC, que vêm determinando a mercantilização e a privatização da educação, da ciência e da tecnologia, da Seguridade Social (Saúde, Assistência e Previdência); nessa perspectiva, combater todos os projetos governamentais orientados pela lógica de ampliação da ingerência do mercado no setor público, com conseqüente desresponsabilização do Estado em relação ao financiamento, universalização da oferta e controle de serviços públicos de qualidade47.

No segundo eixo, manifestou-se o temor do ANDES-SN quanto aos aspectos legais,

restritivos da possibilidade de manifestação do sindicato quanto às questões de seu interesse,

especialmente a possibilidade de regulamentação do exercício de direito de greve dos

servidores públicos:

Lutar pelo direito à liberdade de organização e manifestação sindicais; contra quaisquer formas de cerceamento deste direito no setor privado e no setor público; contra qualquer regulamentação, em especial no setor público, do direito de greve, e

46 Boletim do 22º Congresso do ANDES-SN, disponível em www.unifesp.br/assoc/adunifesp/others/bo-congresso.pgf, acesso em 02 de janeiro de 2007. 47 Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 53.

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contra quaisquer instrumentos legais ou medidas que imponham restrição à ação sindical e à livre organização dos trabalhadores, combatendo todo ato de intimidação, perseguição ou punição a membros da comunidade acadêmica, em decorrência de suas ações políticas e/ou sindicais48.

Além disso, a declaração da necessidade de luta pela integralidade da seguridade

social, ou seja, de políticas capazes de garantir ações integradas quanto às questões de saúde,

previdência e assistência social, “com planejamento e com orçamento únicos, combatendo as

estratégias em curso que fragmentam e mercantilizam essas ações, facilitando a sua

privatização”49.

Tem-se, ainda, as bandeiras de lutas do ANDES-SN sobre questões salariais e outras

específicas da categoria, bem como de repúdio a conflitos internacionais e sociais internos.

Relativamente à questão previdenciária há três bandeiras: “pela retirada da PEC 40/03”, “em

defesa da Previdência Social Pública, solidária em regime de repartição” e “contra a

instituição de qualquer tipo de Previdência Complementar, seja por fundos de pensão ou

seguro privado”50, sendo a questão da Previdência Complementar matéria de destaque da PEC

40/03.

O 46º CONAD reafirmou o Plano Geral de Lutas do Sindicato, aprovado pelo 22º

Congresso do ANDES-SN, realizado em março de 2003 em Teresina/PI, transcrevendo-se

abaixo, pontualmente, os itens de medidas propostas, algumas já especificadas:

(...)

12 - Buscar espaços em programas de televisão para divulgar a concepção do Sindicato sobre reforma da Previdência por meio da atuação de sua assessoria de imprensa.

13 - Realizar atos na SBPC – Recife, pela retirada a PEC 40/03, com a participação articulada das Regionais do Nordeste e respectivas seções sindicais.

(...)

24 - Desenvolver ações contra quaisquer tentativas de regulamentação do direito de greve bem como contra instrumentos legais que imponham restrição à ação sindical e à livre organização dos trabalhadores, organizando e realizando, no Congresso Nacional, ações voltadas para o arquivamento das várias proposições sobre essas matérias em tramitação nas duas casas.

25 - Envidar esforços no sentido de divulgar a avaliação do Sindicato contrária à regulamentação do direito de greve.

48 Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 54. 49 Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 55. 50 Relatório do 46º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Vitória – ES, 27 a 29 de junho de 2003, p. 55.

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26 - Articular, no interior das coordenações estaduais dos servidores públicos, a luta contra as propostas de regulamentação da lei de greve, e trabalhar junto aos parlamentares nos estados nesse sentido.

27 - Fortalecer na CUT o pólo de ação política que vise à retomada, pela Central, dos rumos para a independência política frente ao governo e para a organização efetiva da luta dos trabalhadores pelos seus direitos.

(...)

60 - Intensificar a luta pela manutenção da Previdência Social Pública, única, assegurando a aposentadoria integral para todos os trabalhadores, de forma a garantir esse princípio tanto aos trabalhadores do setor público quanto aos do privado.

61 - Indicar às seções sindicais que, articuladamente com os servidores de outras entidades nacionais e das esferas estadual e municipal, permaneçam mobilizadas para uma resposta imediata à iminente possibilidade de aprovação de Reforma Previdenciária que venha a cassar direitos conquistados ao longo de nossa luta.

68 - Intensificar a pressão sobre os vereadores, prefeitos, deputados estaduais, governadores, deputados federais e senadores, nos municípios, nos estados, no Distrito Federal, pela rejeição a PEC 40/03 e em defesa da Previdência Social Pública.

(...)

70 - Lutar pela intensificação da participação das entidades sindicais dos servidores públicos (federais, estaduais e municipais) nos Comitês e Fóruns Estaduais em Defesa da Previdência Pública e desenvolver ações unificadas valendo-se do material da Campanha "Estamos de Olho - o nosso futuro depende do seu voto. O seu futuro depende do nosso voto" e do Caderno Especial da CNESF (maio 2003) "Reforma da Previdência - esta conta não é nossa”.

(...)

72 - Entrar com ação na justiça exigindo auditoria na Previdência.

73 - lutar em defesa da Seguridade Social Pública; contra a previdência complementar e os fundos de pensão; e pela retirada do projeto de reforma da Previdência do governo - a PEC 40/03 - pelo arquivamento das PEC 136 e 137; pela revogação da EC 20.

Já no 47º CONAD, realizado no período de 31 de outubro a 02 de novembro de

2003, na pauta de discussões, embora ainda tomada pela Reforma da Previdência, foi

enfatizada a questão da reforma sindical e trabalhista anunciada pelo Governo Lula. Pode-se

afirmar ter ela sido estratégica, desviando o foco da Reforma Previdenciária que, na verdade,

já havia sido aprovada, em 1º turno, na Câmara dos Deputados na madrugada de 6 de agosto

de 2003, com 358 votos a favor, 126 contrários e 9 abstenções51.

Mas ainda quanto à Reforma Previdenciária, tem-se como um dos pontos de crítica

do ANDES-SN nesse CONAD, o estímulo aos Fundos de Pensão e à Previdência Privada,

especialmente porque se trata de um mecanismo de Previdência Social que vem enfrentando

severa crise nos EUA, sem dúvida, uma das economias mundiais mais fortes. Assim, como

51 “Deputados aprovam reforma da Previdência”. Jornal Diário Popular de 06 de agosto de 2003, p. 32, Pelotas/RS.

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seria a solidez desse sistema no Brasil? Em texto da Diretoria do ANDES-SN em 2003,

durante o 47º CONAD, avaliando a conjuntura da época, foi afirmado:

A situação da previdência privada e dos fundos de pensão nos EUA são o espelho em que se deveria olhar a “reforma” impulsionada pelo governo Lula no Brasil. A previdência privada nos EUA vai mal das pernas. Segundo Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa (em Carta Capital 13/8/03), a previdência pública dos EUA continua sólida, mas muitos planos privados estão quebrando ou a depender de socorro federal para cumprir seus compromissos. Como admitiu o secretário do Tesouro, John Snow, pode ser uma crise pior do que a de 1989, que, durante o governo de Bush pai, quebrou o sistema de poupança e crédito imobiliário, cujo resgate exigiu US$ 157 bilhões em recursos públicos. As reservas líquidas da Pension Benefit Guaranty Corporation (PBGC), agência federal financiada por prêmios de seguro pagos pelos empregadores para garantir esses planos, passaram de um saldo positivo de US$ 9,7 bilhões, em dezembro de 2000, para um negativo de US$ 5,4 bilhões, em março de 2003.52 A PBGC, em breve, terá a seu cargo mais US$ 35 bilhões em planos quebrados, incluindo os da US Airways e da Kmart. Já há uma diferença de US$ 350 bilhões entre as promessas dos planos privados de benefícios definidos (uma determinada porcentagem dos últimos salários, multiplicada pelos anos de casa) e o valor de que dispõem para cumpri-las. Esses planos cobrem 30% da força de trabalho norte-americana (44 milhões de pessoas), mas 63% não fecham suas contas. O fundo da GM tem um buraco de US$ 25,4 bilhões, 24% maior que o valor da empresa. O rombo começou a se formar em 1986, quando as isenções de impostos sobre as contribuições das empresas aos planos de pensão foram limitadas. As empresas então dispensaram as margens de segurança e passaram a depositar o mínimo indispensável para equiparar o valor de mercado do plano aos compromissos assumidos. Em 1990, iniciava-se uma recessão, e o Dow Jones estava em 2.633. Dos planos, 45% tinham, além do mínimo, uma reserva superior à metade dos compromissos assumidos. Cinco anos depois, com o índice em 5.117 e o boom no mercado acionário já se iniciando, apenas 18% mantinham essa política. Resultado: as empresas pouco contribuíram durante a bonança, quando poderiam fazer isso com mais facilidade, já que a valorização do mercado parecia manter seus planos equilibrados com poucos recursos adicionais. Agora, na fase das vacas magras, ficou muito mais difícil tapar o buraco. As empresas teriam de depositar US$ 65 bilhões anuais - seis vezes mais do que nos melhores anos e bem mais de 10% dos seus lucros globais. Para poupá-las disso, o Congresso aprovou um projeto que permitirá aos fundos avaliar os ativos de forma mais otimista e aumentar a idade da aposentadoria, de forma a reduzir em cerca de três quartos as contribuições exigidas. A lógica privatista leva a que se queira fazer os velhos trabalharem até cair mortos ou bani-los para asilos em países mais pobres, como cogita o governo do Japão. Se os fundos de pensão estão dando esses resultados nos países mais ricos do planeta, é fácil de se prever o que ocorrerá no Brasil.53

A questão da Previdência Privada é também duramente criticada porque se está

buscando alterar o sistema de repartição solidária da Previdência Pública ao se instituir a

52 Só em 2002, a agência perdeu US$ 11,3 bilhões ao ter de complementar, entre outros, os planos da Bethlehem Steel (o que absorveu US$ 3,7 bilhões), da LTV Steel (US$ 1,6 bilhão) e da National Steel (US$ 1,1 bilhão). Sua receita é de US$ 800 milhões, mas os pagamentos saltaram de US$ 1,5 bilhão anual em 2001 para US$ 2,5 bilhões. E não bastam para resolver o problema, pois só complementam aposentadorias e pensões até US$ 3.664 mensais. Os pilotos da US Airways, por exemplo, perderam até 70% dos valores a que tinham direito. É só o começo. 53 Caderno de Textos: Avaliação de conjuntura – a bancarrota capitalista e a falência dos regimes políticos. Relatório do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 126-127.

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Previdência Privada, limitando, portanto, o aporte de recursos para o sistema público.

Justifica-se tal atitude visto um dos princípios de financiamento da Previdência Social ser o da

solidariedade contributiva, que prevê a responsabilidade compartilhada entre Estado e

sociedade para a manutenção financeira da Previdência Social. Sua aplicação é estendida

também à saúde e à assistência social, conforme dispõe o art. 194 da CF, ao prever que a

seguridade social, representada por estes três serviços, “compreende um conjunto integrado de

ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade”.

A solidariedade contributiva, nos termos expostos por Luiz Cláudio Flores da Cunha,

“deflui naturalmente do princípio da solidariedade que fundamenta o estado brasileiro”(1998,

p.33), no entanto, sua concretização depende que o modelo de financiamento adotado pela

Previdência Social seja o da repartição, o qual ocorre quando:

todos contribuem para um fundo comum, com base em cálculos atuariais, e repartem, dessa forma, a responsabilidade por essa questão que não pode ser encarada como pessoal, mas sim como social, e no universo estarão os destinatários e os não-destinatários dos planos de benefícios (1998, p. 33).

Wladimir Martinez entende que, na Previdência Social, “a solidariedade significa

contribuição da maioria em benefício da minoria”. As parcelas da maioria e da minoria

alteram-se constantemente pois “num dado momento, todos contribuem e, noutro, todos se

beneficiam da contribuição da coletividade”, sendo, no entanto, imprescindível a contribuição

de todos eis que, ao fim “cada um se beneficia de sua própria contribuição”(2001, p. 74).

No tangente à aplicação do princípio da solidariedade, são interessantes as

colocações apresentadas pelo autor retro-mencionado, o qual nos esclarece:

Salvo quando se projetar como princípio técnico, o princípio fundamental da solidariedade social informa o elaborador da norma jurídica previdenciária. Dificilmente poderá ser empregado na integração ou na interpretação. Não sendo técnico, é fundamento socioeconômico; embora basilar, situa-se acima das linhas mestras da ciência jurídica e da técnica científica. Por isso excluído do rol dos princípios básicos e técnicos. Solidariedade é idéia da Previdência Social e não do Direito Previdenciário, constituindo-se em instrumento de realização da primeira. (...) A solidariedade impregna todo o edifício securitário e, de certa forma, passa despercebida – no caso mais comum – das clientelas protegidas, constituídas de milhões de pessoas, sem qualquer consciência dela. A solidariedade é apoio sociológico e econômico do sistema, mas os partícipes não sentem diretamente os seus efeitos, em virtude do distanciamento dos participantes entre si, quando da efetivação dos serviços. A impressão é de relacionamento exclusivamente com o órgão gestor; este, assim, age como se fosse em seu próprio nome (não é verdade) (MARTINEZ, 2001, 79-80).

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Diante desse princípio, vê-se a imprescindibilidade de trabalhadores ativos

contribuintes da Previdência Social. No caso do serviço público, este número vem reduzindo

com o passar dos anos por não haver a reposição de servidores na mesma proporção daqueles

aposentados, minorando os percentuais de arrecadação. De qualquer modo, estabelecer teto de

pagamento de benefícios e transferir aqueles que ganham acima de tal teto e contribuem sobre

a totalidade de sua remuneração, não necessariamente proporcionará maior economia.

Assim afirma o ANDES-SN o seu entendimento quanto à Reforma da Previdência,

ou seja, servir para redução dos direitos dos servidores e transferência de recursos para a

iniciativa privada através da ênfase dada à Previdência Privada Complementar54. Tais

conclusões são evidenciadas pelo fato de o próprio governo ter reconhecido que os efeitos

financeiros da Reforma Previdenciária não seriam imediatos:

É um negócio que supera, com folga, pelo seu montante anual, a totalidade das privatizações fraudulentas realizadas pelo governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. O impacto fiscal da reforma será, no imediato (o próprio governo o reconhece), negativo, devido à queda de arrecadação e à transferência de contribuições patronais para os fundos de pensão. O sentido da reforma, portanto, não é fiscalista, mas de satisfação dos interesses do grande capital financeiro.55

Na verdade, protestos e manifestações dos servidores públicos contrários à Reforma

Previdenciária não faltaram, no entanto, ainda assim, houve sua aprovação e, como afirma a

Diretoria do ANDES-SN, aprovação por meio de um “rolo compressor”:

(...) O processo todo se deu por meio do "rolo compressor", com negociatas, concessões, substituições de membros de comissões, com medidas arbitrárias e antidemocráticas como o não-cumprimento de mandato judicial, impedimento do livre acesso às galerias do Congresso Nacional, violência da polícia militar, prisões e espancamentos nos porões do Congresso Nacional. Esta situação (Dependência do Poder Legislativo em relação ao Executivo) é imposta e aceita pela maioria dos membros da Câmara dos Deputados mediante a ação do governo Lula, resultando ainda, em retaliações e processos de punição aos parlamentares da base aliada que desobedeceram às imposições e votaram não ou se abstiveram na votação em primeiro turno. Tais fatos não têm precedentes na história recente do Brasil. As estratégias e os métodos escolhidos pelo governo para a tramitação e aprovação da PEC 40/03, na Câmara dos Deputados, torna-o refém dos interesses dos partidos que hoje se colocam na oposição, e exacerbam as piores tradições patrimonialistas da política brasileira. A repressão política interna no PT se agrava com as anunciadas

54 Caderno de Textos: Avaliação de conjuntura – a bancarrota capitalista e a falência dos regimes políticos. Relatório do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 129. 55 Caderno de Textos: Avaliação de conjuntura – a bancarrota capitalista e a falência dos regimes políticos. Relatório do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 132.

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expulsões dos três deputados federais que votaram contra a reforma da Previdência (Babá, Luciana Genro e João Fontes) e da senadora Heloísa Helena. (...)56

A greve concretizada, não obstante frustrados os efeitos pretendidos no sentido da

não-aprovação da Reforma Previdenciária, foi avaliada pelo ANDES-SN como um

movimento de resistência com força de abrangência nacional, assentando “as bases para os

futuros movimentos de luta”57, apesar dos constrangimentos de que foi vítima no interior do

Parlamento pelo aparato policial-militar, fato inédito58.

A importância educativa do movimento grevista também é destacada pelo ANDES-

SN, pois foi o enfrentamento às políticas neoliberais, combate a questões cruciais como “o

futuro do serviço público e dos direitos fundamentais da cidadania”, tendo, assim, “um

importante papel educativo para os trabalhadores do país”59.

O governo atuou fortemente na campanha por apoio da população para a Reforma da

Previdência, acusando os servidores públicos de titulares de privilégios que deveriam ser

derrubados, sendo as reformas “o melhor para o Brasil”, segundo afirmativa de João Paulo

Cunha na TV60.

O ministro da Previdência na época, Ricardo Berzoini, defendendo a Reforma em

palestra na Federação do Comércio do Estado de São Paulo, afirmou considerar “um absurdo

um juiz se aposentar com 53 anos e uma juíza com 48”. Disse que tal situação “significa que

estamos jogando dinheiro fora, quando poderíamos aproveitar mais esses bons

profissionais”61. Olvidou-se o ministro de ressaltar ter a aposentadoria aos 53/48 anos de

idade para os servidores também outro requisito: o tempo de contribuição de 35/30 anos,

significando tempo razoável de trabalho para cada servidor. Esqueceu-se o Ministro de a

majoração da idade mínima de inativação para 60/55 anos penalizar exatamente aqueles

56 Caderno de Textos: Avaliação de conjuntura – a bancarrota capitalista e a falência dos regimes políticos. Relatório do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 131. 57 Caderno de Textos: Avaliação de conjuntura – a bancarrota capitalista e a falência dos regimes políticos. Relatório do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 132. 58 Caderno de Textos: Balanço da greve. Relatório do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 140. 59 Caderno de Textos: Balanço da greve. Relatório do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 140. 60 “João Paulo explica na TV o andamento das reformas”. Jornal Zero Hora de 08 de maio de 2003, p. 20, Porto Alegre/RS. 61 “Aposentadoria aos 53 anos é criticada”. Jornal Diário Popular de 18 de junho de 2003, p. 8, Porto Alegre/RS.

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servidores que começaram a trabalhar mais cedo, impondo-lhes a exigência de laborar por

mais tempo.

Diante da flagrante campanha realizada pelo governo pró-reforma, inequivocamente,

as ações do ANDES-SN, bem como de outros sindicatos, destacaram-se pelo aspecto

educativo, ao prestarem esclarecimentos à população acerca dos dados expostos pelo governo.

Na verdade, foi uma forma de propiciar ao povo a possibilidade de refletir acerca das

informações recebidas.

Embora o objetivo principal da greve dos servidores vinculados ao ANDES-SN não

tenha sido atendido, ou seja, a retirada da PEC 40/03 de tramitação, houve algumas alterações

no texto original enviado ao Congresso. A pressão exercida pelos servidores ocorria,

primeiramente, sobre o próprio governo, na tentativa de fazê-lo desistir da proposta. No

entanto, conforme o movimento sindical avaliou durante aquele período, era visível a falta de

interesse do governo em negociar os itens da Reforma, não obstante aparentasse, para a

opinião pública, haver diálogo.

A Central Única dos Trabalhadores – CUT imaginou ter êxito em reformar a

proposta inicial com a apresentação de emendas à PEC 40, independente de uma mobilização

dos trabalhadores, porém, as alterações sugeridas foram desconsideradas pelo relator62.

Assim, registra o Comando Nacional de Greve:

Enfim, confirmou-se o que já havíamos previsto: uma negociação real e verdadeira da reforma da Previdência não aconteceria com a apresentação de emendas, mas somente com uma pressão enorme sobre os deputados para que eles se posicionassem claramente contra a PEC 40/03, e pela sua retirada.63

De qualquer modo, as possibilidades de negociação no Congresso Nacional eram

limitadas, pois o governo deixou clara a necessidade “de manter o essencial da Reforma da

Previdência: caminho para os fundos de pensão”. Desse ponto, evidentemente, não foi

possível escapar, até mesmo porque se tratava de um projeto iniciado desde a Emenda

Constitucional nº20, de 1998, havendo, antes da PEC 40/03, o projeto de Lei 09/99 que

versava a respeito da Previdência Complementar, visando, pois, atender às exigências do

FMI.

62 Caderno de Textos: Balanço da greve. Relatório do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 143. 63 Caderno de Textos: Balanço da greve. Relatório do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 140.

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No entanto, a pressão exercida foi exitosa para a CUT quanto ao aumento do limite

para pagamento integral das pensões deixadas por funcionários públicos de R$ 1.058,00 para

R$ 2.400,00, e ainda, quanto ao teto de isenção da contribuição previdenciária para os

aposentados, de R$ 1.058,00 para R$ 1.200,00. Na aposentadoria dos servidores houve

resultado feliz quanto a assegurar a integralidade e a paridade para os servidores com ingresso

no serviço público até a data de publicação da EC nº41/03, desde que observadas algumas

condições específicas. Em vista disso, o comando nacional de greve do ANDES-SN não faz

outra conclusão senão a de:

A manutenção da integralidade e da paridade (que ainda depende de outra lei) para parte dos trabalhadores do serviço público mostrou que o discurso sobre o colapso da previdência e de que esta não poderia suportar mais a integralidade e a paridade não passou de uma falácia. O objetivo de tal discurso era o de viabilizar a transferência dos servidores para a Previdência Privada que, só neste 1º semestre, aumentou seus fundos em 70% como resultado do medo propalado pelo governo sobre os servidores (conforme o jornal Valor Econômico de 15/7/03). Este percentual ilustra concretamente o início de uma corrida (que pode se tornar desenfreada) da parte dos servidores para os fundos de pensão, o que transforma a aposentadoria numa jogatina do mercado.64

Interessa destacar que, ao longo do período de tramitação da Reforma da

Previdência, não faltou propaganda do governo relativa à imperiosa necessidade de alterações

na Previdência a fim de corrigir o seu déficit, mas em nenhum momento o governo esclareceu

a distinção entre Regime Geral e Regime Próprio de Previdência, divulgando, em muitos

casos, dados do Regime Geral (INSS) sem apresentar a real situação de arrecadação e

despesas da Previdência dos servidores públicos, talvez porque o caixa previdenciário dos

servidores públicos confunda-se com o caixa do Tesouro Nacional.

De qualquer modo, convém salientar que, mesmo o propalado déficit do INSS é

questionável, quando se verificam dados com registro de crédito da instituição junto a

devedores, no total de R$ 135 bilhões65, estando incluídos a própria União, os Estados e os

Municípios. Nos Regimes Próprios de Previdência dos servidores públicos, será que os entes

públicos aportam suas parcelas de contribuição? Se há efetivamente déficit, não seria este

causado pelo descumprimento do Poder Público em depositar a parte que lhe cabe,

pretendendo transferir as conseqüências de suas omissões aos trabalhadores? Na verdade,

falta transparência! A estimativa de economia para os próximos 20 anos é de 60 bilhões (R$

64 Caderno de Textos: Balanço da greve. Relatório do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 141. 65 “Ralo bilionário”. Correio Braziliense de 10 de janeiro de 2003, p. 6.

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47 bilhões da União e R$ 13 bilhões dos Estados e dos Municípios) em vista das alterações

implementadas, realizando-se tal economia por conta do sacrifício dos servidores públicos66,

mas a União, os Estados e os Municípios pagarão a sua quota?

Importa colacionar o esclarecimento feito pela Confederação dos Trabalhadores no

Serviço Público Federal no seguinte sentido:

Sabemos que o setor mais atacado na Previdência é o dos servidores públicos. Falam de um enorme déficit previdenciário e acusam os servidores de todos os desastres. Os 29 bilhões que divulgam como déficit do setor público federal ou os 54,4 bilhões que divulgam como déficit de todo o setor público brasileiro (União, estados e municípios), não passam de mentiras. Os servidores até 1970 tinham sua Previdência sustentada pelo Estado, a partir daí, quando se estabelece, no serviço público, a contratação via CLT, um número significativo começa a contribuir para o INPS. Após 1990, com o advento da Lei 8.112 (antigo RJU) os servidores passam a ser descontados em 11% do valor total de seus salários. Infelizmente todo este dinheiro está perdido, não foi recuperado para Previdência, muito menos capitalizado, mesmo que em formato de poupança simples. Pior, durante todo este tempo o Estado se eximiu, de forma irresponsável, de pagar o que lhe caberia, ou seja, 22% da folha.

Mas não é só isso. Tanto no Serviço Público quanto na iniciativa privada houve uma queda brutal do número de trabalhadores contratados formalmente. No serviço público há o crescimento de terceirizados e todo o tipo de precarização; na iniciativa privada há um crescimento absurdo dos trabalhadores por conta própria, dos trabalhadores informais.(...) 67

O suposto déficit da Previdência dos servidores públicos desconsidera a origem do

Regime de Previdência dos servidores e as alterações sofridas ao longo do tempo. Veja-se

que, no período de 1938 e 1978, existiu o Ipase — Instituto de Pensões e Aposentadorias dos

Servidores do Estado — extinto pela falta de transferência de recursos por parte do Estado,

bem como pela obscuridade na utilização dos seus recursos. A partir de então, os servidores

públicos passaram a dividir-se nas “carreiras típicas de Estado”, sendo a aposentadoria uma

“extensão da remuneração da atividade”, e os demais foram vinculados ao Regime Geral de

Previdência Social. Após a Constituição Federal de 1988, o tratamento diferenciado entre os

servidores começou a ser visto como não-desejável, nascendo a idéia da necessidade de um

Regime Jurídico Único - RJU aos servidores públicos, migrando os servidores sob regime

celetista (CLT) vinculados ao INPS (hoje INSS) para o RJU e Regime Próprio de Previdência

(MATIJASCIC e RIBEIRO, 2003, p. 85), quando então foi implantada a cobrança de 11%

sobre suas remunerações para custear as aposentadorias e outros benefícios.

66 “Senadores aprovam emenda da Previdência”. Jornal Zero Hora em 12 de dezembro de 2003, p. 26. Pelotas/RS. 67 “Resolução sobre a Previdência”. Plenária da CONDSEF. Brasília, 16 de fevereiro de 2003.

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A partir dessas considerações, vêem-se claramente as justificativas para os protestos

e as manifestações, afinal, o marketing do Governo Federal contra os servidores públicos não

apresenta a realidade, fazendo-os vilões por uma situação divulgada de forma parcial, sem

tornar públicos outros dados essenciais. De fato, a Reforma justificou-se a partir de dados

parciais apresentados pelo Governo Federal.

No 47º CONAD, o ANDES-SN reafirmou suas posições, insistindo na pressão dos

parlamentares contra a Reforma da Previdência, PEC 67/03 (anterior PEC 40/03) e PEC 77/03

(PEC Paralela), em defesa da Previdência Social Pública, resistindo à instituição da

Previdência Complementar e entendendo, ainda, pela pertinência na busca de “espaços nos

meios de comunicação para divulgar a concepção do sindicato sobre a Reforma da

Previdência por meio da atuação de sua assessoria de imprensa”68.

É inegável ter havido a tentativa de impedir a reforma, reunindo não apenas o

ANDES-SN, mas também outros sindicatos, porém, nem assim foi possível alcançar o

objetivo de retirada da PEC 67 (anterior PEC 40/03) de tramitação. Veja-se que um dos

pontos mais polêmicos da Reforma da Previdência, e quanto ao qual não houve escapatória,

foi a contribuição sobre os proventos de aposentadoria dos servidores já aposentados, havendo

na época inúmeros posicionamentos no sentido da sua inconstitucionalidade.

Dispõe o art. 4º da EC nº41/0369 que os servidores aposentados e os pensionistas,

nestas condições quando da promulgação da Emenda, bem como aqueles enquadrados no art.

3º 70 da EC, contribuirão para o sistema previdenciário com o mesmo percentual dos

servidores públicos em atividade, porém, apenas sobre o valor que exceder a 60% do limite

para benefícios do INSS, no caso dos aposentados e pensionistas da União, e 50% do mesmo

limite para inativos e pensionistas dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

68 Item 3.77 das Resoluções do 47º CONAD – Conselho do Andes – Sindicato Nacional – Natal - RN, 31 de outubro a 02 de novembro de 2003, p. 13. 69 “Os servidores inativos e pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de promulgação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3o, contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.” Já o § único prevê: “A contribuição previdenciária a que se refere o caput incidirá apenas sobre a parcela dos proventos e das pensões que supere: I – cinqüenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; II – sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e pensionistas da União.” 70 “É assegurada a concessão, a qualquer tempo, de aposentadoria aos servidores públicos, bem como aos seus dependentes, que, até a data da publicação desta Emenda, tenham cumprido todos os requisitos para obtenção desses benefícios, com base nos critérios da legislação então vigente.”

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A Comissão de Constituição e Justiça, por meio de seu relator, Deputado Maurício

Rands, como era de se esperar, manifestou-se no sentido de ser perfeitamente constitucional a

contribuição dos inativos, tendo em vista a impossibilidade de argüição do instituto do direito

adquirido contra disposição oriunda de Emenda Constitucional. Cita, neste sentido, José

Eduardo Cardoso, autor da obra "Da Retroatividade da Lei" (1995, p. 315):

O que veda a nossa lei maior é que futuras emendas constitucionais venham a estabelecer a possibilidade de que tenha a nossa legislação infraconstitucional poderes para prejudicar direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada. Não proíbe, ao revés, nenhuma perspectiva, que o próprio legislador constitucional, por via de emendas, tenha tais prerrogativas.

Sustentou, ainda, o Deputado Rands:

(...) um novo modelo constitucional tem supremacia e, no concreto, pode se sobrepor a um direito adquirido. O que seria vedado ao constituinte derivado seria a eliminação direta da norma ensejadora de uma garantia individual fundamental.Como seria exemplo uma PEC que visasse proibir o direito de associação, ou o de ir e vir, ou de constituir partidos políticos (...).

No entanto, salvo melhor juízo, deve-se considerar que a atuação do Poder

Constituinte Derivado é limitada a algumas regras estabelecidas no texto da Constituição

Federal pelo Poder Constituinte Originário, conforme prevê o art. 60 da CF, destacando-se

seu inciso IV: “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir”; IV –

“os direitos e garantias fundamentais”. Assim, não sendo outra a natureza do instituto do

direito adquirido e do ato jurídico perfeito (garantias fundamentais), pois previstos no art. 5º,

XXXVI, CF, devem ser respeitados pelo Poder Constituinte Derivado, neles se enquadrando

os inativos, que possuem o direito de verem seus proventos mantidos nos mesmos termos de

quando da inativação. Porém, ainda defende o relator da CCJ ter a contribuição social

natureza tributária, portanto:

não se pode invocar direito adquirido contra a não-exação tributária.(...) Ninguém pode invocar regras anteriores para não se submeter à exação tributária. Os limites contra esta exação estão previstos nos arts. 150 e segs da CF/88, que tratam das limitações do poder de tributar, tais como a vedação do confisco e a isonomia. Estes direitos, decorrentes das restrições impostas pela Constituição ao poder de tributar, é que se constituem em garantias fundamentais. E, portanto, intangíveis.

Todavia, tem o deputado sua tese rebatida pelo professor de Direito Financeiro e

Tributário, Kiyoshi Harada, que sustenta:

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Contribuição previdenciária é tributo vinculado à atuação estatal, isto é, é tributo de natureza intrínseca, que existe em função da necessidade de custear serviços determinados ou benefícios específicos. Benefícios específicos pressupõe a existência de uma parcela da população beneficiária, que são os contribuintes. Apenas os servidores exercentes de cargos efetivos são beneficiários da previdência pública, por isso, só eles são seus contribuintes. Se todos forem beneficiários, de contribuição não se tratará, mas de imposto, que é tributo extrínseco para custear serviços genéricos. Daí a proibição de vincular o produto de sua arrecadação a órgão, fundo ou despesa (art. 167, IV da CF). Ao contrário, o produto de arrecadação da contribuição social é vinculado aos fins da Previdência (2003).

Além disso, pondera Harada a postura da Corte Suprema quanto ao tema:

Tanto a impossibilidade jurídica de aposentados e pensionistas figurarem no pólo passivo de uma contribuição, devida por servidores exercentes de cargos efetivos (aposentados e pensionistas nem servidores são, muito menos exercentes de cargos efetivos), como também a impossibilidade de existir contribuição sem benefício restou claramente proclamada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADIMC nº 2.010-DF, Rel. Min. Celso de Mello (DJ de 13-11-2002).

A natureza da contribuição social para a Previdência Social é, sem dúvida, tópico

discutível. A doutrina apresenta diversos posicionamentos, tanto defendendo sua natureza

fiscal, como em sentido contrário, o que torna o tema extremamente complexo.

O Dep. Rands, especificamente quanto à questão do direito adquirido, defende não

ser este garantido quanto a regime jurídico, conforme já consagrado pelo STF. No entanto,

esquecesse o relator da CCJ de a PEC prever, no art 3º:

É assegurada a concessão de aposentadoria e pensão, a qualquer tempo, aos servidores públicos titulares de cargos efetivos, bem como aos seus dependentes que, até a data da publicação desta Emenda, tenham cumprido os requisitos para obtenção desses benefícios, com base nos critérios da legislação então vigente. (grifo nosso)

Assim, como pode o administrador propor, no art. 5º, o desconto previdenciário até

mesmo de inativos e pensionistas já nestas condições quando da promulgação da emenda se,

no art. 3º do mesmo diploma, garante o recebimento dos benefícios conforme a legislação

vigente quando do atendimento dos pressupostos? Ao se adotar a própria definição de direito

adquirido colacionada na EC, tem-se por incogitável a contribuição dos atuais aposentados e

pensionistas, pois até os dias atuais a ordem normativa jamais previu a taxação deles,

portanto, encontram-se protegidos pelo art. 5º, XXXVI, da CF.

Não restam dúvidas que os argumentos em sentido favorável à tributação dos

inativos, especialmente em face da expectativa de vida majorada ao longo dos últimos anos, é

de grande relevância sob o aspecto estritamente financeiro do sistema previdenciário. Por

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outro lado, estão em conflito com a questão das garantias legais conferidas àqueles que

cumpriram as exigências das normas ao tempo de suas inativações. Sob a égide do Estado

Liberal de Direito, tal situação causa estranheza, visto a legalidade ser uma de suas premissas.

Então, a partir de seus próprios preceitos, é plenamente atacável o conteúdo reformista.

Veja-se a condição dos servidores jubilados de forma proporcional. Por opção

pessoal, reduziram os seus proventos para usufruir da inatividade, prepararam-se para

perceber determinado valor previamente conhecido, crendo, com aquilo, manter seu padrão de

vida, quitar suas despesas essenciais. Mas agora se vêem ameaçados a terem sua remuneração

mensal minorada em mais 11% sobre o limite do teto de remuneração do INSS, com perda do

poder aquisitivo. Certamente, muitos, se conhecessem tal probabilidade, não se teriam

retirado do mercado antecipadamente, aguardariam a jubilação com proventos integrais para

terem reduzidos tão somente os 11% da contribuição dos inativos.

Deve-se, inequivocamente, pensar na coletividade, no sistema de previdência, porém,

é flagrante o conflito de princípios nesse caso pois, ao mesmo tempo que são implementadas

novas alternativas de sustentabilidade do sistema previdenciário, são lesados os indivíduos em

suas rendas, cuja constituição ocorreu através da adesão às regras vigentes em outro

momento. Da mesma forma que não se admite redução salarial, em tese, à luz da legalidade,

não se pode aceitar minoração de proventos, especialmente porque, com o avanço da idade, os

indivíduos necessitam implementar sua renda para manter a saúde.

Ainda quanto aos argumentos capazes de embasar perfeitamente a tese contrária à

contribuição dos inativos através da EC nº41/03, o Supremo Tribunal Federal (STF), Corte

Constitucional Brasileira, no qual se depositava a última esperança de derrubada de dita

contribuição, entendeu pela sua constitucionalidade, demonstrando ter feito um julgamento

político ao decidir pela improcedência das Ações Diretas de Inconstitucionalidade opostas

contra a Emenda Constitucional nº41/03.

Na verdade, mesmo após todos os protestos realizados pelos servidores públicos, a

única alteração no campo da contribuição dos inativos disse respeito a um aumento pouco

significativo quanto ao limite de isenção desta contribuição, de R$ 1.058,00 para R$ 1.200,00,

já referido.

Outro resultado das mobilizações quanto aos requisitos para a inativação foi ter sido

assegurado, pela EC nº47/05, a paridade e a integralidade em uma terceira via de

aposentadoria, já comentada (60/55 anos de idade; 30/35 anos de contribuição; 25 anos de

efetivo exercício no serviço público; 15 anos na carreira e 5 anos no cargo). Ou ainda, na

hipótese do art. 6º da EC nº 41/03, cujo parágrafo único foi revogado, garantindo a paridade e

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a integralidade para aqueles que atenderem as exigências previstas no caput do dispositivo:

60/55 anos de idade; 35/30 anos de contribuição; 20 anos de efetivo exercício no serviço

público; 10 anos na carreira e 5 anos no cargo, com redução em 5 anos do tempo de idade e de

contribuição para professores do ensino infantil, fundamental e médio.

Concluindo, apesar das mobilizações promovidas pelos servidores públicos e o

posicionamento assumido pelo ANDES-SN, e outros sindicatos, o objetivo de retirada de

tramitação da proposta de Reforma da Previdência não foi alcançado, sendo poucos os itens

modificados em relação à proposta original, conforme referido.

Evidente que o firme propósito do governo em concretizar tais mudanças e o acordo

com o FMI a tal respeito, contribuíram para o descaso do Congresso frente à reivindicação

dos servidores públicos, mas, outros fatores, como a lógica do Estado Liberal de Direito

podem ter influenciado. A seguir, busca-se analisar as questões intrínsecas do Estado Liberal

a fim de localizar eventual justificativa para a impotência dos movimentos sociais em

alcançarem as suas reivindicações.

3.3 Possíveis implicações do Estado Liberal de Direito sobre a atuação do ANDES-SN

Localizar os motivos para a ineficácia da mobilização dos servidores públicos para a

retirada da PEC 40/03 (PEC 67/03) de tramitação, ou, pelo menos, para a redução dos seus

efeitos junto aos servidores públicos, não parece ser tarefa simples, afinal, os sindicatos

apontam ter realizado a sua parte no tangente a mobilizações, publicidade dos efeitos

maléficos da reforma, pressão direta sobre parlamentares etc, não sendo nada disso capaz de

impedir as alterações.

Em virtude das dificuldades em compreender tal lógica, é possível afirmar que a

forma do Estado Liberal pode ser responsável pela ineficácia das ações dos movimentos

sociais em geral, incluindo-se aí o ANDES-SN. Conforme demonstrado no capítulo específico

do Estado Liberal de Direito, este apresenta inúmeras peculiaridades, entre elas a posição de

destaque ocupada pelas normas e pela questão da legalidade, sobreposta até mesmo à

legitimidade.

As implicações entre o Estado Liberal de Direito e os movimentos sociais, no caso

concreto, o ANDES-SN e a Reforma da Previdência Social dos Servidores Públicos, iniciada

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no ano de 2003 através da Emenda Constitucional nº41, parecem justificar, ao menos em

parte, o fracasso do movimento sindical no pleito de retirada da PEC 40 de votação.

As temáticas tratadas nos capítulos anteriores referentes aos movimentos sociais, aos

sindicatos e ao Estado Liberal de Direito, bem como a análise anterior a respeito das ações do

ANDES-SN frente à proposta de Reforma Previdenciária de 2003, fornecem o suporte teórico

essencial para ser viabilizada a análise das implicações do Estado Liberal de Direito sobre a

atuação dos movimentos sociais no desempenho das atividades de representação dos

interesses de quem a eles estiver vinculado, bem como no desenvolvimento do papel

educativo que lhes cabe. O estudo utiliza-se de um caso concreto específico para tal análise: o

ANDES-SN, enquanto movimento social sindical e suas ações frente à Reforma

Previdenciária de 2003, que trouxe aos trabalhadores a ela vinculados, e aos demais

servidores públicos, uma série de implicações quanto aos seus direitos previdenciários.

Não há dúvidas de ser fundamental a existência de regras com o escopo de regular o

convívio social, para impor limites ao agir dos indivíduos e do próprio Estado,

proporcionando, assim, segurança social. Porém, a problemática destacada no capítulo 2, em

que se trabalhou o Estado de Direito, está na sua redução à legalidade.

Se por um lado tal situação apresenta-se vantajosa sob o prisma da segurança,

expressa pelo conhecimento prévio dos limites de ação pública (Estado) e privada, por outro,

impõem-se algumas reflexões como, por exemplo, as relativas à situação do legislador

enquanto criador das normas, bem como a redução da legitimidade à legalidade.

Nessa relação entre legalidade e legitimidade surgem os movimentos sociais, que em

muitos casos, frente à necessidade de observar a legalidade imposta pelo Estado Liberal de

Direito, vêem as causas que defendem ignoradas, mesmo sendo legítimas, seja porque

reivindicam sem previsão legal, quando o objetivo é exatamente a obtenção de novas

regulamentações normativas, seja porque as práticas reivindicativas (as ações por meio das

quais são apresentados os pleitos) são formalmente legais.

Flickinger destaca estar o Estado de Direito “amarrado às leis enquanto instrumentos

de delimitação de seu próprio poder político”. Assim, o agir político do Estado depende das

normas (2004, p. 22) e os movimentos sociais, por sua vez, devem ter suas ações submetidas à

legalidade. Dessa forma, o político resta restringido pela legalidade, sendo exatamente neste

ponto que, provavelmente, esteja localizado um dos possíveis fatores que inviabiliza ou

dificulta o poder dos movimentos sociais em busca de mudanças, visto o alcance delas ficar

condicionado à transgressão da ordem legal pois, respeitando os limites da legalidade, suas

ações tornam-se inócuas exatamente por estarem em tais limites. Observa Flickinger:

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Uma lição a mais no debate acerca dos movimentos sociais anuncia-se na argumentação de Carl Schmitt referente aos caminhos abertos a eles para a articulação de suas reivindicações. Tendo como tarefa dar espaço àquele que não tem voz nas trilhas legais, os movimentos sociais não podem renunciar a formas de ação que ultrapassam os próprios limites da legalidade vigente. Se concedida a esses movimentos a função de trazer à tona demandas que não se vêem levadas em consideração no espaço político legal, seria um contrasenso obrigá-los a respeitar incondicionalmente o marco legal de suas ações. Pelo contrário, sua contribuição na reestruturação do espaço político dentro do sistema liberal depende justamente desta possibilidade de também recorrer à transgressão parcial das regras legais do jogo. Em outras palavras, falar seriamente acerca da função essencial dos movimentos na estabilização da democracia parlamentar implica em atribuir-lhes o direito de transgressão limitada dos caminhos institucional-legais. (FLICKINGER, 2004, p. 27)

O Estado Liberal de Direito, segundo Carl Schmitt, está sob a “dominação da lei”, o

que se torna viável diante da excessiva confiança no legislador, o qual se coloca como

guardião do Direito, propiciando, pela legalidade, o controle do poder. Conforme Schmitt “o

legislador, e o procedimento legislativo por ele empregado, é o último guardião de todo

Direito [Rechts], a última garantia da ordem existente, a última fonte de toda a legalidade, a

última segurança e a última proteção contra o que não é direito [Unrecht]” (SCHMITT apud

FERREIRA, 2004, p.142).

Assim, as ações dos movimentos sociais, estando inseridas na legalidade, ficam

muitas vezes despojadas das condições necessárias para o alcance do fim buscado e sem

conseguir exercer o efetivo papel educativo, justo porque não são concretizadas as finalidades

a que se propõem.

Entretanto, não se pode desconsiderar que, em diversas oportunidades foram os

movimentos sociais responsáveis por modificações significativas das leis pois, por meio de

suas manifestações e, por conseqüência, da pressão pública sobre os membros do Poder

Legislativo, a regulamentação de determinadas situações foi obtida. Exemplo claro desta

situação tem-se no campo do Direito do Trabalho, em que os sindicatos, enquanto

representantes dos interesses dos obreiros, por suas ações obtêm a regulamentação de novos

direitos.

Mas, é em virtude dos obstáculos enfrentados pelos movimentos sociais na lógica da

legalidade que, como se sabe, nascem os Novos Movimentos Sociais, os quais surgem com

ações e resultados diferenciados, concretizando, por exemplo, uma das finalidades dos

movimentos sociais: educar. A viabilidade dos Novos Movimentos Sociais pode estar

exatamente por sua colocação à margem da legalidade. Vieira, nesse sentido, explicita:

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A conseqüente crise de legitimidade do Estado capitalista ou burguês contemporâneo pôs a nu as suas debilidades. O crescente aumento da exclusão social, concomitante ao visível déficit de representatividade de seus canais formais representativos, sindicatos e partidos políticos, criariam o terreno no qual vimos emergirem os chamados novos movimentos sociais. Surgidos à margem da formalidade legal do Estado de direito e com suas exigências não contempladas pelas suas instituições e seus canais legais de representação, essas iniciativas contestatórias tendem a repelir a prática dos movimentos tradicionais e a desprezar as vias legais dos procedimentos reivindicativos, passando, assim, a se constituírem em potenciais portadores do rompimento da lógica própria ao funcionamento do Estado Liberal de Direito. Contudo, a idéia dos direitos de cidadania, oferecida pela legalidade formal como mecanismo possibilitador do reconhecimento legal de suas demandas, remete-os a um inusitado dilema: integrar-se no formalismo legal, objetivando o atendimento de seus pleitos pontuais, mesmo que precariamente, ou, ao contrário, mediante ações diretas, fora da institucionalidade, vir a exercer pressão, através de uma “transgressão controlada”, por uma mudança real no quadro político institucional. (2004, p.388)

Apontando a legalização dos movimentos sociais como fator de seu

“enfraquecimento” tem-se Leonie Wagner, que destaca a homogeneização também como

responsável pela debilidade dos movimentos, porque, ao tempo de sua formação, é

desnecessária uma ideologia unitária, exigida quando da organização ou institucionalização,

homogeneizando os objetivos e sintonizando as formas de ação. Além disso, a autora também

ressalta a questão da profissionalização dos movimentos sociais, que é flagrante

especialmente nos Novos Movimentos Sociais, como as ONGs, em que a contratação de

pessoal qualificado para atuar em determinados campos é freqüente, profissionais estes nem

sempre comprometidos com o movimento como os militantes de outros tempos. Afirma

Wagner:

Neste processo podem ocorrer ao mesmo tempo exclusões ou cisões de posições mais radicais. A “homogeneidade” e a “profissionalização” assim alcançadas, no entanto, levam a um “enfraquecimento” dos movimentos sociais no tocante à sua influência sobre a mudança social e às suas possibilidades de mobilização (2001, p. 44).

Observa-se, segundo os autores citados, que o fato de os movimentos sociais

buscarem inserção no sistema de legalidade, institucionalizando-se, atentando às exigências

legais para a sua formalização, enfraquece-os, pois se tornam amarrados à legalidade.

Crawford Brough Macpherson, segundo Neiva Afonso Oliveira, detectara tal situação. Diz

Oliveira:

(...) foi possível evidenciar que Macpherson detecta uma “posição anômala” no interior do relacionamento ente estado e associações voluntárias, ou seja, constata que, na origem, as associações de trabalhadores são declaradamente autônomas, porém, na medida em que concordantes com o estabelecimento de um contrato

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social perfeitamente condizente com o status liberal-capitalista, caminham em direção à sua institucionalização e à profissionalização de suas lideranças e membros. Tal movimento desemboca em uma incorporação de suas demandas à lógica do sistema liberal. Portanto, aquilo que hoje denominamos juridificação dos

direitos de cidadania pode ser encontrado também como uma intuição inicial do professor canadense, intuição não plenamente desenvolvida, mas que pode perfeitamente ser localizada em sua desconfiança com relação ao fio condutor do relacionamento entre o estado e as associações voluntárias: a propriedade privada (2004, p. 70).

Observa-se nos movimentos sociais, mais especificamente nas associações de

trabalhadores (sindicatos), segundo Macpherson que, por serem instâncias necessárias à

estrutura industrial, recebem apoio destas, afinal, servem para sua manutenção e para a

estabilidade do sistema de forças existente: “(...) quanto mais apoio e força forem dados aos

corpos que unem esses homens, melhor será para a estabilidade das indústrias (...)”

(MACPHERSON, 1935, p. 115 apud OLIVEIRA, 2004, p. 61).

Há, também, a relação entre a lei, as associações de trabalhadores e o Estado, a qual

oculta a questão da propriedade tratada por Macpherson, segundo o qual:

(...) a tendência geral da lei e suas variações em diferentes épocas só são compreensíveis admitindo-se que, regulando as competências e o status dos sindicatos, o estado agiu conscientemente a partir de um único princípio. Vê-se que este princípio é a manutenção da base essencial do sistema industrial vigente, ou seja, a estrutura das relações de propriedade neste sistema e, de modo mais geral, a preservação das instituições sociais que servem para manter estas relações de propriedade em toda a sociedade (MACPHERSON, 1935, p. 14 apud OLIVEIRA, 2004, p. 59).

Ou seja, depreende-se de Macpherson o entendimento de a forma de estruturação

estatal estar posta de modo a limitar os efeitos das ações dos movimentos sociais, mantendo

as relações de propriedade. Segundo tal visão, então, seria a lógica estatal, em face das

relações de propriedade, uma das causas de enfraquecimento dos movimentos sociais.

Ademais, o Estado, aos poucos, assume “responsabilidades em relação a um número

crescente de necessidades relevantes da vida dos trabalhadores”, necessidades, em outros

momentos, supridas pelas associações. Com isso, então, segundo Oliveira, à luz das

considerações de Macpherson: “o interesse do trabalhador individual em proteger e aumentar

tais benefícios resta transferido de uma arena (associações) para outra (processo político)”

(2004, p. 63).

Salienta Oliveira, desenvolvendo mais esta questão:

Quando o estado, enquanto agente do interesse social, aceita a responsabilidade por um conjunto de condições – no caso, condições de trabalho – que envolvem uma enorme parcela da vida dos cidadãos e que, anteriormente, eram tratadas, a partir de um ponto de vista legal, como matéria privada, ele passa a encarar tais condições

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como elementos do processo político. Enquanto outras instituições, dentre as quais as associações, devem manter sua responsabilidade pela tarefa de melhorar as condições de trabalho através de táticas de grupos de pressão sobre os políticos, seus próprios membros descobrem que agora eles mesmos, em muitos aspectos, têm um interesse direto no resultado dos acontecimentos políticos ao passo que um interesse apenas indireto no destino do movimento de associações. Aquilo que contemporaneamente já denominamos “aparelhamento” dos movimentos sociais organizados da sociedade civil, tem suas raízes plantadas no conseqüente desdobramento da ação do estado – protetor dos interesses civis (2004, p. 63-64).

Flickinger, nos termos já mencionados, destaca que, se a legalidade é responsável

pela impossibilidade de atendimento das reivindicações dos movimentos sociais, não se pode

pretender que os movimentos sociais limitem-se ao uso dos meios legais para o alcance de

seus objetivos. Ou seja, a utilização de instrumentos não-previstos em lei, ou até mesmo

contrários ao sistema legal se impõe para a fuga da lógica liberal. Apenas com a concessão

deste privilégio os movimentos sociais poderão “cumprir seu papel de motor da unidade

política numa sociedade complexa e em transformação incessante”, defende Flickinger (2004,

p.27). Trata-se do direito à transgressão limitada dos canais institucional-legais, tal como

afirma Vieira.

Doglas César Lucas salienta a importância da desobediência civil na busca da

legitimação e na fuga dos aspectos restritos à legalidade. Diz ele:

(...) a desobediência civil apresenta-se como instrumento para ajudar na superação da opressão pela construção de novos espaços do afazer político, como instrumento importante para a ação coletiva levar a cabo sua agenda de superações em busca da legitimidade do Estado Democrático de Direito (2001, p. 83).

Nesse sentido posiciona-se Henry David Thoreau, segundo o qual, se os indivíduos

detectam o cometimento de injustiças, ainda que estas sejam respaldadas na decisão da

maioria, a desobediência é o único caminho. Na verdade, nem sempre as decisões tomadas

pela maioria elegem o melhor caminho para a coletividade. Assim, segundo Thoreau: “Leis

injustas existem: devemos conter-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos em corrigi-las,

obedecer-lhes até triunfarmos ou transgredi-las desde logo?” (1999, p. 23 apud LUCAS,

2001, p. 32).

Expõe Lucas, citando Nelson Costa: “A desobediência civil seria o único caminho

para democratizar o Estado Liberal, implementando reformas periódicas e especializadas,

capazes de vigorar efetivamente”. Com a transgressão pública das normas, há a possibilidade

de mobilizar a sociedade no sentido do reconhecimento da injustiça das regras e promover

mudanças (2001, p. 33) ou efeito inverso: perda da credibilidade dos objetivos pleiteados com

a infração às normas.

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Das transgressões das regras vigentes podem nascer situações legítimas, ainda que

ilegais. Da mesma forma, embora legais podem existir governos ilegítimos. Bonavides

exemplifica com duas situações francesas: na primeira, o governo de Petain, mesmo

“investido legalmente no poder, cedo patenteou seu inteiro desacordo com os sentimentos,

esperanças e votos do povo francês”. Em vista disso, perdeu a legitimidade política, pois o

país deixou de prestar-lhe adesão e consentimento. Na segunda, o governo de De Gaulle

emergiu das lutas pela libertação nacional, tomando o poder e caracterizando-se como

governo ilegal, porém legítimo, ao expressar os anseios do povo francês (1967, p. 76). Afirma

Bonavides, então:

Via de regra, os governos que nascem das situações revolucionárias, dos golpes de Estado, das conspirações triunfantes, são governos ilegais mas eventualmente legítimos, se abraçados logo pelo sentimento nacional de aprovação ao exercício do seu poder. Confirmada a viabilidade desses governos, a legitimidade fundará então com o tempo a nova legalidade. E esta há de perdurar, conciliada no binômio legalidade-legitimidade, até que ulteriores comoções da consciência nacional tragam com a intervenção súbita de crises imprevistas e profundas para a conservação do poder a perda do equilíbrio político dos sistemas legais e sua conseqüente destruição (1967, p.76).

Sob esse aspecto tem-se o Estado de Exceção de Carl Schmitt, com a suspensão da

normalidade vigente, com o “reconhecimento da impossibilidade de conter o conjunto da

realidade no interior de um sistema normativo” (FERREIRA, 2004, p. 104). Conforme diz

Ferreira:

A questão da ditadura traria consigo o reconhecimento da impossibilidade de conter o conjunto da realidade no interior de um sistema normativo. Na ação do ditador, segundo Schmitt, o respeito às normas do direito precisa ser suspenso para que se criem as condições factuais de validade do próprio direito. Trata-se de uma ação, portanto, que encontra a sua referência imediata na realidade concreta e que extrai os seus critérios da própria “situação das coisas”. Ao contrário do que se observaria em um quadro de normalidade, no qual se poderia pressupor que os fatos seriam governados pelas normas do direito, na ditadura, os fatos determinariam os rumos da conduta da autoridade pública. Nessa perspectiva, observa Schmitt, “se justifica tudo que é necessário do ponto de vista do resultado concreto a ser alcançado” (D,

XVIII). Com isso, a ditadura se reveste, a seu ver, de um caráter claramente técnico, ela se apresentaria como um meio para alcançar um fim específico. (2004, p. 104).

Segue Ferreira ainda explicitando:

Segundo Schmitt, “se, em tempos normais, o meio concreto para alcançar um resultado concreto (por exemplo, o que a polícia está autorizada a fazer para manutenção da segurança pública) pode ser calculado com uma certa regularidade, no caso de necessidade [Notfall], pode-se apenas dizer que o ditador está autorizado a fazer precisamente tudo o que é necessário conforme a situação das coisas. Aqui não importam mais as considerações jurídicas, mas apenas o meio adequado para um resultado concreto no caso concreto. Aqui também o procedimento [Vorgehen] pode

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ser falso ou correto, mas essa apreciação refere-se apenas ao fato de se as medidas [Maßnahme] são corretas em um sentido técnico-objetivo [sachtechnischen], isto é, se elas são adequadas ao fim [zweckmäßig]”(D, 11).

Há quem defenda estar a legitimidade presente desde que haja legalidade, conforme

expõe Bonavides quanto ao pensamento de algumas correntes francesas, dizendo:

A legalidade é a conformação do governo com as disposições de um texto constitucional precedente, ao passo que a legitimidade significa a fiel observância dos princípios da nova ordem jurídica proclamada; a legalidade será assim um conceito formal, a legitimidade, um conceito material, de maneira que, segundo essa posição, um governo de fato far-se-á eventualmente legítimo se proceder segundo as regras por ele mesmo estabelecidas, fundamentando uma nova ordem política ou constitucional (1967, 74).

Esse tipo de pensamento, ao identificar legalidade e legitimidade à luz de todas as

considerações de Carl Schmitt apresentadas, mostra um posicionamento legalista, que

considera a norma como elemento supremo no Estado de Direito. A partir dessa visão são

construídas críticas à lógica liberal, sendo a legalidade também apontada como uma das

razões para o enfraquecimento dos movimentos sociais, que vêem a legitimidade das causas

defendidas desconsideradas diante do destaque das questões meramente legais.

No caso da Reforma da Previdência, apesar das mobilizações e das tentativas de

evitá-la, isso não foi viabilizado porque a formalidade para propositura e tramitação da

Reforma foi observada. Quanto às questões de mérito, acabaram no Poder Judiciário para

apreciação. É o caso, por exemplo, da contribuição dos inativos.

Se, por um lado, as modificações implementadas com a Reforma da Previdência são

defensáveis sob o argumento de readequação desta ordem em face das novas exigências

sociais, por outro lado, são criticáveis, em virtude das ofensas ao direito adquirido, bem como

desconsideração à expectativa de direito dos atuais servidores públicos.

A sua aprovação demonstra, simultaneamente, ter o Legislativo atentado mais para as

questões apontadas pelo Executivo, no sentido da imprescindibilidade de tal Reforma, do que

propriamente para os argumentos dos servidores públicos. De qualquer modo, as ações dos

movimentos sociais de servidores públicos também foram insuficientes para alcançar os fins

pretendidos, porque estavam amarrados à legalidade! Viu-se ao fim de todos esses conflitos e

controvérsias, foi a remessa de tais questões ao Poder Judiciário.

Trata-se do fenômeno chamado de “judicialização da política”, no qual a política e a

sociedade foram invadidas pelo direito, o que

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entorpece a capacidade democrática da sociedade e enclausura todas as possibilidades de emancipação dentro da racionalidade burocrática do Judiciário, aumentando o desprestígio da política e das alternativas democráticas na produção do direito e na condução do devir histórico (LUCAS, 2005, p. 202).

Esse fenômeno apresenta, segundo José Eisenberg, dois movimentos, explicitados da

seguinte forma:

(1) refere-se a um processo de expansão dos poderes de legislar e executar leis do sistema Judiciário, representando uma transferência do poder decisório do Poder Legislativo e do Poder Executivo para os juízes e Tribunais – isto é, uma judicialização do Judiciário; (2) a disseminação de métodos de tomada de decisão típicos do Poder Judiciário nos outros Poderes. Em nosso juízo, este segundo movimento é mais bem descrito como uma “tribunalização” da política, em oposição à judicialização representada pelo primeiro movimento (EINSENBERG, 2002, p. 47 in VIANNA, 2002 apud LUCAS, 2005, p. 201).

Exemplo da segunda situação mencionada está nas comissões constituídas

previamente às votações parlamentares para analisar a constitucionalidade e a viabilidade

legal das propostas legislativas. Trata-se de verdadeiro julgamento preliminar,

comprometendo o debate parlamentar e a votação do Parlamento. No caso da Reforma da

Previdência Social em 2003, isto ficou claro com os pareceres divulgados pelo então relator

Maurício Rands, opinando pela constitucionalidade da Proposta de Emenda Constitucional

hoje representada pela EC nº41/03, especialmente a contribuição dos inativos. Bernardo

Ferreira, comentando Carl Schmitt, revela tais situações, nos termos já comentados e agora

reiterados:

O debate público cede lugar a um governo de antecâmara e, com o predomínio das máquinas partidárias e dos interesses econômicos, torna-se cada vez mais difícil sustentar a imagem do parlamento como uma representação da “vontade da nação” (FERREIRA, 2004, p. 194).

Carl Schmitt, por sua vez, afirma que “as decisões essenciais são tomadas fora do

parlamento”, sendo este apenas “um escritório para a comutação técnica na máquina

administrativa do Estado” (VEL, 319 apud FERREIRA, 2004, p. 195).

Tem-se, também, a tomada, pelo Poder Executivo, do papel de legislador por meio

das medidas provisórias, retirando do controle parlamentar o conteúdo das normas (medidas

provisórias), impondo a provocação do Poder Judiciário para o controle de tal

constitucionalidade. Relata Luiz Werneck Vianna:

O cenário pós-constituinte, à exceção do governo Collor, tem sido o da expressão concentrada da vontade da maioria, particularmente nesses dois governos de

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Fernando Henrique, quando, pelo uso continuado e abusivo das medidas provisórias, provoca-se a erosão das formas clássicas de controle parlamentar da produção da lei. Foi esse o contexto que veio a favorecer a concretização dos partidos e dos sindicatos no exercício de intérpretes da Constituição, convocando o Poder Judiciário ao desempenho do papel de um tertius capaz de exercer funções de checks

and balances no interior do sistema político, a fim de compensar a tirania da maioria, sempre latente na fórmula brasileira de presidencialismo de coalização. Daí que, por provocação da sociedade civil, principalmente do mundo da opinião organizada nos partidos e do mundo dos interesses, nos sindicatos, o Poder Judiciário se vem consolidando “como ator político e importante parceiro no processo decisório”, confirmando as hipóteses de Tate e Vallinder sobre a judicialização da política como um recurso das minorias contra as maiorias parlamentares, a que ainda se agregam, no caso brasileiro, suas atribuições de examinar, por iniciativa do sindicalismo, matérias de política econômica e de justiça redistributiva (1999, p. 51).

Assim, de forma inequívoca, constata-se a invasão da política pelo direito o que,

conforme coloca Doglas César Lucas

entorpece a capacidade democrática da sociedade e enclausura todas as possibilidades de emancipação dentro da racionalidade burocrática do Judiciário, aumentando o desprestígio da política e das alternativas democráticas na produção do direito e na condução do devir histórico (2005, p. 202).

A invasão da política pelo direito e a remessa dos conflitos políticos ao Poder

Judiciário, impondo-lhe o dever de resolvê-los, é resultado da esperança social de serem, o

juiz e a lei, capazes de solucionar todos os problemas sociais. Tal situação é facilmente notada

nos conflitos entre servidores públicos e governos pois, em face da polêmica acerca da

possibilidade e legalidade da greve de servidores públicos, surge por exemplo, a busca pelo

reconhecimento de sua (i)legalidade, a discussão a respeito dos descontos dos dias

paralisados, a anotação nos assentos funcionais quanto às faltas etc71. Em virtude da redução

dos conflitos políticos às questões de legalidade surgem algumas explicações para a falta de

71 Abaixo uma ementa que denota a remessa dos conflitos dessa natureza ao Poder Judiciário: Origem: TRIBUNAL - QUARTA REGIÃO Classe: EIAC - EMBARGOS INFRINGENTES NA APELAÇÃO CIVEL - 18395 Processo: 200171000311968 UF: RS Órgão Julgador: SEGUNDA SEÇÃO Data da decisão: 11/04/2005 Documento: TRF400106152 DJU DATA:04/05/2005 PÁGINA: 457 JUIZ EDGARD A LIPPMANN JUNIOR "A SEGUNDA SEÇÃO, POR MAIORIA, VENCIDO O DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, DEU PROVIMENTO AOS EMBARGOS, NOS TERMOS DO VOTO DO DESEMBARGADOR FEDERAL RELATOR." DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS. FALTA DE REGULAMENTAÇÃO. DESCONTO DE VENCIMENTOS. A não-regulamentação de um direito garantido constitucionalmente não o extingue, tampouco autoriza a punição de quem o exerce. Entender que um direito é não-exercitável vista a falta de regulamentação, é negar o próprio direito. (grifo nosso)

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força dos movimentos sociais na defesa dos interesses da classe representada. Sob tal lógica,

então, Hans-Georg Flickinger defende a possibilidade de transgressão dos canais legais.

Porém, há de se apontar para o tipo de transgressão possível. Tanto Flickinger,

quanto Luiz Vicente Vieira, não explicitam no que consistiria a atuação “fora dos canais

legais”. Sustenta Flickinger:

(...) pode-se, creio, perceber a tensão que existe entre a luta pelos direitos de cidadania e o campo de manobras dos movimentos sociais no horizonte do Estado liberal de direito. Enquanto a luta pelos direitos de cidadania pactua necessariamente com a lógica da legalidade do procedimento, não alcançando jamais a reformulação das bases materiais da sociabilidade, e tendo de contentar-se com o reconhecimento da mera legalidade de suas aspirações, a luta dos movimentos sociais busca, por seu lado, o reconhecimento imediato da legitimidade de suas exigências materiais, correndo, propositadamente, nos casos necessários, o risco de sair dos trilhos legais no seu agir (2003, p. 157).

Como se vê, “sair dos trilhos legais” tanto está no aspecto de utilizar mecanismos

que vão além das vias institucionais, como atuar além dos termos legais, utilizando-se de

instrumentos não necessariamente previstos pelas normas. Afirma Flickinger:

Não é de admirar, portanto, que tal situação leve os movimentos sociais a decisões difíceis, no que tange aos meios legais a serem usados na sua luta. Pois, não podendo contar com a disposição do aparato político-administrativo, que poderia tomar tais demandas a sério, os movimentos sociais podem menos ainda confiar nos caminhos legais, com os quais poderiam alcançar o cerne material dos problemas levantados. Por isso, podemos observar que o espaço preferencial das intervenções dos movimentos sociais é tanto na Alemanha, quanto no Brasil, o da “oposição extraparlamentar”, ou seja, fora dos canais legais. Em conseqüência disto, o limiar entre os caminhos “ao lado” da legalidade (praeter legem), ou até a base de uma calculada transgressão limitada” das regras jurídicas, torna-se o campo típico das intervenções (2003, p. 157).

Também Doglas Cesár Lucas refere-se à possibilidade da desobediência civil

“quando o governo ultrapassa suas prerrogativas ou não cumpre com as expectativas criadas”.

Mais do que isso, afirma o autor ser a desobediência civil o único caminho que os indivíduos

deveriam adotar diante da legislação e ações governamentais injustas. Lucas diferencia, no

entanto, a desobediência civil da desobediência revolucionária, da criminal e do direito de

resistência etc (2001, p. 37-40).

A desobediência civil faz parte de uma estratégia política coletiva, visando à

revogação de uma lei ou mudanças na política governamental, enquanto a desobediência

revolucionária objetiva a reformulação estrutural da sociedade e apresenta-se com a finalidade

de mudanças mais amplas. A desobediência criminal, por sua vez, ocorre em nome de um

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interesse pessoal e não da coletividade como na desobediência civil, não objetiva publicidade,

processa-se de forma oculta, clandestina, pois não necessita do conhecimento público.

Entretanto, a desobediência civil e criminal podem confundir-se, visto os atos de

desobediência civil poderem ser tipificados, também, como atos criminosos. Por exemplo, o

Movimento dos Sem-Terras, embora tenha objetivo político na prática de invasão de

propriedades rurais, pretendendo a publicidade dos seus atos, é, também, autor, pelo menos,

do crime de esbulho possessório (art. 161, parág. 2º, CP). Ademais, os atos de desobediência

civil “não demonstram potencial criminoso que leve à conclusão de uma ilicitude perene. Já

os atos criminosos correspondem a uma ameaça aos movimentos políticos ou à sociedade em

geral” (ARENDT, 1973, p. 66-68 apud LUCAS, 2001, p. 38).

A dúvida possível nesse ponto diz respeito à caracterização da desobediência civil

como ato criminoso. Na verdade, isto depende da interpretação dos atos praticados. Conforme

expõe Ronald Dworkin, a desobediência ao direito pode ser moralmente justificada; a

questão, no entanto, está na interpretação: fazer cumprir a lei e punir os infratores, pois a

sociedade não funcionaria com a impunidade daqueles que ofendem as normas, ou tolerar os

infratores diante da lei injusta?

Se, nos termos dos defensores do direito, da lei, o argumento da desobediência em

virtude da imoralidade da norma não prospera, deve-se considerar que, havendo diferentes

compreensões quanto às normas, então as mesmas não são suficientemente claras. Ou seja,

podem ser morais para uns e imorais para outros, válidas para uns e inválidas para outros.

Explicita Dworkin quanto àqueles praticantes de atos de desobediência civil supostamente

estarem infringindo uma lei válida que, se a validade da lei é duvidosa, e interpretada como

inválida, não foi cometido delito algum.

Afirma Dworkin:

Si la ley no es valida no se ha cometido delito alguno y la sociedad no puede castigarlo. Si la ley es valida, se ha cometido un delito y la sociedad debe castigarlo. Trás este razonamiento se oculta un hecho decisivo: que la validez de la ley puede ser dudosa. Es posible que los funcionarios y jueces crean que la ley es válida, que los objetores estén en desacuerdo, y que ambas partes cuenten com argumentos plausibles para defender sus posiciones. En tal caso, los problemas son diferentes de lo que serían si la ley fuese claramente válida o claramente inválida, y el argumento de equidad, aplicable para dichas alternativas, no es aplicable al caso (2002, p. 306).

Conforme expõe Lucas, a desobediência civil diferencia-se também do direito de

resistência pois, “enquanto a desobediência civil objetiva verificar a obrigatoriedade das

normas jurídicas particulares, a resistência, numa direção mais ampla, visa a fazer frente à

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totalidade do ordenamento jurídico”. O direito de resistência pode “admitir em sua execução

um conteúdo violento que na desobediência civil está ausente” (SEÑA, 1990, p. 50 apud

LUCAS, 2001, p. 38).

Essa desobediência pode ocorrer tanto em relação a uma “lei injusta quanto a outra

lei qualquer, com o objetivo de protestar contra a injustiça de uma lei ou de uma prática de

governo”, sendo de sua essência a publicidade da contestação que formula, com a finalidade

de “convencer a maioria das injustiças existentes” (LUCAS, 2001, p. 41).

Em síntese, tem-se entre as características da desobediência civil: a prática coletiva

de atos políticos, a publicidade, a não-violência e a legitimidade. Além disso, é utilizada

apenas quando esgotadas as vias institucionais de solução dos conflitos.Veja-se que a não-

violência é essencial, para não haver perda da autoridade e destruição do poder.

Na definição de Norberto Bobbio, a desobediência civil “é uma forma particular de

desobediência, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a

injustiça da lei e com fim mediato de induzir o legislador a mudá-la”. Bobbio explicita, ainda,

que a denominação de desobediência “civil” decorre da idéia de quem pratica a ação pensar

“que está se comportando como um bom cidadão naquela circunstância particular que pende

mais para desobediência do que para a obediência” (1992, p. 335).

Nelson Costa, em “Teoria e responsabilidade da desobediência civil”, defende que a

ilicitude da desobediência civil diferencia-se de outras práticas ilegais por estar respaldada por

justificativas legítimas, ou seja, “a força da desobediência civil está em sua justa ilegalidade

em conflito com a legalidade injusta” (COSTA, 1990, p. 60 apud LUCAS, 2001, p. 47).

Celso Lafer, referido por Doglas Lucas, diz que, em outros períodos históricos a

possibilidade da desobediência existia, sendo abandonada quando se adotou novo paradigma

de legitimação do Estado e do direito, passando-se a garantir “fidelidade ao ordenamento

jurídico e, destarte o dever ser prescritivo de obediência à lei” (LAFER, 1988, p. 191 apud

LUCAS, 2001, p. 30). Segundo Lucas, então, “no momento em que a legitimidade das ações

do governo começa a se confundir com a legalidade, não há mais espaço para se ir contra a

lei, pelo fato de ela passar a representar o ideal a ser atingido pelo mundo moderno”. Segue

Lucas afirmando:

A lei se apresenta como a racionalização dos objetivos da sociedade e como mecanismo capaz de limitar de maneira eficaz os abusos do poder, razão pela qual o dever de obediência como forma de legitimação passou a dominar o mundo moderno.

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Exatamente em virtude dessa “confusão” entre legalidade e legitimidade, é que a

desobediência enquanto efetiva transgressão dos limites legais, nos termos defendidos por

Vieira e Flickinger, talvez seja caminho para a concretização dos fins dos movimentos sociais.

Afinal, atrelada à legalidade vê-se a total ausência de força na concretização de mudanças,

como no caso do ANDES-SN na Reforma da Previdência.

Na relação entre legalidade, legitimidade e desobediência civil, afirma Lucas:

No entanto, uma análise meramente positivista da desobediência civil não alcança as complexidades que envolvem o tema. É necessário transcender a discussão da legalidade para a legitimidade, situando a desobediência civil no limiar destas duas categorias. O Estado constitucional moderno se justifica através de princípios cuja validade não depende exclusivamente do Direito positivo. O Estado tem uma existência política que ultrapassa em muito uma justificação legal, de modo que a legitimidade de seus atos deve ser auferida na presença de todos os elementos que interferem na sua constituição, e não apenas com base em sua legalidade (2001, p. 48).

E a desobediência civil é um importante instrumento contra o legalismo autoritário,

sendo “indispensável para a construção da cidadania vista como um processo de tomada de

decisões no espaço público”: trata-se de medida excepcional, destacada pela ilegalidade

legitimada (LUCAS, 2001, p. 143). A questão, contudo, é se no Estado Liberal de Direito

cabe “ilegalidade legitimada” e desobediência civil com as finalidades expostas por Lucas,

porque a legalidade, no Estado Liberal de Direito, é princípio basilar, conforme já se abordou.

Ronald Dworkin realiza uma análise profunda acerca da desobediência civil,

destacando os argumentos em favor da punição daqueles que não observam os termos legais,

especialmente a hipótese de recrutamento do Estado americano. Sustenta existir a intolerância

de seus opositores quanto à desobediência civil em virtude da impossibilidade de bom

funcionamento da sociedade quando cada um quiser desobedecer às normas que lhe parecem

desvantajosas. Afirma o autor: “Si el gobierno tolera a esos pocos que no quieren “jugar el

juego”, les permite que se aseguren los beneficios de la deferência de todos los demás hacia el

derecho, sin compartir las cargas, tales como la carga de reclutamiento” (2002. p. 306). No

entanto, pondera Dworkin que, em muitos casos, deve ser considerado o conteúdo da lei

infringida e questionado se não seria o caso de alterá-la, afinal, “casi cualquier ley que un

grupo significativo de personas se siente tentada de desobedecer por razones morales sería

también dudosa (...)” (2002, p. 307).

Como se vê, a desobediência civil pode ser um instrumento questionador das leis

vigentes. No entanto, ela claramente contém a ofensa a essas mesmas leis em virtude da

legalidade do Estado Liberal, sendo esta uma causa apontada como responsável pela

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debilidade dos movimentos sociais. Além disso, a questão de eles se aproximarem das

instituições também é trazida por alguns autores como fator de enfraquecimento, havendo

problemas decorrentes tanto da aproximação excessiva às instituições, quanto dos casos de

marginalização dos movimentos em relação a elas. Como diz Tarrow, “la participación

institucional es una arma de doble filo”:

Los movimientos sociales demasiado marginados por las instituciones corren el riesgo del aislamiento y el sectarismo; pero los que colaboran excesivamente con ellas y asumen rutinas institucionales pueden verse imbuídos de su lógica y sus valores. Se trata de un peligro que hemos observado en el caso de las redes transnacionales de denuncia, que a menudo se autodenominan “movimiento” a la vez que disfrutan del apoyo financiero de fundaciones, Estados nacionales y organizaciones internacionales (1998, p. 289)

Tarrow exemplifica tal situação com os Estados democráticos que facilitam a atuação

dos descontentes (movimentos sociais), promovendo a possibilidade de suas manifestações e,

por conseguinte, privando “los movimientos de su capacidad para alterar el orden” (1998, p.

290). Ele questiona “si el acaparamiento de prácticas institucionales y no institucionales por

tales grupos conducirá a una sociedad más turbulenta o a la domesticación de los

movimientos” (1998, p. 290).

Na verdade, analisando-se a trajetória de mobilização do ANDES-SN, juntamente

com outros sindicatos, no decorrer da tramitação da Reforma da Previdência, bem como a sua

manifestação pública em sentido contrário à reforma, no espaço democrático de manifestação

e publicidade dos respectivos entendimentos, viu-se claramente a total desconsideração às

suas reivindicações, tenham sido elas apresentadas pelos canais institucionais, por meio dos

parlamentares, ou mediante protestos.

Diante desses fatores, é possível afirmar a existência de indícios que justificam a

incapacidade do ANDES-SN (e de outros sindicatos conjuntamente) de impedir a Reforma

Previdenciária de 2003: a própria lógica normativa do Estado Liberal quanto às ações

organizadas, institucionalizadas e nos limites legais. Contudo, também pode haver outros

fatores específicos ao sindicalismo que contribuíram para a sua ineficácia. Claudia Vianna

apresenta sete pontos de referência para a crise da mobilização sindical em geral, já

mencionados mas reiterados abaixo:

1) as sucessivas decepções docentes; 2) o medo difuso de repressão; 3) a ausência de prática de participação; 4) os mecanismos de controle exercidos pelas diferentes instâncias da educação pública, com destaque para as direções de escolas; 5) as disputas internas no Sindicato; 6) o isolamento do professorado; e 7) o desgaste do

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modelo de dedicação integral à militância (VIANNA, 1999, p. 3 apud OTRANTO, 2000, p.221).

Célia Otranto concorda com os pontos expostos por Vianna e entende servirem para

o caso do ANDES-SN. Tal conclusão foi aferida ao longo de anos de observação e

acompanhamento do movimento sindical em questão, pois os professores do ensino superior

“também se dizem decepcionados com os atos do governo federal”. Além disso, há de se

considerar que a greve já não é instrumento eficaz de reivindicação. A autora aponta, como

fator responsável pela ineficácia da greve, o medo de repressão dos trabalhadores,

especialmente na rede privada de ensino na medida em que o risco da perda do emprego é

mais evidente, mas também há temor dos servidores públicos pelo corte de salários e perda

das férias no período propício (2000, p.222).

Entretanto, reduzir-se a ineficácia da greve, como instrumento de pressão, a questões

subjetivas dos trabalhadores é insuficiente pois, certamente, os referidos fatores não estão

presentes em toda a coletividade. Assim, parece ser fator de incapacidade da greve enquanto

instrumento de pressão, a questão de ser assegurada enquanto direito dos trabalhadores,

tornando a sua ocorrência um exercício legal. Embora presentes prejuízos em face do não-

exercício das atividades pelos profissionais, há a sua aceitação pela parte oponente por tratar-

se de um direito.

Não há dúvidas que, sendo a greve um dos principais, senão até mesmo o único

instrumento relevante de pressão, verificar-se a sua ineficácia é preocupante para efeito da

luta dos sindicatos.

No caso específico do ANDES-SN, tal situação pode enquadrar-se, mas há outras,

como os conflitos internos que, em muitos momentos, foram superados em nome dos

interesses coletivos, mas em outros se sobressaíram. Edmundo Fernandes Dias refere algumas

questões, entre elas a aproximação do ANDES-SN dos partidos políticos, inicialmente na era

FHC e, a seguir, com Luis Inácio Lula da Silva: “se antes o movimento tivera maior

facilidade de manter-se autônomo em relação aos partidos, essa situação vai mudando

primeiro com os mandatos de FHC e agora com o de Luis Inácio”. Além disso, a autonomia e

a democracia que sempre estiveram presentes na história do ANDES-SN viram-se, em

algumas circunstâncias, prejudicadas pela direção:

O Sindicato teve seu curso histórico alterado quando a chapa de oposição encabeçada pelo prof. Renato Oliveira ganhou. A democracia interna foi severamente golpeada: acabaram uma greve por acordo com ACM, as decisões de Congressos e CONADs eram sistematicamente desobedecidas; Diziam: “essas

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instâncias dão indicações, quem dirige é a diretoria. Quando vocês forem diretoria, vocês ajam como quiserem, conosco é assim” (DIAS, 2005, 30).

No período da Reforma Previdenciária de 2003, por ser a era do governo Lula,

representante da classe trabalhadora ao longo de toda a história do Partido dos Trabalhadores,

o ANDES-SN teve de tomar posições, pois se exigia dele a defesa dos seus representados, não

obstante estivessem seus dirigentes historicamente vinculados ao Partido dos Trabalhadores,

então, partido do governo. A crise do ANDES-SN diante das situações colocadas tornou-se

tão grave que a sua condição de filiado à Central Única dos Trabalhadores – CUT foi desfeita,

em virtude do apoio desta ao governo Lula. Em face da postura da Central de passar a fazer

parte do governo, o ANDES-SN decidiu por sua incompatibilidade com ela, porque verificou

a inviabilidade de a CUT defender, de forma independente, os interesses da classe

trabalhadora frente ao governo federal e, simultaneamente, fazer parte dele72.

Tais conflitos, na verdade, apenas existiram porque a tomada do poder pelo Partido

dos Trabalhadores (Lula) era vista com grandes expectativas de mudanças profundas na

sociedade brasileira, pois representava o ideal de concretização do desenvolvimento

econômico e popular. Gaudêncio Frigotto refere algumas das medidas esperadas do governo

Lula:

Trata-se de atacar reformas estruturais inadiáveis: a reforma agrária e a taxação das grandes fortunas, com o intuito de acabar com o latifúndio e a altíssima concentração da propriedade da terra e, ao mesmo tempo, afirmar um novo projeto de desenvolvimento com justiça social; a reforma tributária, com o objetivo de inverter a lógica regressiva dos impostos, em que os assalariados e os mais pobres pagam mais, corrigindo assim a enorme desigualdade de renda; a reforma social, estatuindo uma esfera pública democrática que permita a garantia dos direitos sociais (Educação, saúde, trabalho, cultura, aposentadoria, etc.) e direitos subjetivos. Trata-se, no presente, de combater o ideário neoconservador ou neoliberal do ajuste, da desregulamentação, flexibilização dos direitos e privatização do patrimônio público e recuperar a capacidade do Estado de fazer política econômica e social (FRIGOTTO, 2005).

No entanto, conforme destaca Frigotto, embora a análise do plano de governo de

Lula ao tempo de sua campanha eleitoral referisse a viabilização para construir um novo

Brasil, após os primeiros 20 meses de governo estava claro que não seriam concretizadas

“medidas na direção de um projeto de desenvolvimento Nacional Popular”. Mais do que isso,

os primeiros 20 meses de governo denotavam “como as trincheiras das forças dos projetos

72 Informações prestadas pelo presidente do Andes-SN, gestão 2002-2004, Luiz Carlos Lucas 30.11.2006, em conversa informal .

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liberal conservador e do nacionalismo conservador estão impregnadas no aparelho do Estado

e na sociedade civil, no governo e no PT, e na CUT” (2005).

A aproximação da CUT do governo provocou-lhe uma cisão interna, bem como no

ANDES-SN, na época o maior sindicato filiado à CUT. Frigotto explicita criticamente esse

processo:

Um dos pontos críticos no governo Lula situa-se justamente no movimento sindical representado pela CUT, definido como "o novo sindicalismo", onde o Partido dos Trabalhadores se originou. A tendência majoritária deste sindicalismo - Articulação

Sindical - tem funções executivas no governo Lula tanto no comando político quanto em postos dos fundos de pensão. Para Boito (2003) esta tendência majoritária representa o "novo corporativismo operário" com um grupo ocupando cargos de elevada remuneração. Este grupo criaria "uma situação próxima àquela designada por Nicos Poulantzas de ‘classe detentora’ do aparelho de Estado". Na mesma direção e de forma mais incisiva Francisco de Oliveira, um dos fundadores do PT, identifica uma forte identidade programática do governo Fernando H. Cardoso e o atual governo. Não se trata de equívoco e nem de toma de empréstimo de programa,

mas de uma verdadeira nova classe social, que se estrutura sobre, de um lado,

técnicos e economistas doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e

trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro

do PT. (Oliveira, 2003 p.147). A cisão, dentro da CUT, fica cada vez mais clara. Isto fica elucidado pela divisão e pelo embate que se trava dentro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino (ANDES), atualmente o maior sindicato filiado à CUT.

Apesar de todos esses conflitos, internos e externos ao ANDES-SN, pôde-se

observar, ao analisar as conseqüências da Reforma Previdenciária e as ações do ANDES-SN

durante a sua tramitação, que o posicionamento desta foi de oposição à Reforma

Previdenciária aprovada no governo Lula, pois os efeitos das novas regras para os servidores

públicos já em atividade ao tempo de sua tramitação, aprovação e entrada em vigor são muito

sérios.

Atos de manifestação, protestos, resistência à Reforma Previdenciária houve,

inclusive com a deflagração de greve em 8 de julho de 2003. Em análise da conjuntura de

2003, a diretoria do ANDES-SN afirmou:

(...) A reação dos servidores públicos com atos, manifestações, paralisações e a greve dos SPF, deflagrada em 8 de julho de 2003, representa um movimento social sem precedentes, apesar da posição contrária da direção da CUT. Ele unificou os servidores públicos contra a retirada de direitos duramente arrancados à elite política brasileira e em defesa dos serviços públicos, sobretudo da Previdência Social, pública, solidária e em regime de repartição. O movimento apontou também para a necessidade do envolvimento geral da classe trabalhadora, de todas as esferas e setores, porque desempenhou seu papel político de desmascarar a perversidade de uma reforma cujo propósito último é beneficiar o capital em detrimento dos direitos dos trabalhadores e, ainda, a falácia de um governo que foi eleito por aproximadamente 53 milhões de brasileiros, que depositaram esperanças no

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rompimento com a política neoliberal e com as imposições do FMI. Mas este governo não fez senão aprofundá-las. (...)

Todavia, nada disso foi suficiente, a Reforma foi aprovada, sujeitando atuais e

futuros servidores às novas regras, as quais não apenas impõem mais requisitos para a

concessão das aposentadorias, como, especialmente na forma de cálculo dos benefícios,

causam, em alguns casos, perda significativa no valor dos proventos de aposentadoria. E,

ainda, em relação aos docentes do ensino superior, como se não bastasse o término da

aposentadoria especial na era FHC, pela Emenda Constitucional nº20/98, com a reforma da

era Lula, em virtude do aumento da idade mínima para aposentadoria integral e com paridade,

exige-se a permanência por mais tempo em atividade para alcançar as novas exigências.

No entanto, a manifestação do posicionamento adotado pelo ANDES-SN se deu

atendendo os limites legais, ou melhor, através dos canais institucionais, como reuniões no

Congresso Nacional, juntamente com outros sindicatos; reuniões nas seções sindicais por todo

o país, entre outros, mas sempre observando a legalidade. Apesar de todas as manifestações

de sua oposição aos termos reformistas, não houve sucesso do sindicato em atenuar as suas

conseqüências. Assim, cabe questionar: será que, se suas manifestações tivessem ocorrido

com “transgressões controladas” da legalidade, teria sido diferente?

Ao mesmo tempo, cumpre destacar que o caminho da “transgressão controlada”

proposto por Vieira, embora aparente ser possível e desejável em face do objetivo de romper

com os limites em que se vêem amarrados os movimentos sociais, faz nascer um sentimento

de insegurança: afinal, como admitir e defender que a transgressão será efetivamente

controlada? Perde-se o parâmetro da lei, o efetivo limite para as ações dos movimentos

sociais. Assim, quais serão os limites desta transgressão? Se a visão estritamente legalista, na

forma como se expôs, traz inúmeros inconvenientes, estando entre os mais sérios a

desconsideração da legitimidade e a minimização do espaço político, reduzindo todas as

questões ao aspecto jurídico, admitir-se a transgressão dos limites legais pode trazer muitos

outros problemas, sendo o mais contundente deles a insegurança. Este é, inequivocamente,

um pensamento estribado no ideal positivista, porém, se atentarmos para a evolução do Estado

de Direito, e até mesmo para a origem deste, cabe questionar: as normas não foram desejadas

para promover o convívio social pacífico?

Jorge Malem Seña expõe: “el gobierno (incluso el democrático) es un instrumento de

control y dominación de las voluntades individuales, y las leyes son un elemento que se

presenta como algo incapaz de garantizar los derechos esenciales de los individuos” (1990, p.

83 apud LUCAS, 2001, p. 33). Entretanto, qual seria o outro caminho que não as normas?

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Essa é uma questão — capaz de render um novo trabalho de dissertação — para a qual não se

pretende encontrar respostas, porém, parece inevitável não ser surpreendido por esta

inquietude.

Na verdade, pode-se afirmar que o Estado Liberal de Direito, ao mesmo tempo em

que traz fatores indesejáveis ao movimento sindical, apresenta vantagens desejáveis pelo

próprio movimento para a sua inserção no sistema legal. Em contrapartida, há conseqüências

que o afligem, pois o campo político de discussão resta diminuto, dando-se a defesa dos

interesses dos trabalhadores preponderantemente, senão exclusivamente, sob os aspectos

jurídicos.

É evidente tais conseqüências não estarem apenas restritas ao movimento sindical,

mas valerem para todos os tipos de movimentos sociais, tanto que novas formas de

representação dos interesses dos grupos sociais vêm surgindo ao longo dos últimos tempos,

como os Novos Movimentos Sociais comentados no capítulo 1. Mais do que isso, a posição

privilegiada e as conseqüências dos aspectos legais estendem-se a todos os campos, como o

próprio Parlamento, pois, na verdade, o lugar de debate por ele ocupado passou a ser mera

formalidade, dando-se as decisões relevantes em comissões, ou nos escritórios dos partidos

políticos, antes de serem expostas no próprio parlamento. Conforme dito por Ferreira:

O debate público cede lugar a um governo de antecâmara e, com o predomínio das máquinas partidárias e dos interesses econômicos, torna-se cada vez mais difícil sustentar a imagem do parlamento como uma representação da “vontade da nação” (2004, p. 194).

Em virtude disso, detecta-se que os parlamentares deixam de ser representantes do

todo, independentes e livres de deliberar conforme a sua consciência e razão, passando a se

apresentarem como agentes dos partidos políticos, dos acordos e das decisões

extraparlamentares, posicionando-se na defesa de interesses alheios àqueles que deveriam

defender, embora se digam, muitas vezes, defensores deles.

No episódio da Reforma Previdenciária não faltaram exemplos de parlamentares que

votaram favoravelmente às mudanças, embora, ao longo de sua carreira política, tenham

defendido posições diferentes. E, talvez, o mais grave, parlamentares que defenderam

publicamente a sua oposição à reforma, sendo, portanto, coerentes com a trajetória política

própria e do partido representado mas, lamentavelmente, foram expulsos do Partido dos

Trabalhadores, entre eles a Senadora Heloísa Helena e a Deputada Federal Luciana Genro.

A questão central é a Reforma Previdenciária ter sido aprovada pelo Congresso

Nacional com algumas alterações comparativamente ao texto original, porém, igualmente

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trazendo sérias conseqüências aos servidores em atividade, mesmo àqueles próximos de

obterem a aposentadoria sob as regras antigas e, tudo isso apesar das ações praticadas pelos

movimentos sociais representantes das categorias atingidas.

A eleição da legalidade como parâmetro para as práticas na sociedade afasta o espaço

político, ou seja, o espaço autônomo de decisão na comunidade. Assim, no caso concreto,

mesmo com todas as ações concretizadas pelo ANDES-SN e por outros movimentos sociais,

no sentido de elucidarem os efeitos maléficos aos servidores públicos, a Reforma

Previdenciária foi aprovada pelo Parlamento, porque tudo sempre esteve pautado e limitado

pela legalidade, atenuando, inclusive, por se tratar do exercício de um direito, o poder de

pressão que, por exemplo, a paralisação dos servidores poderia ter, caso realizada à margem

da legalidade.

Poderia ponderar-se não ser legítimo posicionar-se contrariamente a uma Reforma

necessária para a manutenção do equilíbrio das contas públicas no campo previdenciário,

devendo admitir-se os ônus individuais em nome da coletividade. Porém, será que as contas

previdenciárias, para serem ajustadas, dependiam dessa Reforma, ou não terá sido uma

reforma pautada pelos interesses do Fundo Monetário Internacional, com o qual Luis Inácio

da Silva, contraditoriamente, pactuou para viabilizar a sua eleição73?

A real necessidade da Reforma Previdenciária dependeria, para uma conclusão

científica, de acesso à situação financeira da Previdência Social dos Servidores Públicos, o

que não foi objeto da presente pesquisa. No entanto, de qualquer modo, é uma inquietação

impossível de esquecer, devendo ser questionada sempre. Por outro lado, se há efetivamente o

referido déficit previdenciário, seria justo promover uma reforma com tão drásticas alterações

nas disposições vigentes, atingindo indiscriminadamente todos os servidores públicos, em

início ou fim de carreira? Mais do que isso, promover tal Reforma não solucionou os

problemas apontados como justificadores para sua realização, pois nova Reforma

Previdenciária deverá ser realizada. Essa a notícia de 04 de janeiro de 2007, do Jornal Folha

de São Paulo:

Dessa forma, Lula avalia que manteria o compromisso de campanha de não mudar regras de aposentadoria em seu segundo governo, mas faria uma sinalização positiva ao mercado financeiro. Deixando claro já no seu primeiro ano do novo mandato que

73 A afirmativa de pactuação do governo Lula com o FMI é apontada por Gaudêncio Frigotto como um dos fatores que viabilizaram a eleição de Lula, sendo também, um dos elementos desviante do projeto social inicial, pois se comprometeu com outros dois projetos sociais de cunho liberal; o primeiro centrado na “política monetarista ortodoxa e na defesa intransigente do equilibro fiscal e do padrão-ouro” e, o segundo, denominado “nacional desenvolvimentista” ou “desenvolvimentista conservador” (presente na era Vargas e visto como projeto populista).

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se empenhará para a criação e a votação no Congresso de uma reforma da Previdência cujas regras entrarão em vigor no futuro. Ou seja, emitiria sinal antecipado de preocupação com o controle das contas públicas no futuro, tentando afastar temores de que dará guinada econômica no segundo governo. Há previsões de que o déficit da Previdência em 2006 tenha sido de cerca de R$ 43 bilhões. Lula tem cobrado dos auxiliares uma redução desse déficit, visto como uma bomba-relógio pelo mercado financeiro. Ao colocar em pauta mais à frente a discussão sobre a reforma, pretende mostrar aos investidores que o país evitará uma crise previdenciária no futuro.74

Veja-se que, ao tempo da Reforma da Previdência Social de 1998 (EC nº20, de

15.12.1998), o governo FHC recebeu duras críticas, embora ali dispusesse acerca de regras de

transição para os trabalhadores do Regime Geral de Previdência (INSS) e para os servidores

públicos atingidos com os efeitos da reforma na época. Com as últimas reformas (EC nº40/03

e nº47/05) sequer houve preocupação com regras de transição para os trabalhadores que já

haviam ingressado no serviço público, trazendo, para muitos, sérias conseqüências quanto às

possibilidades de aposentadoria.

Ocorre ter sido o caráter de justiça irrelevante no caso dos trabalhadores já

pertencentes ao setor público, pois a legalidade está em primeiro plano, conforme se

especificou em outras oportunidades, tudo em face da lógica do Estado Liberal, que vê a

correspondência entre lei, justiça e verdade, sendo o fundamento de validade da norma a

argüição de estar embasada em princípios justos. Conforme Bernardo Ferreira, com base em

Carl Schmitt, o ponto de partida da concepção liberal de lei estaria “na crença jusnaturalista

de que as normas jurídicas ‘contêm um autêntico dever ser [Sollen]”, desconsiderando a

realidade jurídico-positiva (2004, p. 138).

Resumindo, as mobilizações em torno da Reforma da Previdência foram várias, as

tentativas de impedi-la também, seja por protestos públicos, juntamente com outros sindicatos

de trabalhadores, seja pelos contatos diretos com senadores e deputados, tendo sido o objetivo

do ANDES-SN a retirada da PEC 40/03 (posterior PEC 67/03) de tramitação. Mas, apesar de

todas as vozes levantadas, denunciando a injustiça de alguns pontos, especialmente, a

inconstitucionalidade da contribuição de inativos, a reforma foi aprovada, denotando a derrota

do sindicalismo, a ineficácia dos protestos, da marcha dos servidores que ocuparam o

Congresso Nacional, das pressões junto aos deputados e senadores, enfim, a derrota política

do movimento organizado e institucionalizado, a derrota dos interesses sociais frente ao Poder

Judiciário.

74 “Lula quer mudar Previdência a partir de 2011” em Jornal Folha de São Paulo, de 04.01.2007, in

http://www.cnesf.org.br/imprensa/ultimas/contatoview.asp?key=4284

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A lógica do Estado Liberal de Direito, com a relevância concedida aos aspectos

estritamente legais é apontada como uma das justificativas para a ineficácia do movimento

docente e dos servidores públicos em geral. Afinal, a Reforma proposta pelo governo atendeu

as exigências das normas procedimentais quanto à tramitação necessária para sua aprovação,

tendo sido bem negociada pelo governo, a fim de formar uma forte base aliada. O Estado, na

verdade, segundo as concepções de Marx, existe para manter a lógica existente que, em dias

de globalização, é promover o capital estrangeiro. Na Previdência Social são visíveis as

mudanças dos sistemas em inúmeros países, privilegiando a Previdência Complementar tal

como foi reforçado pela EC nº41/03.

Assim, conforme afirmam Maria Susana Bonetto e Maria Teresa Piñero: “cualquier

orden estatal, incluso la “tolerante” democracia liberal, tiene por objeto mantener y reforzar el

modo y las relaciones de producción capitalistas” (2003, p. 121), sendo tais relações

conduzidas pela pressão do capital estrangeiro. Trata-se da política neoliberal de minimização

do Estado, sendo flagrante tal situação no caso do Sistema Complementar de Previdência

Social. Bonetto e Piñero explicitam:

Debe destacarse que la respuesta neoliberal a la crisis económica que comienza a gestarse en los años setenta propugna menos Estado y más mercado, ya que prioriza en la interpretación de la crisis los problemas generados por el supuesto intervencionismo estatal, anunciando una “crisis de Estado”, adjudicando a este la responsabilidad por dificultades de compatibilizar las exigencias de orden “político” (pleno empleo, seguridad social, retribución de ingresos) con los requisitos del capital privado (buena tasa de acumulación y productividad, libre disposición sobre inversiones y baja tributación) y postula la incapacidad del Estado para cohesionar las relaciones capitalistas de producción. Por ello se propone el gobierno “mínimo”, ya que es el mercado y no el Estado el que garantiza el buen orden social. Pero a su vez el gobierno debe dar respuestas para imponer y hacer respetar las leyes del mercado y resistir las demandas populares (...). (grifo nosso) En realidad se postula una nueva significación del intervensionismo gubernamental, ya que a pesar del “Estado mínimo” en la práctica propone una privatización de lo público y en las cuestiones estratégicas para el nuevo orden presiona para efectivizar el intervensionismo no gubernamental (2003, p. 146-147).

Ademais, a própria situação do movimento sindical, institucionalizado e organizado,

pode indicar a ausência de força suficiente para promover as mudanças desejadas. Segundo

Leonie Wagner, já referida, a “homogeneidade” e a “profissionalização” dos movimentos

sociais os enfraquece “no tocante à sua influência sobre a mudança social e às suas

possibilidades de mobilização” (2001, p. 44). Wagner afirma, ainda, como possível causa do

enfraquecimento dos movimentos sociais, de acordo com o entendimento de Joachim

Raschke: “o elevado grau de organização, que leva a que as atividades se esgotem em agir

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organizacional” (RASCHKE, 1987, P. 24 apud WAGNER, 2001, p. 37). No entanto, entende

a autora quanto à assertiva de Raschke:

enquanto esta assertiva é bem pertinente a uma parte dos movimentos sociais na Alemanha, a transformação de outros movimentos tem outras causas. Em última análise estas diferenças novamente estão relacionadas à dinâmica própria dos movimentos e de sua interação com a política “estatal” (2001, p. 37).

O ANDES-SN, considerando a observação de Raschke acerca do elevado grau de

organização dos movimentos sociais, destaca-se por sua forte estrutura administrativa o que,

portanto, pode tirar-lhe força e diminuir a atenção às medidas enquanto movimento social.

Contudo, talvez apenas em virtude desse modelo organizacional tenha sido possível mobilizar

a categoria na realização dos manifestos e na deflagração da greve. Na verdade, a sua

institucionalização é uma “faca de dois gumes”, pois traz vantagens e desvantagens. Por outro

lado, será que, se inexistente o modelo atual de sindicato, os objetivos seriam alcançados ou,

da mesma forma, o sindicato ficaria impotente diante da lógica do Estado Liberal?

Existe, na verdade, um movimento social extremamente organizado e

institucionalizado que, apesar das medidas tomadas em sentido contrário à profunda Reforma

da Previdência Social de 2003, não obteve sucesso na defesa da manutenção do status quo da

Previdência, ou pelo menos, na redução de seus efeitos para os servidores públicos ativos e

inativos na época de aprovação das mudanças. A lógica do Estado Liberal, com o destaque à

legalidade e sua confusão com legitimidade, bem como as relações com o Poder Legislativo,

nos termos apontados no capítulo dois, é uma das justificativas para tal incapacidade.

No item a seguir passa-se a avaliar qual o papel educativo dos movimentos sociais e,

em especial, o desempenhado pelo ANDES-SN ao longo das manifestações referentes à

Reforma da Previdência Social de 2003.

3.4 O Papel Educativo do ANDES-SN frente à Reforma da Previdência Social

de 2003

Os movimentos sociais estão dotados de uma potencialidade educativa, a qual se

estende tanto para os militantes dos movimentos, como para a sociedade em geral, que

acompanha as ações implementadas por eles e se vê provocada a refletir sobre o conteúdo de

suas medidas e as causas geradoras das manifestações.

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A questão educativa nos movimentos sociais e, especificamente nos sindicatos, está

presente em um primeiro plano, conforme Sônia Azevedo, em virtude das experiências diárias

vivenciadas por aqueles implicados no movimento (2000, p. 65-80). O dia-a-dia no sindicato

potencializa a possibilidade de reflexão dos militantes acerca dos fatos em que estão

envolvidos e, exatamente a oportunidade de auto-reflexão do homem diante dos fatos e

acontecimentos concretiza a potencialidade educativa dos movimentos sociais em relação

àqueles comprometidos em suas práticas cotidianas.

Na verdade, a participação política propiciada pelo movimento, e os efeitos reflexivos

desta participação, é que lhe concedem caráter educativo. Segundo Rousseau, citado por

Pateman, a participação está estreitamente vinculada à liberdade, esta concretizando-se na

medida daquela, pois participar atribui “um grau bem real de controle sobre o curso de sua

vida e sobre a estrutura do meio em que vive” (ROUSSEAU apud PATEMAN, 1992, p. 40).

A partir da participação e da reflexão decorrente, aumentam as oportunidades de

formar a consciência crítica, conforme expõe Paulo Freire, operando-se uma análise profunda

dos problemas, incentivando o diálogo e reconhecendo a possibilidade de mudanças da

realidade (1979, p. 40-41). Além disso, sendo o homem um “ser de relações” com os outros,

com o mundo e pelo mundo (1979, p. 30), o convívio propiciado pelo movimento social e as

experiências proporcionadas por ele promovem a educação do próprio homem. Mais do que

isso, os movimentos sociais, nos termos citados de Maxwel Monteiro Bastos, são “momento e

espaço de se fazer/pensar a prática política coletiva” (BASTOS, 2000, p. 20 in GARCIA,

2000, p. 17-43).

Para Melucci, as ações coletivas são campos de aprendizagem acerca do sistema de

relações e representações das próprias ações coletivas, estimulando a auto-reflexão, o que,

segundo as lições de Paulo Freire, apresenta importância ímpar. Além disso, considerando

Melucci, o caráter educativo dos movimentos sociais está presente na medida em que

funcionam “como uma lente por meio da qual problemas mais gerais podem ser abordados” e

“têm capacidade de produzir novas formas de nomeação da realidade e desmascarar velhas

maneiras de agir” (MELUCCI, 1994 apud GOHN, 2004, p. 157-158).

Os ensinamentos recebidos pelos participantes de um movimento social são de

extrema relevância. Mas, sua potencialidade educativa não se restringe aos militantes,

estende-se para toda a sociedade, uma vez que, estando esta atenta às ações e às motivações

das ações coletivas, também começa a pensar e refletir sobre suas causas, formando

consciência crítica ou, pelo menos, estando alerta para os episódios que se sucedem.

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Segundo Paulo Freire, os homens se educam entre si através do diálogo, tornando-se

“sujeitos do processo em que crescem juntos”, não sendo diferente nas relações entre os

movimentos sociais e a sociedade, uma vez que, pelas posturas adotadas pelos movimentos,

bem como pelas respostas de receptividade ou não da sociedade, os dois lados educam-se.

Ainda que o aspecto educativo não esteja explícito nessas relações, pois não ocorre

diretamente, com diálogos próximos, mas sim através do mundo, com os homens

“mediatizados pelo mundo”, conforme diz Freire (2005, p. 79), nele está presente a educação,

e de forma muito relevante.

Embora coubessem aqui inúmeras reflexões acerca do caráter educativo dos

movimentos sociais, o tema foi abordado no capítulo 1, item 1.3.1, impondo-se, neste novo

tópico, analisar exclusivamente o ANDES-SN e o papel educativo desempenhado por este

Sindicato durante a Reforma da Previdência Social de 2003.

Sabe-se ter o ANDES-SN apresentado inúmeras objeções no tempo da tramitação da

Proposta de Emenda Constitucional (PEC 40) que culminou na EC nº41, de dezembro de

2003. As ações implementadas visavam à retirada da PEC 40 de tramitação sob a justificativa

dos prejuízos causados aos servidores públicos tanto para os que já se encontravam em

atividade, como para os futuros funcionários.

Além disso, a intenção do ANDES-SN de retirar a PEC se dava em face do

entendimento de tal proposta reformista atender muito mais às exigências do Fundo

Monetário Internacional do que os interesses dos servidores públicos e da própria Previdência

Social à qual se vinculam. A crítica à vinculação dessa reforma às exigências do FMI estava

respaldada na ratificação por Lula do acordo firmado, em setembro de 2002, pelo Presidente

da República na época, Fernando Henrique Cardoso, com o FMI. Nesse ponto está a grande

controvérsia, pois a proposta de Reforma Previdenciária não apenas concretizaria os pontos

pactuados com o FMI, como iria além das exigências ali constantes. Em face disso, portanto,

o ANDES-SN colocou-se veementemente contrário às mudanças pretendidas.

No entanto, apesar de todas as mobilizações implementadas, conforme especificado no

item 3.2, o resultado alcançado não foi o pretendido pelo ANDES-SN, pois a reforma

combatida foi aprovada, culminando com a Emenda Constitucional nº41 e todos os efeitos

antes comentados.

Mas, quais efeitos educativos para o ANDES-SN e para a sociedade em geral podem

ser observados das ações realizadas por este sindicato sob a lógica do Estado Liberal de

Direito? Já se viu a imposição deste tipo de sistema que vincula as ações dos movimentos aos

trilhos da legalidade. Em virtude disso, há inúmeros óbices à concretização de seus objetivos

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pois, quando as práticas contestatórias e reivindicativas devem estar restritas aos termos

legais, têm a potencialidade de seus efeitos minorada, eis que são vistas, por aqueles perante

quem se concretizam, como manifestações legais, como exercício dos direitos.

Conforme leciona Flickinger, o Estado está vinculado à legalidade do agir, nos

seguintes termos:

O próprio termo Estado de direito já dá a entender a necessária vinculação do agir institucional às regras jurídicas, legitimadas por leis. A legalidade do agir é a marca típica desse Estado. Ao falar assim, duas referências têm que ser feitas. A primeira parece ser a mais natural: ao Estado cabe a tarefa de garantir a ordem legal na sociedade, atribuindo-se-lhe, aí, a função de “guarda-noturno” com obrigação de impedir a atividade de elementos perturbadores da ordem pública. Na sua origem, o Estado liberal foi visto sob esse aspecto. Há, porém, um outro lado da legalidade do agir, talvez ainda mais importante para fazer com que se entendam os problemas modernos do Estado. É que se exige, também, a submissão de suas atividades próprias às delimitações impostas pelas leis. O Estado é obrigado a respeitar as definições legais, restringindo-se no seu agir àquele espaço a ele concedido pelo legislador. Fala-se, nesse contexto, de um “Estado de legislação” (Carl Schmitt) (2003, p.146).

Os movimentos sociais, de forma não diferente do Estado, têm o seu agir também

vinculado à legalidade e, em virtude disso, estão presos aos trilhos dela. Vê-se, então, por que

o ANDES-SN não obteve êxito na pretensão de retirada da PEC 40 de tramitação, tendo sido

a Reforma Previdenciária concretizada sem o atendimento de muitas reivindicações pleiteadas

pelos movimentos sociais em geral.

Pode-se extrair, desse fato, o valor da influência do Estado Liberal de Direito sobre

os movimentos sociais – concretamente o ANDES-SN – pois ao mesmo tempo, foram

impostos obstáculos à concretização dos objetivos propostos inicialmente, mas se propiciou a

educação do próprio movimento.

O caráter educativo, no presente caso, efetiva-se, primeiramente, ao serem os

militantes do ANDES-SN provocados a refletir sobre o porquê da ineficácia de suas ações. A

reflexão é, inequivocamente, um ponto essencial e primário para concretizar a educação,

independente do ambiente onde esta ocorre.

Conforme Paulo Freire, a relação dialógica entre os homens é fundamental para o

crescimento recíproco. Assim, dando-se no movimento social a discussão acerca das ações

praticadas e dos efeitos alcançados por elas, tem-se o primeiro passo educativo, visto ser

possível a partir dos diálogos desenvolvidos, refletir e compreender os eventos passados.

No caso dos resultados das ações do ANDES-SN frente à Reforma da Previdência

Social de 2003, é fatível assinalar: a potencialidade das ações do ANDES-SN restou reduzida

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em face da implementação das medidas reivindicativas pelos canais da legalidade, com ações

que percorreram exclusivamente o caminho institucional. Isso é inegável a partir da análise

dos relatórios dos eventos do Conselho do ANDES-SN (CONAD).

Constatar tal ocorrência serve de lição tanto para o próprio movimento, a fim de

refletir sobre a sua postura e decidir como se comportará futuramente, nas vezes em que a sua

manifestação e o seu posicionamento forem imprescindíveis; quanto para os movimentos

sociais em geral, que elegem as vias institucionais para lutarem por seus objetivos. Ainda,

serve de aviso para a sociedade, no sentido de provocá-la a pensar sobre as possíveis causas

da impotência dos movimentos sociais no alcance dos objetivos preconizados.

Se por um lado a lógica do Estado Liberal de Direito prejudica os movimentos

sociais e os impede de alcançar seus objetivos e, por conseqüência, a função educativa que

poderiam desempenhar com a concretização de seus objetivos; por outro, diante dos

obstáculos enfrentados, frustrações, revisão dos propósitos, concessões etc, também

canalizam educação, embora não exatamente nos termos a que se propunham inicialmente,

mas em virtude das conseqüências adversas.

Segundo Sônia Azevedo, os sindicatos são lugares de aprendizagem em face das

circunstâncias vivenciadas no local (2000, p. 65-80). Com o ANDES-SN, não poderia ser

diferente, exsurgindo a questão educativa de forma mais destacada em virtude da frustração

de não ter alcançado o objetivo de retirar a PEC 40 de tramitação.

Assim, uma análise crítica dos fatos é de fundamental importância para a

compreensão da complexa realidade social e para a busca de outras alternativas em episódios

futuros. Questionar e refletir sobre o ocorrido parece ser o caminho indispensável para

ocorrência de mudanças na história de que fazemos parte. Aduz Gomercindo Ghiggi:

(...)indispensável é interrogar constantemente a realidade, assumindo o direito e o dever à formulação de julgamentos de valor que conduzam à recusa de tudo o que, na ordem social, nega a liberdade e a autonomia, possibilitadoras dos movimentos sociais e das pessoas singularmente”(2002, p.58).

Para Freire, a educação é permanente na vida dos homens, ou seja, estamos

educando-nos e superando-nos de forma constante (1979, p. 28). Igualmente com os

movimentos sociais não poderia ser diferente, eles promovem a educação para os militantes e

para a sociedade com todas as suas práticas e respectivos resultados, em especial quando

interrogam a realidade e provocam a reflexão acerca dos episódios com base na formulação

de juízos de valor. Segundo Maria da Glória Gohn, “a consciência gerada no processo de

participação num movimento social leva ao conhecimento e reconhecimento das condições de

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vida de parcelas de população, no presente e no passado” (2001, p. 20). Mais do que isso, para

Gohn,

As práticas reivindicatórias servem não apenas como indicadores das demandas e necessidades de mudanças, reorientando as políticas e os governantes em busca de legitimidade. As práticas reivindicatórias dos movimentos passam por processos de transformação, na estrutura das máquinas burocráticas estatais e nos próprios movimentos sociais. A pressão e a resistência têm como efeitos demarcarem alterações nas relações entre os agentes envolvidos. Neste sentido, o caráter educativo é duplo: para o demandatário e para o agente governamental, controlador/gestor do bem demandado (2001, p. 52).

No caso em questão, como dito, a “ineficácia” no alcance dos objetivos propostos

pelos ANDES-SN frente à Reforma da Previdência Social de 2003 promove o alerta para

pensar sobre a eleição dos caminhos institucionais com o fim de implementar suas ações. O

fracasso provoca a reflexão do como fazer para o futuro, pois demonstra que as reivindicações

dos grupos sociais, ocorrendo com manutenção da ordem social, ou seja, pelos dos caminhos

institucionais, são insuficientes e ineficazes para a concretizar os objetivos pretendidos.

O ANDES-SN demonstrou seu posicionamento no sentido de lutar pelos caminhos

institucionais, mesmo diante da visão de a PEC 40 não ser retirada de tramitação e, portanto,

sua forma de agir estar sendo insuficiente para pressionar. Mas ele se posicionou sob a lógica

legalista do Estado Liberal de Direito, de forma exemplar, ou seja, demonstrando à sociedade

que, mesmo diante de situações extremamente desfavoráveis aos seus próprios interesses, as

ações reivindicativas a serem implementadas devem respeitar o ordenamento jurídico.

O comportamento do ANDES-SN sinalizou o seu entendimento de que o

descumprimento das previsões legais não deve ser adotado mesmo quando os seus interesses

estão em jogo e podem ser totalmente aniquilados. Conforme ensina Miguel Arroyo, os

movimentos sociais “reeducam os indivíduos, os grupos e a sociedade”, isto porque:

Recolocam a ética nas dimensões mais radicais da convivência humana, no destino da riqueza, socialmente produzida, na função social da terra, na denúncia da imoralidade das condições inumanas, na miséria, na exploração, nos assassinatos impunes, no desrespeito à vida, às mulheres, aos negros, na exploração até da infância, no desenraizamento, na pobreza e injustiça...Aí nessas radicalidades da experiência humana os movimentos sociais repõem a ética e a moralidade tão ausentes no pensamento político e social. E pedagógico também (2003, p. 42).

Nesse aspecto, o ANDES-SN, a partir do seu entendimento acerca da Reforma da

Previdência e, em especial, pelas controvérsias existentes a respeito dos dados publicados

pelo governo, segundo os quais era justificada a necessidade da referida reforma, cumpriu

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importante papel educativo para os militantes e para a sociedade, embora não tenham sido

alcançados os efeitos desejados. Arroyo explicita que os movimentos são formadores de

tensões sociais ao denunciarem “processos de socialização integradores que ignoram as

diversidades culturais, a memória coletiva, as identidades e os pertencimentos” (2003, p.15).

A tensão social causada pelo ANDES-SN, conjuntamente com outros movimentos

sociais, encaixa-se de forma exata nessas questões, pois a Reforma Previdenciária de 2003

(independente do mérito de sua necessidade ou não) desconsiderou a história do Regime de

Previdência dos servidores públicos, sendo a posição questionadora do movimento um

instrumento de alerta, de denúncia para o que não estava tão claro. A tentativa de impedir a

Reforma da Previdência de 2003 teve, apesar de indiretamente, o papel de conscientizar

politicamente a sociedade, ou seja, no sentido descrito por Paulo Freire, promover, para a

sociedade, a apreensão da realidade existente e, após, provocá-la a fazer uma análise crítica,

pois é este o sentido de conscientizar:

A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica. A conscientização é, neste sentido, um teste de realidade. Quanto mais conscientização, mais se “des-vela” a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo. Por esta mesma razão, a conscientização não consiste em “estar frente à realidade” assumindo uma posição falsamente intelectual (1980, p. 26).

Com isso, vê-se claramente que os movimentos sociais, independentemente do

alcance dos objetivos propostos, ao darem início às suas práticas reivindicativas são

importantes educadores. Veja-se que o relevante para a presença do caráter educativo dos

movimentos não são os efeitos de suas práticas, mas o alerta à sociedade acerca do ocorrido

nos diferentes campos sociais, provocando-a a refletir e, além disso, conscientizando-a da

importância do tema.

A conscientização, segundo Paulo Freire, parte da reflexão, sendo esta um

pressuposto daquela, pois primeiramente o homem necessita refletir sobre sua realidade

concreta. Após fazê-lo, consciente das condições em que se encontra, é capaz de intervir na

realidade. Afirma Freire:

O homem chega a ser sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre seu ambiente concreto. Quanto mais refletir sobre a realidade, sobre sua situação concreta, mais emerge, plenamente consciente, comprometido, pronto a intervir na realidade para mudá-la. Uma educação que procura desenvolver a tomada de consciência e a atitude crítica, graças à qual o homem escolhe e decide, liberta-o em lugar de submetê-lo, de

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domesticá-lo, de adaptá-lo, como faz com muita freqüência a educação em vigor num grande número de países do mundo, educação que tende a ajustar o indivíduo à sociedade, em lugar de promovê-lo em sua própria linha (1980, p.35).

Em relação ao aspecto educativo, então, evidencia-se serem os movimentos sociais,

inequivocamente, instâncias aptas a promoverem a educação. E, relativamente ao ANDES-

SN, não poderia ser diferente, especialmente quando analisadas as suas práticas no episódio

da Reforma Previdenciária, quando, embora incapaz de alcançar os objetivos a que se

propunha, foi capaz de provocar os militantes e a sociedade para refletir acerca da temática.

Não se pode desconsiderar, no entanto, ao se falar em alcance da sociedade pelo

caráter educativo das ações do movimento, não se estar afirmando o acesso de toda a

sociedade às práticas do sindicato a qual, por conseqüência, teria refletido acerca de tal

reforma. Afirma-se, para quem estivesse atento aos acontecimentos da Reforma

Previdenciária, serem facilmente visíveis as práticas dos sindicatos de servidores públicos,

incluindo-se aí o ANDES-SN. Mais do que isso, para os docentes vinculados ao ANDES-SN,

mesmo não-militantes, mas diretamente interessados nas reivindicações e nos efeitos

benéficos obtidos pelas ações do sindicato, o caráter educativo exsurge mais flagrantemente,

afinal, são provocados a refletir sobre as práticas implementadas e seus resultados, em

especial porque dizem respeito à sua própria condição.

De fato, não se pode desconsiderar, conforme Maxwel Bastos, ser o espaço sindical

um

(...) espaço/tempo de formação potencialmente capaz de mobilizar o trabalhador para a construção coletiva da escola, do sindicato e da sociedade. Pensando a ação sindical enquanto momento e espaço de se fazer/pensar a prática política coletiva é que visualizamos sua práxis formativa (BASTOS in GARCIA, 2000, p. 20).

Portanto, o espaço sindical capaz de promover a prática coletiva e fazer pensar a seu

respeito, torna-se campo reflexivo e formativo, sendo de extrema relevância aos docentes,

pois a estrutura social, nos últimos tempos, tem sofrido profundas alterações, impondo à

formação docente, ampliar os campos de aprendizado estendendo-se aos diversos espaços

sociais. Como diz Acácia Kuenzer:

é preciso superar a atual concepção que faz das faculdades de educação um fragmento da universidade com pouca relevância, posto que devem ser centros articuladores e difusores da ciência pedagógica que se produz a partir de todos os processos sociais e produtivos, e que estão presentes em todos os espaços pedagógicos, quer das relações sociais, quer das relações produtivas, quer dos espaços institucionalizados como são as escolas e as próprias universidades (1998, p.110)

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Devem as faculdades, outrossim, serem centros de formação para preparar

“profissionais que atuem em processos pedagógicos não-escolares: nos processos produtivos,

nos movimentos sociais, nas ruas, nos sindicatos e assim por diante”. Para tanto, impõe-se a

articulação das universidades com os mais diversos campos da sociedade, incluindo-se os

movimentos sociais, entre outros, conforme Kuenzer:

Com Secretarias Estadual e Municipal de Educação, com a rede de escolas e seus docentes, com os movimentos sociais organizados, com os processos e as instituições pedagógicas não-tradicionais como as que educam crianças e adolescentes em situação de risco, jovens e adultos trabalhadores, sem-terra e participantes dos movimentos comunitários das periferias urbanas. Igualmente, com os sindicatos e partidos; com os profissionais que são atores pedagógicos em seus processos de trabalho, como os enfermeiros, agentes de saúde, agrônomos, veterinários, administradores, engenheiros, advogados, médicos, nutricionistas e assim por diante; com o sistema produtivo sempre com o objetivo de identificar as demandas do novo princípio educativo, pesquisando os processos, atores e espaços pedagógicos e subsidiando as práticas educativas que estão presentes em todos os espaços escolares e não-escolares (KUENZER, p. 110).

Segundo Kuenzer, os movimentos sociais são, ao mesmo tempo, espaço de formação

pedagógica dos docentes e campo de atuação deles na condição de promotores da educação

para os demais participantes do movimento. Propicia-se, dessa forma, relação dialógica entre

as partes, tornando os espaços dos movimentos sociais em campos pedagógicos. Repete-se:

são espaços educativos tanto para docentes, como para aqueles que participam de suas

práticas, sendo, ainda, educativos para a sociedade conforme as ações desenvolvidas, a partir

das quais provocam reflexão e promovem conscientização.

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Considerações Finais

Como se viu, o presente trabalho preconizou o estudo de três categorias temáticas:

Movimentos Sociais, Educação e Estado Liberal de Direito, operando-se, a partir do

embasamento teórico destes assuntos, uma análise do desempenho do papel educativo do

ANDES-SN no episódio da Reforma Previdenciária de 2003. A seguir, foram expostas as

possíveis influências do Estado Liberal de Direito sobre a atuação dos movimentos sociais,

utilizando-se, para tal referência, como base de ilustração, o caso concreto do ANDES-SN e

suas ações frente à Reforma da Previdência de 2003.

O tema dos movimentos sociais apresenta-se na doutrina de forma ampla, sendo

diversos os enfoques dos autores. A pesquisa, no entanto, limitou-se à busca de uma definição

dos movimentos sociais, visando, ademais, demonstrar o caráter educativo de que estão

dotados e caracterizar os sindicatos enquanto movimentos sociais.

Apresentou-se uma classificação em “novos” e “velhos” movimentos sociais. No

entanto, os autores não apresentam características substanciais de identificação dos dois

paradigmas, destacando, outrossim, ser cerne dos “novos” e dos “velhos” movimentos sociais

o mesmo: visam à concretização de mudanças sociais. De fato, segundo Sobottka, a

denominação de Novos Movimentos Sociais surgiu para diferenciá-los dos movimentos

clássicos, assim considerados os de operários e de mulheres (2002, p. 7). Diante disso, a

pesquisa preocupou-se em estabelecer uma definição ampla, sem delimitar exatamente tratar-

se de “novos” ou “velhos” movimentos, mas sempre buscando elementos de identificação dos

sindicatos enquanto movimentos sociais.

Entre os autores trabalhados está Touraine, para quem os movimentos sociais são

tipos peculiares de ação coletiva em que uma determinada “categoria social, sempre

particular, questiona uma forma de dominação social”, utilizando-se, para tanto, de valores

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sociais, questionando, outrossim, perante um adversário social, “o modelo de utilização social

de recursos e de modelos culturais” (2003, p. 113).

Melucci prefere o uso da terminologia “ações coletivas” ao invés de movimentos

sociais, considerando sua existência quando há atores com identidade coletiva, os quais

desenvolvem as práticas coletivas com continuidade de tempo, manifestando-se em vista de

um determinado conflito.

Já Claus Offe destaca dos movimentos sociais (seja do “velho” ou do “novo”

paradigma) serem eles interlocutores articulados em torno de objetivos concretos. Os valores

defendidos são referências “aos princípios e exigências morais acerca da dignidade e da

autonomia da pessoa, da integridade das condições físicas da vida, de igualdade e participação

e de formas pacíficas e solidárias de organização social” (GOHN, 2004, p. 167).

Da síntese desses autores, e de todos os demais utilizados na temática dos

movimentos sociais, observa-se que estabelecer o alcance de um conceito fechado sobre este

tema é impraticável, especialmente em face dos distintos enfoques utilizados pelos

doutrinadores. De todos os modos, é possível perceber algumas características essenciais:

grupo reunido em vista de interesses em comum, o que lhes dá a identidade coletiva; um

conflito e a prática coletiva (ação coletiva) frente a um adversário, elementos estes presentes

nos sindicatos.

Sucintamente, no capítulo 1, tratou-se do tema dos grupos de interesse, de modo a

verificar o possível enquadramento dos sindicatos nessa categoria. Constatou-se os sindicatos

conterem itens que permitem sejam identificados tanto como grupos de interesse, quanto

como movimentos sociais. Na verdade, a trajetória histórica do sindicato é que auxilia na sua

identificação em uma categoria ou outra. As breves considerações formuladas acerca do

sindicalismo no Brasil, e da análise da história de constituição do ANDES-SN, primeiramente

apenas Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior (e não sindicato), reunindo as

Associações Docentes formadas no âmbito das universidades para defender os interesses dos

professores e a democratização da sociedade brasileira na época, inserindo-se, a seguir, no

sistema sindical, permitem a conclusão de tratar-se de um movimento social. Estão presentes

os principais itens de caracterização: identidade e ações coletivas, conflito e adversário.

O agrupamento dos docentes de ensino superior decorre da sua identificação com

uma causa em comum: a defesa de seus interesses e de questões de interesse comum da

sociedade, como universidade pública, incentivo à pesquisa, investimentos na melhor

estruturação das universidades, entre outros elementos que promovem a identidade coletiva. O

conflito também está presente ao pretenderem novas situações para a categoria e para as

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condições vivenciadas, vendo, outrossim, resistência para a concretização dos pleitos.

Segundo as características de Melucci e de Touraine para os movimentos sociais, os

sindicatos estão claramente inseridos no conceito.

Vê-se estar, portanto, o ANDES-SN, na condição de sindicato, apesar de contar com

elementos que o identificariam enquanto grupo de interesse. Porém, ele dispõe de fortes

características, especialmente em virtude de sua trajetória, para ser enquadrado como

movimento social.

Mas, há outro elemento de significativo relevo para a discussão do conceito de

movimento social: institucionalização. Para alguns autores, o fato de o ANDES-SN e todos os

demais sindicatos encontrarem-se institucionalizados, faria com que escapassem do rol de

movimentos sociais, estando na condição de entidades, instituições, talvez grupos de

interesses. No entanto, conforme os inúmeros autores apresentados, não é pressuposto para a

existência de um movimento social a não-institucionalização, tanto assim que afirma Joachim

Raschke: “los movimientos sociales tampoco están fijados por principio a una forma de

acción determinada, sea del tipo institucionalizado o del tipo de acción directa” (1994, p.

126).

Na verdade, a institucionalização é, em muitos casos, condição sine qua non para o

alcance dos objetivos a que se propõe o movimento. Exatamente isto diz Jorge Riechmann, já

referido no decorrer do trabalho, mas cujo entendimento repisa-se:

Para obtener al menos el apoyo pasivo de la mayoria de la población, un MS tiene a menudo que diluir radicalidad de sus formas de acción y de sus contenidos: el denominador común de los pacifismos europeos en el momento de su clímax, en 1983, no era ya la desnuclearización de Europa “desde los Urales hasta Portugal”, sino el más modesto objetivo de impedir el despliegue de los misiles Cruise y Pershing II. Para lograr objetivos políticos específicos, las alianzas con fuerzas políticas establecidas, o incluso emprender una vía parlarmentaria, puede ser necesario: acaso ello conduzca a la institucionalización del movimiento. Las exigencias de la movilización de masas pueden favorecer tendencias burocratizadoras en el movimiento (1994, p.56). (grifo nosso)

No entanto, a institucionalização pode ser prejudicial, pode limitar as ações do

movimento em vista dos limites impostos pela legalidade, dos quais um movimento

institucionalizado dificilmente pode escapar. De qualquer modo, havendo a

institucionalização, tal situação, por si só, não desfaz a condição de movimento social, pois

está na base de sua constituição a unidade e a identidade coletiva, bem como a existência de

um conflito, havendo também um adversário. Assim, a institucionalização é formalidade que

não destrói os demais elementos; embora atenue o aspecto mobilizador, não o impede.

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O ANDES-SN está formalmente constituído, porém, a sua base, o grupo social que

lhe originou e que lhe dá sustentação enquanto categoria representada, permanece a existir e,

neste ponto está presente o movimento social. O sindicato é uma ficção jurídica, é abstrato,

sendo sustentado pelo movimento propriamente dito. O movimento social, por sua vez,

constitui-se pelas pessoas que compõem a sua base de representação, no caso do ANDES-SN,

os docentes do ensino superior.

Outro ponto de suma importância nessa pesquisa diz respeito à questão educativa dos

movimentos sociais. O caráter educativo está presente pois os movimentos colocam-se como

agentes provocadores do pensar e instigadores da reflexão, características essenciais da

educação, nos termos das lições de Paulo Freire. A existência de um conflito e de um

adversário ao movimento social, apesar de tudo isto acontecer de forma implícita, faz brotar a

semente educativa do movimento, desenvolvida na medida em que o conflito cresce e impõe

ao movimento social o desenvolvimento de ações com objetivo de dirimir a questão. A partir

de então, ganha relevo a questão reflexiva e provocadora do pensar para os militantes e para a

sociedade em geral.

A partir do desempenho do papel educativo, os movimentos sociais “expressam a

construção de um novo paradigma de ação social, fundado no desejo de se ter uma sociedade

diferente, sem discriminações, exclusões ou segmentações”, concretizando-se, portanto, o

aspecto transformador através dos movimentos. Segundo expõe Maria da Glória Gohn, os

novos direitos sociais conquistados pela sociedade brasileira foram fruto da “articulação entre

a democracia institucional representativa e a democracia direta, advinda das bases dos

movimentos sociais” (2001, p. 202-203), sendo o resultado especial disso tudo a educação.

É relevante ressaltar como afirma Gohn, a conquista dos direitos decorrer da

articulação entre a democracia institucional e a direta. Isso denota que os movimentos sociais

(no caso, representantes da democracia direta) utilizam-se da via institucional para alcançar

suas reivindicações, mas os faz sofrer diretamente as armadilhas da lógica do Estado Liberal

de Direito. Assim, foi fundamental a análise das possíveis influências dessa lógica sobre a

educação desempenhada pelos movimentos sociais. Tal avaliação possibilitou-se a partir do

estudo de caso compreendendo as ações do ANDES-SN frente à Reforma da Previdência

Social de 2003, bem como o resultado de suas práticas.

A incapacidade dos movimentos de responderem às questões a que são provocados

decorre, segundo expõe Gohn, das alterações sofridas nos anos 90:

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Concordamos com as análises de Melucci ao afirmar que os movimentos dos anos 70 e 80 foram a última transição de movimentos como atores para movimentos enquanto forma. Isto significa que, nos anos 90, importa menos a presença de movimentos sociais enquanto organização, e importa mais as novas instituições, os novos quadros de pessoal, a nova mentalidade sobre a coisa pública; em suma, importa mais a nova cultura política gerada (2001, p. 209).

Tal situação decorre da própria lógica do Estado Liberal de Direito. No caso concreto

do ANDES-SN frente à Reforma da Previdência Social, observa-se que tal lógica teve

significativa parcela de responsabilidade pela impotência do movimento em concretizar o

objetivo de retirada da PEC 40 de tramitação.

O Estado Liberal de Direito, como reiteradamente afirmado ao longo deste trabalho,

tem como uma de suas premissas, a questão da legalidade, o ANDES-SN encontra-se

institucionalizado, inserido formalmente no Estado de Direito e, por conseqüência,

implementa suas ações nos limites dessa legalidade.

Nesse ponto impõe-se considerar que todas as ações reivindicativas ou de protesto

realizadas pelo sindicato ocorreram, e ocorrem, nos trilhos da legalidade. Diante disso, então,

vê-se que muitas das vezes a pretensão reivindicativa, ou o mero protesto, pode ser totalmente

desconsiderada por aquele perante o qual se concretiza, isto porque se trata do exercício de

um direito e, concretiza-se nos limites legais.

Conforme já mencionado, segundo Flickinger, o Estado de Direito está “amarrado às

leis enquanto instrumentos de delimitação de seu próprio poder político” (2004, p. 22). Por

conseguinte, o Estado tem o seu poder limitado pelas normas e os movimentos sociais

institucionalizados da mesma forma, pois restringidas as suas ações pelo conteúdo legal. Mais

do que isso, na eventual hipótese de infração à normatividade, sofrem as conseqüências legais

da inobservância ao que prescreve a lei.

Assim, tal situação dos movimentos sociais é decorrência da lógica do Estado de

Direito, no qual nenhuma ação a ser implementada pela sociedade pode fugir dos caminhos da

lei. E, isso, porque a lei está para o liberalismo como sinônimo de justiça e de verdade. Por

conseguinte, o conteúdo legal é visto como capaz de dirimir todos os conflitos sociais,

mantendo a paz através da exigência de que a sociedade e o Estado observem suas previsões.

Conforme Carl Schmitt, exposto por Ferreira, “a validade da lei estaria associada ao

fato de que ela seria expressão de princípios justos e racionais, ‘que tem validade anterior e

acima de qualquer ser político’ (VL, p)” (FERREIRA, 2004, p. 138).

Há algumas conseqüências centrais decorrentes da posição de destaque das leis. A

primeira delas está na assimilação do direito à ordem legal, com esvaziamento do conteúdo da

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legitimidade e, além disso, a compreensão de a lei ser capaz de prever todas as situações do

mundo dos fatos, ser soberana, justa e verdadeira, mesmo quando as situações concretas não

se moldam exatamente no seu conteúdo, devendo, de qualquer modo, ser aplicada a lei sem

questionamentos!

Um ponto de extrema relevância nessa discussão está na situação da legitimidade e

as suas relações com a legalidade. Nas considerações efetuadas acerca das relações

parlamentares verificou-se que o parlamento, em vista das exigências da legalidade,

comporta-se atrelado à normatividade, independentemente da legitimidade. Disso, há algumas

conseqüências, entre elas a desconsideração aos apelos legítimos, desconsideração esta

fundamentada legalmente.

Essas são conseqüências da lógica do Estado de Direito, pois, conforme Ferreira,

referindo-se a Schmitt: “o legislador faz no procedimento legislativo o que ele quer; é sempre

uma ‘lei’ e sempre cria ‘direito’” (LL, 25 apud FERREIRA, 2004, p. 147).

Diante dessas condições, pode-se afirmar que os movimentos sociais, ao recorrerem

aos meios institucionais para a reivindicação de suas pretensões, são incapazes de concretizá-

las e ainda que utilizem caminhos não institucionalizados, como os protestos e as

manifestações públicas, estas também são insuficientes para pressionarem o atendimento de

suas pretensões, pois são vistas como exercício de um direito.

O Estado Liberal de Direito não deixa espaços para o agir fora da legalidade e, ao

mesmo tempo, o agir nos limites da legalidade em muitos casos, se não em todos eles, não

permite o alcance das finalidades. Por conseguinte, o ANDES-SN, em virtude da lógica do

Estado Liberal de Direito, foi incapaz de concretizar o objetivo principal a que se propôs

frente à Reforma da Previdência Social de 2003: retirar a PEC 40 de tramitação. Por outro

lado, não se pode deixar de destacar a lição nascida a partir desse episódio: a impossibilidade

de alcançar os propósitos em face da eleição das vias institucionais.

Ao mesmo tempo, apesar da inviabilização do alcance dos seus objetivos, o ANDES-

SN demonstrou o seu posicionamento no sentido do respeito à legalidade, postura que

dificilmente seria diferente por estar inserido na lógica do Estado Liberal de Direito.

Parece relevante, portanto, que o ANDES-SN, por meio de seus dirigentes, bem

como da classe representada, seja instigado a refletir acerca da questão estrutural do Estado

Liberal de Direito e, a partir disso, constate que sua impotência no episódio da Reforma

Previdenciária de 2003 decorre da lógica do Estado Liberal. Trata-se de uma reflexão oriunda

de um momento vivido pelo próprio ANDES-SN, reflexão que faz retornar ao Sindicato as

lições por ele propiciadas referentes ao episódio da Reforma da Previdência.

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